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SUMÁRIO

Capa
Folha de Rosto
PARTE 1

PARTE 2

PARTE 3

PARTE 4

POSFÁCIO

NOTA DO
TRADUTOR
NOTAS

CRÉDITOS
PARTE 1
Este romance psicológico poderia também ser eventualmente chamado
biografia, porque as observações são em grande parte tiradas da vida real.
– Quem conhece o curso das coisas humanas e sabe que, no desenrolar da
vida, aquilo que inicialmente parecia pequeno e insignificante pode
muitas vezes se tornar bastante importante não se incomodará com a
aparente insignificância de certas situações narradas aqui. Também não se
deve esperar uma variedade de personagens num livro que conta
sobretudo a história interior do homem: pois o livro não deve dispersar a
força de representação, mas concentrá-la, aguçando o olhar da alma para
si mesma. – Essa questão, sem dúvida, não é assim tão simples para que
toda tentativa nesse sentido resulte necessariamente em êxito – mas
sobretudo, ao menos do ponto de vista pedagógico, nunca será
completamente inútil o empenho de fixar a atenção do homem mais sobre
si mesmo e tornar a sua existência individual mais importante para ele.
Em P., lugar famoso por suas fontes termais, vivia em sua quinta, ainda no
ano de 1756, um fidalgo, líder na Alemanha de uma seita conhecida pelo
nome Quietistas ou Separatistas, cujas doutrinas estão contidas sobretudo
nos escritos de Madame Guyon, célebre fanática que viveu na França nos
tempos de Fénelon e com quem também manteve relações.
O sr. de F., assim se chamava o fidalgo, morava ali tão isolado de todos
os outros moradores, tão isolado da religião, dos costumes e hábitos do
lugar quanto sua casa era separada deles por um muro alto que a cercava
por todos os lados.
Aquela casa era como uma pequena república fechada em si, regida
decerto por uma constituição completamente diferente da que havia por
todo o país. Toda a criadagem da casa, até o mais humilde serviçal, era
composta de pessoas cujo empenho se dirigia, ou parecia se dirigir,
unicamente a entrar de novo em seu nada (como Madame Guyon o
denominava), a mortificar todas as paixões e a extirpar toda singularidade.
Todas aquelas pessoas tinham de se reunir uma vez por dia num
enorme cômodo da casa para uma espécie de culto, introduzido pelo
próprio sr. de F., que consistia, sentados todos em torno de uma mesa, de
olhos fechados e com a cabeça apoiada sobre ela, em esperar cerca de meia
hora a fim de ouvir talvez a voz de Deus ou a palavra interior dentro de si.
Aquele que ouvia algo anunciava então aos demais.
O sr. de F. também estipulava as leituras de seu pessoal, e quem entre
os criados e criadas tivesse um quarto de hora ocioso era visto sentado e
lendo em posição meditativa, tendo nas mãos os escritos de Madame
Guyon sobre a prece interior, ou algo semelhante.
Tudo naquela casa, até a menor ocupação doméstica, tinha um aspecto
grave, severo e solene. Em todos os rostos, podia-se ler mortificação e
abnegação; e em todos os atos, saída de si e entrada no nada.
O sr. de F. não voltou a se casar após a morte de sua primeira esposa,
mas vivia recolhido com a irmã, a sra. de P., para poder se dedicar total e
tranquilamente a uma tarefa maior, a de divulgar as doutrinas de Madame
Guyon.
O administrador, de nome H., e a governanta com sua filha formavam,
por assim dizer, o estrato médio da casa, e, em seguida, vinha a criadagem
inferior. – Essas pessoas eram de fato muito ligadas e todas tinham
ilimitada veneração pelo sr. de F., cuja conduta era realmente
irrepreensível, se bem que os moradores do lugar andassem às voltas com
histórias as mais desagradáveis a seu respeito.
Toda noite, ele se levantava três vezes em horas marcadas para rezar e
passava a maior parte do tempo, durante o dia, traduzindo do francês os
escritos de Madame Guyon, uma grande quantidade de volumes, que ele
então mandava imprimir a sua custa e distribuir de graça entre seus
seguidores.
As doutrinas contidas nesses escritos tratam em sua grande maioria da
já mencionada saída completa de si mesmo e da entrada no bem-
aventurado nada, daquela mortificação completa de toda assim chamada
singularidade ou amor-próprio, e de um amor completo e desinteressado por
Deus, ao qual, para ser puro, não se pode mesclar fagulha alguma de amor-
próprio, de onde surge por fim uma quietude perfeita e bem-aventurada,
objetivo mais alto de todo esse empenho.
Como Madame Guyon quase não teve outra ocupação ao longo da vida
a não ser escrever, a quantidade de seus livros é tão espantosa que mesmo
Martinho Lutero dificilmente pode ter escrito mais. Entre os escritos,
apenas uma explicação mística de toda a Bíblia perfaz uns vinte volumes.
Madame Guyon parece ter sido muito perseguida e, como suas
doutrinas eram consideradas perigosas, acabou sendo presa na Bastilha,
onde faleceu após dez anos de cativeiro. Quando, depois de sua morte, lhe
abriram a cabeça, encontraram seu cérebro praticamente seco. Por tudo
isso, ela ainda hoje é venerada por seus seguidores como uma santa de
primeira grandeza, quase uma divindade, e suas máximas são
consideradas como estando à mesma altura que as da Bíblia; porque se
admite que ela, pela completa mortificação de toda singularidade, estava
certamente tão unida a Deus que todos os seus pensamentos também
tinham de ser necessariamente pensamentos divinos.
O sr. de F. conhecera os escritos de Madame Guyon em sua viagem à
França, e o árido fanatismo metafísico que neles reinava exerceu tanta
atração em sua disposição de ânimo que se dedicou a eles com o mesmo
zelo com o qual provavelmente, em outras circunstâncias, teria se
dedicado ao mais elevado estoicismo, com o qual as doutrinas de Madame
Guyon, levando-se em conta a completa mortificação de todos os desejos
etc., tinham por vezes uma semelhança evidente.
Ele também era igualmente venerado como um santo por seus
seguidores, e realmente julgavam que era capaz de ver o íntimo da alma
de uma pessoa à primeira vista.
Peregrinos de todos os cantos acorriam a sua casa, e entre os que a
visitavam ao menos uma vez por ano estava também o pai de Anton.
Esse homem, que crescera sem uma educação formal, casara-se muito
cedo com a primeira esposa e levara sempre uma vida bastante desregrada
e errante. Ainda que tenha experimentado por vezes alguns
arrebatamentos religiosos, não lhes deu a devida atenção. Até que, após a
morte de sua primeira mulher, caiu de repente em si, tornando-se
subitamente pensativo e, como se diz, um homem completamente
diferente; durante sua permanência em P., conheceu primeiro por acaso o
administrador do sr. de F. e em seguida, por meio deste, o próprio sr. de F.
Pouco a pouco, este foi lhe dando a ler os escritos de Madame Guyon,
pelos quais ele tomou gosto, logo se tornando um seguidor declarado do
sr. de F.
Não obstante, teve a ideia de se casar outra vez, e conheceu a mãe de
Anton, que logo consentiu em se casar, o que jamais teria feito se tivesse
pressentido o inferno de infortúnio que viria a ameaçá-la no casamento.
Ela esperava de seu marido ainda mais amor e cuidado do que tinha até
então desfrutado entre seus parentes, mas que terrível engano ela sofreu.
Quanto mais a doutrina de Madame Guyon a respeito da total
mortificação e do aniquilamento de todas as paixões, inclusive as ternas e
meigas, concordava com a alma dura e insensível de seu marido, menor
era a possibilidade de algum dia ela se entender com essas ideias, contra as
quais seu coração se insurgia.
Esse foi o primeiro embrião de todas as posteriores desavenças
conjugais.
O marido começou a desprezar suas convicções, porque ela não queria
aprender os elevados mistérios que Madame Guyon ensinava.
O desprezo alcançou posteriormente também suas demais convicções,
e quanto mais ela o sentia tanto mais o amor conjugal inevitavelmente
diminuía, e a insatisfação recíproca aumentava a cada dia.
A mãe de Anton era profundamente versada na Bíblia e tinha um
conhecimento bastante claro de seu sistema religioso; ela sabia, por
exemplo, falar de modo bastante edificante sobre como a fé sem obras é
morta etc.
De fato, ela lia a Bíblia por horas e horas com profunda satisfação, mas,
assim que seu marido tentava ler para ela em voz alta os escritos de
Madame Guyon, ela sentia uma espécie de receio, nascido supostamente
da ideia de que dessa maneira se desviaria da verdadeira fé.
Ela então procurou de todos os modos se libertar. – Ademais, atribuía
muito da natureza fria e insensível do marido à doutrina de Madame
Guyon, que ela começou a amaldiçoar cada vez mais em seu coração, e
amaldiçoava em voz alta quando irrompeu de vez a discórdia conjugal.
Assim a paz doméstica, a tranquilidade e o bem-estar de uma família
foram abalados durante anos por esses livros desastrosos, que
provavelmente nem um nem outro eram capazes de entender.
Nessas circunstâncias nasceu Anton, e dele se pode dizer
verdadeiramente que foi oprimido desde o berço.
Os primeiros sons que seu ouvido escutou e que seu entendimento
nascente compreendeu foram insultos e maldições recíprocos do casal,
que se achava ligado por laços indissolúveis.
Embora tivesse pai e mãe, ele foi abandonado pelos dois já na infância,
pois não sabia a quem deveria se unir, a quem se agarrar, já que ambos se
odiavam e ele estava tão próximo de um quanto do outro.
Na infância, jamais recebeu os afagos de pais carinhosos, nem mesmo o
sorriso recompensador deles após um pequeno esforço de sua parte.
Quando entrava na casa dos pais, entrava numa casa de insatisfação,
ira, lágrimas e lamentos.
Durante toda a vida, essas primeiras impressões jamais foram apagadas
de sua alma, convertendo-se muitas vezes em ponto de encontro de
pensamentos sombrios que ele não conseguiu remover com nenhuma
filosofia.
Quando seu pai foi para a frente de batalha na Guerra dos Sete Anos,
sua mãe e ele foram viver durante dois anos numa pequena aldeia.
Lá ele teve bastante liberdade e algumas compensações pelos
sofrimentos de sua infância.
As imagens dos primeiros prados que viu – o trigal que subia por uma
leve colina e era coroado no alto por bosques verdes, a montanha azul,
alguns arbustos e árvores que lançavam suas sombras sobre a relva
verdejante ao sopé da montanha e tornavam-se cada vez mais densos à
medida que subiam –, essas imagens continuam a se misturar entre seus
pensamentos mais agradáveis e constituem, por assim dizer, a base de
todas as imagens ilusórias que sua fantasia costuma pintar.
Mas como aqueles dois anos felizes passaram voando!
Restabelecida a paz, a mãe de Anton se mudou com ele para a cidade, a
fim de morar com o marido.
A longa separação do pai provocou uma breve ilusão de harmonia
conjugal, mas uma tempestade muito mais terrível se seguiu à calmaria
enganosa.
O coração de Anton se desfazia em tristeza ao ter de dar razão a um de
seus pais, e isso ocorria muitas vezes quando seu pai, a quem ele
simplesmente temia, tinha mais razão que sua mãe, a quem ele amava.
Assim, com relação aos pais, sua alma de menino oscilava
constantemente entre ódio e amor, entre medo e confiança.
Pouco antes de Anton completar 8 anos, sua mãe deu à luz o segundo
filho, sobre quem recaiu inteiramente o pouco do amor paterno e materno
restante, de tal modo que ele foi quase completamente abandonado, e,
sempre que se falava dele, ouvia-se designá-lo com uma espécie de
desdém e desprezo que lhe atravessavam a alma.
Como poderia, pois, nascer nele o desejo veemente de ser tratado
afetuosamente se ele mesmo jamais havia sido habituado a isso e,
portanto, mal podia ter a mais vaga ideia a respeito?
É claro que esse sentimento acabou perdendo bastante seu vigor; para
ele era quase como se precisasse ser constantemente repreendido, e o
olhar amigo que certa vez recebeu foi algo completamente estranho para
ele, pois não se ajustava muito bem às reprimendas que geralmente
recebia.
Sentia intensamente a necessidade da amizade de seus semelhantes: e,
com frequência, quando via um garoto de sua idade, sua alma inteira se
apegava, e teria dado tudo em troca da amizade do garoto; mas o
sentimento humilhante de desprezo que recebia dos pais e a vergonha por
causa de suas roupas pobres, sujas e rasgadas o detinham de tal modo que
ele não se atrevia a falar com nenhum garoto mais afortunado.
Assim, ele andava quase sempre triste e solitário, porque a maioria da
garotada da vizinhança, mais ordeira, asseada e bem-vestida, não queria
contato com ele, e com os demais era ele que não queria ter nenhum
contato por causa do desleixo deles e quem sabe também por certo
orgulho.
Ele não tinha ninguém a quem pudesse se unir, nenhum colega de
infância, nenhum amigo, quer entre os grandes, quer entre os pequenos.
Apesar de tudo, aos 8 anos, seu pai começou a ensiná-lo a ler aos
poucos e acabou lhe comprando dois pequenos livros, um contendo
instruções sobre como soletrar e o outro, um tratado contra o soletrar.
No primeiro, Anton tinha de soletrar sobretudo complicados nomes
bíblicos, tais como Nabucodonosor, Abdênago etc., que ele não tinha a
menor ideia de quem poderiam ter sido, de modo que o aprendizado
caminhou um pouco lento.
Mas, tão logo percebeu que ideias sensatas eram realmente expressas
pela combinação das letras, sua curiosidade para aprender a ler se tornou
dia a dia mais forte.
Seu pai mal lhe dera algumas horas de instrução, e ele aprendeu a ler
sozinho em poucas semanas, para o espanto de todos.
Com profunda satisfação, ele ainda agora se lembra da intensa alegria
que então sentiu quando proferiu pela primeira vez, com muito custo,
soletrando bastante, algumas linhas nas quais podia entender alguma
coisa.
Mas não conseguia compreender como era possível que os outros
pudessem ler tão rápido quanto falavam; nessa época, ficou
completamente desesperado com a possibilidade de não conseguir.
Tanto maiores foram sua surpresa e sua alegria quando também o
conseguiu, depois de algumas semanas.
Ao que parece, isso também fez com que recebesse alguma
consideração dos pais, e ainda mais dos parentes, algo que não lhe passou
despercebido, mas que jamais se tornou a causa real que o estimulava a
estudar.
Sua curiosidade de ler era insaciável. Por sorte, no livro de instrução
para soletrar havia também, além das máximas bíblicas, algumas
narrativas sobre crianças devotas, lidas por ele mais de cem vezes, embora
não tivessem tanto atrativo.
Uma delas era sobre um garoto de 6 anos que, na época das
perseguições, não quis renegar a religião cristã, preferindo passar pelas
mais terríveis torturas e morrer ao lado da mãe como um mártir da
religião; a outra era sobre um garoto malvado de 20 anos que se converteu
e faleceu logo em seguida.
Agora era a vez do outro pequeno livro, o do tratado contra o soletrar,
no qual ele, para grande espanto seu, leu que era prejudicial, e mesmo
nocivo à alma, ensinar as crianças a ler soletrando.
Nesse livro encontrou também um método para professores ensinarem
as crianças a ler e um tratado sobre como proferir cada sílaba pelos órgãos
da fala: por mais árido que lhe parecesse, leu o livro de cabo a rabo com
máxima perseverança, na falta de algo melhor para fazer.
A leitura lhe abriu subitamente um mundo novo cujo deleite lhe
permitiu compensar de certo modo todas as coisas desagradáveis de seu
mundo real. Quando ao seu redor só havia barulhos, repreensões e
desavença doméstica, quando não encontrava ninguém com quem
brincar, ele corria para seu livro.
Assim, desde muito cedo foi deslocado de um mundo infantil natural
para um mundo idealista antinatural, o que indispôs seu espírito para
milhares de alegrias da vida, as quais outras pessoas eram capazes de
desfrutar de alma plena.
Aos 8 anos, ele contraiu uma doença debilitante. Não lhe deram
esperança de vida, e ouvia falar constantemente de si como de alguém já
considerado morto. Isso sempre lhe pareceu ridículo, ou melhor, morrer,
como então imaginava, era algo mais ridículo do que grave. Sua prima,
que parecia gostar um pouco mais dele do que os pais, levou-o enfim ao
médico, e o tratamento de alguns meses o restabeleceu.
Fazia apenas poucas semanas que havia se recuperado, quando, num
passeio pelo campo com os pais, o que era algo muito raro e por isso
mesmo tanto mais atraente, seu pé esquerdo começou a doer. Depois de
ter se recuperado da doença, aquele tinha sido seu primeiro passeio e
durante um bom tempo seria o último.
No terceiro dia, o inchaço e a inflamação do pé tinham se agravado
tanto que no quarto dia começaram a pensar numa amputação. A mãe de
Anton ficou abatida e chorou, e seu pai lhe deu 2 centavos. Essas foram as
primeiras demonstrações de compaixão de seus pais de que Anton se
lembrava, e, por sua raridade, deixaram uma impressão ainda mais forte
nele.
Na véspera do dia marcado para a amputação, um sapateiro
misericordioso veio ter com a mãe de Anton, trazendo-lhe uma pomada
cuja aplicação amainou em poucas horas o inchaço e a inflamação no pé.
Ainda que se tenha evitado a amputação, a lesão levou quatro anos para
ser curada, tempo em que nosso Anton, sofrendo frequentemente dores
indizíveis, teve de renunciar outra vez a todas as alegrias da infância.
Em função da ferida, Anton não pôde sair de casa por um trimestre
inteiro, pois ela melhorava um pouco e voltava a se abrir.
Muitas vezes, teve de gemer e se queixar durante noites inteiras,
suportando quase diariamente as mais terríveis dores por causa das
ataduras. Naturalmente, isso o afastava mais do mundo e do contato com
seus semelhantes, prendendo-o cada vez mais à leitura e aos livros. No
mais das vezes, ele lia enquanto embalava o irmão mais novo, e, se
naquela época lhe faltava um livro, era como se lhe faltasse um amigo:
pois, para ele, o livro tinha de ser amigo e consolador e tudo o mais.
Aos 9 anos, ele já tinha lido do começo ao fim tudo o que havia de
história na Bíblia; e quando morria um dos personagens principais, como
Moisés, Samuel ou Davi, ele era capaz de passar o dia todo entristecido,
sentindo-se como se tivesse morrido um amigo, pois as pessoas que
tinham feito algo admirável no mundo e adquirido renome se tornavam
sempre muito caras para ele.
Assim, Joab era seu herói, e lhe dava pena sempre que era levado a
pensar algo ruim sobre ele. Os traços de generosidade nas histórias de
Davi, quando este poupava o pior inimigo mesmo tendo-o em seu poder,
comoviam-no particularmente até as lágrimas.
Caiu-lhe então nas mãos a Vida dos padres do deserto, que seu pai tinha
em alto apreço, citando os padres como autoridades em qualquer situação.
Seus discursos morais começavam habitualmente assim: Madame Guyon
afirma, ou Santo Macário ou Santo Antônio disse etc.
Os padres, por mais absurdas e excêntricas que suas histórias muitas
vezes pudessem ser, foram para Anton os modelos mais dignos de
imitação, e durante algum tempo o único desejo que conheceu foi tornar-
se parecido com Santo Antônio, seu maior homônimo, e, como ele,
abandonar pai e mãe e fugir para o deserto que esperava encontrar não
muito longe da entrada da cidade e para onde certa vez empreendeu
realmente uma viagem, quando se afastou mais de cem passos da casa dos
pais, e talvez tivesse ido mais longe ainda se as dores do pé não o tivessem
obrigado a retornar. Ele começou até mesmo a se espetar de vez em
quando com agulhas, ou a se torturar, para se assemelhar de certo modo
aos padres santos, já que dores eram o que não lhe faltava.
Durante aquelas leituras, ganhou de presente um pequeno livro de
cujo título não se lembra, mas que tratava de um temor primordial a Deus,
e nele havia instruções de como se poderia, dos 6 aos 14 anos, crescer na
devoção. Os tratados nesse livrinho eram assim intitulados: “Para crianças
de 6 anos”, “Para crianças de 7 anos” etc. Anton leu então a parte “Para
crianças de 9 anos” e achou que ainda tinha tempo de ser tornar um
homem religioso, pois só tinha perdido três anos.
Isso comoveu sua alma inteira, e a decisão de converter-se foi muito
firme, como raramente acontece mesmo entre os adultos. Daquele
momento em diante, seguiu à risca tudo o que estava escrito no livro
sobre oração, obediência, paciência, ordem etc., e qualquer passo
precipitado ele transformava quase num pecado. A que distância, pensou,
já não estarei em cinco anos se eu persistir assim? Pois no livrinho o
avanço na devoção havia se transformado, por assim dizer, numa questão
de ambição, assim como nos alegramos ao subir de uma classe para outra
cada vez mais elevada.
Às vezes, como era natural, ele se esquecia de si e, sentindo alívio no
pé, saía correndo ou pulando por aí, pelo que sofria então os mais
violentos remorsos, e para ele era sempre como se tivesse de voltar a
descer alguns degraus.
O livrinho exerceu forte influência sobre suas ações e convicções, pois
ele procurava também pôr imediatamente em prática aquilo que lia. Com
muito escrúpulo, lia a cada dia da semana as bênçãos matutinas e
vespertinas, porque no catecismo se dizia que era obrigatório lê-las;
tampouco se esquecia de fazer, como era prescrito no catecismo, o sinal da
cruz e dizer Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, Amém.
No mais, ele via pouca gente devota, apesar de quase sempre ouvir
falar muito dela e de sua mãe o abençoar toda noite e jamais se esquecer,
antes que ele dormisse, de fazer o sinal da cruz sobre ele.
O sr. de F. traduzira para o alemão, entre outras coisas, os cânticos
espirituais de Madame Guyon, e o pai de Anton, que conhecia música,
adaptou para eles melodias que tinham sobretudo um andamento rápido e
alegre.
Se porventura ocorresse de ele voltar para casa após uma longa
separação, a esposa se deixava persuadir a cantar, acompanhada por ele à
cítara, alguns desses cânticos. Em geral, isso acontecia logo após a alegria
do reencontro, e essas horas seriam provavelmente ainda as mais felizes
do casal.
Anton ficava felicíssimo e com frequência juntava, tanto quanto podia,
sua voz aos cânticos, que eram um sinal da raríssima harmonia e
concórdia recíproca entre seus pais.
Seu pai lhe deu os cânticos porque já o considerava maduro o bastante
para essa leitura e obrigou-o a decorar uma parte deles.
A despeito da tradução dura, os cânticos ainda tinham realmente tanta
ternura de alma, uma doçura tão inimitável na expressão, um claro-escuro
tão suave na apresentação e tanta atração irresistível para uma alma
delicada que a impressão deixada no coração de Anton permaneceu
indelével.
Muitas vezes, nas horas solitárias em que pensava ter sido abandonado
por tudo e por todos, ele se consolava com o cântico da feliz saída de si
mesmo e da doce aniquilação na fonte primordial da existência.
Assim, já naquele tempo suas ideias infantis lhe reservavam
frequentemente uma espécie de tranquilidade celestial.
Certa vez, seus pais foram convidados pelo dono da casa em que
moravam para uma pequena festa de família à noite. Anton foi obrigado a
assistir da janela às crianças da vizinhança chegando bem-vestidas para a
festa, enquanto ele tinha de permanecer sozinho no quarto, porque seus
pais tinham vergonha de seus péssimos trajes. Anoiteceu e ele começou a
sentir fome; e seus pais não lhe haviam deixado nem um pedacinho de
pão.
Enquanto permanecia lá em cima, sozinho e chorando, o barulho do
alegre tumulto lá embaixo subia até ele. – Abandonado por todos, sentiu
primeiramente certo desprezo amargo de si mesmo, que logo se
transformou numa melancolia indizível, quando abriu ao acaso os cânticos
de Madame Guyon e encontrou um que parecia convir ao seu estado. –
Uma tal aniquilação, como estava sentindo naquele momento, tinha de
anteceder, conforme o cântico de Madame Guyon, a perda de si no abismo
do amor eterno, assim como uma gota se perde no oceano. – Mas, como
sua fome começou a se tornar insuportável, nem mesmo os consolos de
Madame Guyon puderam mais ajudar, e ele arriscou descer até onde seus
pais comiam e bebiam em grande companhia, abriu um pouco a porta e
pediu a sua mãe a chave da despensa e a permissão para pegar um pouco
de pão, porque estava com muita fome.
Isso primeiro provocou gargalhadas e, depois, compaixão no grupo,
junto a certa indignação para com os pais.
Ele foi levado à mesa, onde lhe serviram as melhores iguarias, que
certamente lhe deram uma alegria bastante diferente daquela que lhe
havia sido dada pelo cântico de consolo de Madame Guyon.
Mas mesmo aquela alegria taciturna e lacrimosa sempre lhe reservava
algo de atraente, e ele se entregava a ela lendo os cânticos de Madame
Guyon todas as vezes que um desejo não se realizava, ou algo triste estava
na iminência de acontecer, como quando soube antecipadamente que seu
pé deveria ser enfaixado e a ferida, untada com pedra-infernal.
O segundo livro que seu pai o deixou ler, além dos cânticos de Guyon,
foi a Instrução para oração interior, da mesma autora.
Nele era demonstrado como se pode aos poucos chegar a conversar
verdadeiramente com Deus, escutar nitidamente sua voz no coração ou
mais precisamente a palavra interior; ou seja, era preciso primeiro se
desprender tanto quanto possível dos sentidos e procurar se ocupar de si
mesmo e dos seus próprios pensamentos, ou aprender a meditar, mas isso
também tinha de cessar e era preciso se esquecer de si mesmo antes de ser
capaz de escutar a voz de Deus dentro de si.
Anton seguiu a instrução com grande fervor, porque estava realmente
ávido para ouvir dentro de si algo assim tão maravilhoso como a voz de
Deus.
Passou então a se sentar durante meia hora de olhos fechados para se
afastar da sensibilidade. Para enorme pesar de sua mãe, o pai fazia a
mesma coisa. Ela, no entanto, não estava preocupada com Anton, porque
não pensava que ele pudesse ter algum propósito com aquilo.
Anton logo esteve a ponto de acreditar estar razoavelmente afastado
dos sentidos e começou então a conversar realmente com Deus, com quem
logo estabeleceu relações bastante íntimas. Ele conversava com Deus
durante o dia todo, em seus passeios solitários, em seus trabalhos e até nas
brincadeiras, sempre com uma espécie de amor e confiança, mas também
como se fala com um semelhante com quem não se tem muita cerimônia,
e para ele era realmente como se Deus respondesse isso ou aquilo.
Certamente não foram poucas as vezes em que se sentiu insatisfeito,
quando porventura uma brincadeira inocente ou então um desejo era
frustrado. Nessas ocasiões ele dizia a si mesmo: “Mas nem mesmo essa
ninharia me foi concedida!” ou: “Você poderia ter deixado isso acontecer
se ao menos fosse possível!”. E Anton não se recriminava por às vezes se
zangar um pouco com Deus do seu jeito; pois, embora nos escritos de
Madame Guyon não constasse nada a esse respeito, ele acreditava que isso
fazia parte do convívio familiar.
Todas essas mudanças lhe aconteceram dos 9 para os 10 anos. Nesse
período, seu pai também o levava, por causa do pé machucado, até as
fontes termais em P. Que alegria ele não sentiu ao conhecer pessoalmente
o sr. de F., de quem seu pai lhe falava constantemente com veneração por
ser uma pessoa sobre-humana, e que alegria não sentiu ao poder prestar
contas ali de seus grandes progressos na devoção interior: sua imaginação
pintou o lugar como uma espécie de templo, onde ele se iniciaria como
sacerdote e aonde retornaria como um, para a surpresa de todos que o
conheciam.
Ele fez sua primeira viagem com o pai, e durante o trajeto este também
foi mais bondoso com o menino, ocupando-se dele mais do que em casa.
Anton viu a natureza em sua inefável beleza. Distantes e próximos, as
montanhas circunvizinhas e os lindos vales encantavam sua alma e a
desmanchavam em nostalgia, em parte nascida da expectativa de que
grandes coisas poderiam lhe acontecer.
O primeiro passeio foi à casa do sr. de F., onde seu pai primeiro falou
com o administrador, o sr. H., abraçou-o e beijou-o, sendo recebido por ele
da maneira mais amigável.
Apesar das fortes dores no pé durante a viagem, Anton estava fora de
si de alegria ao entrar na casa do sr. de F. Naquele dia, ele permaneceu no
quarto do sr. H., com quem a partir de então teve de jantar todas as noites.
Aliás, na casa, não se preocuparam muito com ele como havia esperado.
Ele continuava bem dedicado aos seus exercícios de oração interior;
claro que estes às vezes não podiam deixar de receber uma inflexão
bastante infantil. Havia um enorme pomar atrás da casa onde seu pai
estava hospedado em P.: ali ele encontrou por acaso uma carriola e se
divertia empurrando-a por todo o pomar.
Mas, como começou a considerar a brincadeira um pecado, teve uma
ideia bem extravagante para justificá-la. Nos escritos de Madame Guyon, e
em outros lugares, ele tinha lido muito sobre o Menino Jesus, de quem se
dizia que poderia estar por toda parte e que se poderia conviver
permanentemente com ele em todos os lugares.
Aquele tratamento infantil – Menino Jesus – levou-o a imaginar um
menino ainda menor que ele, e, como já tinha familiaridade com o próprio
Deus, por que não teria ainda mais com Seu filho, a quem julgava ser
incapaz de se recusar a brincar com ele e que, por isso, não se oporia se
Anton quisesse levá-lo para passear um pouco de carriola.
Ele, no entanto, estimava como uma tremenda sorte poder levar uma
pessoa tão nobre sobre a carriola e ainda lhe proporcionar diversão; e,
como essa pessoa era uma criação de sua imaginação, ele também fazia
dela o que queria, fazia com que tomasse gosto, ora por pouco tempo, ora
por muito, em passear de carriola, dizendo por vezes com todo o respeito,
quando ficava cansado de empurrá-la: “Por mais que queira, agora me é
impossível continuar empurrando a carriola”.
Assim, ao final, ele via aquilo como uma espécie de cerimônia religiosa
e não considerava mais um pecado passar metade do dia entretido com a
carriola.
Mas então teve em mãos, com a anuência do próprio sr. de F., um livro
que o introduziu num mundo completamente diferente e novo. Era a
Acerra philologica[1]. Nele leu a história de Troia, de Ulisses, de Circe, de
Tártaro e Elísio, e logo conheceu todos os deuses e deusas pagãos. Em
seguida, deram-lhe para ler também o Telêmaco, igualmente com a
anuência do sr. de F., talvez porque o autor fosse o mesmo sr. Fénelon que
tivera relações com Madame Guyon.
A Acerra philologica havia sido para ele uma ótima preparação para a
leitura de Telêmaco, porque por meio dela ficou conhecendo bastante a
mitologia e se interessou pela maioria dos heróis que encontrou
novamente no Telêmaco.
Um após o outro, com grande apetite e verdadeiro encanto, esses
livros foram lidos várias vezes por ele, especialmente o Telêmaco, no qual
pela primeira vez experimentou a atração de uma bela narrativa
concatenada.
Em todo o Telêmaco, a passagem que o tocou com mais vivacidade foi a
fala comovente do velho Mentor ao jovem Telêmaco, quando este, na ilha
de Chipre, estava a ponto de confundir a virtude com o vício, e de repente
lhe apareceu novamente seu fiel Mentor, que para ele já estava perdido
havia muito tempo e cujo olhar triste o abalou até o mais íntimo da alma.
Certamente para a alma de Anton aquelas histórias foram muito mais
atraentes do que as bíblicas e do que tudo o que lera antes na Vida dos
padres do deserto ou nos escritos de Madame Guyon; e, como jamais lhe
tinha sido dito realmente o que era verdadeiro e o que era falso, ele não
achou de modo algum inadequado acreditar realmente nas histórias dos
deuses pagãos, com tudo o que pulsava dentro delas.
Mas tampouco podia rejeitar o que estava na Bíblia, ainda mais porque
aquilo afinal havia constituído as primeiras impressões de sua alma.
Buscou então a única coisa que lhe restava, unir os diferentes sistemas tão
bem quanto pudesse em sua cabeça e assim fundir a Bíblia com o Telêmaco,
a Vida dos padres do deserto com a Acerra philologica, e o mundo pagão com o
cristão.
A primeira pessoa da divindade e Júpiter, Calipso e Madame Guyon, o
céu e o Elísio, o inferno e o Tártaro, Plutão e o diabo faziam nele a mais
esquisita combinação de ideias que jamais existiu em algum cérebro
humano.
Isso provocou uma impressão tão forte em seu ânimo que ainda muito
tempo depois ele manteve uma inegável veneração pelas divindades
pagãs.
Era um caminho bastante longo da casa na qual o pai de Anton estava
hospedado até as fontes termais e sua alameda. Anton mesmo assim se
arrastava dali para fora com o pé dolorido, o livro embaixo do braço, e se
sentava num banco na alameda, onde ia aos poucos esquecendo sua dor na
leitura, e de repente se encontrava não no banco em P., mas numa ilha
qualquer com castelos e torres altas, ou no meio do tumulto de uma
guerra violenta.
Lia com uma espécie de alegria melancólica e, quando os heróis
tombavam, sofria com isso, mas, pensava Anton, parecia que eles tinham
mesmo de tombar.
Isso provavelmente teve também grande influência em suas
brincadeiras infantis. Um terreno cheio de urtigas e cardos bem crescidos
significara para ele muitas cabeças inimigas, entre as quais às vezes se
enfurecia barbaramente, derrubando uma após a outra com seu bastão.
Quando passeava pelo campo, fazia uma divisão e em pensamento
punha cara a cara dois exércitos de flores amarelas e brancas. As maiores
entre elas recebiam os nomes de seus heróis, e uma recebia seu próprio
nome. Depois, imaginava uma espécie de fatalidade cega, fechava os olhos
e golpeava com seu bastão, atingindo qualquer coisa.
Quando abria novamente os olhos, via a terrível destruição, aqui um
herói e lá outro esticado no chão, e com frequência se via entre os caídos,
com uma sensação esquisita e melancólica, mas agradável.
Depois, chorava um pouco por seus heróis e abandonava o horrível
campo de batalha. Em casa, não tão longe da residência dos pais, havia um
cemitério onde ele reinava com cetro de ferro sobre toda uma geração de
flores e plantas, e não havia um dia sequer em que não as passava em
revista.
Quando viajou de P. de volta para casa, esculpiu em papel todos os
heróis do Telêmaco, pintou-os com capacete e armadura conforme as
gravuras e deixou-os alguns dias em posição de batalha, até que
finalmente decidiu o destino deles e dizimou-os com facadas terríveis,
arrancando o capacete de uns, o crânio de outros, e viu à sua volta tão
somente morte e estrago.
Do mesmo modo, todas as suas brincadeiras com sementes de cereja e
ameixa acabavam em estrago e destruição. Estas também eram
governadas por um destino cego, quando ele punha cara a cara dois tipos
diferentes de exército e, de olhos fechados, batia o martelo de aço neles, e
onde atingia, destruía.
Quando exterminava insetos com um mata-moscas, fazia-o com certa
solenidade, segurando nas mãos um pedaço de latão e para cada um deles
tocava antes o sino da morte. Seu maior prazer era quando podia queimar
uma cidade construída com casinhas de papel e em seguida observar com
solene gravidade e melancolia as cinzas que restavam.
Quando uma casa realmente pegou fogo à noite na cidade onde seus
pais moravam, ele sentiu, apesar de todo o sobressalto, certo desejo
secreto de que o fogo não se apagasse tão rápido.
Esse desejo não se fundava de modo algum numa satisfação com a
desgraça alheia, mas tinha origem num obscuro pressentimento de
grandes mudanças, migrações e revoluções, nas quais todas as coisas
adquiririam uma forma completamente diferente e poriam fim àquela
uniformidade.
Mesmo o pensamento de sua própria destruição não só lhe era
agradável como também lhe causava uma sensação de volúpia, quando à
noite, antes de dormir, muitas vezes pensava intensamente na dissolução
e dilaceração de seu corpo.
Os três meses de estada de Anton em P. lhe foram muito vantajosos sob
vários aspectos, porque ele quase sempre estava entregue a si mesmo e
teve a sorte de estar por um tempo novamente longe dos pais, já que sua
mãe permanecera em casa e seu pai tinha outros negócios em P. e não se
preocupava tanto com ele; no entanto, quando às vezes o via, o pai era
muito mais amoroso do que em casa.
Na casa em que o pai de Anton estava hospedado havia também um
inglês que falava bem alemão e se ocupou de Anton muito mais que
qualquer outra pessoa até então, pois começou a ensinar inglês a Anton
simplesmente falando e se alegrava com seus progressos. Eles
conversavam, passeavam, e por fim o inglês já não conseguia fazer nada
sem ele.
Este foi o primeiro amigo que Anton encontrou na terra: dele se
despediu com melancolia. Ao partir, o inglês pôs na mão de Anton um
medalhão de prata, que ele deveria guardar como lembrança até quando
fosse alguma vez à Inglaterra, onde sua casa lhe estaria sempre aberta:
quinze anos depois, Anton foi realmente para a Inglaterra e ainda tinha
consigo o medalhão, mas o primeiro amigo de sua infância estava morto.
Certa vez Anton deveria dizer a um estrangeiro que queria visitar o
inglês que este não estava em casa. Não houve jeito de convencê-lo porque
não queria mentir.
Naquela época, essa atitude fez crescer bastante a estima por ele, e foi
apenas uma das ocasiões em que Anton quis parecer mais virtuoso do que
realmente era, pois não fazia muito caso de uma mentirinha; mas ninguém
notava sua verdadeira luta interna, na qual muitas vezes sacrificava seus
desejos mais inocentes em razão de um suposto desagrado a um ser
divino.
Nesse meio-tempo, em P., o modo amoroso com que o tratavam foi
bastante animador e elevou um pouco seu espírito deprimido. Mostravam
compaixão por ele em atenção à dor no pé, tratavam-no com afabilidade
na casa do sr. de F., e este lhe dava um beijo na testa todas as vezes que o
encontrava na rua. Esses tratamentos eram algo um tanto incomum e
comovente para Anton, sua testa ficava de novo mais relaxada, seus olhos,
mais abertos e sua alma, mais alegre.
Começou então a se dedicar também à poesia, celebrando o que via e
ouvia. Ele tinha dois meios-irmãos que aprendiam o ofício de alfaiate em
P., e o mestre deles também era adepto da doutrina do sr. de F. Anton se
despediu deles bem comovido, assim como da casa do sr. de F., em versos
que havia composto e decorado.
É claro que não retornou de P. para casa como esperara, mas também
tinha se tornado uma pessoa completamente diferente num curto espaço
de tempo, e seu mundo de ideias havia se ampliado e enriquecido.
Mas em casa, com o recomeço da desavença entre os pais, para a qual
provavelmente contribuiu a chegada de seus dois meios-irmãos, e das
incessantes broncas e censuras de sua mãe, logo se extinguiram as boas
impressões que recebera em P., sobretudo na casa do sr. de F., e ele de
novo se viu em sua odiosa situação anterior, o que tornava sua alma mais
sombria e misantropa.
Como os meios-irmãos de Anton logo partiram em viagem, a paz
doméstica voltou a imperar, e, em vez dos escritos de Madame Guyon, o
pai de Anton lia de vez em quando um pouco do Telêmaco em voz alta, ou
contava parte de uma história antiga ou moderna, nas quais era bastante
versado, pois além da música, em cuja prática havia avançado muito,
sempre se dedicava à leitura de livros profícuos, até que finalmente os
escritos de Madame Guyon suplantaram todo o resto.
Por isso falava uma espécie de língua livresca, e Anton ainda se lembra
exatamente de que, aos 7 ou 8 anos, ouvia frequentemente com muita
atenção quando seu pai falava, e se admirava de que, embora conseguisse
entender o que se falava, ele não entedia nenhuma sílaba de todas as
palavras que terminavam em “heit”, “keit” e “ung”[2].
Fora de casa, o pai de Anton era um homem muito sociável e conseguia
conversar agradavelmente com qualquer pessoa sobre qualquer assunto.
Talvez as coisas pudessem ter ido melhor no casamento se a mãe de Anton
não tivesse tido a infelicidade de se sentir muitas vezes ofendida, e gostar
de ser ofendida mesmo quando não o fora realmente, apenas para ter
motivo de ficar doente e magoada, e sentir certa compaixão de si mesma,
encontrando nisso uma espécie de contentamento.
Infelizmente ela parece ter legado essa doença ao filho, que mesmo
agora tem de lutar muitas vezes em vão contra ela.
Ainda criança, quando, durante a distribuição de algo, todos recebiam
seu quinhão, e o de Anton era colocado diante dele sem que dissessem que
era seu, ele preferia deixá-lo ali mesmo sabendo que lhe era destinado só
para sentir a doçura do sofrimento da injustiça e poder dizer que todos os
outros tinham recebido algo e ele, nada! Se sentia já tão fortemente a
injustiça inventada, quão mais forte não teria de sentir a verdadeira! E de
fato para ninguém o sentimento de injustiça é mais forte do que para as
crianças, e a ninguém é mais fácil de cometer injustiça; afirmação que
todos os pedagogos deveriam levar em consideração todo dia e toda hora.
Anton conseguia muitas vezes refletir durante horas e ponderar da
maneira mais precisa, razão por razão, sobre se um castigo recebido de
seu pai era justo ou injusto.
Agora, aos 11 anos, ele usufruía pela primeira vez o indizível prazer
das leituras proibidas.
Seu pai era um inimigo ferrenho de todos os romances e ameaçava
queimar esse tipo de livro se o encontrasse em casa. Mesmo assim, Anton
recebia A bela Banise, As mil e uma noites e A ilha de Felsenburg de sua prima,
que ele lia secreta e furtivamente na alcova, com o consentimento da mãe,
devorando-os, por assim dizer, com insaciável curiosidade.
Aquelas foram algumas das horas mais doces de sua vida. Por mais que
sua mãe o interrompesse, era apenas para adverti-lo da chegada do pai,
sem lhe proibir a leitura daqueles livros em que ela havia encontrado
outrora o mesmo prazer e encanto.
A narrativa de A ilha de Felsenburg teve um efeito muito forte sobre
Anton, pois durante algum tempo suas ideias diziam respeito tão somente
a ter um papel de destaque no mundo e atrair ao redor de si primeiro um
pequeno círculo de pessoas, do qual ele seria o centro, e depois outro cada
vez maior: este se ampliava cada vez mais e sua imaginação extravagante
finalmente arrastava para dentro da esfera de sua existência até animais,
plantas e criaturas inanimadas, enfim, tudo aquilo que o rodeava, e tudo
tinha de girar ao seu redor, como o único centro, até deixá-lo tonto.
Naquela época, esse jogo de sua imaginação muitas vezes lhe deu horas
de completo deleite, algo que depois ele jamais voltou a desfrutar.
Assim sua imaginação produzia a maioria dos sofrimentos e alegrias de
sua infância. Quantas vezes, encerrado em seu quarto naqueles dias
sombrios de tédio e asco, uma ponta de raio de sol entrava pela vidraça e
de repente despertava nele imagens do paraíso, do Elísio ou da ilha de
Calipso, que o encantavam durante horas inteiras.
Mas ele também se lembra dos tormentos infernais que, a partir dos 2
ou 3 anos, os contos de fadas de sua mãe e de sua prima provocavam nele,
acordado ou dormindo: se em sonho via só conhecidos à sua volta, eles de
repente lhe arreganhavam os dentes com o rosto monstruosamente
transfigurado, ou então ele subia uma escada alta e escura, e uma figura
medonha o impedia de voltar, ou ainda era o diabo que lhe aparecia, ora
como uma galinha pintada, ora como um pano preto na parede.
Quando sua mãe e ele ainda viviam na aldeia, qualquer senhora idosa
lhe metia medo e horror, de tanto que ouvia falar de bruxas e feitiçarias; e,
quando o vento soprava muitas vezes com um som estranho através da
choupana, sua mãe chamava isso, em sentido alegórico, de o homem sem
mão, sem querer dizer nada de mais com essa expressão.
Mas ela não teria feito o que fez se soubesse quantas horas tenebrosas
e quantas noites sem dormir esse homem sem mão veio a causar ao seu
filho.
Em especial, as últimas quatro semanas que antecediam o Natal eram
sempre um purgatório para Anton, e para evitá-lo ele poderia passar sem
a árvore de Natal iluminada com velas e enfeitada com maçãs e nozes
prateadas.
Como não havia dia em que não ouvisse um estrondo esquisito
aparentemente vindo de sinos, um escarafunchar diante da porta ou uma
voz abafada anunciando Ruprecht[3], o precursor do Menino Jesus que
Anton, com total seriedade, considerava um espírito ou um ser sobre-
humano, também em toda essa época não havia noite que passasse sem
acordar assustado e com a testa suando frio.
Isso perdurou até seus 8 anos, quando só então sua crença na
existência de Ruprecht começou a vacilar, assim como na do Menino
Jesus.
Sua mãe lhe transmitiu também o medo infantil dos trovões. Seu único
refúgio era juntar bem as mãos tão firmemente quanto conseguisse e não
deixar que se soltassem até a trovoada passar; isso, além do sinal da cruz,
era também seu refúgio e, por assim dizer, um forte apoio nas vezes que
dormia sozinho, porque assim acreditava que nem diabo nem fantasma
podiam lhe fazer algum mal.
Sua mãe dizia uma frase esquisita: “Quem quer fugir de um fantasma,
os calcanhares espicham”; e isso ele sentia literalmente, assim que
acreditava ver algo parecido com um fantasma na escuridão. Ela
costumava dizer também de um moribundo que a morte já havia pousado
na sua língua; Anton também a levou ao pé da letra, e, quando o marido da
prima morreu, ele se postou ao lado da cama olhando muito incisivamente
dentro da boca para descobrir se a morte aparecia na língua do morto, por
exemplo, como uma figurinha preta.
Por volta dos 5 anos teve a primeira ideia que ia além de seu horizonte
infantil, quando a mãe ainda vivia com Anton na aldeia e estava sentada
certa noite na sala com uma vizinha idosa, com ele e seus meios-irmãos.
A conversa girava em torno da irmãzinha de Anton, que falecera havia
pouco, aos 2 anos, e por cuja perda sua mãe permaneceu inconsolável
durante quase um ano.
“Onde Julinha poderia estar agora?”, disse ela após uma longa pausa e
ficou em silêncio de novo. Anton olhou pela janela, através da qual não se
via luz alguma na noite escura, e pela primeira vez sentiu a extraordinária
limitação que tornava aquela vida tão diferente da atual, como a
existência diferindo do não existente.
“Onde Julinha poderia estar agora?”, pensou ele seguindo sua mãe, e
proximidade e distância, estreiteza e largueza, presente e futuro raiaram
em sua alma. Mas essa sensação não deixou nenhuma marca; milhares de
vezes ela é despertada em sua alma de novo, mas nunca com a força
inicial.
Quão grande é a alegria da limitação, de que no entanto procuramos
fugir com todas as forças! Ela é como uma ilhota feliz num mar
tempestuoso: afortunado é aquele que pode tirar uma soneca em seu colo:
nenhum perigo o desperta, nenhuma tempestade o ameaça. Mas ai
daquele que, impelido por uma curiosidade infeliz, ousa subir a serra
crepuscular que delimita beneficamente seu horizonte.
Num mar violento e tempestuoso de intranquilidade e dúvida, ele é
lançado para lá e para cá, procura regiões desconhecidas a uma distância
inalcançável, e a ilhota em que vivia com tanta segurança perde todos os
seus atrativos.
Uma das lembranças mais venturosas que Anton tem dos primeiros
anos de sua infância é sua mãe enrolando-o no casaco dela e carregando-o
pela tempestade e pela chuva. O mundo era belo para ele na pequena
aldeia, mas atrás da montanha azul, para onde sempre olhava
nostalgicamente, já esperavam por ele os sofrimentos que estragariam os
anos de sua infância.
Ora, uma vez que já retrocedi em minha história para recuperar as
primeiras sensações e imagens do mundo de Anton, tenho ainda de
mencionar aqui duas lembranças de seus primeiros anos no que diz
respeito ao seu sentimento de injustiça.
Anton tem nítida consciência de que, aos 2 anos, quando sua mãe ainda
não morava com ele na aldeia, atravessou vez ou outra a rua, correndo de
sua casa a outra que ficava em frente, e impediu o caminho de um homem
bem-vestido, a quem esmurrou violentamente, porque procurava
persuadir a si mesmo e a outras pessoas de que haviam cometido uma
injustiça contra ele, embora sentisse internamente que era ele a parte
ofensora.
Tal lembrança é admirável por sua raridade e nitidez; também é
autêntica porque a circunstância em si era por demais insignificante para
que pudesse lhe ter sido contada posteriormente por alguém.
A segunda lembrança é dos 4 anos, quando a mãe ralhou com ele por
causa de uma verdadeira falta de modos; enquanto ele estava se despindo,
calhou de uma das peças de roupa cair na cadeira, fazendo algum barulho:
a mãe achou que ele fizera aquilo por birra e lhe deu umas fortes
palmadas.
Essa foi a primeira verdadeira injustiça que ele sentiu profundamente
e que jamais abandonou sua alma; desde então considerava também a mãe
injusta e a cada nova palmada ele se lembrava desse episódio.
Já mencionei como ele via a morte na infância. Isso durou até os seus
10 anos, quando certa vez uma vizinha visitou seus pais e contou como o
primo dela, que era mineiro, caíra da escada dentro da mina e despedaçara
o crânio.
Anton escutava com atenção e, ao ouvir falar em despedaçamento do
crânio, de repente imaginou que cessava completamente de pensar e
sentir, encontrando-se numa espécie de aniquilação e falta de si mesmo
que o enchia de pavor e sobressalto todas as vezes que voltava a pensar
intensamente nisso. Desde então, teve um forte medo da morte, o qual lhe
causou muitas horas tristes.
Ainda tenho de dizer algo sobre suas primeiras ideias acerca de Deus e
do mundo por volta de seus 10 anos.
Sempre que o céu estava encoberto e o horizonte ficava mais estreito,
ele sentia certo receio de que o mundo inteiro também estivesse envolto
por um teto como o do quarto em que morava, e, quando ultrapassava
com seus pensamentos esse teto de nuvens, o mundo em si mesmo lhe
parecia muitíssimo menor, como se estivesse novamente encerrado num
outro e assim por diante.
Sentia algo semelhante com a imagem de Deus quando queria pensar
Nele como o ser supremo.
Certa vez, sentado sozinho diante da porta de casa num entardecer
encoberto, refletia sobre isso enquanto olhava ora para o céu, ora para a
terra, quando notou que esta estava mais negra e sombria em comparação
com o céu nublado.
Além do céu, ele imaginou que Deus, mas qualquer Deus, mesmo o
Deus supremo que seu pensamento inventava, era para ele muito
pequeno, e tinha de haver sempre ainda um ser maior acima deste, diante
do qual ele desaparecia completamente e assim ao infinito.
Mas jamais havia lido ou ouvido algo a respeito. O mais estranho era
que, pela reflexão constante e pela introspecção, Anton incorreu num
solipsismo que poderia tê-lo deixado praticamente louco.
Isso porque, como a maioria de seus sonhos era extremamente viva e
parecia quase confinar com a realidade, ocorreu-lhe também que poderia
sonhar durante o dia, e que as pessoas ao seu redor, sobretudo as que ele
via, poderiam ser criações de sua imaginação.
Essa ideia lhe era assustadora, fazendo-o temer por si mesmo, e, todas
as vezes que lhe vinha à cabeça, ele tentava se livrar dela distraindo-se
realmente.
Após essa digressão, retomemos a sequência temporal da história de
Anton, a quem havíamos abandonado aos 11 anos lendo A bela Banise e A
ilha de Felsenburg. Ganhou também o Diálogo dos mortos, de Fénelon, com
seus contos, e seu professor de caligrafia mandou-o fazer algumas cartas e
composições.
Anton jamais havia sentido uma alegria como aquela. Começou então a
aproveitar suas leituras, e vez ou outra a apresentar-lhe imitações do que
lia, merecendo o aplauso e o respeito de seu professor.
Seu pai, tendo tocado num concerto em que foi executada A morte de
Jesus, de Ramler, trouxe para casa um texto impresso da peça. Para Anton,
era tão arrebatadora e superava de tão longe toda a poesia por ele lida até
então que a leu inúmeras vezes e com tal encanto até sabê-la quase de cor.
Graças a essa leitura casual e única, tantas vezes repetida, seu gosto
pela poesia recebeu certa formação e solidez, as quais ele nunca mais
perdeu desde então; o mesmo ocorreu com o gosto pela prosa graças ao
Telêmaco; pois, apesar do prazer que encontrara em A bela Banise e em A
ilha de Felsenburg, percebia nitidamente o caráter escancarado e vulgar
daquela maneira de escrever.
De prosa poética caiu-lhe nas mãos o Daniel na cova dos leões, de Karl
von Moser, que Anton leu diversas vezes de cabo a rabo; seu pai também
costumava ler para ele trechos desse autor em voz alta.
Chegou novamente a época das fontes termais, e o pai de Anton
decidiu levá-lo consigo novamente para P., mas dessa vez Anton não
desfrutaria tanta alegria como no ano anterior, pois a mãe viajou com eles.
Sua incessante proibição de coisas insignificantes e as frequentes
broncas e castigos fora de hora fizeram Anton perder o gosto por todas as
sensações mais nobres que ali tivera um ano antes; seu sentimento do que
era elogio e aprovação ficou de tal modo oprimido que ele, quase contra a
sua natureza, acabou por encontrar uma espécie de prazer em se meter
com os meninos de rua mais imundos e se entrosar com eles,
simplesmente porque se desesperava por conquistar novamente em P. o
amor e o respeito que a mãe o fizera perder; ela não falava de outra coisa,
não só com o pai, mas também com pessoas totalmente estranhas, senão
de seu péssimo comportamento, que assim começava realmente a piorar,
enquanto seu coração também parecia se degradar.
Anton também ia raramente à casa do sr. de F., e dessa vez o tempo de
sua estada em P. transcorria para ele com tal desconforto e tristeza que
muitas vezes ainda relembrava com nostalgia a alegria dos anos
anteriores, por mais que agora não tivesse de suportar tantas dores no pé,
que começou a melhorar depois da extração do osso lesionado.
Logo após o retorno de seus pais a H., Anton completou 12 anos, idade
em que lhe estavam reservadas muitas mudanças: naquele mesmo ano ele
deveria se separar dos pais. Mas antes uma grande alegria estava prestes a
surpreendê-lo.
Seguindo o conselho de conhecidos, o pai de Anton o deixou
frequentar um curso particular de latim na escola pública da cidade, para
que ele pudesse ao menos aprender uma declinação, como se dizia. Mas,
para grande desgosto da mãe e dos parentes, seu pai não queria enviá-lo
de jeito nenhum aos demais cursos da escola pública, em que o principal
era a aula de religião.
Mas um dos desejos mais ardentes de Anton, poder ir a uma escola
pública, fora em parte realizado.
Já no primeiro dia de aula, as paredes grossas, as escuras salas
abobadadas, os bancos centenários e as cátedras perfuradas por carunchos
não lhe causaram outra impressão senão a de santuários, que lhe
encheram a alma de veneração.
O vice-reitor, um homenzinho espevitado, infundiu nele profundo
respeito por causa da sobrecasaca preta e da peruca curta, apesar de seu ar
não ser lá muito grave.
Esse homem também tratava seus alunos de modo bastante amistoso,
de igual para igual: tinha o hábito de chamar cada um deles por vós, mas os
quatro mais adiantados, que em tom de brincadeira chamava de
veteranos, preferia tratá-los por senhor.
Embora fosse muito rígido, Anton jamais recebeu censura dele, muito
menos palmada, e assim acreditava encontrar até na escola muito mais
justiça do que na casa de seus pais.
Era a hora de começar a aprender de cor o Donato[4], mas ele tinha uma
acentuação estranha, que se revelou logo na segunda lição, ao ter de
recitar mensa de cor, e quando dizia singulariter e pluraliter punha o acento
na penúltima sílaba porque, ao decorar essa lição, imaginou, por causa do
parentesco das palavras Amoriter, Jebusiter etc., que os singulariter eram um
povo que dizia mensa, e os pluraliter eram outro povo, que dizia mensae.[5]
Quantas vezes tais equívocos não são originados quando o professor se
deixa satisfazer com as primeiras palavras dos alunos, sem penetrar no
significado delas!
E assim ele continuava decorando. O amo, amem, amas, ames foi logo
recitado de cor no compasso certo, e nas primeiras seis semanas já sabia o
oportet[6] de cor e salteado; assim, decorava vocábulos diariamente e, como
nunca errava um, subiu em pouco tempo de um nível a outro,
aproximando-se cada vez mais dos veteranos.
Mas que situação de sorte, que carreira feliz para Anton, que pela
primeira vez na vida via se abrir diante de si uma vereda para a fama, algo
que havia tanto tempo ele em vão desejara!
Mesmo o breve tempo que passava em casa, ele desfrutava com
bastante prazer, porque toda manhã, enquanto seus pais tomavam café,
ele era obrigado a ler em voz alta A imitação de Cristo, de Thomas de
Kempis, o que adorava fazer.
Em seguida, falavam a respeito do livro, e às vezes ele também tinha
permissão para dar sua palavra. Aliás, tinha a sorte de não ficar muito em
casa, porque na mesma época ele também frequentava as aulas de seu
antigo professor de caligrafia, a quem Anton amava tão sinceramente que
se sacrificaria por ele, apesar das pancadas na cabeça que dele recebera.
Pois esse homem tinha frequentemente conversas amistosas e
proveitosas com ele e seus colegas de escola, e, como ele parecia ser por
natureza muito mais duro, sua amizade e bondade tinham algo de ainda
mais comovente, que conquistava corações.
Assim, pelo menos por algumas semanas, Anton foi feliz em duas
situações diferentes: mas quão rápido essa felicidade foi destruída! Para
que sua felicidade não lhe subisse à cabeça, duras humilhações já estavam
preparadas para ele!
Pois, embora estudasse em companhia de crianças bem-educadas, sua
mãe o mandava fazer o serviço da criada mais humilde.
Ele tinha de levar água, pegar manteiga e queijo na mercearia e ir à
feira para comprar os alimentos, como uma mulher com o cesto no braço.
Nem preciso dizer o quão profundamente isso o magoava quando um
de seus afortunados colegas de escola passava por ele rindo com sarcasmo.
Mas Anton se consolava com a alegria de poder frequentar uma escola
de latim, onde, após dois meses, ele progredira tanto que já podia
participar das atividades da mesa mais alta, a dos assim chamados quatro
veteranos.
Por essa época seu pai também o levou pela primeira vez para
conhecer em H. um homem bastante singular que era objeto de suas
conversas já havia muito tempo. O homem se chamava Tischer e tinha 105
anos.
Estudara teologia e por fim tinha sido preceptor das crianças de um
rico comerciante em H., em cuja casa ainda vivia, recebendo seu sustento
do atual proprietário, que fora seu aluno e já era agora praticamente um
ancião.
Era surdo desde os 15 anos, e quem quisesse conversar com ele
precisava ter sempre tinta e pena à mão para lhe escrever os
pensamentos, que ele respondia oralmente de maneira bem audível e
clara.
Além disso, aos 105 anos, ele ainda conseguia ler sem óculos as miúdas
letrinhas de seu Testamento grego[7] e falar continuamente de modo
muito verdadeiro e coerente, embora às vezes mais baixo ou mais alto do
que o necessário, porque não podia ouvir a si mesmo.
Ele não era conhecido por outro nome em casa a não ser o homem velho.
Levavam-lhe comida e outros regalos, mas de resto não se preocupavam
muito com ele.
Eis que uma noite, quando Anton estava estudando o Donato, seu pai o
pegou pela mão e disse: “Venha, vou levá-lo até um homem em quem você
vai ver de novo Santo Antônio, São Paulo e o patriarca Abraão”.
E, conforme caminhavam, seu pai o preparava para o que ele em breve
iria ver.
Entraram na casa. O coração de Anton palpitava.
Atravessaram um longo pátio e subiram uma pequena escada caracol
que dava num corredor comprido e escuro, no fim do qual subiram outra
escada e em seguida desceram novamente alguns degraus: as passagens
pareciam labirínticas para Anton.
Finalmente havia um pequeno compartimento à esquerda, por onde a
luz, que vinha de outra janela, passava pelas vidraças.
Já era inverno, e as portas eram guarnecidas com panos do lado de
fora; o pai de Anton as abriu: entardecia, o cômodo, espaçoso e grande, era
decorado com tapeçarias escuras, e o ancião estava sentado numa
poltrona ao centro, diante de uma mesa sobre a qual livros estavam
espalhados.
Ele veio de cabeça descoberta ao encontro deles.
A velhice não o curvara, era um homem comprido, de aparência
grande e majestosa. Os cachos brancos de neve enfeitavam-lhe as
têmporas, e dos olhos brotava uma amizade indizivelmente delicada.
Sentaram-se.
O pai de Anton escreveu alguma coisa para ele. “Vamos rezar”,
começou o ancião após uma pausa, “e que meu pequeno amigo faça
parte”.
Em seguida, ele se ajoelhou, com a cabeça descoberta, tendo o pai à
direita e Anton à esquerda.
É claro que Anton achou mais que verdadeiro tudo aquilo que o pai lhe
dissera. Ele realmente acreditou que se ajoelhara ao lado de um dos
Apóstolos de Cristo, e seu coração se ergueu a uma elevada devoção
quando o ancião abriu as mãos e começou a rezar com verdadeiro fervor,
prosseguindo ora em voz alta, ora em voz baixa.
Suas palavras eram as de alguém que já está com todos os pensamentos
e desejos além-túmulo, a quem somente um acaso ainda concede uma
permanência um pouco maior do que a esperada deste lado de cá.
Desse modo todos os pensamentos também eram, por assim dizer,
trazidos da outra vida para esta, e, enquanto rezava, os olhos e a testa
pareciam se transfigurar.
Terminada a oração, eles se levantaram e em seu coração Anton já
considerava o homem velho quase uma criatura superior e sobre-humana.
E, quando voltou para casa à noitinha, não quis de jeito nenhum
passear na neve num pequeno trenó com alguns de seus colegas de escola,
porque aquilo lhe parecia algo muito sacrílego e ele acreditava que assim
profanaria o dia.
Seu pai o deixava ir com maior frequência à casa do homem velho, e
ele, quando não estava na escola, passava praticamente o dia inteiro com o
ancião.
Passou então a se servir da sua biblioteca, formada em sua maior parte
por livros místicos, tendo lido muitos deles atentamente do começo ao
fim. Também prestava contas com frequência ao homem velho dos seus
progressos no latim e das composições que fazia para o professor de
caligrafia. Assim Anton passou alguns meses numa felicidade muito rara.
Mas que choque não foi para ele quando, quase na mesma época,
ocorreu o terrível anúncio de que seu professor particular de latim ia
parar com as aulas ainda naquele mês, e ele também deveria ser enviado a
outra escola de caligrafia.
De nada adiantaram lágrimas e pedidos, a decisão já estava tomada.
Catorze dias antes, Anton soube que deveria deixar a escola de latim, e
quanto maior o seu progresso maior a sua dor.
Para tornar mais leve a despedida da escola, ele recorreu a um
expediente do qual um garoto de sua idade raramente seria capaz. Em vez
de se esforçar para continuar progredindo, fez o contrário: ou não dizia de
propósito o que sabia, ou então tratava de descer de algum modo um
degrau diariamente, algo que o vice-reitor e os colegas de escola não
puderam entender, e muitas vezes lhe testemunhavam surpresa com isso.
Só Anton sabia o motivo e levava consigo sua mágoa secreta para casa
e para a escola. Cada degrau que descia assim espontaneamente custava-
lhe milhares de lágrimas, que derramava secretamente em casa; mas o
remédio que ele mesmo se prescreveu, por mais amargo que fosse, fez
efeito.
Ele próprio havia se organizado para que no último dia já fosse
necessariamente o pior aluno. Mas isso era muito duro para ele. Com
lágrimas nos olhos, pediu para permanecer em seu lugar apenas naquele
dia, e no dia seguinte aceitaria de bom grado o último lugar.
Todos tiveram compaixão por ele e o deixaram permanecer no mesmo
lugar. No dia seguinte, o mês já estava terminado e ele não viria mais.
O quanto tinha lhe custado esse sacrifício espontâneo pode ser
deduzido do zelo e do esforço com que ele havia procurado galgar cada
posto mais alto.
Por vezes, quando o vice-reitor em seu roupão olhava da janela e ele
passava por ali, pensava: “você poderia abrir seu coração a este homem”,
mas a distância entre ele e seu professor parecia grande demais.
Logo em seguida, apesar de todas as súplicas e pedidos, também foi
separado do adorado professor de caligrafia.
Este, sem dúvida, tinha deixado passar algumas negligências nos livros
de caligrafia e aritmética de Anton, o que irritara seu pai.
Anton assumiu inteira culpa com todo o empenho, prometendo e
jurando em nome de todas as suas forças, mas tudo isso de nada serviu;
teve de largar seu velho e fiel professor e começar no fim do mês a estudar
caligrafia na escola pública da cidade.
Os dois golpes de uma vez foram muito duros para Anton.
Quis ainda se segurar num último apoio e pediu aos antigos colegas de
escola cada tarefa escolar passada para estudá-la em casa e, dessa maneira,
avançar junto com eles, mas, como isso não deu certo, a virtude e a
devoção que mantivera até então não resistiram e durante um tempo ele
se transformou, por uma espécie de desânimo e desespero, naquilo que se
pode chamar um garoto mau.
Na escola, procurava arranjar um jeito de levar umas bofetadas e
depois as aguentava com desafiante firmeza, impassível, o que, além disso,
lhe dava algum prazer que por muito tempo permaneceu agradavelmente
em sua memória.
Brigava com os garotos da rua e batia neles, faltava à aula na escola e
maltratava o cão de seus pais, como e onde pudesse.
Na igreja, onde antes fora um modelo de devoção, tagarelava com seus
companheiros durante toda a missa.
Com frequência lhe ocorria pensar que estava no mau caminho: ele se
lembrava com nostalgia de seus antigos esforços para se tornar um
homem devoto, mas muitas vezes, prestes a voltar atrás, certo desprezo
por si mesmo e um corrosivo desânimo derrubavam suas melhores
intenções, fazendo com que procurasse esquecer-se novamente de si em
todo tipo de distração rebelde.
O pensamento de que seus mais adorados desejos e esperanças haviam
malogrado e de que a iniciada carreira rumo à fama estava para sempre
fechada o corroía incessantemente, sem que tivesse sempre clara
consciência disso, impelindo-o a todo tipo de excesso.
Ele se tornara um hipócrita perante Deus, perante os outros e perante
si mesmo.
Lia pontualmente como antes suas orações matutinas e vespertinas,
mas sem nenhum sentimento.
Quando visitava o homem velho, fazia-o fingindo tudo o que antes
havia feito com sinceridade no coração, trapaceando nas feições devotas e
nas palavras escritas, nas quais fingia certa sede e anseio de Deus, de modo
a preservar a estima daquele homem.
Às vezes ria às escondidas enquanto o homem velho lia o que ele tinha
escrito.
Começou também a enganar seu pai. Certa vez este teria dito como ele
havia sido um menino completamente diferente três anos antes, quando,
em P., se recusou a contar uma mentirinha inocente, negando que o inglês
estivesse em casa.
Como Anton estava ciente de que o que acontecera na época era mais
uma espécie de afetação do que realmente uma aversão à mentira, ele
pensou consigo: se basta tão pouco para ser querido, isso não deve me
custar muito esforço; e assim, em pouco tempo, graças a certa hipocrisia
que procurava dissimular para si mesmo, ele soube levar aquilo tão longe
que seu pai trocou cartas sobre ele com o sr. de F., informando-o do estado
de alma de Anton a fim de ouvir seus conselhos.
Vendo que a coisa se tornava séria, Anton também se tornou mais
sério ainda e algumas vezes decidiu seriamente largar sua vida má, porque
não conseguiria encobrir sozinho para si mesmo por muito mais tempo a
hipocrisia vivida até então.
Lembrou-se, porém, dos anos que perdera desde o tempo de sua antiga
e verdadeira conversão, e de como já poderia estar bem longe se não
tivesse feito aquilo. Isso o deixava extremamente insatisfeito e triste.
Além do mais, leu na casa do homem velho um livro em que se
descrevia minuciosamente, com todos os sinais e sintomas, o processo de
salvação pela penitência, pela fé e pela vida piedosa.
Na penitência era preciso haver lágrimas, arrependimento, tristeza e
insatisfação: tudo isso ele tinha.
Na fé era preciso ter na alma uma serenidade incomum e confiança em
Deus: isso também se fez presente.
E era preciso, em terceiro lugar, que a vida piedosa se manifestasse por
si mesma: já isso não era tão fácil assim.
Anton acreditava que, se um dia quiséssemos viver devota e
piedosamente, tínhamos de ser assim também por todo o tempo e em cada
momento, em todas as feições, gestos e até mesmo em nossos
pensamentos; também não deveríamos esquecer em momento algum que
desejamos ser devotos.
Mas com muita frequência ele naturalmente se esquecia disso: seu
rosto não permanecia sério, seu andar não era respeitável e seus
pensamentos vagavam pelas coisas do mundo terreno.
Agora ele acreditava que tudo acabara, que não fizera praticamente
nada e teria de começar novamente do princípio.
Assim acontecia muitas e diversas vezes numa hora, e essa era uma
situação penosa e angustiante para Anton.
Novamente se entregou a suas antigas distrações, mas sempre com
medo e o coração palpitante.
Ele começou então a obra de conversão novamente desde o princípio e
oscilava constantemente para lá e para cá, não encontrando nem
tranquilidade nem satisfação, amargando em vão a mais inocente alegria
de sua infância, sem no entanto jamais ir longe em outras obras.
Essa constante oscilação é, ao mesmo tempo, a imagem de todo o
percurso de vida de seu pai, que ainda não chegara aos 50 anos e ainda
esperava encontrar o caminho certo pelo qual tinha por tanto tempo se
esforçado em vão.
Com Anton, inicialmente, tudo correra bastante bem: mas desde que
não pôde mais estudar latim, sua devoção sofreu um grande golpe; por ser
de natureza receosa, forçada, ela nunca avançava direito.
Ele leu em algum lugar que o autoaprimoramento é inútil e prejudicial,
e que precisamos nos comportar simplesmente sofrendo e deixar que a
compaixão divina aja em nós: por isso ele rezava frequentemente com
muita sinceridade: “Senhor, converte-me, que serei convertido!”. Mas
tudo foi em vão.
Naquele verão, seu pai viajou de novo para P., e Anton lhe escreveu
contando que tinha progredido pouco no autoaprimoramento, e que nisso
ele errara, porque a compaixão divina tinha de fazer tudo.
Sua mãe considerou que a carta inteira era uma hipocrisia, que de fato
ele não conseguia se libertar totalmente dela, e escreveu embaixo, de
punho próprio: “Anton se comporta como qualquer garoto ímpio”.
Ora, ele tinha consciência de estar travando uma verdadeira luta
consigo mesmo e, portanto, deve ter sido extremamente humilhante para
ele ser jogado na categoria dos garotos ímpios.
Ficou tão abatido que durante algum tempo realmente voltou a levar
uma vida desregrada e passou a conviver deliberadamente com garotos
rebeldes, no que ainda era cada vez mais encorajado pelas repreensões e
pelos pretensos sermões da mãe: pois eles o abatiam cada vez mais, tanto
que por fim julgou não passar de um menino de rua comum e por isso logo
voltou a se juntar a eles.
Isso durou até seu pai retornar de P.
Então de repente se abriram perspectivas totalmente novas para
Anton.
Já no começo do ano sua mãe deu à luz dois gêmeos, e apenas um
sobreviveu, do qual um chapeleiro em B., de nome L., se tornou padrinho.
Ele era um dos seguidores do sr. de F., por intermédio de quem o pai de
Anton o conhecia já havia alguns anos.
Como, em algum momento, Anton deveria ficar sob os cuidados de um
mestre de ofício (pois seus dois meios-irmãos já tinham terminado os
estudos e cada qual estava insatisfeito com o ofício que a autoridade
paterna os obrigara a aceitar), e como o chapeleiro L. queria um rapaz que
temporariamente o ajudasse, o pai de Anton imaginou a esplêndida
oportunidade que surgia: assim como os dois meios-irmãos, ele seria
colocado sob os cuidados de um homem extremamente devoto, além de
ardoroso seguidor do sr. de F., pelas mãos de quem seria exortado à
verdadeira bem-aventurança divina e à devoção.
Isso já devia ter sido tramado havia tempos e supostamente foi a causa
de o pai de Anton tê-lo tirado da escola de latim.
Mas, desde que aprendeu latim, Anton pôs firmemente na cabeça que
também iria frequentar a universidade; pois tinha um respeito tão grande
por todos os que haviam cursado a universidade e vestiam sobrecasaca
preta que considerava essas pessoas seres quase sobre-humanos.
O que era mais natural do que aspirar àquilo que lhe parecia ser o mais
desejável no mundo?
Agora se dizia que o chapeleiro L. de Braunschweig cuidaria de Anton
como um amigo, ele seria tratado como uma criança, encarregando-se
apenas de trabalhos leves e convenientes, como anotar algumas contas,
tirar pedidos e outras coisas semelhantes; além disso, deveria ir à escola
por mais dois anos, até que fosse confirmado e pudesse então se decidir
por algo.
Isso soava extremamente agradável aos ouvidos de Anton, sobretudo o
último ponto referente à escola; pois, acreditava ele, assim que tivesse
alcançado essa meta, nada lhe faltaria para se distinguir com tal
excelência que encontraria facilmente meios e caminhos para cursar a
universidade.
Imediatamente ele mesmo escreveu, com o pai, ao chapeleiro L., de
quem já tinha gostado muito de antemão, e se alegrava com os dias felizes
que desfrutaria em sua companhia.
Que encanto era para ele mudar de lugar!
A estada em H., a eterna e monótona vista das mesmas ruas e casas, se
tornou insuportável: novas torres, portas da cidade, baluartes e castelos se
erguiam incessantemente em sua alma, e uma imagem suplantava a outra.
Estava inquieto e contava as horas e os minutos até sua partida.
O dia tão esperado finalmente chegou. Anton se despediu da mãe e dos
dois irmãos: Christian, o mais velho, com 5 anos; e Simon, o mais novo,
que recebera o nome do chapeleiro L. e tinha apenas 1 ano.
O pai viajou com ele, metade a pé e metade de carruagem, quando
aparecia uma oportunidade a preço módico.
Anton agora desfrutava pela primeira vez em sua vida o prazer de
viajar a pé, um prazer que lhe estaria reservado ainda com muito mais
frequência no futuro.
Quanto mais se aproximavam de Braunschweig, mais o coração de
Anton se enchia de expectativas. A torre da igreja de Santo André
sobressaía majestosa com suas cúpulas vermelhas.
Anoitecia. A distância, Anton viu a sentinela indo e vindo sobre o
baluarte.
Milhares de imagens de como seria a aparência de seu futuro benfeitor,
da sua idade, andar e feições, nele surgiam e logo em seguida
desapareciam.
Compôs por fim uma imagem tão bela dele que já o adorava
antecipadamente.
Em sua infância, Anton, provocado pelo som de alguns nomes próprios
de pessoas ou cidades, tinha em geral o costume de formar imagens e
noções particulares dos objetos designados pelos nomes.
O tom agudo ou grave das vogais num nome desses era o que mais
contribuía para a definição da imagem.
Assim, o nome Hannover soava constantemente suntuoso ao seu
ouvido, e, mesmo antes de vê-la, a cidade era para ele um lugar de casas
altas e torres, de aparência clara e iluminada.
Braunschweig parecia ter uma aparência mais sombria, alongada e
maior, e imaginava Paris bem cheia de casas brancas e claras, conforme
um desses obscuros sentimentos evocados pelo nome.
O que também é muito natural: pois a alma trabalha, mesmo por meio
da mais remota semelhança, para esboçar uma imagem de algo sobre o
qual nada conhecemos a não ser o nome, e, na falta de todas as outras
comparações, ela tem de buscar seu refúgio no nome arbitrário das coisas,
no qual nota o som que soa forte ou fraco, grave ou agudo, alto ou baixo,
abafado ou nítido, e, entre eles e os objetos visíveis, estipula uma espécie
de comparação que por vezes, casualmente, é certeira.
Pelo nome L., Anton imaginou mais ou menos um homem um pouco
alto, franco e íntegro, com uma fronte livre e aberta etc.
Mas dessa vez sua interpretação do nome o enganou bastante.
Já começava a escurecer quando Anton e seu pai atravessaram as
imensas pontes levadiças e entraram pelas portas da cidade de B.
Passaram por muitas vielas estreitas, diante do castelo, e finalmente,
através de uma ponte longa, chegaram a uma rua escura onde morava o
chapeleiro L., em frente a um comprido edifício público.
Pararam diante da casa. A fachada enegrecida tinha uma grande porta
preta com muitos pregos.
Do alto, pendia uma tabuleta com um chapéu, na qual se podia ler o
nome de L.
Uma velha senhorinha, governanta da casa, abriu-lhes a porta e os
conduziu pelo lado direito a um grande aposento revestido de madeira
envernizada de marrom-escuro, sobre a qual ainda se podia distinguir,
com muito custo, uma representação semiapagada dos cinco sentidos.
Ali foram recebidos pelo dono da casa. Um homem de meia-idade, mais
baixo que alto, de rosto ainda bastante juvenil embora pálido e
melancólico, que raramente tomava outra feição a não ser um tipo de
sorriso agridoce, de cabelos negros, olhos razoavelmente exaltados, um
pouco fino e delicado em sua conversa, movimentos e trejeitos, coisa rara
de encontrar em artesãos, e uma fala límpida mas extremamente lenta,
preguiçosa e arrastada, que alongava não se sabe quanto as palavras,
sobretudo quando o diálogo era sobre assuntos religiosos: tinha também
um olhar insuportavelmente intolerante, quando suas sobrancelhas pretas
franziam diante da perversidade e maldade dos homens, em especial de
seus vizinhos ou dos seus próprios empregados.
A primeira vez que Anton o viu, ele vestia um gorro verde de pele,
lenço azul no pescoço e camisa marrom, junto com um avental preto, sua
roupa doméstica habitual, e à primeira vista era como se tivesse
encontrado nele um senhor e mestre severo em vez de um futuro amigo e
benfeitor.
O amor profundo que por ele antecipadamente concebera se apagou
como uma centelha de fogo em que se derrama água, quando a primeira
cara fria, seca, imperiosa de seu suposto benfeitor o fez suspeitar de que
não seria nada mais que seu aprendiz.
Nos poucos dias que seu pai passou ali, ainda foi tratado com alguma
consideração; mas, logo que o pai partiu, ele teve de trabalhar na oficina
tanto quanto o outro aprendiz.
Ele foi usado para fazer os trabalhos mais ordinários; tinha de rachar
lenha, buscar água e varrer a oficina.
Por mais que isso contrastasse com suas expectativas, o desagrado foi
até certo ponto substituído pela atração da novidade. E de fato encontrou
certo prazer em varrer, rachar lenha e buscar água.
Sua imaginação, por meio da qual fantasiava tudo aquilo, também lhe
era muito propícia. – Muitas vezes, a ampla oficina, com suas paredes
pretas e uma escuridão horripilante, iluminada à tarde e à noite apenas
pelo brilho de alguns candeeiros, era para Anton um templo onde ele
servia.
De manhã, acendia o intenso fogo sagrado embaixo das grandes
caldeiras, que mantinha todos em trabalho e atividade durante o dia
inteiro, e desse modo muitas mãos permaneciam ocupadas.
Considerava essa atividade um tipo de ofício que a seus olhos lhe
conferia certa dignidade.
Logo atrás da oficina corria o rio Oker, sobre o qual havia sido
construída uma armação ou um ressalto de tábuas para pegar água.
Ele considerava de certo modo tudo isso seu território, e, quando às
vezes limpava a oficina, enchia as grandes caldeiras muradas e acendia o
fogo embaixo delas, podia se alegrar, satisfeito, com sua obra – como se
tivesse dado a cada coisa aquilo que lhe era de direito –, sua sempre
ocupada imaginação vivificava o inanimado à sua volta, tornando-os seres
reais, com os quais convivia e conversava.
Além disso, o curso regular dos negócios, que percebia ali, dava-lhe
certa sensação agradável de que ele era uma roda dessa máquina que se
movimentava tão regularmente: pois em casa jamais conheceu algo
parecido.
O chapeleiro L. prezava realmente a ordem em sua casa, e tudo ali era
feito com rigorosa pontualidade: trabalhar, comer, dormir.
Se havia alguma exceção, era em relação ao sono, que de fato tinha de
ser suspenso quando se trabalhava à noite, o que ocorria ao menos uma
vez na semana.
Do contrário, a hora do almoço era sempre pontualmente ao meio-dia;
o café da manhã, às oito da manhã; e o jantar, às oito da noite em ponto.
Também se contava com a mesma pontualidade no trabalho – e assim
corria naquele tempo a vida de Anton: de manhã, a partir das seis,
enquanto trabalhava, já contava com o café da manhã, que sempre
saboreava na imaginação, e, quando chegava a hora, ele o devorava com o
apetite mais saudável que um homem pode ter, embora não passasse de
uma borra de café com um pouco de leite e um pãozinho de 2 vinténs.
O trabalho era então retomado com ânimo renovado, e a expectativa
do almoço trazia novo interesse às horas da manhã, quando a monotonia
do trabalho era fastidiosa demais.
Entrava ano, saía ano, à tardinha se servia uma caneca gelada de
cerveja forte. Suficientemente estimulante para adoçar os trabalhos da
tarde.
E, depois do jantar até a hora de dormir, era o pensamento do descanso
iminente e ansiado que espalhava novamente seu brilho consolador sobre
o desconforto e o cansaço do trabalho.
É claro que se sabia que o curso da vida recomeçaria tal qual no dia
seguinte. Mas por fim também essa monotonia fastidiosa na vida era
quebrada novamente de maneira agradável pela expectativa do domingo.
Quando o atrativo do café da manhã, do almoço e do jantar não era
mais suficiente para manter o prazer de viver e de trabalhar, contava-se
quanto tempo ainda faltava até o domingo, quando se podia comemorar
um dia inteiro longe do trabalho, deixar uma vez a oficina escura, sair pela
porta da cidade para o campo aberto e desfrutar a vista da natureza livre e
aberta.
Ah, quantos atrativos o domingo não tinha para o artesão que eram
desconhecidos das classes mais altas dos homens, os quais podiam
descansar de suas atividades quando quisessem. –
“Para que se alegre o filho de tua escrava!”[8] – Apenas o trabalhador
manual pode sentir completamente o grande e esplêndido sentido
humano contido nessa lei! –
Se ao longo de seis dias já ficavam na expectativa de um dia de
descanso, valia a pena contar com os três ou quatro feriados sucessivos, o
que dava um terço do ano.
Quando muitas vezes até mesmo pensar no domingo já não era
suficiente para evitar o fastio da monotonia, o estímulo de vida era
renovado pela proximidade da Páscoa, do Pentecostes ou do Natal.
E se tudo isso era muito fraco, vinha então a doce esperança do
encerramento dos anos de aprendizado, do tornar-se um oficial, que
ultrapassava tudo o mais e trazia uma nova e grande época para a vida.
Mas as perspectivas do colega de aprendizado de Anton não iam além
disso – e seu estado certamente não era pior por isso.
Por um benevolente e sábio arranjo das coisas, até a exaustiva e
monótona vida de trabalhador manual tem suas fases e períodos, que
impõem certo ritmo e harmonia à vida, de sorte que esta corre
despercebida, sem que seu proprietário também venha a sentir tédio.
Mas a alma de Anton, por causa de suas ideias romanescas, destoava
daquele ritmo.
Logo em frente à casa do chapeleiro havia uma escola de latim que
Anton tivera a vã expectativa de frequentar – todas as vezes que via os
alunos saindo e entrando, voltava a pensar com nostalgia na escola de
latim e no vice-reitor em H. –, e ao passar algumas vezes diante da grande
escola São Martinho, ao ver os alunos mais velhos saindo, teria dado tudo
para poder observar uma única vez o interior daquele santuário.
Em sua situação atual, julgava impossível poder um dia frequentar
aquela escola; mesmo assim, não conseguiu se privar inteiramente de um
fraco brilho de esperança em relação a isso.
Até mesmo o coro de alunos lhe parecia ser de uma esfera superior; e,
se os ouvia cantando na rua, não conseguia deixar de ir atrás deles,
deleitar-se em contemplá-los e invejar-lhes o destino grandioso.
Quando estava sozinho na oficina com seu colega de aprendizado,
procurava compartilhar com ele todos os pequenos conhecimentos que
adquirira, em parte por suas leituras, em parte pelas aulas que tivera.
Contava-lhe sobre Júpiter e Juno, procurava esclarecer a diferença
entre adjetivo e substantivo para ensinar-lhe onde deveria colocar
corretamente uma letra maiúscula ou minúscula.
O colega o ouvia com atenção, e ambos com frequência discorriam
sobre temas morais e religiosos. Nessas ocasiões, o colega de aprendizado
era excelente em inventar novas palavras com as quais designava seus
conceitos. Assim ele nomeou, por exemplo, a obediência ao mandamento
divino de a satisfatibilidade de Deus. – E, quando procurava imitar
principalmente as expressões religiosas do sr. L. sobre a mortificação etc.,
ele caía em galimatias singulares.
Quando acreditava estar sendo depreciado ou caluniado pela
governanta ou por qualquer outra pessoa, ele sabia se servir com especial
ênfase de algumas passagens dos Salmos de Davi em que as opiniões a
respeito dos inimigos não eram exatamente brandas.
Assim, exceto o seu colega, todos os inquilinos da casa eram mais ou
menos contagiados pelos delírios religiosos do sr. L. Quando este
tagarelava demais sobre mortificação e aniquilação, o colega lançava-lhe
um tal olhar de mortificação e aniquilação que o sr. L. se virava de repulsa
e se calava.
Se isso não ocorria, o sr. L. podia às vezes passar sermões contra todo o
gênero humano por horas e horas. Com um movimento suave da mão
direita, distribuía bênção e danação. Nessas ocasiões, por mais que seu
semblante estivesse cheio de compaixão, a intolerância e o ódio humano
se alojavam entre suas sobrancelhas negras.
O objetivo prático do sermão, bastante político, era sempre exortar
seus empregados à dedicação e à lealdade no trabalho – se não quisessem
arder eternamente no fogo do inferno.
Achava que os empregados nunca trabalhavam o suficiente – ao sair,
fazia o sinal da cruz sobre o pão e a manteiga.
Talvez por Anton não conseguir trabalhar o bastante, ele lhe azedava o
almoço repetindo milhares de vezes lições de como segurar a faca e o
garfo, de como levar a comida à boca, de modo que com frequência ele
perdia a vontade de comer; até que uma vez o colega interveio
energicamente a seu favor e Anton pôde comer em paz. –
Aliás, ele não podia sequer ousar abrir a boca, pois L. encontrava
sempre alguma coisa para criticar em tudo o que dizia, nas suas
expressões faciais e nos seus menores gestos; nada que Anton fizesse lhe
agradava, e por fim temia até caminhar na sua presença, porque ele podia
encontrar algo a censurar em qualquer passo que desse. – Sua intolerância
se estendia a cada sorriso e a cada manifestação inocente de prazer que
surgissem nas expressões faciais e nos movimentos de Anton: ali ele podia
descarregar sua intolerância realmente à vontade, porque sabia que não
seria contrariado.
Durante essa época, os cinco sentidos que decoravam o lambril preto e
estavam completamente desbotados ganharam uma demão de verniz – a
recordação desse cheiro, que durou algumas semanas, foi posteriormente
quase sempre associada por Anton à ideia de seu estado naquela época.
Toda vez que sentia involuntariamente um cheiro de verniz, erguiam-se
em sua alma todas as desagradáveis imagens daquele tempo, e vice-versa,
quando às vezes estava numa situação que tinha uma semelhança casual
com aquilo, também achava que sentia um cheiro de verniz.
Um acaso melhorou um pouco a situação de Anton.
O chapeleiro L. era um fanático extremamente hipocondríaco;
acreditava em pressentimentos e tinha visões que lhe despertavam com
frequência medo e pavor. Uma senhora idosa, antiga inquilina da casa,
morreu e lhe aparecia em sonho à noite, de modo que ele muitas vezes
acordava com calafrios e pavor, e como desperto ainda continuava
sonhando com ela, acreditava também ver a sombra dela em algum canto
de sua alcova. Daí em diante, Anton teve de lhe fazer companhia e dormir
numa cama ao lado dele. Desse modo ele se tornou até certo ponto
imprescindível para o chapeleiro, e este passou a ser um pouco mais
amável com Anton. Muitas vezes, o chapeleiro entabulava conversas com
ele, perguntando como estava com Deus em seu coração, e lhe ensinava
que bastava se entregar a Deus: se por sorte fosse escolhido como um de
Seus filhos, o próprio Deus começaria e completaria a obra de conversão
nele etc. – À noite, antes de ir para cama, Anton tinha de ficar em pé à
parte e rezar baixinho, e a oração também não podia ser muito curta –
senão L. perguntava se ele já havia terminado e se não tinha mais nada a
dizer a Deus. – Para Anton, isso era uma nova ocasião para a hipocrisia e a
simulação totalmente contrárias à sua natureza. – Embora rezasse
baixinho, procurava pronunciar suas palavras de modo muito claro para
que L. pudesse entendê-lo muito bem – e assim, durante sua oração,
predominava não tanto o pensamento em Deus, mas o modo como ele, por
alguma expressão de arrependimento, remorso, nostalgia de Deus e outras
coisas semelhantes, conseguiria o melhor jeito de cair nas graças do sr. L. –
Esse foi o esplêndido benefício que a oração forçada teve sobre o coração e
a personalidade de Anton.
Mas às vezes Anton encontrava também nas orações solitárias um tipo
de satisfação secreta, quando se ajoelhava em algum canto da oficina e
pedia a Deus que produzisse em sua alma uma única das grandes
mudanças sobre as quais ele tinha lido e ouvido muito desde a infância. E a
ilusão de sua imaginação ia tão longe que por vezes era realmente como se
acontecesse algo totalmente especial no mais fundo de sua alma; e logo a
seguir estava ali presente também o pensamento de como ele poderia
vestir esse seu estado de alma numa carta a seu pai ou ao sr. de F., ou
então como contaria isso ao sr. L. Esses sentimentos interiores imaginários
eram sempre um doce alimento para sua vaidade, e a satisfação interna
que experimentava era sobretudo despertada pelo pensamento de que
ainda podia dizer que tinha sentido essas satisfações divinas e celestiais em
sua alma – sempre se sentia lisonjeado quando pessoas adultas e idosas
julgavam muito importante o estado da sua alma, a ponto de se
preocuparem com ele. Foi essa a razão pela qual supôs ter muitas vezes
um estado de alma mutante, para assim poder se queixar um pouco ao sr.
L. de que se encontrava numa situação de vazio, de secura, e que não
notava em si anseio algum por Deus etc., e assim podia solicitar o conselho
do sr. L. sobre seu estado de alma, conselho que também lhe era dado com
uma importância que para ele era lisonjeira.
Certa vez isso foi tão longe que chegaram a trocar correspondência
com o sr. de F. sobre o estado de alma de Anton, e lhe foi mostrado um
trecho da carta do sr. de F. que se referia a ele. Não era de estranhar então
que ele se visse levado a manter essa sua importância, tanto a seus olhos
como aos dos outros, graças a todo tipo de mudanças imaginárias do seu
estado de alma, pois era considerado um ser no qual se revelava
inteiramente uma direção própria e especial de Deus.
Também recebeu então um avental preto como o outro aprendiz, e, em
vez de tê-lo deixado abatido, ao contrário, essa situação contribuiu ainda
mais para sua satisfação. Ele se via como um homem que já tinha
começado a ocupar certa posição. O avental o colocava, por assim dizer,
no mesmo nível de seus semelhantes, pois antes ele estava isolado e
abandonado – por um tempo o avental o fez esquecer sua inclinação para
os estudos; começou também a encontrar uma espécie de prazer em
outras atividades manuais e não desejava nada mais fervorosamente do
que poder participar delas. Alegrava-se interiormente todas as vezes que
ouvia a saudação de um oficial que de passagem vinha exigir a oferenda
habitual; e não podia imaginar maior felicidade do que também imigrar
assim um dia como oficial e recitar as palavras de saudação prescritas pelo
costume do ofício.
Assim, o ânimo juvenil sempre se apega mais aos sinais do que às
coisas, e pouco ou quase nada se pode concluir das tenras declarações das
crianças sobre a escolha de suas futuras profissões. – Logo que aprendeu a
ler, Anton sentia um prazer indescritível em ir à igreja, para não pouco
contentamento de sua mãe e de sua prima. No entanto, o que o impelia a ir
à igreja era o triunfo que desfrutava toda vez que olhava para o quadro-
negro no qual estavam escritos os números dos cânticos e conseguia dizer
que número era aquele ao adulto que por acaso estivesse perto, ou quando
conseguia encontrar esse número no livro de cantos tão ou ainda mais
rápido que os adultos, e podia cantar com eles.
A afeição do sr. L. por Anton agora parecia crescer cada vez mais,
conforme este demonstrasse desejo por sua condução espiritual. – Ele
deixava Anton participar com frequência, até por volta da meia-noite, dos
diálogos com seus amigos mais próximos, com os quais costumava
conversar sobre suas visões e as dos outros, por vezes tão horripilantes
que Anton ouvia atento e de cabelo em pé. Em geral, ia para cama muito
tarde. E, quando a noite tinha transcorrido com esses diálogos, L.
costumava perguntar de manhã, assim que acordava, se Anton não tinha
percebido nada à noite, se não tinha ouvido nada da alcova.
L. muitas vezes conversava à noite só com Anton, e juntos liam um
pouco os escritos de Tauler, de São João da Cruz e livros semelhantes. Era
como se brotasse uma duradoura amizade entre eles. Anton também foi
realmente tomado de uma espécie de amor por L., mas essa sensação
estava sempre misturada com certa amargura, com certo sentimento de
mortificação e aniquilação, causado pelo sorriso agridoce de L.
Anton, porém, permanecia, mais do que antes, poupado de trabalhos
pesados e baixos. Muitas vezes, L. saía para passear em sua companhia;
chegou até a admitir um professor de piano para ele – Anton estava
encantado com sua situação e escreveu uma carta ao pai na qual lhe dava
as provas mais vivas de sua satisfação.
Mas, agora que a sorte de Anton na casa de L. alcançara o mais alto
cume, sua queda estava próxima. Desde que lhe arranjaram um professor
de piano, todos o olhavam com inveja. Formaram-se conluios como se
estivessem numa pequena corte; difamavam-no, procuravam derrubá-lo.
Enquanto L. procedeu de modo duro e exigente para com Anton, ele
desfrutava a compaixão e a amizade de todos os outros moradores da casa;
mas a inimizade e a desconfiança deles aumentavam na mesma medida
em que L. parecia lhe dedicar sua amizade e confiança. E, tão logo
lograram rebaixá-lo de novo e conseguiram que o professor de piano se
demitisse, não tinham mais nada contra Anton: eram seus amigos como
antes.
Mas não era difícil privá-lo do favor de um homem desconfiado e
suspeitoso como L.; bastava contar algumas declarações animadas dele,
bastava chamar a atenção do sr. L. para os variados e efetivos erros de
negligência e desordem que Anton tinha cometido a cada ocasião para
logo dar outra direção a suas intenções. Isso foi realizado com muito zelo
pela governanta e pelos demais empregados. – Mesmo assim, ainda
demorou alguns meses para conseguirem alcançar completamente seu
objetivo. Nessa época, L. até se esforçou para converter o professor de
piano de Anton, um homem muito reto e religioso, mas que, segundo a
opinião do sr. L., não se entregara ainda completamente a Deus nem era
submisso o bastante a Ele.
O professor também precisava comer frequentemente na casa do sr. L.,
mas acabou estragando tudo porque passava muita manteiga no pão; a
governanta chamou a atenção do sr. L. para aquele fato, de modo a
alcançar seu objetivo de dar um fim às aulas de piano de Anton e assim
impedir que ele ficasse acima dos outros inquilinos da casa.
Anton, além do mais, não tinha muito gênio para a música e
consequentemente não aprendeu muito em suas aulas. Algumas árias e
coros foram tudo o que conseguiu dominar com muito esforço. E para ele
as aulas de piano eram sempre uma hora muito desagradável. Até o
dedilhado era muito difícil para ele, e L. sempre encontrava algo a criticar
em seus dedos escanchados.
Certa vez ele conseguiu expulsar o espírito do mal do sr. L. graças à
força da música, assim como Davi fizera com Saul. Anton cometera um
pequeno descuido, e, como a afeição por ele já começara a se transformar
em ódio, o sr. L. tinha pensado em lhe dar um duro castigo antes de
dormir. Anton percebia isso muito bem em tudo. E, quando o momento
parecia se aproximar, ele tomou coragem para tocar um coro ao piano, o
primeiro que aprendera, e começou a cantá-lo. Isso surpreendeu o sr. L., o
qual confessou que estava justo naquele momento decidido a aplicar-lhe
uma rigorosa punição, mas que agora o perdoaria.
Anton até se atreveu a fazer algumas reprimendas ao sr. L. por causa
da visível diminuição da amizade e do amor para com ele, e L. lhe
confessou que sua afeição certamente já não era tão forte assim, e que isso
se devia necessariamente à deterioração do estado de alma de Anton, o
que interpôs, por assim dizer, um muro entre ele e seu antigo amor. Disse
que tinha exposto o assunto em oração a Deus e recebido essa explicação.
Isso foi muito triste para Anton, e ele se perguntou o que teria de fazer
para melhorar seu estado de alma deteriorado. A resposta, a única
maneira de salvar sua alma, era percorrer seu caminho na simplicidade e
entregar-se completamente a Deus. Não foram dadas outras instruções
além dessa. O sr. L. não achou bom se antecipar a Deus, que, por assim
dizer, parecia ter se afastado de Anton. – Mas as enfáticas palavras
percorrer seu caminho na simplicidade tinham relação com o fato de que, para
o sr. L., Anton desde algum tempo começara a ficar esperto, eloquente e
sutil demais, e excessivamente vivo, sobretudo por causa da satisfação
com seu estado. – Para ele, essa vivacidade era o caminho direto para a
perdição de Anton, que, a julgar pela jovialidade em seu rosto, tinha
necessariamente de se tornar um homem inescrupuloso e mundano, de
quem não se poderia supor outra coisa a não ser que Deus mesmo o
abandonaria em seus pecados. –
Tivesse percebido melhor sua vantagem, Anton teria podido colocar
tudo em ordem outra vez com um comportamento abatido e misantropo,
com inquietações e angústias fingidas. Pois assim L. teria acreditado que
Deus estava prestes a trazer novamente a alma perdida para junto Dele. –
Mas como L. sustentava o princípio de que aquele que Deus quer
converter será convertido sem sua participação; e de que Deus escolhe
quem Ele quer, rejeita quem Ele quer e endurece com quem Ele quer só
para revelar sua magnificência – parecia-lhe, por assim dizer, perigoso se
misturar nos assuntos divinos quando alguém tem a aparência de ter sido
realmente rejeitado por Deus.
Por sua conduta vivaz e mundana, Anton realmente tinha quase essa
aparência para o sr. L. – o assunto motivou uma correspondência com o sr.
de F. E mostrou então a Anton que mais uma vez a carta do sr. de F. o
mencionava; ali, afirmava que, segundo todas as evidências, a construção do
templo do diabo no coração de Anton estava tão avançada que dificilmente
poderia ser destruído de novo.
Isso atingiu Anton como um raio – mas ele se examinou atentamente e
comparou seu atual estado com o anterior, e foi impossível encontrar
qualquer diferença entre os dois; ele frequentemente ainda tinha, como
antes, comoções e sentimentos imaginários e divinos; não conseguia se
convencer de que tinha sido totalmente alijado da graça e de que fora
rejeitado por Deus. Começou a duvidar da verdade da sentença oracular
do sr. de F.
Com isso, o seu abatimento voltou a desaparecer, abatimento que
talvez tivesse podido abrir-lhe de novo o caminho para o favorecimento
do sr. L., cuja amizade a satisfação constante de seu rosto pôs inteiramente
a perder.
A primeira consequência disso foi que L. o afastou de sua alcova, e ele
teve de dormir novamente com o outro jovem aprendiz, que voltou a ser
seu amigo porque já não o invejava; a segunda foi ter de voltar a fazer,
mais do que nunca, os trabalhos mais difíceis e ordinários, o que o
obrigava a permanecer sempre na oficina, e apenas raramente tinha
permissão para ir ao quarto do sr. L. O professor de piano ainda foi
mantido somente porque L. queria completar a obra de conversão que
havia iniciado, e portanto, no lugar de uma alma perdida, ele pretendia
conduzir uma outra a Deus.
O inverno chegou, e a situação de Anton começava a ficar então
realmente difícil: ele tinha de executar trabalhos que excediam, e muito,
sua idade e suas forças. L. parecia crer que, como agora já não era possível
esperar nada da alma de Anton, era preciso ao menos fazer todo o uso
possível do seu corpo. Ele considerava o corpo de Anton como uma
ferramenta que se joga fora depois de usar.
Em pouco tempo, por causa do frio e do trabalho, as mãos de Anton
ficaram completamente imprestáveis para tocar piano. – Quase toda
semana, ele tinha de ficar acordado algumas noites junto com os outros
aprendizes para tirar os chapéus tingidos de preto da fervura da caldeira e
em seguida lavá-los imediatamente no rio Oker, que passava por ali, e para
tal fim era preciso abrir um buraco no gelo. Essa passagem
frequentemente repetida do calor para o frio provocou rachaduras nas
mãos de Anton, pelas quais o sangue brotava.
Mas, em vez de abatê-lo, isso elevou seu ânimo. Olhou com certo
orgulho para as mãos, observando as marcas de sangue como muitas
insígnias de honra de seu trabalho; e, enquanto ainda traziam o atrativo
da novidade, esses trabalhos difíceis lhe davam certo prazer, que consistia
principalmente em sentir suas forças corporais; ao mesmo tempo, lhe
davam uma espécie de doce sentimento de liberdade, que até então ainda
não conhecera.
Era como se ele agora pudesse também ser mais indulgente consigo
mesmo, depois de ter trabalhado tanto quanto os outros e ter suportado o
fardo e o calor do dia como eles. Mesmo sob os trabalhos mais penosos, ele
experimentava uma espécie de apreço interior que o emprego de suas
forças lhe proporcionava; e muitas vezes dificilmente teria trocado essa
situação pela desagradável condição em que se encontrava quando
desfrutava a amizade de L., amizade severa e exterminadora de qualquer
liberdade.
Este, porém, começou a pressioná-lo cada vez mais: no frio intenso,
durante o dia inteiro, tinha frequentemente de cardar lã numa sala sem
aquecimento. Era um modo matreiro, concebido pelo sr. L., de aumentar a
laboriosidade de Anton: pois, se não quisesse morrer de frio, precisaria se
mexer tanto quanto suas forças aguentassem, de forma que à noite seus
braços muitas vezes ficavam como que paralisados, e mesmo assim as
mãos e pés congelavam.
Por causa da eterna monotonia, o trabalho tornava a sorte de Anton
mais dura. Principalmente quando por vezes sua fantasia não queria
entrar em funcionamento; quando, ao contrário, ele entrava em
movimento graças à circulação sanguínea mais rápida, as horas do dia
fluíam frequentemente sem que percebesse. Muitas vezes, ele se perdia
em visões encantadoras. Outras, cantava seus sentimentos, recitando-os
com melodias próprias. Quando então ficava particularmente cansado do
trabalho, com as forças esgotadas, sentindo-se pressionado por sua
condição, ele preferia mesmo se perder em exaltações religiosas de
sacrifício, entrega total etc., e a expressão altar do sacrifício era a que mais o
comovia, de modo que a incluía em todas as pequenas canções e
recitativos de sua criação.
As conversas com o colega aprendiz (que se chamava August)
começaram a ser de novo estimulantes, e seus diálogos se tornaram
íntimos, pois um e outro eram novamente iguais. A amizade deles se
tornou mais intensa nas noites em que por vezes precisavam ficar juntos
em vigília. Mas a intimidade crescia ainda mais quando se sentavam juntos
na sala de secagem. Esta consistia em um buraco emparedado na terra,
encimada por arcos de tijolos, onde cabia apenas um homem em pé e não
mais que dois sentados. Nesse buraco havia um grande braseiro, e nas
paredes ao redor estavam penduradas peles de coelhos pintadas com
água-forte, cujo pelo recebia uma leve decapagem a fim de ser usado
depois como matéria-prima para os chapéus mais finos.
Anton e August se sentavam à frente do braseiro em meio àquela
fumaça no buraco quase subterrâneo, onde entravam mais rastejando que
andando, e, por causa da estreiteza do lugar e do isolamento, do silêncio e
da ameaça dessa abóbada escura, eles se sentiam tão unidos que o coração
de ambos por vezes transbordava em manifestações de amizade recíproca.
Ali revelavam os mais íntimos pensamentos de sua alma; ali passavam as
horas mais venturosas.
Como o sr. de F. e todos os seus seguidores, L. era um separatista que
não frequentava a igreja nem comungava. Enquanto sua amizade com
Anton durou, este praticamente nunca foi à igreja em B. Agora August o
levava aos domingos e sempre iam a outras, porque Anton gostava de
ouvir os diferentes sermões, um depois do outro.
Certa vez, Anton e August estavam sentados por volta da meia-noite na
sala de secagem, conversando sobre distintas pregações que tinham
ouvido, quando este último prometeu a Anton que iria levá-lo à igreja B.
no domingo seguinte, onde ouviria um pregador que superava todos os
que ele pudesse pensar e imaginar. Esse pregador se chamava P., e August
não parava de contar quantas vezes fora abalado e comovido pelas
pregações do homem. Nada parecia mais estimulante para Anton do que a
visão de um orador público capaz de conquistar o coração de milhares de
pessoas. Ele ouvia atentamente aquilo que August lhe contava. Via em
pensamento o pastor P. no púlpito, já o ouvia pregando. Seu único desejo
era que já fosse domingo!
O domingo chegou. Anton se levantou bem cedo, como de hábito, e se
vestiu. Quando badalaram os sinos, teve uma espécie de pressentimento
agradável daquilo que iria ouvir. Foram à igreja. As ruas que conduziam à
igreja B. estavam tomadas por uma multidão de gente apressada. O pastor
P. estivera doente por algum tempo, e era a primeira vez que pregava
desde então: esse foi também o motivo pelo qual August não havia, antes,
ido diretamente a essa igreja com Anton.
Quando entraram, tiveram dificuldade de encontrar um lugarzinho
diante do púlpito. Todos os bancos, corredores e coros estavam cheios, e
as pessoas se esforçavam para enxergar umas por cima das outras. A igreja
era um edifício gótico antigo, de pilares grossos que sustentavam a alta
abóbada e descomunais janelas longas e curvas, cujos vitrais eram
pintados de tal modo que apenas uma luz fraca podia passar por eles.
A igreja já estava cheia de gente antes do início do culto. Imperava um
silêncio solene. De repente, o grande órgão soou com toda a força, e o
canto de louvor que saía da boca daquela multidão parecia sacudir as
abóbadas. Quando o último canto chegou ao fim, todos cravaram o olhar
no púlpito, e não se notava outro desejo senão o de ver e ouvir aquele
pregador quase idolatrado.
Finalmente, ele entrou e se ajoelhou no último degrau do púlpito,
antes de subir. Ergueu-se de novo em seguida e se postou diante do povo
reunido. Um homem ainda em plena força da idade – o semblante era
pálido, a boca parecia se contorcer num sorriso suave, os olhos irradiavam
celeste devoção – foi logo pregando do jeito que estava, com essas
expressões faciais, as mãos suavemente unidas.
E, quando começou, que voz, que expressão! – No início lento e solene,
e depois fluindo cada vez mais rápido: assim que entrava intimamente na
matéria, o fogo da eloquência começava a brilhar em seus olhos, a respirar
em seu peito, a faiscar até na pontinha de seus dedos. Tudo nele se
movimentava; graças ao semblante, à atitude e aos gestos, sua expressão
ultrapassava todas as regras da arte e mesmo assim era natural, bela,
arrebatadora.
Não havia pausa no jorro poderoso de seus sentimentos e ideias; a
palavra seguinte sempre pronta a irromper antes que a anterior estivesse
completamente dita; como uma onda traga a seguinte na preamar, cada
nova sensação se perdia imediatamente naquela que a seguia, mas esta
representava sempre apenas a evocação viva da anterior.
Sua voz assemelhava-se à de um claro tenor que conservava o volume
mesmo nos tons mais altos; o tom de um metal puro que vibrava por todos
os nervos. Guiando-se pelo Evangelho, falava contra a injustiça e a
opressão, contra a opulência e o esbanjamento; e, no mais alto fogo de
entusiasmo, por fim, chamando-a pelo nome, se dirigia à cidade
voluptuosa e luxuriosa, cujos moradores em sua maior parte reuniam-se
naquela igreja; revelava seus pecados e delitos; recordava-lhes os tempos
da guerra, o cerco da cidade, o perigo geral pelo qual a necessidade havia
transformado todos em iguais, em que havia imperado a harmonia
fraterna; em que os moradores opulentos, em lugar de suas mesas agora
gementes sob o peso das iguarias, eram ameaçados pela fome e a carestia,
e, em vez das pulseiras e joias, viviam sob a ameaça dos grilhões – Anton
acreditava estar ouvindo um dos profetas que puniam com fervor santo o
povo de Israel e invectivava contra os crimes da cidade de Jerusalém.
Anton saiu da igreja e foi para casa sem dizer uma palavra a August;
mas a partir daí, por onde fosse e onde estivesse, não pensava em nada a
não ser no pastor P. De noite ele sonhava com o pastor e de dia falava
sobre ele; sua imagem, seu rosto e cada um dos seus movimentos tinham
se impregnado bem fundo na alma de Anton. – Cardando lã na oficina e
lavando chapéus, ele se ocupou durante toda a semana com os
encantadores pensamentos da pregação do pastor P., repetindo milhares
de vezes para si cada expressão que o comovera ou que o levara às
lágrimas. Sua imaginação criou então a antiga igreja majestosa e a
multidão atenta e a voz do pregador, que agora soava ainda mais
celestialmente em sua fantasia. – Ele contava as horas e os minutos até o
domingo seguinte.
E o domingo chegou; e se houve algo que causou uma impressão
inextinguível na alma de Anton foi a pregação que ouviu naquele dia. – O
número de pessoas era, tanto quanto possível, maior do que no domingo
anterior. – Antes da pregação, cantou-se um breve cântico que continha as
palavras do Salmo:

Quem, Senhor, habitará na Tua tenda? quem morará no Teu santo monte?
Aquele que anda irrepreensivelmente e pratica a justiça, e do coração fala a verdade;
que não difama com a sua língua, nem faz mal ao seu próximo, nem contra ele aceita
nenhuma afronta;
aquele a cujos olhos o réprobo é desprezado, mas que honra os que temem ao Senhor;
aquele que, embora jure com dano seu, não muda;
que não empresta o seu dinheiro a juros, nem recebe peitas contra o inocente. Aquele que
assim procede nunca será abalado.[9]

O cântico breve e emocionante deixou todos como que cheios de


expectativas pelo que estava por vir. O coração estava preparado para
impressões grandes e sublimes quando o pastor P. entrou com seriedade
solene no rosto, completamente mergulhado em si, e, sem prece ou
introdução, começou a discursar com os braços abertos, dizendo: “Quem
não oprime viúvas e órfãos; quem não tem delitos secretos na consciência;
quem não lesou seu próximo com usura; a quem nenhum perjúrio
incrimina a alma; este erga comigo suas mãos cheias de confiança para
Deus e ore: Pai nosso! etc.”.
E então leu o Evangelho de Domingo de João Batista, em que lhe
perguntam se é Cristo “e ele reconheceu e não mentiu, e ele anunciou, eu
não sou Cristo!”. – Dessas palavras ele viu a oportunidade de pregar sobre
o perjúrio, e depois de ter lido a palavra do Evangelho com uma voz um
pouco abafada e solene, após uma pausa, começou:

Ai de ti que, sem escrúpulos,


Renegas Deus, teu senhor!
O que traz tua fronte,
Além do sinal do perjúrio? –
Com ela mentiste a Deus,
Seu nome sagrado era escárnio para ti,
Como tu caíste fundo!
Ai de ti, apareces
Diante de Deus – ele não te conhece –
O mais miserável de todos
Que sugaram um seio materno –
Não te desesperes – talvez, talvez,
Um dia as tuas muitas lágrimas
Apagarão a chama em teu peito,
E o arrependimento, com o passar dos anos,
Lavará a culpa de tua alma.
Tu, que cometeste sacrilégios,
Oh, não deixes, quando ainda puderes chorar,
A esperança se perder –
Deus te oferece ainda Sua face,
Ele não quer a morte do pecador,
Sua boca o prometeu.

Essas palavras, ditas com pausas mais frequentes e com o páthos mais
sublime, tiveram um efeito incrível. Quando o pastor terminou, todos
respiraram aliviados; limparam o suor da testa. – E então a natureza do
perjúrio foi investigada, suas consequências postas sob uma luz terrível,
cada vez mais terrível. O trovão caiu sobre a cabeça do perjuro, a perdição
se aproximou dele como um homem armado, o pecador estremeceu no
mais fundo de sua alma – ele gritou: “Que suas montanhas caiam sobre
mim, e que suas colinas me cubram!”. – O perjuro não merecia compaixão,
ele fora aniquilado perante a ira do Eterno. –
Nesse ponto silenciou, exaurido – um terror pânico dominou todos os
ouvintes. – Anton percorreu num rápido cálculo os anos de sua vida para
saber se não era culpado de algum perjúrio.
Mas então teve início o consolo – seriam anunciados a graça e o perdão
ao desesperado – desde que pagasse dez vezes o que arrancou de viúvas e
órfãos; desde que, ao longo da vida, procurasse lavar de novo sua culpa
com lágrimas de arrependimento e boas ações.
A graça não era simplesmente dada ao criminoso; era preciso alcançá-
la com prece e lágrimas. E agora era como se ele quisesse alcançá-la pela
própria prece e lágrimas diante de todos, diante de Deus, colocando-se ele
mesmo no lugar do pecador de alma arrependida. –
Ao desesperado, é dito: “Ajoelha-te no pó e nas cinzas, até que teus
joelhos fiquem feridos, e fala: ‘Eu pequei no céu diante de Ti!’” – cada
período começava com um “Eu pequei no céu diante de Ti!”, e depois
vinha a confissão nesta ordem: oprimi viúvas e órfãos; tomei dos fracos
seu único esteio, dos famintos, seu pão – e assim se passava o registro
completo dos sacrilégios. – E cada período se encerrava assim: “Senhor, é
possível que eu ainda encontre a graça!”. –
Todos os presentes se esvaíram em lágrimas e melancolia. O refrão dito
a cada período teve um efeito incrível – era como se a cada vez a emoção
recebesse uma nova descarga elétrica, reforçando-a até o mais alto grau. –
Por fim, até mesmo a exaustão resultante, a rouquidão do orador (era
como se gritasse a Deus pelos pecados do povo), contribuiu para a comoção
geral contagiante que a pregação causou; não havia ali criança que não
tivesse suspirado e chorado junto.
Três terços de hora já tinham se passado como minutos – de repente,
ele se deteve e, após uma pausa, concluiu com o mesmo verso que havia
começado. – Com voz cansada e abafada, leu então a confissão pública, a
confissão dos pecados e o subsequente anúncio do perdão dos pecados; a
seguir, orou pelos que quisessem comungar, ele mesmo também
comungou, e deu em seguida a bênção de mãos abertas. – Nessa leitura, a
voz mais baixa, em comparação ao tom dominante da pregação, soava
muito mais solene e comovente.
Anton não saiu da igreja, primeiro precisava ver o pastor P. comungar.
– Cada passo dele lhe era sagrado. Com uma espécie de veneração, pisou o
lugar por onde sabia que o pastor P. tinha passado. O que não teria dado
para estar com o pastor na comunhão! Viu então o pastor P. ir para casa
junto com o filho, um garoto de 9 anos – Anton teria dado sua existência
inteira para ser esse filho felizardo. – Quando via o pastor P. caminhar
pela rua com os paroquianos que o rodeavam por todos os lados, e
agradecer cordialmente aos que o cumprimentavam, era como se
distinguisse certo brilho em torno de sua cabeça e avistasse um ser sobre-
humano caminhando por entre os mortais – seu maior desejo era, tirando
seu chapéu, atrair para si um olhar do pastor. – E, quando conseguiu isso,
voltou correndo para casa a fim de guardar, por assim dizer, aquele olhar
em seu coração.
Na tarde do domingo seguinte, o pastor P. pregou sobre o amor ao
próximo, e, se sua pregação contra o perjúrio comovera bastante a alma,
esta tocou-a com mais suavidade; as palavras fluíam de seus lábios como
mel, cada movimento era diferente, todo o seu ser parecia transformado
conforme o tema que pregava. E não havia ali a menor afetação. Era-lhe
natural se envolver com todos os pensamentos e sentimentos que o tema
do discurso suscitava.
Naquela manhã, Anton ouvira, com espantoso tédio, o outro pregador
dessa igreja – algumas vezes sentia raiva dele, quando tudo sugeria que
iria dizer amém e em seguida começava de novo no mesmo tom. Mas
agora mais do que nunca o martírio de Anton era maior do que quando
ouvia uma daquelas pregações entediantes, pois não podia evitar
estabelecer constantemente comparações com a pregação do pastor P.
depois que as imaginara como o ideal supremo, inatingível por qualquer
outra pessoa.
Quando a pregação da manhã terminou, era a vez de o pastor P.
celebrar a consagração da comunhão, que Anton ouviu pela primeira vez
dele – e que figura venerável! Estava em pé no fundo da igreja, diante do
grande altar, e cantou as palavras: “Agradeçam ao Senhor, pois Ele é
atencioso e Sua bondade dura eternamente” – com uma voz que se erguia
ao céu e uma expressão tão poderosa que Anton acreditou por um
momento estar alçado a regiões elevadas – para ele era como se tudo
acontecesse atrás de uma cortina, num santuário, onde seus pés não
tinham permissão para se aproximar – como ele invejava os fiéis que
pisavam o altar e podiam receber a comunhão das mãos do pastor P.! –
Uma moça bem jovem, vestida de preto, de face pálida e fisionomia
repleta de devoção celeste, subiu ao altar, deixando no coração de Anton
uma impressão que ele até então desconhecia. Nunca mais voltou a vê-la,
mas a imagem dela jamais se apagou de sua alma.
Agora sua imaginação se divertia de outra forma. – A ideia da
comunhão o acompanhava de quando ia dormir à hora em que se
levantava, ocupando todo o seu dia quando se encontrava só no trabalho;
assim, o pastor P. pairava sempre em sua mente com sua voz suave e
encorpada e seus olhos erguidos ao céu, que pareciam iluminar mais do
que uma devoção terrena. Às vezes, a imagem da jovem vestida de preto,
de face pálida e fisionomia repleta de devoção, também se impunha em
sua imaginação.
Essas coisas todas deixavam sua imaginação tão entusiasmada que ele
se consideraria a pessoa mais feliz do mundo se pudesse comungar no
domingo seguinte. Prometia a si mesmo uma consolação tão celestial e
sobrenatural ao desfrutar a comunhão que antecipadamente já vertia
lágrimas de alegria; ao mesmo tempo sentia certa compaixão suave e
tranquilizante para consigo mesmo, que lhe atenuava todas as coisas
amargas e desagradáveis de sua situação, quando refletia que, mesmo
como aprendiz de chapeleiro, ninguém poderia lhe roubar essa
consolação. Ele se propôs a comungar no mínimo a cada catorze dias,
assim que estivesse preparado – e nesse desejo se insinuava muito
discretamente a esperança de que, ao comungar com certa frequência,
talvez o pastor P. pudesse finalmente reparar nele: era sobretudo esse
pensamento que trazia uma doçura indizível a essas imagens. Assim, aqui
também a vaidade lhe tramava uma cilada onde talvez menos se
suspeitava.
Ele não podia acreditar que permaneceria desconhecido e ignorado
como era agora. Segundo certas ideias romanescas que pusera na cabeça,
haveria de calhar que um dia algum homem nobre o encontraria na rua e
perceberia nele algo que lhe chamaria atenção, e então tomaria Anton sob
seus cuidados. Para ele, a primeira coisa que despertaria a atenção era
certo semblante taciturno e melancólico, que assumiu com esse propósito.
Por isso, muitas vezes ainda fingia possuí-lo no mais alto grau, como se lhe
fosse natural. Quando a fisionomia de algum homem distinto lhe inspirava
confiança, ele frequentemente estava já quase a ponto de abordá-lo, de
dirigir-lhe a palavra e lhe revelar sua situação – mas sempre o intimidava
o pensamento de que esse homem distinto pudesse talvez tomá-lo por um
tolo.
Quando caminhava pela rua, por vezes também cantava, com certa voz
de lamento, alguns cânticos de Madame Guyon que sabia de cor e nos
quais acreditava encontrar alusões ao seu destino; pensava que, como nos
romances às vezes uma música de lamento entoada por alguém realiza
prodígios, talvez ele também conseguisse dar outro rumo ao seu destino,
atraindo para si a atenção de algum filantropo.
Quanto ao pastor P., sua admiração por ele era tão grande que não
teria se atrevido a lhe dirigir a palavra. Quando ele se aproximava, Anton
estremecia como se estivesse ao lado de um anjo.
Não conseguia imaginar, ou então procurava intencionalmente evitar
o pensamento, que o pastor P. se levantava, ia dormir, realizava todas as
ações naturais como os demais seres humanos. Visualizar o pastor de
pijama e touca de dormir lhe era completamente impossível – ou, antes,
ele fugia desse pensamento como se uma fissura se produzisse em sua
alma. Em especial a imagem da touca de dormir era para ele algo
completamente insuportável, sempre que lhe ocorria pensar nela
associada ao pastor P. era como se entrassem em desarmonia em todas as
imagens restantes.
Certa vez, porém, calhou de Anton se encontrar em pé na porta da
igreja quando o pastor P. entrava e disse em baixo-alemão para o sacristão
que mais tarde ainda teriam de batizar uma criança.
Se alguma vez um contraste provocou um efeito intenso na alma de
Anton, foi esse – aquele homem, que ele jamais imaginara senão com
aquela maneira solene e desconcertante de se dirigir à assembleia do
povo, ele o ouvia agora falando em baixo-alemão com o sacristão, como se
fosse um simples artesão, sobre um assunto tão solene como o de um
batismo; e falava num tom nada solene, com o qual se diria a alguém para
não se esquecer de trazer a bacia.
Esse único incidente acarretou de certo modo a diminuição da idolatria
de Anton pelo pastor P. Ele passou a idolatrá-lo menos e a amá-lo mais.
No entanto, ele havia retirado totalmente do pastor P. seu ideal de
bem-aventurança. Não conseguia pensar em nada mais sublime ou
estimulante que poder falar em público diante do povo tal como o pastor
P. e, em seguida, como ele, tratar às vezes a cidade pelo nome. Em especial,
esse último tratamento significava para ele algo de grande e patético – de
modo que com frequência, durante o dia todo, ocupava incessantemente
seu pensamento com isso –, e até mesmo quando por acaso precisava
atravessar a rua para pegar uma cerveja, e via alguns jovens brigando, não
conseguia se abster de repetir na mente as palavras do pastor P. e de
alertar a cidade inescrupulosa de sua perdição, ao mesmo tempo que
erguia o braço, ameaçando. – Por onde passava e parava, arengava em
pensamento a si mesmo e, quando ficava impulsivo, fazia a pregação
contra o perjúrio.
Assim, durante algum tempo ele pairou nesses agradáveis devaneios,
que o faziam praticamente se esquecer por completo de que estava a
cardar lã na sala gelada, a lavar chapéus no gelo, e da falta de sono,
quando muitas vezes tinha de varar noites em vigília. Enquanto
trabalhava, as horas muitas vezes fugiam dele, como minutos, contanto
que conseguisse se imaginar dentro do caráter de um orador público.
Mas ou a tensão não natural de suas forças anímicas ou o grande
esforço, para sua idade, de seu corpo no trabalho acabou por derrubá-lo –
ele ficou gravemente doente. Seu tratamento não foi o melhor. Com febre,
delirava e permanecia deitado sozinho por dias inteiros, sem que alguém
cuidasse dele.
Mas, por fim, sua natureza sadia triunfou: ele se restabeleceu. Mesmo
assim, restaram ainda certa indolência e desânimo da doença – e o
filantrópico sr. L. quase provocou nele uma recaída mortal com uma de
suas leves advertências.
Certo dia, ao entardecer, L. tomava um banho quente de ervas num
aposento escuro e isolado, e Anton deveria ficar à sua disposição. Como
estava suando no banho e sentindo muito medo, disse a Anton com uma
voz que penetrava até os ossos: “Anton! Anton! Tome cuidado com o
inferno!” – e então olhou petrificado para um canto.
Anton tremeu ao ouvir essas palavras, e um arrepio instantâneo lhe
percorreu o corpo inteiro. Todo o terror da morte o invadiu – pois não
duvidou nem um pouquinho de que L., naquele momento, tivera uma
visão que lhe indicava a morte de Anton; e foi o que o levou a soltar o
temido grito: “Tome cuidado, hein! Tome cuidado com o inferno!”.
Após o grito, L. saiu de repente do banho, e Anton teve de iluminar o
caminho até sua alcova. Caminhava à frente com os joelhos tremendo: e,
quando o deixou, L. parecia estar mais pálido que a morte.
Se alguma vez houve alguém que rezou para Deus com verdadeira
devoção e veemência, foi Anton; assim que se encontrava sozinho, ele se
jogava num barracão encostado à oficina, não de joelhos, mas de cara
voltada para o chão, e suplicava a Deus por sua vida, pedia-lhe, como um
desgraçado já condenado, apenas um prazo de conversão, se tivesse de
morrer – pois ele se lembrou de que percorrera mais de vinte vezes as
ruas, pulara e sorrira maldosamente – e todos os martírios do inferno
estavam sobre ele, martírios que eternamente haveria de suportar. –
“Tome cuidado, hein! Tome cuidado com o inferno!”, zumbia ainda em
seus ouvidos como se um espírito saído do túmulo tivesse lhe gritado essas
palavras – e continuou rezando hora após hora, só pararia no meio da
noite ao perceber um alívio de sua angústia – mas como seu peito
expelisse um suspiro angustiado após outro, até que enfim lhe vieram as
lágrimas, era como se Deus tivesse atendido a seu pedido – e Deus preferia,
como antes com os ninivitas, desonrar um profeta a deixar sua alma se
perder. – Anton tinha afastado sua febre com reza, mas ela provavelmente
voltaria se espíritos irritados não encontrassem essa saída. Muitas vezes
uma exaltação, um delírio, cura o outro – os diabos são exorcizados por
Belzebu.
Após esse esgotamento, Anton acordou na manhã seguinte revigorado
pelo sono tranquilo – mas o pensamento da morte também despertou.
Acreditou que, quando muito, lhe seria dado um pequeno prazo para a
conversão, e por isso teria de se apressar bastante se ainda quisesse salvar
sua alma.
Fez o mais que pôde; rezava durante o dia inumeráveis vezes,
ajoelhado num canto, e conseguiu assim se imbuir de tal convicção da
graça divina e de tamanha alegria da alma que muitas vezes acreditou já
estar no céu, e de vez em quando desejava a morte antes que pudesse ser
afastado novamente desse bom caminho.
Mas, apesar de todas essas extravagâncias de sua fantasia, a natureza
não deixou de observar o momento certo de regressar – e o amor natural
pela vida, o amor pela vida mesma, despertou de novo na alma de Anton. –
É claro que nessa circunstância o pensamento de sua morte iminente era
muito triste e desagradável, e ele considerava esses momentos como
aqueles em que novamente era afastado da graça divina, caindo em novo
medo, porque não lhe era possível reprimir a voz da natureza dentro de si.
Ele sentia agora em dobro todas as tristes consequências da
superstição que lhe tinham incutido desde sua mais tenra infância – os
seus sofrimentos podem ser chamados literalmente de sofrimentos da
imaginação – para ele, de fato, foram sofrimentos reais, que lhe roubaram a
alegria de sua juventude. –
Sabia por sua mãe que um sinal certo da proximidade da morte ocorre
quando alguém lava as mãos e elas não soltam mais vapor – então ele
sempre se via morrendo ao lavar as mãos. – Tinha escutado que, quando
um cão uiva na casa com o focinho virado para a terra, está farejando a
morte de um ser humano – assim cada uivo de um cão profetizava sua
morte. Quando uma galinha cantava como galo, era um sinal inequívoco
de que em breve alguém morreria na casa – e justo naquele momento uma
dessas galinhas que pressagiavam infortúnios andava em volta do quintal,
cantando artificialmente, sem parar, como um galo. Para Anton, nenhum
sino da morte soava tão amedrontador como esse canto; e essa galinha lhe
deu mais horas sombrias em sua vida do que qualquer adversidade que já
sofrera.
Quando a galinha ficava quieta alguns dias, ele muitas vezes
recuperava o consolo e a esperança na vida – tão logo se podia ouvi-la
novamente, todas as suas lindas esperanças e projetos de repente
fracassavam.
Quando ele andava às voltas com puros pensamentos de morte,
coincidiu, pela primeira vez após sua doença, de retornar à igreja onde o
pastor P. pregava. Este já estava no púlpito pregando – sobre a morte.
Aquilo caiu como um raio sobre Anton; pois certa vez aprendera,
conforme o que lhe havia sido posto na cabeça por uma especial conduta
divina, a relacionar tudo a si mesmo – a quem mais a pregação sobre a
morte se dirigia senão a ele? Um criminoso não poderia ouvir sua
sentença de morte com pavor maior do que Anton sentia ao ouvir aquela
pregação. Certamente o pastor P. aduziu razões de consolação suficientes
contra os terrores da morte, mas qual a serventia disso contra o amor
natural pela vida que prevalecia nele, apesar dos delírios que atulhavam
sua cabeça?
Foi para casa com o coração abatido e entristecido, e a pregação o
deixou melancólico por catorze dias, e, se o pastor P. soubesse que ela
surtiria o mesmo efeito sentido em Anton em mais duas pessoas, ele
provavelmente não a teria feito.
Assim, seguindo a direção peculiar dada pelos instrumentos escolhidos
pela graça divina, Anton se tornara, aos 13 anos, um completo
hipocondríaco, de quem se podia dizer literalmente que a cada momento
morria vivendo. O gozo da juventude lhe foi vergonhosamente roubado – a
graça obsequiosa lhe enlouqueceu a cabeça.
Mas a primavera chegou novamente, e a natureza, que a tudo cura,
começou também aos poucos a melhorar mais uma vez o que a graça tinha
estragado.
Anton sentiu em si mesmo uma nova força de vida; ele se lavava, e suas
mãos voltaram a soltar vapor – nenhum cão uivava mais – a galinha parou
de cantar – e o pastor P. não fez mais pregações sobre a morte. –
Anton voltou a passear sozinho aos domingos, e certa vez, sem se dar
conta, calhou de estar diante da porta da cidade na qual mais ou menos
um ano e meio antes entrara com o pai, vindo de H. Não se pôde conter e
saiu a percorrer a larga estrada real ladeada por salgueiros, por onde
outrora passara. Estranhas sensações se manifestavam em sua alma. Ao
avistar a sentinela indo e vindo lá em cima do baluarte, sua vida inteira
desde aquela época surgiu de repente em sua memória – e começou a ter
diversas ideias de como seria a aparência da cidade lá dentro, de como
fora construída a casinha de L. Era como se despertasse de um sonho – e
estivesse novamente no local onde o sonho começara –, todas as
cambiantes cenas vividas nesse um ano e meio em B. se comprimiam umas
nas outras, e as imagens isoladas pareciam diminuir segundo a maior
medida adquirida repentinamente por sua alma.
Como é poderoso o efeito da ideia do lugar à qual atamos todas as
outras. As ruas e casas isoladas, que Anton via diariamente, eram o
imutável de suas representações, às quais sempre se unia o mutável de sua
vida, e, por meio do imutável, a vida adquiria coerência e verdade e ele
diferenciava a vigília do sonho.
Na infância, é especialmente necessário que todas as outras ideias se
juntem às de lugar, pois elas, por assim dizer, têm em si mesmas ainda
pouca consistência e não conseguem ainda se manter firmes em si
mesmas.
Por isso, com frequência é realmente difícil diferenciar a vigília do
sonho na infância; e lembro que um de nossos maiores filósofos vivos me
fez sobre esse assunto uma observação bastante notável a respeito dos
anos de sua infância.
Em razão de certo péssimo hábito, bastante comum entre as crianças,
ele tinha sido castigado muitas vezes com vara. Mas sempre lhe ocorrera
um sonho bem vivo, como também é comum, em que se apoiava na parede
e… Se às vezes, durante o dia, estava realmente apoiado na parede para
esse fim, ele se lembrava então do castigo pesado sofrido tantas vezes – e
aguardava durante algum tempo antes de ousar satisfazer uma
necessidade premente da natureza, porque temia ser novamente um
sonho do qual teria mais uma vez de esperar um castigo severo – até olhar
para os lados e em seguida calcular o quanto de tempo se passara antes de
poder se convencer completamente de que não estava sonhando.
Ao despertar pela manhã, temos também o costume de por vezes
sonhar ainda um pouco, e a passagem para a vigília é feita gradualmente,
de modo que começamos primeiro a nos orientar e, quando de repente
sentimos o raio da manhã pela janela, todo o resto se organiza pouco a
pouco por si mesmo.
Por isso era tão evidente que Anton, mesmo depois de estar já havia
algumas semanas em B., na casa de L., acreditasse pela manhã que ainda
estava sonhando, quando já tinha realmente acordado, porque o prego no
qual, ao despertar de manhã, ele sempre atava tanto as ideias dos dias
anteriores como as de sua vida pregressa, por meio do qual elas adquiriam
coerência e verdade, tinha, por assim dizer, se deslocado; porque a ideia de
lugar não era mais a mesma.
Devemos nos espantar se a mudança de lugar frequentemente
contribui bastante para nos fazer esquecer, como se fosse um sonho,
daquilo que não gostamos de pensar ser real?
Em anos posteriores, especialmente quando já viajamos muito, esse
vínculo das ideias ao lugar se perde em outra coisa. Aonde se vai, ou
vemos tetos, janelas, portas, calçamento, igrejas e torres, ou vemos
campo, floresta, plantações ou charneca. – As diferenças salientes
desaparecem; a terra se torna igual por toda parte. –
Quando Anton caminhava pela rua em B., sobretudo à tarde, no
começo do crepúsculo, muitas vezes era como se de repente estivesse
sonhando. Além do mais, era comum isso acontecer quando caminhava
por uma rua qualquer, que lhe parecia ter uma semelhança distante com
uma rua de H. Então, por um momento, seu estado em H. novamente se
fazia presente; as cenas de sua vida se emaranhavam umas nas outras.
Em seus passeios, sempre sentia uma atração especial para conhecer os
arredores da cidade que ainda não visitara. Sua alma se alargava cada vez
mais, era como se tivesse ousado dar um pulo para fora do estreito círculo
de sua existência; as ideias cotidianas se perdiam, e perspectivas grandes e
agradáveis, os labirintos do futuro, se abriam diante dele.
Mas ele ainda não conseguira reunir num único e completo olhar sua
vida inteira em B., com todas as diversas mudanças. Todas as vezes, o
lugar onde se encontrava lhe recordava com muita força alguma parte
isolada da vida, para deixar ainda lugar para o todo em seu pensamento;
ele sempre girava com as ideias num círculo estreito de sua existência.
E para ter uma imagem clara do todo de sua vida naquele lugar era
preciso praticamente cortar todos os fios, fios que sempre prendiam sua
atenção ao aspecto momentâneo, cotidiano e despedaçado da vida; e que
ele, ao mesmo tempo, se deslocasse para o lugar de onde observava sua
vida em B., antes de seu início, quando ela ainda aparecia diante dele
como um futuro nascente.
Agora ele se encontrava na porta da cidade, o mesmo lugar por onde
havia saído casualmente e por onde havia entrado mais ou menos um ano
e meio antes, passando pela larga estrada real ladeada por salgueiros, e
avistara a sentinela indo e vindo em cima do baluarte.
Esse lugar tinha de ser exatamente aquele que, por meio da repentina
recordação de milhares de ninharias, parecia deslocá-lo outra vez
justamente para o estado em que se encontrava imediatamente antes do
começo de sua vida ali. Tudo o que estava entre os dois momentos tinha
agora de se condensar em sua imaginação como sombras misturadas umas
às outras, tornando-se semelhantes a um sonho. Pois seu atual estar ali na
ponte e olhar para o alto do baluarte, onde a sentinela estava, associavam-se
estreitamente ao seu estar ali e olhar para o alto do baluarte de um ano e
meio antes. Anton imaginava agora o passado e todas as cenas da vida que
levara em B. como, naquela época, um ano e meio antes, ele as havia
pensado como futuro, e a imagem muito viva e a rememoração do lugar
fizeram a lembrança do tempo transcorrido entre os dois momentos se
extinguir ou se atenuar – de qualquer forma, é difícil explicar de outro
modo o fenômeno daquela estranha sensação que Anton teve então, e que
cada um ao menos algumas vezes se lembrará de ter tido na vida.
Mais de dez vezes Anton esteve a ponto de não retornar à cidade, mas
de pegar o caminho à sua frente e voltar para H., se o pensamento de fome
e frio não o tivesse intimidado.
Mas daquele dia em diante ele manteve o firme propósito de não
permanecer muito mais tempo na casa de L., custasse o que custasse. Por
isso ficou mais indiferente a tudo, porque imaginava que aquilo não
duraria muito. O próprio L. começou a ficar tão farto de Anton que
finalmente escreveu para seu pai em H., dizendo-lhe que poderia vir
buscar o filho, pois não seria possível fazer mais nada com ele.
Para Anton, nada poderia ter sido tão bem-vindo quanto a notícia de
que nos dias seguintes seu pai o levaria de volta para casa. Concluiu que
seria enviado de qualquer maneira a uma escola em H. antes que o
deixassem fazer a comunhão, e nesse caso ia querer se destacar para que
prestassem mais atenção nele. Antes ele ambicionava tanto ir para B.,
agora queria voltar para H., e de novo ele se embalava em agradáveis
sonhos do futuro.
Apesar de sua difícil situação, acabou adorando tantas coisas em B. que
muitas vezes certo pesar se misturava a suas agradáveis esperanças,
mergulhando-o numa leve melancolia. – Ficava frequentemente sozinho
às margens do Oker, seguindo com o olhar, até onde sua vista pudesse
acompanhar, algum barquinho que passasse por ali – em seguida, muitas
vezes inesperadamente, era como se tivesse uma visão do futuro sombrio,
mas, quando pensava ter agarrado firme essa agradável ilusão, ela num
instante desaparecia.
Procurou então se divertir ainda uma vez em todos os arredores da
cidade, que até então tinha visitado em seus passeios dominicais,
despedindo-se com pesar deles um após outro, já esperando jamais voltar
a vê-los.
Ouviu ainda várias pregações do pastor P., das quais algumas passagens
isoladas jamais sairiam de sua memória.
Ficou extremamente comovido numa pregação sobre a paixão de Jesus
na qual o pastor P. dizia as seguintes palavras, com afeto sempre
crescente: “Pleno de compaixão, ele olha para baixo, para os seus
assassinos, e reza, e reza, e reza – Pai, perdoai-lhes, pois não sabem o que
fazem!”.
E numa pregação sobre a confissão, feita com os versículos do
evangelho sobre a cura do leproso que deveria se mostrar ao sacerdote, as
palavras dirigidas aos hipócritas que observavam minuciosamente todas
as práticas aparentes da religião, mas carregavam no peito um coração
hostil, ele iniciava cada período com: “Vinde ao confessionário e vos
mostrai ao sacerdote, mas ele não pode olhar dentro de vossos corações
etc.”. Logo também se repetia com bastante frequência uma frase na
pregação, que para Anton era excepcionalmente comovente e lhe soava
assim: Subireis às alturas. – A última palavra, a que era sempre engolida, de
modo que não conseguia entendê-la direito, soava-lhe como o alto, e essa
palavra ou esse som o comovia até as lágrimas toda vez que pensava
novamente nela.
Igualmente atraente era a expressão que ocorria muitas vezes na
pregação do pastor P. – os cumes da razão –, mas essa tinha suas causas
específicas, cuja explanação não será inútil. O coro da igreja, onde o órgão
estava e os alunos cantavam, lhe pareceu sempre algo inalcançável;
ansioso, ele olhava muitas vezes naquela direção e não desejava bem-
aventurança maior do que poder observar uma única vez a maravilhosa
estrutura do órgão e o que mais estivesse ali próximo, pois essas coisas
todas ele só podia admirar a distância. – Essa fantasia tinha parentesco
com outra que trouxera de H. – lá havia certa torre que sempre fora um
objeto de atração incomum para ele; observava-a com encanto e muitas
vezes invejava os músicos da cidade que ficavam lá em cima na galeria,
tocando de manhã e de tarde para os que estavam lá embaixo.
Podia ficar observando horas e horas essa galeria que, lá de baixo, lhe
parecia tão pequena que não alcançaria nem seus joelhos e da qual mal
sobressaía a cabeça dos músicos da cidade que ali tocavam; mas se
destacava por completo o mostrador do relógio, que, segundo várias
pessoas que haviam estado lá em cima, devia ser tão grande quanto uma
roda de carroça, mas que para ele lá embaixo não era maior que a roda de
uma carriola. – Tudo isso estimulava sua curiosidade no mais alto grau, de
modo que por dias inteiros ele muitas vezes não lidava com nada a não ser
com o pensamento e o desejo de poder observar uma vez de perto essa
galeria e o mostrador do relógio.
Agora, na torre em H., podia-se ver, pelas sineiras abertas sobre a
galeria, o balanço dos sinos; e Anton quase devorava com os olhos esse
espetáculo, para ele totalmente novo, pois via a grande máquina de metal,
a qual produzia o som que fazia vibrar tudo, subir e descer
alternadamente sob os pés de pessoas aparentemente bem pequenas que
estavam lá em cima e acionavam os sinos pisando os pedais.
Era como se ele olhasse no mais íntimo das entranhas da torre e se lhe
revelasse, mesmo a distância, a misteriosa engrenagem dos sons
maravilhosos que tantas vezes ouvira emocionado. Mas por causa disso,
em vez de se apaziguar, sua curiosidade era ainda mais estimulada – ele
tinha visto apenas metade do sino, que se erguia com sua abóbada
descomunal, e não toda a sua extensão – desde criança ouvira sobre a
grandeza do sino, e a imaginação ainda aumentava consideravelmente a
imagem em sua alma, produzindo assim as ideias mais romanescas e
exageradas.
Com a dor que sentia nos pés, com a opressão que sofria dos pais, qual
era seu consolo? Qual era o sonho mais agradável de sua infância? Qual era
seu mais ansiado desejo, que muitas vezes o fazia esquecer tudo? – O que,
senão observar de perto o mostrador do relógio e a galeria na torre da
parte nova da cidade de H., com seus sinos?
Por mais de um ano esse jogo de fantasia atenuou as horas mais
sombrias de sua vida – mas, ah, ele teve de abandonar H. sem que seu mais
ansiado desejo fosse realizado. A imagem da torre da parte nova da cidade,
porém, jamais lhe saiu do pensamento, perseguindo-o até B., e em sonhos
noturnos frequentemente lhe vinha a ideia de estar no alto da escada de
milhares de curvas labirínticas, por onde subia na torre, chegava à galeria
e apalpava com prazer indizível o mostrador, e depois não só via, próximo
de seus olhos, interiormente o grande sino como também outros
incontáveis pequenos sinos, ao lado de mais coisas maravilhosas, até
esbarrar a cabeça na borda imensa do grande sino e despertar.
Agora todas as vezes que o pastor P. falava sobre os cumes da razão
Anton pensava encantado na altura de sua querida torre, no sino dentro
dela e no mostrador do relógio – e depois no coro superior onde se situava
o órgão da igreja em B. –, depois de repente despertavam todos os seus
anseios novamente, e a expressão os cumes da razão lhe arrancava lágrimas
de melancolia.
A parte propriamente expositiva das pregações do pastor P., na qual
ele falava com velocidade espantosa, Anton a perdia porque não conseguia
acompanhá-lo de modo algum com o pensamento. Mas, depositando a
esperança na parte exortativa, ele o ouvia com prazer – como se primeiro
as nuvens se aglomerassem para em seguida irromper numa tempestade
benéfica ou numa chuva leve.
Certa vez, porém, foi à igreja com o propósito de anotar em casa a
pregação do pastor P., e de repente era como se, à medida que ouvia, sua
alma se iluminasse, sua atenção tomasse uma nova direção – antes
escutara com o coração, agora pela primeira vez escutava com o
entendimento. Ele não queria apenas ficar comovido com passagens
isoladas, mas abarcar toda a pregação, e começou então a achar a parte
expositiva tão interessante quanto a exortativa. A pregação abordava o
amor ao próximo, como os homens seriam felizes se cada um procurasse
promover o bem de todos os outros, e todos os outros, o bem de cada um.
Essa pregação, com todas as suas partes e subpartes, jamais lhe saiu da
memória, e ele a ouviu com o propósito de anotá-la, o que fez assim que
chegou em casa, e August, para quem ele a leu, ficou completamente
admirado.
A anotação dessa pregação provocara certo desenvolvimento de sua
capacidade de compreensão. Pois desde então suas ideias aos poucos
começaram a se ordenar umas às outras – aprendeu sozinho a refletir
sobre um tema –; procurava novamente expor a ordem de seus
pensamentos, e, já que não conseguia dizê-la a ninguém, escrevia
dissertações, que sem dúvida eram com frequência demasiado estranhas.
Como antes falara com Deus pessoalmente, começou então a se
corresponder com Ele e Lhe escreveu longas preces nas quais Lhe contava
sobre seu estado.
Sentiu-se impelido a escrever mais dissertações, porque lhe fazia muita
falta todo tipo de leitura – e já fazia muito tempo que L. não lhe dava mais
nenhum livro, exceto a Descrição do céu e do inferno, de Engelbrecht, um
artesão de tecidos em Winser, às margens do rio Aller, com que o havia
presenteado.
Não é possível que tenha havido pior fanfarrão no mundo do que esse
Engelbrecht, que havia realmente sido considerado morto, e que, após o
restabelecimento, fez sua velha avó crer que estivera de fato no céu e no
inferno; ela continuou contando a história e assim nasceu o divertido
livro.
O sujeito não tinha vergonha de afirmar que flutuara no mais fundo do
céu com Cristo e os anjos de Deus, e lá pegou o Sol com uma das mãos e a
Lua com a outra, e contou as estrelas do céu.
Não obstante, suas comparações por vezes eram bastante ingênuas –
ele comparou, por exemplo, o céu a uma deliciosa sopa de vinho, da qual
se provaram na terra apenas algumas poucas gotas e que se podia tomar
com colher – e afirmava que a música celestial era superior à terrestre
assim como um lindo concerto comparado à monotonia de uma gaita de
foles ou ao apito de uma corneta de guarda-noturno.
E prosseguia assim, se vangloriando das inúmeras honras recebidas no
céu.
Por falta de alimento melhor, a alma de Anton teve de se contentar
com essa refeição rala, ao menos assim sua imaginação ficava ocupada –
seu entendimento permanecia, por assim dizer, neutro –, ele nem
acreditava nem duvidava daquilo; apenas imaginava tudo com vivacidade.
Enquanto isso, o desdém e o ódio de L. direcionados a Anton
frequentemente acabavam em reprimendas e sovas; ele atormentou a vida
de Anton da maneira mais cruel; delegava-lhe os trabalhos mais baixos e
humilhantes. – Mas nada foi mais ofensivo para Anton do que quando teve
de carregar um peso em suas costas pela primeira vez na vida, um cesto
com chapéus empacotados, pela rua pública, enquanto L. ia à sua frente –
para ele, era como se todas as pessoas na rua o estivessem observando.
Todo o peso que conseguia levar diante de si, ou sob os braços, ou nas
mãos, lhe parecia muito honroso para acreditar que o desonrava. – Mas
ter de caminhar curvo, com a nuca vergada ao jugo como um animal de
carga, enquanto seu dono orgulhoso caminhava à sua frente, isso ao
mesmo tempo abatia todo o seu ânimo e tornava o peso milhares de vezes
mais pesado. Acreditava que tinha de afundar na terra tanto de cansaço
como de vergonha, antes de chegar com seu fardo a determinado lugar.
Esse lugar era o arsenal onde eram entregues os chapéus solicitados
pelo serviço militar. – Anton não desejara ver os sinos e o mostrador do
relógio da torre da parte nova da cidade em H. mais ardentemente do que
ver esse arsenal por dentro, diante do qual passara tantas vezes sem poder
saciar essa vontade. Mas ter conseguido ver o arsenal nesse estado
estragou seu prazer.
Carregar aquele peso nas costas debilitou seu ânimo mais do que
qualquer humilhação que já sofrera e mais do que as reprimendas e as
sovas de L. Era como se ele não pudesse se rebaixar mais; olhava a si
mesmo quase como uma criatura desprezível e descartável: era uma das
situações mais cruéis de toda a sua vida, da qual se recordava de modo
intenso sempre que posteriormente via um arsenal, cuja imagem de novo
crescia logo que ouvia a palavra subjugar.
Quando algo assim acontecia, ele procurava se esconder de todas as
pessoas; cada som de alegria o repugnava; corria para o lugarzinho atrás
da casa, às margens do rio Oker, e muitas vezes olhava melancólico por
horas e horas a correnteza do rio. – Se alguma voz humana o alcançava ali,
vinda de uma das casas vizinhas, ou ele ouvia cantar, sorrir ou falar, era
como se o mundo lhe desse uma risada sardônica, de tão desprezível e
aniquilado ele se achava desde que curvara sua nuca sob o jugo de um
cesto.
Para ele, era uma espécie de deleite soltar junto uma gargalhada
sarcástica quando, em sua lúgubre fantasia, ouvia os outros gargalhando
dele – numa dessas horas terríveis em que, cheio de desespero, desatou
numa risada sarcástica, o desgosto pela vida se tornou tão forte que a
fraca tábua em que estava começou a tremer e a balançar. Seus joelhos
não o sustentavam mais; ele caiu na correnteza do rio – August foi seu
anjo da guarda; havia já algum tempo ele estava atrás dele sem ser
percebido e o puxou pelo braço, tirando-o dali. Entretanto, mais pessoas
haviam chegado – a casa inteira acorreu ao local, e daquele momento em
diante Anton foi considerado uma pessoa perigosa que precisava ser
arredada da casa assim que possível. L. imediatamente escreveu relatando
o ocorrido para o pai de Anton, que chegou a B. catorze dias depois, com a
alma completamente desanimada, a fim de levar de volta a H. seu filho
desnaturado, em cujo coração, segundo julgamento do sr. de F., Satã
construíra um templo indestrutível.
Anton ainda permaneceu alguns dias com o chapeleiro L., e durante
esse tempo, na companhia do pai, resolveu, ainda com zelo redobrado,
todos os seus negócios e procurou nisso tranquilidade para finalizar tudo
o que estava ao alcance de suas forças. Em pensamento, ele se despediu da
oficina, da sala de secagem, do chão de madeira e da igreja de B. – e sua
ideia mais agradável era poder contar à mãe sobre o pastor P. quando
chegasse a H.
Quanto mais se aproximava a hora da despedida, mais leve ficava seu
coração. Em breve sairia de sua situação estreita e opressiva. O amplo
mundo se abria novamente diante dele.
Com August, a despedida foi terna, com L., gélida – era uma tarde de
domingo, com céu nublado, e Anton saiu da casa de L. novamente
acompanhado pelo pai – contemplou mais uma vez a porta preta com
grandes pregos e, confiante, lhe deu as costas para sair mais uma vez
caminhando pela porta da cidade, diante da qual fizera havia pouco tempo
um passeio interessante. Os altos baluartes da cidade e a torre da igreja de
Santo André sumiram rapidamente de seu campo de visão, e ao longe viu,
no escuro entardecer, apenas o Brocken coberto de neve desaparecendo
por entre densas nuvens que pairavam sobre ele.
O coração de seu pai estava frio e fechado para ele; pois o observava
totalmente com os olhos do chapeleiro L. e do sr. de F., como aquele em
cujo coração Satã ergueu seu templo – no caminho, falou-se pouco, mas
continuaram caminhando sempre mais silenciosos, e Anton mal se deu
conta da extensão do caminho, de tão agradável era a conversa com os
próprios pensamentos – quando revisse a mãe e os irmãos, poderia contar
a eles sua sina.
As quatro lindas torres de H. enfim sobressaíram – e, como um amigo
que revemos após uma longa separação, Anton observou a torre da parte
nova da cidade e de repente despertou novamente seu amor pelo sino.
Ele se viu outra vez do lado de dentro das muralhas de H. e tudo lhe era
novo – seus pais haviam se instalado em outra residência, pequena e
escura, numa rua isolada, e enquanto subia as escadas aquilo tudo lhe era
estranho como se fosse impossível fazer parte daquela família.
Mas, se o comportamento do pai com ele fora tão frio e desanimador, a
alegria da mãe e dos irmãos foi tão ruidosa e explosiva que eles correram
em sua direção, olhando atentamente suas mãos rachadas de frio, e pela
primeira vez sentiram pena dele.
Quando, no dia seguinte, ele visitou todos os lugares conhecidos em
que costumava brincar – era como se tivesse envelhecido nesse meio-
tempo e quisesse agora recordar os anos de sua juventude –, topou com
uma trupe de antigos colegas de escola e companheiros de brincadeira,
que lhe apertaram a mão e se alegraram com seu retorno.
Assim que ficou sozinho com sua mãe, o que ele poderia ter feito senão
lhe contar sobre o pastor P.? – De qualquer modo, ela tinha uma
veneração ilimitada por aquilo que dizia respeito aos sacerdotes e pôde
muito bem simpatizar com Anton em seu sentimento pelo pastor P. – Ah!,
mas que horas bem-aventuradas não foram aquelas em que Anton pôde
verter seu coração e falar horas a fio sobre o homem por quem, de todos
os homens da terra, tinha o maior amor e respeito.
Ouviu então os pregadores de H., mas que distância! Entre todos não
encontrou nenhum pastor P., exceto um de nome N., que, quando falava
com intensa emoção, assemelhava-se um pouco. –
Nenhum pregador podia receber a aprovação de Anton se não falasse
ao menos tão rápido quanto o pastor P. – e se o pregador é considerado
orador, tenho minhas dúvidas se Anton estaria totalmente errado. – O
professor tem de falar devagar, o orador, rápido. O professor deve
iluminar gradualmente o entendimento, o orador, penetrar
irresistivelmente o coração. Com o entendimento é preciso proceder
devagar, com o coração, rápido, quando se quer não errar a finalidade – é
claro que ele sempre será um péssimo professor se não for às vezes um
orador, e será um péssimo orador se não for às vezes professor – mas,
quando Fox[10] fala no Parlamento inglês, sobrevém uma velocidade que
não há igual, e nessa impetuosa corrente ele leva tudo consigo,
comovendo a alma de seus ouvintes como o pastor P. fez em sua pregação
sobre o perjúrio.
Num domingo, Anton ouviu com a maior má vontade um pregador de
nome M. pregar na igreja G., em H., porque, não tendo também a menor
semelhança com o pastor P., era praticamente o contrário dele no que
concerne à fala, um pouco lenta e acomodada. Ao chegar em casa, Anton
não conseguiu se conter e desabafou com a mãe o ódio que nutria por esse
pregador – mas que espanto não sentiu quando sua mãe lhe disse que teria
de ir às aulas de religião, confessar e comungar justamente com ele,
porque era seu confessor e ela pertencia à sua paróquia.
Quem diria que Anton um dia poderia amar esse homem pelo qual ele
antes experimentara uma aversão irresistível, que um dia esse homem se
tornaria seu amigo e benfeitor?
Ocorreu, no entanto, um incidente que deixou a alma de Anton, já
inclinada à melancolia, num humor ainda mais soturno: sua mãe estava
com uma doença mortal e durante catorze dias correu perigo de vida. –
Não é possível descrever o que Anton sentiu nessa situação. – Era como se
ele mesmo morresse em sua mãe, tão intimamente sua existência estava
entrelaçada à dela. – Muitas vezes, chorava noites inteiras quando ouvia o
médico dizer que perdera a esperança na recuperação. – Era como se não
lhe fosse verdadeiramente possível suportar a perda da mãe. – O que era
evidente, pois fora abandonado por todos, e só se encontrou novamente
no amor e na confiança dela.
O pastor M. chegou e administrou a comunhão à mãe de Anton – agora
ele acreditava que não havia mais esperança e estava inconsolável –
suplicou a Deus pela vida dela e lhe ocorreu pensar no rei Ezequias, que
recebeu um sinal de Deus de que seu pedido tinha sido atendido e sua vida,
prolongada.
Anton agora procurava também por um sinal desses; será que a sombra
não recuaria no muro do jardim? – e a sombra finalmente pareceu recuar,
pois uma fina nuvem passara diante do sol. Ou sua fantasia fez essa
sombra recuar – mas daquele momento em diante teve uma nova
esperança; e sua mãe começou realmente a se recuperar. Ele também
voltou a viver – e fez de tudo para ser amado pelos pais. Mas com seu pai
não deu certo; este, desde que fora buscar Anton em B., dispensava-lhe um
ódio amargo e implacável, que ele o fazia sentir a cada ocasião – cada
refeição lhe era cobrada, e Anton teve muitas vezes de comer seu pão
literalmente com lágrimas.
Seu único consolo nessa situação eram os passeios só com seus dois
irmãos, com os quais fazia verdadeiras caminhadas pelos baluartes da
cidade, fixando sempre um destino, o que tornava o passeio, por assim
dizer, uma viagem.
Essa era sua atividade preferida desde a mais tenra infância e, quando
ainda mal conseguia andar, já fixava como tal destino a esquina da rua
onde seus pais moravam, limite de suas pequenas caminhadas.
Transformava em montanha o baluarte que escalava, em floresta os
arbustos através dos quais abria trilhas, e em ilha um morrinho de terra
nas valas da cidade; e assim ele e os irmãos, num perímetro de menos de
cem passos, empreendiam frequentemente várias viagens de muitas
léguas – eles se perdiam e erravam na floresta, escalavam penhascos altos
e chegavam a uma ilha inabitada – em suma, com os irmãos, ele realizava
seu mundo romanesco da melhor forma que podia.
Em casa, inventava todo tipo de brincadeiras com os irmãos, muitas
vezes arriscadas – cercou cidades, conquistou as fortalezas construídas
com os livros de Madame Guyon, atirando nelas castanhas selvagens como
bombas. Por vezes, também pregava, e seus irmãos eram obrigados a ouvi-
lo. Na primeira vez, ele construíra um púlpito com as cadeiras, e os irmãos
se sentavam no escabelo diante dele; ficou muito emocionado – o púlpito
desabou, e ele caiu com a cadeira em que estava sobre a cabeça de seus
irmãos. A gritaria e a confusão foram gerais – nisso seu pai entrou e
começou a repreendê-lo energicamente pela pregação. A mãe de Anton
chegou e quis arrancá-lo das mãos do pai; como não conseguiu, sua ira
tomou direção totalmente contrária, e ela começou também a bater com
todas as suas forças em Anton, a quem todas as súplicas e pedidos de nada
ajudaram. Jamais uma pregação ocorreria de maneira tão desastrada como
essa primeira que Anton fez em sua vida. Mesmo em sonho, as lembranças
desse acontecimento frequentemente o deixavam aterrorizado.
Mas isso não o desencorajou, passou a subir com ainda mais frequência
em seu púlpito e lia toda a pregação escrita, com evangelho, tema e
divisões. Pois, desde que começara a copiar pela primeira vez a pregação
do pastor P., havia ficado ainda mais fácil ordenar seus pensamentos e
estabelecer certa ligação entre eles.
Agora não passava um domingo sem copiar uma pregação, e com isso
logo adquiriu tal destreza que era capaz de completar de memória o que
estava faltando, conseguindo passar inteira para o papel uma pregação
que ouvira e da qual copiara o principal.
Anton estava com 14 anos nessa época; e era necessário que, para ser
confirmado ou aceito no seio da Igreja cristã, frequentasse por um tempo
alguma escola na qual fossem ministradas aulas de religião.
Havia então em H. um instituto no qual jovens eram formados como
futuros mestres-escola de pequenos povoados, associado também a uma
escola livre que auxiliava os futuros professores na prática de aulas. Essa
escola, portanto, existia realmente mais em função dos professores do que
os professores em função dela – como os alunos não precisavam pagar
nada, esse estabelecimento era um abrigo para os pobres que lá podiam
levar suas crianças para ter aulas sem pagar nada; e, como não estava tão
disposto a gastar muito com o filho arruinado e excluído da graça divina, o
pai de Anton o levou enfim até lá, onde ele viu de repente se abrir diante
de si uma carreira inteiramente nova.
Foi uma visão solene para Anton, pois logo na primeira aula da manhã
viu todos os futuros professores reunidos com alunos e alunas numa
classe. – O padre que era inspetor dessa instituição catequizava os alunos
todas as manhãs, e a catequese devia servir de modelo aos professores. –
Estes ficavam todos sentados às mesas para anotar as perguntas e as
respostas, enquanto o inspetor ia de um lado para outro, perguntando.
Numa das aulas da tarde, um dos professores tinha de repetir com os
alunos, na presença do inspetor, a catequese que este havia proferido de
manhã.
Copiar tinha já se tornado uma coisa muito fácil para Anton, e, quando
à tarde o professor repetiu a lição da manhã, Anton, mesmo em pé, a tinha
copiado muito melhor em sua lousa do que o professor e, assim, conseguiu
naturalmente responder mais do que este lhe perguntava, o que pareceu
despertar um pouco a atenção do inspetor, deixando Anton extremamente
lisonjeado.
Mas, para que não ficasse envaidecido de seu êxito, o dia seguinte lhe
preparava uma humilhação que praticamente superava aquela em B.,
quando pela primeira vez teve de caminhar com o cesto nas costas.
Na segunda aula da manhã seguinte, havia um exercício de soletração
em que um dos meninos tinha de soletrar uma sílaba sozinho e gritar, e
depois todos os outros, feito uma só boca, tinham de repetir em voz alta.
Essa gritaria zumbindo nos ouvidos e o exercício inteiro pareciam algo
maluco e vertiginoso a Anton, e ele muito se envergonhava de ter de
recomeçar a aprender a soletrar, pois se gabava de já conseguir ler com
estilo – mas logo chegou sua vez de gritar, pois aquilo corria rápido como
um rastilho; e ele ficou sentado e estacou, e de repente toda a bela música
saiu do compasso. – “Agora continue!”, disse o inspetor e, como não houve
prosseguimento, olhou para Anton com um olhar de extremo desprezo,
dizendo: “Garoto idiota!”, e mandou o seguinte continuar soletrando.
Naquele momento Anton acreditou estar aniquilado; de repente, se viu
profundamente rebaixado na opinião de um homem com cuja aprovação
havia contado muito, e que presumia agora que ele não era nem mesmo
capaz de soletrar.
Se em B. seu corpo havia sido subjugado pelo peso que teve de
carregar, muito mais o era agora seu espírito, abatido pelo peso com que
as palavras do inspetor caíram sobre ele: Garoto idiota!.
Mas dessa vez valeu para ele o que se conta sobre Temístocles, que
certa vez em sua juventude também passou por uma reprimenda pública:
non fregit eum, sed erexit [11]. – Desde o dia em que sofreu essa humilhação,
ele se esforçou dez vezes mais do que antes para angariar o respeito de
seus professores, a fim de que o inspetor, que o havia julgado mal, viesse a
se envergonhar e se arrepender da injustiça que havia cometido.
Todas as manhãs, na primeira aula, o inspetor expunha
dogmaticamente os conceitos doutrinais da Igreja Luterana, com todas as
contestações, tanto dos papistas quanto dos reformistas, baseando sua
exposição na interpretação de Gesenius do Catecismo menor de Lutero – a
cabeça de Anton obviamente se encheu de coisas inúteis, mas ele
aprendeu a separar o principal do secundário, aprendeu a proceder
sistematicamente.
Seus cadernos de cópia aumentavam cada vez mais, e em menos de um
ano ele possuía uma dogmática completa com todas as provas tiradas da
Bíblia, juntamente com a polêmica completa contra pagãos, turcos,
judeus, gregos, papistas e reformistas – sabia discorrer, como um livro,
sobre a transubstanciação na eucaristia, sobre os cinco passos da exaltação
e humilhação de Cristo, sobre as principais lições do Alcorão e sobre as
principais provas da existência de Deus contra os espíritos livres.
E então discorria realmente sobre todas essas coisas como um livro. O
material de pregação era farto, e seus irmãos tiveram de ouvi-lo repetir de
novo, do púlpito ameaçador instalado no quarto, todos aqueles cadernos
de anotações.
De quando em quando, aos domingos, ele era convidado para ir à casa
de um primo, onde havia uma reunião de artesãos, e, nessa reunião, tinha
de ficar em pé diante da mesa e fazer uma pregação segundo todos os
conformes, com texto, tema e divisões, na qual refutava em geral a
doutrina papista da transubstanciação, ou os contestadores de Deus, e
enumerava, com muita ênfase, uma após outra, as provas da existência de
Deus, e expunha todos os pontos fracos da doutrina do acaso.
O instituto em que Anton recebia sua instrução estava de tal maneira
organizado que, aos domingos, os adultos, que estudavam para se tornar
mestres-escola, tinham de se dividir em todas as igrejas e copiar as
pregações, as quais eram depois levadas para o inspetor examinar. –
Anton mais uma vez encontrou muito prazer em copiá-las, pois viu que
exercia a mesma ocupação de seus professores, aos quais ele as
apresentava, e eles demonstravam cada vez mais respeito por ele,
tratando-o quase como um igual.
Ao fim e ao cabo, reuniu um grosso volume de pregações copiadas, que
ele considerava um grande tesouro, e duas delas em particular lhe
pareciam verdadeiras preciosidades: a do pastor U., que tinha a maior
semelhança com o pastor P. por causa da velocidade da fala, fora
apresentada na igreja de A. e tratava do Juízo Final. – Com verdadeiro
entusiasmo, Anton expunha amiúde novamente essa pregação a sua mãe,
em que a destruição dos elementos, o desmoronamento da estrutura do
universo, o estremecimento e o receio do pecador, o alegre despertar dos
devotos eram apresentados num contraste que excitava a fantasia até o
mais alto grau – e isso tinha a ver com Anton. Ele não gostava da fria
pregação da razão. A segunda pregação, que ele julgava entre todas a
principal, era a pregação de despedida do pastor L., que ele fez na igreja de
C., e na qual ele mesmo foi interrompido quase do começo ao fim por
lágrimas e soluços, tão querido era por sua paróquia. O páthos comovente,
com o qual esse discurso foi efetivamente proferido, deixou uma
impressão indelével no coração de Anton, e ele não desejou maior bem-
aventurança do que um dia poder também proferir um discurso de
despedida como aquele perante uma quantidade de pessoas que, como
aquelas, choravam com ele.
Em situações assim ele se encontrava em seu elemento e sentia um
prazer indizível na melancólica sensação em que afundara. Ninguém, em
tais ocasiões, sentiu mais o deleite das lágrimas (the joy of grief) do que ele.
Um daqueles abalos que a alma sentia com a pregação tinha mais valor
para ele do que todos os outros prazeres da vida, e em troca dele teria
dado o sono e a comida.
Seu sentimento de amizade também conseguiu novo alimento. Ele
adorava realmente alguns de seus professores e ansiava por se relacionar
com eles – expressou, em especial, sua amizade com um de nome R., que
parecia um homem muito duro e severo, mas na verdade possuía o mais
nobre coração, o que só pode ser encontrado num futuro mestre-escola de
pequenos povoados.
Anton tinha com ele aulas de aritmética e caligrafia pagas por seu pai –
pois aritmética e caligrafia eram ainda as únicas coisas que ele
considerava valer a pena Anton aprender. – Como já grafava as letras
corretamente, R. o mandou logo fazer algumas composições, que
obtiveram sua aprovação, o que para Anton era tão adulador que ele
ousou finalmente abrir seu coração a esse professor e lhe falar aberta e
sinceramente, como durante muito tempo ele jamais pôde falar com
alguém.
Confiou assim ao professor sua insuperável inclinação para o estudo, e
a severidade de seu pai, que o impedia de estudar e queria que ele não
aprendesse nada a não ser um ofício. O rude R. pareceu comovido com
essa confiança e encorajou Anton a se abrir com o inspetor, que talvez
pudesse ainda ser útil para o seu objetivo. Mas o inspetor era o mesmo que
tinha dito a Anton com cara de maior desprezo “garoto idiota!”, quando
este não quis gritar durante o exercício de soletração, algo que Anton
ainda não conseguira esquecer e por isso ainda carregava muitas dúvidas
se deveria revelar sua inclinação aos estudos para o homem que havia
duvidado de que ele fosse capaz de soletrar.
No entanto, o respeito que depositavam em Anton na escola crescia dia
a dia, e ele realizava seu desejo de ser o primeiro e de ter a maior parte das
atenções dirigida a si. Sem dúvida, isso era um alimento para sua vaidade,
de modo que muitas vezes já se via em pensamento como pregador, em
particular quando vestia calça preta – caminhava então com passos dignos
e mais sérios do que o normal.
Nos fins de semana, aos sábados, depois de terem cantado o hino “Deus
me trouxe até aqui”, um dos alunos sempre lia uma longa prece – quando
chegava sua vez, era uma verdadeira festa para Anton. Ele se imaginava no
púlpito, onde organizava suas ideias ainda durante os últimos versos do
hino, e de repente, como o pastor P., com toda a riqueza da eloquência,
começava uma prece fervorosa. Para um menino em idade escolar, sua
declamação ganhava obviamente um páthos muito grande para deixar de
ser notada. O professor, portanto, muito raramente o mandava ler a prece.
Os professores começaram mesmo a ter certa inveja de Anton. Um
deles passou um exercício em que um dos alunos tinha de recontar com as
próprias palavras uma das histórias bíblicas de Hübner. Com toda a sua
fantasia, Anton enfeitou poeticamente essa história e a reproduziu com
adornos de oratória – isso ofendeu o professor, que ao final fez a
observação de que Anton deveria narrar com mais brevidade. Da vez
seguinte, ele resumiu então toda a história em algumas palavras e não
passou de dois minutos para acabar. – Para o professor, foi breve demais, e
mais uma vez ficou aborrecido – e não o deixou mais de modo algum
contar uma história com as próprias palavras. De tarde, os professores que
repetiam a catequese sentiam-se temerosos de lhe fazer perguntas,
porque ele sempre copiara muito mais que eles – ele não conseguiu mais
ter a oportunidade de mostrar suas capacidades a fim de atrair a atenção
para si, seu maior desejo.
Completamente contrariado, pois tinha sempre de ficar sentado mudo
e sem que lhe fizessem perguntas, com os olhos marejados, finalmente se
dirigiu ao inspetor, que reiteradas vezes lhe havia feito perguntas durante
as aulas da manhã e parecia ter mudado seu julgamento sobre ele – o
inspetor perguntou o que lhe faltava, se havia ocorrido alguma coisa
errada com seus colegas de escola, e Anton respondeu: não com seus
colegas de escola, mas com seus professores, sim, estava ocorrendo algo
errado, eles o desprezavam, e ninguém mais lhe fazia perguntas, embora
soubesse mais da matéria do que os outros. Sobre esse ponto, seria preciso
garantir seu direito!
O inspetor tentou dissuadi-lo e justificou os professores por causa da
quantidade de alunos, mas dali em diante começou a prestar mais atenção
nele, a perguntar-lhe de manhã cedinho mais do que era seu costume.
Uma aula por semana era dedicada a exercícios com salmos, dos quais
cada aluno tinha de extrair lições; estas eram escritas numa folha de papel
ou numa lousa e depois lidas em voz alta; muitos acabavam suando
bastante ao fazer isso. – O inspetor estava presente. Anton não anotou
nada. Mas, quando chegou a sua vez, ele leu o salmo inteiro e fez um
discurso meticuloso, ou uma pregação, que durou quase meia hora, de
modo que o próprio inspetor no fim disse: “Basta – não era para explicar o
salmo, mas extrair apenas algumas lições morais”.
Assim se passou quase um ano, e nesse período Anton fez progressos
extraordinários em sua dedicação aos estudos, comportando-se tão
irrepreensivelmente que alcançou seu objetivo de atrair o máximo de
atenção para si, o que acabou provocando também a inveja dos
professores.
Ele se encontrava agora num momento decisivo, em que deveria
escolher uma maneira de viver, e a rigidez de seu pai, que fazia de tudo
para se livrar logo dele, crescia dia a dia, de tal modo que a escola, por
assim dizer, era um refúgio seguro da pressão e da perseguição em sua
casa.
Seu querido professor R. foi promovido a mestre-escola num pequeno
povoado e agora ele não tinha mais um verdadeiro amigo entre os
professores. – Na despedida, ele aconselhou Anton mais uma vez a falar
diretamente com o inspetor – e, como ele não tinha mais tempo algum
para tomar uma decisão, ousou certo dia, com o coração disparado, pedir
ao inspetor que o escutasse, porque tinha algo importante a dizer. – O
inspetor o levou até sua sala, e ali Anton, com uma franqueza muito maior,
abriu todo o seu coração e lhe contou suas sinas – o inspetor lhe descreveu
as dificuldades, os custos do estudo, sem lhe tirar toda a esperança,
prometendo-lhe, no entanto, que faria o que estivesse ao seu alcance para
que Anton pudesse frequentar uma escola de latim sem pagar – mas tudo
isso lhe parecia muito distante, porque não poderia esperar nenhuma
ajuda de seus pais, nem mesmo casa e comida, já que o pai tinha
conseguido um pequeno emprego a quase 10 quilômetros de H., e assim
teria de se mudar dali em bem pouco tempo.
Entretanto, o inspetor falara a favor de Anton com G., o conselheiro
consistorial, sob cuja direção ficava o instituto de pedagogia, e este o
chamou para conversar. Ao ver aquele venerável ancião, de início a
coragem de Anton e seus joelhos tremeram por estar diante dele – mas,
quando o ancião apertou afavelmente sua mão e falou com voz suave, ele
começou a falar com franqueza e revelar sua inclinação para o estudo. – O
conselheiro consistorial G. ordenou que ele lesse em voz alta uma das odes
espirituais de Gellert a fim de ouvir como eram a fala e a voz daquele que
queria se dedicar ao ministério da pregação. Prometeu-lhe arrumar aulas
gratuitas e financiá-lo com livros; mas isso era tudo o que poderia fazer. –
Anton estava tão alegre com essas ofertas que seu agradecimento não teve
limite, e pensou ter escalado num instante todas as montanhas. Pois ainda
não tinha se dado conta de que, além de aulas gratuitas e livros, ele ainda
precisaria de comida, casa e roupa.
Triunfante, correu para casa e anunciou sua sorte aos pais – mas o
quão abatida não ficou sua alegria quando seu pai lhe disse a sangue-frio:
se quisesse estudar, Anton não poderia contar com seu dinheiro – se fosse
capaz de arrumar pão e roupa por conta própria, ele não teria objeções a
fazer contra seus estudos. – Em algumas semanas, ele partiria de H., e se
até lá Anton não estivesse trabalhando com um mestre de ofício, onde é
que ele iria encontrar abrigo? Ou por acaso iria esperar sentado até que
uma das pessoas que o aconselharam com tanto empenho aos estudos
também se importasse com seu sustento?
Triste e pensativo, Anton saiu para passear e refletiu sobre sua sina – a
ideia de estudar estava arraigada em sua alma e deveria impor ainda mais
dificuldades no caminho – vários projetos cruzavam sua cabeça. Ele se
lembrou de ter lido que antigamente, na Grécia, houve um rapazote com
vontade de aprender que cortava lenha e carregava água para o próprio
sustento, a fim de que pudesse se dedicar aos estudos no tempo que
sobrasse. – Ele gostaria de seguir esse exemplo e muitas vezes esteve
decidido a trabalhar por jornada em horas determinadas para ter o tempo
restante ao seu dispor – mas assim ele não poderia se dedicar
regularmente às aulas – todas as suas meditações e reflexões o tornaram
cada vez mais pensativo e indeciso. Enquanto isso, aproximava-se o
momento em que teria de tomar uma decisão. – Ele deveria abandonar a
escola que frequentara até então para ir ainda por um tempo à escola da
guarnição, porque deveria ser confirmado pelo capelão da guarnição M.,
cujas aulas de preparação e de catequese Anton já começava a frequentar,
e de quem chamara atenção por causa de suas respostas. Mas ele mesmo
jamais teria ousado revelar a mágoa de sua alma a esse homem em quem
ainda mal confiava.
Como nenhuma firme perspectiva de estudos se abria para Anton, ele
provavelmente teria tomado enfim a decisão de aprender algum ofício se,
contra as expectativas, uma circunstância aparentemente muito
insignificante não tivesse dado outro rumo ao destino de toda a sua vida
vindoura.
PARTE 2
Para evitar outros juízos errôneos, como alguns que já recaíram sobre este
livro, vejo-me obrigado a esclarecer que aquilo que chamei, por motivos
que considerei fáceis de adivinhar, um romance psicológico é, no sentido
mais próprio da palavra, uma biografia e, até em suas mínimas nuances,
uma das mais verdadeiras e fiéis representações de uma vida humana,
como talvez jamais tenha existido. –
Aquele que tiver algum interesse nessa representação fiel não se
incomodará com aquilo que de início é insignificante e parece ser
irrelevante, mas ponderará que esse tecido de vida humana,
artisticamente trançado, é composto de uma quantidade infinita de
ninharias, as quais se tornam extremamente importantes nessa trama, por
mais que pareçam insignificantes em si mesmas.
Aquele que começa a prestar atenção em sua vida passada muitas vezes
acredita ver primeiramente apenas inutilidade, fios soltos, confusão, noite
e escuridão; no entanto, quanto mais fixa seu olhar, mais a escuridão
desaparece, mais a inutilidade se esvai, os fios soltos voltam a se atar, o
amontoado e o confuso se ajeitam – e o dissonante imperceptivelmente se
resolve em consonância e harmonia.
A circunstância que provocou inesperadamente uma feliz mudança no
destino de Anton Reiser foi a seguinte: ele se engalfinhou na rua com uma
dupla de jovens que caçoaram dele na saída da escola, algo que não queria
mais tolerar; quando eles estavam se pegando pelos cabelos, o pastor M.
passava de repente por ali – e que tamanha vergonha e embaraço não
passou Reiser quando os dois jovens chamaram sua atenção para a
chegada do pastor e lhe exibiram, com certa alegria maliciosa, a ira que o
pastor M. lançaria sobre ele.
Quê?! – Quero me tornar um dia um homem respeitável, como este que
se aproxima – gostaria que neste momento cada um perceba isso em mim,
para encontrar alguém que me aceite e me tire do pó, mas justo agora que
teria a oportunidade de mostrar o que tenho de melhor, sou surpreendido
nessa atitude pelo homem que deverá me dar a confirmação. O que
pensará esse homem de mim, por quem me tomará?
Esses pensamentos atravessavam a cabeça de Reiser, assediando-o
subitamente com tanta vergonha, confusão e desprezo de si que quase
quis enfiar a cabeça na terra. Mas reuniu forças, e a autoconfiança, sob a
vergonha asfixiante, abriu caminho novamente, insuflando-lhe ao mesmo
tempo coragem e confiança no pastor M. – rápido, tomou coragem,
aproximou-se sem rodeios dele e lhe dirigiu a palavra na rua pública,
dizendo-lhe que era um dos garotos que frequentaram seu catecismo, e
que o pastor M. não deveria ficar bravo com ele por ter brigado com os
dois jovens, aquilo não fazia absolutamente parte de sua índole; os jovens
não lhe davam trégua; e isso nunca mais voltaria a acontecer.
O pastor M. estava muito surpreso por ser tratado na rua daquela
maneira por um garoto que havia brigado com uma dupla de jovens – após
breve pausa, ele respondeu que, sem dúvida, é muito incorreto e
indecente se engalfinhar, mas não teria mais nada a dizer se ele deixasse
de fazer isso no futuro; a seguir, quis saber também seu nome e o de seus
pais, perguntou-lhe em que escola havia estudado etc., e com muita
amabilidade se despediu dele – quem poderia estar mais contente que
Reiser? E como seu coração estava aliviado por se acreditar novamente
livre daquela situação perigosa.
E teria ficado ainda muito mais feliz se soubesse que aquele caso
fortuito poria fim a todas as suas receosas preocupações e seria o primeiro
alicerce de sua felicidade futura. – Pois desde aquele momento o pastor M.
tinha tomado a decisão de se inteirar mais sobre aquele jovem ser humano
e se encarregar pessoalmente dele, porque supôs, não sem motivo, que o
comportamento do jovem Reiser em relação a ele não era fingimento –
isso pressupunha um modo de pensar pouco comum num garoto daquela
idade – e o semblante dele parecia garantir que não era fingimento.
Na tarde do domingo seguinte, durante o catecismo, o pastor M. lhe fez
muito mais perguntas que de costume; de certo modo, Reiser já alcançara
um de seus desejos, o de poder ao menos falar de alguma forma
publicamente na igreja diante do povo reunido, uma vez que respondia às
perguntas do catecismo do pastor em alto e bom som, de modo que se
destacava bastante de todos os outros, pois acentuava corretamente as
palavras, ao passo que as respostas dos outros eram recitadas num tom
escolar comum e cantado.
Encerrado o catecismo, o pastor M. lhe acenou à parte, ordenando-lhe
que viesse até ele na manhã seguinte – uma alegre inquietude se apoderou
de repente de seu pensamento, já que alguém parecia querer ter um
cuidado maior com ele. Ficou sem dúvida lisonjeado com o fato de o pastor
M. começar a prestar mais atenção nele por suas respostas; e então se
propôs a confiar nesse homem e a lhe revelar todos os seus desejos.
Quando, na manhã seguinte, após uma noite quase insone, ele foi se
encontrar com o pastor M., este primeiro lhe perguntou a que tipo de vida
pensaria em se dedicar, abrindo-lhe caminho para aquilo que ele mesmo já
planejara. – Reiser lhe revelou seus planos. – O pastor M. mostrou-lhe as
dificuldades, mas ao mesmo tempo também o encorajou, e começou a
estimulá-lo efetivamente, prometendo-lhe que seu único filho, que estava
na primeira série do liceu em H., lhe daria aulas de latim, as quais
começariam ainda naquela mesma semana.
Mesmo assim, Reiser acreditava ler nas feições e no comportamento do
pastor M. que este ainda guardava alguma coisa importante a lhe ser dita a
seu tempo: essa suposição foi reforçada pelas misteriosas frases do
sacristão da guarnição, cujas aulas ele também frequentava, e que lhe
oferecia sempre uma cadeira quando chegava, ao passo que os outros se
sentavam nos bancos. – Quando a aula acabava, o sacristão costumava
então lhe dizer: esteja muito vigilante, e pense, estão sempre atentos em
você. – Grandes coisas estão sendo tramadas para você! E outras coisas
mais; Reiser com isso começou sem dúvida a acreditar ser uma pessoa
mais importante do que era até então, e sua pequena vaidade recebeu
muito mais alimento, manifestando-se amiúde de maneira bastante tonta
em seu andar e em suas feições, quando por vezes caminhava pela rua
concentrado em seus pensamentos, com toda a seriedade e dignidade de
um professor do povo, como já havia feito em B., sobretudo quando estava
vestido de colete e calças pretos. Em sua caminhada, havia adotado como
modelo o andar de um jovem religioso que outrora foi pregador na casa de
misericórdia em H. e vice-reitor no liceu, porque este tinha algo no modo
de portar o queixo que agradava muito especialmente a Reiser.
Ninguém jamais foi mais feliz desfrutando qualquer coisa do que
Reiser naquele tempo à espera das grandes coisas que deveriam lhe
acontecer. Essa expectativa excitava demasiadamente sua imaginação. E
agora que se aproximava cada vez mais o momento em que deveria
receber a eucaristia despertavam novamente todas as ideias exaltadas
sobre esse assunto que ele já havia enfiado na cabeça em B., alimentadas
pelas aulas do sacristão da guarnição, que, ao preparar os que iam receber
a eucaristia, lhes descrevia o céu e o inferno de maneira tão medonha que
seus ouvintes eram tomados de sobressalto e pavor, aos quais, porém,
vinha se associar aquela agradável sensação com a qual estamos em geral
habituados a ouvir algo que assusta e aterroriza, e ele sentia novamente a
satisfação de ter tocado seus ouvintes, o que o fazia verter lágrimas de
deleite, tornando ainda mais solene toda a cena daquele anoitecer em que
ele se encontrava entre os seus ouvintes na sala iluminada da escola.
O pastor M. também dava semanalmente algumas aulas em que
preparava aqueles que deveriam receber a eucaristia, mas o que dizia não
chegava perto dos discursos emocionantes de seu sacristão, embora, para
Reiser, parecessem mais bem proferidas e muito mais coerentes. – Nada
deixou Anton mais lisonjeado do que a ocasião em que o pastor M.
explicou a ideia de que os crentes são os filhos de Deus, citando o exemplo
de como iria tratar com mais esmero um de seus muitos jovens ouvintes,
convidando-o especialmente para vir a sua casa e conversando com ele –
este, sim, seria também mais próximo dele do que todos os outros, assim
como os filhos de Deus também estariam mais próximos do Senhor do que
o restante dos homens. Reiser acreditou então ser o único, entre seus
companheiros de escola, ao qual o pastor M. prestaria mais atenção – mas,
por mais que isso alimentasse sua vaidade, logo em seguida o enchia outra
vez de uma melancolia indescritível, já que todos os outros não fariam
parte dessa alegria que somente a ele fora dada, e ficariam, por assim
dizer, sempre excluídos do convívio mais íntimo com o pastor M.
Melancolia que ele recordou já ter tido uma vez nos primeiros anos de sua
infância, quando sua prima lhe comprara um brinquedo numa loja, e ele,
ao sair de casa, o carregava nas mãos; diante da porta da casa estava
sentada uma menina vestindo uma roupa esfarrapada, mais ou menos da
sua idade, que, completamente admirada, exclamou diante do belo
brinquedo: “Ah, Senhor Deus, como isso é lindo!”. Reiser deveria ter
naquela época 6 ou 7 anos – apesar da enorme admiração, o tom de
paciente privação com o qual a menina esfarrapada disse as palavras “Ah,
Senhor Deus, como isso é lindo!” invadiu a alma de Reiser. A pobre menina
era obrigada a ver toda aquela beleza exposta diante de si e não podia nem
ao menos pensar em ter sequer um pedaço dela. Estava excluída, por
assim dizer, para sempre do prazer dessas coisas preciosas – como seria
bom se ele tivesse voltado e presenteado a menina esfarrapada com o
precioso brinquedo, se sua prima o tivesse admitido! – depois, todas as
vezes que pensava nisso, sentia um remorso amargo de não tê-lo dado
imediatamente à menina. Era esse tipo de melancolia piedosa que Reiser
sentia ao acreditar ser o único agraciado com os favores do pastor M., o que
punha seus companheiros de escola, sem que tivessem merecido, numa
posição bem abaixo da sua.
Era exatamente essa sensação que mais tarde se despertava em sua
alma sempre que chegava às palavras da primeira écloga de Virgílio: nec
invideo[12] etc. Quando ele se colocava no lugar do pastor feliz, que pode
tranquilamente se sentar à sombra de sua árvore, ao passo que o outro
tem de virar as costas para sua casa e seu campo, ele sempre se sentia,
com o nec invideo deste último, como a menina esfarrapada quando disse:
“Ah, Senhor Deus, como isso é lindo!”.
Para relacionar aquilo que, segundo o meu entendimento, está ligado,
serei obrigado aqui a retomar algumas coisas na vida de Reiser e antecipar
outras. Farei isso com muito mais frequência; e a quem compreendeu meu
propósito não preciso pedir desculpas por esses saltos aparentes.
Vê-se facilmente que a vaidade de Anton Reiser foi alimentada em
exagero pelas circunstâncias que agora conjuravam para tornar sua
pessoa importante para ele mesmo. Ele precisava novamente de uma
pequena humilhação, e esta não tardou em vir. Gabava-se, não sem
motivo, de ser o primeiro entre todos os que foram confirmados pelo
pastor M. Sentava-se também à frente e estava certo de que ninguém iria
disputar esse lugar com ele. Mas de repente um jovem bem-vestido, de sua
idade e nível de instrução, que também frequentava as aulas do pastor M.,
o relegou à sombra tanto por seus modos refinados como pela especial
atenção com que o pastor M. o tratava, passando imediatamente a ocupar
o primeiro lugar.
O doce sonho de Reiser de ser o primeiro entre os seus colegas de
escola havia de repente desaparecido. Ele se sentiu humilhado, rebaixado
e igual a todos os outros. – Inteirou-se sobre seu temível rival com o criado
do pastor M., constatando que era filho de um alto funcionário público e
estava hospedado na casa do pastor M., e que também seria confirmado
juntamente com todos os outros. A mais negra inveja se apoderou durante
um tempo da alma de Anton; a sobrecasaca azul com o colarinho de
veludo que o filho do alto funcionário público vestia, os modos refinados,
o belo cabelo o abateram e o deixaram mais insatisfeito consigo mesmo;
mas logo se reacendeu nele o sentimento de que aquilo era errado, e ficou
ainda mais insatisfeito com sua insatisfação.
Ah, ele não precisaria ter invejado o pobre rapaz, cujo sol da sorte em
pouco tempo não brilharia mais. Dentro de catorze dias, chegou a notícia
de que o pai fora demitido por deslealdade em serviço. Assim, não pôde
mais continuar pagando a hospedagem para o jovem; o pastor o enviou de
volta a sua família, e Reiser recuperou o primeiro lugar. Não pôde reprimir
sua alegria pelas consequências que esse acontecimento tinha para ele, e
ele próprio se censurou por isso – procurou obrigar-se a ter compaixão,
porque considerava isso certo – e a reprimir a alegria, porque a
considerava errada; mas, apesar de tudo, ela predominou, e, no fim, viu
que de nada adiantava ir contra o destino que quis fazer o jovem infeliz.
Aqui a pergunta é: se o destino do jovem de repente tivesse mudado de
novo, Reiser espontaneamente deixaria, sorridente e simpático, que o
jovem ocupasse o primeiro lugar, ou seria preciso se esforçar para ter esse
sentimento, porque o considerava correto e nobre? – A sequência da
história talvez responda a essa questão!
Todo fim de tarde Reiser tinha aula de latim com o filho do pastor M., e
ele realmente avançou muito, de sorte que em quatro semanas já era
capaz de interpretar e traduzir Cornélio Nepos muito bem. Foi delicioso
para ele quando, por exemplo, o sacristão se aproximou e perguntou o que
os dois senhores estudantes faziam – e quando, à época, o pastor M. casou sua
filha mais velha com um jovem pregador, e este ensinou o catecismo a
Anton numa tarde de domingo, e parecia prestar cada vez mais atenção
em Reiser conforme o ouvia responder. Que momento encantador para
Reiser quando ele mesmo se dirigiu ao pastor M. após o culto, e o genro do
pastor o tratou com o maior respeito, dizendo-lhe que ainda na igreja,
quando Reiser foi o primeiro a lhe responder, ele já sabia que aquele bem
poderia ser o jovem de quem o sogro lhe falara muito bem, e estava
contente de não ter errado.
Anton jamais tivera em sua vida sensação semelhante à causada por tal
tratamento respeitoso. – Como não aprendera o linguajar do modo de vida
refinado, e como também não queria se expressar rudemente, ele usava
naquelas ocasiões o linguajar dos livros, que, em seu caso, vinha do
Telêmaco, da Bíblia e do catecismo, o que dava muitas vezes às suas
respostas um raro traço de originalidade, pois nessas ocasiões costumava
dizer, por exemplo, que não conseguia resistir ao impulso de estudar que o
arrebatava incessantemente, e que era seu desejo, de todos os modos
possíveis, ser digno do amparo que lhe tinham proporcionado,
conduzindo sua vida até o fim em completa bem-aventurança e honradez.
Nesse meio-tempo, o conselheiro consistorial G., ao qual Reiser já
havia se dirigido previamente, tinha lhe conseguido a possibilidade de
frequentar de graça a Escola Básica da Cidade Nova, como era chamada. –
No entanto, o pastor M. disse que isso não poderia acontecer agora; Reiser
deveria continuar tendo aulas com seu filho até ser confirmado, para
poder então ir diretamente à Escola Superior da Cidade Velha, onde o
diretor se encarregaria dele; e, pela rivalidade que costumava reinar entre
as duas escolas, seria melhor que não frequentasse inicialmente a
primeira. – O próprio Reiser teria de dizer isso ao conselheiro consistorial
G., recusando o curso gratuito que ele lhe oferecera, o que acabou por
melindrar o conselheiro, que primeiro tratou Reiser de modo duro e por
fim o dispensou, dizendo-lhe, como forma de incentivo, que cuidaria dele
de outro modo.
Parecia então que de repente todos estavam interessados no destino de
Reiser, com o qual antes ninguém se preocupara. Ouviu falar da rivalidade
entre as escolas por sua causa. – O conselheiro consistorial G. e o pastor M.
pareciam de certa forma disputá-lo a fim de saber quem cuidaria mais
dele. O pastor M. saiu-se com a seguinte ideia: ele deveria dizer apenas ao
conselheiro consistorial G. que, em seu nome, as providências já haviam
sido tomadas, e providências ainda seriam tomadas de modo que Anton
estivesse suficientemente preparado para a Escola Superior da Cidade
Velha, sem antes frequentar a Escola Básica da Cidade Nova. – Portanto, as
providências deveriam ser tomadas por causa de um garoto cujos próprios
pais não o tinham considerado sequer digno de atenção.
Por enquanto não posso dizer com que sonhos e perspectivas radiantes
de futuro isso preencheu a fantasia de Reiser. Sobretudo quando ainda
persistiam as misteriosas alusões do sacristão e a reserva do pastor M., por
meio da qual este parecia silenciar algo importante a Reiser. –
Finalmente veio a saber-se que, por recomendação do pastor M., o
príncipe… se encarregaria do jovem Reiser e lhe prometia uma soma
mensal de x táleres reais[13] para seu sustento. De uma hora para outra,
Reiser se viu livre de todas as suas preocupações quanto ao futuro; o doce
sonho de uma felicidade ardentemente almejada, mas que jamais
esperaria encontrar, havia sido realizado quando menos esperava, e ele
podia agora se entregar a suas mais agradáveis fantasias sem temer ser
perturbado pela carência e pela miséria.
Seu coração realmente se derramava em agradecimentos à
Providência. – Nenhuma noite se passou sem que tivesse incluído o
príncipe e o pastor M. em suas preces noturnas – e muitas vezes verteu,
em silêncio, lágrimas de alegria e de gratidão ao refletir sobre essa feliz
mudança de seu destino.
O pai de Reiser não fez mais nenhuma objeção aos estudos do filho, tão
logo ouviu que não lhe iriam custar nada. Além disso, chegou o momento
em que teve de assumir seu pequeno posto num lugar a quase 10
quilômetros de H., e seu filho já não lhe seria um peso. Após a partida dos
pais, restou uma dúvida: na casa de quem Reiser moraria e comeria? O
pastor M. não parecia estar inclinado a levá-lo para sua casa. Era preciso
pensar então em outro lugar de pessoas respeitáveis para hospedá-lo. E
um oboísta do regimento do príncipe…, chamado F., se ofereceu
espontaneamente para que Reiser viesse morar com ele sem pagar nada.
Um sapateiro em cuja casa seus pais certa vez moraram, outro oboísta, um
músico da corte, um cozinheiro e um bordador de seda, cada qual lhe
ofereceu uma refeição por semana.
Isso de certo modo diminuiu a alegria de Reiser; ele pensou que aquilo
que o príncipe lhe daria seria suficiente para seu sustento sem que
precisasse comer o pão em mesa estranha. Mas também não diminuiu a
sua alegria sem motivo, pois, como veremos a seguir, muitas vezes esteve
exposto a uma situação extremamente penosa e preocupante, de modo
que teve de comer muitas vezes seu pão literalmente com lágrimas. – Pois,
se todos se apressavam em prestar-lhe favores, cada um acreditava por
isso mesmo ter conquistado o direito de vigiar sua conduta e dar-lhe
conselhos sobre o seu comportamento, conselhos que ele deveria aceitar
cegamente se não quisesse irritar seu benfeitor. Agora Reiser dependia de
tantas pessoas, de tão distintos modos de pensar, que cada um, ao lhe dar
uma refeição, ameaçava abandoná-lo se ele não seguisse o conselho, que
muitas vezes contradizia diretamente o conselho de outro benfeitor. Para
um, seu cabelo estava muito bem cortado, para outro, estava mal; para
um, andava malvestido, para outro, muito bem-vestido para um garoto
que vivia da ajuda de um benfeitor – e havia ainda outras humilhações e
menosprezos afins, aos quais Reiser estava mais ou menos exposto por
desfrutar a refeição, e aos quais certamente está mais ou menos exposto
todo jovem em idade escolar que tem a infelicidade de buscar seu sustento
nessas refeições gratuitas e de comer ao longo da semana ora na casa de
um, ora na de outro.
Tudo isso foi obscuramente pressentido por Reiser quando aceitou
todas aquelas refeições gratuitas em seu nome e não recusou nenhum
favor de quem quisesse lhe oferecer. Mas jamais costuma faltar boa
vontade quando as pessoas se julgam úteis para o estudo de um jovem – o
que desperta um entusiasmo bastante especial. Cada um pensa
obscuramente: quando um dia esse homem estiver no púlpito, isso
também será obra minha. Surgiu assim uma verdadeira disputa por Reiser,
e qualquer um, até o mais pobre, queria se tornar seu benfeitor de uma
hora para outra, como um pobre sapateiro que se destacou ao lhe oferecer
o que comer todas as tardes de domingo – tudo isso foi aceito com alegria
em seu nome, e pelos cálculos de seus pais, junto com o oboísta e a esposa,
Reiser iria ficar muito contente por ter o que comer todos os dias da
semana, e eles poderiam economizar o dinheiro que o príncipe dava a ele.
Ah! – as brilhantes expectativas que Reiser havia construído sobre sua
felicidade futura voltaram a se eclipsar. Mas a agradável vertigem inicial,
na qual o cuidado ativo e a participação de tantas pessoas em seu destino o
haviam mergulhado, ainda durou um bom tempo.
O imenso campo da ciência se abria diante dele – durante todo o dia, o
seu único pensamento era o seu futuro empenho, como empregar bem
cada hora de seus futuros estudos, e o deleite que aí encontraria, os
admiráveis progressos que faria, por meio dos quais ganharia fama e
aprovação: ele se levantava e ia dormir com essas doces ideias – mas não
sabia que a asfixia e o rebaixamento de sua situação externa estragariam
tanto seu prazer. Estar sempre alimentado e vestido era simplesmente
necessário a um jovem que deve ter coragem para se dedicar aos estudos.
Não era o caso de Reiser. Queriam economizar em seu nome, mas enquanto
isso o largaram realmente na miséria.
Seus pais também partiram, e ele se mudou, com seus poucos objetos
pessoais, para a casa do oboísta F., cuja mulher ajudara a cuidar dele desde
a infância. – O modo de vida que imperava na casa desse casal sem filhos
obedecia à maior disciplina que talvez jamais tenha existido em qualquer
outra parte. Não havia nada ali, nem escova nem tesoura, que não tivesse
seu lugar corretamente determinado havia anos. Não havia irromper da
manhã em que o café não fosse tomado às oito horas e a oração matinal
lida às nove, sempre de joelhos; enquanto a sra. F. lia Benjamin
Schmolke[14] em voz alta, Reiser também tinha de ficar de joelhos. À noite,
depois das nove, cada um igualmente se ajoelhava diante de sua cadeira, e
a oração noturna era lida também dos textos de Schmolke, e em seguida
iam para cama. Essa era a ordem inviolável que vinha sendo observada por
essas pessoas havia já quase vinte anos em que viviam naquele mesmo
aposento. E certamente estavam muito felizes com ela, mas não poderiam
ser perturbados por absolutamente nada, sem que ao mesmo tempo sua
paz interior, em grande parte baseada nessa ordem inviolável, sofresse
com isso. Não haviam ponderado direito quando decidiram colocar
naquele seu aposento mais uma pessoa que de maneira alguma podia se
adaptar inteiramente, da noite para o dia, à ordem que tinham
estabelecido havia vinte anos e que se transformara numa segunda
natureza.
Não demorou muito, portanto, para começarem a se arrepender – eles
mesmos haviam se impingido um fardo que se tornou mais pesado do que
haviam imaginado. Como só tinham uma sala e uma alcova, Reiser teve de
dormir na sala, e toda manhã, assim que nela entravam, tinham uma
inesperada visão de desordem, com a qual não estavam acostumados e que
realmente incomodava a paz deles. – Anton logo se deu conta disso, e a
ideia de ser um incômodo lhe era tão assustadora e penosa que raramente
ousava tossir quando via no olhar de seus benfeitores que, no fim das
contas, era um peso para eles. – Pois era obrigado a guardar suas poucas
coisas em algum canto, e onde quer que as pusesse elas perturbavam de
algum modo a ordem, porque cada canto já estava destinado a alguma
outra coisa. Era-lhe impossível, porém, desvencilhar-se novamente dessa
situação penosa. Tudo isso o mergulhava muitas vezes por horas a fio
numa melancolia indescritível, que ele não conseguia explicar para si
mesmo, atribuindo-a inicialmente apenas à falta de hábito com sua nova
moradia.
Mas o que o abatia era tão somente a ideia humilhante de ser um
incômodo. Se não tivera muita alegria nem com os pais nem com o
chapeleiro L., tinha certo direito de estar lá. Com os primeiros, porque
eram seus pais; com o segundo, porque trabalhava. Mas aqui a cadeira em
que se sentava era um favor. Seria bom que todos aqueles que querem
realizar boas ações a alguém considerassem isso e antes examinassem bem
se vão se comportar de um modo que sua decisão jamais chegue a ser um
tormento para o necessitado.
O ano em que Reiser passou nessa situação, embora todos o julgassem
feliz, foi, em certas horas e em certos momentos, um dos mais dolorosos
de sua vida.
Talvez pudesse ter tornado seu estado mais agradável se tivesse tido
apenas o que se denomina em muitos jovens de índole insinuante. Mas faz
parte também de uma índole insinuante certa autoconfiança, algo que
desde criança lhe fora tirado; para nos tornarmos agradáveis, temos antes
de ter a ideia de que também podemos ser agradáveis. – A autoconfiança
de Reiser tinha de ser primeiro despertada por bondade atenciosa, antes
de ele ousar se tornar querido. – E logo que notava nos outros uma
aparência de insatisfação com ele tinha então grande tendência a duvidar
da possibilidade de alguma vez se tornar objeto do amor ou do respeito
deles. É certo, portanto, que fazia parte disso um imenso esforço seu para
se mostrar como objeto de atenção, sem saber como as pessoas reagiriam
à sua impertinência.
Sua prima muitas vezes lhe profetizara como a falta daquela índole
insinuante iria prejudicá-lo em seu progresso no mundo. Ensinou-lhe
como deveria falar com a sra. F. e dizer: “Querida sra. F., seja a senhora por
ora minha mãe, pois eu estou sem pai nem mãe e quero também gostar da
senhora como a uma mãe”. – Mas, quando Reiser foi dizer essa frase, era
como se as palavras tivessem morrido em sua boca; o resultado teria sido
extremamente desajeitado se quisesse dizer algo assim. Nenhum
comportamento atencioso ou bondoso de qualquer pessoa para com ele
jamais havia conseguido tirar frases tão ternas de sua boca; sua língua não
tinha nenhuma maleabilidade para tanto – e foi impossível seguir os
conselhos da prima. Quando seu coração se inflamava, ele procurava
frases por todos os lugares onde as pudesse encontrar. Mas ele não
aprendera a falar a língua do modo de vida refinado. – O que se denomina
índole insinuante teria sido bajulação rastejante para ele.
À medida que foi chegando o tempo em que deveria ser confirmado e
sua profissão de fé ser feita publicamente na igreja – um grande alimento
para sua vaidade –, Reiser imaginou as pessoas reunidas, ele como o
primeiro entre seus colegas de escola que, por meio da voz, dos
movimentos e dos gestos, atrairia toda a atenção para si com suas
respostas. – O dia amanheceu e Reiser acordou como um general romano
acordaria no dia em que um triunfo estaria prestes a acontecer. – Ele foi
muito bem penteado por seu primo, um peruqueiro, e vestiu uma
sobrecasaca azulada e calças pretas, traje que se assemelhava mais ao dos
religiosos.
Mas assim como o triunfo do maior general foi por vezes estragado por
inesperada humilhação, de modo que só podia desfrutar parte dele, assim
também aconteceu com Reiser no dia de sua fama e esplendor. – Nesse dia,
tiveram início suas refeições – a primeira, o almoço, com o sacristão da
guarnição, e a segunda, o jantar, com o pobre sapateiro – e embora o
sacristão tivesse o coração de uma generosidade sem igual e contasse o
percurso de sua vida a Reiser – como ele, um estudante pobre, participara
também do coro pela primeira vez, mas já com seus 17 anos trocara o
sobretudo azul pelo preto –, sua esposa era a própria inveja e má vontade,
e cada olhar dela envenenava o pedaço de comida que Reiser punha na
boca. No primeiro dia, ela não deixou transparecer, mas isso se tornou
bastante claro, de modo que Reiser, com o coração abatido sem bem saber
por quê, foi à igreja e sentiu apenas em parte a alegria que ele fantasiara
ansiosamente para esse dia tão desejado. – Ele devia ir até lá para
pronunciar, por assim dizer, sua profissão de fé. –
Pensando sobre isso, veio-lhe a lembrança de que algum tempo antes
seu pai tinha contado em casa como prestara juramento em razão do novo
serviço, tendo sentido tudo menos indiferença – e, a caminho da igreja,
Reiser parecia estar indiferente ao juramento que deveria prestar. – A
partir do ensinamento recebido na religião, ele tinha uma ideia muito
elevada de juramento e considerava sua indiferença altamente punível.
Ele então se obrigava a não ser indiferente, mas a ser comovido e sério
nesse passo importante, e estava insatisfeito consigo por não se sentir
mais comovido; mas os olhares da mulher do sacristão continuavam
afugentando todas as sensações suaves e agradáveis de seu coração.
Não pôde se alegrar realmente, porque ninguém tinha o menor
interesse em sua alegria e porque pensou que naquele mesmo dia teria de
comer em mesa estranha. Assim que entrou na igreja e se aproximou do
altar, ocupando o primeiro lugar da fila, tudo isso aqueceu novamente sua
fantasia – mas ainda estava longe de ser o que havia esperado. – E
justamente não lhe coube o que havia de mais importante e solene, ser
aquele que devia fazer a profissão de fé em nome dos outros, ele que já
havia se exercitado na fisionomia, no movimento e no tom com que
pretendia pronunciar a profissão de fé.
Anton pensou que o pastor M. lhe pediria que fosse à tarde a sua casa,
mas ele não o fez – e enquanto seus colegas de escola iam para casa, ao
encontro da recepção carinhosa de seus pais, Reiser vagou sozinho e
abandonado pela rua onde o diretor do liceu o encontrou, lhe dirigiu a
palavra e perguntou se ele não se chamava Reiserus. – E, quando Reiser
respondeu que sim, o diretor lhe apertou amigavelmente a mão; e disse
que já havia escutado muitas coisas boas a seu respeito vindas do pastor
M., e que logo mais eles se conheceriam melhor.
Foi um inesperado incentivo esse homem, o qual já havia observado
tantas vezes com profundo respeito, honrá-lo na rua cumprimentando-o e
chamá-lo Reiserus!
O diretor B. era realmente um homem capaz de inspirar respeito e
amor a qualquer um que o visse. Vestia-se com elegância, mas com
decência, portava nobreza, era bem instruído, tinha uma cara alegríssima,
mas disposta a mostrar a mais rigorosa seriedade quando quisesse. Era um
pedagogo exatamente como deveria ser a fim de afastar dessa profissão,
marcada pelo pedantismo habitual, o desprezo do mundo refinado.
Só Deus sabe como ele chegou a chamar Reiser de Reiserus, mas
bastava-lhe que assim o chamasse, e Reiser ficava não pouco lisonjeado de
ver seu nome rebatizado pela primeira vez com us. – Ele sempre havia
associado a ideia de dignidade e de espantosa erudição a essa terminação
do nome e, em pensamento, já se ouvia sendo chamado de o sábio e famoso
Reiserus.
Essa denominação, com a qual o diretor B. o honrara de maneira tão
casual, lhe voltou muitas vezes à mente, e era por vezes também uma
espora para seu empenho; pois o us em seu nome despertou de repente
toda uma série de ideias – tornar-se um dia um sábio famoso, como
Erasmus de Roterdã – e outros, cujas biografias lera parcialmente e cujos
retratos vira gravados em cobre.
À noitinha, ele foi à casa do sapateiro pobre e ao menos ali foi acolhido
com um olhar mais amistoso que o da esposa do sacristão. O sapateiro
Heidorn, assim se chamava seu benfeitor, tinha lido os escritos de Tauler e
outros semelhantes, e por isso falava certo tipo de língua culta com a qual
ele muitas vezes assumia certo tom de pregação. Normalmente citava um
tal Periandro, quando fazia afirmações como: “o homem tem de entregar-
se apenas a Deus”, diz Periandro – e assim tudo o que o sapateiro Heidorn
dizia, também havia dito Periandro, que de fato não passava de um
personagem alegórico, o qual aparece na Viagem de um cristão de Bunyan
ou em qualquer outro lugar. Mas o nome Periandro soava bem doce aos
ouvidos de Reiser. Ele imaginava algo sublime, misterioso, e sempre
gostava de ouvir o sapateiro Heidorn falar de Periandro.
Mas o bom Heidorn o segurara até um pouco mais tarde, e, quando ele
chegou em casa, seu anfitrião e sua anfitriã já tinham lido a oração
noturna, e não puderam ir imediatamente para cama, fato que
provavelmente não acontecia havia muitos anos. Essa foi a causa de Reiser
ter sido recebido de modo bastante frio e sombrio, e de ter ido dormir com
o coração triste nesse dia em que por tanto tempo depositara ansiosas
expectativas.
Nessa semana, pela primeira vez, Anton teve de comer cada dia num
lugar, e, na segunda-feira, começou pelo taberneiro, em que fez sua
refeição com outras pessoas que pagavam por ela e não se preocupavam
nem um pouco com ele. – Isso era o que ele desejava e sempre ia lá com o
coração mais leve.
Para o almoço de terça-feira, ele ia à casa do sapateiro S., onde seus
pais haviam morado, e era acolhido da maneira mais carinhosa e amistosa.
Aquelas boas pessoas o haviam conhecido ainda criancinha, e a mãe idosa
do sapateiro S. sempre dizia que o jovem ainda se tornaria alguém – e ela
se alegrava de que sua profecia parecia se confirmar. E se alguma vez
Reiser não sentiu que estava comendo pão alheio foi àquela mesa
hospitaleira, em que amiúde se esquecia de sua aflição e saía de cara
alegre, quando havia chegado triste. Pois ele se aprofundava cada vez mais
em diálogos filosóficos com o sapateiro S., até a mãe idosa dizer: “Agora,
meninos, parem com isso e não deixem essa boa refeição esfriar!”. Mas
que homem era o sapateiro S.! Dele com certeza poderíamos dizer que
deveria instruir, da cátedra, o espírito daqueles para os quais fazia
sapatos. – Em suas conversas, ele e Reiser chegavam muitas vezes sem
nenhuma orientação a coisas que Reiser veio depois a ouvir novamente
como a mais profunda sabedoria nas aulas de metafísica, e sobre isso já
havia conversado horas a fio com o sapateiro S. – pois, sozinhos, haviam
alcançado completamente o desenvolvimento dos conceitos de espaço e
tempo, do mundo subjetivo e objetivo etc.; sem conhecerem a
terminologia escolástica, eles se serviam da língua comum das pessoas tão
bem quanto podiam, o que muitas vezes resultava em algo bastante
original – em suma, na casa do sapateiro S., Reiser logo se esquecia de
todas as coisas desagradáveis de sua situação, ali ele se sentia, por assim
dizer, transportado para o elevado mundo espiritual, e seu ser era
novamente enobrecido, porque encontrou alguém com quem se entendia
e com quem trocava ideias. As horas que passou ali com os amigos de sua
infância e juventude foram naquela época, sem dúvida alguma, as mais
agradáveis de sua vida. Foi somente ali que sentiu algo como uma plena
confiança, como se estivesse em casa.
Na quarta-feira, comia na casa de seu anfitrião, onde o pouco que
saboreava, mesmo que as pessoas pudessem ter a melhor das intenções
para com ele, quase sempre o afligia, de modo que temia esse dia muito
mais que os outros. Pois no almoço sua benfeitora, a sra. F., não costumava
discorrer diretamente sobre o comportamento de Reiser, mas o fazia por
alusões, falando ao marido sobre a gratidão que ele deveria ter para com
seu benfeitor ou mencionando de passagem coisas a respeito de pessoas
que teriam adquirido o hábito de comer demais e que por fim não
conseguiam mais se satisfazer. – Nessa época, Reiser estava em pleno
crescimento e tinha realmente bom apetite, mas, quando ouvia uma
daquelas indiretas, enfiava tremendo cada bocado de comida na boca. As
indiretas que a sra. F. dava não eram causadas tanto por avareza ou inveja,
mas pelo sentimento refinado de ordem, ofendido quando, segundo sua
opinião, alguém comia demais. – Ela costumava falar então sobre
pequenas nascentes ou fontes de bênção que secam quando não são
aproveitadas com moderação.
A esposa do músico da corte, que às quintas-feiras lhe dava de comer,
era, nessas ocasiões, um pouco rude em seu comportamento, mas não o
atormentava tanto quanto a sra. F. com toda a sua fineza. – Às sextas-
feiras, porém, ele voltava a ter um dia ruim, porque comia na companhia
de pessoas que não lhe davam indiretas, mas que o faziam sentir, de
maneira bastante grosseira, que eram seus benfeitores. Elas também o
haviam conhecido criança e, mesmo tendo ele começado a fazer parte do
mundo adulto, ainda o chamavam, não de modo carinhoso, mas
desprezível, pelo seu primeiro nome, Anton. Em suma, essas pessoas o
tratavam de tal modo que ele costumava passar a sexta-feira toda mal-
humorado e triste, sem vontade de fazer nada, e muitas vezes sem saber
por quê, mas o motivo era estar exposto no almoço ao encontro
humilhante com essas pessoas, cuja boa ação era obrigado a aceitar de
bom grado, caso contrário seu comportamento poderia ser interpretado
como o mais imperdoável orgulho. – Aos sábados, ele comia na casa de seu
primo, o peruqueiro, onde pagava uma ninharia e comia com o coração
alegre; aos domingos, comia novamente na casa do sacristão.
Essa lista de refeições de Reiser, e das pessoas que as forneciam,
certamente não é tão sem importância como talvez possa parecer à
primeira vista para muitas pessoas – tais circunstâncias aparentemente
pequenas são também aquilo que compõe a vida e deixam a mais forte
impressão na constituição do temperamento de um ser humano. Para a
dedicação e os progressos que Reiser deveria fazer diariamente, era muito
importante que tivesse uma perspectiva dos dias seguintes – se, por
exemplo, teria de comer na casa do sapateiro S., ou na da sra. F., ou na do
sacristão. Seu comportamento subsequente podia, em grande parte, ser
esclarecido por essa sua situação diária, comportamento que, além do
mais, parecia muitas vezes estar em contradição com seu caráter.
Para Reiser teria sido uma grande vantagem se o pastor M. o tivesse
deixado comer uma vez por semana em sua casa. Em vez disso, no
entanto, dava-lhe a chamada mesada, assim como também fazia o
bordador de seda; com esses poucos trocados, Reiser tinha de custear
semanalmente seu café da manhã e o jantar. Assim a sra. F. ordenara. Pois
tudo o que o príncipe lhe dava deveria ser poupado. Seu café da manhã
consistia em um pouco de chá e uma fatia de pão; e o jantar, em um pouco
de pão com manteiga e sal. Depois, a sra. F. disse que ele teria de moderar
no almoço, querendo dizer, no entanto, que teria de evitar se
empanturrar.
Assim foi então montada a economia doméstica no que diz respeito ao
sustento de Reiser. Mas, em relação a sua roupa, não só não era tirado
nada do dinheiro que o príncipe lhe dava como também lhe foi comprado
um velho e rústico uniforme vermelho de soldado, que foi ajustado ao seu
tamanho, e com o qual deveria frequentar a escola pública, onde o mais
pobre estaria mais bem-vestido que ele, circunstância que contribuiu não
pouco, já no início, para abater seu ânimo.
Além disso, Anton ainda tinha de buscar o pão de munição que o
oboísta F. recebia como parte de seu soldo e carregá-lo debaixo do braço
pela cidade, o que na verdade fazia, quando possível, ao anoitecer, sem
fazer notar que estava com vergonha para que seu ato não fosse
interpretado como um orgulho imperdoável; pois desse pão vinha
semanalmente um pouco de dinheiro com o qual ele tinha de custear seu
café da manhã e seu jantar.
Reiser não tinha a menor condição de se rebelar contra tudo isso,
porque o pastor M. depositava confiança ilimitada no juízo que a sra. F.
fazia da educação e da condução de seu modo de vida. Na mesma semana,
ele visitou também essas mesmas pessoas, agradecendo-lhes por terem se
encarregado de cuidar mais de perto de Reiser, que agora o pastor M.
confiava à plena guarda deles. Durante a visita, Reiser se sentou um pouco
triste próximo ao fogão, embora não quisesse ser ingrato com as
precauções do pastor M. Mas, daquele momento em diante, ele dependia
totalmente de pessoas em cuja casa já havia passado poucos dias numa
situação bastante penosa. Ele nunca conseguia se alegrar com toda aquela
bondade aparente que lhe era demonstrada, mas estava sempre receoso e
constrangido, porque cada insatisfação, até as menores, que lhe
demonstravam era ofensiva em dobro, quando pensava que o lugar
próprio de sua existência, o teto que desfrutava, dependia simplesmente
da bondade de pessoas tão sensíveis e facilmente melindrosas como F. e
ainda mais sua esposa.
Apesar disso, ele se animava com a ideia de que na semana seguinte
deveria começar a frequentar a chamada escola superior. Durante muito
tempo, esse havia sido seu mais ansiado desejo. Quantas vezes, ao
atravessar o adro, não admirara com respeito o imenso edifício da escola
com a alta escada de pedras. Muitas vezes, ficava horas a fio parado ali
como se pudesse ver através da janela algo que se passava lá dentro.
Cintilava então casualmente pela janela uma parte da grande cátedra do
liceu – e como sua fantasia imaginava aquilo! Quantas vezes não sonhou à
noite com essa cátedra e com a longa fileira de bancos em que se sentavam
os venturosos alunos da sabedoria, em cuja companhia ele em breve
deveria ser admitido.
Desde a infância seus genuínos prazeres existiam em grande parte na
imaginação, e por isso de certa forma passou incólume pela falta da
verdadeira alegria juvenil que os outros desfrutavam plenamente. – Rente
à escola, duas longas passagens levavam às casas dos sacerdotes,
construídas uma ao lado da outra. Elas lhe davam uma vista tão venerável
que sua imagem e a do edifício da escola eram dominantes dia e noite em
sua alma – e o nome escola superior, que era usual entre pessoas comuns, e
a expressão alunos da escola superior, que muitas vezes ele ouvira também,
faziam sua determinação de frequentar essa escola lhe parecer cada vez
maior e mais importante.
Chegou o momento em que isso deveria acontecer, e, com o coração
palpitando, esperou a hora em que o diretor B. iria conduzi-lo a um desses
auditórios de sabedoria. Ele foi examinado pelo diretor e considerado apto
a frequentar o primeiro grau. A amizade, associada a uma dignidade
natural, com a qual aquele homem o chamou primeiramente de “meu
querido Reiser!”, penetrou sua alma e lhe inspirou a mais íntima confiança
e um respeito ilimitado pelo diretor. Ah!, que poder não exerce um
pedagogo sobre o coração dos jovens, quando ele, exatamente como o
diretor B., sabe encontrar em sua conduta o tom correto de uma dignidade
temperada pela afabilidade!
No domingo posterior à confirmação, Reiser foi receber pela primeira
vez a comunhão e procurou pôr em prática, da maneira mais escrupulosa,
as lições que havia anotado e decorado, como o exame prévio segundo o
catálogo da penitência e dos pecados e, em seguida, a subida ao altar com
um estremecimento alegre. Procurou de todos os modos se entregar àquele
tipo de estremecimento alegre: mas não conseguiu, e ele mesmo se
censurou com rigor por seu coração estar muito enrijecido. Por fim,
começou a tremer de frio, e isso de certo modo o acalmou.
Mas a sensação celeste e o sentimento de bem-aventurança que esse
alimento da alma lhe deveria conceder, tudo isso ele não experimentou –
atribuiu, porém, a culpa simplesmente ao próprio coração teimoso e se
torturou com o estado de indiferença no qual se encontrava.
O que mais lhe doía era não poder chegar de fato a reconhecer seus
miseráveis pecados, algo necessário para a edificação de uma vida. No dia
anterior, teve de admitir no confessionário, numa confissão que havia
aprendido de cor, que infelizmente havia cometido muitos e distintos
pecados, em pensamento, palavras e obras, omitindo-se de praticar o bem
e praticando o mal.
Os pecados dos quais ele se sentia culpado eram sobretudo de omissão.
Não rezava com bastante devoção, não amava a Deus com bastante fervor,
não se sentia grato o bastante aos seus benfeitores e não tinha a sensação
de estremecimento alegre quando comungava. – Todas essas coisas o
abalavam, mas não conseguia remediá-las à força, e por essa razão foi bom
quando o pastor M. absolveu suas faltas.
Ainda assim, sempre permanecia insatisfeito consigo mesmo: pois
considerava particularmente que a bem-aventurança divina e a
religiosidade eram a atenção a cada um dos seus passos, a cada sorriso, a
cada semblante, a cada palavra que falava, a cada pensamento que tinha.
Essa atenção era muitas vezes interrompida naturalmente, e não podia
durar numa pessoa mais que uma hora – assim que Reiser percebia sua
distração, ficava insatisfeito consigo mesmo e considerava por fim
impossível levar corretamente uma vida bem-aventurada e religiosa.
A sra. F. lhe fez uma longa pregação, no dia em que ele foi à comunhão,
sobre os maus prazeres e os desejos que costumavam nascer naquela
idade, contra os quais ele tinha de lutar. Felizmente, Reiser não entendeu
o que ela realmente queria dizer com aquilo e também não ousou lhe
pedir explicações mais detalhadas, mas apenas decidiu que, quando os
prazeres ruins pudessem nascer, fossem do tipo que fossem, lutaria
nobremente contra eles.
Nas aulas de religião no seminário, ele já tinha ouvido falar sobre
pecados de todo tipo, dos quais jamais conseguira ter uma ideia clara,
como o de sodomia, os pecados silenciosos e da masturbação, todos
mencionados durante a explicação do sexto mandamento, os quais
inclusive já havia anotado. Mas os nomes eram tudo o que ele sabia sobre
aquilo; pois o inspetor felizmente pintara os pecados com cores tão
assustadoras que Reiser já tinha medo só de imaginar esses pecados
monstruosos e não ousava penetrar mais fundo com seus pensamentos
nas trevas que os envolviam. Em geral, suas ideias sobre a origem dos
bebês eram ainda muito mais obscuras e confusas, embora não acreditasse
mais que a cegonha trouxesse as crianças. Naquele tempo, seus
pensamentos eram provavelmente puros; pois certa sensação de pudor,
que lhe parecia natural, era a causa de não deter muito seus pensamentos
nesses objetos nem se atrever a conversar sobre isso com seus colegas de
escola e conhecidos. Suas ideias religiosas sobre o pecado também o
favoreceram nisso. Para ele, já era temível o bastante que tais vícios, os
quais só conhecia pelo nome, realmente existissem no mundo; que dirá
então ter tido o pensamento de conhecê-los mais de perto.
Na segunda-feira pela manhã, o diretor B. o introduziu no primeiro
grau do liceu onde o vice-reitor e o mestre de capela lecionavam. – O vice-
reitor era também pregador, e Reiser já o havia escutado pregar várias
vezes. – O jeito como ele se portava em seu hábito sacerdotal agradava
especialmente a Reiser, de modo que este procurava imitá-lo
frequentemente com certo movimento do queixo para cima e para baixo.
O pastor G., como era chamado, era um homem ainda muito jovem; o
mestre de capela, ao contrário, era um homem velho e meio
hipocondríaco.
No primeiro grau, havia jovens já bastante crescidos, e Reiser não se
vangloriava pouco de ser um aluno do liceu.
As aulas começaram: o vice-reitor ensinava teologia, história,
estilística e o Novo Testamento. – O mestre da capela, catecismo, geografia
e gramática latina. De manhã, as aulas começavam às sete horas, iam até
as dez; à tarde, da uma às quatro. – Reiser teve de passar ali, junto com
outros vinte ou trinta jovens, uma boa parte de sua vida de então. Não era,
portanto, irrelevante o modo como as aulas estavam organizadas.
Segundo a ordem prescrita, toda manhã logo cedo era lido primeiro
um capítulo da Bíblia, respeitando a sequência, não importando se fosse
longo ou curto. A seguir, duas vezes por semana se ensinava uma espécie
de teologia segundo a ordem da salvação, na qual havia, por exemplo, a
opera ad extra e a opera ad intra, que eram muito bem memorizadas. Entre
as primeiras se incluíam as obras nas quais todas as três pessoas faziam
parte da divindade, como a criação, a salvação etc., embora fossem
imputadas principalmente a uma pessoa; e entre as segundas se incluíam
as obras em que uma pessoa se diferenciava da outra, e o que condizia
unicamente a ela, como a geração do Filho pelo Pai, a origem do Espírito
Santo a partir do Pai e do Filho etc. Reiser já havia aprendido essa
diferença no seminário, mas ficava muito contente porque agora sabia
também chamá-las pelo nome latino. Das aulas de teologia, a opera ad extra
e a opera ad intra deixaram marcas muito profundas nele.
Duas vezes por semana, o vice-reitor expunha uma espécie de história
universal segundo Holberg, e o mestre de capela ensinava geografia
segundo Hübner. Essas eram as aulas de ciência. Todo o tempo restante
era empregado no aprendizado de língua latina. Isso também era o único
modo de alguém conseguir ter fama e aprovação. Pois a posição dos alunos
na classe era definida conforme o desempenho em latim.
O método do mestre de capela era ditar semanalmente um pequeno
texto sobre um número de regras tiradas da grande Grammatica Latina
Marchica, que tinha de ser traduzido em latim e no qual as frases eram
selecionadas de modo que sempre as respectivas regras gramaticais
pudessem ser empregadas. Quem prestava mais atenção na explicação
delas conseguia também fazer melhor o chamado exercitium e galgar, com
isso, um lugar mais alto.
Por mais que as frases alemãs, selecionadas em função do latim,
soassem estranhas, aquele exercício era de fato muito útil e um forte
incentivo à emulação. – Pois dentro de um ano Reiser progrediu tanto que
escrevia em latim sem um único erro gramatical, expressando-se mais
corretamente nessa língua do que em alemão. Pois em latim sabia onde
tinha de usar o acusativo e o dativo. Mas em alemão ele nem imaginava
que mich, por exemplo, era o acusativo, e mir o dativo, e que era preciso
declinar e conjugar sua língua materna tanto quanto o latim. – Ele, no
entanto, assimilou imperceptivelmente alguns conceitos gerais que mais
tarde pôde usar em sua língua materna. – Começou aos poucos a ter noção
clara do que se denomina substantivo e verbo, algo que ele
frequentemente ainda confundia quando um se aproximava do outro,
como, por exemplo, gehn (caminhar) e das Gehen (a caminhada). Mas, como
esses lapsos costumavam ocasionar erros na redação de latim, ele passou a
ficar muito mais atento e aprendeu também, sem perceber, a reconhecer
as diferenças mais delicadas entre partes do discurso e suas alterações; de
modo que, um tempo depois, ele mesmo às vezes se espantava de ter
cometido recentemente erros tão evidentes.
O mestre de capela costumava pôr seu vidi (visto) embaixo de cada
composição de latim, depois de ter assinalado nas laterais em traços
vermelhos o número de erros. Como Reiser via esse vidi embaixo de cada
exercitium, acreditava que era uma palavra que ele também teria de
escrever sempre no fim da redação, e cuja omissão o mestre de capela
tinha lhe atribuído como um erro. Escreveu então de próprio punho vidi
embaixo de seu segundo exercitium, e o mestre de capela e seu filho, que
estava presente, riram alto dele e lhe explicaram o que aquilo significava.
– De repente, Reiser viu seu erro e não pôde compreender como ele
mesmo não tinha percebido a explicação correta do vidi, pois, além do
mais, já sabia bem o que significava vidi.
Era como se despertasse envergonhado de uma espécie de tolice que
tomara conta dele. E por um momento ficou quase tão abatido como
quando outrora o inspetor lhe disse no seminário “garoto idiota”,
acreditando que ele nem sequer conseguiria soletrar. Esse tipo de tolice
real ou aparente em determinados casos provém em parte de uma falta de
presença de espírito, em parte de certa timidez ou indolência, pela qual
durante algum tempo a capacidade natural do pensamento é impedida de
agir livremente.
Outra lição fundamental eram as biografias dos generais gregos, de
Cornélio Nepos, de onde se retirava um capítulo da vida de um general
para semanalmente ser recitado de cor. Esses exercícios de memória se
tornaram muito fáceis para Reiser, porque ele procurava não só gravar as
palavras como também as coisas, o que fazia toda vez à noite antes de
dormir; e de manhã, ao acordar, as ideias estavam bem mais claras e
ordenadas em sua memória do que na noite anterior, como se a alma
continuasse, de certo modo, trabalhando durante o sono, e o que ela uma
vez havia começado seria terminado vagarosamente durante o completo
sossego do corpo.
Tudo o que Reiser confiava a sua memória, ele costumava decorar
dessa maneira.
Começou também a se dedicar à poesia, o que já fizera na infância,
quando seus versos costumavam abordar a natureza bela, a vida
campestre e outros temas semelhantes. Pois a única coisa que em sua
situação realmente lhe provocava um entusiasmo poético eram suas
caminhadas solitárias e a vista da relva verde nas vezes que saía pela porta
da cidade.
Quando garoto, aos 10 anos, fez algumas estrofes que começavam
assim:

Nos lindos prados em floração


As bondades de Deus estão…

e que foram musicadas por seu pai. E o poema que ele acabara de compor
era um “Convite ao campo”, em que pelo menos as palavras não foram mal
escolhidas. – Entregou esse poeminha ao jovem M., que o fez chegar às
mãos do pastor M. e do diretor, e os dois aprovaram o poema, de modo
que Reiser começou a se considerar um poeta. Mas o mestre de capela o
fez ver em seguida seu erro quando repassou o poema verso a verso com
Reiser, mostrando-lhe não só os erros de métrica, mas também os de
expressão e a falta de coerência nas ideias.
Essa crítica aguda do mestre de capela era um verdadeiro benefício
para Reiser, e ele jamais lhe pôde agradecer o bastante. De outra forma, a
aprovação, que esse primeiro produto de sua musa recebeu
imerecidamente, o teria prejudicado por toda a vida.
Apesar disso, às vezes ainda era tomado pelo furor poeticus, e, como
agora realmente o que mais o entusiasmava era o prazer de se dedicar ao
estudo, ele se atreveu então a fazer um novo poema em louvor das
ciências, que começava de maneira muito estranha:

Em ti, formosa Ciência,


Em ti, minha alma se atenha…

O mestre de capela ensinava também a fazer versos latinos, e expunha as


regras de prosódia, que depois ele empregava no Catonis disticha[15] ao
escandir seus versos. Reiser encontrava imenso prazer nisso, porque lhe
soava muito erudito poder escandir versos latinos e saber por que uma
sílaba tinha de ser pronunciada longa e a outra breve; o mestre de capela
marcava com as mãos o compasso enquanto escandia. Poder assistir e
participar daquilo era uma verdadeira alegria para a alma de Reiser. – E
finalmente quando o mestre de capela ditou uma quantidade de palavras
latinas misturadas, que antes formavam versos, para que fossem colocadas
novamente na ordem métrica, Reiser sentiu um grande prazer, pois,
cometendo poucos erros, organizou novamente alguns hexâmetros, e,
como prêmio, recebeu do mestre de capela uma velha edição do
Curtius[16].
Ali imperava a chamada antiga rotina escolar, e mesmo assim Reiser
avançou tanto em um ano que podia escrever em latim sem erro
gramatical e escandir corretamente um verso latino. – Para isso o método
mais simples era – repetição frequente do antigo com o novo, algo que os
pedagogos dos novos tempos deveriam levar em consideração. Ainda que
um tema seja apresentado de maneira magnífica, se não é repetido com
frequência, não atinge absolutamente a alma dos jovens. Os antigos
certamente não falaram em vão quando disseram que a repetição era a
mãe do estudo.
Das dez às onze horas, o vice-reitor dava ainda uma aula particular
sobre declamação e estilística alemã, e na maioria das vezes Reiser a
aguardava com grande expectativa, porque tinha a ocasião de se distinguir
com as composições e, ao mesmo tempo, podia se fazer ouvir
publicamente da cátedra, o que tinha alguma semelhança com o ato de
fazer pregações, que foi sempre o mais elevado objeto de todos os seus
desejos.
Além dele só mais um aluno, chamado I., encontrava também tanto
prazer nesse exercício de declamação. Esse I. viria a se tornar
posteriormente um de nossos maiores atores e um de nossos dramaturgos
preferidos; e o destino de Reiser tinha até certo ponto muita semelhança
com o dele. – I. e Reiser eram os que sempre se destacavam mais no
exercício de declamação. – I. superava bastante Reiser nas vivas
expressões dos sentimentos. – Reiser, porém, sentia mais fundo. – I.
pensava bem mais rápido e por isso mesmo tinha engenho e presença de
espírito, mas nenhuma paciência para sustentar por muito tempo um
assunto. – Assim Reiser logo o ultrapassou também em todas as outras
coisas. – Ele sempre perdia para I. quando se tratava de humor e
vivacidade, mas sempre ganhava de I. quando se tratava de exercitar a
faculdade de pensar sobre algum assunto. – I. podia ser tocado com
bastante intensidade por alguma coisa, mas esta não lhe dava uma
impressão duradoura. Podia captar algo com muita facilidade e muita
rapidez, mas em geral se lhe escapava também com muita rapidez. – I.
nascera para ser ator. Já aos 12 anos, era capaz de controlar todas as suas
expressões faciais e gestos – e podia representar todo tipo de coisas
ridículas com a imitação mais perfeita. Não havia pregador em H. cuja
pregação ele já não tivesse imitado da maneira mais natural. Era assim que
costumava aproveitar o recreio, antes de o vice-reitor chegar para a aula
particular. Portanto, todos temiam I., já que ele, se quisesse, sabia
ridicularizar qualquer pessoa. – Reiser, porém, o adorava, e teria tido à
época relações mais próximas se a diferença de condições causadas pelo
destino não o tivesse impedido. Os pais de I. eram ricos e famosos, e Reiser
era um garoto pobre, vivendo de caridade, apesar de odiar até a morte a
ideia de importunar de alguma forma os ricos. Mas, da parte de seus
colegas de escola mais ricos e mais bem-vestidos, ele gozava de muito
mais respeito do que esperara, o que talvez em parte se desse porque
sabiam que o príncipe possibilitara seus estudos, e por isso o tinham na
mais alta conta; senão, não o teriam tratado assim. Isso também lhe abriu
caminho para ter mais atenção e respeito de seus professores.
Embora houvesse nessa classe jovens entre 17 e 18 anos, ainda
imperavam nela castigos muito humilhantes. Tanto o vice-reitor como o
mestre de capela distribuíam bofetadas, e para castigos mais severos se
serviam do chicote, que estava sempre sobre a cátedra; aqueles que
haviam cometido algum delito também tinham por vezes de ficar
ajoelhados ao lado da cátedra para cumprir a pena.
Reiser não suportava a ideia de receber alguma vez um castigo
daqueles homens que ele adorava e venerava em alto grau como seus
professores, e não desejava nada mais fervorosamente do que merecer por
sua vez o amor e o respeito deles. Que efeito não deve ter tido sobre ele
quando certa vez, sem que esperasse e sem culpa alguma, teve de
participar do destino de alguns dos seus colegas de escola que, por causa
de uma algazarra, foram castigados com o chicote pelo vice-reitor. “Se
irmãos são, merecem igual punição”, disse o vice-reitor ao se aproximar
dele e, sem querer ouvir as desculpas, ameaçou denunciá-lo ao pastor M. O
sentimento de inocência inspirou uma nobre resistência em Reiser, e ele,
sim, ameaçou denunciar o vice-reitor ao pastor M., por ser tratado de
modo tão degradante, e não como um inocente.
Reiser disse isso com um tom de voz de inocência reprimida, e o vice-
reitor não lhe respondeu nenhuma palavra. Mas, daquele momento em
diante, todo o sentimento de respeito e amor pelo vice-reitor tinha
desaparecido por completo de seu coração. E, como o vice-reitor não
media mais seus castigos, Reiser considerava tão pouco uma bofetada ou
uma chicotada sua, como se fosse um animal irracional correndo em sua
direção. E, desde que percebeu que não fazia a menor diferença se
procurasse ou não merecer o respeito desses professores, ele seguiu sua
inclinação e não prestava mais atenção por dever, mas apenas quando o
assunto despertava seu interesse. Costumava bater papo horas a fio com
seu amigo I., com quem vez ou outra tinha de se ajoelhar em sua
companhia diante da cátedra. I. também encontrava nisso material para
exercitar seu engenho, comparando a cátedra, sobre a qual o vice-reitor
estava apoiado com os cotovelos, com o brasão de Mecklemburgo; e a si
mesmo e a Reiser, com os dois escudeiros. – O jeito brincalhão de I. não era
contido por nenhum castigo, exceto uma ocasião em que teve de ficar uma
hora inteira com o rosto virado para a estufa, e por isso não pôde fazer
suas brincadeiras nem qualquer pantomima para alguém. – Esse castigo
lhe arrancou lágrimas pela primeira vez, e com seriedade ele ficou em
posição de súplica, algo que jamais costumava fazer. – Era assim a
disciplina do vice-reitor. – Certa vez, alguém colocara por engano na bolsa
uma touca de dormir em vez do livro, e ele o mandou ficar ajoelhado
durante uma hora com a touca na cabeça diante de toda a classe; I. então
fez milhares de gracejos, e seus colegas, que não puderam conter por
muito tempo o riso por sua pantomima e por suas ideias cômicas,
receberam muitas bofetadas.
Qual o efeito da disciplina do vice-reitor sobre o ânimo e o caráter de
seus subordinados, que tipo de recordação louvável ele deixou no coração
de seus alunos, e que prêmio mereceria receber por isso, é algo que
deveria ser deixado ao critério de sua própria consciência. – Mostrava-se
com frequência tal qual um herói, quando tinha o hábito de dizer: eu não
sou um preguiçoso como alguns, indicando, para que todos pudessem
notar, seu colega, o mestre de capela, que, apesar da disposição
hipocondríaca e um pedantismo pegajoso, era um homem bem melhor do
que o vice-reitor.
Reiser jamais recebeu um bofetão do mestre de capela, embora este
não economizasse bofetadas e fosse bastante generoso com o chicote.
Percebendo que Reiser procurava seriamente evitar castigos, não o
esbofeteava a torto e a direito. Reiser aprendeu muito mais com ele do que
com o vice-reitor, porque, mesmo que o assunto não o interessasse, ele
prestava atenção por dever. E, quando conseguiu alcançar o primeiro
lugar graças às composições de latim, o elogio do mestre de capela o
deixou bem animado, assim como foi convincente seu encorajamento para
que procurasse se afirmar nesse lugar. Ora, o mestre de capela dava
sempre ao primeiro da classe o posto de censor ou de vigia do
comportamento dos outros, e, como Reiser sempre se mantinha em
primeiro lugar, o mestre de capela lhe deu o respeitável título de um
censor perpetuus ou vigia permanente. Ele ocupou esse cargo com a maior
retidão e imparcialidade, e com frequência observava melancólico como
os garotos azucrinavam o bom mestre de capela, que certamente nem
sempre optava por um método disciplinar correto, e lhe amargavam a
vida, de modo que ele mesmo frequentemente gritava, com desgosto no
coração, quem dii odere, paedagogum fecere, aqueles que os deuses odeiam
são transformados em pedagogos. Reiser faria qualquer coisa pelo mestre
de capela, porque este jamais fora injusto com ele, embora seu
comportamento não tivesse sido sempre o mais amigável. Quão
comovente não era muitas vezes para ele quando na aula de catecismo
todos ficavam à sua volta fazendo barulho e baderna, e o mestre de capela
batia com força o livro, dizendo: Eu lhes trago a palavra de Deus! – Pena
que o bom homem empregasse com tanta frequência tais expressões, que,
aplicadas no momento oportuno, não perderiam seu efeito, e também
dissesse a todo instante certos lugares-comuns, tais como a tolice se esconde
no coração dos jovens, e outros mais, aos quais os alunos já estavam por fim
tão habituados que ninguém mais lhes prestava atenção, e era daí que
provinha a eterna bagunça nas aulas do mestre de capela. O vice-reitor
falava menos quando castigava, e seus castigos provocavam mais silêncio
e mais ordem.
Quando havia começado a frequentar a escola, Reiser teve a ideia de
participar do coral; não só para ganhar dinheiro, mas sobretudo para
entrar num novo e respeitável patamar, que ele, já como aprendiz de
chapeleiro em B., sempre teve em alta conta.
Sua fantasia ganhou novamente liberdade de ação. Cantar em coro e
publicamente cânticos de louvor à honra de Deus era para ele tudo o que
havia de mais celestial e solene. O nome coral lhe soava muito agradável.
Cantar em louvor a Deus com todas as vozes era uma expressão que sempre
ressoava em sua mente. Mal podia esperar o momento em que seria
acolhido naquele grupo ilustre!
Um de seus colegas de escola, que já cantava havia um bom tempo no
coral, lhe assegurou estar tão farto e cansado dele que preferiria se ver
livre o quanto antes – Reiser não conseguia sequer imaginar aquilo.
Frequentava com enorme zelo as aulas em que o mestre de capela
ensinava canto e invejava todos aqueles que tinham uma voz melhor do
que a sua.
Não muito longe de H. havia uma cachoeira onde, por indicação do
mestre de capela, ele passava muitas vezes horas a fio para realmente
soltar e exercitar a voz. Mas jamais progrediu muito com o canto. Pois
também lhe faltava aquilo que chamamos ouvido musical. Mas a teoria
que o mestre de capela mencionava por alto na aula era cada vez mais
bem recebida por Reiser, e ele dava muita satisfação ao mestre de capela
pela atenção prestada.
Reiser sentia verdadeiro amor pelo mestre de capela, não se cansando
de elogiá-lo por toda parte, da mesma maneira que este o elogiava às
outras pessoas. – Aconteceu certa vez de Reiser agradecer ao mestre de
capela o bom testemunho que tinha dado a um de seus benfeitores, e o
mestre de capela respondeu que Reiser também lhe dera um bom
testemunho, pois lhe chegara aos ouvidos como falava bem dele por toda
parte.
Reiser não teria trocado a alegria daquele momento por nada deste
mundo, tão agradável lhe foi o fato de seu professor saber o quanto ele o
amava. – Se alguém lhe tivesse dito à primeira vista que o mestre de
capela seria algum dia tão amigo seu, ele não teria acreditado. Pois o vice-
reitor ocupava o primeiro lugar de sua preferência; sua feição risonha e
amigável, e a testa lisa, o cativavam, ao passo que a feição tenebrosa do
mestre de capela e a testa enrugada o afugentavam. No início, ele tinha o
hábito de dizer com frequência: Ah, mas que homem afável e amigável em
comparação com o velho mestre de capela rabugento! Mas, com uma
convivência mais intensa, as coisas rapidamente se modificaram.
Reiser procurou de todos os modos consolidar cada vez mais o respeito
que o mestre de capela mantinha por ele. Isso foi tão longe que chegou a
caminhar para cima e para baixo num passeio público, aonde o mestre de
capela costumava ir, com um livro aberto na mão apenas para atrair a
atenção de seu professor e ser considerado um modelo de dedicação, já
que estudava mesmo passeando. – Embora Reiser sentisse realmente
prazer com o livro que lia, o prazer seria ainda maior se fosse notado pelo
mestre de capela, e é possível ver nesse traço sua tendência para a
vaidade. Importava-lhe mais a aparência do que a coisa, embora a coisa
também não lhe fosse sem importância.
Tinham uma espantosa opinião sobre sua dedicação aos estudos e
costumavam sempre aconselhá-lo a cuidar da saúde; isso lhe era
extremamente adulador, e ele deixava as pessoas terem essa opinião,
embora sua dedicação não fosse tão grande como poderia ter sido se a
pressão de sua situação, no que diz respeito à comida e à moradia, não o
deixasse muitas vezes inerte e mal-humorado.
Pois o tratamento indigno ao qual estava exposto subtraía-lhe com
frequência grande parte do respeito por si mesmo, sentimento
absolutamente necessário à dedicação aos estudos. – Ia frequentemente à
escola de coração triste, e, uma vez estando lá, esquecia-se de suas
aflições, e as horas na escola ainda eram de fato as suas horas mais felizes.
Mas quando voltava para casa, e muitas vezes lhe davam a entender
veladamente como sua presença era maçante, ele ficava horas a fio
sentado e mal ousava respirar – seu estado era lastimável – e não teria
condições de fazer nada na vida, pois esse tratamento estava dilacerando
seu coração. –
Depois que comia em sua casa, os olhares da senhora do sacristão da
guarnição conseguiam humilhá-lo por alguns dias, tirando-lhe o ânimo
para se dedicar aos estudos.
Reiser, sem dúvida alguma, teria sido mais feliz e contente, e com toda
a certeza mais aplicado, se o tivessem deixado comprar sal e pão para si
mesmo com o dinheiro que o príncipe lhe dava, em vez de ter de comer
seu pão em mesas estranhas.
A que situação atroz ele chegou quando a senhora do sacristão
começou a falar à mesa sobre os tempos ruins e sobre o inverno rigoroso,
e depois sobre a falta de lenha, e finalmente, já irrompendo em lágrimas,
sobre a preocupação de saber onde ainda conseguiriam pão; e quando
Reiser, constrangido diante dessa fala, deixou cair de repente um pedaço
de pão no chão, ela, sem dizer nada, o olhou com o olhar de uma Fúria. –
Como Reiser não conseguiu conter as lágrimas diante desse tratamento
indigno, ela se lançou contra ele, e com duras palavras o repreendeu por
malcriação e comportamento impróprio, dando-lhe a entender que
pessoas que demonstravam ingratidão não seriam bem-vindas em sua
casa. – O bom sacristão, que intimamente teve pena de Reiser, mas não
governava a casa, compadeceu-se dele e lhe disse para deixar a mesa
imediatamente. – Bastante envergonhado, abatido e humilhado, Reiser foi
obrigado a sair daquela casa e não ousaria deixar que em sua casa
soubessem que havia perdido a refeição gratuita.
Depois disso, quando topava às vezes com ele na rua, o sacristão
introduzia meio florim em sua mão para indenizá-lo pela inveja e avareza
de sua esposa.
Havia também outra espécie de pessoas que, quando ofereciam
refeição a Reiser, costumavam dizer a todo momento como era bom ele
ter o que comer, e que deveria saboreá-lo bem, pois podia contar com uma
refeição, e assim por diante, o que não o deixava menos constrangido, de
modo que, em vez de lhe trazer satisfação como em geral sentimos, a
comida era usualmente um verdadeiro tormento. Que alegria sentiu
quando, no primeiro domingo depois de ter perdido a refeição na casa do
sacristão, e ainda não ter tido vontade de contar isso em casa, comeu um
pão de 3 centavos e fez um passeio em torno do baluarte!
Era como se todos se unissem para que Reiser se exercitasse na
humildade; foi sorte ele não ter se tornado vil – certamente teria ficado
contente e satisfeito, mas perderia o nobre orgulho, sentimento que eleva
o homem acima dos animais, os quais apenas procuram saciar a fome.
A condição do mais reles aprendiz de artesão é mais honrosa que a de
um jovem que vive de ajuda para poder estudar, caso essa ajuda lhe seja
concedida de maneira degradante. Se um jovem desses se sente feliz, ele
corre o risco de se tornar vil, e, se não tiver uma predisposição à vilania,
acontecerá com ele o mesmo que ocorreu a Reiser; ele se tornará mal-
humorado e misantropo como Reiser de fato ficou, pois já naquela época
começou a encontrar seu maior prazer na solidão.
Certa vez, a sra. F. o enviou à casa do príncipe com uma peça imensa de
pano de linho, e ele deveria mostrá-la para que fosse vendida. – De nada
adiantaria qualquer resistência a isso – pois o pastor M. tinha dado a ela
um poder ilimitado sobre Reiser – e cada recusa dele teria sido
interpretada como um orgulho imperdoável. Isso não iria manchar sua
reputação, costumava dizer a sra. F. Tampouco podia se opor a pegar o pão
que o oboísta recebia do regimento, e embora o fizesse na hora do
crepúsculo, escolhendo as ruas mais afastadas para que nenhum dos seus
colegas de escola pudessem vê-lo, certa vez, para grande espanto seu, um
deles o viu, mas felizmente era de tão boa índole que lhe prometeu
silêncio total, o que por fim cumpriu; quando porém eles às vezes se
desentendiam na sala de aula, ele ameaçava tornar público aquele
segredo.
Como seu velho uniforme vermelho de soldado já não aguentava,
finalmente arrumaram uma roupa nova para ele, muito embora, claro,
com o dinheiro do príncipe; no entanto, como se visassem realmente a sua
humilhação, o traje que escolheram era uma roupa cinza de serviçal, que o
fazia mais uma vez se destacar quase tão esdruxulamente dos seus colegas
de escola quanto o uniforme vermelho; e inicialmente ele só podia vestir a
roupa em ocasiões solenes, quando havia algum exame na escola, ou para
ir comungar.
Mas de todas as humilhações sofridas a que mais o ofendeu, e da qual
nunca perdoou a sra. F., foi uma injusta acusação, que lhe doeu fundo na
alma e ele não conseguiu afastar de si por nenhuma prova.
A sra. F. havia acolhido uma menina de 3 ou 4 anos, filha de uma
parente sua. No Natal, ela pensou em oferecer uma alegre surpresa à
criança e decorou uma árvore com luzes e nela pendurou uvas-passas e
amêndoas. Reiser ficou sozinho na sala, enquanto a sra. F. foi à alcova
pegar a criança. Aconteceu que, quando ela voltou, a árvore tombou com
todas as luzes, supostamente por causa do movimento das portas, e Reiser
no mesmo momento se atirou para segurá-la, mas, como não conseguiu,
retirou de imediato sua mão, o que deu a impressão de que tivesse passado
todo o tempo entretido com a árvore, e justo quando a sra. F. havia
entrado na sala, ele, apavorado, deixou cair a árvore, a qual, na verdade,
havia tombado. No pensamento da sra. F. não restava dúvida de que ele
quis comer as guloseimas da árvore e havia assim estragado a alegria
inocente dela e da criança.
Ela deixou bem clara essa suspeita desonrosa para Reiser; e como ele
poderia se livrar dela? Não tinha testemunha. E as aparências estavam
contra Reiser. A mera possibilidade de que se pudesse nutrir tal suspeita
contra ele já o humilhava perante si mesmo; ele estava naquele estado em
que desejamos, por assim dizer, desaparecer ou ser completamente
aniquilados num instante.
Um estado que pode produzir uma espécie de paralisia da alma, do
qual depois não se consegue sair com tanta facilidade. Sentimo-nos, nesses
momentos, como que aniquilados e daríamos a vida para poder nos
ocultar do mundo. A autoconfiança, que é essencial à atividade moral,
assim como a respiração o é para o movimento corporal, recebe um golpe
tão violento que dificilmente se recupera.
Depois desse episódio, se Reiser estivesse num lugar onde as pessoas
procurassem por uma ninharia qualquer, pensando que foi roubada, ele
não conseguia não enrubescer e ficar confuso apenas porque imaginava
vivamente a possibilidade de que poderiam considerá-lo um ladrão,
mesmo que não dessem a entender diretamente. – Prova de como
podemos errar quando costumamos interpretar a vergonha e a confusão
de um acusado como confissão silenciosa de seu crime. – Por meio de
milhares de humilhações imerecidas, alguém pode por fim ser levado a ver
a si mesmo como um objeto do desprezo geral e não mais se atrever a
abrir os olhos perante ninguém – ele pode, desse modo, na maior
inocência de seu coração, deixar transparecer todos os sinais de uma
consciência pesada, e coitado dele se cai nas mãos de um pretenso
conhecedor da natureza humana, como existem tantos, que julga
imediatamente seu caráter pela primeira impressão que sua expressão
facial lhe causou. –
De todos os sentimentos, um dos mais desagradáveis é provavelmente
o mais alto grau de vergonha que alguém é levado a sentir.
Reiser o sentiu mais de uma vez em sua vida, mais de uma vez teve
momentos em que, por assim dizer, foi aniquilado diante de si mesmo –
nas ocasiões em que, por exemplo, pensava que um cumprimento, um
elogio, um convite, ou algo parecido, era para ele, quando não era. – A
vergonha e a confusão que esse tipo de mal-entendido o fazia sentir eram
indescritíveis. –
Há também um sentimento bastante peculiar quando, por mal-
entendido, atribuímo-nos uma deferência que é destinada a outra pessoa.
A ideia de que podemos ser demasiado autoconfiantes é o que há de mais
extraordinariamente humilhante. Acrescente-se ainda a isso o papel
ridículo que cremos desempenhar. – Ou seja, Reiser não sentiu em sua vida
nada mais horrível que esse estado de vergonha no qual muitas vezes uma
ninharia o mergulhava. – Todas as outras coisas não atingiram tanto sua
mais íntima natureza, seu verdadeiro si-mesmo. Em relação a essa espécie
de sofrimento, ele sentia também a mais forte compaixão. Teria feito
muito mais para evitar que alguém sentisse vergonha do que para salvar
alguém de uma desgraça real: pois a vergonha lhe parecia a maior
desgraça que pode acontecer a alguém.
Certa vez, ele estava na casa de um comerciante em H., que
geralmente, em vez de olhar a pessoa com quem estava falando, tinha o
costume de olhar para outra. Enquanto fitava Reiser, o comerciante
convidou para comer outra pessoa que também estava ali na sala, e como
Reiser interpretou o convite como se fosse para ele, recusando-o
educadamente, o homem disse então com cara ríspida: “não me refiro ao
senhor!” – esse “não me refiro ao senhor!”, dito com cara ríspida,
provocou em Reiser tal efeito que ele só pensava em se enfiar na terra;
esse “não me refiro ao senhor!” o perseguiu posteriormente onde
estivesse e aonde fosse, deixando sua voz entrecortada e trêmula quando
tinha de falar com gente distinta, e seu orgulho jamais conseguiu superar
inteiramente essa experiência.
“Como pôde pensar que deveríamos convidá-lo para comer?” – Assim
Reiser interpretou aquele “não me refiro ao senhor!”, e naquele momento
ele se viu tão insignificante, tão descartado, tão ninguém, que seu rosto,
suas mãos, seu ser inteiro tornaram-se um fardo para ele, e, enquanto
esteve ali, fez papel do mais idiota e pateta dos personagens, e ao mesmo
tempo sentiu em seu comportamento essa idiotice e patetice mais forte e
mais viva do que qualquer outra pessoa. –
Se Reiser tivesse encontrado alguém com verdadeiro interesse em seu
destino, encontros como aquele talvez não tivessem produzido tanta
mágoa. Mas seu destino estava preso apenas por fios muito tênues ao
interesse genuíno de outras pessoas, de modo que o aparente
desprendimento de um desses fios de repente o deixava receoso quanto ao
rompimento de todos os outros, e ele se via então num estado em que não
despertava mais a atenção de ninguém para si, julgando-se um ser que não
era mais levado em consideração. – A vergonha é um afeto tão violento
como qualquer outro, e é de espantar que suas consequências não sejam às
vezes mortíferas.
O temor de passar por ridículo era às vezes tão terrível para Reiser que
teria sacrificado tudo, até mesmo sua vida, para evitá-lo. – Ninguém sentiu
mais forte o

Infelix paupertas, quia ridiculos miseros facit,


Triste é o fardo da pobreza, porque torna ridículos os infelizes,[17]
do que ele, para quem tornar-se ridículo parecia ser a maior infelicidade
do mundo. Há uma espécie de ridículo que lhe era a mais suportável – a
saber, quando as pessoas riem de algo simplesmente pela esquisitice, a
qual elas mesmas não se atrevem a imitar, sem considerá-la por isso à luz
do desprezo.
Quando, por exemplo, ouvia dizer a seu respeito algo como “esse
Reiser é uma pessoa esquisita, anda à noite, numa escuridão completa,
três vezes em torno do baluarte, sem falar com ninguém, a não ser consigo
mesmo, enquanto repete a lição do dia etc.” – não lhe era desagradável
ouvir isso; tinha, ao contrário, até algo de lisonjeiro em ser considerado
dotado de certa esquisitice. Mas quando I. ridicularizou seus versos

Em ti, formosa Ciência,


Em ti, minha alma se atenha…

isso lhe causou muita mágoa e vergonha, e ele teria dado qualquer coisa
para não ter composto esses versos.
Depois de ter frequentado por um trimestre as aulas de canto do
mestre de capela, Reiser alcançou sua tão ansiada e desejada felicidade de
cantar no coro, no qual era contralto. A alegria com sua nova posição de
corista durou algumas semanas, enquanto o clima esteve bom. Encontrou
imenso prazer tanto nas árias e motetos que ouviu cantar como nas
conversas amigáveis com seus colegas de escola, enquanto iam de uma
casa a outra, de uma rua a outra.
Esse tipo de coro tem muita semelhança com uma trupe de atores
ambulantes, na qual de certo modo também compartilham entre si alegria
e sofrimento, tempo bom e ruim etc., o que costuma sempre provocar uma
união bastante estreita entre os participantes.
Reiser esperou ansioso pelo sobretudo azul que seria seu futuro
adorno. – Pois esse sobretudo já era algo parecido com a vestimenta de
sacerdote. – Mas mesmo essa esperança o iludiu bastante; pois, a fim de
economizar para Reiser, a sra. F. mandou fazer para ele um sobretudo com
alguns velhos aventais azuis, com o qual ele não representava um papel de
destaque entre os demais alunos do coro.
Logo no primeiro dia, Reiser notou que um dentre esses alunos se
destacava mais que os outros. – Percebia-se de imediato que era um
forasteiro, ainda que não o ouvisse falar em sua língua. Pois qualquer
expressão facial e gestos dele demonstravam mais vivacidade e
desenvoltura que a aparência cerimoniosa e desengonçada dos moradores
de H. – Reiser não se cansava de olhá-lo; e, ao ouvi-lo falar, não conseguia
deixar de admirar suas frases bem formuladas em dialeto da Alta Saxônia;
tudo o que os moradores de H. diziam lhe parecia deselegante e sem graça.
– O líder do coro era um rapaz bêbado, com quem esse forasteiro sempre
entrava num bate-boca e a quem costumava dar em geral respostas muito
adequadas e certeiras quando o líder pretendia exercer certa supremacia
sobre ele. E quando este certa vez lhe disse, entre outras coisas, que era
líder havia muito tempo para permitir que um moleque o insultasse, o
forasteiro respondeu então que sem dúvida não o honrava ser um rapaz
mais velho e continuar apenas líder de coro. – Essa superioridade de
astúcia com a qual o estrangeiro repentinamente humilhou o líder fez
Reiser prestar mais atenção nele, e, quando se informou sobre o seu nome,
ficou sabendo que se chamava Reiser e era de Erfurt.
Para Reiser, era muito impressionante que esse jovem, a quem já
estava afeiçoado, tivesse exatamente o sobrenome dele, embora, em razão
da distância do local de nascimento, dificilmente poderia ser seu parente.
Gostaria de fazer amizade imediatamente com ele, mas não ousou, porque
seu homônimo era primeiranista e ele ainda era secundanista. Também
tinha medo de sua astúcia, da qual não se sentia à altura, se alguma vez
viesse a se dirigir a ele. No entanto, a aproximação entre os dois ocorreu
naturalmente, porque Philipp Reiser se tornava cada vez mais atento ao
modo silencioso e ensimesmado de Anton, enquanto este dava atenção ao
modo vivaz do primeiro, e eles logo se encontraram em meio à multidão e
ficaram amigos, apesar da diferença de temperamento.
Esse Philipp Reiser era sem dúvida uma mente brilhante, mas, por
circunstâncias nas quais o destino o havia posto, era também oprimido. –
Além de uma sensibilidade refinada, era dotado de muita astúcia e humor,
de verdadeiro talento musical e, ao mesmo tempo, de uma cabeça
excelente para mecânica – mas era pobre e extremamente orgulhoso.
Antes de aceitar qualquer favor, preferia passar fome, o que de fato
frequentemente ocorria. – Porém, quando tinha dinheiro, era generoso e
hospitaleiro como um rei – desfrutava mais aquilo que comia quando
podia compartilhar em abundância com os outros – mas sem dúvida não
aprendera muito bem a calcular receitas e despesas, e por isso teve muitas
e frequentes ocasiões de praticar a grande arte da privação voluntária
daquilo que gostaria de ter. – Sem jamais ter tido instrução, fabricava
pianos muito bons, o que lhe proporcionava algumas vezes uma boa
receita, mas que sem dúvida não o ajudava muito por causa de sua imensa
generosidade. Ideias romanescas enchiam de modo constante sua cabeça,
e sempre estava perdidamente apaixonado por alguma mulher; quando
chegava a esse ponto, era como se ouvíssemos um amante dos tempos da
cavalaria. – Sua fidelidade na amizade, seu desejo de ajudar os
necessitados e mesmo sua hospitalidade tinham a mesma característica e
se baseavam em parte nas ideias romanescas que nutriam sua fantasia,
embora o verdadeiro fundamento fosse seu bom coração – pois esses
exageros de virtudes romanescas só podem germinar e criar raízes no
fundo de um bom coração. Numa alma egoísta e num coração atrofiado, a
mais frequente leitura de romances jamais produzirá tais efeitos. –
É fácil ver por que Philipp e Anton Reiser encontraram um ao outro no
meio do caminho, e, com o convívio mais íntimo, pareciam feitos um para
o outro. O primeiro tinha quase 20 anos quando Reiser o conheceu; os
anos a mais o tornavam de certo modo líder e conselheiro, mas foi uma
pena que, no ponto principal, no que se refere à organização da vida, Reiser
não achou um líder e conselheiro melhor. Mas havia encontrado o
primeiro verdadeiro amigo de sua juventude, cujo convívio e conversas
tornavam de alguma forma suportáveis as horas que tinha de passar no
coro.
O bom tempo se fora, e a chuva, a neve e o frio chegaram – mesmo
assim, o coro tinha de cantar na rua em horas determinadas. – Ah!, e como
Reiser, congelado pelo frio, contava os minutos para acabar o canto
maçante que antes parecia soar a seus ouvidos como uma música celestial.
As quartas-feiras, os sábados à tarde e os domingos inteiros eram
ocupados apenas pelo coral – pois todas as manhãs de domingo os coristas
tinham de estar na igreja para cantar o Amém lá do alto do coro. –
Também no sábado à tarde, durante a preparação da eucaristia, os jovens
alunos do coro tinham de entoar uma canção com o mestre de capela, e
um deles devia ler um salmo lá de cima do coro, o que era novamente uma
imensa descoberta para Reiser – com essas leituras públicas e em voz alta
dos salmos, ele se sentia recompensado por todo o incômodo de cantar no
coro. – Já se via ali em pé como o pastor P. em B., falando com a voz
comovida para o povo reunido.
Aliás, o coro logo se tornou para ele a coisa mais desagradável do
mundo. Roubava-lhe todas as horas de repouso que ainda lhe sobravam,
deixando-o sem a perspectiva sequer de um único dia de sossego na
semana. Como se dissiparam os sonhos dourados que nutrira! – E como
teria sido bom, se fosse possível, ter se libertado daquela escravidão. – Mas
o dinheiro do coro já fazia parte de seus rendimentos regulares, e ele não
se permitia sequer pensar em largar o coral.
Não acontecia nada melhor com a maior parte de seus companheiros
de escravidão, que estavam fartos dessa vida tanto quanto ele. – E também
é de fato muito triste a vida de um aluno de coro, obrigado a cantar pelo
seu sustento de porta em porta. Se alguém não perde de todo o ânimo
nessa situação, trata-se então de um caso raro. – A maioria das pessoas
acaba por se tornar servil e, uma vez assim, jamais se livra desse traço.
O chamado coral do Ano-Novo, que dura três dias seguidos, provocou
em Reiser uma impressão estranha e que, por causa das muitas mudanças
de cenas que nele ocorrem, tem muita semelhança com uma jornada de
aventura. – Sob neve e frio, alunos ficam na rua, apinhados e encostados
uns aos outros, até que um mensageiro, enviado de vez em quando, traz a
notícia de que se deve cantar em uma das casas. – Em seguida, eles entram
e são obrigados a cantar na sala, primeiro uma ária ou moteto apropriado
à época do ano. – Depois que cantam, alguns donos das casas costumam
fazer a gentileza de servir vinho, ou café, e bolo aos alunos do coro. Essa
recepção numa sala quentinha depois de terem ficado longo tempo no
frio, com as bebidas oferecidas, era um revigoramento, e a variedade de
objetos, já que viam num único dia mais de vinte mobiliários domésticos
distintos e famílias reunidas em suas salas de estar, provocava uma
impressão tão agradável na alma que durante os três dias eles pairavam
em certo encantamento e numa constante expectativa de novas cenas,
tolerando de bom grado os rigores do clima. – O canto durava até a noite, e
a iluminação noturna deixava a cena mais solene. Entre outros lugares, o
coro de alunos cantou também o Ano-Novo num asilo de senhoras idosas,
onde tiveram de formar um círculo com as mães idosas e cantar de mãos
postas: “Até aqui Deus me trouxe” etc. – Nesse canto de Ano-Novo todos
pareciam ser mais amigáveis uns com os outros. Não se atentava muito à
hierarquia, os primeiranistas conversavam com os secundanistas, e uma
alegria incomum tomava conta de todos os ânimos.
Naquele Ano-Novo, Reiser também foi tomado por um furor
surpreendente para fazer versos. – Os votos de Ano-Novo para os pais,
para o irmão, para a sra. F. e sabe-se lá para quem mais foram escritos em
versos, e neles falava dos riachos de prata serpenteando entre as flores, e
dos delicados zéfiros, e de dias dourados, que eram de admirar – seu pai
sentira um prazer maravilhoso com o riacho de prata; mas sua mãe ficou
surpresa por ele chamar o pai de “o pai melhor”, pois ele só tinha um.
Seu aprendizado de poesia consistia à época em quase nada, a não ser
os escritos breves de Lessing, emprestados por Philipp Reiser e que sabia
praticamente de cor de tanto que os havia lido. A propósito, via-se
facilmente que, desde que tinha entrado para o coral, não sobrava mais
tempo para os seus próprios trabalhos. Apesar disso, tinha grandes
projetos de todo tipo; o estilo em Cornélio Nepos, por exemplo, não lhe
era suficientemente elevado, e ele teve a ideia de dar uma roupagem
completamente diferente à história dos generais; algo parecido à maneira
como estava escrito Daniel na cova dos leões – que também deveria se tornar
uma espécie de poema épico.
Nas aulas particulares com o vice-reitor, foram lidas as comédias de
Terêncio, e a mera ideia de que esse autor fosse considerado um dos mais
difíceis levou-o a estudá-lo com mais afinco do que Fedro ou Eutrópio, e
cada peça lida na escola, ele a traduzia imediatamente em casa.
Quando realizou desse modo verdadeiros e imensos progressos em tão
pouco tempo, fez uma nova visita ao homem velho e surdo, que já passara
dos 100 anos e já havia um bom tempo voltara a ser criança, mas para o
assombro de todos recuperara completamente o juízo um ano antes de sua
morte. Reiser sabia que seu quarto ficava no fim de um corredor escuro e
sentiu um pequeno arrepio quando ouviu a distância os passos rastejantes
do velho, que, assim que Reiser entrou, lhe deu as boas-vindas
amigavelmente, acenando-lhe com a mão para que lhe escrevesse alguma
coisa.
Com verdadeiro arrebatamento Reiser escreveu que agora estava
estudando e já traduzia Terêncio e o Novo Testamento!
O ancião consentiu em participar de sua alegria infantil e ficou
admirado de Reiser já poder entender Terêncio, que requer o domínio de
um amplo vocabulário. Por fim, Reiser, para ostentar sua sabedoria, lhe
escreveu alguma coisa em letras gregas – e o ancião o estimulou a
continuar sua dedicação aos estudos, exortando-o a não se esquecer da
oração, e ali mesmo se ajoelharam, e assim como cinco anos antes, quando
Reiser o viu pela primeira vez, rezaram novamente juntos.
Reiser foi para casa com o coração comovido e se propôs a voltar-se
novamente para Deus, o que para ele significava pensar incessantemente
em Deus – ele se recordou melancólico do estado no qual se encontrava na
infância quando entabulava conversa com Deus, e cada vez mais tinha
altas expectativas de que grandes coisas ocorreriam dentro dele. – Havia
nessas recordações uma doçura indescritível, pois o romance encenado
pela devota fantasia das almas crentes com o supremo ser, por quem se
creem ora abandonadas, ora aceitas de novo, ora sentem nostalgia e
avidez por ele, ora estão novamente num estado de secura e vazio no
coração, tem algo de realmente sublime, de grandioso, e mantém a vida
espiritual numa atividade incessante, de modo que os sonhos noturnos
também se ocupam de coisas sobrenaturais, tal como Reiser uma vez
sonhou que fora aceito na sociedade dos bem-aventurados que tomavam
banho em rio cristalino – um sonho que muitas e frequentes vezes
encantou sua imaginação.
Reiser pegou novamente emprestados do velho Tischer os escritos de
Madame Guyon e enquanto lia recordou aqueles tempos felizes em que,
segundo sua opinião, estava ocupado com o caminho para a perfeição. –
Quando muitas vezes ficava triste e mal-humorado em razão de
circunstâncias externas, e nenhuma leitura era de seu gosto, a Bíblia e os
cânticos de Madame Guyon eram seu único refúgio, por causa da atraente
obscuridade que neles imperava. Através do véu de suas frases
enigmáticas, brilhava uma luz desconhecida que revigorava sua fantasia
mortificada – mas mesmo assim não conseguia progredir mais nem com
verdadeira crença nem com o pensamento incessante em Deus. – Entre as
pessoas de seu convívio, ninguém mais se preocupava com seu estado de
alma, e ele tinha tantas distrações na escola e no coro que não conseguia
sequer por uma semana manter-se fiel à tendência a voltar-se
constantemente para dentro de si mesmo.
No entanto, ele ainda visitou muitas vezes o ancião, até que certo dia
em que quis visitá-lo soube que estava morto e enterrado – suas últimas
palavras haviam sido: tudo! tudo! tudo!. Reiser se lembrou de ter ouvido
muitas vezes dele essas palavras no meio da oração, ou então, após uma
pausa, numa espécie de arrebatamento. – Às vezes parecia querer exalar,
com essas palavras, seu espírito maduro para a eternidade, e se desfazer
naquele instante de sua carcaça mortal. – Por isso Reiser ficou muito
impressionado quando soube que o ancião morrera dizendo essas palavras
e, no entanto, para ele era como se também não tivesse morrido, pois o
religioso ancião sempre havia passado uma forte impressão de viver em
outro mundo – das últimas vezes que Reiser falou com ele, morte e
eternidade foram quase seu único pensamento. – Para Reiser, daquela vez
que tentou visitar o ancião, era quase como se ele tivesse mudado de
morada, e isso não se devia à indiferença, mas à íntima familiaridade
daquele homem com a ideia da morte.
Mas, por outro lado, perdera no ancião um amigo de sua juventude,
cujo interesse em seu destino lhe dera alegria tantas vezes. Em muitos
momentos, ele se sentia, sem saber o motivo, mais abandonado que antes.
A sra. F. estava também cada vez mais farta com o peso de sua estada e
finalmente lhe disse, após ter tido paciência ao longo de nove meses, que
ele deveria deixar a casa, aconselhando-o, com a melhor das intenções, a
procurar outro lugar. Nesse meio-tempo, o reitor do liceu partiu, e o novo
reitor S., escolhido para ficar em seu lugar, era um bom amigo do pastor
M.; este pensou então em levar Reiser para a casa do novo reitor e lhe
chamou antecipadamente atenção para as grandes vantagens que assim o
beneficiariam, se tivesse a sorte de ser acolhido por ele em sua casa. –
Reiser deveria então se mudar para a casa do reitor – e isso deixou sua
vaidade muito lisonjeada! Pois pensou que, se tivesse a sorte de se tornar
querido pelo reitor, perspectivas radiantes se abririam para ele, pois, além
do mais, o reitor seria seu professor, porque, após o fim de seu primeiro
ano escolar na segunda série, ele seria transferido para a primeira série,
onde só o diretor e o reitor davam aulas.
No fim das contas, foi extremamente favorável para Reiser que a sra. F.
o tivesse alertado para deixar a casa, porque ele jamais teria ousado
mencionar uma palavra sobre querer se mudar dali. – Além disso, ainda
tinha a maior expectativa de ser inquilino na casa do reitor, seu futuro
professor. Mas, por volta dessa época, ele começou a formar em sua
imaginação uma nova ideia extravagante, que teve grande influência em
toda a sua vida futura.
Já mencionei os exercícios de declamação ministrados pelo vice-reitor
na segunda série. Isso era para Reiser e I. um estímulo tão extraordinário
que tudo o mais ficava obscurecido, e ele não desejava mais nada a não ser
a oportunidade de um dia representar uma peça de teatro com alguns dos
seus colegas de escola, para que pudessem ouvi-lo declamar – isso era um
estímulo tão infinito que durante um tempo ficava às voltas com esse
pensamento, dia e noite, e fez até um esboço para uma peça na qual dois
amigos seriam separados e por isso estavam inconsoláveis etc. –
Encontrou também, num dos volumes da Biblioteca para crianças e jovens, de
Leyding, que alguém lhe havia emprestado, o comovente drama em versos
O eremita, que gostaria de montar com I. Desejava realmente um papel
afetado em que falasse com o maior páthos e pudesse ter uma série de
sensações almejadas, mas que não podia ter em seu mundo real, onde tudo
acontecia de maneira tão fria e pobre. – Em Reiser, esse desejo era muito
natural; era capaz de sentir amizade, gratidão, generosidade e nobre
determinação, sentimentos que estavam adormecidos dentro dele sem
nenhuma utilidade; pois seu coração estava contraído por sua situação
exterior. Era de esperar que buscasse novamente se expandir num mundo
ideal e se entregar aos seus sentimentos naturais! No teatro ele parecia,
por assim dizer, se reencontrar, depois de quase se perder no mundo real.
Por isso, como consequência, sua amizade com Philipp Reiser também se
tornou praticamente uma amizade teatral, que muitas vezes foi tão longe
a ponto de um estar decidido a morrer pelo outro. – A ideia extravagante
do teatro adquiriu tanto valor para ele que a obsessão por pregar foi
praticamente expulsa de sua alma – pois aqui sua imaginação encontrou
um espaço muito maior de atuação, muito mais próximo da vida real e do
seu interesse do que no eterno monólogo do pregador. Quando repassava
as cenas de um drama que havia lido ou esboçado em pensamento, Reiser
encarnava de fato um após o outro todos os papéis que representava, ora
era generoso, ora grato, ora magoado e paciente, ora impetuoso,
enfrentando corajosamente qualquer ataque.
Nesse momento, ir para a primeira classe era uma perspectiva
extraordinariamente atraente para ele – pois os primeiranistas do liceu
em H. tinham sem dúvida muitas prerrogativas externas, como se
encontram em poucas escolas. Todo Ano-Novo, eles faziam um desfile
público com música e tochas diante de uma grande quantidade de
espectadores, dando vivas ao diretor e ao reitor. Na noite seguinte, eles
espontaneamente entregavam, um ano ao diretor e outro ao reitor, um
presente conjunto, que valia em geral mais de cem moedas de prata, e
aquele que o entregava também fazia um pequeno discurso em latim –
depois lhes eram servidos vinho e bolo, e podiam tomar a liberdade de
gritar um alto e retumbante viva ao seu professor na casa deste.
A organização daquele desfile sempre começava a ser discutida quase
um trimestre antes.
Todo verão, durante a canícula, os primeiranistas encenavam as peças,
escolhidas por eles, e eram responsáveis por sua organização. Isso os
ocupava quase todo o verão. Depois, em janeiro, era a festa de aniversário
da rainha e, em maio, a do rei, em que sempre era proferido um discurso
com grande solenidade, ao qual compareciam o príncipe, os ministros e
quase todos os notáveis da cidade. A preparação de cada uma dessas
celebrações tomava muito tempo. Além disso, anualmente eram
realizados dois exames públicos, cada qual sempre seguido por um
feriado. Perdia-se muito tempo com isso. Mas, para um jovem ambicioso,
tudo significava metas muito atraentes, que sempre lhe revigoravam o
encanto pelo ano letivo, tão logo este ameaçava se extinguir.
Ser uma vez um dos comandantes no desfile com tochas, ou fazer um
discurso em latim na entrega do presente, ou ter um papel principal numa
das peças encenadas, ou até mesmo proferir um discurso no aniversário
do rei ou da rainha eram os desejos e as perspectivas de um primeiranista
do liceu em H. Acrescente-se ainda o elegante auditório da primeira
classe, com uma cátedra dupla elegantemente construída de nogueira
encerada, e cortinas verdes diante das janelas, tudo reunido para
preencher de novo a fantasia de Reiser com imagens comoventes de sua
situação futura e excitar ao mais alto grau sua expectativa quanto ao que
lhe aconteceria. Tornar-se um primeiranista imediatamente após seu
primeiro ano escolar era uma alegria com a qual mal teria podido sonhar.
Repleto dessas esperanças e perspectivas, na semana de férias antes da
Páscoa, Reiser viajou, com cocheiros que percorriam o mesmo caminho,
para a casa dos pais a fim de lhes contar sua alegria. Nessa viagem, em que
grande parte do caminho era pela floresta e pela charneca, sua fantasia, já
entusiasmada, foi tomada por um impulso extraordinário: ele esboçou
poemas épicos, tragédias, romances, e quem sabe o que mais – às vezes
também lhe ocorria pensar em escrever sua vida; mas o começo que ele
imaginava era sempre igual às robinsonadas que havia lido, a saber, tinha
nascido em tal e tal ano, em H., de pais pobres, mas honrados, e assim por
diante.
Todas as outras vezes que viajou depois à casa dos pais, a pé ou de
carroça, sua imaginação se mantinha sempre completamente ocupada
durante o trajeto – todo o espaço de tempo de sua vida pregressa surgia
diante dele assim que perdia de vista as quatro torres de H. – o horizonte
de sua alma se ampliava com o horizonte diante de seus olhos. – Sentia-se
transposto do limitado círculo de sua existência para o grande e amplo
mundo, no qual eram possíveis todos os acontecimentos maravilhosos que
já havia lido nos romances – por exemplo, daquela colina, de repente o pai
e a mãe viriam ao seu encontro e ele alegremente se apressaria na direção
deles – Reiser já pensava ouvir o tom de voz dos pais – e, quando fez pela
primeira vez essa viagem, sentiu realmente o mais puro prazer da ansiada
expectativa de estar com eles: que grandes coisas não teria para lhes
contar!
Quando ele chegou, ao meio-dia do dia seguinte, os pais e os dois
irmãos o saudaram com alegria cordial em sua residência campestre. Eles
tinham um pequeno jardim no fundo da casa. Até então, tudo parecia bem.
Mas quanto à paz doméstica, como logo viu, tudo continuava infelizmente
como antes. Ouviu, porém, seu pai tocar de novo a cítara e cantar os
cânticos de Madame Guyon. Conversaram também sobre a doutrina de
Madame Guyon, e Reiser, que já havia formado em sua cabeça uma espécie
de metafísica, próxima do spinozismo, muitas vezes concordava
milagrosamente com o pai quando falavam sobre o tudo da divindade e o
nada da criatura, o que era ensinado por Madame Guyon. Eles acreditavam
se entender, e Reiser sentiu um infinito prazer nessas conversas com o
pai, que antes parecia julgá-lo apenas um garoto idiota; conversar agora
sobre assuntos sublimes com ele era algo que o lisonjeava. Depois
visitaram o pregador e os notáveis do lugar; Reiser foi convidado por
todos para participar das conversas e, como esse tratamento também lhe
inspirou autoconfiança, ele se comportou muito bem. – Os vizinhos de
seus pais, e quem chegasse ali, estavam todos atentos ao filho do escrivão,
cujos estudos em H. eram sustentados pelo príncipe. – A alegria pura e
serena que Reiser desfrutou naqueles dias, junto com as esperanças mais
agradáveis, compensou fartamente todos os desgostos e as humilhações
imerecidos que sofrera durante todo o ano.
Mas ninguém no mundo, nenhum familiar, esteve tão interessado em
seu destino como sua mãe – à noite, quando Reiser ia se deitar, ela se
curvava sobre ele e dizia em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, Amém,
fazendo o sinal da cruz sobre a testa dele, como antigamente, para que
dormisse protegido, e não havia noite ou manhã em que ela, mesmo na
ausência do filho, não o incluísse em sua prece. – Com melancolia, Reiser
se despediu dos pais, e, ao ver de novo as torres de H., tristes
pressentimentos apertaram seu coração.
No dia seguinte ao de seu retorno, ele foi examinado pelo diretor para
a transferência de grau escolar, e, como deveria traduzir um trecho de Dos
deveres, de Cícero, do latim para o alemão, quis o acaso que ele
infelizmente virasse uma página do exemplar que o diretor havia lhe dado
com tal falta de jeito que quase a rasgou. Por causa disso, a sensibilidade
do diretor, que sempre procurava ser extremamente delicado em tudo, só
pôde ficar gravemente ofendida. – Reiser decaiu infinitamente aos olhos
do diretor por esse gesto que aparentemente indicava falta de sentimento
e de modo de vida refinados. O diretor repreendeu sua inabilidade de
maneira muito severa, de tal modo que a confiança de Reiser nele recebeu
um golpe violento do qual jamais conseguiu se recuperar, por causa da
vergonha causada pela severa repreensão. Por esse motivo, o modo de ser
acanhado que Reiser a partir daí demonstrava na presença do diretor
acabou por depreciá-lo ainda mais. Em suma, de uma única página virada
rapidamente no exemplar do diretor de Dos deveres, de Cícero, procederam
em grande parte todos os sofrimentos que Reiser passaria a viver a partir
de então em seus anos de aprendizado, e que se baseavam
fundamentalmente na falta de respeito do diretor, cuja aprovação, que
tanto lhe importava, ele perdera apenas por ter virado a página rápido
demais.
Além disso, apesar de já ter se mudado da casa da sra. F., ela ainda
guardava trancada sua roupa nova, e Reiser era obrigado a frequentar a
primeira classe, na qual se via cercado de jovens quase todos muito bem-
vestidos, com a antiga sobrecasaca recebida pelo chapeleiro L. A
sobrecasaca lhe dava um ar ridículo porque lhe ficara muito curta. Ele
mesmo se sentia assim, e tal circunstância contribuiu muito para sua
timidez, a qual demonstrou naquela classe como nunca. O mestre de
capela e o vice-reitor também ficaram extremamente zangados com
Reiser, pois ele não havia dito previamente nada sobre sua transferência
para a primeira classe e dera esse passo sem o conselho deles. Ele se
desculpou tanto quanto pôde, alegando que não havia pensado naquilo. O
mestre de capela logo o perdoou, mas o vice-reitor jamais, e ainda o fez
pagar por isso durante um bom tempo. Exigiu de Reiser um valor alto para
as aulas particulares que haviam sido dadas, as quais todos achavam
serem de graça – durante alguns anos, esse dinheiro saía do pagamento
que Reiser recebia do coro, muitas vezes no momento em que dele mais
necessitava – circunstância que também o deixou muito abatido.
Ele conseguiu então uma sala e uma alcova na casa do reitor, e nada
mais, pois este ainda não estava totalmente instalado. Reiser ainda tinha
uma manta de lã dos pais; além disso, para economizar o máximo possível,
alugaram-lhe um travesseiro e um colchão; quando esfriava à noite, ele
era obrigado a recorrer à sua roupa a fim de se cobrir bem. Seu velho
piano servia-lhe de mesa; tinha também um banquinho do auditório do
reitor, uma pequena prateleira pendurada com prego sobre a cama, e uma
mala velha com algumas roupas usadas na alcova – era esse todo o seu
mobiliário doméstico, mas ali ele se sentia muito mais feliz do que na sala
da sra. F., mesmo havendo lá muito mais conforto.
Ao ficar sozinho em sua sala, ele se sentia muito bem, mas ainda não se
sentia confiante na presença do reitor. Quando o via de pijama e touca de
dormir, parecia se espalhar ao seu redor uma aura de seriedade e
dignidade que mantinha Reiser a grande distância – ele tinha de ajudá-lo a
organizar sua biblioteca; às vezes, quando lhe passava os livros, chegava a
ficar tão perto dele que Reiser podia ouvir sua respiração, e com
frequência sentia então uma força dentro de si para estabelecer o vínculo
– mas logo a seguir a timidez e o embaraço voltavam. – Apesar disso, ele
amava o reitor – e sua cabeça cheia de ideias romanescas às vezes o fazia
desejar ser transposto com o reitor para uma ilha inabitada qualquer,
onde eles, igualados pelo destino, pudessem ter relações amistosas e
familiares.
O reitor fez de tudo para inspirar coragem e confiança em Reiser;
várias vezes convidou-o para comer à sua mesa, só os dois, e conversavam
– naquela época, Reiser já tinha o projeto de ser escritor: queria melhorar
o estilo da antiga Acerra philologica, e o reitor teve a generosidade de
sempre encorajá-lo a alimentar esses projetos futuros e a se ocupar de sua
elaboração.
Quando Reiser falava coisas assim com o reitor, faltavam-lhe sempre os
termos corretos que deveria usar, o que acabava por quebrar bastante
suas frases. – Pois ele preferia ficar em silêncio a escolher a palavra errada
para o pensamento que queria expressar. – Nesses momentos, o reitor o
acudia com muita indulgência. – Muitas vezes, pedia que ele viesse à noite
até a sala e lesse em voz alta. –
Às vezes, Reiser ousava lhe fazer perguntas: por exemplo, em que
medida uma cadeira pode ser denominada um indivíduo, já que se pode
dividi-la sempre mais e mais, dúvida que lhe ocorrera na aula de lógica do
diretor – e o reitor solucionou sua dúvida com muita condescendência e o
elogiou por suas reflexões sobre questões semelhantes; às vezes, brincava
com Reiser, e, caso o encarregasse de buscar um livro ou outra coisa
qualquer, jamais fazia isso em tom de ordem, mas de pedido. – Assim as
coisas seguiam muito bem – mas para virar a página Reiser ainda parecia
ter azar – certa vez, a pedido do reitor, teve de abrir, com uma faca de
pena, páginas de livros encadernados, e as abriu com tamanha falta de
jeito que fez cortes profundos a ponto de os livros ficarem praticamente
estragados. O reitor ficou muito bravo e lhe fez uma dura reprimenda,
como se Reiser tivesse feito os cortes nas páginas por maldade a fim de se
livrar do trabalho. – Certamente não foi esse o motivo – a reprimenda
feriu Reiser e muito contribuiu para abater novamente seu ânimo, que aos
poucos se erguia.
No entanto, ele ainda se recuperou mais uma vez, quando o reitor o
levou numa pequena viagem a uma cidade católica vizinha a fim assistir à
celebração do Corpus Christi. – O reitor, o vice-reitor, o mestre de capela e
alguns alunos de teologia viajaram na mala-posta extra, na qual Reiser
também conseguiu um lugar. Na ocasião, viu esses homens veneráveis,
que haviam se tornado mais íntimos pelo laço mútuo que costuma ocorrer
numa pequena viagem em grupo, brincarem uns com os outros com muita
vivacidade; e isso teve um efeito bastante especial em Reiser. – A aura ao
redor de suas cabeças foi desaparecendo pouco a pouco, e pela primeira
vez ele os viu simplesmente como seres humanos – pois jamais havia visto
um grupo de sacerdotes que debatessem descontraídos uns com os outros,
despindo-se momentaneamente da postura rígida e cerimoniosa que
normalmente lhes é atribuída em razão de sua posição. Somente o bom
mestre de capela manteve certa postura rígida, e, ao longo do trajeto,
quando um grande número de mendigos se aproximava da carruagem
entoando canções espirituais, os companheiros troçavam do mestre de
capela por essa cena, compadecendo-se dele afetuosamente por causa do
horrível tom desafinado que estremecia por completo seus ouvidos. Era a
primeira vez que Reiser via como aqueles homens veneráveis também
podiam troçar uns dos outros, como qualquer outra pessoa. E essa
experiência se tornou muito útil para ele; agora, quando via um pregador
que ainda considerava de algum modo uma espécie de ser sobre-humano,
ele o imaginava dentro daquele círculo de companheiros de viagem, e em
sua imaginação desfazia com facilidade a aura que antes o rodeava.
Apesar disso, tornou a sentir intensamente o quanto era insignificante
no grupo; e enquanto admiravam todas as particularidades dos mosteiros
e outras coisas na cidade católica, junto com certo número de pessoas,
inclusive estrangeiros, ele percebeu, o que sempre foi evidente, que era o
último em tudo e que tinha de encarar isso como uma grande honra – essa
ideia fez com que tivesse um comportamento constrangido, tolo e
estúpido no grupo, e sentiu esse seu comportamento de novo muito mais
fortemente do que qualquer pessoa além dele; por isso, durante aquele
momento em que pôde ouvir e ver tantas coisas novas, ele não foi nem um
pouco feliz e desejou novamente estar em seu cantinho solitário, com o
banco e o velho piano, e com a prateleira que estava pendurada no prego
sobre sua cama.
Mas o que começou fundamentalmente a amargar seu destino foi uma
nova e imerecida humilhação, provocada pela atual situação em que se
encontrava e que ele não conseguia modificar.
As primeiras vezes que compareceu à primeira classe, ouviu um ou
outro cochicho atrás de si: veja, este é o fâmulo do reitor! – Uma
denominação à qual Reiser associava o mais baixo conceito; pois ainda não
sabia nada sobre os comportamentos de um fâmulo na universidade. Para
Reiser, fâmulo significava, talvez, ainda menos que um serviçal que
engraxa os sapatos do patrão. E, para ele, era como se seus colegas em
geral o considerassem com certo tipo de desprezo. Em seguida, ele se
imaginou vestindo sua sobrecasaca curta, com a qual parecia sempre ter
um aspecto ridículo – apesar de suas roupas velhas, na segunda série ainda
era respeitado por seus colegas de escola, em virtude da elevada opinião
que tinham dele, pois seus estudos eram custeados pelo príncipe. Na
primeira série, sabia-se disso em parte, mas a ideia de que era o fâmulo do
reitor parecia depreciá-lo perante os olhos de todos. Agora, na classe mais
alta, era extremamente importante o lugar onde se sentava: os lugares
mais altos só podiam ser alcançados por meio de prolongada e contínua
dedicação aos estudos. Em geral, subia-se um banco apenas a cada meio
ano. – Os primeiros quatro bancos formavam a seção inferior; e os últimos
três, a seção superior. – Aquele que ao longo do semestre não avançava
sofria com isso uma das maiores humilhações.
Logo na manhã do terceiro dia, enquanto um primeiranista lia uma
prece da cátedra inferior, Reiser dera um sorriso quando seu vizinho lhe
disse algo; e nesse instante ele viu que o diretor havia percebido aquilo e
imediatamente procurou fazer uma expressão séria – e a impressão da
página virada que havia permanecido em sua alma fez com que a
repentina mudança de fisionomia não ocorresse de modo a revelar um
medo nobre, mas antes apenas um medo extremamente desconfiado,
vulgar e servil, do qual o diretor, com um olhar de ira e desprezo lançado a
Reiser durante a oração, parecia concluir que seu modo de pensar era
inferior e vulgar. Um olhar assim do diretor já era algo que costumava
chamar a atenção geral. Mas, uma vez terminada a oração, ele disse a
Reiser algumas palavras sobre a vilania estampada em seu rosto, palavras
que expuseram Reiser de vez ao desprezo da classe inteira, para a qual os
ditos do diretor eram um oráculo.
Daquele momento em diante, Reiser não mais ousou levantar os olhos
para o diretor e, em suas aulas, foi obrigado a se ver como um ser a quem
não se dava a menor consideração: pois o diretor nunca mais o chamou.
Alguns jovens que chegaram à primeira classe depois de Reiser foram
colocados à sua frente, e durante vários meses ele teve de permanecer no
último lugar. O jovem R., uma mente primorosa, que viria a se tornar um
famoso pintor, sentava-se ao seu lado e parecia querer se aproximar dele;
mas um olhar do diretor, com o qual este certa vez o encarou quando
falava com Reiser, abafou todas as fagulhas de respeito que ele parecia ter
por Reiser, afastando seu coração dele. O comportamento do diretor para
com ele era uma consequência de seu caráter tímido e desconfiado, que
parecia revelar uma alma inferior; mas o diretor não considerava que esse
caráter tímido e desconfiado era também a consequência de seu
comportamento inicial em relação a ele.
Reiser acabou perdendo o respeito de seus colegas de escola, e agora
todos queriam montar em seu cangote, fazer brincadeiras com ele, e, caso
reagisse de determinado modo com um, outros vinte disputavam uns com
os outros para torná-lo alvo de escárnio; até mesmo sua bravura, quando
às vezes brigava com aqueles que passavam dos limites, que teria feito
qualquer outra pessoa ser respeitada, acabou ridicularizada. Não
cochichavam mais nos ouvidos “olhem o fâmulo do reitor!”, mas de
manhã, assim que ele entrava, diziam: lá vem o fâmulo!, e essa
denominação honrosa lhe era lançada de todos os cantos. Era como se
todos tivessem tramado para montar em seu cangote e ridicularizá-lo.
Essa situação se tornou infernal para Reiser – ele berrava, se enfurecia
e caía numa espécie de frenesi, e isso também era ridicularizado.
Finalmente, uma espécie de embotamento dos sentidos tomava algumas
vezes o lugar do furor e do frenesi de seu orgulho ferido – ele nem via
mais o que se passava ao redor e permitia que os outros fizessem o que
bem entendessem dele, de modo que, nesse estado, parecia ser um objeto
digno de escárnio e desprezo.
Não seria espantoso se ele por fim, se continuassem a tratá-lo desse
modo, começasse realmente a pender para a vilania. Mas em certas horas
ainda sentia força dentro de si para sair de seu mundo real. Era o que o
mantinha de pé – quando em seu mundo real sua alma era diminuída por
milhares de humilhações, ele exercitava os nobres sentimentos de
generosidade, firmeza, altruísmo e persistência todas as vezes que lia com
atenção algum romance ou algum drama épico, ou pensava com
profundidade sobre eles. Desse modo, enquanto se enrijecia pelo frio que
sentia cantando no coro, com frequência se transportava em sonho para
cenas alegres que pairavam além de todas as aflições da terra, e assim
fantasiava por muitas horas durante as quais certas melodias que ouvia e
cantava o ajudavam frequentemente a propagar seu sonho. Nada lhe
soava, por exemplo, mais comovente e sublime do que quando o líder do
coro começava a cantar:

Lãsi, ó admirável Sol,


Teu brilho prazenteiro
Sobre o obscuro nevoeiro[18] –

Bastava o lãsi para levá-lo a regiões elevadas, dando todas as vezes um elã
extraordinário a sua imaginação, porque tomava a palavra por alguma
expressão oriental, que não entendia e por isso mesmo podia lhe atribuir
ao seu bel-prazer um sentido tão sublime: até que certa vez viu o texto
escrito entre notas e descobriu o que significava:

Lance, ó admirável Sol…

O líder do coro sempre cantava essas palavras conforme seu dialeto


turíngio: Lãsi, ó admirável Sol – e de repente todo o encanto havia
desaparecido, encanto que em tantos momentos havia alegrado Reiser. –
Do mesmo modo ele sempre se comovia quando cantavam: Tu o escondes no
teu ninho, ou eu me deito sob teu abrigo, e durmo bem tranquilo.
Muitas vezes, ele se embalava de tal modo com a doce sensação de
proteção de um ser supremo que esquecia a chuva, o frio e a neve,
parecendo descansar no vento que o envolvia como numa cama macia.
Mas de fora parecia que tudo se reunia para humilhá-lo e prostrá-lo.
No verão, o reitor viajou por algumas semanas, e durante esse período
Reiser permaneceu sozinho em sua casa, onde passava o tempo
relativamente satisfeito, porque podia aproveitá-lo para ler alguns livros
da biblioteca do reitor, tendo descoberto, entre outros, os Escritos de
Moses Mendelssohn e as Cartas sobre literatura, dos quais fez inicialmente
excertos.
Anotou especialmente as partes que diziam respeito ao teatro, pois
essa ideia já era então dominante em sua mente e uma espécie de semente
de todas as suas adversidades futuras.
Ela havia despertado vivamente em Reiser graças à declamação na
segunda classe, e foi aos poucos removendo de sua cabeça a fantasia da
pregação. – O diálogo no teatro o estimulava mais do que o ininterrupto
monólogo no púlpito. – E, além disso, no teatro ele podia ser tudo o que não
havia tido a oportunidade de ser no mundo real, e o que tantas vezes
desejou ser – generoso, caridoso, nobre, persistente, superior a todas as
coisas que o humilhavam e o diminuíam. Ah, como ele ansiava um dia, por
meio de um breve jogo ilusório da imaginação, tornar reais esses
sentimentos que lhe pareciam tão naturais e dos quais, no entanto,
sempre precisava abrir mão.
Era mais ou menos isso que, já naquela época, tanto o atraía na ideia do
teatro. Ele reencontrava ali, de certo modo, todos os seus sentimentos e
pensamentos que não se ajustavam ao mundo real. O teatro lhe parecia
um mundo mais natural e adequado do que o mundo real ao seu redor.
Chegaram as férias de verão, e os primeiranistas, como era costume
ano a ano, encenavam publicamente diferentes peças. – Reiser não podia
ter a menor esperança de conseguir um papel, por causa do desprezo geral
a que estava exposto na condição de fâmulo do reitor; nem mesmo podia
arranjar com seus colegas de escola uma entrada para assistir à
encenação. Isso o humilhava acima de tudo até então – teve enfim a ideia
de fazer com dois ou três colegas de escola, que também não tinham
papel, uma peça, por assim dizer, dos descontentes, e encenar à parte, na
casa deles, uma comédia diante de uma pequena plateia. –
Para isso escolheram Filotas; Reiser comprou o papel principal de outro
rapaz que representava muito mal, e desempenhou, assim, o papel de
Filotas.
Ele estava agora em seu elemento. Durante toda uma noite, pôde ser
generoso, persistente e nobre – as horas de ensaio para o papel, e a noite
da representação, foram das mais felizes de sua vida, apesar de o teatro
ser apenas uma sala ruim com paredes brancas, e a plateia, uma alcova
rente à sala, onde, no lugar do vão da porta, foi pendurado um cobertor de
lã servindo de cortina; apesar, também, de todo o público ser constituído
apenas pelo proprietário da casa, um oleiro, sua esposa e seus artesãos, e
de toda a iluminação ser gerada apenas por velas de poucos vinténs, que
queimavam sobre pequenos estuques colados à parede com cola líquida.
Como epílogo, foi encenado Sócrates moribundo, das narrativas
histórico-morais de Miller, na qual Reiser fez apenas o papel de um amigo
de Sócrates; e um de seus colegas de escola, chamado G., fez o papel de
Sócrates moribundo, que esvaziou a taça com veneno e por fim faleceu
estrebuchando numa cama colocada na sala. –
Esse epílogo foi o que depois amargurou quase todos os anos escolares
de Reiser. –
Pois os primeiranistas tinham ficado sabendo que, além da peça deles,
os que ficaram sem nenhum papel haviam encenado também uma
comédia – e consideraram uma usurpação de seus direitos, realizada por
certa teimosia e desprezo.
Procuraram se vingar de todas as maneiras dessa ofensa, considerada
imperdoável por eles, e daquele momento em diante os quatro que haviam
encenado Filotas e Sócrates moribundo não puderam mais andar seguros na
rua à noite. – A partir daí, eles eram objeto de ódio, desprezo e escárnio,
mas o mais atingido era Reiser, pois os outros raramente frequentavam as
aulas. Antes demonstravam apenas desprezo por ele, cuja motivação, além
de uma espécie inexplicável de antipatia geral a ele, poderia estar
sobretudo em sua situação humilhante ou pelo menos supostamente
humilhante, em sua cara de bobo e em sua sobrecasaca curta; agora a esse
desprezo se acrescentava ainda uma exasperação geral que procurava
tornar tão mordaz quanto possível o escárnio com que o cumulavam.
Apesar de não ter feito o papel do Sócrates moribundo no epílogo, mas
sim G., desde então, era chamado pelo apelido genérico de Sócrates
moribundo, e não mais o perdeu até que toda essa geração deixasse
gradativamente a escola; um ano antes de sair da escola, ele ficou um bom
tempo adoentado e não saía de casa de jeito nenhum, quando então quis
novamente assistir a uma comédia encenada pelos primeiranistas naquela
época; deixaram-no entrar, mas lançaram-lhe um olhar de desprezo e
sarcasmo, dizendo: aquele é o Sócrates moribundo; e assim Reiser deu
rapidamente meia-volta e regressou triste para casa.
É costume reinar certa bondade entre as pessoas, de modo que tornam
objeto de escárnio apenas aqueles que são, por assim dizer, insensíveis ao
escárnio; se, ao contrário, percebem que alguém fica realmente ofendido e
magoado com o escárnio, eles ao menos deixam de exercê-lo, e a
compaixão por fim prevalece sobre a mania de escarnecer.
Mas esse não era o caso de Reiser – seu aspecto decaía dia a dia, ele
cambaleava tal qual uma sombra; tudo lhe era praticamente indiferente;
seu ânimo estava paralisado – procurava a solidão onde podia – mas tudo
isso não despertou nele sequer uma fagulha de compaixão. – Todos os
ânimos estavam completamente cheios de ódio e desprezo por ele. –
Além dele, certo T. era também objeto de escárnio, motivado em parte
por ser gago. – Mas T. era insensível ao escárnio tal como o animal de pele
é insensível a pancadas. Justificavam o escárnio dizendo que ele não se
ofendia. Quanto a Reiser, não tinham nenhum respeito – o escárnio enfim
magoou seu coração, tornando-o um misantropo a olhos vistos.
De onde nele poderia vir uma competitividade, uma dedicação, uma
verdadeira vontade de estudar dignas de louvor? – Ele foi completamente
marginalizado – estava sozinho e abandonado – e procurava somente
aquilo que podia isolá-lo cada vez mais e que o fazia se recolher dentro de
si; tudo o que trabalhava, lia e pensava sozinho no quarto lhe dava prazer,
mas sentia-se apático e desgostoso com as coisas que deveria fazer nas
aulas junto com os outros; era como se não fizesse parte daquilo.
E pensar que a esplêndida satisfação de seus sonhos era ver os alunos
da sabedoria sentados numa longa fileira de bancos e com arroubo se
imaginar ali e ter a esperança de um dia disputar o prêmio com eles. –
O reitor, em cuja casa Reiser morava, retornou de viagem, trazendo a
mãe, que procurou organizar minuciosamente o lugar. – O inverno
chegou, e não se pensou em aquecer o quarto de Reiser – ele aguentou o
frio mais severo e achou que enfim também pensariam nele – até ouvir
que deveria passar o dia no quarto da criadagem. –
Ele começou então a não mais se preocupar com suas relações externas
– desprezado e rejeitado tanto pelos professores como pelos colegas de
escola – e não amado por ninguém por causa de seu aborrecimento
permanente e sua índole acanhada, ele como que desistiu de si mesmo em
relação ao convívio humano – e procurou voltar-se por completo para dentro
de si.
Reiser ia a um alfarrabista e pegava um romance atrás do outro, uma
peça de teatro atrás da outra, e começou a ler com uma espécie de furor. –
Todo o dinheiro que conseguia economizar com comida era usado para
pegar livros emprestados; e como, passado algum tempo, o alfarrabista já
o conhecesse e lhe emprestasse livros para ler sem exigir o pagamento à
vista, Reiser, antes de se dar conta, se viu afundando em dívidas pelas suas
leituras, dívidas que podiam até ser pequenas, mas na época eram
exorbitantes para ele.
Tentou quitar parte das dívidas mediante a venda de seus livros
escolares, que o alfarrabista comprava dele por um preço irrisório – e
ainda por cima lhe emprestara novos livros para ler, até ele tornar a cair
em novas dívidas e, apreensivo, precisar pensar em como quitá-las.
A leitura se tornara de repente uma necessidade para ele, como deve
ser o ópio para os orientais, por meio do qual se produz uma agradável
anestesia dos sentidos. Se lhe faltasse um livro, ele trocaria a sobrecasaca
por uma bata de mendigo só para consegui-lo. O alfarrabista sabia se valer
muito bem desse desejo e pouco a pouco tirou todos os livros de Reiser,
vendendo-os, com frequência na presença do próprio, por um valor seis
vezes mais alto do que lhe havia pagado.
Nessas circunstâncias era compreensível que todos considerassem
Reiser um jovem imoral, degenerado, que vendia seus livros escolares e,
em vez de aumentar seu conhecimento e aproveitar as aulas de seus
professores, só lia romances e peças de teatro, negligenciando
completamente sua aparência; pois era muito natural que Reiser não
tivesse nenhum prazer com seu corpo, já que não agradava a ninguém no
mundo – e por isso todo o dinheiro que deveria ser destinado à lavadeira e
ao alfaiate era entregue ao alfarrabista. – Pois, para ele, a necessidade de
ler tinha prioridade em relação a comer, beber e vestir-se, e de fato uma
noite leu o Ugolino depois de ter passado o dia inteiro sem comer nada,
pois perdera a refeição gratuita lendo, e pelo dinheiro destinado ao pão
que comia à noite ele havia tomado de empréstimo o Ugolino e comprado
uma vela, junto à qual, enrolado num cobertor de algodão em seu quarto
frio, passou a noite e pôde sentir muito intensamente as cenas de fome.
No entanto, essas eram as horas mais felizes, nas quais, por assim
dizer, ele se desprendia da confusão das outras – sua capacidade de pensar
estava como que perfeitamente embriagada, e ele se esquecia de si e do
mundo. –
Dessa maneira, leu em sequência os doze ou catorze volumes do Teatro
alemão publicados na época – e, porque havia lido integralmente duas ou
três vezes com imenso prazer As viagens sentimentais de Yorik, pegou
emprestado também do alfarrabista o livro Viagens sentimentais pela
Alemanha de S.
Naquele tempo, ele já começara a anotar num livro específico o título
dos livros lidos e também sua opinião sobre eles, que muitas vezes
resultava ser bastante acertada; por exemplo, escreveu a opinião sobre as
Viagens sentimentais pela Alemanha de S.: um exerzitium extemporaneum[19],
porque o próprio autor confessou que tinha simplesmente anotado no
calhamaço os assuntos mais variados para que se pudesse julgar em que
gênero literário ele se encaixaria melhor. O autor dessas Viagens
sentimentais em seguida compensou suficientemente esse Exerzitium
extemporaneum com seu Spitzbart.
Mas Reiser não se sentiu tão arrependido do tempo dedicado à leitura
de qualquer outro livro quanto aquele dedicado a essas Viagens
sentimentais. –
Assim ele aos poucos aprendeu sozinho a diferenciar cada vez melhor
o medíocre e o ruim do bom. –
Mas de tudo o que leu a ideia do teatro foi e permaneceu sempre
dominante – ele vivia e se movia no mundo do drama, muitas vezes vertia
lágrimas enquanto lia, deixava-se levar ora pela violenta e exasperada
paixão da ira, da fúria e da vingança, ora pelos ternos sentimentos de
generoso perdão, de gigantesca benevolência e de transbordante
compaixão.
O conjunto da sua situação externa e das condições em que vivia no
mundo real lhe era tão odioso que procurava fechar os olhos perante
aquilo. – Em casa, o reitor o chamava pelo nome, como se chama um
serviçal; e certa vez ele teve de ir convidar um de seus colegas de escola,
que era filho de um amigo do reitor, para vir comer com este; e, enquanto
o convidado comia com o reitor à noite, Reiser teve de buscar vinho e ficar
no quarto da criadagem, bem ao lado da sala onde comiam, ouvindo a
conversa do colega de escola com o reitor, ao passo que ele permanecia no
quarto com a criada.
O reitor dava muitas aulas particulares, e, quando não podia ministrar
uma, Reiser tinha de sair avisando um por um os colegas de escola que
também participavam dessa aula com ele que a aula tinha sido cancelada,
o que aumentava a arrogância deles em relação a Reiser.
Esse menosprezo encontrava bons motivos em seu comportamento –
ele não participava de nada que ocorresse à sua volta, ficando apático e
aborrecido com qualquer coisa que o arrancasse de seu mundo ideal. Já
que não se interessava por nada, não era de admirar que do mesmo modo
ninguém se interessasse por ele, e que fosse desprezado, rejeitado e
ignorado.
Mas não se ponderou que mesmo esse comportamento, em razão do qual era
menosprezado, era consequência do menosprezo anterior. Tal menosprezo, que
estava fundamentado numa série de circunstâncias fortuitas, era a origem de seu
comportamento, e não, ao contrário, como se acreditou, seu comportamento
originou o menosprezo.
Que isso possa tornar os professores e pedagogos mais atentos e
cuidadosos em seus julgamentos sobre o desenvolvimento do caráter dos
jovens, de modo que levem em conta a influência de inumeráveis
circunstâncias fortuitas e procurem primeiro obter a mais precisa
informação a esse respeito, antes de ousarem decidir com seu julgamento
o destino de uma pessoa, que talvez necessite só um olhar encorajador
para uma repentina transformação – porque o fundamento de seu caráter
não é culpado de seu visível mau comportamento, mas, sim, uma singular
cadeia de circunstâncias.
A sina de Anton Reiser parecia ser receber favores acompanhados de
tormentos. – Era um favor ter ficado durante um ano na casa da sra. F.,
mas que situações penosas e sufocantes ele viveu naquele ano! – Era um
favor morar na casa do reitor, uma estada que tinham lhe descrito como
encantadora, mas que incontáveis humilhações e desprezos de seus
colegas de escola não suscitou! –
Pela aparência exterior, ninguém podia julgar Reiser a não ser mal – e
o próprio reitor disse ao pastor M. que “um dia ele se tornaria no máximo
um mestre-escola de pequenos povoados”. – Depois, o pastor M. afirmou a
mesma coisa novamente diante de Reiser, cujo ânimo ficou ainda mais
abatido com a afirmação do reitor, a quem, naquela época, ele ainda não
tinha altivez suficiente para responder.
Como o reitor parecia estar certo de que Reiser não se tornaria nada,
servia-se dele apenas para tarefas nas quais ainda lhe parecia útil, a saber,
para qualquer tipo de pequenos serviços a serem executados dentro e fora
da casa – e Reiser, embora fosse um primeiranista, na verdade não era
considerado nada além de um empregado doméstico.
Certa vez, ainda desfrutando os privilégios de um primeiranista,
contribuiu para o presente de Ano-Novo do reitor com o dinheiro que
recebia do coro, e participou do cortejo com tochas, quando, de acordo
com o ritual, tocavam música e gritavam um viva ao diretor e ao reitor. –
Apesar de ser o último ou um dos últimos na fila do cortejo, o fato de
estar ali elevou extraordinariamente seu ânimo, pois, mesmo com as
muitas depreciações e humilhações sofridas, ele se via, por assim dizer, em
fila com os demais, podendo levar uma espada e a tocha, e gritar seu viva.
A música, os espectadores, a iluminação das tochas, os comandantes
com o chapéu de pena e as espadas desembainhadas – tudo aquilo o
inspirava com novo ânimo, pois ele se encontrava nesse esplêndido
cortejo. –
E quando, no dia seguinte, ele se encontrava entre os primeiranistas,
entregaram o presente de Ano-Novo do reitor, para o qual Reiser também
havia contribuído, num prato de prata acompanhado por um discurso em
latim, Reiser se sentiu novamente no mundo real e isso lhe deu certa
satisfação. Não se viu ali totalmente excluído e deslocado – mas mesmo
essa sua pequena reanimada foi azedada pelo ódio e pela arrogância dos
seus colegas de escola!
O reitor serviu bolo e vinho aos primeiranistas que tinham lhe trazido
o presente. Eles beberam repetidas vezes à sua saúde, e, no final, quando o
vinho lhes subiu à cabeça, ficaram um tanto barulhentos. – Reiser bebeu
alguns copos de vinho sem se preocupar com as consequências – mas, por
sua completa falta de hábito, poucos copos bastaram para embriagá-lo;
seus magnânimos colegas de escola tiveram a ideia de deixá-lo
completamente bêbado, o que conseguiram em parte através de astúcia,
em parte através de ameaças, de modo que Reiser falou enrolado sobre
toda espécie de coisas e teve de ser por fim levado para cama.
Se antes Reiser já tinha decaído na confiança e no respeito de todos
aqueles que o conheciam, esse incidente acabou por dar o último golpe em
seu bom crédito. Antes ele era um ser humano apático, negligente e
displicente; agora era também um ser humano descomedido e mau,
porque ele, na casa de seu professor, que também era seu benfeitor, havia
revelado com aquele comportamento instável ter também o coração mais
ingrato.
Reiser anteviu vagamente essas consequências quando acordou na
manhã seguinte e, enquanto se vestia, preparou seu pedido de desculpas
ao reitor pelo comportamento do dia anterior.
Ele estudara sua fala muito bem, garantindo, entre outras coisas, que
procuraria de todas as maneiras apagar aquela mancha, ao que o reitor não lhe
respondeu de modo muito consolador, dizendo-lhe que, se o incidente
viesse a se tornar público, seria muito difícil evitar as danosas
consequências.
O reitor estava com toda a razão – pois o caso logo se tornou público, e
dizia-se: mas como! esse jovem vive de favor, até o príncipe gasta com ele,
é acolhido na casa de seu professor, seu benfeitor, que lhe dá um teto, e se
comporta assim – que infame, que ingrato!
Embora Reiser pressentisse essas consequências e isso o deixasse
extremamente triste, no dia seguinte sentiu uma espécie de orgulho
esquisito quando chegou ao coro e seus colegas de escola riram de seu
aspecto pálido e desnorteado, resultante ainda da bebedeira do dia
anterior, como se, pela bebedeira, tivesse dado mostras de certa bravura,
que chegou até a exagerar, como se seu cambaleio ainda perdurasse a fim
de atrair assim a atenção para si.
Pois a atenção dos outros com ele, atenção dessa vez muito mais
vinculada a certo tipo de aprovação do que ao escárnio, o lisonjeava. Além
disso, os outros o observavam do modo como se costuma observar alguém
que esteja na mesma situação na qual também já se esteve uma vez – pois
o líder do coro estava quase sempre bêbado. Essa secreta satisfação
sentida por Reiser ao perceber que conseguiria ser notado pelo mau
comportamento é o mais perigoso penhasco da sedução do qual a maioria
dos jovens costuma despencar.
Essa arrogância de Reiser, no entanto, foi imediatamente abafada, pois
logo experimentou as danosas consequências profetizadas pelo reitor –
por toda parte, ele era recebido com olhares de frieza e desprezo – o que o
fez largar espontaneamente, uma após a outra, a maior parte das
refeições, preferindo ficar com fome, ou comer sal e pão – a ter de ficar
exposto àquele tipo de olhar. Apenas a casa do sapateiro S. ele ainda
frequentava com satisfação, pois lá era recebido com olhar hospitaleiro e
não precisava pagar por sua sina adversa.
Naquela época, ele ainda estava muito longe de poder se perdoar –
confiava mais na opinião que muitas pessoas tinham dele do que em sua
própria. Ele se acusava com frequência, fazendo-se as mais amargas
acusações sobre sua negligência nos estudos, sobre suas leituras e sobre
suas dívidas no alfarrabista – pois naquela época não estava em condições
de explicar tudo como consequência natural da limitadíssima situação na
qual se encontrava. Nessa disposição da alma, em que se lançava contra si
mesmo, e sua imaginação era ainda excitada pelo drama trágico que
acabara de ler, escreveu certa vez uma carta muito desesperada ao pai, na
qual se acusava de ser o maior criminoso, e a preenchera com numerosos
travessões, de modo que seu pai não soube o que deveria fazer com ela e
começou a temer seriamente pelo juízo do autor – de fato, a carta inteira
era um papel que Reiser estava representando. – Tinha prazer em se
descrever com as cores mais negras, como às vezes fazem os heróis das
tragédias, e em se enfurecer consigo mesmo bem à maneira trágica.
Como não tinha ninguém no mundo nem era amigo de si mesmo, em
que ele poderia se empenhar tanto e tantas vezes quanto possível senão
em esquecer-se de si mesmo?
Por isso o alfarrabista continuou sendo seu constante refúgio, sem o
qual dificilmente teria suportado sua situação, a qual em muitas horas ele
soube tornar não só suportável como agradável, quando, por exemplo,
com seu primo peruqueiro reunia em torno de si um pequeno auditório,
certamente não tão brilhante, e podia ler em voz alta, com toda a
abundância de expressão e de declamação que lhe era possível, alguns de
seus dramas trágicos preferidos, como Emília Galotti, Ugolino ou algo mais
lacrimoso, como Morte de Abel, de Gessner, sentindo um encanto
indescritível quando via ao seu redor todos os olhos cheios de lágrimas, e
neles lia a prova de que alcançara o objetivo de comover com as coisas que
havia lido.
Aliás, nessa época, ele passou as horas mais prazerosas de sua vida
quer consigo mesmo, quer naquele círculo com seu primo, o peruqueiro,
no qual ele, por assim dizer, podia exercer o controle sobre os espíritos e
se tornar o centro das atenções – pois ali era ouvido – ali podia ler em voz
alta, declamar, contar e ensinar, e, às vezes, entrava realmente em disputa
com os artesãos que ali se reuniam sobre questões muito relevantes como
a natureza da alma, o surgimento das coisas, o espírito do mundo e outros
assuntos semelhantes, com os quais ele desnorteava a cabeça das pessoas –
ao dirigir a atenção delas para coisas nas quais jamais haviam pensado.
Havia em especial um alfaiate que começou a ter prazer em suas
ruminações, e com quem ele com frequência conversava horas a fio –
sobre a possibilidade do surgimento do mundo a partir do nada. – Por fim,
deparavam com o sistema de emanação e com o spinozismo – Deus e o
mundo eram uma coisa só.
Quando essas questões não estão embrulhadas em terminologia
escolástica, são compreensíveis por qualquer cabeça e até mesmo por
crianças.
Durante esses diálogos, Reiser costumava esquecer todas as suas
preocupações e aflições – o que o pressionava era muito pequeno para
ocupar sua atenção –, por um tempo sentia-se deslocado do contexto das
coisas que o cercavam na terra e desfrutava os privilégios do mundo
espiritual. Ele procurava entabular diálogos filosóficos e exercitar sua
capacidade de pensar com o primeiro que lhe aparecesse pela frente.
Apesar da pouca animação que desfrutou nas aulas e das muitas
humilhações que aguentou ali, elas não foram de todo inúteis – do diretor,
ele anotou novas histórias, dogmática e lógica; do reitor, a descrição da
Terra e algumas traduções de autores latinos, adquirindo, por meio deles,
em paralelo às suas leituras de peças de teatro e de romances, ainda
alguns conhecimentos científicos, além de ter feito alguns progressos em
latim, sem ter exatamente a intenção de praticá-lo. –
Mas tudo isso era meramente casual – nesse meio-tempo perdeu
muitas aulas, e em muitas outras, enquanto liam Lívio ou outro autor
latino, ele lia um romance às escondidas, porque já sabia que o diretor não
mais se dignaria chamá-lo. –
Pois estar nas aulas, sentado entre cerca de sessenta a setenta pessoas,
das quais quase nenhuma era sua amiga, e para quase todas as quais ele
era um objeto de escárnio e de desprezo, isso tinha de ser naturalmente
uma situação permanente de muita angústia para ele, que na maior parte
das vezes se sentia forçado a sonhar com outro mundo no qual se sentisse
melhor. –
Mas nem mesmo esse refúgio lhe foi concedido – certa vez, quando
estava lendo um volume do Teatro alemão antes da aula, tiraram o livro
dele assim que o reitor entrou e o puseram na cátedra deste, que, ao
inquirir de onde teria vindo o livro, foi informado de que Reiser tinha o
costume de ler durante as aulas. – Um olhar cheio de desprezo lançado a
Reiser foi a resposta do reitor à acusação. –
E mais uma vez esse olhar custou a Reiser uma parte da pouca
autoconfiança que havia sobrado nele; pois, longe de se desculpar a si
mesmo, ele, ao contrário, achava que merecia realmente o desprezo e
naquele momento se considerou um ser muito desprezível e rebaixado, tal
como o reitor sempre o havia considerado. –
Esse incidente aumentou o desprezo do reitor por ele – sua situação
externa piorava dia a dia; e, quando certa vez se esqueceu de transmitir ao
reitor um pedido que um estranho lhe passara, o reitor empregou pela
primeira vez palavras duras com Reiser, dizendo que essa negligência de
um pedido feito a ele tinha sido realmente uma verdadeira idiotice.
Essa expressão produziu durante um bom tempo uma espécie de
paralisia em sua alma. Ele jamais conseguiu esquecer tais palavras, e o garoto
idiota, do inspetor no seminário, e o não me refiro ao senhor, do comerciante
S. – todas elas tinham se entrelaçado a seus pensamentos, e, ainda muito
tempo depois, tiravam-lhe com frequência toda a presença de espírito nos
momentos em que mais precisava dela.
Um amigo do reitor que ficou hospedado algumas semanas em sua
casa, e com quem Reiser teve de fazer alguns passeios, ao se despedir, deu
alguns trocados à criada e a Reiser – que teve uma sensação estranha
quando pegou o dinheiro; era como se tivesse recebido uma punhalada e
subitamente a primeira dor logo sumisse – pois pensou no alfarrabista, e
num instante tudo o mais estava esquecido. – Com o dinheiro ele podia ler
mais de vintes livros – seu orgulho ferido ainda se rebelara uma última vez
e fora agora vencido. Reiser, daquele momento em diante, não teve mais
respeito algum por si mesmo – e em relação a suas condições externas ele
se aviltou completamente.
Suas roupas, cada vez mais gastas e desleixadas, não o incomodavam
mais.
Na escola, no coro, caminhando pela rua, Reiser se via sozinho entre os
homens – pois não havia ninguém que se preocupasse com ele nem que
por ele se interessasse – em vista disso, seu próprio destino exterior se
tornara tão desprezível, baixo e insignificante que ele não se importava mais
consigo. Em contrapartida, podia se interessar intensamente pelo destino
da srta. Sara Sampson ou de Romeu e Julieta; e muitas vezes passava o dia
inteiro absorvido nisso.
Quando as aulas terminavam, nada lhe era mais insuportável que se
encontrar na saída em meio ao bando de seus colegas de escola, todos mais
bem-vestidos, mais animados e vivos, que não se dignavam mais andar ao
seu lado – quantas vezes não desejou nesses momentos se libertar
finalmente do fardo de seu corpo, e por uma morte brusca ser tirado
daquele contexto torturante! Quando conseguia escapar dos olhares de
seus colegas de escola por uma viela onde não havia ninguém andando a
seu lado, ah, como ele corria alegre para os mais solitários e afastados
bairros da cidade, a fim de se entregar por alguns momentos aos seus
tristes pensamentos, sem ser perturbado!
O mais imbecil de todos, que também era comumente desprezado, às
vezes se juntava a Reiser, e este aceitava sua companhia com alegria; pois
havia ainda um ser humano que se juntava a ele – quando caminhavam
juntos, com frequência ele ouvia aqui e ali um dos colegas de escola dizer
ao outro: Par nobile Fratrum! (Um nobre par de irmãos!)[20]. Foi assim
imediatamente equiparado a esse verdadeiro imbecil.
Como o reitor também havia dito que Reiser seria no máximo um
mestre-escola de pequenos povoados, tudo isso se somou para roubar toda
a sua autoconfiança, de modo que quase parou de confiar em suas próprias
capacidades intelectuais e começou com frequência a se julgar de fato um
imbecil, tal como era comumente reconhecido. Esse pensamento logo
degenerava também numa espécie de amargura em relação à ordem das
coisas – ele amaldiçoava naquele momento o mundo e a si, porque
acreditava ter sido criado como o ser mais desprezível para o escárnio do
mundo.
A extensão do preconceito de seus colegas de escola contra ele e a
convicção deles de sua burrice inata podem ser provadas com o seguinte:
O reitor o autorizara a frequentar as aulas particulares que dava em
casa. O reitor também dava aulas de inglês. Reiser não tinha o livro
adotado e, por isso, não podendo se exercitar em casa, precisava consultar
o livro de outro aluno; apesar disso, em poucas semanas, compreendeu, só
de ouvir, a maioria das regras de pronúncia do inglês; e, quando o reitor
uma vez o chamou casualmente para ler, leu com muito mais jeito e muito
melhor do que todos os outros que tinham o livro e haviam estudado em
casa.
Certa vez, ouviu então falarem dele na sala ao lado: Reiser não poderia
ser tão burro assim, porque tinha aprendido rapidamente a complicada
pronúncia do inglês; para não deixar que a opinião favorável sobre ele se
espalhasse, alguém afirmou imediatamente que o pai de Reiser era inglês
de nascimento, e portanto Reiser ainda se lembrava da pronúncia do
inglês de sua infância; os outros estavam predispostos a acreditar nisso – e
assim, aos olhos de seus colegas, Reiser havia voltado a sua prévia posição
inferior.
De tudo isso se vê que o respeito que um jovem adquire de seus colegas
de escola é uma coisa extremamente importante em sua formação e
educação, e até agora se deu pouca atenção a ela nas instituições de
educação pública.
Naquela época, o que poderia ter salvado Reiser de seu estado e o
transformado de uma hora para outra num jovem aplicado e decente seria
um único e bem empregado esforço de seus professores para que ele
reconquistasse o respeito dos colegas. E teriam conseguido isso muito
facilmente com um exame mais preciso de suas capacidades e com um
pouco mais de atenção dispensada a ele.
Aquele inverno transcorreu de modo extremamente triste para Reiser
– suas pequenas economias estavam completamente arruinadas –, em seus
péssimos trajes, ele não se atrevera a buscar seu dinheiro mensal com o
príncipe. As dívidas com o alfarrabista eram altíssimas para os seus
ganhos – ele não podia sequer custear suas necessidades mais básicas de
roupa e sapatos com os poucos tostões que recebia semanalmente, nem
com o dinheiro que ganhava do coro, pois entregava tudo para o
alfarrabista.
Nessas circunstâncias, ele viajou, na Páscoa, para a casa dos pais, onde
portava a espada com que havia se apunhalado no Filotas – e agora
representava diariamente esse papel para seus irmãos. Ele não deixou
transparecer nenhum sinal de seu estado de abandono nem do desprezo
que sofria por parte dos colegas de escola; antes, pelo contrário,
selecionava de todos os modos as coisas agradáveis e de boa reputação que
podia dizer de si – que o reitor o levara junto numa viagem de negócios,
que aprendera inglês em aulas particulares do reitor, que estivera no
cortejo com tochas e música, e como tudo havia transcorrido etc.
Procurou, tanto quanto possível, banir de seus pensamentos tudo o
que havia de desagradável e deprimente – pois queria se mostrar, ao
menos uma vez, numa luz útil e honrosa, e seu estado deveria parecer
invejável aos outros, por menos invejável que fosse.
Nessa agradável autoilusão passou ali alguns dias muito contente –
mas, na mesma medida em que daquela vez seu coração havia ficado mais
leve quando saiu pelas portas da cidade de H. e ia perdendo de vista pouco
a pouco as quatro torres da cidade, seu coração ficou mais pesado quando
se aproximou novamente das portas da cidade e as quatro torres estavam
ali diante dele, as quais lhe pareceram, por assim dizer, grandes pregos
que sinalizavam o lugar de seus múltiplos sofrimentos.
A torre do mercado, alta, angular e com uma pequena ponta no topo,
adquiriu um aspecto aterrador quando ele a reviu – bem ao lado dela
ficava a escola. – De repente, com a torre, o escárnio, o sorriso amarelo e
os assobios de seus colegas de escola voltavam a estar presentes em sua
alma – todas as vezes que ia à escola ele tinha o hábito de olhar o grande
mostrador do relógio da torre, a fim de saber se não chegaria atrasado.
Assim como a antiga igreja do mercado, ela tinha sido construída em estilo
gótico com tijolos vermelhos, que com o passar do tempo haviam ficado
pretos.
Nesse mesmo local era lida em voz alta a sentença de morte dos
malfeitores – em suma, a torre da igreja do mercado reunia, na fantasia de
Reiser, tudo o que era capaz de repentinamente abatê-lo e precipitá-lo
num profundo pesar.
Com efeito, ele não estaria mais pesaroso do que estava agora se já
soubesse de antemão tudo o que iria encontrar naquele lugar de sua
estada. – Se, no entanto, um ano antes, ao retornar para H., vindo da casa
de seus pais, sua tristeza já não havia sido sem causa, agora muito menos,
pois estava prestes a viver um dos piores momentos de sua vida. –
Mesmo sem suspeitar nele uma capacidade de pressentimento, seu
pesar se explicou muito naturalmente – se considerarmos que sua
imaginação percorreu depressa cada círculo estreito de sua própria
existência real por onde agora voltaria a passar: a escola, o coro, a casa do
reitor –, ele iria novamente girar a partir de então nesses círculos nos
quais um sempre o restringia mais que o outro e inibia toda a força
expansiva – – como seria bom nesse momento poder trocar toda a estada
em H. pelo calabouço mais escuro, que certamente lhe teria sido bem
menos pavoroso e terrível do que toda essa situação angustiante.
À medida que afundava em pensamentos taciturnos, estando já perto
das portas da cidade, de repente passou por sua alma um pensamento
feito um raio, iluminando tudo e pintando tudo para ele com uma luz mais
bonita – lembrou-se de ter escutado na casa de seus pais que chegaria uma
companhia de atores a H. e lá se apresentaria durante o verão. –
Era a trupe Ackermann, que reunia quase todas as estrelas espalhadas
pelos palcos da Alemanha. –
A passos largos, Reiser correu para a cidade que antes lhe era
detestável e agora repentinamente tinha se tornado querida. Sem passar
em casa (ainda era de manhã, pois, no caminho, passara a noite num local
de onde teve de caminhar alguns quilômetros até H.), foi com pressa
direto ao castelo, onde sabia que estaria afixado o cartaz da peça com o
nome dos atores, e leu que Emília Galotti seria encenada ainda naquela
noite.
Ao ler aquilo, seu coração bateu de alegria: ele veria justamente a peça
que lhe arrancara tantas lágrimas e tantas vezes o comovera no mais
íntimo da alma realmente representada no palco com todas as ilusões
possíveis, quando até agora havia sido encenada apenas em sua
imaginação.
Ele não faltaria à peça naquela noite, custasse o que custasse – ao
chegar em casa, o quarto em que dormia estava caiado e algo havia sido
construído ali dentro, o que o tornou totalmente inabitável. – Esse aspecto
inconsolável do lugar que seria sua verdadeira moradia o impeliu ainda
mais para fora do mundo real que o circundava – ansiava pela hora em
que começaria a peça.
Para onde quer que fosse, não conseguia esconder sua alegria; quando
pisou a sala da casa da sra. F., sua primeira palavra foi teatro, palavra que
ela muito tempo depois lhe censurou – e assim também quando foi ao seu
primo, o peruqueiro, onde teve de dormir algumas noites no chão até que
seu quarto na casa do reitor voltasse a ficar habitável.
A distribuição de papéis pode dar uma vaga ideia do efeito que Emília
Galotti, a primeira peça de teatro que Reiser viu com essa disposição de
alma, deve ter tido sobre ele.
A falecida Charlotte Ackermann representou Emília; sua irmã, Orsina;
Reinicken, Klaudia; Borchers, Odoardo; Brockmann, o príncipe; Reinicke,
Appeani; e Dauer, Conti – onde mais Emília Galotti poderia ter sido tão bem
representada?
Imaginem o impacto na alma de Reiser: encontrara o mundo de sua
fantasia praticamente realizado! – Daquele momento em diante não tinha
outro pensamento que não o do teatro e agora parecia estar
completamente perdido para todas as suas perspectivas e esperanças na
vida. –
Qualquer dinheiro que conseguisse era aplicado no teatro; não pôde
mais deixar de ir ao teatro sequer uma noite, mesmo que tivesse também
de deixar de comer. – Por amor ao teatro, muitas vezes, durante o dia
todo, não comia nada além de um pouco de sal e pão, exceto quando a mãe
idosa do reitor mandava comida ao seu quarto, o que ela às vezes fazia por
compaixão. –
E, como era verão, desfrutou também a delícia de poder estar sozinho
em seu quarto – o que tinha mais valor para ele do que a comida mais
deliciosa que pudesse saborear. –
A perspectiva da peça que seria encenada à noite o consolava quando
de manhã acordava para um dia triste, já que sempre acordava assim. –
Pois o desprezo e o escárnio de seus colegas, e o sentimento da própria
indignidade, que carregava consigo por onde fosse, ainda perduravam,
amargurando sua vida. – E tudo o que ele fazia para se desvencilhar disso
era na verdade mera anestesia de sua dor interna, e não uma cura – ela
acordava novamente todos os dias junto com ele, e, enquanto sua
imaginação lhe forjava durante horas uma ilusão enganadora, Reiser no
fundo amaldiçoava sua existência.
As lágrimas que muitas vezes vertia com os livros e com o teatro eram
na verdade tanto pelo seu próprio destino como pelo dos personagens
pelos quais se interessava. Ele sempre se via, às vezes de modo mais
próximo, às vezes mais distante, naquele que havia sido subjugado sem
culpa, no insatisfeito consigo mesmo e com o mundo, no melancólico e
naquele que odeia a si mesmo.
No verão, o calor maçante o impelia muitas vezes a descer de seu
quarto para a cozinha ou para o quintal, onde se sentava sobre um monte
de madeira e lia, e muitas vezes tinha de esconder seu rosto quando
alguém entrava e ele estava sentado ali com os olhos vermelhos de choro.
Era de novo o joy of grief, o deleite das lágrimas, que lhe fora, em
grande medida, concedido desde a infância, quando teve de prescindir de
todas as outras alegrias da vida.
Isso chegou a tal ponto que até mesmo em peças cômicas, quando estas
incluíam apenas algumas cenas comoventes, como, por exemplo, em A
caça, ele mais chorava que ria – mas o que uma peça dessas, naquela época,
devia ter como efeito pode-se também depreender da distribuição de
papéis, quando Charlotte Ackermann representava Rösschen; sua irmã,
Hannchen; Reinicken, a mãe; Schröder, Töffel; Reinicke, o pai; e Dauer,
Christel.
Se é que alguma circunstância externa foi capaz de incutir em alguém
um gosto decidido pelo teatro, descontadas a predileção de Reiser e as
condições especiais em que se encontrava, essa foi o acaso que naquela
época reuniu aqueles excelentes atores numa trupe só.
Pode-se facilmente concluir então como essas peças devem ter sido
encenadas – Romeu e Julieta, A vingança, de Young, a ópera Clarisse et
Eugénie – as quais provocaram a mais forte impressão em Reiser.
Isso havia absorvido tanto seus pensamentos que toda manhã, por
assim dizer, ele devorava o cartaz das peças e lia tudo
conscienciosamente, inclusive o horário – pontualmente às seis horas – e o
local – a peça será encenada no teatro do castelo real. E sentiu por um ator
primoroso, que provavelmente viu na rua, quase tanta veneração quanto
antes em B. pelo pastor P. Tudo o que fazia parte do teatro merecia seu
respeito e ele teria dado qualquer coisa para ter contato pelo menos com o
homem que limpava as luminárias.
Havia dois anos já tinha visto a encenação de Hércules no Eta, de O conde
de Olsbach e de Pamela, em que Eckhof, Böck, Günther, Hensel, Brandes, ao
lado de sua mulher, e a sra. Seyler representavam os papéis principais, e
desde então as cenas mais comoventes dessas peças ainda estavam
presentes em sua memória – Günther como Hércules, Böck como o conde
de Olsbach e os Brandes em Pamela passavam quase todo dia
alternadamente em seus pensamentos. – E com esses personagens ele
representara em sua imaginação a maior parte das peças que lia, até a
chegada da trupe de Ackermann.
Se juntarmos aquela trupe com esta, Reiser teve a oportunidade de ver
todos os mais extraordinários atores da Alemanha, que agora estavam
espalhados pelo país.
Assim, formou-se nele um ideal de arte dramática que posteriormente
não foi satisfeito em nenhum outro lugar, e que não só o inquietava dia e
noite como o impelia a perambular incessantemente, tornando sua vida
inconstante e errante.
Por ter visto naquela época Böck e agora Brockmannen representarem
os papéis em que mais se chorava, eles eram seus atores preferidos, com
os quais seu pensamento em geral estava sempre ocupado.
Mas, apesar de todas as brilhantes cenas de teatro que tomavam
constantemente sua imaginação, suas condições externas pioravam dia
após dia. – Cada vez mais ia perdendo o respeito das pessoas, cada vez
mais grave era seu desleixo – sua vestimenta, suas roupas de baixo
ficavam cada vez piores, até que, por fim, passou a sentir vergonha de
aparecer na frente das pessoas. Por isso, todas as vezes que podia, faltava à
escola e ao coral, e preferia passar fome a ter de frequentar as casas em
que ainda ganhava refeições, exceto a do sapateiro S., onde mesmo nessas
circunstâncias desagradáveis ele ainda era bem acolhido e servido com os
modos mais afáveis.
Como para o reitor o incorrigível desleixo de Reiser finalmente se
tornou insuportável, sobretudo o fato de chegar em casa sempre tarde
depois de sair do teatro, ele disse a Reiser que deixasse sua residência.
Reiser ouviu inteiramente impassível e calado o aviso do reitor para
que se mudasse no dia de São João; até lá, ele deveria procurar outro lugar
para morar – e, quando novamente ficou sozinho, não derramou sequer
uma lágrima mais por sua sina, pois havia se tornado tão indiferente a si
mesmo, conservando tão pouco respeito e compaixão para consigo que, se
o respeito e o sentimento de compaixão, e todos os sofrimentos que
inundavam seu coração, não tivessem sido extravasados nos personagens
saídos de seu mundo poético, eles teriam necessariamente se voltado
contra ele e destruído seu próprio ser.
Como o reitor lhe havia dito que deixasse sua casa, disso Reiser tirou a
clara conclusão de que também o pastor M. não iria se preocupar com ele,
e de repente todas as suas perspectivas e esperanças cessaram. –
As poucas semanas em que ainda permaneceu na casa do reitor, ele
passou como de costume – depois se mudou para a casa de um fabricante
de escovas; nela passou, do dia de São João ao de São Miguel, o trimestre
mais terrível e pavoroso de toda a sua vida e ali esteve muitas vezes à
beira do desespero. –
Quando se mudou para lá, sentiu-se de repente excluído de qualquer
vínculo que antes havia temerosamente buscado; e, na verdade, como ele
mesmo pensava, tinha sido posto para fora por sua própria culpa. – O
príncipe, o pastor M., o reitor, todas as pessoas das quais dependia seu
futuro destino, não eram mais nada para ele, e com isso todas as suas
perspectivas também desapareceram. –
Não é nenhuma surpresa que, em virtude dessa situação, tivesse se
engendrado em sua alma uma nova fantasia, na qual desde então buscou
consolo, levando-a consigo dia e noite para todo lado, e que o salvou de
todo desespero.
Naquela época, ele assistira, entre outras peças, à opereta Clarissa ou a
criada desconhecida, e dificilmente em sua situação qualquer outra peça
poderia ter lhe despertado mais interesse do que essa. –
A principal circunstância que despertou nele esse grande interesse foi
a seguinte: um jovem fidalgo decide ser camponês e realmente leva
adiante sua decisão. – Reiser não considerou o motivo que levara o jovem
a fazer aquilo, a saber, ele amava uma criada desconhecida etc., mas, sim,
a ideia atraente de que um jovem bem formado decide ser camponês e se
torna um camponês tão refinado, educado e civilizado que se destaca de
todos os outros.
Reiser estava tão humilhado na condição a que se rebaixara que lhe
parecia impossível voltar a ascender. – Mas seu espírito tinha alcançado
muito mais instrução do que o necessário para a condição de camponês –
como camponês, ele estava acima de sua condição; como jovem dedicado
aos estudos, estava muito abaixo. A ideia de ser um camponês tornou-se
dominante e durante um tempo afastou todas as outras.
Naquela época, visitou a escola o filho de um camponês, chamado M., a
quem ele às vezes dera algumas aulas de latim – Reiser lhe contou sua
decisão de se tornar um camponês; este lhe fez então uma descrição
detalhada do verdadeiro trabalho de um camponês, descrição que bem
poderia ter estragado os lindos sonhos de Reiser se sua fantasia não
tivesse reagido violentamente a isso, sempre exibindo com força uma
sequência de imagens agradáveis.
Além do mais, mesmo na opereta Clarissa há um trecho em que um
camponês desaconselha o jovem fidalgo de seu intento de lhe comprar sua
chácara – e no fim canta uma ária muito expressiva sobre o homem do
campo visto em pleno trabalho, e de repente começa um temporal:

Os raios disparam
Os trovões retumbam
E o homem do campo volta para casa
Aborrecido, aborrecido. –

A palavra aborrecido era tão especialmente bem expressa pela música que
todo o encanto da fantasia poderia ter sido arruinado por essa única
palavra – considerada de certa forma o antídoto a toda sentimentalidade e
exaltação elevada, que pode coexistir com aquilo que é doloroso, terrível,
que prostra, que encoleriza, mas não com aquilo que aborrece. –
Mas esse antídoto não ajudou Reiser – ele perambulava solitário o dia
todo, pensando no que poderia fazer para ser um camponês, sem dar de
fato nenhum passo para isso – pelo contrário, passou a sentir novamente
prazer com essas doces exaltações. – Quando se imaginava um camponês,
acreditava estar destinado a algo melhor e, no tocante ao seu destino,
sentia novamente uma espécie de compaixão consoladora consigo mesmo.
Enquanto essa fantasia ainda o manteve em pé, ele estava apenas
melancólico e triste, mas não propriamente aborrecido com seu estado. Até
a privação de suas necessidades mais prementes lhe dava certo prazer,
pois ele estava quase certo de que tinha de expiar além da conta suas
culpas, conservando assim a doce sensação de compaixão por si mesmo.
Mas, finalmente, após ter ficado pela primeira vez três dias sem comer,
e ter se mantido o dia todo com chá, a fome o invadiu com ímpeto,
derrubando terrivelmente todo o lindo edifício de sua fantasia – ele batia a
cabeça contra a parede, vociferava, se enraivecia, e estava à beira do
desespero, quando seu amigo Philipp Reiser, que ele negligenciara por
muito tempo, entrou em seu quarto e dividiu com ele a sua miséria, que
certamente também se reduzia a apenas alguns vinténs.
Isso, no entanto, não passou de um paliativo muito pequeno – pois
Philipp Reiser não se encontrava naquele tempo em melhores condições
do que Anton Reiser.
Este realmente caiu num estado terrível permanente, próximo do
desespero. –
Conforme seu corpo recebia cada vez menos alimento, aos poucos a
fantasia que ainda o animava ia se extinguindo, e sua compaixão por si
mesmo se transformou em ódio e amargura contra seu próprio ser; em vez
de dar um passo em direção à melhora de seu estado, ou se dirigir com ar
de súplica a uma pessoa qualquer, preferiu se submeter espontaneamente,
com a mais inaudita obsessão, à miséria mais terrível.
Pois, durante várias semanas, ele realmente comia apenas num único
dia da semana quando ia ao sapateiro S., e nos outros jejuava e se
sustentava apenas com chá e água quente, as únicas coisas que ainda
podia conseguir de graça. – Numa espécie de terrível contentamento, viu
seu corpo decaindo dia a dia com a mesma indiferença com que via sua
roupa degradar-se.
Quando caminhava pela rua, e as pessoas apontavam o dedo para ele, e
seus colegas de escola zombavam dele, e iam ao seu encalço assobiando, e
garotos de rua faziam comentários sobre ele – Reiser cerrava então os
dentes e aceitava interiormente as risadas de escárnio que ouvia ressoar
atrás de si.
Mas, quando chegava novamente à casa do sapateiro S., ele se esquecia
de tudo. – Ali encontrava seres humanos, ali seu coração por um momento
amolecia; com o corpo saciado, sua capacidade de pensar e sua imaginação
readquiriam um novo impulso, e voltava a entabular um diálogo filosófico
com o sapateiro S., que durava horas, e com ele Reiser recomeçava a
respirar e seu espírito tomava fôlego – depois, no calor da discussão,
falava frequentemente tão alegre e descontraído sobre um assunto como
se nada no mundo o desencorajasse – não deixava que se ouvisse uma
sílaba sequer sobre seu estado.
Mesmo com seu primo, o peruqueiro, jamais se queixava quando
chegava à sua casa, saindo assim que percebia que iriam comer – mas se
serviu de um truque por meio do qual conseguiu não morrer de fome.
Alegando que daria a um cão que tinha em casa, pediu ao primo a
crosta dura da massa na qual era assado o cabelo para as perucas, e seu
sustento era essa crosta, junto com a refeição na casa do sapateiro S. e a
água quente que bebia.
Quando seu corpo recebia algum alimento, às vezes voltava a sentir
algum ânimo em seu interior. Possuía ainda um Virgílio velho que o
alfarrabista não quisera comprar dele; nesse exemplar começou a ler as
éclogas. De um semanário, As Horas Vespertinas, que pegara emprestado de
Philipp Reiser, começou a decorar um poema, “O ateu”, de que
especialmente gostara, e alguns ensaios em prosa. – Mas, com a falta de
alimento que logo se fez sentir de novo, veio a se extinguir também o
novo ânimo incandescente, e assim a atividade de sua alma ficou como
que paralisada. Para se salvar desse estado mortal de cessação de toda
atividade, teve de buscar outra vez refúgio nas brincadeiras infantis, porque
elas acabavam em destruição.
Reunia uma grande quantidade de caroços de cereja e de ameixa,
sentava-se no chão e os colocava em posição de batalha uns contra os
outros – os mais bonitos entre eles, Reiser os distinguia pintando neles
letras e figuras, e estes viravam generais – depois, pegava um martelo e
com os olhos fechados imaginava a fatalidade cega, descendo o martelo ora
de um lado, ora de outro – quando reabria os olhos, via com secreto
contentamento a terrível devastação, aqui e ali um herói caído, jazendo
despedaçado em meio à multidão inglória. Depois, sopesava o destino de
cada exército e contava os caídos de cada lado.
Ocupava metade do dia dessa maneira – e sua impotente e pueril
vingança do destino que o destruíra criou desse jeito um mundo que ele
pôde novamente destruir a seu bel-prazer – por mais infantil e risível que
esse jogo pudesse parecer aos olhos da plateia, era de fato o resultado mais
pavoroso do mais alto desespero que jamais havia sido provocado pelo
encadeamento das coisas em um mortal.
Mas nisso se vê também como seu estado naquele tempo se avizinhava
da insanidade – e, assim que foi capaz de se interessar novamente por seus
caroços de cereja e de ameixa, seu estado de ânimo se tornou suportável. –
Mas antes disso, quando se sentava e com a pluma pintava traços no papel ou
com a faca rabiscava sobre a mesa – esses foram os piores momentos, em que
sua existência pesava sobre ele como um fardo insuportável, não lhe
provocando nem dor nem tristeza, mas aborrecimento – nesses momentos,
tomado por um calafrio pavoroso, tentava muitas vezes se livrar disso.
Sua amizade com Philipp Reiser naquela época não podia lhe ser de
ajuda, porque este não ia melhor do que ele – a situação de Anton e
Philipp Reiser era como a de dois caminhantes que correm perigo de
morrer de sede num deserto abrasante e, tentando sair dele, não estão em
condições de conversar muito e de oferecer consolação um ao outro.
Mas justamente aquele G., que outrora representara o Sócrates
moribundo, apelido que Reiser ainda continuava tendo, decidiu ir morar
com ele, e também se encontrava na mesma situação de Reiser, mas com
uma diferença apenas: chegara a ela por verdadeiro desregramento – nele
Reiser encontrou, portanto, um digno companheiro de quarto.
Não passou muito tempo, e o filho do camponês, chamado M., que
igualmente não se encontrava em melhores condições, também foi morar
com os dois. – Formou-se ali, então, uma agremiação de três dos mais
pobres seres humanos que talvez jamais tiveram estado fechados entre
quatro paredes.
Havia muitos dias em que todos os três sobreviviam apenas à base de
água quente e pão – G. e M., no entanto, recebiam ainda algumas refeições
gratuitas.
G. era, no fundo, uma pessoa inteligente, alguém que falava muito bem,
e por quem Reiser sempre sentira muito respeito.
Certa vez, ambos tiveram um ataque de dedicação aos estudos e
começaram a ler as éclogas de Virgílio, desfrutando realmente o prazer
mais puro, quando, após terem desvendado sozinhos com muito trabalho
uma écloga, cada um copiou sua tradução. Mas, naquelas circunstâncias, é
evidente que isso não podia durar muito – assim que cada um percebeu de
novo vivamente sua situação, todo o ânimo e vontade de estudar
desapareceram.
Quanto às roupas, as de G. e M. eram tão ruins quanto as de Reiser –
por isso, quando saíam, formavam um cortejo que parecia a verdadeira
imagem do desleixo e da desordem, e as pessoas apontavam o dedo para
eles, motivo pelo qual, quando saíam para passear, procuravam sempre
deixar a cidade pelos atalhos e ruas estreitas.
Os três também levavam uma vida que combinava completamente com
a condição deles – ora permaneciam o dia todo deitados na cama, ora os
três juntos se sentavam, apoiavam a cabeça na mão e refletiam sobre seu
destino, ora se separavam e cada um fazia o que lhe desse vontade. Reiser
se sentava no chão e passava em revista seus caroços de cereja; M. ia
buscar seu grande pedaço de pão, que tinha trancado cuidadosamente
numa mala; e G. permanecia deitado na cama, fazendo projetos que não
eram bons, como logo depois se revelou. Nessa época, Reiser leu várias
vezes dois livros de cabo a rabo, já que não tinha outros, sentado no chão
entre seus caroços de cereja – os livros eram a obra do filósofo de
Sanssouci e a obra de Pope, na tradução de Dusch, livros que tinha tomado
emprestados do sapateiro S.
Certo dia, os três passeavam juntos num dos belos arredores de H., às
margens do rio de onde surgia uma pequena ilha repleta de cerejeiras.
Para nossos três aventureiros, essas cerejeiras, todas carregadas das
mais lindas cerejas, eram uma paisagem tão convidativa que eles não
conseguiram evitar o desejo de serem transportados para a ilha, a fim de
poderem se satisfazer à vontade com esses frutos esplêndidos.
Calhou então de uma quantidade de pedaços de madeira descer
boiando o rio; esses pedaços às vezes emperravam na parte estreita do rio,
entre a margem e a ilha, formando aparentemente uma ponte para a ilha.
Sob o comando de G., que parecia já estar treinado na execução de tais
projetos, empreenderam uma façanha arriscada, que facilmente poderia
ter custado a vida dos três. No lugar onde os pedaços de madeira tinham
parado, eles retiraram da água um pedaço após outro e os levaram até um
lugar no qual a distância entre a margem e a ilha lhes pareceu mais
estreita, e ali construíram a ponte pela qual queriam atravessar o rio,
jogando um pedaço de madeira após outro à frente deles para firmarem os
pés – é claro que essa ponte começou a afundar embaixo de seus pés, e eles
mergulharam fundo na água ainda antes de terem percorrido quase a
metade de sua perigosa travessia – mas, mesmo correndo risco de vida,
eles finalmente chegaram à ilha.
E de repente os três foram tomados por um espírito de roubo e de
avidez, cada um se atirou a uma cerejeira e se pôs a saqueá-la com uma
espécie de furor. –
Era como se tivessem conquistado de assalto uma fortaleza; queriam
receber uma recompensa pelo perigo suportado – perigo que eles mesmos
haviam provocado.
Quando já estavam fartos de comer e haviam enchido de cerejas todos
os bolsos, lenços, echarpes, chapéus e qualquer outra coisa que pudesse
conter algo –, tomaram, no entardecer, o caminho de volta, passando pela
perigosa ponte, da qual uma parte já tinha sido levada pela correnteza do
rio, e, apesar da pilhagem que os aventureiros estavam carregando, tudo
terminou bem, muito mais pelo acaso que por habilidade ou cautela.
Reiser não se sentia nem um pouco mal em expedições assim – não lhe
parecia ser propriamente um roubo, mas tão somente uma perambulação
num terreno inimigo que, pela coragem exigida, não deixava de ser algo
honroso.
E quem sabe em quantas mais façanhas arriscadas desse tipo ele ainda
não teria entrado sob o comando de G. se ainda continuassem morando
juntos por mais tempo. –
Mas G., de fato, fazia parte mais do grupo dos astuciosos do que dos
intrépidos – pois era vil o bastante para roubar seus dois companheiros de
quarto, Reiser e M., dos quais tinha pegado alguns livros e outras coisas e
vendido secretamente, como depois se revelou. –
Em suma, esse G., com quem Reiser viveu tão próximo, era na verdade
um larápio astucioso que, ao passar o dia inteiro deitado na cama
especulando, não pensava em nada a não ser nos delitos que gostaria de
cometer – e mesmo assim era capaz de falar da virtude e da moralidade
como um livro, o que havia originalmente inspirado a veneração de Reiser
por ele.
Pois naquela época ele tinha formado um ideal esquisito sobre a
virtude, que absorvia de tal modo sua imaginação a ponto de bastar o
nome virtude para muitas vezes ser levado às lágrimas.
Mas sob o nome de virtude ele pensava em algo demasiado geral, e num
geral muito obscuro, e com pouca aplicação a situações específicas, de
modo que não poderia ter conseguido realizar nem mesmo o mais sincero
intento de ser virtuoso – pois jamais pensou por onde deveria realmente
começar.
Certa vez, numa linda noite, chegou em casa de um passeio solitário, e
a contemplação da natureza tinha derretido seu coração em suaves
sensações, o que o fez derramar muitas lágrimas e, em silêncio, jurar a
partir de então ser eternamente fiel à virtude! – e, como agarrara firme
esse desígnio, sentiu uma satisfação tão celestial com essa decisão que lhe
parecia quase impossível vir algum dia a se desviar desse afortunado
desígnio. – Com esses pensamentos ele adormeceu – e, quando de manhã
despertou, seu coração estava novamente bem vazio; a perspectiva do dia
era sombria e erma; todas as suas relações exteriores estavam
irrecuperavelmente destroçadas; um invencível tédio de viver ocupou o
lugar de suas sensações do dia anterior, com as quais adormecera –
procurou salvar-se de si e deu os primeiros passos para ser virtuoso; para
tanto, sentou-se no chão e destroçou os caroços de cereja que estavam em
ordem de batalha.
O verdadeiro começo para a prática da virtude teria sido deixar de
fazer isso e ler uma écloga no velho Virgílio, que ele ainda possuía – mas,
com sua decisão heroica, não tinha se preparado para esse caso
aparentemente muito insignificante.
Se examinássemos as ideias de virtude que as pessoas têm, para a
maioria delas tais ideias não passariam talvez de representações obscuras
e confusas – do que se pode ao menos concluir como é inútil pregar sobre
a virtude em geral, sem que o conceito seja aplicado a casos muito
particulares e muitas vezes aparentemente insignificantes.
O próprio Reiser naquela época se admirava com frequência ao
constatar como seu repentino ataque de fervor pela virtude podia se
dissipar rapidamente sem deixar nenhum vestígio – mas não cogitava que
a autoestima, que para ele à época só podia estar baseada na estima de
outras pessoas, é a base da virtude. – E que, sem a virtude, o mais lindo
edifício de sua fantasia teria de desabar outra vez a qualquer momento.
No estado em que se encontrava, todas as vezes que ainda lhe era
possível juntar alguns trocados, ele sempre ia gastar no teatro – mas
quando, no meio do verão, a companhia de atores novamente se mudou, o
campo que se estendia diante da nova porta da cidade era não só a meta
de seus passeios, mas quase sua estada permanente. – Muitas vezes, ficava
deitado o dia todo num lugar à luz do sol, ou passeava ao longo do rio,
alegrando-se sobretudo quando à hora cálida do meio-dia não avistava
nenhuma pessoa à sua volta.
Por dias inteiros, enquanto se entregava ali aos seus pensamentos
melancólicos, sua imaginação se nutria imperceptivelmente de grandes
imagens que, no entanto, começariam a se desenvolver aos poucos um ano
depois.
Mas desse modo seu tédio de viver chegou ao extremo – muitas vezes,
nesses passeios, ele ficava na margem do rio Leine, curvando-se em
direção à torrente caudalosa, enquanto a admirável ânsia de respirar
lutava contra o desespero e, com terrível força, puxava de volta o seu
corpo inclinado.
PARTE 3
Com a conclusão desta parte, têm início as andanças de Anton Reiser e,
com elas, o verdadeiro romance de sua vida. O conteúdo desta parte é uma
representação fiel das cenas de seus anos de juventude, representação que
talvez possa servir de lição e advertência àqueles a quem esse tempo
inestimável ainda não transcorreu. Talvez essa representação também
contenha muitas sugestões, não de todo inúteis, para os professores e
educadores, que os levem a ser mais cuidadosos no tratamento de alguns
de seus alunos e mais justos ao julgá-los!
Assim, Reiser passou doze semanas terríveis de sua vida até que
finalmente o pastor M., por intermédio de terceiros, o fez saber que o
aceitaria novamente tão logo ele se dignasse se desculpar e se arrepender
seriamente por seu comportamento.
Com isso, seu coração enfim amoleceu, pois, além de tudo, estava
cansado de sua obstinada teimosia e da morosa miséria que dela resultava.
Ele se sentou e escreveu uma longa carta ao pastor M., na qual se
depreciava com a maior amargura – descrevendo-se como o homem mais
indigno que já aparecera sob o sol – e não profetizava para si destino
melhor do que morrer um dia de pobreza e necessidade, a céu aberto.
Em suma, essa carta, redigida com os mais exaltados termos de
desprezo e aviltamento de si que se possa imaginar, podia ser tudo, menos
hipocrisia.
Naquela época, Reiser se considerava realmente um monstro de
maldade e ingratidão; e escreveu a carta inteira ao pastor M. com uma
severidade contra si que raramente seria possível encontrar em outra
pessoa – ele não pensou em se desculpar, mas em se acusar ainda mais.
Apesar disso, compreendeu que o furor pelos romances e pelo teatro
era o motivo mais imediato de seu estado atual – mas naquele tempo seu
raciocínio não teve força suficiente para retroceder até as razões pelas
quais a leitura de romances e as peças de teatro se tornaram uma
necessidade fundamental para ele – toda a desonra e o desprezo que desde
criança o haviam impelido de seu mundo real para um mundo ideal. – E
por isso fez contra si mesmo acusações talvez mais injustas que outros
teriam feito a ele – em muitas horas não só se desprezava, mas também se
odiava e sentia repulsa de si mesmo.
Por isso, a confissão que fez na carta endereçada ao pastor M. foi
terrível e única em seu estilo – de modo que o pastor M. ficou espantado
quando a leu – pois jamais em sua vida alguém se confessara assim a ele.
Desde que enviara a carta, Reiser apenas aguardava a ocasião em que
seria recebido pelo pastor M.; e foi marcado um dia, que ele aguardou com
estranhos e misturados sentimentos de temor, de esperança e de
desespero resignado.
Ele havia se preparado para uma cena um tanto teatral, que resultou,
porém, num total fracasso. – O que pretendia era cair aos pés do pastor M.
e rogar que este lançasse toda a sua ira sobre ele. – Reiser já esboçara em
pensamento todas as palavras que iria dirigir ao pastor, e, por onde quer
que fosse ou onde quer que estivesse, levava sempre consigo essa ideia,
até o dia em que deveria ser recebido pelo pastor M. –
Mas, enquanto esperava, um evento o deixou extremamente
aborrecido. – Seu pai soube de seu estado e viajou para H. a fim de
interceder a favor do filho, deixando Reiser um tanto desgostoso, porque
não achava que precisasse da intervenção de qualquer pessoa, mas se
julgava suficientemente capaz de tocar o coração do pastor M. com o
discurso apaixonado que concebera.
Despertou enfim para o importante dia em que falaria com o pastor M.
– e sua fantasia estava ocupada com coisas grandiosas – como se jogaria
aos pés do pastor M. cheio de arrependimento e desespero – e este o
ergueria comovido e o perdoaria.
E finalmente chegou à casa do pastor M., aproximando-se com anseio
pavoroso da cena tão longamente preparada; enquanto esperava ali fora
ser chamado, surgiu um criado e lhe disse que já poderia entrar, seu pai já
se encontrava com o pastor M.
Essa notícia foi um choque para ele – por um momento ficou
atordoado. – Nesse instante todo o seu plano falhara – ele queria falar com
o pastor M. sem testemunhas, pois só assim estaria em condições de
representar toda a cena de ajoelhar-se diante dele e lhe dirigir as palavras
com comoção e paixão. – Era-lhe impossível ficar de joelhos diante do
pastor M. na presença de um terceiro, principalmente na de seu pai. –
Mandou o criado entrar de novo e dizer que precisava falar sozinho
com o pastor M. – Esse diálogo lhe foi negado, e, em vez da brilhante e
comovente cena que pensava em apresentar, teve de ficar ali, assim que
entrou, como um delinquente, humilhado e aviltado pela presença do pai,
sem poder apresentar uma única palavra de todo o discurso que havia
tempo planejara –
Com isso, apoderou-se dele um sentimento que ainda não havia
conhecido em sua vida – ver seu pai ao seu lado em posição de súplica diante do
pastor M. lhe foi insuportável –, e teria dado tudo no mundo para que
naquele momento seu pai estivesse a quilômetros de distância dali. Ele se
sentia duplamente humilhado e envergonhado na pessoa do pai, e a isso se
acrescia o aborrecimento de que toda aquela cena – estar aos pés de
alguém – não resultara em nada – tudo se passou de maneira tão fria, tão
comum e tão habitual – Reiser ficou ali tão indistinto quanto um facínora
comum e vulgar a quem se podiam fazer merecidas acusações por seu
comportamento – e ele mesmo quis se descrever como um grande
facínora e suplicar que caísse sobre ele o mais duro castigo por seu crime.

Mas talvez nenhum acaso em sua vida tenha contado mais para sua
legítima vantagem do que justamente esse. – Se dessa vez tivesse
conseguido executar as cenas planejadas, quem sabe o que não teria feito
depois e que papéis não teria representado? – Talvez esse fosse mesmo o
momento decisivo em que seu destino estava em jogo: seria hipócrita e
ladrão, ou deveria continuar sendo um homem correto e honesto?
A cena de se jogar aos pés de alguém teria sido fundamentalmente
afetação, embora não fosse claramente hipocrisia e dissimulação, e como é
simples a passagem da afetação para a hipocrisia e a dissimulação!
Foi certamente um verdadeiro benefício para Reiser o pastor M. não
dar atenção a todas as frases exageradas de sua carta, e, em vez de se
comover, achá-las risíveis e declará-las um parto imaturo de uma fantasia
excitada pela leitura de romances e pelas peças de teatro; com o acréscimo
de que, se Reiser fosse mesmo um facínora, como havia se descrito na
carta, o pastor M. não teria a menor preocupação com ele, mas o
detestaria como a um monstro.
E em vez de estender-se em novas explicações de que o passado lhe
seria perdoado desde que tivesse outro comportamento no futuro, ou algo
assim, o pastor M., de maneira nada sentimental, começou logo falando
das meias e dos sapatos rotos de Reiser, das dívidas que contraíra, e de
como teria de pagá-las e de como deveria consertar suas roupas
esfarrapadas. – Não deu sequer uma vez a chance para um voto solene de
melhora futura ou algo comovente. – Todo o seu comportamento em
relação a Reiser, embora de cara o aceitasse de volta, era seco e duro – mas
era justamente esse comportamento seco e duro o que despertava Reiser
do torpor, transportando-o de seu mundo ideal de romances e peças de
teatro para o mundo real, sobretudo quando seu romance, que pensou em
apresentar ao pastor M., fracassara, e ele teve de sair novamente de seu
terrível estado não pela fantasia oca de tornar-se um camponês, ou algo
assim, mas para sair realmente dele.
Com essa mudança de seu destino, inumeráveis bons propósitos e
decisões se erguiam outra vez em sua alma; a desastrosa cena de ajoelhar-
se ainda lhe doía, mas finalmente também nesse aspecto ele se reconciliou
com seu destino – e assim teve início uma nova época de sua vida.
Ele se mudou da casa do fazedor de vassouras e foi ser inquilino de um
alfaiate, com quem tinha de dividir o mesmo cômodo, dormindo no sótão.
– A sra. F. e o músico da corte, que também moravam na mesma casa,
encarregaram-se dele mais uma vez, dando-lhe de comer uma vez por
semana. – A sra. F. lhe pediu que ensinasse a menininha que estava
morando com eles a escrever e que a instruísse no catecismo. Reiser
voltou a frequentar a escola regularmente, e despertaram novas
esperanças nele – o próprio príncipe o convocou e lhe falou na presença
do pastor M., que recebeu do príncipe o dinheiro para o sustento de
Reiser, quitando assim suas dívidas.
Tudo então voltou a correr muito bem – e ele novamente passou a se
dedicar aos estudos –, embora ali sua situação externa também não fosse
propícia a isso – pois na casa do alfaiate não tinha nada, a não ser um
cantinho onde ficava seu piano, que lhe servia ao mesmo tempo de mesa e
embaixo do qual ele também montara toda a sua biblioteca numa pequena
prateleira. – Quando lia em voz baixa e trabalhava, não podia exigir
silêncio ao seu redor; e, enquanto durou o inverno, foi obrigado a ficar no
cômodo de seu patrono – no verão, ele ia com seu piano e os livros para o
sótão, onde dormia e ficava sozinho e sossegado.
Fazia ainda poucas semanas que havia deixado sua antiga moradia e
seus antigos companheiros de quarto, G. e M., quando aconteceu um
evento terrível que o fez sentir muito intensamente a grandeza e a
proximidade do perigo no qual havia se envolvido.
É que G., certo dia cantando no coral, foi detido em plena rua e
imediatamente levado preso a uma das mais profundas masmorras nas
portas de…, destinada apenas aos piores criminosos.
Ao ver que o levavam, Reiser foi tomado de espanto e pavor – e o que
era mais estranho: a ideia de que o considerassem cúmplice do ainda
desconhecido delito de seu antigo companheiro de moradia fez surgir
imediatamente nele sinais de vergonha e confusão, como se realmente
fosse cúmplice – de modo que seu medo se tornou tão grande como se de
fato tivesse cometido o delito. Isso era uma consequência natural de sua
autoestima reprimida desde a infância, que naquele tempo não era forte o
suficiente para se contrapor aos juízos dos outros sobre ele – se alguém o
tivesse considerado um notório criminoso, Reiser provavelmente teria,
por fim, concordado.
Finalmente, soube-se que seu antigo companheiro de moradia, G.,
cometera um roubo na igreja, tendo furtado à noite galões da toalha do
altar, arrebentado até as fechaduras dos bancos da igreja para roubar a
prata dos livros de hino que eram ali guardados.
Então eram esses os projetos que G. havia tramado e matutado por dias
inteiros, deitado na cama.
Apesar de ter cometido antes diversos outros roubos, ele de fato só
havia roubado a igreja depois de Reiser já ter ido embora.
Para o seu delito, cabia realmente a forca – e o temor de ter destino
parecido sempre tomava conta de Reiser quando pensava no quão
próximo estivera daquele indivíduo e com que facilidade poderia ter sido
seduzido gradualmente por ele de um risco a outro, visto que o heroico
pontapé inicial já havia sido dado pela expedição à ilha das cerejas. –
Reiser teria achado o roubo noturno da igreja muito mais heroico que
infame e talvez não tivesse sido muito mais difícil para G. convencê-lo a
participar dessa aventura do que daquela na ilha das cerejas.
Talvez essa reflexão ou essa consciência vaga contribuíssem para a
confusão de Reiser todas as vezes que falavam sobre G. – parecia-lhe haver
apenas um passo muito pequeno entre ele e o delito que poderia ter sido
levado a cometer, de modo que ele se sentia como quem tem vertigens
diante de um abismo do qual se mantém suficientemente distante para
não cair, mas, absorvido por seu temor, sente-se irresistivelmente atraído e
pensa já estar se afundando nele.
A mera possibilidade de poder ter participado do crime de G. despertou
quase um sentimento parecido em Reiser, como se realmente tivesse
participado do crime, o que pode, portanto, esclarecer muito bem seu
medo e confusão.
G., no fim, não foi enforcado, mas, após alguns meses na prisão, sua
sentença foi comutada, e ele foi levado para a fronteira e expulso do país.
– Reiser não soube mais sobre seu destino. – Assim chegou ao fim o
verdadeiro Sócrates moribundo, apelido que Reiser carregou por tanto
tempo, mesmo sem ter representado o papel, somente o de um amigo sem
importância, que não fez nada além de ficar num canto e chorar, enquanto
o Sócrates moribundo, para a comoção de toda a plateia, podia beber a
taça de veneno e se mostrar ainda na mais esplêndida luz em seu leito de
morte.
Àquela época, já fazia mais de um ano que Reiser começara a escrever
um diário no qual anotava tudo o que lhe acontecia. Era um diário
bastante singular, porque não omitia uma única circunstância sequer de
sua vida nem um único incidente de seu dia, por mais insignificante que
pudesse ser. – Como anotava apenas os acontecimentos verdadeiros, e não
as fantasias que tivera durante o dia, as narrativas só podiam ser muito
vazias e insossas, e eram desinteressantes como os próprios
acontecimentos. – Reiser vivia, de fato, sempre uma vida dupla, interna e
externa, completamente diferentes uma da outra, e seu diário descrevia
exatamente a parte externa de sua vida, que não valia a pena ser anotada.
– Àquela época ele ainda não sabia observar a influência dos incidentes
externos, reais, sobre o estado interno de seu ânimo; sua atenção para
consigo ainda não tinha tomado o rumo certo.
No entanto, seu diário foi melhorando à medida que começou a anotar
nele não só os acontecimentos, mas também seus propósitos e decisões,
para ver depois de um tempo quais deles haviam se concretizado. – Então
impunha a si mesmo suas próprias leis, que anotava em seu diário para
executá-las. Às vezes ele até se fazia promessas solenes, como levantar
cedo, dividir ordenadamente o dia em horas, e outras coisas assim.
Mas era estranho – justamente os mais solenes propósitos que concebia
costumavam em geral se cumprir de modo tardio e frio. – Quando
conseguia realizá-los nas pequenas coisas, o fogo da fantasia, com o qual
imaginara tomar em conjunto as coisas com todas as suas agradáveis
consequências, já estava extinto. – Quando, ao contrário, ele se preparava
para fazer tudo de modo simples e sem toda a pompa e solenidade, a
execução costumava ocorrer muito mais cedo e melhor.
Ele era inesgotável em bons propósitos. – Mas isso também o deixava
constantemente insatisfeito consigo mesmo, porque os bons propósitos
eram tantos que ele nunca conseguia se satisfazer. –
Certa vez, esteve por três dias ininterruptos satisfeito consigo mesmo,
e ele anotou os três dias como uma grande raridade em sua vida, e de fato
haviam sido – pois, até onde conseguia se lembrar, esses três dias foram os
únicos assim. – Mas nesses três dias de fato ocorreu uma feliz coincidência
de circunstâncias, clima bom, saúde boa, rosto amistoso das pessoas com
as quais esteve, e outras pequenas coisas, que lhe facilitaram
sensivelmente a execução de seus bons propósitos. –
Aliás, ele recorria a qualquer meio para se manter devoto e virtuoso. –
Procurou principalmente despertar em si, todas as manhãs, intenções
nobres e boas, enquanto recitava “A oração universal”, de Pope, que ele
havia copiado e decorado em inglês, e, cada vez que a dizia, ficava
realmente comovido e reanimado para bons propósitos e decisões. – Além
disso, transcreveu de um livro uma porção de regras de vida, que lia em
horas determinadas no decorrer do dia – e algumas árias, que possuíam
temas especialmente animadores para a virtude e a devoção, também
eram cantadas dia a dia bem meticulosamente por ele, em horas
determinadas.
Se paralelamente a isso suas condições exteriores tivessem se tornado
um pouco mais vantajosas e animadoras com esses propósitos e esforços,
bastante raros num jovem de sua idade (ele estava à época com um pouco
mais de 16 anos), Reiser teria se tornado um modelo de virtude.
Mas o que reiteradamente o derrubava era a opinião dos outros em
relação a ele, que não conseguia mudar à força, e, apesar de todos os seus
esforços para se tornar um ser humano melhor, não mais se moldava a seu
favor. Reiser parecia ter estragado e decepcionado por demais as
expectativas dos outros em relação a ele para poder merecer o respeito e o
amor que suscitava anteriormente nas pessoas.
Em especial, uma imerecida suspeita caiu sobre ele – era a suspeita de
libertinagem, porque tinha morado com um libertino como G. – Reiser
estava tão distante disso que, três anos depois, de maneira casual, lhe caiu
nas mãos um livro de anatomia que lançou luz sobre certos assuntos a
respeito dos quais suas ideias ainda eram bastante confusas e obscuras
naquela época.
Mas sua leitura de livros no alfarrabista e suas idas ao teatro eram
vistas da pior maneira e julgadas ainda uma falta imperdoável.
Entretanto, calhou de uma companhia de acrobatas chegar a H., e, já
que a entrada custava uma ninharia, certa noite ele foi assistir a essa
arriscada arte. – Foi visto por lá – e, como isso também era uma espécie de
teatro, comentou-se que seu antigo pendor fora de novo despertado e não
havia noite em que não fosse ao teatro ver os acrobatas; e ele de novo
gastaria lá seu dinheiro – já dava para ver que não iria melhorar.
Sua voz era muito fraca para se erguer contra as afirmações dos que
diziam tê-lo visto todas as noites no espetáculo dos acrobatas – em suma, a
única noite em que estivera lá contribuiu mais para que decaísse
novamente na opinião das pessoas do que toda a sua dedicação anterior
aos estudos e seu comportamento correto tinham até então contribuído
para melhorá-la.
Além disso, alguns acontecimentos o deixaram muito abatido. Estava
chegando o Ano-Novo, e ele se alegrava porque, novamente desfrutando
os privilégios de sua posição, iria sair em fila junto aos demais no cortejo
com tochas e música, e não seria mais, como da última vez, um dos
últimos a se perfilar.
Mas, para que pudesse pagar a tocha, sua cota na música e outros
custos, ele estava esperando apenas a distribuição do dinheiro do coral,
que penosamente ganhou cantando no frio e na chuva, e, quando foi até o
diretor para receber, o vice-diretor teve a ideia de confiscar o dinheiro
pelas aulas particulares que lhe dera na segunda série e ainda não tinham
sido pagas. Reiser foi até o vice-diretor e lhe pediu encarecidamente que
lhe desse ao menos metade do dinheiro do coral; mas ele foi inflexível; e,
quando Reiser voltou ao diretor, também este lhe fez as mais duras
acusações de que tinha estado de novo no teatro dos acrobatas e até
mesmo comprara mel e pão na feira em frente à escola e comera na rua. –
Coisa que Reiser considerava muito inocente e nada humilhante, mas que
agora era interpretada como a maior infâmia, levando o diretor a tachá-lo
de menino mau, que não tinha honra nem vergonha e de quem ele não
queria mais se encarregar.
Em toda a sua vida, dificilmente Reiser esteve mais triste e abatido do
que nesse momento em que saía da casa do diretor para voltar à sua. Ele
não só não reparou no vento nem na nevasca como vagou por hora e meia
pelo baluarte e pela cidade, entregue a seu pesar e a seus ruidosos
lamentos.
Pois de repente tudo fracassou: seu esforço para novamente cair nas
graças do diretor por seu comportamento; a esperança de receber um bom
dinheiro do coral, dinheiro que costumava ser sempre muito mais
considerável na época do Ano-Novo; e o ardente desejo de estar na
procissão com tocha e música no dia seguinte e assim caminhar
publicamente em fila.
Mas o que mais lhe doía era verdadeiramente a última coisa – e isso era
muito claro; pois, ao participar do cortejo, ele se sentia outra vez em posse
de todos os direitos de sua posição, dos quais muitas vezes fora privado. –
Permanecer excluído disso lhe parecia uma das maiores adversidades que
lhe podiam acontecer. – Esse era também o motivo pelo qual pedira tão
encarecidamente ao vice-diretor a liberação de metade do dinheiro do
coral, humilhação pela qual de outro modo jamais teria passado.
Todos os seus planos para arrumar dinheiro de nada o ajudaram; ele
não conseguiu comprar tochas e, na noite seguinte, teve de ficar em casa
pesaroso e sentado ao piano, enquanto todos os seus colegas de escola
percorriam com pompa reluzente a rua, em meio a uma multidão de
espectadores – procurou se consolar da melhor maneira possível; mas, ao
ouvir a música vinda lá de longe, ela produzia um efeito curioso em seu
ânimo – ele imaginava com vivacidade o brilho das tochas, a multidão de
espectadores, o tumulto, e seus colegas de escola como os personagens
principais dessa suntuosa apresentação. – E ele excluído, solitário e
abandonado por todo mundo – isso o afundou numa melancolia muito
semelhante à sentida quando seus pais o largaram sozinho lá em cima no
quarto, enquanto festejavam com o proprietário embaixo, e as risadas
alegres da festa e o barulho dos copos ressoavam alto em cima, e ele se
sentia tão sozinho e abandonado por todo mundo, consolando-se com os
cânticos de Madame Guyon.
Acontecimentos assim o impeliam cada vez mais do mundo para a
solidão – ele não se sentia mais contente senão quando podia se sentar
sozinho ao piano e ler em voz baixa e trabalhar – e não almejou nada mais
ardentemente do que a chegada do verão para que pudesse passar o dia
todo sozinho no sótão, onde colocaria sua cama.
E, quando esse tão almejado verão chegou, Reiser desfrutou antes de
mais nada o prazer dos estudos solitários. Havia algum tempo ele
recomeçara a pegar emprestados livros no alfarrabista; mas seu gosto
estava dirigido exclusivamente a livros científicos. Desde aquela terrível
época de sua vida, suas leituras de romances e peças de teatro tinham
cessado inteiramente.
Assim que o tempo começou a esquentar, ele correu para seu sótão e lá
passou as mais prazerosas horas de sua vida, lendo e estudando.
Pegara emprestado do alfarrabista, entre outras coisas, o Filosofia de
Gottsched, e, embora as matérias nesse livro também fossem muito
diluídas, ele deu de certa forma o primeiro estímulo a sua capacidade de
pensar – conseguiu ter assim ao menos uma ligeira visão geral de todas as
ciências filosóficas, o que organizou as ideias em sua cabeça.
Logo que percebeu isso, cresceu também dia a dia sua avidez de ter
rapidamente uma visão geral dos assuntos. – Viu que a mera leitura não
ajudava em nada – começou então a esboçar por escrito tabelas em
folhinhas, nas quais sempre subordinava adequadamente o detalhe ao
todo, e desse modo procurava formar uma noção clara daquilo.
A simples cópia do sumário já tornava o assunto mais interessante para
ele – pois, mantendo diante de si, durante a leitura do livro, a folha na
qual copiara as matérias contidas nele, tinha assim a vantagem de, ao
mirar o singular, jamais perder de vista o todo, o que no pensamento filosófico
é sempre uma exigência fundamental, embora seja também a origem de
todas as dificuldades.
Tudo aquilo sobre o que ainda não havia refletido estava diante dele
nesse mapa como um país desconhecido, o qual verdadeiramente ansiava
por conhecer melhor. –
Os contornos, a armação já tinham sido traçados em sua alma por essa
visão geral do conjunto, e ele se esforçava para preencher uma a uma as
lacunas que só agora podia perceber. – E o que antes pareceu ser para ele
apenas meros termos vazios aos poucos se tornou conceitos claros e com
conteúdo, e, quando relia ou repensava um termo e de repente tudo o que
antes lhe era obscuro e confuso se tornava claro e nítido, ele era tomado
por um sentimento tão agradável como jamais sentira antes – saboreava
pela primeira vez o deleite do pensamento.
O apetite constante de logo avistar o todo o guiava através de todas as
dificuldades do singular. – Em sua capacidade de pensar estava ocorrendo
uma nova criação. – Era como se agora seu entendimento estivesse
acordando e pouco a pouco o dia irrompesse, e ele não se cansasse de ver a
luz revigorante.
Nesses momentos, quase se esquecia de comer e beber e de tudo o que
estava à sua volta, e durante um período de seis semanas, alegando estar
doente, quase não saiu de seu sótão. – Sentava-se diante de seu livro, com
a pena na mão, da manhã até a noite, e não descansava antes de ter lido o
livro de cabo a rabo.
Mas o que jamais deixou sua avidez se extinguir foi, como já dito,
manter diante dos olhos constantemente o conteúdo principal – e a permanente
ordenação e classificação das matérias, tanto em sua cabeça como no
papel.
Apesar de suas circunstâncias externas quase não terem melhorado,
ele passou aquele verão bastante contente.
De todo modo, as horas que passou solitário no sótão estavam entre as
mais felizes de sua vida. – Daquele momento em diante, ele ficava em geral
menos infeliz, porque sua capacidade de pensar começara a se
desenvolver.
Aonde fosse ou onde estivesse, ele agora refletia em vez de
simplesmente fantasiar como antes – e suas ideias se ocupavam com os
mais sublimes objetos do pensamento – com as representações do espaço
e do tempo, com a suprema faculdade de representação etc.
Mas, já naquela época, muitas vezes ao refletir sentia como se algo de
repente o impedisse, como se uma parede de madeira ou um teto
impenetrável de repente tapasse sua visão – era como se ele não pensasse
em nada – a não ser em palavras.
Ali ele deparou com a impenetrável parede que separa o pensamento humano
do pensamento dos seres superiores e os torna distintos, deparou com a
necessidade imperiosa da linguagem, sem a qual a capacidade humana de pensar
não pode ganhar impulso próprio – que é, de certo modo, apenas um recurso
artificial para produzir algo parecido ao verdadeiro pensamento puro, o
que talvez algum dia alcançaremos.
A linguagem lhe parecia um estorvo para o pensamento, mas ele não
conseguia pensar sem a linguagem.
Às vezes, afligia-se horas a fio tentando ver se era possível pensar sem
palavras. – E então vinha ao seu encontro o conceito de existência como o
limite de todo pensamento humano – e tudo ficava escuro e ermo. – Então
olhava por alguns momentos a curta duração de sua existência, e o
pensamento, ou melhor, o não pensamento do não ser, estremecia-lhe a
alma – era inexplicável que ele agora existisse realmente e que antes não
tivesse existido. – Assim, vagava sem apoio e sem guia nas profundezas da
metafísica.
Às vezes, quando estava cantando no coral e, em vez de conversar com
seus colegas de escola, retirava-se solitário, os colegas por trás diziam: “Lá
vai o melancólico!”; ele refletia então sobre a natureza do som e procurava
investigar o que não se deixava expressar com palavras. – Isso agora ocupava
o lugar de seus antigos sonhos românticos, com os quais ele antes havia
devaneado em tantas horas sombrias, quando em dias tristes de inverno
cantava na neve e na chuva.
Pegou emprestada do alfarrabista a Metafísica de Wolf e a leu também
segundo o método anterior – e, quando foi até a casa do sapateiro S., a
matéria para seus diálogos filosóficos estava muito mais rica que antes – e
eles por si mesmos chegaram a todos os diferentes sistemas expostos pelos
filósofos antigos e modernos, sempre repetidos maquinalmente por uma
multidão de pessoas.
Nesse meio-tempo, o diretor B., em cuja amizade Reiser havia colocado
muita esperança, tendo sido iludido tantas vezes, fora também promovido
a superintendente numa pequena cidade não muito longe de H., e seu
lugar foi ocupado por outro, de nome S.
Essa mudança praticamente não interessou a Reiser, que naquela
época não pensava em nada a não ser em sua metafísica. – O novo diretor
era já um senhor, de conhecimentos e muito gosto, e estava bastante livre
do pedantismo, caso muito raro nos antigos pedagogos.
Além disso, durante a mudança, muitas aulas foram canceladas. – As
faltas de Reiser nem sequer eram notadas. – E, se alguma vez uma falta às
aulas públicas foi bem aproveitada, foi o caso de Reiser – em poucos
meses, ele fez mais, ampliando seu entendimento com muito mais
conceitos, do que em todos os anos de estudos escolares.
Ao menos nunca voltou a ouvir todo o curso de filosofia exposto tão
detalhadamente quanto naquela época em que ele o concebera por si
mesmo – até as outras ciências, como a dogmática, a história etc., ele
nunca mais viu explicadas com tanta riqueza na universidade como havia
ouvido em parte na escola em H.
Na infância, não recebeu instrução alguma, exceto de aritmética e de
caligrafia, que agora estavam quase completamente perdidas, porque não
tivera chance de fazer exercícios de aritmética e havia machucado a mão
copiando textos. – Calhou de receber algumas aulas de caligrafia, que lhe
foram de pouca ou quase nenhuma utilidade, mas lhe permitiram
exercitar bastante a mão; quando começou de novo a preparar as tarefas
escolares e levar seus exercícios ao reitor, este ficou tão admirado com a
melhora de sua mão que lhe deu imediatamente algo para copiar, e o
obrigou a fazer em sua casa, de modo que Reiser assim conseguiu de novo
entrar na casa do reitor; isso o animou com alguma esperança de ter
crédito novamente, mas foi logo suprimida, quando seu pai certa vez
chegou a H. e o pastor M. não lhe deu nenhum consolo, limitando-se a
dizer que Reiser era um depravado que não se tornaria nada.
Quando seu pai voltou para casa, Reiser o acompanhou até o lado de
fora das portas da cidade, e foi ali que o pai o fez saber das palavras do
pastor M., reprimindo-o duramente, ao dizer que ele não reconhecia os
favores que recebia, enquanto apontava para a sobrecasaca que Reiser
estava vestindo, descrevendo-a como um presente imerecido de seus
benfeitores. – Esse último comentário irritou Reiser, pois a sobrecasaca,
que era de pano rústico e cinzento, que ele sempre odiou, lhe dava uma
aparência completa de serviçal, e por isso disse ao pai que aquela
sobrecasaca de serviçal, que era obrigado a vestir para o próprio desgosto,
não podia despertar nele nenhum grande sentimento de gratidão.
Seu pai, para quem eram sagrados os princípios da humilhação e da
mortificação de todo orgulho e presunção saídos dos escritos de Madame
Guyon, encheu-se de uma espécie de furor – rapidamente lhe deu as costas
e, caminhando, lhe rogou sua maldição. – Assim Reiser se viu numa
situação até então inédita; tudo o que havia sofrido e aguentado de seu
destino adverso, mesmo o fato de seu pai agora também o rejeitar e lhe
rogar maldição, percorreu-lhe a alma naquele instante.
Enquanto voltava para a cidade, soltava em voz alta imprecações
contra Deus, encontrando-se próximo do desespero – desejou realmente
ser tragado pela terra –, e a maldição de seu pai parecia estar de fato em
seu encalço.
Por um tempo, isso deteve novamente todos os seus bons propósitos e
sua dedicação até então espontânea e ininterrupta.
O verão estava chegando ao fim – e uma contínua dor física começou
com mais frequência a prostrar sua mente. Reiser sentia uma dor de
cabeça constante, que durou um ano inteiro, de modo que quase não havia
dia ou hora em que se visse livre dela.
O alfaiate, em cuja casa Reiser havia morado por um ano, disse-lhe
também que a hospedagem terminara, e ele se mudou para a casa de um
açougueiro numa rua distante, onde estavam alojados outros estudantes e
dois soldados rasos.
Ali teve também de ficar na parte de baixo, junto com outros, na sala; e
sua mobília, o piano e a estante de livros permaneceram lá embaixo, como
antes – em vez do sótão, ele conseguiu, no entanto, um cubículo na parte
de cima, onde dormia com outro aluno do coral, e no verão, quando estava
quente, cada um podia ficar sozinho.
As relações com seu anfitrião, o açougueiro, e com os dois soldados que
lá estavam alojados, além de alguns colegas desregrados do coral que
ainda moravam com ele, não contribuíram muito para sua formação e o
refinamento de seus costumes.
Nas noites de inverno, todos se reuniam na sala, e, como ele não
conseguia trabalhar com ruído e barulho, preferia se misturar ao bando, se
divertindo tanto quanto podia com as pessoas que agora compunham seu
círculo mais íntimo.
Apesar de suas constantes dores de cabeça, também trabalhava
sozinho sempre que conseguia ter um pouco de sossego, e dessa maneira
aprendeu francês em poucas semanas, pegando emprestado um livro de
Terêncio em latim, com tradução para o francês, e estudando diariamente
uma lição, sem interrupção; com isso, progrediu a ponto de compreender
razoavelmente qualquer livro em francês.
Como suas condições de vida não haviam melhorado e, além do mais,
continuava padecendo da dor física, encontrou-se em uma disposição de
alma em que os Pensamentos noturnos, de Young, que naquela época ele
conseguira por acaso, lhe caíram muitíssimo bem – parecia-lhe que
encontrava ali novamente todas as suas ideias anteriores sobre a nulidade
da vida e a vaidade de todas as coisas humanas. – Não se cansava de ler
esse livro e quase decorou os pensamentos e sentimentos que ali
imperavam.
O único alívio para sua dor de cabeça era quando podia se esticar de
costas na cama – nessa posição ficava com frequência lendo o dia todo. –
Era o único prazer da vida que ainda lhe restava e ao qual ainda se
apegava, porque de outro modo o tédio mortal teria tornado insuportável
a vida miserável em que ele se arrastava.
Para fugir às vezes do barulho que o rodeava, Reiser não se esquivava
nem da chuva nem da neve, mas no fim da tarde, quando já escurecera, e
estava certo de que não seria visto por ninguém e de que nenhuma pessoa
iria lhe dirigir a palavra, fazia um passeio pelo baluarte em volta da
cidade; era nesses passeios que seu espírito sempre se reanimava um
pouco e uma faísca de esperança voltava a arder em sua alma para libertá-
lo de seu terrível estado.
Quando, pelas ruas contíguas ao baluarte, ele via uma luz acesa dentro
das casas, imaginava que em cada cômodo iluminado – e havia muitos em
uma casa – vivia uma família, ou então uma comunidade de pessoas, ou
uma pessoa sozinha, e que naquele momento um cômodo daquele
abarcava em si os destinos e a vida e os pensamentos daquela pessoa, ou
de uma comunidade de pessoas; e que ele, após o passeio completo,
retornaria também para um cômodo ao qual estaria como que atado e que
seria o lugar próprio de sua existência; primeiramente isso provocava nele
uma estranha sensação de humilhação, como se seu destino estivesse
perdido nesse infinito e confuso amontoado de destinos humanos cruzados
e se tornasse por isso mesmo pequeno e insignificante. Mas, depois, essas
mesmas luzes em cada um dos cômodos das casas próximas ao baluarte
reerguiam pouco a pouco seu espírito, quando extraía delas uma visão do
todo e conseguia sair de sua própria e limitante esfera, na qual se perdia
entre todos os habitantes da terra que passavam despercebidos e
indistintos na vida, e profetizava para si um destino particular e
extraordinário, cuja doce ideia o animava com nova esperança e coragem
enquanto avançava a passos rápidos.
Uma série de salas de estar iluminadas numa casa desconhecida e
estranha para ele – onde imaginava um número de famílias de cuja vida e
destino pouco sabia, tanto quanto sabiam da sua e do seu – despertou-lhe
posteriormente sempre sensações estranhas – e a limitação de cada um
dos homens se tornava evidente para ele.
Percebeu a verdade: somos apenas mais um entre milhares e milhares
que são e foram.
Muitas vezes, seu desejo era poder se colocar inteiro no ser e na
essência de outra pessoa – às vezes, quando caminhava na rua perto de
uma pessoa completamente estranha, o pensamento da estranheza, da
completa inconsciência do nome e do destino de um em relação ao do
outro, era tão vivo que ele se acercava dessa pessoa, o mais próximo que
as boas maneiras permitiam, para se achegar à sua atmosfera e ver se não
conseguia atravessar o muro que separava suas memórias e seus
pensamentos das memórias e pensamentos desse estranho.
Talvez não seja inconveniente trazer aqui mais uma sensação de sua
infância – naquela época, ele às vezes imaginava ter outros pais que não os
seus, que não conhecesse e que lhe fossem completamente estranhos. – Ao
pensar nisso, muitas vezes vertia lágrimas infantis – seus pais poderiam
ser o que fossem, mas lhe eram os mais queridos, e ele não os teria trocado
pelos mais ilustres e bondosos. Mas ao mesmo tempo já lhe vinha naquela
época o estranho sentimento de se perder na multidão, e do fato de que
ainda havia uma quantidade muito grande de pais com filhos, inclusive os
seus, que também se perdiam nela.
Depois, todas as vezes que se encontrava numa multidão, ele tinha o
mesmo sentimento de pequenez, de particularidade e quase o de
insignificância semelhante ao nada. – Quantas dessas pessoas têm a mesma
matéria que a minha! Com que quantidade dessa massa de pessoas se
constroem Estados e exércitos, assim como de troncos de árvores se
constroem casas e torres!
Eram mais ou menos esses os pensamentos que à época produziam
nele um sentimento obscuro, porque não conseguia vesti-los em palavras
e não sabia como torná-los claros.
Certa vez, quando quatro criminosos foram decapitados no patíbulo às
portas de H., ele saiu com a multidão e viu lá embaixo, apartados dos
restantes, os quatro que deveriam ser exterminados e esquartejados. – Já
que a massa de pessoas que os circundava era muito maior, aquilo lhe
pareceu tão pequeno e insignificante – como se uma árvore fosse
derrubada na floresta ou um boi, abatido. – E, quando os pedaços daqueles
homens condenados foram içados à roda, ele se imaginou esquartejado e as
pessoas que o rodeavam em pé também – o ser humano se tornou tão sem
valor e tão insignificante para Reiser que ele sepultou seu destino e tudo o
mais na ideia de despedaçabilidade do animal – voltou para casa com certo
prazer até e ao longo do caminho comeu sua pasta de peruca – pois aquela
época havia sido justamente seu pior trimestre, em que muitos dias viveu
simplesmente daquilo. Comida e roupa eram para ele tão indiferentes
quanto morte e vida – que diferença faz uma massa de carne móvel
daquelas, da qual havia uma quantidade assustadora no mundo,
caminhando ou não por aí? – Depois não podia se controlar e sempre se
punha no lugar dos criminosos executados, esquartejados e exibidos em
pedaços na roda – e pensava no que Salomão já pensara: O homem é como o
gado; assim como o gado morre, morre ele também.
Desde então, toda vez que via abaterem um animal, Reiser sempre se
unia a ele em pensamento – e, como muitas vezes teve ocasião de ver um
abate na casa do açougueiro, durante um bom tempo seu pensamento
simples passava horas tentando descobrir a diferença entre ele e um
animal abatido. – Muitas vezes, ficava horas a fio fitando um bezerro com
cabeça, olhos, orelhas, boca e nariz; e se inclinava, como fazia com pessoas
estranhas, tão perto quanto possível, muitas vezes com a tola ilusão de
que talvez pudesse se colocar pouco a pouco na essência daquele animal –
porque queria saber toda a diferença entre ele e o animal. – Às vezes se
esquecia tanto de si nessas observações incessantes que realmente
chegava a pensar que naquele instante tinha sentido o modo de existência
daquele ser. – Em suma, como seria se, por exemplo, ele fosse um cão que
vivia entre os homens, ou outro animal – já desde a infância isso ocupava
seu pensamento com frequência. – E, como pensara então na diferença de
corpo e alma, nada lhe era mais importante do que descobrir também
qualquer diferença fundamental entre ele e o animal, porque caso
contrário não poderia se convencer de que o animal, que era muito
parecido com ele em sua estrutura corporal, não teria também uma alma
como ele.
E onde permanecia a alma após a destruição e o despedaçamento do
corpo? – Todos os pensamentos de milhares e milhares de pessoas que
antes estavam separados uns dos outros pela parede do corpo e que se
comunicavam através do movimento de algumas partes dessa parede
pareciam, após a morte da pessoa, confluir todos para a unidade – lá não
havia nada mais que os isolasse e os separasse uns dos outros – ele
imaginava um homem de que só tivesse restado o intelecto pairando no ar,
intelecto que logo se dissolvia em sua faculdade de representação.
E daí lhe parecia surgir, da imensa massa de homens, uma imensa e
informe massa de almas – ele nem sempre compreendia por que seriam
exatamente tantas e não mais nem menos, e como o número parecia ir ao
infinito, o singular por fim se tornava quase tão insignificante quanto o
nada.
Essa insignificância, essa perda na multidão, era fundamentalmente o que
muitas vezes tornava sua existência enfadonha.
Certo fim de tarde, caminhava pelas ruas triste e irritado – o sol já se
punha, mas ainda não estava tão escuro que não pudesse ser visto por
ninguém – e o olhar das pessoas lhe era insuportável porque ele
acreditava ser objeto de escárnio e de desprezo delas.
Havia um vento úmido, uma mistura de chuva com neve – toda a sua
roupa estava encharcada – e de repente surgiu nele o sentimento de que
não podia fugir de si mesmo.
E com esse pensamento ele sentiu como se uma montanha lhe caísse
em cima – procurou com todas as forças se erguer, mas era como se o
fardo de sua existência o forçasse para baixo.
Teria de se levantar e se deitar consigo todo santo dia – a cada passo,
seu odiado si mesmo seguiria se arrastando com ele.
Com a sensação de desprezo e rejeição, sua consciência de si ficou tão
pesada quanto seu corpo com a sensação de umidade e frio; se naquela
época uma morte almejada lhe tivesse sorrido de um recanto qualquer, ele
teria se despojado de seu corpo de bom grado e com prazer, como de suas
roupas encharcadas.
Irrevogavelmente Reiser tinha de ser ele mesmo e não podia mais ser
outra pessoa; o fato de estar limitado e confinado a si mesmo pouco a pouco
lhe provocou um grau de desespero que o levou à beira do rio que
atravessava uma parte da cidade onde não havia nenhum parapeito.
Ali, durante meia hora, entre o mais terrível tédio de viver e o desejo
instintivo e inexplicável de continuar respirando, permaneceu em pé,
lutando até perder finalmente as forças e cair sobre o tronco de uma
árvore derrubada que estava perto da margem. Ali, durante um momento,
como que desafiando a natureza, deixou-se molhar pela chuva até que a
sensação de um calafrio de febre e uma bateção de dentes o trouxessem
novamente a si, e por acaso lhe ocorreu recordar que naquela noite ele
comeria linguiça fresca na casa do seu anfitrião, o açougueiro; e que a sala
estaria muito bem aquecida. – Essas lembranças sensoriais e animalescas
revigoraram sua vontade de viver – ele se esqueceu completamente de
que era homem, assim como se esquecera disso depois da execução dos
criminosos, e voltou para casa em seus propósitos e sensações como um
animal.
E como animal ele desejou continuar vivendo; como ser humano, cada
momento da continuação de sua existência se tornara insuportável.
Mas como ele, quando as coisas apertavam, já fora tantas vezes salvo
de seu mundo real pelo mundo dos livros dessa vez também pegou
emprestada no alfarrabista justamente a tradução de Wieland das obras de
Shakespeare – e todo um mundo novo de repente se abriu para seu
pensamento e sensibilidade!
Reiser encontrou ali muito mais do que até então havia pensado, lido e
sentido. – Leu Macbeth, Hamlet, Lear e sentiu seu espírito arrebatar-se
irresistivelmente – cada hora da vida em que lia Shakespeare era
inestimável. – Por onde quer que fosse, agora vivia, pensava e sonhava
com Shakespeare, e seu maior desejo era compartilhar tudo o que sentia
ao lê-lo. – A pessoa mais próxima com quem pôde compartilhar isso, e que
também era muito sensível ao autor inglês, era seu amigo Philipp Reiser,
que morava numa vizinhança distante da cidade, onde instalara uma nova
oficina e construía pianos – ele continuava cantando no coral, mas não no
mesmo de Anton Reiser. – Apesar da estreita amizade dos dois, as
circunstâncias da vida os haviam separado durante um bom tempo.
Mas, quando Anton Reiser não podia desfrutar seu Shakespeare
sozinho, ele sabia que não havia nada melhor a não ser correr para seu
amigo romântico.
Ler em voz alta para o amigo uma peça inteira de Shakespeare e notar
com prazer todas as sensações e declarações dele era para Reiser o maior
deleite que desfrutara na vida.
Eles dedicavam noites inteiras às leituras, nas quais Philipp Reiser fazia
o papel de anfitrião, preparava o café por volta de meia-noite e botava
lenha na lareira. – Depois ambos se sentavam a uma mesinha à luz de uma
pequena lamparina. – Philipp Reiser inclinava o longo pescoço sobre o
livro enquanto Anton Reiser continuava lendo, e a intensa paixão
aumentava junto com o interesse pela ação.
Essas noites shakespearianas fazem parte das mais agradáveis
recordações na vida de Reiser. Se algo formou seu espírito, foram essas
leituras, em relação às quais tudo o que havia lido de teatro até então ficou
totalmente à sombra e obscurecido. Aprendeu de maneira nobre a não se
importar nem mesmo com suas condições de vida – apesar da melancolia,
sua fantasia tomava um impulso maior.
Shakespeare o fizera percorrer o mundo das paixões humanas – o
círculo estreito de sua existência ideal fora ampliado. Não vivia de modo
tão isolado e insignificante a ponto de se perder na multidão – pois ele
havia sentido profundamente as sensações que milhares sentiram ao ler
Shakespeare também.
Depois de ter lido Shakespeare, e da maneira como o havia lido, ele já
não era um homem vulgar e comum – e não demorou muito para que seu
espírito sobrepujasse todas as suas condições externas de vida opressiva, o
escárnio e o desprezo que antes sofrera – como a sequência desta história
irá mostrar.
Os monólogos de Hamlet fixaram sua atenção primeiramente na
totalidade da vida humana – não se imaginava mais sozinho quando se
sentia atormentado, oprimido e limitado; começou a considerar isso o
destino universal da humanidade.
Assim, seus lamentos se tornaram mais nobres que antes – a leitura dos
Pensamentos noturnos, de Young, já tinha em certa medida provocado esse
efeito, mas esses Pensamentos também foram suplantados por Shakespeare.
– Shakespeare tornou mais forte o antes frouxo laço de amizade entre
Philipp Reiser e Anton Reiser. Como Anton precisava de alguém a quem
pudesse dirigir todos os seus pensamentos e sentimentos, em quem
poderia recair sua escolha a não ser sobre aquele que tinha sentido o seu
adorado Shakespeare inteiramente como ele?
A necessidade de compartilhar seus pensamentos e sentimentos lhe
suscitou a ideia de fazer novamente uma espécie de diário no qual não
pretendia anotar os insignificantes acontecimentos externos como antes,
mas a história interna de seu espírito, e endereçar o que anotava ao
amigo, como numa carta.
Philipp, por sua vez, deveria também lhe escrever, o que acabou se
tornando um exercício mútuo de estilo. – Esse exercício foi a primeira
formação de Anton Reiser como escritor; começou a sentir um
indescritível prazer em expressar seus pensamentos, que concebera para
si próprio, em palavras adequadas para poder compartilhá-los com o
amigo – e assim nasceram de seu punho vários pequenos ensaios, alguns
dos quais não o envergonhariam mesmo em seus anos de maturidade.
Mesmo sendo esse exercício unilateral – já que Philipp Reiser ficou
para trás com os seus ensaios –, Anton Reiser agora tinha alguém em cujo
sentimento e gosto podia confiar, cuja aprovação ou censura não lhe eram
indiferentes, e em quem podia pensar todas as vezes que escrevia algo.
Era estranho; no princípio, quando queria anotar algo, sempre lhe
vinham à pena as palavras: o que é minha existência, o que é minha vida?. E
por isso essas palavras estavam também em muitos pequenos pedacinhos
de papel em que ele tinha intenção de escrever, e, se não conseguia,
jogava-os fora.
Sua concepção obscura da vida e da existência, que estavam diante dele
como um abismo, era sempre a primeira coisa a se impor em sua alma –
sentia-se pressionado a corrigir primeiramente o ponto mais importante
de sua dúvida e preocupação antes de dirigir o pensamento a qualquer
outro objeto. – Era portanto muito claro que, contra a sua vontade,
aquelas palavras sempre viessem à sua pena quando se esforçava para
anotar pensamentos.
Por fim, a expressão abriu caminho através dos pensamentos – e o primeiro
que lhe foi possível vestir em palavras adequadas foi um pensamento
metafísico sobre o eu e a autoconsciência.
Como queria continuar pensando e anotando seus pensamentos, sem
dúvida a primeira coisa que lhe vinha à mente era: queria ser, por assim
dizer, veraz consigo mesmo antes de proceder com as outras coisas.
Começou então a perseguir o conceito de indivíduo, que alguns anos
antes, quando ouvira pela primeira vez algo sobre lógica, tinha se tornado
de fundamental importância para ele – e, ao deparar com o mais elevado
grau de determinação do ser sob todos os aspectos e a perfeita identidade de
si mesmo – após algumas meditações, foi como se ele mesmo tivesse se
desvanecido – e tivesse novamente de procurar-se na sequência de
recordações do passado. – Percebeu então que a existência só pode ser
agarrada no encadeamento dessas recordações ininterruptas.
A verdadeira existência lhe parecia estar limitada apenas ao indivíduo
real – e ele não podia pensar num indivíduo verdadeiro exceto num ser
eternamente imutável que abarcava tudo num só olhar.
No fim de suas investigações, parecia-lhe que até sua existência não
passava de mera ilusão, uma ideia abstrata – um conjunto de similaridades
que cada momento de sua vida tinha com o momento que havia
desvanecido. – Por meio dos conceitos de sua própria limitação, seus
conceitos de divindade foram enobrecidos – agora começava a perceber,
nesse grande conceito, a própria existência, que sem ele parecia se
dissolver, tornando-se sem finalidade, desordenada e despedaçada. –
Dessas reflexões se formou o primeiro ensaio que escreveu e enviou
em forma de carta ao amigo com quem costumava conversar sobre esses
temas e que pelo menos parecia compreendê-lo.
No entanto, continuava a ter dores de cabeça – mas acostumou-se de
tal modo a elas que seu estado lhe pareceria seriamente em perigo, ou um
estado artificial, se um dia inesperadamente não mais as sentisse.
Seus encontros com Philipp Reiser se tornaram cada vez mais
frequentes – e ele conquistou de maneira inesperada mais um amigo; era o
filho do mestre de capela, chamado W., um dos colegas na escola, cuja
feição e formato do rosto quase sempre tinham inspirado em Reiser uma
espécie de antipatia, ao mesmo tempo que pensava que W. o desprezava.
W. soube por seu pai que Anton Reiser certa vez escrevera versos, e,
como ele mesmo prometera fazer para alguém um poema por ocasião de
um aniversário, procurou Reiser e lhe pediu que compusesse o poema que
não tinha nem vontade nem tempo para fazer. – Para Reiser, esse foi o
primeiro motivo que o levou a retomar a poesia, a qual havia
negligenciado por completo.
O pequeno poema não saiu nada mau. – W., a partir daquele momento,
visitava-o com mais frequência e prometeu um dia lhe apresentar um
homem notável, que vivia completamente às escuras e não era nada além
de um vinagreiro. – Reiser ficou com muita vontade de conhecê-lo – mas
ainda demorou um bocado de tempo para que isso acontecesse.
Com os versos que conseguiu fazer para W., sua inclinação adormecida
para a poesia voltou a despertar – mas sua indolência o levou de volta à
prosa harmônica, a que as repetidas leituras da primorosa tradução de
Ebert dos Pensamentos noturnos, de Young, tinham habituado seus ouvidos.
– Agora estava faltando apenas um motivo externo para dar um impulso
inabitual à sua imaginação.
Esse motivo ocorreu numa tarde de domingo turva e chuvosa – quando
cantava no coral. – Ele havia falado antes com W., que quis saber, entre
outras coisas, quais eram suas leituras, admirado de sempre o encontrar
lendo. – Reiser lhe respondeu que ler era a única coisa que ainda o
mantinha a salvo do desprezo ao qual estivera comumente exposto na
escola e no coral.
A conversa com W., na qual ele refletiu brevemente sobre sua situação,
deixou seu coração aberto a impressões intensas – e acabou coincidindo
que aquele V., com quem havia representado Sócrates moribundo junto com
G., o tomou por objeto de seu humor grosseiro, ridicularizando-o com
alusões de todo tipo diante de seus colegas de escola, que logo se juntaram
a G., tornando Reiser alvo do deboche deles por quase meia hora.
Não disse nenhuma palavra sobre aquilo e, enquanto ia embora
solitário, sentiu-se magoado interiormente; e, apesar de se esforçar para
transformar sua mágoa em desprezo, não conseguiu; até que finalmente,
sem perceber, sua fantasia o fez entrar num amargo humor misantropo,
que só veio a se atenuar com a lembrança do amigo Philipp Reiser. – Uma
vez que a intenção de anotar seus sentimentos e pensamentos para o
amigo havia se tornado predominante, dessa vez também acabou se
sobrepondo a seu aborrecimento e sua mágoa; procurou traduzir a mágoa
que sentira, e ainda sentia, em palavras que pudessem representá-la tanto
mais vivamente à sua imaginação. – E, antes de o coral terminar, o texto já
estava da mesma forma completamente finalizado, ensaio que ele iria
escrever em casa, em meio a todo o barulho, escárnio e risada zombeteira
à sua volta – e a alegria sentida com isso o ergueu de certo modo além de
si mesmo e de sua aflição. – Assim que chegou em casa – com uma
sensação estranha, confusa e melancólica, repleto de dor por seu estado e
repleto de alegria por ter conseguido esboçar com a linguagem uma
imagem viva dele –, anotou as seguintes palavras:

Para R.
Que triste é a existência do homem! – e, em vez de aliviarmos nosso fardo com um
convívio familiar neste deserto de vida, nós ainda tornamos essa vã existência insuportável
uns para os outros. – –
Não basta vagarmos em ilusão e enganos incessantes como se vagássemos num país
encantado?
Monstros também teriam de gritar conosco? – Um pérfido sátiro também teria de
penetrar em nossa alma com sua risada zombeteira?
Como é árido, como é triste tudo aqui ao meu redor! – Abandonado e solitário, tenho de
vagar – sem apoio, sem guia! –
Feliz de mim! Avisto uma multidão; homens iguais a mim também vagam por este
deserto –
“Ó amigos, me acolham, me acolham, que percorro este deserto com vocês; e ele se
tornará para mim um prado verdejante!”
Eles me acolhem – fico feliz! – –
Ai de mim! – o que vejo? – Aqueles ainda são os homens, meus irmãos? –
Ah, suas máscaras caem – são demônios – e o deserto se torna inferno para mim. –
Fujo, e a risada zombeteira deles me persegue. –
“Então vocês me enganaram, máscaras humanas? – Ah, máscara alguma poderá me
enganar de novo! – Que agora seja hospitaleira a noite, e você, solidão, e você, melancolia
mais negra! – Máscaras da morte, que sejam eternamente banidas de mim todas as suas
brincadeiras risonhas, toda a sua alegria ruidosa!” –
Assim eu caminhava e pensava, e o pesar sombrio preenchia minha alma. –
Quando de repente um jovem parou diante de mim – seu olhar anunciava amizade –
seus olhos meigos denotavam sensibilidade –; eu quis fugir o quanto antes – mas ele pegou
minha mão com muita familiaridade, e eu permaneci em pé – ele me abraçou, eu a ele –
nossas almas confluíram –
E à nossa volta fez-se o Elísio.

Reiser, de fato, não teria podido traçar imagem mais verdadeira do seu
estado do que essa – não havia exagero em nada do que disse –, pois as
pessoas com as quais ele primeiramente caminhou pela vida se lhe
tornaram realmente almas atormentadoras. – E dos monstros que lhe
gritaram fazia parte sobretudo V., cujo deboche grosseiro e pérfido
naquela tarde de domingo magoara Reiser até o fundo de sua alma, pois
esse V. sempre quisera ser seu amigo – ao menos ele e G., que fora expulso do
país, eram os únicos que, após a apresentação da peça de teatro, ainda se
relacionavam com Reiser, porque os três compartilhavam uma sina igual,
o ódio e o desprezo de todos os colegas de escola. – E o próprio V. se
colocava agora junto daqueles para os quais Reiser era um objeto de
escárnio – e provocava esse escárnio por seus deboches grosseiros,
tornando-se engraçado à custa de Reiser. – Tudo isso se somou para deixá-
lo com o humor misantropo com o qual esboçou o texto anterior. – Por
causa da lembrança de Philipp Reiser e porque até mesmo o filho do
mestre de capela, seu antigo inimigo, começou a se tornar seu amigo, seu
humor amargo se atenuou tanto que ele transigiu na conclusão de seu
texto e voltou a dar ouvidos aos sentimentos afáveis.
Dessa maneira, ele já redigira ao amigo vários pequenos ensaios em seu
diário, quando então a primavera chegou e, na Páscoa, foram realizadas as
habituais provas públicas escolares, às quais também compareceu.
Mas qual não foi o forte abalo de seu ânimo quando observou os outros
e percebeu que entre todos ele era o que estava mais malvestido? – Sentou-
se ali como se estivesse perdido; sem que ninguém lhe desse atenção –
sem que lhe fosse feita uma única pergunta.
Suportou aquilo antes do almoço – mas, quando retornou à tarde e
outra vez se viu perdido no meio daquela multidão que o rodeava – não
pôde mais suportar – e foi embora antes mesmo de a prova começar.
E então correu diretamente para as portas da cidade – o céu estava
turvo e nublado –, dirigindo-se a um pequeno bosque que não ficava tão
longe de H.
Tão logo se pôs fora do tumulto da cidade e viu as torres de H. atrás de
si, milhares de sensações cambiantes se apoderaram dele. – De repente,
tudo se lhe apresentou sob um ponto de vista diferente. Viu-se fora de
todas as minúsculas circunstâncias que o estreitavam, atormentavam e
pressionavam naquela cidade com as suas quatro torres; de repente,
encontrava-se lançado na natureza grande e aberta, respirando de novo
mais livremente – seu orgulho e sua autoestima se elevaram – fixou o
olhar naquilo que havia ficado para trás, recolhendo-o num quadro em
escala menor. –
Viu os padres com seus sobretudos e colarinhos pretos subirem as
escadas e distribuírem prêmios entre seus colegas de escola; depois viu
como cada um voltava para casa, tudo girando em círculo – e no perímetro
da cidade, que agora estava atrás dele e de onde se distanciava cada vez
mais, viu toda aquela agitação emaranhada. – Tudo ali, tão apinhado, tão
pequeno, lhe parecia se misturar como um amontoado de casas adjacentes
que ainda conseguia ver a distância. – E agora, já no campo livre, ele
pensava no silêncio, pensava que ninguém o notaria, ninguém lhe faria
uma cara fingida – e lá a turba barulhenta, o chiado das carruagens, às
quais ele tinha de dar passagem, os olhares das pessoas que ele evitava –
isso tudo, pintado em escala menor em sua imaginação, despertava nele
um sentimento maravilhoso, como no entardecer o dia se separa da noite,
e uma metade do céu ainda é iluminada pelo pôr do sol, enquanto a outra
já repousa na escuridão.
Sentiu uma força incomum em sua alma para não levar em
consideração nada que o jogasse para baixo – pois o espaço que
compreendia todo aquele emaranhado ao qual suas preocupações e
aflições estavam entrelaçadas era pequeno demais e diante dele estava o
grande mundo.
Mas em seguida o sentimento de melancolia voltou: onde deveria ele
criar raízes fortes nesse grande mundo ermo, já que se via expulso de todo
o convívio? Ali, naquela pequena mancha de terra, para onde convergiam
os destinos humanos, não havia nada, absolutamente nada!
Veio-lhe à lembrança que desde a infância seu destino havia sido não
ter um lugar – quando queria assistir a qualquer coisa e era preciso se
acotovelar, pois os outros eram sempre mais atrevidos que ele e se
punham à sua frente. – Reiser pensava que em algum momento surgiria
uma brecha por onde ele, sem empurrar ninguém de sua frente, pudesse
encontrar um lugar – mas não surgia nenhuma – e voluntariamente se
retirava e, solitário, observava o empurra-empurra a distância.
E, ao estar solitário ali, a ideia de que podia observar tranquilamente, sem
se misturar, lhe deu certa compensação para a privação daquilo que não
pudera ver – solitário, sentiu-se mais nobre e mais extraordinário que
perdido naquele tumulto. – Sublevando-se, seu orgulho venceu o tédio que
experimentara antes – o fato de não conseguir se juntar àquele
aglomerado de gente impelia-o de volta a si mesmo – e o enobrecia,
elevando seus pensamentos e sensações.
Isso também foi o que lhe ocorreu durante o passeio solitário na tarde
nublada e chuvosa em que, pressentindo os olhares sarcásticos dos colegas
de escola, o completo desprezo e o insuportável não ser notado, ele saiu
correndo sozinho rumo à floresta pelas portas da cidade de H.
Esse passeio solitário fez desabrochar de repente outras sensações em
sua alma e contribuiu mais para a verdadeira formação de sua mente do
que todas as aulas a que tinha assistido até então.
Esse passeio solitário, que elevou a autoestima de Reiser e ampliou seu
horizonte, deu-lhe uma ideia clara de sua existência própria, verdadeira e
isolada; existência que, durante algum tempo, não esteve mais vinculada a
nenhuma circunstância de vida, mas existia em si e por si mesma.
Ao lançar um olhar para o todo da vida humana, ele aprendeu antes de
tudo a diferenciar o que é relevante na vida do que são os seus pormenores.
Tudo o que o havia magoado parecia pequeno e insignificante, não
merecendo o esforço do pensamento.
Mas agora cresciam em sua alma outras dúvidas, outras preocupações
– nutridas por ele havia muito tempo – sobre a origem e a finalidade,
sobre o começo e o fim de sua existência, encobertas pela escuridão
impenetrável – e sobre a procedência e o destino de sua peregrinação pela
vida – que se tornara tão difícil para ele sem que soubesse a razão. – E
finalmente qual seria o destino de tudo aquilo?
Isso gerou uma profunda melancolia nele. Enquanto com muito esforço
caminhava na areia amarela através da charneca seca rumo à floresta, o
céu ia ficando mais enevoado, e um chuvisco molhava sua roupa. –
Quando chegou à floresta, cortou um cajado na sarça e continuou sua
marcha. – Chegou então a uma aldeia, e, com a paz silenciosa que reinava
naquelas casinhas de campo, concebeu todo tipo de ideias afáveis, quando
ouviu um casal brigando numa das casas, provavelmente marido e mulher,
e uma criança chorando.
Portanto, onde quer que haja homens, há mau humor,
descontentamento e insatisfação, pensou, e prosseguiu caminhando com
seu cajado. – Passou a desejar o deserto mais solitário – e, quando
finalmente lá também o tédio mortal o incomodasse, a sepultura seria seu
último desejo – e, como não compreendia por que ao longo dos anos de
sua vida teve de ser oprimido, alijado e repelido por todos, duvidou por
fim que sua existência tivesse uma causa racional – sua existência lhe
parecia obra de uma casualidade terrível, cega.
Anoiteceu mais cedo do que habitualmente, porque o céu estava
nublado, e começou a chover mais forte – e quando chegou em casa era já
escuridão completa. Sentou-se embaixo de sua lamparina e escreveu para
Philipp Reiser:

Molhado de chuva e gelado de frio, eu me dirijo a você, e, se não a você, à morte, pois, desde
a tarde de hoje, o fardo da vida, para a qual não vejo nenhuma finalidade, é-me
insuportável. – Sua amizade é o apoio no qual ainda me aferro quando não quero me
afundar irresistivelmente no desejo preponderante de aniquilação de meu ser.
E de repente surgiu outra vez a ideia de ganhar a aprovação de seu amigo
pela expressão dos sentimentos. – Isso era de certo modo o novo esteio em
que ele voltara a prender sua vontade de viver – e, como naquela tarde
todos os seus sentimentos haviam sido tão excepcionalmente fortes e
vivos, não lhe foi difícil chamá-los de volta. – Ele então começou:

A ti, amigo, meu sofrer lamentaria,


A ti, se houvesse palavras, o confessaria:
Sei que sentirias minha aflição –
Não me magoa o coração
Nem o desesperado amor
Nem o insaciável ardor de ouro e esplendor.

Esse começo se referia em parte aos humores apaixonados de Philipp


Reiser, com os quais frequentemente atormentava Anton, ao lhe contar
todos os lentos progressos que fizera para conquistar a namorada – e suas
esperanças e perspectivas, todas circunscritas à conquista das graças dela.
– Algo que não fazia nenhum sentido para Anton Reiser, que jamais tivera
ideia de merecer o amor de uma mulher, porque considerava
completamente impossível que com suas péssimas roupas e o desprezo
generalizado que ele despertava pudesse alguma vez ter êxito nesse
intento.
Pois, assim como julgava que o desprezo que abatia sua alma fazia
parte dela, também julgava que a roupa puída fazia parte de seu corpo;
corpo que lhe parecia tão pouco digno de amor quanto sua cabeça era
digna de apreço. – Em suma, que um dia pudesse ser amado por uma
mulher era o mais disparatado pensamento do mundo. – Pois fez dos
heróis amados pelas mulheres, sobre os quais lera nos romances e nas
peças de teatro, um ideal tão elevado que jamais acreditou estar em
condições de alcançar. – Por isso achava também as histórias de amor
reais extremamente chatas, e mais chatas ainda as histórias de aventuras
amorosas com as quais seu amigo Philipp Reiser o entretinha, às quais
ouvia por muitas horas simplesmente para agradar ao amigo.
Aliás, as histórias do amigo sempre tendiam muito ao romanesco. O
procedimento inteiro, do primeiro aperto de mão até a verdadeira
declaração de amor recíproco, com tudo o que estava entre os dois atos, as
dúvidas, preocupações e lentos progressos, seguia os mesmos passos
prescritos como nos romances – e o que Anton Reiser tinha pulado nos
romances, ou folheara rapidamente, era obrigado a ouvir seu amigo
contar em todos os pormenores.
O pensamento de que aquilo que o magoava não era, por exemplo, o
amor desesperado, mas outras coisas, foi assim a entrada natural para o
poema endereçado a Philipp Reiser.
As dúvidas e preocupações em relação a sua existência angustiada e
sem objetivo eram o que o deprimia, e ele prosseguiu:

O tormento que minha alma sente


No coração remexe mortalmente,
E expulsa qualquer outra danação –
Quem em mim inspirou a loucura
De mirar a abismal fundura
Para construir minha própria aflição?

Fundura que aos olhares


Só devolve noites e pavores,
E distribui melancolia. –
Esta o trono de bronze ocupa,
Faz em minha alma moradia
E seu séquito recruta. –

O séquito chega; e, com ele, as preocupações, o pesar:

O desespero, portador de olhar mortal


E aljavas, desfere
Em mim a flecha fatal. –

Agora a melodia dos sentimentos que se sucedem mergulha numa terna


autocompaixão.

Devo, sim, de qualquer prazer fugir,


Pois para mim a alegria da primavera não vai florir etc.

Com isso, o compasso das ideias se ergueu rumo a considerações gerais


sobre a vida, que acabaram por reconduzir finalmente às terríveis dúvidas
a partir das quais a melodia havia começado:

Seguem pelo árido prado meus passos,


Qualquer alegria ali zomba e foge de mim.
Asco é o que trago de meus rastros.

Caminho – mas para onde?


O sábio, exímio conhecedor de mim,
Indaga-me: mas vens de qual fonte? –
Minha vida não escapa
Do instante que a apaga.
E receosa avança para seu fim.
Mas devo a quem minha vida?
À desordem que a fez aflorar?
Quem impôs estreitos confins em minha partida?
Quando a mão direita do destino indicar
Inabalável o portão da morte,
Será a noite pavorosa minha sorte? – –

Era como se o poema emanasse de sua alma. – Até a rima e a métrica não
lhe ofereciam quase dificuldade, e ele o escreveu em menos de uma hora.
– Depois, logo começou a fazer poesia só por fazer, mas isso nunca lhe
rendeu bons resultados.
Mas a primavera e o verão do ano de 1775 transcorreram em plena
poesia. – As agradáveis noites shakespearianas que passara no inverno
com Philipp Reiser foram substituídas por passeios matinais ainda mais
agradáveis.
Não tão longe de H., onde o rio forma uma cachoeira artificial, há um
pequeno bosque, como dificilmente se pode encontrar mais agradável e
mais convidativo em outro lugar.
Então passaram a caminhar até lá antes de o sol nascer – os dois
peregrinos levavam consigo o café da manhã e, quando chegavam ao
bosque, roubavam uma porção de musgos dos troncos das árvores,
preparavam um assento macio onde se acomodavam e, quando já haviam
acabado de comer, liam em voz alta um para o outro. – Para tanto,
selecionavam especialmente poemas de Kleist, que eram quase decorados
em tais ocasiões.
Quando voltavam no outro dia, procuravam primeiramente em todo o
bosque pelo lugar em que estiveram no dia anterior, e se sentiam ali, na
imensa e livre natureza, como em casa, o que lhes dava uma sensação
muito especial de exaltação no coração. – Tudo o que os rodeava nesse
imenso círculo pertencia aos olhos, aos ouvidos e aos sentimentos deles –
o verde viçoso das árvores, o canto dos pássaros e a fresca fragrância da
manhã.
Ao voltarem para casa, Philipp Reiser ia para sua oficina e fazia pianos,
enquanto Anton Reiser frequentava a escola, onde agora a maioria de seus
colegas pertencia a uma turma diferente, de modo que ele também podia
frequentá-la com o coração mais aliviado.
Em muitos momentos, Anton Reiser também procurava sua amada
solidão, embora agora tivesse um amigo – e, quando a tarde estava bonita
buscava um cantinho à margem do rio, no campo perto de H., por onde
um regato cristalino corria sobre os seixos, fluindo por fim para o rio que
passava ali. – Como sempre visitava aquele cantinho, o local havia se
tornado para ele uma espécie de pátria na imensa natureza que o rodeava;
e ele também se sentia em casa quando se sentava ali e não estava
limitado por paredes ou muros, mas desfrutava livre e sem freios tudo à
sua volta. – Jamais frequentou aquele cantinho sem levar Horácio ou
Virgílio no bolso. – Lá Reiser lia sobre a fonte de Bandúsia e sobre como
fluía a torrente

Obliquo laborat trepidare rivo.[21]

De lá via o sol se pôr e contemplava as sombras das árvores se expandindo.


– À beira daquele regato, devaneou muitas horas felizes de sua vida. – E lá
a musa também o visitou algumas vezes, ou melhor, era ele quem a
procurava. – Pois agora ele se esforçava para compor um grande poema,
mas, como dessa vez só queria fazer poesia por fazer, o resultado não ficou
tão bom quanto antes; o desejo de fazer um poema, dessa vez, estava mais
presente nele do que o tema que queria celebrar, e geralmente quando é
assim não costuma sair nada de bom.
As ideias agora podiam ser afetadas ou triviais – via-se que o que ele
escrevia poderia se tornar um poema. – No entanto, mesmo naqueles
versos ruins cintilava por toda parte seu humor melancólico – cada
imagem risonha e agradável era de algum modo coberta de luto. – As
folhas estavam tingidas de verde fresco apenas para novamente murcharem.
– O céu estava claro apenas para novamente ficar nublado. –
Philipp Reiser não aprovou o poema; mas Anton Reiser contara com
sua aprovação a cada verso que compusera arduamente. – Seu amigo, no
entanto, era um juiz rigoroso e imparcial, que não deixava facilmente
impune uma ideia fraca, uma rima afetada ou uma palavra expletiva. –
Zombou especialmente de uma passagem que dizia:

Assim, prazer e dor variam ao longo da vida,


E a vida, numa tumba silenciosa e fria, finda –

Philipp Reiser não conseguiu conter a gozação desse trecho, que


declamava num tom cômico. Chamava o amigo de seu querido Hans Sachs –
e lhe fez outros elogios desse tipo, nem um pouco animadores. – No
entanto, fez com que Anton não perdesse totalmente o ânimo – salvando
algumas passagens toleráveis do poema, que não tinha reprovado por
completo.
Graças a uma comunicação mútua e uma crítica frutífera, a ligação
entre os dois amigos se tornou cada vez mais forte, e a aspiração de Anton
Reiser – ser capaz de escrever verso ou prosa – encaminhava-se
continuamente para merecer a aprovação de seu amigo.
Àquela época aconteceu um incidente que parecia não honrar tanto o
coração de Anton Reiser, embora estivesse fundado na natureza da alma
humana.
O filho do pastor M., que começara então a estudar na universidade e
de lá retornara tuberculoso, foi considerado, após terem recorrido em vão
a todos os meios, caso perdido pelos médicos, que profetizaram sua morte
até a primavera; Reiser, ao saber disso, logo pensou em fazer sobre esse
incidente um poema que lhe traria fama e aprovação, e quem sabe
também o favor do pastor M. Em suma, ele já havia começado o poema
oito dias antes da morte do jovem M.
Em vez de fazer o poema porque tinha ficado aflito com o ocorrido,
procurou antes imaginar o temperamento do aflito para poder fazer um
poema sobre o incidente. – A arte da poesia dessa vez o converteu
realmente num hipócrita.
Nos últimos anos o jovem M. não se preocupara muito com Reiser nem
o ajudara contra as zombarias e insultos de seus colegas de escola –
algumas vezes chegou até a participar deles. – Por isso, para Reiser, era
muito natural que sua poesia sobre o jovem M. fosse mais importante que
o próprio jovem, embora não fosse aceitável que mentisse sobre sensações
que não havia tido – quanto a isso ele também não estava muito de acordo
consigo mesmo, mas sua consciência frequentemente o censurava,
censuras que ele atenuava procurando se persuadir de que de fato sentia
certa tristeza com a morte precoce do jovem M., de quem haviam
extirpado todas as esperanças e perspectivas sobre o futuro de sua vida,
no vigor dos seus anos.
Como no fundo esse poema era resultado da hipocrisia, além de não ter
ficado bom, também não conseguiu a aprovação de seu amigo, que
encontrou algo para censurar quase a cada verso – e o pastor M., a quem
mandou entregar o poema, também não teve nenhuma consideração, não
permitindo que ele atingisse seu objetivo.
Mas em seguida aconteceu algo que lhe deu ensejo de se transportar ao
encantamento poético com menos afetação. No começo do verão, um
jovem de 19 anos, dono de considerável fortuna e bom amigo de Philipp
Reiser, afogou-se ao banhar-se no rio.
Nessa ocasião, Philipp Reiser incumbiu seu amigo de compor um
poema sobre o incidente, que fosse o melhor que ele pudesse fazer –
queria o poema impresso, e mesmo que não o fosse, se bem realizado,
seria sempre valorizado como um produto do espírito.
A incumbência de seu amigo mexeu com toda a ambição de Anton
Reiser; ele procurou pôr diante dos olhos o incidente da maneira mais viva
possível, e, depois de ter sopesado um dia e meio expressão por expressão,
usando todas as forças de sua alma para merecer a aprovação do amigo,
conseguiu enfim as seguintes estrofes:

Se, oprimido pelo peso dos plácidos anos, um piedoso ancião


Empalidece e expira, nossa tristeza é desalento.
Se uma morte instantânea deita um rapaz no caixão,
Cuja vida mal florescera, nossa tristeza é tormento.

Da noite parda surge a mais linda manhã de verão.


O peito do rapaz, ao alvorecer, respira tranquilo.
A aurora o desperta para um dia cheio de animação,
Pois um sono sereno afugenta todos os maus espíritos.

O rapaz, forte e confiante, assiste a


Este dia e milhares de outros de alegria.
Os maus agouros que a morte em dizer insiste
Não asfixiam seu peito, que só alegria lhe cria.
Num céu límpido brilha o sol em seu ardor,
E acena afável o campo ao rapaz –
Lá a natureza festiva, séria em seu esplendor,
Irradia elevada e calma alegria que lhe apraz.

Mas lá, através dos raios dourados, que sombra treme?


E treme cada vez mais perto? Afasta, ó rapaz,
Os pés audazes – tarde demais! – Que lamentação!
Ah, Deus! – o rapaz encontra sua sina mordaz.

A morte em ondas silenciosas está à sua espreita


E soberba sussurra sobre sua presa.
Seus amigos a veem, os corações estreitam,
Eles sentem a perda e alto lamentam a surpresa.

Oh, que morte prazerosa, onde uma lágrima é derramada,


Onde um olho chora brando, ela abre um sorriso.
Ó bem-aventurado, quando um dia minha morte for executada,
Que a amizade enternecida à minha volta chore de improviso!

A última estrofe se referia ao fato de que uma linda e jovem mulher,


parente próxima do afogado e cujo irmão também havia se banhado no rio
com ele, saiu correndo da cidade ao receber a notícia do triste acidente, e,
mesmo na presença da multidão que estava à beira do rio, não conteve as
lágrimas; ao percebê-las, Anton Reiser ficou tão comovido que por pouco
não sentiu inveja do morto por quem se vertiam aquelas lágrimas.
Na verdade, Reiser também tivera a intenção de tomar banho no rio,
mas, quando lá chegou, o jovem havia se afogado e o amigo ainda nem
tinha se vestido novamente; ele viu se reunirem, aos poucos, espectadores
indiferentes e desinteressados pelo ocorrido, viu o corpo do jovem, que
conhecera muito bem através de Philipp Reiser, ser removido da água e
viu todos os meios usados em vão para trazê-lo de volta à vida; isso tudo
lhe deu uma impressão tão viva que o poema que compôs sobre o
incidente alcançou certa verdade em sua expressão, diferenciando-se,
portanto, notavelmente do poema sobre a morte do jovem M.
Afora alguns trechos duros, o poema reencontrava agora a aprovação
de Philipp Reiser, a qual fora tão estimulante para Anton Reiser que este,
mesmo sem nenhum motivo, procurou merecer a aprovação de seu amigo
com seus textos em prosa e com seus versos.
Mas os textos e os poemas sem um motivo verdadeiro jamais saíam
bons – durante 14 dias ele se dedicou a um assunto que tinha a intenção de
cantar; era uma comparação entre o homem mundano, cuja esperança
acaba nesta vida, e o cristão, que tem uma perspectiva feliz de futuro
além-túmulo. – Essa ideia era um resquício de leitura dos Pensamentos
noturnos, de Young, e, como o tema sobre o qual queria fazer os versos lhe
era indiferente, já que não tinha motivo especial para compô-los a não ser
sua inclinação e aspiração à aprovação de seu amigo, se lhe impôs antes de
tudo o resultado de sua leitura dos Pensamentos noturnos, de Young, em que
introduziu uma razoável e significativa mudança. Ao permitir que seu
homem cristão desfrutasse todas as alegrias lícitas do homem mundano, e
oferecendo-lhe, no entanto, a vantagem de uma alegre perspectiva na
eternidade, fez com que, em relação ao homem mundano, ele saísse
vitorioso em todos os aspectos. – Dessa ideia correta, mas demasiado
afetada e artificial, nasceu este segundo poema, que não obteve a
aprovação de Philipp Reiser e com o qual Anton, apesar do esforço que lhe
custara, nunca ficou satisfeito:

O mundano e o cristão

Certa vez um mundano e um cristão percorriam


Uma vereda num campo florido:
Onde os riachos murmuram alegria,
Cada um ia de doces alegrias vívido.

Com esperteza, o mundano sua vida desfrutava


E a tomava por sua eternidade –
Nunca seu espírito se elevava
Além de si, do mundo e da temporalidade.

Com esperteza, aproveitou cada alegria


Que de graça a natureza lhe dava:
Vestido de flor, o prado lhe sorria,
Logo cedo a aurora lhe brilhava –
A essas nobres alegrias terrenas
O cristão seu peito não fechou.
Não nascido para as desventuras,
O prazer mundano também desfrutou.

Com uma pequena diferença:


Onde a alegria do cristão começava,
O mundano de sua breve alegria
O terrível fim divisava.

Aquele foi, portanto, um verão verdadeiramente poético para Anton


Reiser. – Suas leituras, juntamente com a impressão que a bela natureza
lhe dava naquela época, tiveram um efeito magnífico em sua alma; por
onde passava, tudo parecia estar sob uma luz romântica e encantadora.
Mas, apesar de suas relações estreitas com Philipp Reiser, ele adorava
sobretudo os passeios solitários. – Agora, diante das novas portas da
cidade de H., a caminhada pelo campo às margens do rio, rumo à
cachoeira, era um convite especial para suas ideias românticas.
O silêncio solene que à hora do almoço imperava no campo; os altos
carvalhos, isolados e espalhados aqui e ali, que sob os raios de sol
lançavam solitários suas sombras sobre o verde do campo – um arbusto
pequeno, atrás do qual, escondido, podia-se escutar o murmúrio da
cachoeira; à margem do outro lado do rio, a floresta agradável na qual
passeara com Reiser de manhã bem cedo – ao longe, rebanhos pastando; a
cidade com suas quatro torres e o baluarte com árvores plantadas a rodeá-
lo feito uma imagem numa câmara escura – esse conjunto sempre lhe
produzia aquela sensação maravilhosa que temos ao nos darmos conta de
que justo nesse momento estamos nesse lugar e em nenhum outro, e de
que esse é nosso mundo real, embora tantas vezes o pensemos
simplesmente como algo ideal.
Ocorre que a leitura de romances nos dá ideias tanto mais
maravilhosas das regiões e dos lugares quanto mais estão longe.
Imaginemos todos os objetos grandes e pequenos que nesse momento
estão à nossa volta, representados, por exemplo, na mente de um morador
de Pequim – tudo isso deve lhe parecer tão estranho, tão maravilhoso. –
Graças a essa ideia, o mundo real à nossa volta recebe um brilho incomum,
que o mostra diante de nós de modo tão estranho e maravilhoso, como se
tivéssemos viajado naquele instante milhares de quilômetros a fim de ter
essa imagem. – O sentimento de expansão e estreitamento de nosso ser se
concentra num só momento, e, do sentimento misto assim produzido,
surge também uma espécie singular de melancolia, que se apodera de
nosso ser nesses instantes.
Naquela época, Reiser começou a meditar sobre aqueles fenômenos
que lhe aconteciam, investigando como os objetos podiam produzir nele
aquelas impressões – mas as impressões eram demasiado vivas para que
pudesse refletir friamente sobre elas – sua capacidade de raciocinar ainda
não estava treinada nem era forte o bastante para ordenar
apropriadamente as crescentes imagens de sua fantasia. – A isso se
acresciam também certa inércia e a entrega ao conforto do prazer, que
igualmente detinham suas reflexões.
Apesar disso, Reiser tivera desde o verão anterior a intenção de
escrever um ensaio sobre o amor pelo romanesco, e submetê-lo ao
Magazine de H. – Reuniu sem parar ideias para isso, e não lhe faltou
oportunidade de reuni-las, pois sua própria experiência as oferecia
diariamente. – Mas não chegou a completar o estudo.
Naquela época ele ainda não compreendia por que as altas árvores
isoladas e espalhadas pelo campo com suas sombras ao sol do meio-dia lhe
provocavam uma impressão tão maravilhosa – não se dava conta de que
era a própria posição solitária das árvores, em intervalos imensos e
irregulares, que conferia à região a aparência majestosa e solene que
sempre tocava seu coração. – Quando passeava por entre elas, as árvores
solitárias tornavam sua própria solidão, por assim dizer, sagrada e
honrada – sempre que andava por entre as árvores, seus pensamentos se
direcionavam para objetos sublimes, os passos ficavam mais lentos, a
cabeça, inclinada, e todo o seu ser, mais grave e solene – depois se
embrenhava pelas pequenas moitas da vizinhança e sentava-se à sombra
de um arbusto, onde, ao som do murmúrio da cachoeira, embalava-se em
agradáveis fantasias ou então lia.
Assim, quase não havia dia em que sua fantasia não fosse alimentada
por novas imagens, tanto do mundo real como do mundo ideal.
Justamente nesse ano foi publicado Os sofrimentos do jovem Werther,
obra que interferiu naquela época em todas as suas ideias e sentimentos
sobre a solidão, o desfrute da natureza, o modo de vida patriarcal, a vida
como um sonho etc.
No início do verão, ele ganhou o livro de Philipp Reiser e, desde então,
não o tirou mais do bolso, sua leitura se tornando imprescindível. Todas as
sensações que tivera em seu passeio solitário na tarde nublada e que
deram origem ao poema para Philipp Reiser se tornaram então vivas
novamente em sua alma. – Reencontrou sua ideia do próximo e do distante,
que quis inserir no seu estudo sobre o amor pelo romanesco – e encontrou
também a continuação para suas considerações sobre a vida e a existência.
– “Quem pode dizer que algo é se tudo passa voando como um raio?”[22] – Era
exatamente esse o pensamento que havia muito tempo lhe tinha
apresentado sua própria existência como ilusão, sonho e fantasmagoria. –
Mas, no que concernia aos verdadeiros sofrimentos de Werther, ele
não podia compreendê-los. – A compaixão pelos sofrimentos de amor lhe
custou algum esforço – para se comover, tinha de se violentar a fim de se
imaginar nessa situação – um homem que amou e foi amado era para ele
um ser estranho e completamente diferente de si, porque jamais lhe foi
possível se imaginar como objeto do amor de uma mulher. – Quando
Werther falava de seu amor, para Reiser não era tão diferente das muitas
vezes que Philipp Reiser conversava com ele horas a fio sobre os
progressos graduais na conquista das graças de sua namorada.
O que mais atraía o coração de Reiser eram as considerações gerais
sobre a vida e a existência, sobre as ilusões das aspirações humanas, sobre
a inútil agitação na terra, as descrições genuínas de cenas singulares da
natureza que insuflavam vida ao papel e os pensamentos sobre o destino e
a finalidade do ser humano.
A passagem em que Werther compara a vida a um teatro de
marionetes, no qual os bonecos são movidos por fios, manejados por ele
próprio, ou melhor, sendo manejado, até se sobressaltar ao agarrar as
mãos de madeira de seu vizinho – despertou em Reiser a lembrança de um
sentimento parecido que tivera muitas vezes em que dava a mão a alguém.
Pelo hábito diário, nos esquecemos enfim de que temos um corpo, sujeito
igualmente a todas as leis de destruição do mundo material, como um
pedaço de madeira que serramos ou cortamos, e que se movimenta
segundo as mesmas leis de qualquer outra máquina física construída pelo
homem. – A destrutibilidade e a materialidade de nossos corpos se tornam
vivas para nós apenas em certas ocasiões – e levamos um susto conosco
quando de repente sentimos que acreditávamos ser alguma coisa que
realmente não somos, e somos, em vez disso, algo que tememos ser.
Quando damos a mão a alguém, e simplesmente vemos e tocamos o corpo,
quando não temos uma ideia de seus pensamentos, então a ideia de
corporeidade se torna mais viva do que pela observação de nosso próprio
corpo, que não podemos separar dos pensamentos por meio do qual nós o
representamos, e assim o esquecemos com esses pensamentos.
Reiser, no entanto, não sentia nada de modo mais vivo do que Werther
narrando que sua existência fria e sem alegria ao lado de Carlota o acometia com
frieza atroz. – Isso era exatamente o que Reiser sentiu quando certa vez na
rua desejou fugir de si mesmo e não conseguiu, e de repente sentiu todo o
peso de sua existência, com o qual todos os dias é preciso se levantar e
deitar. – Naquela época, a ideia se tornou insuportável para ele e o levou a
passos rápidos até o rio onde quis atirar o fardo insuportável dessa
existência miserável – e onde também a sua hora ainda não havia chegado[23].
Em suma, Reiser acreditou se reencontrar em Werther, com todos os
seus pensamentos e sentimentos, menos na questão do amor. – “Deixa que
este livrinho seja teu amigo se, por fatalidade ou por culpa própria, tu não
puderes encontrar outro mais próximo que ele.”[24] Reiser pensava nessas
palavras todas as vezes que tirava o livro do bolso – achava que elas
cabiam perfeitamente na sua situação. – Pois, em seu caso, acreditava ser
em parte o destino, em parte ele mesmo o culpado por ser tão abandonado
no mundo; e não podia conversar com o amigo da mesma maneira que
conversava com o livro.
Quando o tempo estava bom, ele ia quase todos os dias passear no
campo com seu Werther no bolso, às margens do rio, onde ficavam as
árvores solitárias, em direção à pequena moita; ali ele se sentia em casa,
sentando-se embaixo de um arbusto verde, que formava uma espécie de
caramanchão sobre sua cabeça – como sempre voltava a visitar o mesmo
lugar, ele se afeiçoou ao local quase como ao cantinho do riacho – e assim,
com tempo bom, vivia mais ao ar livre do que em casa, pois muitas vezes
passava quase o dia inteiro lendo o Werther embaixo do arbusto verde, e
depois Virgílio ou Horácio às margens do riacho. –
Mas as excessivas e repetidas leituras do Werther retardaram
significativamente tanto sua capacidade de expressão como a de
pensamento, já que, pela repetição frequente, as expressões e
pensamentos do escritor se tornaram tão familiares para ele que chegava
a considerá-los seus, e, mesmo vários anos depois, nos estudos que tentava
escrever, ainda tinha de lutar contra as reminiscências do Werther, o que
ocorrera também a muitos jovens escritores que estavam se formando
naquele tempo. – A leitura do Werther, assim como a de Shakespeare, fazia
com que se sentisse superior a suas circunstâncias de vida; ao se ver como
um ser no qual céu e terra se refletiam como num espelho, orgulhoso de
sua humanidade, o sentimento potencializado de sua existência isolada
não lhe permitia mais ser uma criatura insignificante e descartada como
parecia ser aos olhos dos outros. Não era de surpreender que toda a sua
alma se afeiçoasse a uma leitura que, a cada vez que ele a saboreava, o
restituía a si mesmo!
Naquele momento surgia também a nova geração de poetas – Bürger,
Hölty, Voss, os Stollberg etc. – e seus poemas eram impressos
primeiramente no Almanaque das Musas, que apenas começava. O
almanaque daquele ano continha sobretudo os excelentes poemas de
Bürger, Hölty, Voss etc.
Reiser decorou as duas baladas, a “Leonore”, de Bürger, e “Adelstan”,
de Hölty, assim que as leu – e ambas, que sabia de cor, depois lhe foram de
grande valor em suas andanças. Já naquela época, ele reunia com mais
frequência, ao entardecer, um pequeno círculo à sua volta, na casa de seu
anfitrião ou na de seu primo, o peruqueiro, e declamava “Leonore” ou
“Adelstan e Röschen” – e dessa maneira dividia com os autores o prazer de
desfrutar o aplauso recebido por suas obras, pois estava tão bem-disposto
que sempre sentia os aplausos na alma deles e desejava que estivessem
presentes naquele círculo. Mas sua veneração pelos autores dessas obras,
como Os sofrimentos do jovem Werther e outros poemas do Almanaque das
Musas, começou a ficar exagerada – ele endeusava esses homens em seus
pensamentos e teria considerado uma grande felicidade poder vê-los ao
menos uma vez – Hölty vivia à época em H. e tinha um irmão colega de
escola de Reiser, que poderia ter lhe apresentado o poeta. Mas naquela
época o juízo que Reiser fazia de si era tão ruim que não ousou sequer uma
vez manifestar esse desejo ao irmão de Hölty, privando-se, com certa
amarga teimosia consigo, da felicidade que estava tão próxima e era tão
desejada. – Entretanto, ele buscava a cada oportunidade falar com o irmão
de Hölty e qualquer coisa insignificante que ouvia dele sobre o poeta lhe
era importante – e quantas vezes Reiser não invejou esse jovem, irmão
daquele que ele quase contava entre os seres de natureza superior; jovem
que podia ter relações familiares com ele, falar tantas vezes quantas
quisesse e tratá-lo por você.
Posteriormente, essa veneração exagerada por poetas e escritores foi
ficando ainda maior; ele não conseguia imaginar sorte maior do que a de
ter algum dia acesso àquele círculo – na verdade, não ousava se iludir com
aquela alegria, a não ser em sonho. –
Seus passeios se tornaram cada vez mais interessantes; saía para
caminhar com as ideias que havia recolhido das leituras e voltava com
novas, tiradas da contemplação da natureza. – Fazia também algumas
tentativas na arte da poesia, que, no entanto, giravam invariavelmente em
torno de conceitos universais e tendiam à especulação, que aliás sempre
foi sua ocupação favorita. –
Certa vez, enquanto caminhava pelo campo, onde ficavam espalhadas
as árvores altas, suas ideias subiram por uma espécie de espiral até o
conceito de infinito. – Sua especulação se transformou assim num tipo de
encantamento poético, ao qual se juntou o desejo de conseguir a aprovação
de seu amigo – imaginou um ideal de sábio, um homem que acumula o
máximo de ideias que um simples mortal é capaz de ter e, não obstante,
sempre sente uma lacuna dentro de si, que somente pode ser preenchida
pela ideia do infinito. – E assim, com algum constrangimento por causa da
expressão, ele mais uma vez conseguiu fazer o seguinte poema:

A alma do sábio

A alma do sábio voou,


Acima das nuvens subiu.
Ousada, o ímpeto interno ela acompanhou,
Que com força para o céu a compeliu. –

Deseja com ardor preencher o vazio,


Que com nojo em si observa.
Busca, para silenciar o anseio,
A verdade que sempre dela se esquiva.

Acumula pensamentos e pensamentos,


Contempla as estrelas, atrevida.
Alcança sem limites o firmamento,
Mas o pensamento a deixa vazia. –

Ousando pensar em si mesma,


Ela, que tantas vezes foge de si;
Ousando mergulhar ali com firmeza,
Constata que não se basta a si. –

Eleva-se então com asas de águia


A alma do sábio além de si –
A ti, a quem toda a criação enaltecia,
E pensou, Deus, Jeová, em ti.

E ela sente então o amplo vazio


Preenchido em si com bem-aventurança,
E nada num mar de júbilo,
Porque Deus é a sua bonança. –

Assim como havia introduzido à força o conceito de Deus no poema,


procurou também trazer o conceito de mundo para o verso. – Desse modo,
toda a sua arte poética desembocava em conceitos universais. – Sua
inclinação nunca o levava a descrever o detalhe da natureza dentro e fora
do homem. – Sua imaginação trabalhava agora ininterruptamente para
vestir em imagens poéticas os grandes conceitos de mundo, Deus, vida,
existência etc., que ele buscara abarcar com seu entendimento – e essas
imagens poéticas eram sempre o grandioso na natureza, como nuvens, mar,
sol, astros etc.
O poema sobre o mundo era muito mais especulação que poema e
resultou na coisa mais artificial que se possa imaginar. Começava assim:

O homem provém do pó
E com ele seu mundo –
O homem se torna presa do túmulo
E com ele seu mundo. –

Philipp Reiser censurou o poema todo, exceto a última estrofe, que ele
achou suportável:

Um acumula seu mundo com tesouros,


Outro com os louros;
E cada um encontra seu deleite
No jogo que inventou. –

A fantasia de Reiser estava agora em pé de guerra com seu pensamento;


era como se, a cada oportunidade, ela quisesse intervir no território do
pensamento, envolvendo em imagens todos os conceitos mais abstratos. –
Para Reiser, muitas vezes isso era uma situação angustiante e dolorosa – e
foi numa dessas situações que ele produziu o poema sobre o mundo, que
não era especulação nem poesia, mas um meio-termo malsucedido entre
ambos.
Mesmo quando sobreveio uma temporada de chuva, Reiser não se
afastou de seu modo de vida poético e solitário.
Fechando-se em seu pequeno quarto, consertou, sozinho e o melhor
que pôde, o piano caindo aos pedaços e o afinou com muito esforço. –
Agora passava o dia todo sentado ao piano e, como sabia as notas,
aprendeu a cantar e a tocar sozinho quase todas as árias da Caça, da Morte
de Abel etc. – nesse meio-tempo, leu o Tom Jones, de Fielding, de cabo a
rabo, e várias vezes os Poemas de Haller, passando algumas semanas nessa
solidão, quase tão satisfeito quanto passara na estalagem anterior,
estudando filosofia no sótão. Os Poemas de Haller, ele os sabia quase de cor.
Certa tarde, Philipp Reiser foi visitá-lo e lhe encomendou a letra para
uma ária coral que gostaria de musicar. – Para Anton Reiser, a tarefa foi
tão honrosa e estimulante que assim que ficou sozinho sentou-se para
compor o poema, e, intercalando sempre um acorde no piano, em menos
de uma hora havia feito os seguintes versos:

O Senhor é Deus – ó Natureza,


Ajoelha-te e murmura poderosa canção
Ao Eterno que te criou, Natureza!
Murmurai louvor a vosso Deus, ventos,
Anunciai-o, terrenos silenciosos,
Flores, perfumai o campo!
------
Trovejai, nuvens, em Sua honra,
Não emudeceis em Seu louvor
Ó grutas e penhascos,
E ecoai cânticos de louvor
Em honra de vosso grande Criador!

E tudo o que vive e pensa sobre a Terra


Deve ser grato,
E louvar a Deus com alegria –
Assim, ao Criador de todos os seres
Será consagrada, por aquilo que Ele elegeu para existir,
Uma canção que se ouvirá para sempre.
Philipp Reiser musicou esses versos, que foram realmente cantados no
coral, sem que ninguém soubesse quem era o compositor. – A nova peça
foi muito aplaudida e todos ficaram especialmente satisfeitos com o texto.
– A peça também deixou Anton Reiser muito lisonjeado quando ouviu suas
palavras serem cantadas pelos colegas de escola, que tanto o desprezaram,
demonstrando aprovação por elas – mas não disse a nenhum deles que os
versos eram seus – preferiu antes desfrutar consigo mesmo o triunfo que
os inesperados aplausos lhe concederam.
Mas eram suas ideias que agora ocupavam a atenção dos que a
cantavam e a ouviam nas tantas e repetidas vezes que a nova peça foi
executada. – Se há algo capaz de alimentar a vaidade de um homem que
compõe versos, é ver suas ideias e expressões consideradas dignas de
serem musicadas. – Cada palavra parece assim alcançar um alto valor – e o
sentimento que tomou conta de Anton Reiser quando ouviu suas árias
cantadas pode ter sido despertado no íntimo da alma de todo aquele que
também ouviu as próprias peças cantadas a plenos pulmões diante de um
número considerável de espectadores; há também exemplos vivos dessas
incríveis explosões de vaidade ocasionadas por esse tipo de triunfo.
O triunfo de Anton Reiser não durou muito – pois, logo que souberam
quem era o autor dos versos, começaram as críticas, e alguns alunos do
coro, que haviam lido os poemas de Kleist, afirmaram categoricamente
que os versos haviam sido retirados desse poeta. – É claro que neles
poderia haver reminiscências, mas a última ideia, a daquilo que Deus elegeu,
centrava-se novamente na especulação metafísica de Reiser: em que
medida poderia ser atribuída uma existência própria somente a criaturas
vivas e pensantes. – Philipp Reiser também estava bastante satisfeito com
o poema, exceto com a imagem da natureza que deveria se ajoelhar diante
de Deus como uma dama – que ele censurou por ser muito ousada.
Enquanto Philipp Reiser continuava fazendo pianos para viver, Anton
Reiser se ocupava de fazer versos que o amigo tinha de criticar – ele
mesmo jamais havia tentado compor poemas e portanto não sentia ciúmes
de Anton – ao contrário, muitas vezes era ele quem lhe dava o tema para
escrever. – Certa vez Philipp Reiser lhe pediu que cantasse seu próprio
estado, suas paixões amorosas, sua ascensão e queda. – Sem que, naquela
época, fossem endereçados à Lua tantos suspiros e lamentos amorosos,
como depois em Siegwart e em inumeráveis canções, Reiser entoou seu
canto:

Do céu, o que vês, Lua silente,


Em mim com tanta compaixão?
Bem conheces talvez a aflição
Da qual só posso me queixar silenciosamente? etc.

E depois, na estrofe seguinte, em relação ao estado de Reiser:

Tantas vezes quero me erguer


Mas acabo caindo fundo;
E estremecido sinto meu
Triste destino. –

Mesmo com tudo isso acontecendo, naquela época, Anton Reiser não
perdia suas aulas na escola, na qual o novo diretor, que no fundo era um
homem de gosto e de conhecimento, embora um pouco pedante, instituiu
exercícios de declamação que despertariam toda a sua ambição.
Mas quem quisesse se apresentar publicamente para declamar tinha ao
menos de ter um traje adequado, o que faltava a Reiser, que, além de sua
roupa de tecido cinza, própria de serviçais, possuía apenas um velho
sobretudo, e não ousou se apresentar com nenhum dos dois. – Suas
péssimas roupas eram de novo, portanto, a pedra em seu caminho e o que
abatia seu ânimo.
Ainda esse obstáculo foi finalmente removido quando o príncipe lhe
ofereceu de novo quantia suficiente para que pudesse arrumar um traje
adequado.
E agora todos os seus pensamentos e esforços se dirigiam para compor
um poema que considerasse digno de ser declamado em público.
Não era nada comum que alguém quisesse declamar um poema
composto por si mesmo, mas, sim, que copiasse um de algum lugar e,
enquanto o declamava, segurasse o papel diante de si ou o entregasse para
o diretor acompanhar.
Mas Reiser pusera na cabeça que seria o autor do poema que
declamaria pela primeira vez – ele só precisava de um tema digno;
desejava sobretudo trabalhar num tema que fosse possível declamar.
E quando, numa linda noite de luar claro, saiu repleto dessas ideias
para passear em torno do baluarte, ele se recordou de um poema contra os
ateus, que havia alguns anos quase decorara graças ao estilo declamatório
que nele dominava, cujas ideias lhe pareciam extremamente sem vida –
mas naquele momento o assunto se tornou muito vivo para ele – de modo
que deu ainda mais uma volta em torno do baluarte e, durante esse tempo,
concluiu em sua mente o poema “O ateu”.
Seus pensamentos tomaram forma própria, bem diferente dos
pensamentos corriqueiros do poema que sabia de cor. – Imaginou o ateu
como escravo de ventanias, de trovões, de elementos enfurecidos, de
doença e de decomposição, em suma, como escravo de todos os seres
irracionais e inanimados, que são mais fortes que ele e se tornam seus
senhores quando o ateu não quer reverenciar o espírito pleno de graça
eterna. – Quando Reiser estava tentando compor e declamar um poema
sobre Deus, nasceu de maneira tão violenta em sua alma a necessidade de
crer em um que sentiu uma espécie de justa animosidade contra todos que
queriam roubar dele essa consolação, e conseguiu se manter no ardor até
que o poema ficasse pronto, o qual começava e terminava com a alegre
convicção da existência de uma causa racional de todas as coisas que são e
acontecem, e, apesar de toda a irregularidade e frequentes expressões
forçadas, compôs um todo de sensações que Reiser até então ainda não
conseguira produzir. – Portanto, não será supérfluo aqui dar notícia desse
poema, embora não mereça ser conservado:

O ateu

Há um Deus – que alegria! Devo meu destino


Ao Pai de meus dias – que sopesa minhas dores,
Minhas alegrias – e sabe de cada castigo
Que aqui devo sofrer – portanto, meu coração, não chores!

Quando a linda manhã da noite escura se separar,


Entoa tua canção alegre ao Eterno que a criou!
Quando seu trovão nas alturas retumbar,
Entoa tua canção alegre ao Eterno que o criou!

Ó minha alma, alegra-te dia e noite com teu Deus!


Louva-O – pois pensar em Deus é beatitude
Mas viver e pensar sem Ele é um inferno,
E, cada instante, uma fonte de suplício eterno.

Tu que duvidas se um Deus mora no céu,


Ó louco, apaga do peito rapidamente a suspeita –
Que só te recompensa com trevas e agonias, –
Pensa em Deus e sente a alegria divina!

Tu não podes, tu não queres reconhecer o bom Deus,


Esse espírito repleto de graça eterna que é teu Senhor?
Tudo bem! – Reconhece então que ardem em ti tormentos,
Pois o senhor de tua alma é a fúria dos elementos –

Se uma tempestade negra no céu te ameaça –


Lá o mar vazio rumoreja – aqui uma cova aberta te chama –
Então, sacrílego, adora! – pois estes são teus deuses,
Que te deram, ó ser racional, a tola loucura!

Se a doença te ameaça com seus demônios –


Se rói teu coração – Se a morte, medonha imagem da cova,
Sorri com sarcasmo de ti – ajoelha diante dela
E a adora – A decomposição é teu Deus!

Depois afunda em tua cova – une ao pó


Tua alma, sepultada em ti por tua loucura aqui –
E sê, se podes, a presa do nada eterno,
Tu, que Deus elevou à criatura pensante. –

Quem desconhece seu Deus, a ele o mundo se torna um inferno –


Ele mesmo é apenas um sonho, e tudo ao redor é loucura –
Mas pensa num Deus, e logo tudo ao teu redor se ilumina –
E tua alma poderosa se eleva ao céu. –

Sua alma inteira ficou realmente abalada com as sensações que se


alternavam nele enquanto compunha o poema – tremeu diante do
horrível abismo do acaso cego, em cuja margem, apavorado e horrorizado,
sobressaltou-se e, com todos os seus pensamentos e sensações,
aconchegou-se, por assim dizer, na ideia consoladora da existência de um
ser bom, que a tudo governa e conduz.
Como o poema também encontrou aprovação completa de seu amigo,
Reiser decorou-o, planejando declamá-lo no dia da semana em que
houvesse exercícios de declamação. – Em função disso, apareceu com o
traje novo, que era bem bonito, o primeiro traje fino que vestia em sua
vida – em seu caso, essa não era uma circunstância irrelevante. – A nova
roupa, com a qual se via igualado aos colegas de escola, que durante tanto
tempo o discriminaram por sua roupa velha, inspirou coragem e confiança
em si mesmo; e o mais estranho era que assim recebia mais respeito das
pessoas, que só agora lhe dirigiam a palavra, pois antes não se importavam
com ele.
E quando enfim postou-se pleno no auditório, sobre a cátedra, no lugar
em que durante muito tempo fora objeto de desprezo geral, diante de seus
colegas de escola reunidos ali, para declamar publicamente o poema que
ele mesmo havia escrito, seu espírito abatido mais uma vez se reergueu e
nele despertaram novamente esperanças e perspectivas sobre o futuro.
Reiser entregara ao diretor uma cópia do poema para que
acompanhasse a leitura; o diretor a devolveu a Reiser, que não caiu em
tentação de lhe dizer que ele mesmo compusera o poema – quanto a isso,
estava com a consciência tranquila, e lhe foi agradável quando seus
colegas de escola lhe perguntaram de onde havia tirado o poema que
recitara, e ele então lhes deu um nome de um poeta de quem o teria
copiado.
Reiser pediu autorização ao diretor para declamar um poema na
semana seguinte; quando a obteve, modificou um pouco o poema dedicado
a Philipp Reiser:

A ti, amigo, meu sofrer lamentaria

E deu o título “A melancolia”. – Agora o poema começava assim:

Quero lamentar os sofrimentos da alma –


Mas se vós, palavras, só podeis dizê-los pela metade,
Dizei-os e mitigai minha dor!

A última estrofe:

Minha existência devo eu a quem?


Quem lhe impôs estreito confim?
Minha vida aflorou da desordem?
Em qual noite pavorosa ela penetrará
Quando a mão direita do destino
Inabalável indicar o portão da morte?
Ele a declamou com páthos verdadeiro, demonstrando-o na voz e nos
gestos, e, quando silenciou, permaneceu ainda um momento em pé, com
os braços erguidos, atitude que era como a imagem de sua dúvida
duradoura, irresoluta e terrível.
Quando o diretor lhe devolveu a cópia, reconheceu o mérito de sua
declamação, dizendo-lhe que os dois poemas que ele declamara tinham
sido “muito bem escolhidos”.
Isso foi demais para que Reiser continuasse resistindo à tentação de
contar ao diretor que os poemas eram dele mesmo, recebendo a
aprovação, que agora recaía apenas na escolha dos poemas, também por
seu trabalho.
Continuou, no entanto, ainda sem falar nada, esperando alguns dias até
que tivesse de ir impreterivelmente ao encontro do diretor para lhe
entregar uma redação em latim que ele, assim como seus colegas de
escola, tinha de fazer semanalmente como exercício de estilo; nessa
ocasião, deu ao diretor uma cópia dos dois poemas que declamara,
dizendo-lhe que era o autor.
O semblante do diretor, que o havia olhado com tamanha indiferença,
animou-se visivelmente quando Reiser lhe disse isso; daquele momento
em diante, esse homem parecia ter se tornado seu amigo – entabulou com
ele uma conversa sobre a arte poética, quis saber quais eram suas leituras,
e Reiser voltou para casa com o coração repleto de alegria pela boa
recepção de seus poemas.
No outro dia, contou sua sorte a Philipp Reiser, que ficou sinceramente
contente, pois enfim parariam de menosprezá-lo e talvez agora dias mais
felizes o esperassem.
Na semana seguinte, Reiser chegou um pouco atrasado à primeira aula
da segunda-feira de manhã, na qual o diretor costumava avaliar
publicamente dissertações de latim, sem mencionar o nome dos autores. –
E, ao entrar no auditório, ouviu o diretor, que estava sentado na cátedra,
lendo o início de seu poema “O ateu” e criticá-lo verso por verso. – Reiser
mal pôde acreditar no que estava ouvindo. – Assim que entrou, todos os
olhares foram dirigidos a ele – pois essa crítica em público era a primeira
em seu gênero.
O diretor mesclou suas críticas a muitos elogios estimulantes,
expressando em geral sua aprovação aos dois poemas que Reiser
declamara; daquele dia em diante, Reiser alcançou o respeito de seus
colegas de escola, dos quais fora objeto de escárnio durante tanto tempo;
iniciava-se assim uma nova época em sua vida.
Sua fama de poeta se espalhou rapidamente pela cidade – de toda parte
ele recebia encomendas de poemas para ocasiões determinadas – e todos
os seus colegas de escola queriam aprender com ele sobre poesia e o
segredo de como fazer versos. – Além disso, o diretor começou a receber
tantos versos em sua casa que finalmente teve de proibir isso – depois,
nunca mais fez críticas de poemas em público.
O que mais alegrava Reiser nessa questão era o notável progresso que
pensava ter feito ao longo do ano em relação à educação de seu gosto, já
que um ano antes o poema endereçado aos ateus, que agora achava
extremamente insípido, havia lhe agradado tanto a ponto de pensar que
valia a pena sabê-lo de cor. – Mas, naquele ano, as leituras de Shakespeare,
do Werther e de muitos poemas excelentes do novo Almanaque das Musas se
somaram aos seus estudos da filosofia de Wolff; e a isso se acresceram a
solidão e o silencioso e tranquilo deleite da natureza, com os quais seu
espírito às vezes adquiria mais cultura num único dia do que em anos
inteiros. – Começaram novamente a prestar atenção nele, e aqueles que
até então acreditavam que Reiser não era ninguém voltaram a acreditar
que ele poderia ser alguém.
Apesar das mudanças favoráveis em seu destino, Reiser ainda
mantinha seu humor melancólico, no qual encontrava especial satisfação;
mesmo no dia em que seu poema recebera a inesperada honra da crítica
pública, foi caminhar à tarde, sozinho e melancólico, ao redor da cidade,
num dia chuvoso e nublado – à noite, quis ir à casa de Philipp Reiser para
lhe contar sua felicidade. – Quando lá chegou, não o encontrando em casa,
tudo lhe pareceu morto e desolado – não pôde desfrutar adequadamente a
felicidade de ter ganhado de certo modo o respeito das pessoas mais
próximas, porque não conseguiu contar isso a seu amigo.
E, ao retornar para casa sozinho e triste, fantasiou a ideia de que,
quando quisesse lamentar a dor com um amigo, não encontraria ninguém
em casa e teria de regressar com o coração carregado de mágoa, até dar
com o terrível pensamento de encontrá-lo morto; desesperado consigo,
amaldiçoou então sua felicidade, porque perdera a grande sorte da vida, a
de ter um amigo fiel. Foi assim que surgiram os seguintes versos, que ele
anotou logo que chegou em casa:

Procurei meu amigo


Para lhe dizer meus sofrimentos
Mas não o encontrei. – –
Caminhei então preocupado
De coração pesado
De volta à minha cabana – –

Procurei meu amigo


Para lhe dizer minhas alegrias
Mas não o encontrei –
Fiquei então muito triste,
Como alegre eu fora antes,
E quieto caminhei –

Procurei meu amigo


Para lhe dizer minha sorte
Mas o encontrei morto –
Amaldiçoei então minha sorte
E fiz um juramento
Enquanto meus olhos ainda chorarem lágrimas,
Eles irão chorar a morte deste amigo,
Pois tive apenas este. –

Por esse tempo, Reiser também conheceu, graças a W., o filho do mestre
de capela, uma pessoa muito interessante, o vinagreiro filosófico, a quem
W. quisera apresentá-lo fazia já meio ano, mas nunca tivera a
oportunidade.
Certa noite, W. foi buscá-lo, e Reiser estava cheio de expectativas – no
caminho, W. lhe ensinou como deveria se comportar com o vinagreiro,
que ele não deveria lhe dar boa-tarde quando o encontrasse nem boa-
noite quando deixasse o lugar. – Foram pela longa rua Oster, repleta de
casas no estilo franco antigo, passaram pelo portão e atravessaram um
longo pátio até a cervejaria, onde, lá no fundo, isolado, o vinagreiro tinha
seu próprio local, sempre aquecido, no qual os barris ficavam enfileirados
num imenso depósito, formando longos corredores nos quais era possível
se perder. – Quando se falava ali, produzia-se um eco abafado. – Não era
possível ver ninguém, então W. começou a gritar: “Ubi?” – e uma voz lá
longe respondeu: “Hic?”.[25] – Passaram pela cervejaria propriamente dita,
ao lado da fila dos barris, e o vinagreiro, de camisa branca e avental azul,
com as mangas arregaçadas, estava à janela escrevendo – “Termino logo”,
ele disse e depois passou a W. um papel em que havia uns versos em latim
que acabara de compor para ele.
Para Reiser, o vinagreiro parecia um homem de uns 30 anos – em cada
movimento de seus músculos, em seu olhar fulgurante, havia como que a
expressão de uma força contida. – O vinagreiro lhe inspirou respeito logo
no primeiro olhar – ele parecia não se importar com Reiser, mas falava
com W. sobre algumas novas partituras de música e outras coisas, e não
disse nenhuma palavra que não fosse em baixo-alemão, expressando-se de
maneira tão correta e nobre que até mesmo o mais rude baixo-alemão
ganhava certa atração em sua boca, o que fazia qualquer pessoa, quando
ele falava, vidrar em seus lábios, como Reiser tantas vezes depois
vivenciou ao aprender, entre aqueles seus barris, a sabedoria ensinada
pelo vinagreiro.
Como era uma noite de outono já bastante fria, o vinagreiro conduziu
as duas visitas para seu salão aquecido, onde havia uma longa fileira de
barris, servindo-lhes um tipo de cerveja doce muito saborosa, o que
tornou a conversa mais geral; ao falarem de um conhecido comum, um
velho bastante engraçado e esquisito, o vinagreiro descreveu nos mínimos
detalhes a personalidade inteira desse homem, com o humor de Sterne. –
Depois, leu em voz alta trechos do Tom Jones com tal expressão e com uma
declamação tão verdadeira e correta que Reiser pensou que dificilmente
encontrara noutro lugar conversa melhor e, ao ir embora, não conseguiu
descrever muito bem ao jovem W. o prazer de ter conhecido o vinagreiro.
A partir de então visitava o vinagreiro quase toda noite, na companhia
de W. ou sozinho, e, quando se sentavam em seus banquinhos de madeira
perto do fogão quente, entre os barris com candeeiros pendurados, e liam
o Tom Jones, ou faziam a descrição dos personagens, ele se sentia feliz e
satisfeito como jamais se sentira antes, exceto com Philipp Reiser – mas no
convívio com o vinagreiro ele sempre se sentia elevado e forte ao
ponderar que um homem daqueles, dotado de conhecimentos e
capacidades, se submetia, com paciência e constância da alma, a um
destino que o excluía completamente de todo o convívio com o mundo
refinado e de todos os alimentos do espírito que poderia receber. – E
justamente o pensamento de que aquele homem vivia tão escondido e na
escuridão destacava ainda mais seu valor para Reiser – como uma luz cujo
brilho parece resplandecer mais forte na escuridão do que entre muitas
luzes.
Como vinagreiro, K., assim se chamava, era realmente um grande
homem, e talvez o tivesse sido também como homem de letras, embora
não na mesma proporção – porque sem essa luta com seu destino, a
sublime e paciente força de sua alma não poderia ter se desenvolvido
tanto assim. – Não havia virtude filantrópica possível de ser praticada em
sua situação que ele não tivesse praticado.
De seus ganhos penosamente obtidos, ele sempre poupava o quanto
podia, a fim de receber por vezes, à noite, em sua mesa, alguns jovens para
cuja formação a sua contribuição constituía a alegria de sua vida, e a fim
também de passear algumas vezes com eles, passeios em que sua
satisfação era sempre pagar o que consumiam. – Além disso, sustentava
uma família pobre, dando-lhe diariamente uma moeda de prata que
retirava de seu módico ganho – pois ele era, de fato, apenas um serviçal
naquela cervejaria, da qual seu primo, um ancião decrépito a quem
ajudava no trabalho, era o patrão.
W., Philipp Reiser e o vinagreiro eram agora os principais
companheiros de Reiser, aos quais veio se somar mais um jovem que,
estimulado pelo exemplo de Reiser, havia decidido estudar, apesar da
pobreza de seus pais. – Por meio de W., o vinagreiro também tentou atrair
para si esse jovem, contribuindo para a formação de seu espírito. Suas
conversas eram em geral verdadeiros diálogos platônicos, que ele muitas
vezes temperava com a zombaria mais refinada sobre a tolice infantil ou
sobre a vaidade de suas jovens companhias.
Quando o inverno chegou, Reiser sentiu um estímulo que soprou ainda
mais ânimo do que tudo até então. – É que recebeu do diretor o respeitável
encargo de escrever um discurso em alemão para o aniversário da rainha
da Inglaterra, que ocorreria em janeiro, discurso que deveria ser
pronunciado durante a solenidade.
Esse era o mais elevado e radiante objetivo a que um jovem dessa
escola podia aspirar, e só pouquíssimos o alcançavam: pois geralmente os
discursos em homenagem ao aniversário do rei e da rainha eram feitos
apenas por jovens nobres. – Dessa solenidade costumavam participar o
príncipe e os ministros, juntamente com todas as personalidades da cidade
– que, após o término do discurso, desejavam boa sorte àquele jovem que
era considerado a esperança do Estado – uma cena que frequentemente
abatia Reiser, pois pensava que jamais conseguiria ter tamanho brilho em
sua vida.
E ele, que no começo daquele mesmo ano havia sido desprezado e
posto de lado por todos, recebia agora repentinamente, e sem sua
intervenção, um encargo muito excitante, a cuja execução se dedicou
também com o maior zelo.
Quis compor seu discurso alemão em hexâmetros: o diretor então lhe
havia emprestado as Cartas sobre literatura, recomendando-lhe que as lesse
com muita atenção. Nelas deparou, entre outras coisas, com a resenha em
que a tradução de Zacharia do Paraíso perdido, de Milton, é censurada por
seus péssimos hexâmetros, ao mesmo tempo que se diziam muitas outras
coisas fundamentais sobre a construção de hexâmetros, suas cesuras etc. –
Reiser compreendeu isso e procurou lapidar seus hexâmetros com o maior
cuidado. – Havia dias em que mal conseguia compor três ou quatro versos
– toda noite ia à casa de Philipp Reiser e submetia seus versos mais uma
vez às críticas dele; liam juntos também todos os volumes das Cartas sobre
literatura e naquele inverno retomaram suas noites shakespearianas.
Em novembro, Reiser estava com quase metade de seu discurso pronto
e foi encontrar o diretor para que ele fizesse suas críticas. – O diretor
expressou imensa aprovação ao trabalho de Reiser, informando-lhe,
porém, que ele não poderia mais fazer o discurso em público, porque isso
exigia diversos custos com que Reiser não teria condições de arcar. – Um
raio não o teria abatido mais do que essa notícia – todas as suas brilhantes
perspectivas, das quais se gabara durante a composição do discurso,
desapareceram de uma só vez, e voltou a cair em seu nada anterior. O
diretor procurou consolá-lo – mas ele se afastou do diretor, com o coração
pesado e o pensamento melancólico de que estava destinado à eterna
obscuridade; então lhe vieram à mente os versos que compusera para
Philipp Reiser e que agora cabiam bem em sua situação:

Desejo tantas vezes me erguer


E acabo caindo de novo.
Estremeço então por não ter
Um destino mais risonho. –
E quando no coro, num outro dia, foram cantadas, entre outras coisas,
numa ária as palavras:

Tu batalhas pela felicidade


E percebes a inutilidade da batalha –

ele do mesmo modo as aplicou a si mesmo, e novamente se sentiu de


repente tão abandonado, tão desprezado, tão insignificante, que nem
mesmo a Philipp Reiser quis dizer algo sobre sua nova aflição, preferindo
não ir a sua casa para não ter de conversar sobre seu destino, que agora
começava a se tornar odioso para ele, não sendo mais digno do esforço de
reflexão.
Quando enfim, saciado de tanto se maltratar com aqueles
pensamentos, cogitou numa maneira de ser ainda possível alcançar seu
objetivo – o meio se lhe apresentou tão logo se pôs a pensar nisso – era
preciso apenas ir até o pastor M., que começara a ter novas esperanças em
Reiser, e pedir-lhe que o príncipe lhe comprasse um bom traje e ainda
arcasse com os custos do discurso, no que o pastor M. imediatamente
assentiu, prometendo-lhe antecipadamente que aquilo teria um bom
desfecho. – As preocupações de Reiser estavam portanto novamente
suspensas, e, com o coração alegre, pôde concluir o discurso, já iniciado,
que faria no aniversário da rainha. – Mas como voltara a esfriar ele não
pôde mais ficar sozinho em cima, em sua alcova, tendo de se sentar à noite
na sala de baixo com o casal de proprietários da pensão, onde os soldados
ali alojados, junto com o dono, obrigavam Reiser a participar dos jogos,
com os quais passavam as longas noites de inverno. – Ali terminou de
escrever seu discurso, principalmente entre o fim da tarde e o começo da
noite, com a cabeça próxima ao fogão. – Havia encontrado então um ótimo
remédio contra seu humor melancólico; todas as vezes que notava que a
melancolia começava a tomar seu coração, saía ao entardecer, quando já
estava escuro, sob forte chuva e neve, para dar uma volta pelo baluarte, e,
enquanto caminhava a passos rápidos, manteve sempre presente em sua
alma o desabrochar imperceptível de novas perspectivas e esperanças, das
quais certamente a mais radiante estava muito próxima dele. – Foi nesses
passeios em torno do baluarte que conseguiu compor a melhor parte de
seu discurso, e as dificuldades com a versificação, que muitas vezes lhe
pareciam insuperáveis quando estava com a cabeça inclinada sobre o
fogão, desapareciam por si mesmas.
Desde a infância, o baluarte em volta de H. tinha sido o cenário
predileto de suas mais agradáveis fantasias e de suas ideias mais
romanescas – pois dali via a cidade com suas construções coladas umas às
outras, e a natureza campestre e aberta, com jardins, lavouras e campos,
tão próximos uns dos outros, mas tão diferentes, que esse contraste jamais
deixava de ter um efeito animador sobre sua fantasia. – Depois, também
nos arredores do lugar, que abrigava em sua extensão a maioria de suas
venturas, sempre irrompiam em sua alma milhares de recordações
obscuras, que, unidas a sua atual situação, despertavam, de certo modo,
mais interesse em sua vida – e, à noite, sobretudo, a visão das luzes
espalhadas aqui e ali pelos quartos das casinhas rentes ao baluarte causava
sempre um efeito sobre Reiser como o descrito antes.
Desde a declamação dos versos, era respeitado por quase todos os
colegas de escola. Para ele, isso era algo completamente incomum – ainda
não vivenciara algo semelhante em sua vida e mal podia acreditar que
fosse possível que ainda pudesse ser respeitado. – Depois de todas as
experiências anteriores, imaginou que deveria haver alguma coisa nele ou
em sua fisionomia que, enquanto vivesse, o tornaria uma pessoa ridícula e
um objeto de zombaria. – O sentimento de ser respeitado aumentou sua
consciência de si e o transformou em outro ser – seu olhar, seu semblante
mudaram – seus olhos se tornaram audazes – ele agora podia, quando
alguém queria zombar dele, olhar diretamente nos olhos do zombador até
desconcertá-lo.
Toda a sua situação externa mudou também de repente. Reiser, por
meio do empenho do reitor e do pastor M., que agora haviam renovado as
melhores esperanças nele, conseguiu logo ser contratado para dar muitas
aulas, as quais lhe proporcionaram uma renda mensal considerável para
as suas necessidades na época, algo que lhe era absolutamente incomum e
com que não sabia lidar de maneira apropriada.
Nenhum de seus ricos e ilustres colegas de escola tinha mais vergonha
de conviver com ele e de visitá-lo em sua mísera moradia. – Ainda naquele
ano, ele também se viu editado, já que havia escrito em verso diversos
pequenos votos de Ano-Novo para um editor, que os imprimiu para
vender – mesmo seu nome ainda não sendo notado, e a autoria dos versos
continuar desconhecida, sentia uma satisfação indescritível sempre que
via impressas essas linhas saídas de sua mão. – E quando, poucos dias
antes de discursar, seu nome apareceu estampado num cartaz em latim,
ao lado dos nomes de mais dois colegas de escola, filhos de pais ilustres; e
ele era realmente chamado no cartaz de Reiserus, como o diretor
precedente o havia nomeado; e o intervalo entre aquela designação oral e
essa escrita do nome Reiserus, com tudo o que, culpado ou inocente, ele
havia sofrido, aparecia vivamente diante de seus olhos – isso lhe
arrancava lágrimas de alegria e de pesar – pois um ano antes, ou meio ano,
ele ainda nem sonhava com essa mudança repentina de seu destino. – Esse
anúncio em latim com seu nome estava agora afixado publicamente numa
tabuleta preta diante da escola e nas portas da igreja, e as pessoas que
passavam por ali paravam para lê-lo.
Era comum que os jovens que proferiam discursos em tais ocasiões
tivessem de convidar, alguns dias antes, os notáveis da cidade para o
evento. – Quanta mudança em relação ao tempo em que os colegas de
escola de Reiser não se dignavam lhe dirigir sequer uma vez a palavra nem
andar junto com ele por causa de suas roupas puídas! – Agora, com o
chapéu embaixo do braço e a espada ao lado, ele fazia a corte ao príncipe,
convidando-o para a festa de aniversário de sua irmã, a rainha da
Inglaterra – e, ao fazer os convites, podia se mostrar aos mais distintos
moradores da cidade e ser recebido por todos com as mais animadoras
demonstrações de gentileza.
Quando menos esperava e já havia desistido totalmente, ele alcançou
assim o objetivo mais glorioso, aspirado por todos os alunos da primeira
série de H., objetivo que apenas pouquíssimos conseguiam alcançar.
A tarefa de fazer esses convites tem realmente algo de muito
encorajador para os jovens, e sua repetição é recomendável sob muitos
aspectos… – Por causa dos convites, Reiser foi levado num período de
poucos dias a um mundo que até então lhe era completamente
desconhecido – conversou pessoalmente com ministros, conselheiros,
pregadores, letrados, em suma, com pessoas de todos os estratos, às quais
até então admirara apenas a distância; e todos o trataram com gentilezas,
e lhe disseram coisas agradáveis e estimulantes, de modo que a autoestima
de Reiser ganhou mais em poucos dias do que em anos anteriores. –
Convidou também o poeta Hölty, apesar de não chegar a conhecê-lo nessa
ocasião direito, pois Reiser só perdia a timidez se lhe demonstrassem
confiança, e isso não era algo próprio de Hölty, que sempre ficava um
pouco embaraçado na primeira conversa com um desconhecido. – Reiser
tomou o embaraço por desprezo, e isso lhe foi muito doloroso, tamanho
era seu respeito por Hölty, e assim não ousou visitá-lo novamente.
E, depois de ter representado de dia seu brilhante papel, ia à noite à
casa do vinagreiro, onde também se encontravam Philipp Reiser, W. e o
outro jovem, a quem seu exemplo havia estimulado a estudar; eles o
recebiam de braços abertos – e Reiser lhes contava de suas visitas, das
pessoas que conhecera, compartilhando com eles a alegria de seu estado.
A sra. F., o primo peruqueiro e todas as pessoas que tinham lhe
oferecido um prato de comida disputavam agora entre si para lhe
demonstrar alegria e apoio. – Seus pais, que havia tempos não tinham
nenhuma notícia do filho e já haviam perdido a esperança nele, ficaram
muito contentes quando souberam dessa mudança repentina e favorável
do destino, ao receberem o cartaz em latim no qual o nome do filho estava
impresso em grandes letras.
Apesar de todo esse brilho exterior, Reiser permanecia em sua velha
residência, onde o dono, o açougueiro, sua mulher, a criada e dois
soldados, que lá estavam alojados, constituíam seus companheiros de
moradia.
Quando, a despeito de sua mísera habitação, era visitado por um colega
de escola rico e ilustre, isso lhe causava um prazer secreto – pelo fato de
que, sem ter um alojamento convidativo ou outras vantagens externas,
era procurado simplesmente por sua própria pessoa. Em virtude disso,
sentia-se às vezes bastante orgulhoso de sua pobre moradia.
Chegou enfim o dia de seu triunfo, em que colheria, da maneira mais
extraordinária possível para sua situação, as honras e os aplausos públicos
– mas justamente isso lhe despertou uma sensação melancólica muito
particular. – Todos os seus desejos e esforços estavam até então dirigidos
para esse ponto – e a atenção de grande parte das pessoas estava fixada
nele. – Quando isso terminasse, tudo cessaria, e todas as cenas cotidianas
da vida retornariam. – Esse pensamento despertou em Reiser
frequentemente o estranho desejo, que ele levava a sério, de tombar e
morrer no fim de seu discurso. – Deu-se então que, justo no dia do
discurso, fez um frio fora do comum, impedindo muitas pessoas de
comparecer, de modo que o número de espectadores foi um pouco menor
do que o habitual, ainda que a aglomeração fosse suficientemente grande.
– Nesse dia, porém, tudo pareceu tão morto, tão desolado para Reiser; a
fantasia teve de se retirar – o real se fez presente – e justamente o fato de
que aquilo que havia sonhado era realidade e nada mais o pôs meditativo e
triste – pois, segundo esse critério, ele mediu todo o futuro de sua vida. –
Tudo ali lhe parecia como num sonho, como numa distância obscura – não
conseguia enxergar direito, subiu a cátedra com pensamentos
melancólicos e, enquanto a música tocava, antes de começar sua fala, ele
pensou em algo completamente diferente de seu triunfo atual. Pensou e
sentiu a vaidade da vida – a imagem agradável de seu estado atual e real
brilhava apenas como que por uma gaze opaca.
Para revelar o progresso que naquela época fizera na expressão de seu
pensamento, talvez não seja inadequado destacar alguns trechos de seu
discurso. Começava assim:

Que incenso sobe tão suave pelo éter


Dos campos de delícia ao trono da divindade? – –
Oh! são as orações dos povos afortunados – Por Charlotte
Flutuam tão suave rumo ao eterno – e flamejam – etc.

– Georg! –
Ressoem harpas! Soe o canto de júbilo de todas as
Nações afortunadas! – Cala-te, minha canção! Pois em vão
Te atreves a conquistar seu louvor, o louvor de Georg –
A águia em seu voo ousado muitas vezes se arrisca a subir até o sol,
Pairando sobre campos, montanhas e nuvens, lá no alto,
Pensa estar mais perto do sol, mal percebe que seu voo de lesma
Permanece sempre sobre a terra – que para ela desaparecia – que sons
Soariam assaz fortes e harmônicos para imitar,
Um pouco apenas, a harmonia divina das virtudes
Sublimes de Georg? – etc.

– E Georg ergue-se ao cume


De sua grandeza – pensa seriamente no bem-estar de seu povo,
Pensa e o faz – E imperturbado pelo trovão
Fica ali – como o cedro de Deus – com suas benéficas
Sombras, protege aves e bestas – e a borrasca dissipa
Sua fúria em suas folhas, encrespa a ramagem de seus cabelos.
– Assim,
Firme na tempestade que bombardeia sua fronte
Permanece Georg – Se os povos enfurecem – Tu, povo
Fiel ao teu rei, cobre a face, e chora!
Não mires teu irmão em país distante
Rebelando-se contra o rei. – etc.

Cada coração cheio de sentimento peregrina hoje para encontrar Charlotte


Perdoa o jovem mais fraco – que também ousou
E cantou a Charlotte – silencia minha canção, pois da distância sussurra
Já o júbilo do povo, que hoje à sua rainha
Espalha seu incenso – e grita: que viva Charlotte!
Grito que ecoa pela floresta e montanha: viva!

Quando escreveu seu discurso, Reiser teve em mente um ideal que


realmente o entusiasmou – ao qual somava o fato de que iria falar sobre
esses temas em público. – O pensamento preenchia de certo modo as
lacunas onde seu entusiasmo cessava ou esmorecia.
Mas, como sabia pouco, ou até mesmo nada, sobre o tema, buscou ter à
mão um número de encômios que já haviam sido feitos para o rei e a
rainha; lia-os de cabo a rabo e extraía dali seu ideal, sem se servir de uma
única frase deles – evitava isso com o maior cuidado possível; pois tinha o
mais pavoroso receio do plágio – de modo que se envergonhou até mesmo
das frases que concluíram seu discurso, “ecoa pela floresta e montanha:
viva!”, porque nos Sofrimentos de Werther aparece uma vez a frase: que
“ressoa pela floresta e montanha” – muitas vezes, as reminiscências lhe
escapavam, mas, assim que se dava conta, ele se envergonhava delas.
No dia em que discursou, ele se encontrava, como já foi dito, mais
abatido do que o normal – pois tudo lhe parecia tão morto, tão vazio – e
agora se encerrava aquilo que por tanto tempo ocupara sua imaginação.
À tarde, na companhia dos outros dois que discursaram, Reiser foi
tomar café com o vice-prefeito, que também era uma autoridade
eclesiástica; uma honra bastante incomum para Reiser – que não sabia ao
certo como deveria se comportar – e só voltou a se sentir alegre quando
tirou seu lindo traje e, à noite, foi à casa do vinagreiro, onde W., S. e
Philipp Reiser já se encontravam; todos estavam de fato contentes com
sua sorte, e a solidariedade deles tinha mais valor para Reiser do que todo
o esplendor daquele dia.
Reiser conseguiu dar ainda mais aulas, com as quais melhorou tanto a
sua renda que pôde alugar um alojamento melhor, oferecer café de vez em
quando para seus colegas de escola e levar uma vida bastante boa para um
aluno da primeira série – mas o dinheiro que ganhava, comparado a seus
ordenados e necessidades anteriores, lhe parecia tanto que o fazia não ter
ideia do valor do dinheiro e da necessidade de poupar – mesmo com
ordenados cada vez mais robustos, ele ficava mais pobre do que antes; e
até isso, efeito de sua boa sorte, acabou se tornando a fonte de sua
desgraça.
Como havia recuperado de modo repentino e inesperado o respeito de
todos que o conheciam e dos quais sua sorte dependia, isso provocou
naturalmente uma impressão em seu ânimo, que o incitou ao nobre
empenho de merecer cada vez mais esse respeito – começou a aproveitar
as horas das aulas públicas com uma dedicação inédita, e a assimilar,
principalmente por meio das anotações, tudo quanto estava ao seu
alcance.
Os exercícios de declamação prosseguiram – e, para essa finalidade,
Reiser compôs ainda um poema sobre as deficiências da razão – tema de
redação que o diretor havia proposto. Reiser inseriu nele todas as dúvidas
que trazia consigo havia muito tempo.
Como conceitos supremos do entendimento humano, as noções de
totalidade e ser não lhe eram suficientes – pareciam-lhe uma restrição
estreita e angustiante – algo que deveria ser recusado por todo
pensamento humano. Ele se lembrou das palavras do velho Tischer
agonizando – tudo, tudo, tudo! –, e o fato de ele repetir várias vezes esse
supremo conceito-limite, justamente no momento em que uma nova
existência se separava da velha – era a parede divisória que devia ser
praticamente rompida – totalidade e existência tinham de se tornar por sua
vez conceitos subordinados a um conceito superior e mais abrangente.
Tudo o que é ainda tem de admitir algo ao seu lado – algo que, junto com
tudo o que é, seja compreendido ao mesmo tempo por algo superior, algo
mais sublime – por que nosso pensamento deve ser o último limite? Se não
podemos dizer algo mais elevado do que tudo o que existe, uma capacidade
superior ou suprema de pensamento também não deve afirmar nada mais
elevado? – Talvez o agonizante Tischer quisesse ter dito mais coisas
quando repetiu duas vezes tudo, mas sua língua ou seu pensamento
falharam – e ele morreu.
Essas foram as estranhas ideias que Reiser colocou em seu poema sobre
as deficiências da razão, que entre outras coisas continha os seguintes
versos:

Tudo o que a razão no mais ousado voo pode alcançar


Quão distante é daquilo pelo qual luta o serafim –

O poema terminava de maneira ortodoxa, e segundo ele, no fim, teríamos


de buscar refúgio na luz da revelação:

À nossa frente, uma luz atravessa sombras escuras


E ilumina nossa vereda – ai daquele que a desdenha!

O diretor aprovou efusivamente a conclusão; mas, como era de esperar,


considerou incompreensível a totalidade do poema.
Em outra ocasião, Reiser elaborou outro poema sobre a satisfação – de
certo modo para sua própria instrução ou para sua diretriz de vida –, mas,
após ter examinado todos os motivos de tranquilidade em meio às
adversidades da vida, e, de alguma maneira, embalar-se num suave
silêncio, sua obscura melancolia despertou novamente. – Por fim, ele
concluiu a série de sensações amenas, expressas nesse poema, com os
seguintes versos de desespero:

Muitos e imensos sofrimentos transformam


Tua própria vida aqui num martírio –

E tu não encontras salvação


Nem boa saída para tua sorte –
Ergue teus olhos! – ela virá no trovão –
Saúda, saúda a tua morte!

Quando absorto nesses pensamentos, sentia muitas vezes certo deleite


doloroso, se é que existe algo assim.
Esse poema era de certo modo um quadro de todas as sensações, que,
mesmo começando suaves e tranquilas, costumavam terminar dessa
maneira. – Sua índole estava propensa a esse fluxo de sensações por causa
de todas as ofensas e humilhações que sofrera desde a juventude – apesar
da perspectiva mais límpida e mais sorridente, a obscura melancolia
sempre se estendia como uma nuvem diante de sua alma. –
Tão logo suas palavras se inclinavam nessa direção, tornavam-se
naturais e verdadeiras. – Certa vez, recebeu a incumbência de fazer um
poema de lamento amoroso para alguém. – Não conseguia se imaginar nessa
situação, mesmo com todos os esforços, porque não acreditava
absolutamente que pudesse ser amado por uma mulher – por julgar toda a
sua aparência inconveniente, havia desistido completamente de agradar;
assim jamais pôde se colocar na situação daquele que lamenta porque não
foi amado – o que sabia sobre isso era o que simplesmente imaginava sem
nunca ter sido capaz de sentir. – Contudo, não ficou tão ruim o lamento
amoroso que esboçou, porque nele resumiu o que aprendera nas leituras de
romances e nas conversas com Philipp Reiser. – Mas, enfim, imaginou o
amante, abatido pelos restos de sofrimento e próximo ao desespero, sem
no entanto levar em consideração a causa de tal sofrimento, imaginando
alguém completamente desesperado, e pôde assim se colocar em seu
lugar. A última estrofe desse lamento amoroso lhe saiu sem dificuldade.

No bosque mais profundo e escuro,


Aonde peregrino algum vai,
Grita o pássaro da morte –
No tronco perfurado do carvalho
Chorarei sem consolo,
Enquanto estrelas brilharem no céu
E gritarei meus lamentos
Até cair o orvalho da manhã. – –

Conseguiu em alguns versos até mesmo expressar ternura, embora


acompanhada por uma leve melancolia. – Fez, por exemplo, para certa
pessoa, um poema de despedida de sua amada – que, após um lamento
amargo de separação, terminava assim:

Dizer adeus? – Só posso chorar –


Está pesado e lacrimoso meu coração –
Dias alegres vão, para ti, raiar –
Minha amada – adeus, então!

E em seu discurso para o aniversário da rainha, o seguinte trecho, que não


citei antes, era exatamente aquele que ele sentira de modo mais profundo
e verdadeiro: –
– Ela sorri – os alegres exultam –
Os tristes enxugam as lágrimas dos olhos úmidos,
Desanuviam o olhar para a alegria, e sorriem e bendizem
Também o dia que Charlotte lhes deu como consolo.

Em pensamento, também ele se incluiu entre os tristes que desanuviam o


olhar para a alegria. – E encontrou muito mais doçura em se ver entre os
tristes que entre os alegres. – Era mais uma vez o the joy of grief (o deleite
das lágrimas), que desde a infância estava arraigado em seu coração.
Passou assim um inverno razoavelmente feliz – mas, quando sua
fantasia ficava muito excitada e seu ânimo extremamente agitado por
tantos desejos e esperanças frustrados, fatalmente começava a sentir a
monotonia de sua situação. – Estava com 19 anos – durante cinco anos
havia frequentado a escola e não sabia ainda quando poderia ir para a
universidade. – Começou a sentir-se novamente muito limitado em H.,
quase como antes, quando estivera a ponto de fazer a viagem para B. até a
casa do chapeleiro. – Todos os seus pensamentos pouco a pouco
começaram a vagar longe – e sonhou com um futuro romanesco.
E, quando a primavera chegou, despertou de repente nele um singular
desejo de viajar que jamais sentira com tanta intensidade.
Bremen está situada a quase 20 quilômetros de H., e o lugar onde os
pais de Reiser moravam ficava exatamente na metade do caminho. –
Viajar de Bremen até o mar, descendo o rio Weser – esse era o grande
projeto que Reiser levava consigo havia algumas semanas – e sua
imaginação fantasiava coisas maravilhosas sobre essa viagem.
A vista do Weser – os barcos, uma cidade comercial – ocupou sua alma
na vigília e no sonho. – Um de seus colegas de escola o incumbiu de
entregar uma carta ao irmão, comerciante em Bremen, e Reiser iniciou a
viagem a pé, com um ducado no bolso.
Essa foi então a primeira viagem romanesca singular que Anton Reiser
fez, começando, a partir daí, a realmente fazer jus ao seu nome[26].
Para essa viagem, levou um mapa da Baixa Saxônia, um tinteiro
portátil e um livrinho de papel em branco para escrever regularmente um
diário durante o trajeto.
A cada passo que dava, depois de ter saído pelas portas de H.,
aumentavam sua expectativa e sua coragem – estava tão encantado com a
viagem que, alguns quilômetros já distante de H., sentou-se numa colina à
beira da estrada, pousou o tinteiro no chão, e assim, levemente deitado,
começou a escrever o diário – lá embaixo, passavam algumas carruagens,
e as pessoas, que com certeza deveriam achar esquisito um homem
escrevendo numa colina à beira da estrada, inclinavam-se para fora da
cabine a fim de observá-lo, o que o deixava um pouco envergonhado. –
Mas ele se recuperou logo do efeito desagradável que o curioso olhar
embasbacado lhe provocara quando em pensamento se considerou inexistente
para essas pessoas desconhecidas – para elas era como se ele estivesse
morto. – Eis por que também concluiu com as seguintes palavras o ensaio
que redigira em seu diário na colina à beira da estrada:

Quando eu estiver no túmulo,


De que me importará a conduta das pessoas?

Retomou então a caminhada apoiando-se no cajado e, ao entardecer,


passando perto da aldeia de seus pais, perguntou qual era a aldeia mais
próxima no caminho para Bremen, e, como só faltavam 400 metros para
chegar, foi até lá para passar a noite.
No dia seguinte, continuou caminhando pela charneca erma e árida,
perguntando pelo caminho, de aldeia em aldeia – mas não conseguiu
chegar à cidade. Ainda teve de pernoitar mais uma vez na última aldeia
antes de Bremen – no terceiro dia, realizou seu desejo mais ansiado –
avistou as torres de Bremen – e viu então, diante de si, aquilo com que sua
imaginação se ocupara durante tanto tempo. – Exceto por H. e B., ele não
conhecera ainda outra cidade tão grande – e, para ele, Bremen se tornara
muito atraente em virtude da sonoridade do nome – sua fantasia conferira
à cidade uma aparência cinza-escura – ele estava extremamente ansioso
para observar seu interior – ousou entrar pela porta da cidade sem
passaporte, e, quando lhe perguntaram quem era, Reiser se fez passar por
um morador da cidade; quando a pergunta se tornou mais específica, fez-
se passar por um dos empregados do comerciante a quem entregaria uma
carta, e deixaram-no entrar.
Assim que se viu na cidade, caminhou às tontas pelas ruas e, em
seguida, foi direto se informar se um daqueles imensos barcos, parados ali
no Weser, não navegaria até a foz, em Bremerlehe, onde ainda estariam as
tropas de Hesse destinadas a ir para a América, que zarpariam exatamente
por aqueles dias.
Calhou justamente de um daqueles barcos estar prestes a partir, e
Reiser, pela primeira vez na vida, esteve a bordo de um navio – nele viajou
quase 10 quilômetros além de Bremen, onde ancoraram e pernoitaram
numa aldeia.
A viagem de navio, apesar do tempo de chuva e tempestade, foi
imensamente prazerosa para Reiser, que ficou no convés com seu mapa na
mão, passando em revista os lugarejos de ambas as margens, cujos nomes
agora sabia – comia e bebia com os marinheiros, e à noite voltava com eles
ao albergue.
No dia seguinte, quis partir de lá em outro navio e viajar até o litoral; já
podia imaginar a pavorosa corrente de água diante de si, e sua fantasia
estava ansiosa no mais alto grau, quando lhe passou pela cabeça uma coisa
sobre a qual ainda não tinha ponderado durante a viagem, a saber, se o
dinheiro que levava seria suficiente. – Levou um susto ao pedir sua conta
ao marinheiro; depois de tê-la pagado, só lhe restaram alguns centavos.
À noite não ousou comer, fingindo, para tanto, ter dor de cabeça, e
pediu que mostrassem imediatamente sua cama – passou ali quase metade
da noite, fazendo planos para sair daquela estalagem de maneira honrosa,
caso sua despesa fosse maior do que os poucos centavos que lhe restavam.
Quando, na manhã seguinte, informou-se sobre o valor a pagar, os
poucos centavos que ainda lhe restavam foram por sorte suficientes, mas
não lhe sobrou uma moeda sequer e estava a quase 30 quilômetros de H.,
quase 20 do lugar onde seus pais moravam e quase 10 de Bremen. – Fingiu
então que não poderia viajar com eles para a costa, porque achava que o
navio ficaria lá por muito tempo, e então, alegre porque saíra de seu
albergue noturno de maneira honrosa, caminhou direto para Bremen.
A carta ao comerciante de Bremen era sua única esperança – sem ela,
Reiser, distante quase 20 quilômetros da casa de seus pais, estava
completamente desamparado. –
Quando iniciou a viagem, ainda estava em jejum e teve de se preparar
para permanecer assim o dia inteiro. – O caminho, que inicialmente
margeava o Weser, era arenoso e extenuante – mas mesmo assim Reiser
continuou percorrendo com bom ânimo até por volta do meio-dia, quando
o calor do sol ficou escaldante.
Fome, sede e cansaço o acometiam junto com o pensamento de que ele
era um estranho naquele campo desolado, estava sem dinheiro e
completamente desamparado – enfiou a mão no bolso em busca de
migalhas de pão – e encontrou 2 bremergrot[27], que valiam
aproximadamente 4 centavos cada um.
Naquele momento, aquilo o deixou tão feliz quanto se tivesse
encontrado um tesouro; reuniu todas as forças que lhe restavam para ir
imediatamente à próxima aldeia, onde pôde trocar 1 grot por um pouco de
cerveja que lhe foi inesperadamente revigorante, pois ele se preparava
para fazer o trajeto de quase 10 quilômetros até Bremen em jejum.
A cerveja que bebeu lhe infundiu novo ânimo, assim como os 4
centavos que ainda tinha no bolso.
É claro que também sentiu fome, mas procurou superá-la, mantendo-
se resignado. – Pelo caminho, um artesão pobre resolveu acompanhá-lo;
ele entrava em cada aldeia e, mendigando, amealhava algo. – E essa
estranha relação produziu uma espécie de prazer em Reiser – esse artesão
pobre, que talvez o invejasse por estar mais bem-vestido, era de fato mais
rico que ele.
À tarde, chegou a Vegesack, onde viu, de estômago vazio, algo inédito:
uma grande quantidade de navios de três mastros, ancorados no pequeno
píer. A visão o regozijou de maneira indescritível, apesar de se encontrar
numa situação deplorável – e, como era culpado dessa situação por
imprudência, não quis deixar transparecer a si mesmo que estava
insatisfeito.
Chegou a Bremen ao entardecer; mas, para entrar na cidade, precisava
ser levado à outra margem do Weser, e para isso teve de pagar exatamente
1 bremergrot – que houvesse economizado justo esse valor lhe pareceu, por
outro lado, um feliz acaso, porque do contrário não teria mais chegado à
cidade, seu maior desejo.
Com o pôr do sol, chegou enfim à porta da cidade, e, como estava
vestido adequadamente e adotava todos os modos de quem está a passeio
– alguém que às vezes para e busca algo ao seu redor e em seguida volta a
dar alguns passos –, deixaram-no entrar sem impedimentos.
De repente, Reiser estava outra vez em uma cidade populosa, na qual
ninguém o conhecia, e, olhando para o rio por sobre o parapeito, sentiu-se
tão abandonado e sozinho em plena rua como se estivesse numa ilha
deserta e desabitada.
Por um momento, ele sentiu algum prazer nesse estado de abandono,
que tinha algo de muito singular e romanesco. – Quando, porém, a
reflexão racional venceu outra vez a fantasia, sua primeira preocupação
foi certamente fazer uso da carta destinada ao comerciante.
Qual não foi, porém, o seu temor quando soube, ao perguntar pelo
criado na casa do comerciante, que ele só chegaria tarde da noite. – Ficou
na rua, não muito longe da casa – e quando sobreveio a escuridão da noite
– e ele não se atreveu a ir a uma estalagem sem ter dinheiro – todas as
ideias romanescas, que antes haviam aliviado o seu estado,
desapareceram, e ele não sentia nada a não ser a cruel necessidade de ter
de passar aquela noite ao ar livre, numa cidade populosa, consumido pela
fome e pelo cansaço.
Quando estava ali, melancólico, olhando perplexo para todos os lados,
aproximou-se um homem bem-vestido, que o observou detidamente,
perguntando-lhe com ar piedoso se ele era estrangeiro – mas Reiser não
teve coragem de dizer ao homem qual era sua situação. Estava decidido,
em todo caso, a passar a noite a céu aberto, o que de fato teria feito se,
após tantas adversidades, não tivesse ocorrido uma feliz circunstância. – O
comerciante havia saído da reunião da qual participava para buscar uma
coisa importante em casa, e, quando soube que alguém havia tentado lhe
entregar uma carta de seu irmão e, não o encontrando, fora passear nas
proximidades do Weser, apressou-se em buscar o portador da carta, cuja
aparência lhe descreveram. Imediatamente reconheceu Reiser, quando
este já perdera toda esperança de encontrar um teto para passar a noite.
Assim que o jovem comerciante viu a letra do irmão, passou a ser
extremamente amável e gentil com Reiser, e logo se ofereceu para levá-lo
a uma estalagem. Reiser lhe revelou então sua verdadeira situação,
certamente com algumas invenções – que fora induzido, contra seu
hábito, a jogar e perdera todo o seu dinheiro. – Tinha vergonha de dizer
que havia levado muito pouco dinheiro para a viagem, porque pensava
que desse modo cairia ainda mais no conceito do jovem, de quem
unicamente podia esperar ajuda.
Mas de repente seu destino adverso mudou – o comerciante lhe
ofereceu imediatamente dinheiro mais que suficiente para que nada lhe
faltasse – e o levou a uma ilustre estalagem onde Reiser, por
recomendação sua, foi muito bem servido e passou a noite tão contente
que todos os seus incômodos do dia foram recompensados.
Alguns copos de vinho que ainda bebeu na companhia do comerciante,
após a fadiga e a fraqueza de todo o dia, provocaram um efeito raro em sua
vitalidade, de modo que entreteve quase todos os que costumavam se
reunir à noite ali com anedotas de H. e ideias divertidas, que não lhe eram
nem um pouco habituais, recebendo aplausos de todas as pessoas daquele
pequeno círculo, entre as quais também se encontrava o sujeito que o viu
triste e abandonado à noite na rua, a única pessoa, entre todos os
transeuntes, a quem um completo estranho, triste e abandonado, pareceu
bastante importante a ponto de se preocupar com ele e lhe dirigir a
palavra. – Reiser inclinou-se assim especialmente a esse homem, pois
conversar e preocupar-se com a situação de um completo estranho,
aparentemente abandonado e precisando de ajuda, é o verdadeiro amor
universal pela humanidade, por meio do qual é possível distinguir o
samaritano piedoso do sacerdote e levita de ocasião.
Dificilmente Reiser passou uma noite mais contente em sua vida, uma
noite na qual, numa cidade estranha, num círculo de pessoas
completamente estranhas, ele se viu respeitado, participou das conversas
e foi ouvido com animadora aprovação.
O comerciante instou-o para que ficasse mais alguns dias em Bremen,
mostrou-lhe as curiosidades da cidade, e justo no lugar em que
inicialmente se sentiu estranho e abandonado, e estivera solitário na rua,
Reiser encontrou tantas pessoas que se interessavam por ele,
conversavam e passeavam com ele, que começou a ter certa dependência
dessa demonstração de cordialidade e amizade tão solícita e generosa, que
passou a ser difícil, após tão pouco tempo, se separar delas para sempre.
Na hora do almoço, comia numa grande mesa, com outras pessoas que
o tratavam, na condição de estrangeiro, sempre com excelente educação –
tratamento ao qual até então ele não estava acostumado. – O comerciante
lhe adiantou tanto dinheiro que Reiser, além de pagar a conta na
estalagem, também pôde voltar para H., mesmo a pé, com comodidade.
E, como nessa viagem tudo que não planejara tinha dado certo, cresceu
nele, a princípio imperceptivelmente, a semente de uma ideia: não mais
esperar por sua sorte na situação limitada em que até então se encontrava,
mas ir atrás dela no vasto mundo aberto para ele.
Reiser havia encontrado, numa cidade estranha, algumas pessoas que se
preocupavam, que simpatizavam com ele e tornavam sua estada
agradável; coisas que nunca aconteceram com ele em H. – Sobrevivera a
aventuras e num curto espaço de tempo experimentara a mais veloz
mudança de sorte – pouco menos de uma hora antes, ainda abandonado
por todo mundo e, logo em seguida, encontrava-se repentinamente num
círculo de pessoas que conversavam e davam atenção a ele.
Não é de admirar que, desse modo, seu pensamento fosse estimulado a
trocar a triste monotonia de sua estada e condições de vida anteriores por
semelhantes distrações – graças às quais, apesar de todos os incômodos
que teve de suportar, sentiu agradavelmente sua alma comovida como
nunca experimentara.
Até a melancolia que sentiu quando as portas da cidade saíram do
alcance da vista – cidade na qual ainda no dia anterior estivera comendo
familiarmente à mesa com algumas pessoas simpáticas –, tirando assim de
seu horizonte até mesmo os últimos vestígios do lugar que se lhe tornara,
em pouquíssimo tempo, tão adorável –, até aquela melancolia teve um
encanto jamais sentido por ele. – Sentiu-se maior porque fizera pela
primeira vez, sem autorização e completamente sem nenhum outro
impulso externo, uma viagem a uma cidade inteiramente estranha, na
qual encontrou em poucos dias mais pessoas que queriam seu bem do que
pudera encontrar em anos em H.
Passou então a tomar muito gosto pela peregrinação – afastava o
cansaço fantasiando milhares de imagens agradáveis – quando escurecia,
contemplava o caminho serpenteante à sua frente, no qual tinha de
manter constantemente os olhos fixos, como um amigo fiel que o guiava. –
Por fim, isso se tornou uma ideia poética para ele – uma imagem, uma
comparação, à qual encadeava milhares de coisas. – “Assim como um
caminhante se mantém no seu caminho; assim o caminho é fiel ao
caminhante – e assim por diante.” – Enquanto caminhava, prosseguia com
esse jogo mental – e a monotonia dos arredores cercados pela escuridão,
bem como do perpétuo caminhar, desaparecia imperceptivelmente para
ele, sem que se aborecesse.
Já estava bem escuro quando chegou à casa dos pais, que, sem dúvida,
se surpreenderam com o fato de Reiser, mesmo passando bem perto deles,
ter ido antes a Bremen e só depois tê-los visitado. – Mas, apesar disso,
dessa vez o receberam com muita alegria, porque tinham ouvido muitas
notícias agradáveis dele.
E Reiser havia recolhido tanto assunto para conversas místicas com o
pai que conversaram por muito tempo noite adentro. Ele procurou
explicar metafisicamente todas as ideias místicas que o pai havia extraído
dos escritos de Madame Guyon, a saber, a totalidade e o uno, a completude
no uno etc., o que lhe foi muito fácil – já que a mística e a metafísica de
fato coincidem na medida em que aquela descobre muitas vezes
casualmente, por meio da imaginação, o que para esta é uma obra da razão
reflexiva. Seu pai, que jamais esperara algo assim de Reiser, parecia
também tê-lo em alta conta e nutrir verdadeiramente certo respeito pelo
filho.
Mesmo assim, no entanto, a tendência à melancolia continuava
preponderante em Reiser. – Estava com sua mãe na porta de casa quando
passou o enterro do filho de um vizinho, e o pai, em luto profundo,
acompanhou o cortejo com o cabelo despenteado e os olhos marejados. –
“Se eles ao menos me levassem assim”, disse a mãe, que sem dúvida não
tivera muita alegria na vida, e Reiser, que ainda podia esperar muitas
alegrias, entrou, no íntimo de seu coração, tão efusivamente em
consonância com esse desejo, como se o maior dos pesares tivesse se
abatido sobre ele.
Dessa vez, ao partir, ele se despediu da mãe e dos irmãos mais
emocionado do que de costume – e marchou de volta para H. – Quando
avistou novamente as quatro torres, que já vira em várias e distintas
circunstâncias da vida, uma sensação de medo o assaltou outra vez, pois
deveria voltar do vasto mundo para o pequeno círculo de todas as suas
relações e vínculos, e tudo que lhe era familiar ali lhe pareceu bastante
enfadonho. – Mas de repente sua alma se alegrou de novo, quando, ao
passar pela porta da cidade, encontrou um cartaz de teatro afixado numa
esquina. – Isso foi uma surpresa muito agradável – assim como três anos
antes, seu primeiro movimento foi se dirigir ao castelo, onde ficava o
teatro e estaria afixado o programa principal com a lista dos personagens.
– Estavam encenando Clavigo, Brockmann interpretava Beaumarchais,
Reinicke interpretava Clavigo, a srta. Ackermann mais velha (a mais
jovem já estava morta) interpretava Maria, Schröder interpretava Dom
Carlos, a sra. Reinicken era a irmã de Maria, Schütz era Buenko, e Böheim,
o amigo de Beaumarchais.
A distribuição de papéis nessa peça era primorosa, mesmo no que se
referia aos papéis secundários mais insignificantes. Reiser conhecia todos
esses excelentes atores. Naturalmente ficou extremamente curioso para
ver mais uma representação de uma peça que ainda não havia lido, mas
cujo autor sabia que era o mesmo dos Sofrimentos do jovem Werther!
Essa circunstância casual, associada à recordação das aventuras que
tivera durante a viagem, formou em sua cabeça uma estranha ideia
romântica, que alguns anos mais tarde viria a ter enorme influência em
sua vida. – Teatro e viagem se tornaram, sem que se desse conta, as duas
ideias dominantes em sua imaginação – o que esclarece também a decisão
que tomou posteriormente.
Mais uma vez, era rara a noite em que não ia ao teatro – o que lhe
encheu novamente a cabeça com tantas ideias teatrais que já começava a
perder o gosto por suas verdadeiras ocupações, a aplicação aos estudos e
ao ensino – pois dedicava quase o seu dia inteiro às aulas particulares – e
já não tinha escrúpulos em perder uma aula de quando em quando, fosse
como aluno, fosse como professor, dizendo que era apenas uma aula.
Nessa época, Os gêmeos, de Klinger, foi levada ao palco pela primeira
vez, representada, sem dúvida, com toda a arte possível, pois Brockmann
fazia o papel de Guelfo; Reinicke, o do velho Guelfo; a sra. Reinicke, a da
mãe; a sra. Ackermann, o de Camila; Schröder, o de Grimaldi; e Lambrecht,
o do irmão de Guelfo.
Essa peça assustadora teve um efeito extraordinário em Reiser – e
influenciou todos os seus sentimentos. – Guelfo acreditava ter sido
oprimido desde o berço. Reiser pensava o mesmo de si – ao ver a peça,
vieram-lhe à mente, tanto quanto podia recordar, todas as humilhações e
ofensas a que estivera incessantemente exposto desde a mais tenra
infância. – Esqueceu o filho do príncipe e todas as circunstâncias de vida
de um filho de príncipe, identificando-se apenas com o oprimido Guelfo. –
A risada amarga de si mesmo, de Guelfo desesperado, penetrou nos
sentimentos mais íntimos de Reiser – com ela, lembrou-se de todos os
péssimos momentos em que, realmente à beira do desespero, deu essa
mesma risada – enquanto observava seu próprio ser com desprezo e
repulsa, soltando muitas vezes com terrível deleite uma retumbante
gargalhada de escárnio.
A repulsa de si mesmo que Guelfo sentiu quando estilhaçou o espelho
em que se mirou após o homicídio – desejando apenas dormir – dormir –
pareceu tão verdadeira a Reiser, como se tivesse sido tirada da própria
alma, constantemente tomada por semelhantes fantasias sombrias, que
entrou inteiro no papel de Guelfo e durante algum tempo conviveu com
todos os seus pensamentos e sentimentos.
Enquanto a companhia de Schröder se apresentava na Ópera Real,
começaram as férias de verão, época do ano em que os primeiranistas
costumavam encenar uma peça publicamente.
Reiser não teve dúvidas de que dessa vez lhe ofereceriam um papel,
pois, desde que discursara no aniversário da rainha, era um dos alunos
mais reputados entre os colegas da escola e por isso não acreditava que
empreenderiam algo sem ele.
Por isso ficou muito espantado quando percebeu que haviam
começado sem ele, já tinham decidido as peças a serem encenadas e não
tinham lhe oferecido nenhum papel. – Como agora tinha realmente
muitos amigos e muitos partidários entre seus colegas de escola, não
conseguiu entender de jeito nenhum esse descaso, até que de fato notou
que havia ali uma tal inveja dos papéis e uma batalha tão angustiante na
disputa que cada um tinha de se virar por conta própria, e quem não se
impusesse à força também não era chamado.
Mais tarde em sua vida, Reiser relembraria muitas vezes essa
representação, refletindo como nessas aspirações infantis por algo tão
insignificante – um papel numa peça encenada em H. pelos primeiranistas
– se revelava todo o jogo das paixões humanas, como se fosse um assunto
da mais alta importância; e como a disputa de um com o outro, como
vencer e ser vencido, era, em escala menor, uma imagem bastante fiel da
vida humana. Foi como se Reiser visse todas as suas experiências futuras já
preparadas ali.
Isso acontecia, evidentemente, porque a organização da peça e a
distribuição de papéis eram deixadas inteiramente ao critério dos
primeiranistas. – Com isso, o espírito se tornava republicano – mais forças
conseguiam se desenvolver – empregavam-se artimanhas e astúcia, e
faziam-se intrigas, tal como ocorre com a eleição de um membro do
Parlamento – pois sobre esses assuntos públicos era preciso angariar
corretamente os votos para eleger alguém a um cargo público, mesmo que
fosse apenas um líder para organizar, por exemplo, um cortejo com
música e tochas.
Quando menos esperava, Reiser mais uma vez se viu de repente
apartado daquilo a que todo o seu coração estava mais do que nunca
apegado, e em razão do que já tinha suportado tantas coisas. – Procurou se
consolar com a ideia de que as pessoas não conheciam seu verdadeiro
valor, de que seus colegas de escola eram injustos com ele – mas a longo
prazo isso não bastou. – O que mais o magoava era que seu amigo W., que
fazia parte do grupo de atores, sabendo do quanto seu coração dependia
do teatro, não lhe dissera nada.
Mas W. acreditava que seria desfavorável à própria imagem se sugerisse a
participação de alguém que não havia chamado atenção de ninguém mais além
dele mesmo. – No mais, não havia má intenção de W. em relação a Reiser,
pois, afora esse ponto, continuava sendo seu amigo tanto quanto antes. –
Outras pessoas talvez tenham experiências semelhantes em diversas
ocasiões da vida. – É muito difícil manter a amizade com alguém contra
quem todos se põem contra – começa-se a não confiar mais direito no
próprio julgamento, que parece necessitar de um apoio além de si. Por
menor que seja uma questão, é fácil ser o primeiro a apoiá-la, mas
receamos ser o primeiro a levantá-la, e a amizade precisa ter alcançado
um nível muito alto para não sucumbir a uma política que vem de encontro
a ela.
W. era, além do mais, alguém muito sincero – e quando Reiser lhe
perguntou o que estava sendo tramado entre ele e alguns colegas, que
estavam sempre com ele, W. lhe deu primeiro a entender, sem nenhum
rodeio, que não queria lhe dizer nada – Reiser continuou insistindo em saber
– e, para sair do embaraço, W. disse que na sua opinião aquilo não tinha a
menor importância e seria muito difícil de ser realizado etc.
Não foram poucas as vezes que Reiser viu confirmada em sua vida
posterior uma experiência como essa que viveu pela primeira vez com seu
amigo W.
Além de Reiser, aquele que mais se destacou pela inteligência naquela
geração de primeiranistas em H. foi I., já mencionado como alguém que se
tornaria um dos dramaturgos mais populares, e de quem Reiser já tentara
se aproximar alguns anos antes. – Mas naquela época a diferença entre
suas condições de vida havia impedido essa aproximação.
Porém, quando Reiser tinha começado a se destacar, I., de sua parte,
aproximou-se dele – e eles conversavam muitas vezes, em suas
caminhadas solitárias, sobre o destino deles no mundo. I. também vivia
totalmente no mundo da fantasia e concebera uma imagem muito
estimulante da agradável situação de um pregador do campo – por isso
estava decidido a estudar teologia e entretinha Reiser quase todo o tempo
com a descrição da tranquila felicidade doméstica que desfrutaria em sua
aldeiazinha, no seio de uma pequena paróquia que o amaria. – Reiser, que
conhecia esse jogo da fantasia por experiência própria, profetizou-lhe que
para o próprio bem jamais realizaria essa decisão: pois, tornando-se
pregador, ele viria a ser provavelmente um grande hipócrita –
representaria apenas um papel, com o maior ardor do afeto e com toda a
força da declamação. – Um sentimento recôndito dizia a Reiser que esse
também era o seu caso, e por isso conseguiu passar tão bem aquele sermão
no amigo.
De fato, I. não se tornou pregador – o estranho, porém, é que, mesmo
não podendo realizar em sua vida a ideia de desfrutar uma tranquila
felicidade doméstica, ideia que ele pronunciou tantas vezes perante Reiser
naquela época, ainda assim ela não foi perdida, mas realizada em quase
todos os seus trabalhos dramáticos.
Mas, como naquela época os atores voltaram a H., todas aquelas
atraentes fantasias sobre a tranquila felicidade na aldeia foram logo
esquecidas, e tanto para I. como para Reiser a ideia dominante passou a
ser novamente o teatro.
I. era então um dos principais membros da companhia que se reunira
para a apresentação da peça, mas ele também se esquecera de seu amigo
Reiser.
Essa desatenção daqueles que Reiser ainda considerava seus melhores
amigos, num assunto que lhe falava tão diretamente ao coração, foi
extremamente indelicada para ele. – Falou sobre isso com I., que se
desculpou dizendo que não pensava que Reiser ainda se interessasse por
teatro. – E o que deixou Reiser mais magoado foi saber que, na distribuição
de papéis, não havia inimigos na companhia que gostariam de excluí-lo,
mas que sequer haviam pensado nele, e seu nome não fora sequer
mencionado.
Quando enfim declarou que queria fazer parte da companhia, ninguém
se opôs, desde que se contentasse com um dos papéis que ainda estavam
sobrando. – Teve de tomar uma decisão quanto a isso, e ainda conseguiu,
na primeira peça encenada, O desertor por amor filial, o papel de Peter,
certamente não o melhor, mas que preferiu aceitar a não ter papel
nenhum.
A narrativa dessas aparentes ninharias não é desimportante, pois se
verá a seguir que elas tiveram enorme influência em sua vida, e que a
distribuição dos papéis nas peças que representou com seus colegas de
escola foi, de algum modo, uma imagem de parte de sua vida futura.
Ele não queria parecer intrometido e, no entanto, não se sentia forte o
bastante para suportar ser negligenciado.
Tornar-se membro da companhia teatral o induziu a muitos gastos que
superavam seus rendimentos e a negligências que os reduziam. – De vez
em quando, tinha de convidar a companhia para ir a sua casa, como todos
faziam – e, por causa dos frequentes ensaios, perdeu muitas das aulas que
ministrava. – Além disso, sua cabeça estava constantemente repleta de
fantasias – já não tinha disposição para refletir de maneira séria e
perseverante nem para se dedicar aos estudos.
Em sua cabeça já se formavam projetos literários – queria escrever um
drama intitulado O perjúrio. Já vislumbrava o cartaz da peça em que
constava o seu nome – toda a sua alma estava tomada por essa ideia – e
frequentemente caminhava como um alucinado enfurecido de lá para cá
em seu quarto, enquanto cogitava e sentia todas as atrozes e terríveis
cenas de sua tragédia. – O perjuro se arrependeu tarde do falso juramento,
mas este já tinha provocado assassinato e incesto, quando ele, movido por
remorso incessante, estava prestes a reparar o perjúrio, sacrificando toda
a fortuna que havia ganhado com seus atos – e o pensamento que mais
lisonjeava Reiser era que, se conseguisse terminar a peça enquanto ainda
era um estudante, as expectativas em relação a ele seriam imensas – e isso
lhe traria uma fama ainda maior.
Já aos 9 anos, quando frequentava a escola de caligrafia, ele planejara
com um de seus colegas de escola escrever um livro juntos – e naquele
tempo os dois já se gabavam da ideia de que isso lhes daria fama eterna. –
O jovem que à época fez o plano do livro com ele, no qual deveriam contar
a história de vida de ambos, tinha uma cabeça muito boa, mas depois, por
dedicação exagerada aos estudos, arruinou-se e morreu aos 17 anos.
Com esse jovem Reiser algumas vezes representava peças antes da
aula, enquanto esperavam o professor, e sempre encontrava um prazer
indescritível nesse divertimento – embora naquele tempo ainda não
tivesse visto nenhuma peça de teatro e delas tivesse apenas uma vaga
ideia pelo que lhe contavam. – Mas, quanto à composição do livro, essa era
já àquela época uma ideia sublime para ele – um livro era uma coisa tão
sagrada e importante que ele julgava que um mortal mal seria capaz de
criar um, muito menos um mortal vivo.
Aliás, muito tempo depois, ele sempre estranhava quando ouvia que as
pessoas que tinham escrito alguma obra famosa ainda viviam, e também
comiam, bebiam e dormiam, como ele.
Quando, aos 17 anos, leu pela primeira vez os Escritos de Moses
Mendelssohn, aquele nome e o velho busto de Homero no frontispício,
tudo se juntou para produzir nele uma estranha ilusão, como se Moses
Mendelssohn fosse algum sábio antigo, que vivera séculos antes e cujos
escritos tivessem sido traduzidos para o alemão – durante muito tempo
ele teve de lidar com essa ilusão até que, certa vez, de maneira casual,
ouviu seu pai dizendo que Mendelssohn ainda estava vivo, era um judeu
de quem toda a comunidade judaica tinha muito orgulho, e que, ele
mesmo, o pai, tinha visto o próprio em Pyrmont e sabia como ele era etc.,
o que produziu de repente uma enorme mudança nas ideias de Reiser –
suas ideias do antigo e do moderno, do presente e do passado se
embaralharam de modo peculiar. – Teve de se esforçar muito para se
habituar à ideia de que um homem que sua imaginação durante muito
tempo havia colocado em séculos passados ainda estava vivo. Pensou que
um homem assim era uma divindade que caminhava entre os homens – e
seu maior desejo era um dia estar cara a cara com homens como esses,
para conversar com eles.
Procurou então expressar seu pensamento de muitos modos; começou
a ter esperança de conseguir um dia criar uma obra intelectual que lhe
abrisse caminho por aqueles círculos reluzentes e lhe desse o direito de
conviver com seres que até então considerava serem muito superiores a
ele. – E disso resultou principalmente a obsessão de ser escritor, que já
naquela época começava a atormentá-lo dia e noite.
Merecer fama e receber aplausos havia sido desde sempre seu maior
desejo – mas naquele tempo o aplauso não podia estar muito longe –
queria recebê-los como se fosse de mão beijada, e, como tinha uma tendência
natural para a preguiça, esperava colher sem semear. – E era por isso que
o teatro sem dúvida atraía o seu desejo de modo mais vigoroso. – Em
nenhum lugar, salvo no teatro, podia-se contar com esse aplauso imediato.
– Observava um Brockmann, um Reinicke, sempre com certa veneração
quando os via caminhando pela rua, e o seu maior desejo era existir na
cabeça das outras pessoas do mesmo modo como eles existiam na sua. –
Experimentar, um após outro, todos aqueles comoventes sentimentos de
raiva, vingança, generosidade, como aqueles atores, diante de um grande
número de pessoas, que em outras ocasiões jamais ou raramente são
reunidas, e como que transmiti-los a cada nervo do espectador, tudo isso
lhe parecia um campo de atuação que não tinha igual em termos de
presença viva no mundo.
Mas acabou entrando muito tarde na companhia de teatro para
conseguir o papel que desejava, o que o feriu extraordinariamente. – No
entanto, voltou a alegrar-se quando ganhou um papel, pois recebeu em
compensação o encargo de escrever, para O desertor por amor filial, um
prólogo que seria publicado com a lista de personagens.
Agora esperavam que os atores profissionais partissem novamente
para então representar também na grande Ópera Real; a autorização tinha
sido obtida pelos alunos da primeira série – de modo que dessa vez os
exercícios dramáticos se tornaram mais notáveis que nunca. Toda a
organização estava a cargo dos jovens – e, como fazia parte da companhia,
Reiser também participou de todas as discussões e debates públicos, algo a
que se habituara, e que por isso lhe parecia estranho – era como se não
tivesse direito de ser levado em consideração.
Embora não tivesse motivo alheio a si mesmo para isso, continuava
amando a solidão – e suas horas mais prazerosas tinham lugar quando
cruzava as portas da cidade e rumava até um moinho de vento, na
pequena região, em cujo entorno morros e vales se alternavam
romanticamente, e ali, no jardim, sob um caramanchão, ele pedia uma
xícara de leite e lia – ou escrevia em seu caderno de notas. – Muitos anos
antes esse já era um de seus passeios preferidos, e muitas vezes também
estivera ali com Philipp Reiser.
Quando Os sofrimentos do jovem Werther foi publicado, ao ler as
encantadoras descrições de Wahlheim, ele se lembrou imediatamente
desse moinho de vento e das muitas horas doces que ali desfrutara
sozinho.
Diante da porta nova da cidade havia um pequenino bosque cultivado,
com tantas curvas e caminhos tortuosos que, quando se perambulava por
ele, parecia seis vezes maior do que era: ao seu redor era possível avistar
um prado verde, e ao longe, atrás das altas árvores isoladas entre as quais
Reiser costumava passear tão prazerosamente, e atrás do pequeno bosque
onde tantas vezes acampara, reluzia o rio, cujas margens se tornaram
familiares para ele pelos frequentes passeios que fizera em muitas e
distintas situações de sua vida. – Frequentemente, ao se sentar num banco
no limite do pequeno bosque e olhar para aquela vastidão, surgiam diante
dele todas as cenas de sua vida, a aflição e a preocupação com que ali se
debatera em tantos dias de verão sufocante, e essa lembrança despertava
nele uma silenciosa melancolia, à qual se entregava com prazer. Podia
também ver ao longe a ponte sobre o riacho, na qual estivera tantas horas
sentado, lendo muito e escrevendo poesia. – Como o bosque ficava nos
arredores da cidade, muitas vezes à tarde, quando a lua despontava, ele
costumava passear ali, e siegwartizava um pouco, sem que tivesse lido o
Siegwart, que só seria publicado um ano depois.
Nesse lugar, um ano antes, aos 19 anos, comemorou seu aniversário
numa tarde gelada de setembro – e fez sua promessa mais sagrada:
aproveitar sua vida futura melhor do que a passada.
Naqueles passeios solitários, compôs o prólogo que começava, como
seu discurso, com um que; pois Reiser estava realmente apaixonado pelo
suave tom do que, que parecia abarcar tal abundância de ideias e encaixar
tudo o que vinha a seguir – que não pôde imaginar um início mais
melodioso, começando o prólogo assim:

Que deusa derrama encantos


No coração do homem sensível?
Que, plena de compaixão, faz muitas vezes surgir
Cenas de suave alegria diante de seu olhar,
E cultiva os pequenos e lindos bosques
Com suave e triste melancolia?
Ela é a Fantasia do céu –
Muitas vezes caminha com ele
Pelas veredas de flores, pelos vales silenciosos,
E lhe mostra a inocência nas casinhas,
E as alegrias que Deus lhe deu etc.

Esse prólogo foi impresso como um livreto, que também trazia a lista de
personagens, e no título constava escrito por Reiser, recitado por I. – Reiser se
viu então novamente publicado e, além disso, recebeu de seus colegas de
escola a incumbência de convidar o príncipe para ver a peça; convite que
fez com a espada na cintura e vestido com sua roupa de gala, a mesma que
usara no discurso.
A nobreza e os notáveis da cidade foram pessoalmente convidados
pelos jovens, e Reiser teve assim a oportunidade de ver de perto, tal qual
quando discursara, uma parte da alta sociedade que antes admirava
apenas a distância – viu que os ministros, condes e nobres, com os quais
havia conversado cara a cara, para espanto seu, não eram seres tão
diferentes dele, mas pessoas comuns, cujos comentários continham
muitas vezes algo de esquisito e ridículo, o que fazia desaparecer a aura
que os envolvia tão logo os escutássemos falar e conversássemos
proximamente a eles.
Por mais notável que parecesse agora a condição de Reiser,
caminhando pela rua para visitar as primeiras casas, essa condição podia
ser muito bem definida como uma miséria notável – pois a péssima
proporção de suas despesas com seus ganhos tornava suas condições cada
vez mais desconfortáveis e sua situação mais preocupante. – Além disso,
afligiam-no a monotonia em que vivia e o fato de ainda não ter nenhuma
perspectiva de entrar dignamente na universidade – também o aplauso
imediato que o ator pode receber se tornara tão importante e tão almejado
por ele que sua inclinação passou a tender mais para o teatro do que para
a universidade.
Foi de fato a época mais notável do teatro na Alemanha, e não era de
admirar que a ideia de seguir uma carreira tão brilhante como a teatral
lançasse fagulhas na cabeça de muitos jovens e inflamasse sua fantasia – à
época, esse foi também o caso da companhia dramática em H. – tendo
reunido os talentos mais extraordinários, um Brockmann, um Reinicke,
um Schröder, para uma finalidade artística, ela colhia diariamente os
louros, e não era realmente nada desonroso emular esses modelos.
Ademais, para alcançar essa finalidade, não era preciso passar antes
três anos na universidade. – Depois, Reiser foi tomado pelo anseio
irresistível de viajar, que se apoderara dele desde sua peregrinação
aventureira até Bremen – e a ideia de se afastar de suas atuais
circunstâncias, nas quais mesmo as melhores coisas só davam certo pela
metade, e procurar sua felicidade no vasto mundo, começou pouco a
pouco a se tornar imperiosa nele – mas isso era ainda mero jogo de sua
fantasia; e Reiser não estava verdadeiramente decidido a realizar essa
ideia.
Nessa época, seu pai visitou-o em H., e Reiser pôde pela primeira vez
acolhê-lo em seu aposento, que era muito bem mobiliado e lindamente
revestido com papel de parede. – Procurou então descrever ao pai a parte
mais agradável e vantajosa de sua situação, e lhe apresentou a encenação
da peça de teatro como uma coisa por meio da qual, tanto pelo prólogo
impresso como pelo convite que ele mesmo fizera ao príncipe, atraía a
atenção para si, e, como na ocasião do discurso no aniversário da rainha,
podia novamente se fazer notado.
O pai de Reiser exprimiu então uma ideia muito importante e
verdadeira: as oportunidades de aparecer publicamente para vantagem
própria, como no discurso feito no aniversário da rainha, deveriam ser
consideradas de algum modo uma vitória a ser perseguida, já que eram raras.
Quando o pai foi embora, Reiser o acompanhou por uma hora depois
de saírem pela porta da cidade, e, quando chegaram ao lugar em que o pai
o amaldiçoara, permaneceram inesperadamente em silêncio – só depois
Reiser lembrou que era o mesmo lugar – até ali foram conversando sobre
os assuntos mais importantes e sublimes, em que a mística e a metafísica
coincidiam, e o pai de Reiser selou uma aliança com o filho. – A partir de
então ambos se esforçariam para se aproximar, mais e mais, da grande
meta de união com o supremo ser pensante; e, em seguida, justamente no
mesmo lugar em que antes o amaldiçoara, ele, com a mão sobre o filho,
concedeu sua bênção.
Reiser voltou para casa muito bem-disposto – e permaneceu assim até
que uma nova distribuição de papéis para as próximas peças a serem
encenadas, além de O desertor por amor filial, excitou novamente sua
fantasia, despertando as ideias romanescas que suas reflexões sensatas
haviam arrefecido.
Ainda foram encenadas as peças Clavigo, O homem pontual e O pajem. –
Em O desertor por amor filial, Reiser teve de se contentar com um papel
secundário, e agora esperava obter pelo menos o papel de Clavigo – como
todos os desejos de seu coração estavam fixados no teatro, ansiava por
esse papel – mas não lhe deram o papel, que ficou com um ator que
evidentemente representava pior do que Reiser.
Reiser se sentiu tão ofendido com isso que foi empurrado numa espécie
de melancolia real. – A quem isso pareça improvável e antinatural, que
leve em conta que todo o desejo de Reiser, alimentado por ele durante
anos, chegava agora ao ponto decisivo; poder desenvolver seu talento em
público diante dos habitantes de sua cidade natal, e mostrar o quão
profundamente sentia o que dizia e o quão poderosamente estava em
condições de dizê-lo, pela voz e expressão – excitar esses sentimentos
arrebatadores em milhares de pessoas, assim como Reinicke, que
representou Clavigo, excitara-os nele, era para Reiser uma ideia tão
grande, altiva, e dava tanto enlevo à alma, como talvez jamais papel algum
fora para um mortal numa tragédia. – Nele, todos os desejos, alimentados
havia mais de cinco anos, teriam sido satisfeitos para além de suas
expectativas. – Pois o auditório estava radiante e lotado como nunca. – O
teatro, que abrigava alguns milhares de pessoas, estava tão cheio que
ninguém achava mais lugar, e entre os espectadores se encontrava o
príncipe, como toda a nobreza, o clero e os letrados e os artistas da cidade.
– Apresentar-se publicamente, com toda a intensidade de sentimento e
expressão que até agora ele conseguira desenvolver por si mesmo, diante
daquele auditório e ainda mais numa cidade que era praticamente sua
cidade natal, em que fora educado e vivera tantos reveses – poderia haver
algo mais desejável em sua situação?
Mas desde Sócrates moribundo parecia que o gênio da arte teatral estava
bravo com ele.
Pediu teimosamente que lhe dessem o papel de Clavigo, mas de nada
adiantou; seu rival venceu.
Seu lado mais vulnerável foi assim atingido, no ponto mais delicado de
sua vida – o que lhe amargou todo o resto. – Ninguém que perdesse o
papel de Clavigo teria sofrido tanto quanto ele por não ter conseguido o
papel. – Como a verdadeira situação de sua vida naquele momento lhe era
bastante obscura, era como se uma espécie de véu tivesse passado sobre
todo o restante dela; todas as coisas foram encobertas por um luto
melancólico – buscou, como pôde, novamente a solidão e começou a
descuidar de sua aparência.
Enquanto isso, Philipp Reiser fazia pianos em seu aposento sem
participar daquela farsa. – Desde que se vinculara à companhia de teatro,
Anton Reiser raramente o visitava – mas, agora que poucas coisas lá saíam
como ele desejava, ele visitava Philipp com maior frequência, entregando-
se à sua melancolia sem lhe dizer o verdadeiro motivo – pois não queria de
modo algum admitir a si mesmo que tudo era simplesmente por não ter
conseguido o papel de Clavigo, mas preferia persuadir-se de que era uma
consequência de sua observação da vida humana.
No entanto, desde o momento em que não conseguiu o papel de
Clavigo, sua estada em H. se tornou maçante; começou a ficar inconstante
e desleixado. – Seu mais ansiado desejo de tantos anos tinha de ser
realizado, não importava onde fosse – ele tinha de realizar em algum lugar
tudo o que até agora tinha sido amadurecido em sua fantasia por uma longa
e persistente leitura de peças, e por sua já duradoura inclinação para o
teatro.
Quando estavam ensaiando Clavigo, Reiser se escondia num dos
camarotes. – Enquanto I., como Beaumarchais, esbravejava no palco,
Reiser, estirado no chão do camarote, esbravejava consigo mesmo, e sua
raiva foi tanta que ele acabou cortando o rosto com cacos de vidro
espalhados pelo chão e arrancando os cabelos. – A iluminação, os olhares
de inumeráveis espectadores, cravados apenas nele, e ele expressando as
forças mais íntimas de sua alma diante de todos aqueles olhares
inquisitivos e atuando com o estremecimento de seus nervos sobre os
nervos dos espectadores – tudo isso se lhe tornou presente naquele
instante – e ele deveria ser um nada, mero espectador perdido na multidão,
como era agora, enquanto o idiota que representava Clavigo atraía toda a
atenção para si, atenção que era de direito dele, por ser muito mais
sensível.
Depois de Reiser ter passado por todas aquelas situações em que se
encontrava havia anos, o papel de Clavigo se tornara para ele como que a
finalidade de sua vida, a qual, em razão de milhares de situações
opressivas, fora então completamente subjugada ao domínio da fantasia,
que agora queria exercer seus direitos sobre ela. – – A corda fora
tensionada ao máximo e então arrebentou.
Quando esse horrível ensaio terminou, Reiser se encontrou outra vez
totalmente sozinho, sem amigo, sem alguém que cuidasse dele. – Queria
lamentar sua aflição e foi até I., que, daquele momento em diante, de
maneira mais forte do que nunca, se vinculou a ele, porque também sentia
a mesma necessidade que levara Reiser a procurá-lo.
A fantasia de I. fora também esticada ao máximo, e sua inclinação para
o teatro se tornara preponderante, levando-o a precisar de alguém a quem
pudesse revelar seus mais secretos desejos e sua aflição.
O pai e o irmão mais velho de I. temiam, não sem razão, que a
inclinação ao teatro pudesse ser alimentada em demasia com a grande
aprovação que recebeu em sua apresentação e acabasse se tornando
predominante, e assim o proibiram de participar de exercícios dramáticos,
contra o que ele levantou todas as objeções possíveis, e nesse momento
ainda estava em negociação com seu pai. – I. fez de Reiser seu confidente
contando-lhe o plano de se dedicar totalmente ao teatro, assim como
antes falara sobre sua decisão de se tornar um pregador no campo. – Os
papéis que I. já representara eram o do desertor em O desertor por amor
filial e o judeu em Diamante, encenado como epílogo ao Desertor. I.
representara tão magistralmente o judeu que depois estreou com o
mesmo papel diante de Eckhof, inaugurando sua carreira teatral – assim
como representara de modo sublime o judeu na comédia, também o fez
com Beaumarchais na tragédia, e sua representação foi realmente tão
magnífica que era como estar ouvindo e vendo o próprio Brockmann; e
agora o pai queria tirar seu prazer de se apresentar em público nesse
papel. – I. obrigou Reiser a passar a noite com ele em seu quarto, onde se
perderam, até adormecerem, em doces sonhos sobre a felicidade que a
condição de ator lhes proporcionaria.
Agora os dois eram praticamente inseparáveis, estavam juntos dia e
noite. – E, quando saíram numa manhã quente, mas nublada, lado a lado
pelas portas da cidade, I. disse que o tempo estava bom para passear – e o
clima parecia também tão propício para viajar, o céu tão próximo da terra,
os objetos ao redor tão escuros, como se a atenção quisesse como que se
fixar apenas no caminho a ser percorrido. – A ideia na mente de ambos se
tornou tão viva que por muito pouco não se puseram em marcha – mas I.
ainda queria, se possível, representar seu Beaumarchais em H. – e
voltaram para a cidade. – E, mesmo com as muitas solicitações de I. de um
papel para Reiser, foi impossível que ele conseguisse o papel de Clavigo –
em vez disso, o ator que fazia Clavigo finalmente lhe cedeu o papel de
príncipe em O pajem – e, em O homem pontual, Reiser conseguiu o papel do
mestre Blasius.
Reiser estava melancólico por não poder representar Clavigo, e I. por
não poder mais fazer teatro – mas ambos procuraram se convencer de que
estavam entediados com a própria vida, e, certa noite, carregaram duas
pistolas com as quais passaram quase a noite inteira se divertindo
enquanto improvisavam tragicamente o ser ou não ser.
Mas, para Reiser, o tédio de viver ia se tornando tão profundo a ponto
de não se mexer quando I. lhe apontava a pistola carregada e punha o
dedo no gatilho para disparar, enquanto Reiser fazia a mesma coisa com I.
No dia seguinte, ao visitar Philipp Reiser, teve uma discussão mais
séria com ele. – Não dormira a noite, uma letargia tola transparecia em seus
olhos fundos, o tédio de viver pousou em sua testa, toda a energia de sua
alma desapareceu – ele disse “bom dia!” para Philipp Reiser – e depois
ficou ali em pé como uma porta.
Philipp Reiser, que tantas vezes já o tinha visto em estado de
prostração, mas jamais nesse grau, começou a temer o que poderia se
passar com o amigo – propôs seriamente a Anton matá-lo com um tiro, antes
que ele se tornasse um homem abjeto e mau, como era o caso naquele
momento. – Não era uma boa circunstância para se brincar com Philipp
Reiser, cujos conceitos eram também românticos e exagerados. – Anton
Reiser recusou então imediatamente esse tratamento ao menos por ora e
lhe garantiu que se recuperaria mais uma vez de sua prostração atual.
Nesse meio-tempo, sua situação começou a piorar cada vez mais –
como os gastos requeridos por sua participação na representação teatral
eram superiores aos seus ganhos, e como faltava às aulas particulares que
deveria dar, foi afundando em dívidas e logo começou a lhe faltar para as
necessidades mais básicas da vida, porque não aprendera a arte de viver
com crédito.
Seu vestuário para o príncipe em O pajem, que ele mesmo teve de
adquirir, assim como todos os atores faziam, custou tanto quanto suas
despesas de um mês inteiro – e mesmo assim não conseguiu alcançar seu
objetivo de se mostrar num papel trágico de destaque, o que fora desde
sempre seu verdadeiro desejo.
Numa noite, foram encenadas três peças seguidas: a primeira foi
Clavigo; a segunda, O homem pontual; e, por último, O pajem.
Durante as encenações de Clavigo, Reiser procurava tanto quanto
possível entorpecer seus sentidos e tapar os ouvidos no camarim contíguo
ao palco – cada som que ouvia vindo da peça era uma estocada que lhe
atravessava a alma – pois era exatamente ali que realmente fracassava o
edifício de sua fantasia, construído durante anos, e ele era obrigado a estar
presente sem nada poder fazer para impedir – procurando se consolar
com os dois papéis que ainda tinha para representar e concentrar toda a
sua atenção nisso, mas em vão. Enquanto o papel de Clavigo era
representado realmente por outro diante da plateia numerosa, ele se sentia
como quem vê todos os seus bens serem consumidos pelas chamas sem
chance de salvação – até o último dia manteve a esperança de conseguir
esse papel, custasse o que custasse – mas agora tudo estava acabado.
E quando tudo realmente acabou, e encerraram as encenações de
Clavigo, Reiser ficou um pouco mais aliviado. – Mas continuava com um
espinho no peito. Fez então o papel do mestre Blasius em O homem pontual,
em que I. era o homem pontual, e foi muito aplaudido. – Mas não era o
aplauso que tinha desejado. Não queria provocar o riso, mas comover a
alma com sua representação. Para ele, o príncipe em O pajem era
realmente um papel nobre, mas muito leve – e, além do mais, a
representação da peça foi de certo modo um fracasso – pois, quando
Clavigo e O homem pontual terminavam, a maioria dos espectadores ia
embora, porque já era muito tarde, e não ficava ali nem uma terça parte
para aguardar O pajem. Esse fato e o pensamento torturante sobre Clavigo,
que não conseguia reprimir, eram o motivo pelo qual Reiser representava
o príncipe em O pajem com muito descuido, de modo muito pior do que
teria sido capaz – e, quando tudo terminava, voltava insatisfeito e triste
para casa. – Continuava com o sonho de se apresentar no teatro num
papel intenso e comovente, custasse o que custasse. O fato de pela
primeira vez lhe ter sido negado esse prazer só veio a estimular o seu
desejo com ainda mais força – e como podia esperar com mais certeza a
realização de seu supremo desejo do que transformando em verdadeira
ocupação de sua vida aquilo a que todo o seu coração já estava afeiçoado?
– Por isso, em vez de ser reprimida, a ideia de dedicar-se ao teatro ganhou
ainda mais força nele.
Mas assim como se procura sempre criar os motivos mais prementes para
aquilo que se deseja fazer, a fim de justificar seu comportamento, perante si
mesmo – assim também Reiser procurou apresentar a quitação das
pequenas dívidas que fora levado a fazer como uma coisa tão impossível e
sua revelação como algo tão ruim que já pensava, em razão disso, ter de se
afastar de H. – Mas seus reais motivos eram o impulso irresistível de mudar
a sua situação e o desejo de se apresentar de algum modo em público, o
mais rápido possível, para angariar fama e aplauso, e para isso nada lhe
parecia mais oportuno do que o teatro, onde não se pode imputar vaidade
a alguém por querer se mostrar, todas as vezes possíveis, para proveito
próprio, mas onde a busca pelo aplauso é, ao contrário, privilegiada.
Enquanto isso, suas pequenas dívidas também começaram a pressioná-
lo, somando-se ainda algumas humilhações, que tornavam muito
desagradável sua estada um pouco mais longa em H.
Uma dessas humilhações foi quando um jovem fidalgo, a quem Reiser
dava aula e com quem muitas vezes costumava conversar ainda um pouco
no quarto dele, disse-lhe que ele tinha a honra de se despedir antes que o
próprio Reiser tivesse se despedido. – Era muito provável que realmente
acreditasse que Reiser tivesse feito menção de sair e havia sido um pouco
obsequioso com o cumprimento de despedida – mas mesmo essa
obsequiosidade foi tão terrivelmente chocante para Reiser, e todo o seu ser
se sentiu de uma só vez tão desencorajado, que, quando já tinha saído,
permaneceu um tempo em silêncio, os braços caídos junto ao corpo –
aquele obsequioso eu tenho a honra de despedir-me do senhor se juntou de
repente em sua mente ao garoto idiota! do inspetor do seminário, ao não me
refiro ao senhor! do comerciante, ao par nobile Fratrum dos primeiranistas e
ao isso é uma verdadeira idiotice! do reitor. – Sentiu-se aniquilado por um
momento, todas as forças de sua alma estavam paralisadas. – O
pensamento de ter sido importuno, mesmo que por um momento, caiu como
uma montanha sobre ele – livrar-se daquela existência tão incômoda aos
outros foi o que gostaria de ter feito naquele instante.
Saiu em seguida pelas portas da cidade em direção ao cemitério onde
estava enterrado o filho do pastor M., e perto da tumba chorou as lágrimas
mais amargas de desgosto e fastio da vida. – Tudo lhe pareceu de repente
sob uma luz triste e melancólica – todo o futuro de sua vida era sombrio. –
Desejou estar misturado ao pó que seu pé pisava, e tudo isso por causa do
obsequioso: eu tenho a honra de despedir-me do senhor. – Essas palavras
deixaram um espinho em sua alma, que ele em vão tentou de novo
arrancar – embora ele mesmo não confessasse isso, mas procurasse
derivar seu desgosto e fastio da vida das considerações gerais sobre a
insignificância da vida humana e a vaidade das coisas. – É claro que essas
considerações gerais também estavam presentes, mas, sem aquela ideia
dominante, elas ocupariam apenas seu entendimento e não tocariam seu
coração. – No fundo, o que o dominava e o fazia odiar a vida era o
sentimento de que a humanidade estava oprimida pelas relações sociais – era
obrigado a dar aula a um jovem fidalgo que o pagava por isso e que,
terminada a aula, podia lhe mostrar educadamente a porta da rua quando
lhe aprouvesse. – Que crime teria cometido antes de seu nascimento para
não ter se tornado também um ser humano merecedor da preocupação e
dos esforços de outros seres humanos? – Por que lhe coube o papel daquele
que trabalha e ao outro o daquele que paga? Se suas condições no mundo o
tivessem feito alegre e satisfeito, ele teria visto por todo lado finalidade e
ordem, mas agora tudo lhe parecia contradição, desordem e confusão.
Quando voltava para casa, foi primeiramente admoestado na rua por
um de seus credores – e quando caminhava de cabeça baixa, melancólico,
distraído, ouviu atrás de si um jovem dizer a outro: “Ali vai o mestre
Blasius!”. – Isso o fez explodir de tal modo que deu alguns tapas no jovem
na rua, o qual então o seguiu xingando até que Reiser chegasse em casa.
Daquele dia em diante, a visão das ruas de H. causava horror a Reiser –
e a rua na qual o jovem o tinha seguido xingando lhe era a que mais
despertava abominação; evitava passar por ela sempre que podia, e, se por
acaso precisasse passar por ali, era como se as casas se precipitassem
sobre ele – para onde fosse, acreditava ouvir atrás de si a ralé zombeteira
ou um credor impaciente.
Essas humilhações foram se sucedendo muito rapidamente umas às
outras para que Reiser pudesse superá-las mais uma vez sob a opressão
que a partir daí tornou odioso para ele o lugar onde morava. – A ideia de
abandonar H. e buscar sua felicidade no vasto mundo tornou-se desde
então uma decisão firme, que, no entanto, ele não revelou a ninguém,
exceto a Philipp Reiser – naquela época, este estava muito ocupado
consigo mesmo, porque de novo se divertia com um caso de amor e toda a
sua atenção estava dirigida às maneiras de agradar sua amada. – Para ele,
portanto, o destino de Anton era menos importante do que teria sido em
outra época.
Embora Anton Reiser talvez estivesse prestes a deixar para sempre H.
dentro de poucos dias, seu amigo o reteve com todos os detalhes de seu
namoro, como se Anton tivesse algum interesse no resultado daquilo. Às
vezes aquela história bem que o aborrecia – mas Philipp Reiser era mesmo
seu mais íntimo confidente – e não havia outra pessoa com quem pudesse
se abrir.
Uma vez que, para procurar sua felicidade no vasto mundo, tinha de
escolher algum ponto como destino de sua viagem, escolheu Weimar,
onde a trupe de Seiler, tendo Eckhof como diretor, deveria estar parada
naquele momento. Era lá que Reiser queria pôr em prática sua decisão de
se dedicar ao teatro.
Ocupado com essa ideia, sofreu mais uma humilhação que reforçou
totalmente a sua decisão.
Uma tarde, passeava num jardim público na entrada da cidade com
colegas da escola que faziam parte da companhia de teatro. – Talvez as
ideias com as quais se ocupava lhe dessem um ar estranho e distraído, que
o destacava de seus companheiros não tanto para vantagem sua – e, antes
que se desse conta, seus camaradas caíram novamente de chofre sobre ele,
com uma zombaria daquelas, e não lhe foi possível responder uma palavra
sequer contra tudo o que diziam. – Não encontrando resistência, a
zombaria não tinha fim – e como, além disso, dois oficiais se encontravam
próximos e ouviram a conversa, Reiser não pôde resistir por muito tempo.
– Saiu de mansinho da mesa, pagou sua parte ao taberneiro e correu dali
tão rápido quanto pôde – e, assim que se encontrou sozinho, soltou de
novo imprecações em voz alta contra si mesmo e seu destino. Zombava de
si porque acreditava ter nascido para ser zombado e desprezado.
De onde vinha o estigma que trazia na testa, como se estivesse no
mundo para o escárnio de todos? – Que marca de ridículo vinha colada a
ele e que nada parecia capaz de apagar – e que o expunha novamente à
gargalhada dos colegas, mesmo agora que era respeitado por eles?
Era a paralisia involuntária da alma, provocada pela atitude
depreciativa dos seus pais para com ele, paralisia que, desde a infância, ele
não fora capaz de atenuar. – Havia se tornado impossível para Reiser
considerar alguém como seu igual – todos pareciam ser de algum modo mais
importantes, mais significativos no mundo do que ele – e, por isso, as relações
de amizade dos outros para com ele se lhe afiguravam sempre como uma
espécie de condescendência – porque acreditava poder ser desprezado, ele
realmente era desprezado. – E o que muitas vezes ele tomara como
desprezo, alguém dotado de mais dignidade própria não o consideraria
como tal. – E esse parece ser o confronto das forças do espírito umas com
as outras: onde a força não depara com uma força oposta, ela se alastra e
destrói, como a correnteza quando o dique cede diante dela. O amor-
próprio mais forte devora – pela zombaria, pelo desprezo, por
estigmatizar o objeto ridicularizado – incessantemente o mais fraco.
Tornar-se ridículo é uma forma de aniquilação, e ridicularizar alguém é uma
forma inigualável de assassinato da dignidade pessoal. Por outro lado,
tornar-se odiado por todos exceto por si mesmo é desejável e apetecível.
Esse ódio universal não mataria o amor-próprio, mas poderia animá-lo
com uma obstinação da qual poderia viver por milênios, espumando de
raiva contra esse mundo detestável. – Mas não ter amigo,

nem ao menos um inimigo –

é o verdadeiro inferno, que contém em si todos os tormentos do


aniquilamento manifesto de um ser pensante. E esse tormento infernal era o
que Reiser sentia todas as vezes que, por falta de amor-próprio,
considerava-se um objeto digno de zombaria e de desprezo – seu único
deleite era quando estava sozinho e dava uma bela gargalhada de escárnio
de si mesmo, terminando o que outros seres haviam começado.

Se esses seres, mais fortes e mais perfeitos,


Zombam de mim e me aniquilam,
Por que devo ouvir a voz da compaixão,
E chorar miseravelmente por mim?

Tendo escapado do círculo escarnecedor de seus colegas – vagava pelos


arredores inabitados, distanciando-se cada vez mais da cidade sem ter
uma meta à qual dirigir seus passos. – Caminhou cruzando o campo até
escurecer – chegou a um caminho amplo que conduzia a uma aldeia bem à
sua frente – o céu ficava cada vez mais escuro, ameaçando chuva – os
corvos começaram a grasnar, e dois, voando sempre sobre sua cabeça,
pareciam acompanhá-lo – até chegar ao pequeno e estreito cemitério da
aldeiazinha, situado logo à sua entrada e cercado de pedras que, postas
desordenadamente umas sobre as outras, faziam às vezes de muro. A
igreja, com uma pequena torre pontiaguda coberta com telha de madeira,
tinha em suas grossas paredes uma única janelinha de cada lado, por onde
a luz penetrava obliquamente – as portas pareciam estar enfiadas pela
metade na terra e eram tão baixas que davam a impressão de que só se
podia entrar na igreja curvado. – E não menor e mais estreito do que a
pequena e feia igreja era o cemitério, no qual os túmulos subiam rente uns
aos outros, recobertos de urtigas. O horizonte já havia escurecido; o céu
fechado no nebuloso fim de tarde parecia jazer bem próximo à terra; a
visão estava limitada àquele pequeno trecho de terra. O aspecto diminuto
e pequeno da aldeia, do cemitério e da igreja teve um efeito estranho
sobre Reiser – o fim de todas as coisas parecia-lhe se dirigir para aquele
ponto – o caixão estreito e abafado era o que havia de derradeiro, além
dele não havia mais nada – ali estava a sua tampa de pregos que não deixa
nenhum mortal enxergar mais longe. – A imagem encheu Reiser de nojo –
a ideia de culminar naquele ponto, terminar naquele espaço estreito, e ainda mais
estreito, e cada vez mais estreito – além do qual não havia mais nada –
expulsou-o com terrível violência para fora do diminuto cemitério, fê-lo
correr na noite escura como se quisesse fugir do caixão que ameaçava
encerrá-lo. Enquanto ele ainda via atrás de si a aldeia com seu cemitério,
era uma visão do horror – no cemitério foi tomado por um horror
estranho – e aquilo que tantas vezes desejara parecia lhe ser concedido:
era como se o túmulo exigisse os seus despojos, continuando a abrir a
garganta atrás dele enquanto ele fugia. – Só quando chegou a outra aldeia
acalmou-se novamente.
Mas a imagem da pequenez no cemitério foi o que tornou a ideia da
morte tão pavorosa para ele, pois, à medida que se impunha, produzia em
sua alma um vazio terrível, que acabou tornando-se insuportável para
Reiser. A pequenez se aproxima do desaparecimento, da aniquilação – a
ideia da pequenez é o que produz sofrimento, vazio e tristeza. O túmulo é
a casa estreita, o caixão é um aposento silencioso, frio e pequeno. A
pequenez lembra vazio, vazio lembra tristeza – tristeza é o começo da
aniquilação – vazio infinito é aniquilação. Reiser, no pequeno cemitério,
sentiu o horror da aniquilação – a passagem do ser ao não ser lhe foi
mostrada de modo tão explícito e com tal intensidade e certeza que toda a
sua existência estava apenas como por um fio, que ameaçava romper-se a
qualquer momento.
De repente, todo o seu fastio de viver havia desaparecido – ele tentou
produzir outra vez em sua alma certa abundância de ideias para de algum
modo salvar-se da aniquilação total – e quando por acaso chegou à estrada
que conduz a N., onde seus pais moravam, e num instante reconheceu
toda a redondeza, planejou primeiro caminhar a noite inteira e
surpreender os pais mais uma vez com uma visita. – Já estava a cerca de
1,5 quilômetro de H., faltando, portanto, mais ou menos 8 quilômetros. –
Mas o pensamento de que não poderia revelar nada de sua decisão a
seus pais, e de que teria de se despedir deles de coração pesado, fê-lo
desistir desse plano, pois, além do mais, por volta da meia-noite começou
a chover forte. – Voltou outra vez para H. sob a chuva e na escuridão,
através dos campos de cereais já crescidos – era uma noite quente de
verão, e a chuva e a escuridão foram para ele os companheiros mais
agradáveis naquela caminhada noturna e misantropa. Sentiu-se grande e
livre naquela natureza que o rodeava – nada o oprimia, nada o
constrangia. Estava em casa em qualquer lugar onde pudesse repousar
sem ficar exposto ao olhar de nenhum mortal. – Acabou encontrando um
verdadeiro deleite em caminhar sem rumo pelos campos de cereais – sem
estar vinculado a nada, nem ao menos a uma meta própria segundo a qual
tivesse de dirigir seus passos. Naquele silêncio da meia-noite sentiu-se
livre como a fera no deserto. A terra ampla era sua cama – a natureza
inteira, seu território.
Caminhou então a noite toda até o raiar do dia – e, quando aos poucos
conseguiu diferenciar novamente os objetos, julgou pelos arredores que
estaria a pouco menos de 1 quilômetro de H. – De repente, no entanto, ele
se viu, quando menos esperava, rente ao grande muro de um cemitério
que jamais notara nessas imediações – concentrou-se e procurou orientar-
se, mas foi inútil – não foi capaz de entender aquele longo muro de
cemitério em relação aos demais objetos; para ele, o muro era e continuou
sendo uma aparição que durante um tempo ainda o deixou realmente em
dúvida se estava acordado ou sonhando. – Esfregou os olhos – mas o longo
muro do cemitério continuava ali. – Além do mais, sua fantasia também
estava transtornada por sua estranha caminhada noturna e pela ausência
das pausas habituais com que a natureza interrompe as ideias diurnas –
ele mesmo começou a temer pelo próprio entendimento, e estava talvez
realmente próximo da loucura, quando enfim novamente viu, através da
neblina, as quatro torres de H., e soube então onde estava. A alvorada o
iludira, e ele tomou os arredores por outro lugar que ficava a pouco menos
de 1 quilômetro de H. e que parecia muito com aquele. – O grande
cemitério, em cujo centro havia uma pequena capela, era o cemitério
comum, bem em frente a H., e Reiser reconheceu de repente todas as
imediações – ele realmente despertou como que saído de um sonho.
Mas, se há algo capaz de levar alguém à beira da loucura, são sobretudo
as ideias absurdas de espaço e tempo, às quais têm de se ater a todos os
nossos outros conceitos. Aquele novo dia não foi como um novo dia para
Reiser, porque entre esse e o dia anterior não havia ocorrido interrupção
alguma no trabalho de sua imaginação. – Ele entrou na cidade; ainda era
de manhã cedo, e nas ruas imperava um silêncio mortal. A casa, o quarto
em que morava, tudo lhe parecia diferente, estranho e esquisito. Aquela
caminhada noturna havia provocado uma mudança em todo o seu sistema
de pensamento – a partir de então, ele não se sentia mais em casa na
própria casa. As ideias de espaço oscilavam para lá e para cá em sua cabeça
– ele passou o dia todo como um sonhador – mas, apesar de tudo isso, a
lembrança da caminhada noturna lhe era agradável. – O grasnido dos
corvos voando sobre sua cabeça, o pequeno cemitério da aldeia, a
caminhada pelo campo de cereais, tudo se apinhava em sua imaginação,
compondo um conjunto escuro, uma linda cena noturna, com a qual mais
tarde sua fantasia ainda se regozijou muitas vezes nas horas solitárias.
Mas a partir daí sua permanência em H. se tornou ainda mais odiosa, se
é que isso era possível – e o espírito andarilho se apossou completamente
dele, como era o caso de muitos jovens que tinham representado peças de
teatro. – Um deles, de nome T., que antes fora uma pessoa muito
tranquila, aplicada e ordeira, revelou confidencialmente a Reiser sua
insatisfação com seu futuro ofício de teólogo, para o qual estava
destinado, e conversou com ele sobre a felicidade proporcionada pela
profissão de ator, quando clamou contra os preconceitos que continuavam
depreciando imerecidamente essa honrosa profissão.
Os dois tiveram essa conversa durante um passeio a uma pequena
aldeia nos arredores de H.; e eles estavam tão concentrados em sua
conversa que vararam a noite, tendo de permanecer na aldeia. – Esse
pernoite incomum, num lugar estranho, meteu na cabeça deles ainda mais
ideias românticas – era como se estivessem em busca de aventuras e
compartilhassem um com o outro os lances de sorte e azar. – O ousado
propósito desses dois aventureiros – não se importar com todos os
preconceitos do mundo e seguir a inclinação deles, ou a vocação, como a
chamavam – não permaneceu irrealizado. – Reiser deu o primeiro passo, e
T. logo o seguiu, mas foi felizmente trazido de volta.
Antes de levar a cabo seu propósito, Reiser fez ainda uma caminhada
noturna com I., que o visitou, às onze horas da noite, acompanhado por
um membro da companhia de teatro, e o convidou para um passeio até D.,
uma montanha a quase 5 quilômetros de H. – Reiser, para quem essas
mesmas caminhadas noturnas já tinham começado a se tornar um hábito,
aceitou imediatamente – era uma noite de verão quente e enluarada. – A
conversa pelo caminho foi toda poética, às vezes um pouco afetada e
depois voltando a ser verdadeira, conforme o caso. – Passando por um
vilarejo, sentiram o cheiro fresco do feno. – E essa caminhada noturna foi
de fato uma das mais agradáveis que se possa imaginar, de modo que
parecia ter sido organizada pelo acaso para efervescer ainda mais a
fantasia de Reiser e dar à sua já atiçada vontade de viajar o completo
domínio sobre a razão.
Ainda antes de amanhecer, os três aventureiros alcançaram uma aldeia
que ficava no sopé da montanha, onde se alojaram e dormiram algumas
horas. – Quando levantaram cedo na manhã seguinte, todas as lindas
pequenas imagens tinham desaparecido da lanterna mágica; a nua
realidade com todas as suas inevitáveis inconveniências estava novamente
presente diante da alma deles – ficaram sentados durante mais de uma
hora, bocejando. – Se algo ainda pudesse curar Reiser de suas fantasias,
teria sido essa manhã depois daquela noite – seria um sofrimento escalar a
montanha, sentiam-se cansados e fracos; pegaram o primeiro caminho de
volta para a cidade, que foi bastante penoso por causa do sol abrasador –
mas durante o percurso começaram a improvisar rimas com as quais
aliviaram de certo modo a monotonia do trajeto.
Apesar de tudo, Reiser permaneceu completamente decidido a viajar,
fosse qual fosse seu destino – preferia tudo o que pudesse vir ao seu
encontro, em vez da triste monotonia de não ser verdadeiramente feliz em H.
Todos os seus pensamentos simplesmente voaram para longe. – Além
disso, ele não via nenhum meio a seu alcance para saldar suas dívidas sem
revelá-las novamente ao pastor M., e assim perderia certamente todo o
seu respeito e amizade. – Também as humilhações que suportara havia
pouco ainda estavam frescas em sua memória, tornando odiosa a
permanência tanto em H. como em suas imediações.
Ao seu único confidente, Philipp Reiser, ele soube apresentar de tal
forma a precariedade de sua situação que este por fim aprovou a decisão
de Anton de abandonar H. e lhe indicou a rota de viagem até Erfurt,
caminho que ele mesmo fizera a pé vindo daquela cidade até H. – De lá,
Anton Reiser queria ir a Weimar para ser admitido como membro da
companhia de teatro de Seyler ou, antes, de Eckhof – e a partir dali, se
tivesse êxito, queria pagar suas dívidas em H. e tentar resgatar sua boa
reputação, já que lá ele poderia se reerguer depois de ter morrido como
cidadão aqui. – Para ele, essa era particularmente uma das ideias mais
agradáveis com que se entretinha.
Levou a Philipp Reiser seus poucos livros e papéis, deixando-os aos
seus cuidados – empenhou parte de suas roupas para cobrir os gastos com
o teatro – e suas poucas coisas restantes, deixou ao proprietário como
indenização pelo aluguel. – A este, disse que seu pai tinha ficado muito
doente e que, se por acaso alguém perguntasse, deveria dizer que estaria
ausente por uma semana para visitá-lo.
E agora que tudo estava acertado faltava apenas o dinheiro com que
deveria empreender uma viagem de mais de 60 quilômetros. Somando
tudo o que conseguiu arranjar, a quantia consistia em um único ducado,
com o qual teve suficiente coragem para pôr-se a caminho, apesar de
Philipp Reiser ter lhe mostrado a imprudência do empreendimento. – Mas
Philipp não podia ajudá-lo com dinheiro, pela razão verdadeiramente
considerável de que em geral lhe faltavam recursos, sobretudo naquela
ocasião em particular.
Anton Reiser podia então dizer que levava consigo literalmente tudo o
que possuía. – A roupa boa, com a qual discursara no aniversário da
rainha, e um casaco formavam todo o seu guarda-roupa – levava também
uma espada dourada na cintura, sapato e meias de seda. – Tudo o que
carregava na bolsa era uma camisa limpa, mais um par de meias de seda, a
Odisseia, de Homero, in-duodecimo com a versão latina, e o cartaz em latim
da conferência por ocasião do aniversário da rainha, no qual estava
impresso seu nome.
Terminou os preparativos da viagem no meio do inverno, numa manhã
de domingo passada com Philipp Reiser, para então iniciar à tarde sua
peregrinação, e, como os dias já eram longos, percorrer ainda quase 5
quilômetros até a cidade seguinte. –
O sol brilhava claro – as pessoas iam pela rua com seus adornos de
domingo, e passeavam em parte diante das portas da cidade para retornar
a suas casas ao entardecer; nesse dia, Reiser se separaria de H. para
sempre – isso lhe provocou uma sensação estranha, que não era dor nem
tristeza, mas mais uma espécie de torpor. – A despedida de H. não lhe
arrancou lágrimas, mas ele estava quase totalmente gélido e impassível
como se estivesse viajando por uma cidade estrangeira e tivesse então de
virar-lhe as costas para continuar caminhando. – Até mesmo a despedida
de Philipp Reiser foi mais fria do que afetuosa. – Philipp Reiser estava
muito entretido em fazer um novo distintivo para seu chapéu e contou ao
amigo que partia, ainda na derradeira hora que passaram juntos, o novo
romance que ele estava vivendo, como se Anton Reiser ainda pudesse
esperar pela continuação. – Em suma, toda a conversa se passou como se
no outro dia fossem estar juntos novamente, e tudo fosse continuar como
sempre havia sido. – Mas o que mais irritava Anton Reiser era seu desvelo
com o distintivo do chapéu, que ainda podia manter tão zelosamente
ocupado seu único amigo, mesmo na hora de sua partida. – Esse distintivo
do chapéu ainda pairou por muito tempo diante dos olhos de Reiser,
trazendo recordações enfadonhas sempre que pensava nele. – Mas aquele
desvelo tornou muito mais leve sua despedida de H. e de seu único amigo.
– Philipp Reiser o queria bem, mas, dessa vez, sua pequena vaidade e seus
delírios amorosos superaram o sentimento de simpatia pelo amigo, e seu
distintivo, com o qual talvez quisesse agradar à amada, se tornara também
um objeto muito importante para ele, o que Anton Reiser certamente não
conseguia compreender.

“Bater, tão frio e tão rígido, à porta de bronze da morte.”

Essas palavras de Os sofrimentos do jovem Werther não haviam deixado a


mente de Anton Reiser durante toda aquela manhã, e quando Philipp
Reiser quis lhe abrir o grande portão, o lugar onde de fato se separariam,
porque Philipp Reiser de propósito não iria acompanhá-lo mais para não
despertar suspeitas de que soubesse de sua partida, Anton permaneceu
ainda um tempo parado do lado de dentro, fitando Philipp Reiser, e, nesse
momento, era como se ele, tão frio e tão rígido, batesse às portas da morte. –
Estendeu a mão a Philipp Reiser, que não conseguiu lhe dizer nenhuma
palavra, fechou o portão atrás de si e correu para chegar à esquina
seguinte, a fim de que seu amigo, agora separado dele, não pudesse mais
avistá-lo.
Depois, dirigiu-se rapidamente pelo baluarte até a porta de Santo
Egídio e mais uma vez viu, olhando de lado, seu antigo aposento na casa
do reitor, que conseguia avistar do baluarte. – Eram duas horas da tarde, e
os sinos tocavam na igreja – ele apertava os passos à medida que se
aproximava da porta da cidade. – Para Reiser, era como se o túmulo mais
uma vez lhe abrisse a garganta atrás de si. Quando, porém, teve a cidade a
suas costas, com o baluarte coberto pela vegetação, e olhou para trás,
vendo as casinhas que iam se apinhando umas sobre as outras, ia ficando
mais leve, cada vez mais leve, até que finalmente sumiram de sua vista as
quatro torres que demarcavam o que havia sido o palco de todas as suas
humilhações e tormentos.
PARTE 4
Esta quarta parte da história de vida de Anton Reiser trata, como as
anteriores, propriamente da pergunta fundamental: em que medida um
jovem está em condições de escolher para si mesmo a sua vocação?.
Ela contém uma apresentação fiel de diversos tipos de autoilusão para
os quais o jovem inexperiente foi induzido ao seguir um impulso mal
compreendido para a poesia e para a arte dramática.
Esta parte contém também algumas indicações, que talvez não sejam
nem inúteis nem insignificantes, tanto para professores e educadores
como para os jovens sérios o bastante a fim de que examinem por si
mesmos os principais sinais pelos quais se diferencia o falso do verdadeiro
impulso artístico.
É possível ver por esta história que um impulso artístico mal
compreendido, ao exigir simples inclinação sem vocação, pode se tornar
também muito poderoso e produzir os mesmos fenômenos que se
manifestam no genuíno gênio artístico – gênio que também suporta o pior
e faz todos os sacrifícios apenas para alcançar seu objetivo último.
Das partes anteriores desta história depreende-se que a irresistível
paixão de Reiser pelo teatro foi de fato o resultado de sua vida e das
vicissitudes que desde criança o desalojaram do mundo real, e, como este
se lhe perdera da maneira mais amarga, ele passou a viver mais na
fantasia do que na realidade – o teatro como o genuíno mundo da fantasia
devia ser para Reiser um refúgio contra todas as adversidades e opressões.
– Apenas ali acreditava respirar mais livremente e encontrar-se de algum
modo em seu elemento.
E, no entanto, ele tinha certo sentimento das coisas reais do mundo à
sua volta e não queria renunciar completamente a elas, pois sentia a vida e
a existência tão bem como os outros seres humanos.
Isso o punha em perpétua luta com ele mesmo. Não era leviano o
suficiente para seguir totalmente as inspirações de sua fantasia e ainda
estar satisfeito consigo mesmo; mas, por outro lado, não tinha suficiente
firmeza para perseguir constantemente algum plano real que contrariasse
suas ideias exaltadas.
De fato, lutavam nele, assim como em milhares de almas, a verdade
com a ilusão, o sonho com a realidade, e qual dos dois venceria era algo
que permanecia indefinido, o que basta para explicar os estranhos estados
de alma em que mergulhava.
Toda a sua vida até agora tinha sido uma contradição entre exterior e
interior. – O que importa é saber como essas contradições serão
resolvidas!
Assim que Reiser perdeu de vista as torres de H., avançando a passos
rápidos, respirou mais livre, seu peito se alargou – tinha o mundo inteiro à
sua frente – e milhares de perspectivas se abriram diante de sua alma.
Pensou que os fios de sua vida anterior estavam de algum modo
cortados – ele se encontrava de repente livre de todas as complicações –,
pois, se tivesse entrado na universidade em G., lá também seu destino o
teria perseguido; lá todos os colegas de sua juventude também o teriam
oprimido, e seu ânimo acabaria por esmorecer completamente.
Pois, enquanto estivesse confinado àquele círculo, não conseguiria
adquirir nenhuma confiança em si mesmo – e, se quisesse recuperar o
ânimo, não poderia voltar a ver as pessoas que amarguraram, talvez sem
intenção, os dias de sua juventude.
Estava agora completamente separado daquele círculo. – O palco de
seus sofrimentos, o mundo em que vivenciara as sinas de sua juventude,
ficara para trás – a cada passo, distanciava-se dele, e pôde, tal como
planejara, caminhar oito dias sem que ninguém desse por sua falta.
Sentiu uma doçura indescritível ao pensar que, salvo Philipp Reiser,
ninguém sabia de seu destino e de seu paradeiro, que mesmo esse único
amigo não se afligira muito com sua partida; que tudo lhe era
completamente indiferente, menos as circunstâncias e as pessoas às quais
agora se dirigia.
Se a despedida da vida pode ser prefigurada por alguma situação, tem
de ser por essa.
Assim que o calor do dia abrandou, o sol se inclinou e as sombras das
árvores se alongaram, ele apertou o passo, e, na mesma tarde, percorreu
sem parar os quase 5 quilômetros até Hildesheim, como se estivesse num
passeio; para ele, era mesmo um passeio, pois sentia-se tão em casa em
Hildesheim quanto em H.
Chegando à porta da cidade, tirou primeiro a poeira dos sapatos,
ajeitou o cabelo, segurou na mão a varinha com a qual brincara durante a
caminhada e zanzou vagarosamente, cruzando a ponte, parando algumas
vezes como se esperasse por alguém ou procurasse por algo à sua volta. –
E como, além do mais, caminhava com meias de seda, ninguém pensou
que naqueles trajes ele fosse um viajante prestes a percorrer mais de 60
quilômetros.
Nenhuma sentinela o interrogou, e ele entrou pelas portas de
Hildesheim acompanhando os moradores da cidade que retornavam de
seus passeios. – E a ideia de que aquelas pessoas não o viam como
estrangeiro, nem reparavam nele, mas de algum modo o incluíam, sem
que fizesse parte deles, foi algo muito apaziguante e agradável. –
Como ninguém ali o conhecia nem se preocupava com ele, Reiser já
não se comparava com ninguém; estava como que separado de si mesmo;
sua individualidade, que tantas vezes o incomodara e oprimira, deixou de
lhe ser um fardo; poderia levar toda a sua vida entre as pessoas desse
modo, anônimo e invisível.
Ao procurar uma estalagem perto da porta da cidade, a rua lhe pareceu
conhecida, e se lembrou de que quatro anos antes estivera ali durante o
Corpus Christi com o reitor, com quem morava, e da situação angustiante
e embaraçosa em que se encontrava, porque não chegava a ser excluído
sem fazer propriamente parte da companhia que ele acompanhava. –
Quando pensou que agora tudo aquilo estava acabado, foi como se uma
pedra saísse de seu coração.
Na estalagem em que se alojou, foi recebido e tratado em
conformidade com seus trajes e não teve coragem de recusar o
tratamento; ao contrário, permitiu que lhe preparassem o jantar,
indicassem uma cama para dormir e trouxessem o café na manhã
seguinte. – Ele ainda bebia sossegadamente o café lendo Homero quando
de repente despertou de uma espécie de aturdimento, percebendo
nitidamente que com seu dinheiro, que consistia apenas em um único
ducado, ele teria de pagar aquela despesa, e ainda viajar mais de 60
quilômetros.
Rapidamente pagou sua conta, tornando-se mais pobre em não menos
que um sexto dos seus recursos; perguntou pelo caminho que levava a
Seesen e saiu pela porta da cidade de Hildesheim com a cabeça cheia de
preocupações e com o coração pesado.
Era ainda de manhã cedo – o caminho passava por uma região
agradável, onde floresta e rio se revezavam, e o canto dos pássaros vinha
ao seu encontro, enquanto o sol da manhã despontava na copa verde das
árvores.
Quanto mais avançava rápido, mais sentia seu ânimo aliviado, aos
poucos voltaram a se erguer em sua alma pensamentos alegres,
perspectivas estimulantes e esperanças ousadas, até que de repente tomou
uma decisão que o livraria de vez de todas as preocupações, tornando-o
provido e independente durante toda a peregrinação.
Restringiria toda a sua alimentação a pão e cerveja, dormiria sobre a
palha e nunca mais pernoitaria numa cidade, para que seu sustento
durante a viagem lhe custasse diariamente menos que uma moeda de
prata. Assim poderia caminhar mais de um mês e não ficaria
completamente sem nada no fim da viagem.
Logo que tomou aquela decisão, na qual perseverou desde aquele dia,
sentiu-se de novo livre e feliz como um rei – mesmo a renúncia
espontânea a todo o conforto e a restrição às necessidades mais básicas
lhe deram uma sensação única; sentiu-se quase como um ser apartado de
todas as preocupações terrenas; e por isso pôde viver tranquilo em um
mundo de ideias e fantasias, de modo que, apesar de todas as adversidades
aparentes, aquele momento foi um dos sonhos mais felizes de sua vida.
Mas de tempos em tempos se insinuava imperceptível em sua mente
um pensamento que ligava mais uma vez sua existência atual à passada,
impedindo-a de se tornar um completo sonho. Imaginava como seria bom
se depois de alguns anos ele renascesse na memória dos homens, onde
agora se encontrava como que morto, se surgisse diante deles numa figura
mais nobre, e se o período sombrio de sua juventude desaparecesse com o
alvorecer de um dia melhor.
Essa imagem permanecia sempre forte nele – jazia no fundo de sua
alma, e Reiser não poderia renunciar a ela por nada desse mundo; todos os
outros sonhos e fantasias dependiam dela, e dela provinha o mais alto
encanto. – O simples pensamento de que jamais voltaria a ver os homens
que o conheciam até então teria retirado todo o interesse de sua vida e lhe
roubado as mais doces esperanças.
Perto do meio-dia, fez uma parada numa aldeia, numa taverna
modesta em que, mesmo que tivesse dinheiro, não havia nada além de
cerveja e pão, e não foi o caso, portanto, de ter de recusar algo melhor que
lhe oferecessem.
Foi um prazer indescritível conseguir, por poucos centavos, um pedaço
de pão preto enorme, que o protegeu da fome o dia inteiro. Mergulhou um
naco na cerveja, fazendo assim o primeiro almoço conforme suas próprias
leis estritas, das quais desde então não se afastou durante a viagem.
Mas fez tudo tão rápido que logo saiu daquele refeitório abafado e
estava de novo ao ar livre, onde se sentou à sombra de uma árvore e leu,
como pausa do almoço, a Odisseia, de Homero. – Fosse ou não essa leitura
de Homero uma ideia que havia ficado dos Sofrimentos de Werther,
certamente não era, no caso de Reiser, uma afetação, mas um prazer real e
genuíno – pois nenhum livro se encaixava tão bem em sua situação quanto
esse, que descreve a cada linha aquele homem tão viajado, que viu muitas
pessoas, cidades e costumes, e por fim, após muitos anos, volta à sua
pátria, encontrando de novo aqueles mesmos homens que lá deixou,
pensando que nunca mais os veria.
O caminho agora era subir morro, descer morro. – O calor estava
bastante forte, e Reiser matava a sede sempre que encontrava um riacho
límpido, de onde podia beber água de graça.
Na aldeia em que passou a primeira noite, o refeitório da estalagem
estava repleto de camponeses barulhentos, de modo que não lhe foi
possível ler; passou então a se ocupar de seus pensamentos; e uma
senhora muito velha, sentada numa poltrona e de cabeça trêmula, atraiu
toda a sua atenção.
A senhora havia sido educada ali, havia nascido ali e envelhecido ali,
havia visto sempre as paredes daquela sala, o grande forno, as mesas, os
bancos – pouco a pouco ele se transpôs tão profundamente para as
representações e ideias daquela senhora idosa que acabou se esquecendo
de si mesmo, mergulhando numa espécie de sonho acordado, como se
tivesse de permanecer ali, sem poder sair do lugar. – Com a mudança
repentina que seu estado sofrera, um sonho como aquele era muito
natural – e, quando voltou a si, sentiu em dobro o prazer da alternância,
da expansão, da liberdade ilimitada – estava como que desatado dos
grilhões, e a senhora idosa, de cabeça trêmula, voltava a ser um objeto
indiferente para ele.
Mas esse jeito de se pôr em pensamento nas ideias de outras pessoas,
esquecendo-se assim de si, estava incrustado nele desde a infância – um de
seus desejos infantis era poder, nem que fosse por um instante, ver com os
olhos da pessoa que ele via à sua frente, e saber como ela percebia as
coisas à sua volta.
Na primeira vez que se deitou sobre a palha, seus pensamentos iam
longe; colocou a espada de lado e se cobriu com as próprias roupas. – Seus
pensamentos, no entanto, não o deixaram em paz, o futuro ia se tornando
mais e mais radiante e brilhante diante de seu olhar; as luzes já estavam
acesas, a cortina, erguida, tudo cheio de expectativa; o momento decisivo
havia chegado.
O sono não quis pousar sobre seus olhos até meia-noite, e, quando ele
despertou de manhã, a cena estava repentinamente toda mudada; o
refeitório da estalagem desértico, os canecos de cerveja, o pão preto e o
cansaço extenuante – suas fantasias excitadas se vingaram dele com
terrível mau humor e fastio de viver, que duraram mais de uma hora.
Colocou a cabeça sobre a mesa e procurou em vão cochilar novamente,
até que os estimulantes raios de sol que iam surgindo na janela o
despertaram outra vez para a vida; e, logo que se pôs a caminhar saindo do
refeitório abafado da estalagem, seu mau humor desapareceu então
rapidamente e o excitante jogo das ideias recomeçou.
Desse modo, ele vivia como que uma vida dupla, uma na imaginação e
outra na realidade. O real continuava belo e em harmonia com a
imaginação, exceto no refeitório da estalagem, no barulho dos
camponeses e na palha – estes não queriam se afinar com ela –, pois de dia
era uma liberdade ilimitada, mas a noite exigia um controle muito grande,
porque até a manhã seguinte não poderia estar em outro canto a não ser
naquele.
Os objetos externos tinham, por certo, uma influência constante sobre
a sequência interna dos pensamentos; suas ideias em geral se ampliavam
também com o horizonte, e avistar uma nova paisagem sempre casava
bem com uma nova perspectiva de vida.
Certa vez, Reiser havia subido longa e penosamente um morro, quando
de repente uma vasta planície se abriu adiante, e ele avistou a distância
uma cidadezinha à beira de um lago – essa paisagem revigorou
imediatamente todos os seus pensamentos e esperanças. – Não conseguiu
desgrudar seu olhar daquelas águas ao longe, que lhe davam novo ânimo
para buscar aquilo que estava distante. –
Sua rota de viagem partia de Hildesheim, passava por Salzdetfurth,
Bockenem, Seesen, até Duderstadt, de onde ele, atravessando Mühlhausen,
queria ir direto para Erfurt e de lá para Weimar, que era o destino de seus
desejos.
Reiser acreditava que ali encontraria a companhia de teatro de Eckhof
e começaria então sua carreira teatral. – No caminho de suas andanças, ia
encenando em pensamento todos os papéis que um dia deveriam coroá-lo
com fama e reconhecimento, recompensando-o por seus diversos pesares.

Pensava que não podia fracassar, porque sentia profundamente cada
papel e sabia representá-los e executá-los perfeitamente em sua alma –
não conseguia perceber que isso tudo se dava apenas em seu interior e que
lhe faltava uma capacidade de representar exteriormente. – Tinha a
impressão de que a intensidade com que sentia seu papel teria de
arrebatar tudo consigo e fazê-lo esquecer-se de si mesmo. –
Isso, de fato, aconteceu quando, durante a caminhada, sua imaginação
foi se inflamando cada vez mais – até que num campo onde julgou estar
completamente só, ele começou a esbravejar alto como Beaumarchais, a
vociferar como Guelfo.
Esse Guelfo de Os gêmeos, de Klinger, havia se tornado um de seus
papéis preferidos antes de sua partida de H.; pois em Guelfo ele encontrou
sua risada de escárnio de si, seu ódio de si, seu desprezo de si e sua
tendência à autoaniquilação, porém ligados à força. E o ato em que Guelfo,
após o assassinato do irmão, despedaça o espelho no qual se vê era uma
verdadeira festa para Reiser. – Todo aquele assombro exagerado o havia
como que embriagado – ia cambaleando nessa embriaguez por montes e
vales – seu cenário não tinha limites, para onde quer que fosse.
Clavigo, que lhe havia custado muitas lágrimas, era agora muito frio
para ele, e Beaumarchais ocupou seu lugar. – Em seguida, vieram Hamlet,
Lear, Otelo, que ainda não tinham sido representadas nos palcos alemães e
que ele já lera em voz alta, em noites assombrosas, na companhia apenas
de Philipp Reiser, representando e sentindo de cabo a rabo todos esses
papéis.
E a isso agora se somava a arte poética; seu verso fluía tão suave e
melódico, e sua musa era tão modesta e no entanto cheia de orgulho
nobre, que teria de angariar para ele certamente a simpatia de todos os
corações. – Reiser não sabia ainda muito bem que tipo de poema seria, mas
no conjunto era o mais lindo e harmônico que pudera até então imaginar,
porque era uma cópia fiel de toda a sua sensibilidade.
Em meio a um desses enleios líricos de seu pensamento, muito perto de
Seesen, pegou um atalho que saía de uma estrada e passava por um
campo, no qual naquele momento acontecia um exercício de tiro ao alvo
que quase pôs um fim repentino a todas as suas reluzentes expectativas de
futuro: uma bala de espingarda zuniu rente a sua cabeça enquanto todos
gritavam para ele sair dali – atravessou Seesen rapidamente e continuou
caminhando tranquilo até chegar a uma pequena aldeia, onde pernoitou.
No segundo dia de caminhada, Reiser atravessou parte das montanhas
do Harz, e ainda era cedo quando viu à direita da estrada real, sobre uma
colina, as muralhas de uma fortaleza destruída; não resistiu e subiu pela
colina; quando chegou lá em cima, nas ruínas daquela fortaleza antiga,
comeu o naco de pão preto que trouxera para o café da manhã e viu lá
embaixo a estrada real que cruzava a floresta.
Comer seu pão matinal como um viajante naquela antiga muralha
destruída e pensar na época em que ali ainda viviam homens que também
viam lá embaixo a estrada real que cruzava a floresta – foi para ele um dos
momentos mais felizes – isso sempre lhe soava como uma profecia
daqueles tempos, anunciando que um dia aquelas muralhas ficariam
ermas, que o viajante descansaria nelas e recordaria os dias de tempos
remotos.
Lá no alto, seu naco de pão preto foi como um banquete – desceu
revigorado e continuou a caminhar bem-disposto pelo caminho, deixando
à esquerda as altas montanhas do Harz.
A caminhada se tornou tão leve, que o chão parecia uma onda sob seus
pés, na qual subia e descia, produzindo-lhe uma sensação de estar sendo
carregado de um horizonte ao outro – seu estado era de total
receptividade e sempre uma nova cena surgia diante de seu olhar.
A parada para o almoço no refeitório desagradável da estalagem foi
rápida, e de novo se encontrou na natureza livre e aberta. – Essa parada,
no entanto, foi penosa para ele, que já estava pensando em como se livrar
delas quando, caminhando por um campo de cereais, lembrou que aos
domingos os apóstolos de Cristo comiam espigas.
Imediatamente experimentou pegar um punhado de grãos da espiga,
extraiu a polpa e cuspiu a casca. No entanto, essa maneira de se alimentar
nada mais era que um passatempo e não o poupou realmente de ter de
parar em algum lugar. – O que lhe agradava nesse alimento era sobretudo
a ideia dele, a qual ampliava ainda mais o conceito de liberdade e de
independência.
Como havia completado mais um dia de viagem, parou numa pequena
aldeia, perto de Duderstadt, e não encontrou ninguém na pousada.
Era ainda pouco antes do entardecer. – O portão que dava para o pátio
da estalagem estava aberto – e no pátio havia um caramanchão com uma
mesa, mas sem cadeira nem banco.
Reiser deitou-se sobre a mesa a fim de descansar e, como ainda
conseguia enxergar para ler, leu na Odisseia o trecho sobre os canibais no
porto tranquilo, que destroçam os barcos de Ulisses, capturando e
devorando seus companheiros de viagem.
O dono da hospedagem chegou de repente e viu em seu pátio, quando
já começava a escurecer, um homem deitado na mesa sob o caramanchão,
lendo um livro.
A princípio, abordou Reiser de modo bastante indelicado, mas, quando
este ficou em pé, o dono viu um homem bem-vestido e logo lhe perguntou
se era jurista, denominação comum nessas redondezas para um estudante,
já que os teólogos, em sua maior parte, estudavam em mosteiros e já eram
considerados sacerdotes.
A esposa do dono falecera, e não havia mais ninguém na casa. O
homem, no entanto, era loquaz, e Reiser jantou, como sempre, cerveja e
pão em sua companhia.
O dono lhe contou sobre vários dos assim chamados juristas que teriam
se hospedado lá, e Reiser não o contradisse, afirmando apenas que
também estava indo estudar em Erfurt.
Conversas como aquela, que teriam sido insignificantes, ganhavam
uma coloração poética na mente de Reiser em virtude da imagem do
viajante homérico, que sempre pairava diante de sua alma, e até mesmo as
inverdades em suas falas tinham algo que combinava com seu modelo
poético, a quem Minerva apoia e sorri com aprovação por suas mentiras
muito bem tramadas.
Reiser não via seu anfitrião apenas como o dono de uma taverna de
aldeia, mas como um homem que ele jamais conhecera, jamais vira antes,
e com quem estava sentado à mesa conversando havia mais de uma hora.
Aquilo que as instituições e relações humanas expulsaram, por assim
dizer, do terreno da deferência, tendo se tornado corriqueiro e
insignificante, era reinvestido em seus direitos pelo poder da poesia,
voltando a ser humano e obtendo novamente sua sublimidade e dignidade
originárias.
O homem não podia lhe preparar sequer uma cama de palha, porque
raramente alguém pernoitava ali; e Reiser dormiu no palheiro, que lhe
proporcionou uma cama agradável.
Na manhã seguinte, logo cedo ele retomou a viagem, e a estada
completamente só na casa do anfitrião acabou sendo como uma de suas
recordações mais agradáveis.
Nesse dia, seu mundo interior de ideias estava particularmente
agitado. – Ele se aproximava consideravelmente de seu destino e começou
a ficar apreensivo em relação ao que iria fazer caso suas perspectivas de
fama e aprovação instantâneas não se realizassem, e os projetos para sua
carreira teatral falhassem por completo.
Logo surgiam os extremos, como tornar-se camponês ou soldado, e o
poético e o teatral imediatamente reapareciam, pois suas ideias de se
tornar camponês e soldado viravam um papel teatral que ele representava
em seus pensamentos.
No papel de camponês, desenvolvia pouco a pouco suas concepções
mais elevadas e revelava, por assim dizer, quem ele era; os camponeses o
ouviam com atenção, os costumes se refinavam aos poucos, e as pessoas ao
seu redor se cultivavam.
No de soldado, atraía pouco a pouco o ânimo de seus companheiros de
destino com narrativas estimulantes; os soldados brutos começavam a
prestar atenção em suas lições: neles se desenvolvia o sentimento de uma
humanidade mais elevada; o posto de guarda virava um auditório de
sabedoria.
Acreditando estar se preparando para algo oposto ao teatro, caíra
outra vez em visões e sonhos inteiramente teatrais, como nunca antes.
Para Reiser havia, no entanto, uma indescritível doçura na ideia de se
tornar camponês ou soldado, porque nessa situação ele acreditava
aparentar muito menos do que realmente era.
Enquanto se ocupava com essas ideias, atravessou a cidade de Worbes,
onde encontrou alguns frades franciscanos do mosteiro local que o
saudaram amistosamente.
Quando passou diante do mosteiro, ouviu lá de dentro o canto dos
frades, que ali viviam afastados do mundo, sem preocupações, planos e
perspectivas, e eram ao mesmo tempo tudo o que gostariam de ser.
Isso produziu certa impressão em seu espírito, mas não tão forte como
quando viu depois pela primeira vez uma cartuxa, cujos moradores
estavam completamente separados do mundo por um muro, não podendo
nem mesmo tornar a pisar a cena que uma vez abandonaram.
Mas os frades franciscanos viajantes tornavam pequena e insípida a
ideia da solidão. – A marcha rápida não combinava com o hábito, e o
conjunto também não tinha nem mesmo dignidade poética.
Aliás, naquelas redondezas, o alto-alemão soava sempre agradável aos
ouvidos de Reiser, porque a ideia de sua atual distância da terra do baixo-
alemão era intensamente despertada nele.
Nesse dia também fez um tempo muito bom, e à noite Reiser parou
numa aldeia de nome Orschla, para na manhã seguinte partir dali rumo à
cidade imperial livre de Mühlhausen.
A aldeia era católica; e, quando ele chegou à estalagem, havia muitas
pessoas diante da porta, entre as quais o professor local, que o interpelou
com as seguintes palavras: “Esne litteratus?” (Você é um erudito?).
Reiser lhe respondeu que sim em latim, e, quando questionado para
onde ia, de novo respondeu que ia a Erfurt para estudar teologia; pois isso
lhe parecia ser sempre o mais seguro.
Enquanto isso, os camponeses estavam ali ao redor e prestavam
atenção em como o professor da escola deles falava latim com o estudante
estrangeiro. A eles veio se juntar também o filho do professor, que havia
estudado em Hildesheim e agora era assistente do pai.
Reiser foi até seu quarto e, para dar mais alguma prova de que era um
litteratus, pôs seu Homero sobre a mesa, que o professor também logo
reconheceu e disse aos camponeses em alemão que aquilo era Homero.
Continuou, porém, falando em latim com Reiser da melhor maneira
que podia, deixando escapar de quando em quando muitas construções
engraçadas; como ele falou demais sobre suas aulas eruditas, Reiser lhe
perguntou se ele também lia com seus alunos os Padres da Igreja. Tendo
ficado a princípio um pouco perplexo com a pergunta, logo se recompôs e
disse: “Alternatim”[28].
Despediu-se de Reiser, que queria partir na manhã seguinte bem cedo,
advertindo-o para ter cuidado naquelas regiões com os recrutadores
imperiais e prussianos, e para não se assustar com nenhuma ameaça, se
eles dissessem que iriam levá-lo à força.
Reiser se deitou e dormiu tranquilamente sobre a cama de palha –
quando, porém, acordou na manhã seguinte, chovia tão forte que ele não
conseguiu sair de casa com seus sapatos e meias de seda, muito menos
prosseguir sua viagem; pois, além disso, como ali o solo era argiloso,
qualquer umidade tornava extremamente penosa a caminhada pela
estrada.
Reiser de fato não contava com esse imprevisto – confiara demais no
tempo dessa estação do ano e não estava preparado para a chuva, pois não
se havia equipado com botas nem roupa apropriadas, e aquela roupa que
ele não tirava constituía todo o seu vestuário.
Não havia o que fazer ali a não ser perseverar até o céu voltar a se abrir
e o solo secar. Mas não parou de chover naquele dia, nem no seguinte.
De manhã bem cedo, apareceu na estalagem um sargento imperial que
fazia recrutamentos naquela localidade, sentou-se, como se fosse íntimo,
com seu caneco de cerveja, à mesa ao lado de Reiser e começou a falar
sobre a vida de soldado, a princípio com certa distância, mas pouco a
pouco de maneira cada vez mais inoportuna, até por fim lhe garantir que
não iria passar por Mühlhausen por causa dos recrutadores prussianos e
imperiais, e que era preferível que se alistasse logo com ele pela quantia
de 7 florins – parecia que o sonho de Reiser de ser soldado seria realizado
antes do que imaginara.
Quando o soldado saiu, entrou de novo o professor, que deu bom-dia a
Reiser e o advertiu em segredo para ter cuidado com o recrutador, embora
ele mesmo não julgasse tão ruim assim a vida de soldado; pois seu filho
servira por dois anos em Mainz, e quem não tinha passaporte dificilmente
conseguiria passar por ali.
Reiser lhe garantiu que trazia consigo tudo o que era necessário para
sua identificação. A saber, o cartaz em latim da solenidade escolar em
Hannover, em que havia discursado no aniversário da rainha da
Inglaterra, e nele seu nome não estava grafado Reiser, mas Reiserus. Além
disso, havia o prólogo impresso ao Desertor por amor filial e seu nome
figurava como autor, e um poema saudando a chegada de um professor,
em que seu nome estava impresso junto com o dos outros estudantes da
primeira série.
No início, ele não se sentiu à vontade para mostrar esses documentos
insólitos, até que insistiram, dando-lhe a entender claramente que seria
considerado um vagabundo.
Mostrou então os documentos impressos; e eles tiveram um efeito
melhor do que havia esperado inicialmente, porque foi apresentando-os
aos poucos.
Desenrolou primeiro o grande cartaz em latim e apontou seu nome
Reiserus. – O professor teve de novo a oportunidade de mostrar sua
destreza no latim, traduzindo o cartaz para o alemão; e assim Reiser já o
conquistara em grande parte.
Em seguida, pegou o prólogo e indicou aos presentes seu nome
impresso em alemão; todos se puseram de acordo, e o professor contou
nessa ocasião que ele também tinha encenado peças de teatro na escola
dos jesuítas e também teve o nome impresso.
Por fim, Reiser mostrou ainda o poema em que seu nome aparecia
impresso de novo na lista de todos os seus colegas de escola, e assim se
dissiparam por completo todas as dúvidas de que ele não seria realmente
aquele cujo nome aparecia tantas vezes e de tão distintas maneiras. O
próprio recrutador se calou e pareceu nutrir certo respeito por Reiser.
Isso o tranquilizou. Pediu pena e papel e começou a traduzir um dos
hinos homéricos em hexâmetros alemães. À noite, o professor voltou e
conversou com ele: assim se passou aquele dia, e Reiser foi dormir
tranquilo.
Mas, ao acordar na manhã seguinte, viu outra vez o céu tão nublado
quanto no dia anterior, ouviu a chuva bater na janela e começou a perder
o ânimo.
Levantou-se da cama de palha e sentou-se triste à mesa; os hinos
homéricos não avançavam – pôs-se à janela e observou se o céu não
estaria clareando, quando o soldado entrou para lhe fazer sua visita
matutina.
Enquanto Reiser se vestia e fazia uma trança em seu cabelo, o soldado
começou novamente a elogiar bastante a estatura dele, o comprimento de
seu cabelo, e lamentou que não quisesse entrar para o exército.
O professor também apareceu; tinham refletido desde o dia anterior
sobre o fato de os documentos apresentados não possuírem nenhum selo,
e, diante dessa circunstância, que pesava contra Reiser, alertaram-no de
que não conseguiria passar pelos recrutadores e de que deveria dar
preferência àquele que o teria abordado primeiro.
Isso durou o dia todo – que foi um dos mais tristes para Reiser, já que
ele não podia seguir viagem; até que, por volta do anoitecer, o tempo
melhorou e seu ânimo reacendeu de imediato.
Reuniu toda a sua força de persuasão para convencer aquelas pessoas,
com as ideias mais enfáticas, de que era efetivamente o seu propósito
estudar em Erfurt, e de que nada no mundo poderia dissuadi-lo disso, até
que por fim pareceram acreditar nele.
O professor lhe disse em latim que, quando partisse para Mühlhausen
na manhã seguinte, Reiser encontraria o dono daquela estalagem, que
também falava latim e que tinha viajado para ir buscar suos (os seus).
O soldado, no entanto, prometeu a Reiser, para espanto seu,
acompanhá-lo na manhã seguinte e guiá-lo pelo bosque.
Na manhã seguinte, bem cedinho, o soldado já estava ali para
acompanhá-lo e quis pagar a conta de Reiser na estalagem, o que ele
recusou veementemente.
Saíram da aldeia de Orschla para Hähnichen passando por uma colina;
o soldado não abriu a boca, e, quando caminhavam por um bosque, Reiser
esperava a todo instante a decisão de seu destino, do qual não poderia
escapar.
De repente, o soldado estacou e fez um discurso muito patético para
Reiser, no qual dizia que ele deveria considerar mais uma vez se estava
seguro de não cair nas mãos de outros recrutadores; pois a única coisa que
o deixaria zangado seria ouvir que Reiser tinha se tornado um soldado, e
que, portanto, o teria, por assim dizer, enganado: mas, se tinha realmente
a intenção de estudar e não se tornar soldado, ele lhe desejava sorte em
seu plano e uma boa viagem.
Depois disso, partiu, e Reiser só se sentiu confiante após ter caminhado
um bom trecho e sem encontrar nada que lhe chamasse atenção, exceto
um corcunda que apascentava dois porcos e falou com ele em latim
porque achou que fosse estudante.
Esse homem era o dono da estalagem de Orschla, de quem o professor
dissera que ia buscar os seus (suos), mas havia buscado os porcos (sues),
que o professor em Orschla, a usar a segunda declinação, elevou à
condição de seus parentes.
Assim que Reiser novamente se viu ao ar livre e não avistou ninguém
que estivesse à sua espreita, sentiu uma alegria inesperada – mas o perigo
de que se livrara fez com que, durante o trajeto, refletisse muito
seriamente sobre sua vida futura.
Ponderou que, se dissesse que sua intenção era ir para a universidade e
estudar, passaria a todas as pessoas uma impressão de seriedade. A ideia
mesma não lhe desagradava, mas isso só durou até que os bastidores do
teatro e suas luzes novamente surgiram em sua imaginação e todas as
outras perspectivas tiveram de lhes ceder lugar.
Caminhou até por volta do meio-dia de maneira bastante incômoda,
porque o terreno ainda não estava seco. Com isso, para seu espanto, seus
sapatos começaram a estragar, e os sapatos, naquelas circunstâncias, eram
de certo modo uma parte insubstituível dele mesmo.
A cada passo que dava, sentia o prejuízo iminente, quando, por volta
da hora do almoço, o céu tornou a se cobrir de nuvens, pressagiando um
novo aguaceiro, que desabou em seguida e interrompeu a viagem de
Reiser pela segunda vez.
Por sorte, logo alcançou a casa de um caçador, que ficava no meio de
um campo rodeado por uma floresta, onde ele entrou cheio de confiança,
sendo bem acolhido e tratado com gentileza.
Era como se sua recepção já estivesse preparada, tão afável foi o
acolhimento das pessoas naquela casa solitária.
Era como se entre aquelas pessoas fosse evidente que num tempo
daqueles era preciso acolher o viajante. Não parou de chover o dia todo, e
elas o convidaram a permanecer ali naquela noite.
Quando o convidaram para jantar, Reiser não aceitou porque não
possuía dinheiro suficiente para pagar a refeição, tinha uma longa viagem
pela frente e precisava poupar mais que o usual; mas o caçador, quase
indignado, puxou-o para a mesa.
Para Reiser foi um sentimento sem igual ver-se tão bem acolhido por
pessoas completamente desconhecidas.
Sentiu-se ali como em casa; de noite, deram-lhe uma boa cama – a
primeira que lhe era oferecida em sua viagem.
Na manhã seguinte, despertaram-no para o café da manhã e fizeram-
no ficar ali o dia todo, porque continuava chovendo.
O homem foi para o bosque dizendo a Reiser que ficasse em sua
biblioteca, onde nesse meio-tempo ele poderia se distrair.
A biblioteca era composta por uma grande coleção de velhos
almanaques, diálogos de mortos, a história de um estudante de Göttingen
e um semanário de Erfurt, O Burguês e o Camponês, em que o camponês
falava um dialeto da Turíngia e o burguês lhe respondia em alto-alemão.
Reiser se divertia maravilhosamente com essas coisas, e de quando em
quando cedia espaço a seus pensamentos; pois seu bondoso anfitrião e sua
anfitriã eram de poucas palavras, nada curiosos, e não lhe perguntaram
sequer uma vez para onde ia e de onde vinha, de modo que nada lhe
perturbava os pensamentos.
Esse aposento hospitaleiro, com uma janelinha através da qual se via o
vasto campo até o bosque, enquanto lá fora chovia a cântaros,
permaneceu como uma das imagens mais agradáveis na memória de
Reiser.
Na terceira manhã, o céu se desanuviara; e, quando Reiser se despediu
de seus benfeitores, eles procuraram dispensá-lo até mesmo dos
agradecimentos, aceitando uma soma irrisória de dinheiro como
pagamento pelos três dias de hospedagem, sem ao menos perguntar seu
nome quando partiu.
A lembrança daquelas pessoas ainda proporcionou muitas horas felizes
durante as andanças de Reiser e, ao mesmo tempo, lhe deu coragem e
confiança nos homens, entre os quais ele agora se perdia como num
oceano.
De início, o caminho ainda estava árduo por causa da chuva do dia
anterior; mas, como o sol brilhou forte, o solo voltou logo a ficar seco, e,
por volta do meio-dia, Reiser alcançou a cidade imperial de Mühlhausen,
que, com suas torres, apareceu diante dele como uma paisagem nova e
incomum.
Como o haviam advertido, ali era o ponto em que ele corria maior
perigo em relação aos recrutadores. – Dessa vez, esmerou-se o máximo
que pôde arrumando seus trajes antes de passar pela porta da cidade; e o
papel de um caminhante descontraído, já testado antes, também deu certo
agora como em Hildesheim, de modo que ele, sem ser interrogado por
nenhum sentinela, entrou com êxito na cidade.
Atravessou-a o mais rápido que pôde, perguntando pela porta da
cidade de onde saía o caminho para Erfurt, e, sempre que avistava algo,
mesmo distante, semelhante a um uniforme militar, apertava o passo.
Com que alegria não sacudiu de seus pés o pó daquela cidade, ao
ultrapassar a última barreira e não ver nenhum recrutador prussiano,
nem atrás de si nem a seu lado.
As pontas verdes das torres foram as únicas imagens que levou consigo
daquele amontoado de construções; todo o resto se extinguira; sua
imaginação havia se desviado rapidamente dos objetos.
Aproximava-se cada vez mais do objetivo da viagem, contemplando
com silencioso prazer o que havia percorrido, e seu modo de vida austero
e suas economias, em especial, lhe proporcionavam um doce triunfo, visto
que as dificuldades haviam quase sido superadas. Apesar disso, novamente
sentiu certo receio à medida que diminuía o espaço entre ele e suas
esperanças incertas.
Pois aquilo que não encontrara nenhuma resistência na imaginação
deveria agora se tornar realidade e enfrentar obstáculos que já se
apresentavam antecipadamente. Para Reiser, parecia muito mais fácil
caminhar pelo vasto mundo com perspectivas belas e agradáveis do que
estar num lugar determinado e fazer essas perspectivas se tornarem
verdadeiras.
Por isso, se pudesse prolongar sua caminhada, Reiser teria desejado
que o destino estivesse ainda mais distante. Mas a triste constatação do
estado de seus sapatos, cuja perda, nas circunstâncias em que se
encontrava, era irreparável para ele, barrou de vez todas suas maiores
esperanças forçando-o a refletir seriamente sobre sua situação.
É curioso como as coisas reais mais desprezíveis podem intervir nos
mais brilhantes edifícios da fantasia e destruí-los, e como o destino de um
homem pode estar baseado justamente nelas.
O sucesso que Reiser queria ter no mundo dependia agora,
literalmente, de seus sapatos; pois ele não podia vender nenhuma das
peças que lhe restavam se quisesse manter uma aparência decente; e, no
entanto, os sapatos estragados, que ele não podia substituir por novos,
tornavam todo o seu traje modesto e desprezível.
Quando estava para pegar o caminho para Langensalza, isso o afundou
em pensamentos tristes e melancólicos, até que um camponês e um
aprendiz de artesão, que faziam o mesmo trajeto, se juntaram a ele e o
distraíram com suas conversas.
O aprendiz de artesão contou sobre suas viagens pela Saxônia; o
camponês tinha um pleito, que ele mesmo queria apresentar ao príncipe
em Dresden.
Passava um pouco do meio-dia e fazia um calor sufocante. As botas
apertavam o aprendiz de artesão – Reiser via seus sapatos se deteriorarem
a cada passo, e o camponês lamentou a terrível sede, quando encontraram
alguns trabalhadores no campo que tinham um balde de água ao lado
deles e a ofereceram aos três caminhantes exaustos.
Uma cena dessas – em que pessoas desconhecidas e distantes umas das
outras de repente se veem próximas, têm necessidades comuns, consolos
comuns e se encorajam umas às outras como se jamais tivessem sido
desconhecidas e distantes – recompensava Reiser por tudo de
desagradável que passara em suas caminhadas, e ele se lembraria disso
com satisfação interior.
Seus companheiros de viagem o deixaram diante da cidade de
Langensalza, onde ele não se deteve, mas procurou alcançar ainda o
povoado seguinte, no qual pernoitou.
Chegou tarde à estalagem na qual passou a última noite antes de sua
chegada em Erfurt. – Quando acordou na manhã seguinte, seu primeiro
pensamento foi procurar um sapateiro; e que enorme alegria foi encontrar
naquele povoado um sapateiro que, enquanto ele esperava, deu nova vida
a seus sapatos por uns poucos vinténs e, com isso, Reiser se viu
repentinamente livre do maior dos embaraços.
Saiu então em disparada para Erfurt. – Vestido assim, ele poderia
aparecer diante de qualquer um, e havia recobrado o ânimo e a confiança
em si mesmo.
Na última aldeia antes de Erfurt, permitiu-se beber um gole de cerveja.
– Na estalagem havia muita animação. Notava-se já a proximidade da
cidade, pela presença de muitos moradores, entre os quais também um
homem de letras, com quem os outros falavam sobre suas obras.
Dessa aldeia, Reiser conseguiu finalmente avistar a cidade de Erfurt,
com sua antiga catedral, suas muitas torres, seus altos baluartes e a
montanha de São Pedro. – Esta era a cidade natal de seu amigo Philipp
Reiser, sobre a qual ele tinha lhe contado muitas coisas. – No caminho
para a cidade havia muitas cerejeiras. – O calor do sol do meio-dia já
passara – as pessoas passeavam diante das portas da cidade – e quando
Reiser, no caminho, pensou em Hannover, era como se tivesse dado um
breve passeio de lá até aqui, tão pequeno lhe pareceu agora o espaço
percorrido.
Reiser ainda não tinha visto uma cidade tão grande; para ele, a
paisagem era nova e incomum; passou pela rua larga e linda que se
chamava Anger, e não conseguiu se conter de perambular ainda um pouco
pela cidade antes de se pôr de novo em marcha; pois queria ir ainda até a
aldeia seguinte, que ficava no caminho para Weimar.
Ao caminhar pelas ruas de Erfurt, chegou a um bairro mais afastado e
entrou numa estalagem, porque ainda não era tarde.
O estalajadeiro, um homem gordo, estava sentado à janela e Reiser lhe
perguntou se a companhia de teatro de Eckhof ainda estava em Weimar.
“Nada disso!”, respondeu o homem, “ela está em Gotha!”. Reiser
continuou perguntando se Wieland ainda estava em Erfurt. “Nada disso!”,
respondeu de novo, “ele está em Weimar!”. Ele soltava o “nada disso!”
toda vez com uma espécie de mau humor, como se o aborrecesse dizer
“não!”.
E aquele seco “nada disso” na resposta do estalajadeiro gordo
desarranjou de súbito todos os planos de Reiser. – Sua mente estava
realmente voltada para Weimar – acreditava que lá ocorreria uma série de
coisas inesperadas – era lá que veria o idolatrado autor de Os sofrimentos do
jovem Werther. – E agora, em seus ouvidos, soava repentinamente Gotha,
em vez de Weimar.
Mas não deixou que isso o perturbasse; levantou apressado para tomar
a direção de Gotha ainda naquela noite e, para não se desviar de suas
regras estritas, pernoitar na aldeia seguinte.
Antes de o sol se pôr, ele já tinha Erfurt às suas costas, e, sem que
tivesse anoitecido completamente, alcançou a primeira aldeia no caminho
para Gotha. – A catedral e as torres antigas de Erfurt formaram uma nova
imagem em sua alma, que ele levava consigo e que parecia convidá-lo a
retornar àquele lugar.
Mas na aldeia onde se hospedou ele teve ainda, para concluir, de
dividir sua cama de palha com vizinhos inquietos. Eram cocheiros que, de
quando em quando, se levantavam e conversavam entre si num dialeto
muito grosseiro, em que havia especialmente uma palavra que soava um
tanto repugnante aos ouvidos de Reiser e sempre vinha acompanhada de
uma porção de associações torpes: os camponeses diziam sempre er
quam[29] em vez de er kam. Para Reiser, esse quam parecia expressar todo o
modo de ser deles; e toda a sua grosseria estava concentrada, por assim
dizer, nesse quam, que sempre pronunciavam exageradamente.
Mal Reiser pegava no sono e a detestada palavra tornava a despertá-lo,
de modo que aquela noite foi uma das mais tristes que já passara sobre
uma cama de palha. Quando o dia raiou, viu o rosto balofo e inchado de
seus companheiros de sono, que coincidia perfeitamente com o quam que
ainda zumbia em seus ouvidos quando já havia deixado a estalagem e
caminhava de manhã cedo em ritmo rápido rumo a Gotha.
Como dormira pouco à noite, seus pensamentos no caminho para
Gotha não eram lá muitos alegres, e, ainda por cima, suas perspectivas se
estreitavam a cada passo e sua fantasia tinha menos liberdade de ação.
Era um domingo, e um sapateiro que estivera durante a semana no
campo para cobrar dívidas voltou com ele para Gotha, contando-lhe, entre
outras coisas, que era muito caro viver lá.
A notícia deixou Reiser muito preocupado; ainda lhe restava 1 florim e
seu destino em Gotha deveria ser decidido logo.
A conversa com o sapateiro, que se queixou do aperto que passava
morando em Gotha, não foi nada agradável para Reiser, colocando seus
pensamentos bem para baixo, quando refletiu sobre a vida real numa
cidade como aquela, onde ainda não era conhecido por ninguém e era
muito duvidoso que alguém se interessasse por seu destino e notasse os
seus desejos.
Essas reflexões desagradáveis tornaram seu caminho ainda mais
penoso, e a cada passo sentia-se ainda mais cansado, quando avistou as
duas pequenas torres de Gotha, uma das quais, segundo lhe disse o
sapateiro, ficava na igreja e a outra, no teatro.
Esse contraste agradável e a viva impressão sensorial alegraram aos
poucos seu ânimo, e ele redobrou seus passos, exigindo bastante de seu
companheiro de viagem.
Pois a pequena torre lhe indicava claramente o lugar em que seriam
imediatamente colhidos ruidosos aplausos, e coroados os desejos de um
jovem sedento de glória.
Esse lugar afirmava ali os seus direitos junto ao templo sagrado, e era
mesmo um templo consagrado à arte e às musas, em que o talento podia
se desenvolver e todos e cada um dos sentimentos do coração, saídos de
suas reentrâncias mais secretas, podiam desabrochar diante de um público
atento.
Ali era onde a queda do homem nobre fazia verter a lágrima sublime
da compaixão, e se aclamava com aplauso estrondoso o gênio que tinha o
poder de iludir as almas e sabia amolecer os corações.
Compaixão para com os mortos e honra aos vivos eram ali o belo
desfecho – e Reiser já vivia e se movia nesse elemento em que tudo o que
os tempos passados haviam sentido era vivido mais uma vez, e todas as
cenas da vida eram retomadas num pequeno espaço.
Em suma, era nada menos do que toda a vida humana, com todas as
suas vicissitudes e diferentes destinos, que se apresentava, como num
quadro, à alma de Reiser quando avistou a torrezinha do teatro de Gotha,
com o que os lamentos do sapateiro que o acompanhava e suas próprias
preocupações se perderam como num mar. –
Com seu único florim no bolso, Reiser se sentiu afortunado como um
rei enquanto aquela riqueza de imagens flutuava diante dele, volteando ao
redor da ponta da torrezinha de Gotha e fazendo-o sonhar novamente um
lindo futuro para si.
Como não estavam muito longe da cidade, Reiser deixou seu
companheiro seguir em frente e sentou-se suavemente embaixo de uma
árvore, para arrumar, tão bem quanto possível, sua roupa e assegurar que
sua entrada se desse de maneira imponente.
O resultado foi tão bom que alguns artesãos que passeavam diante da
porta da cidade de Gotha tiraram o chapéu para ele como se fosse um
homem importante, o que deixou Reiser não pouco espantado, ele que
durante toda a viagem dormira com cocheiros em camas de palha e
desempenhara um papel nada brilhante.
Atravessando a velha porta da cidade de Gotha, chegou a uma rua um
pouco escura, subiu por ela, e logo à direita via-se a estalagem A Cruz
Dourada, onde ele entrou, porque não lhe pareceu das mais suntuosas.
Assim que entrou, encontrou logo em frente, na sala da estalagem, um
bando de aprendizes de artesão que gritavam, fazendo barulho; quis dar
meia-volta, quando o velho estalajadeiro veio até ele, dirigiu-lhe
amistosamente a palavra e perguntou se porventura ele gostaria de se
hospedar ali. Reiser respondeu, perguntando se era uma pousada para
artesãos. O estalajadeiro disse que isso não era nenhum problema e que
ele ficaria satisfeito com o seu aposento, e, em seguida, convidou Reiser a
entrar em sua própria sala bem mobiliada, onde estavam um velho
capitão, um lacaio da corte e outras pessoas bem-vestidas, em cuja
companhia Reiser foi introduzido pelo estalajadeiro, sendo tratado da
maneira mais educada. Pois não lhe dirigiram nenhuma pergunta
indiscreta ou curiosa e lhe dedicaram uma atenção lisonjeira.
Na sala havia um piano de cauda, no qual um jovem de nome
Liebetraut tocava. Não fazia muito tempo, esse Liebetraut também havia
entrado casualmente na estalagem e conhecido os velhos estalajadeiros,
que o convenceram a arrendá-la, porque eles estavam querendo se
aposentar, de modo que ele era o verdadeiro estalajadeiro, embora os
velhos ainda tivessem de lhe dar dicas e ajudá-lo a cuidar do negócio.
Esse jovem Liebetraut rapidamente travou conversa sobre belas-letras
e arte poética com Reiser, e se revelou um homem de gosto e educação
refinados, mas o mais curioso foi que ele pareceu aludir claramente ao
fato de que Reiser teria vindo até ali para se dedicar ao teatro.
Reiser, no entanto, não entrou em detalhes e lhe deram um quarto
onde podia ficar sozinho. Ali seus pensamentos se reorganizaram, e ele
planejou como seria sua visita ao ator Eckhof no dia seguinte, a quem
pretendia fazer o seu pedido.
Enquanto estava sozinho no quarto, ocupado com esses pensamentos e
em pé à janela, um coro de estudantes se postou diante da casa e cantou
um moteto que Reiser cantara com frequência, no vento e na chuva,
durante seus anos escolares.
Isso o fez recordar todo aquele período sombrio de sua vida em que
desânimo, desprezo de si e pressões externas lhe roubavam toda e
qualquer fagulha de alegria, em que todos os seus desejos malogravam,
não lhe sobrando nada mais do que um fraco raio de esperança.
Não seria finalmente a hora, pensou, de a aurora surgir daquela
escuridão? – E uma falsa e ilusória esperança parecia lhe dizer que, por ter
sido por tanto tempo um tormento para si próprio, ele teria agora alguma
alegria consigo mesmo, e que a feliz mudança de seu destino não estava
tão longe assim.
Sua maior felicidade, no entanto, era agora de fato o palco, pois ali era
o único lugar em que seu desejo insaciável de vivenciar todas as cenas da
vida humana podia ser satisfeito.
Como desde criança ele tivera tão pouca existência própria, qualquer
destino que não fosse o seu o atraía com muito mais força; disso provinha,
naturalmente, sua sanha de ler e ver teatro durante seus anos de escola. –
Em cada destino alheio, sentia-se, por assim dizer, arrancado de si mesmo
e encontrava apenas nos outros a chama de vida que nele já estava quase
extinta pela pressão externa.
Não era uma vocação genuína, nem um puro impulso de representação
que o atraía: pois para ele era mais importante representar as cenas da
vida em seu interior do que no exterior. Ele queria ter para si todo o sacrifício
que a arte exigia.
Queria representar as cenas da vida por causa dele mesmo – elas o
atraíam simplesmente porque ele próprio se comprazia com elas, e não
porque sua representação fiel fosse importante para ele. – Reiser se
enganava ao tomar como genuíno impulso artístico algo que estava
baseado apenas em circunstâncias casuais de sua vida. – E quantos
sofrimentos essa ilusão não lhe causou, quantas alegrias não lhe roubou!
Se naquela época tivesse percebido a verdadeira marca característica e
sabido que aquele que não se esquece de si enquanto faz arte não nasceu
para ser artista; quanto esforço inútil, quanta aflição perdida isso não lhe
teria poupado!
Mas seu destino, desde a infância, era suportar os sofrimentos da
imaginação – entre isso e sua condição real, reinava uma permanente
dissonância – e cada lindo sonho seu era depois vingado com tormentos
amargos.
Após uma longa caminhada, Reiser conseguiu passar sua primeira
noite em Gotha num sono suave; quando acordou cedo na manhã
seguinte, era como se escutasse o fecho de uma ária de Lisuart e Dariolette
cantada por uma velha maldita:

Quem sabe seja esta a manhã


Que trará a ansiada façanha
De pôr fim à minha agonia.

Vestiu-se, sempre com esses versos em seu pensamento, e perguntou ao


jovem estalajadeiro onde morava Eckhof, a quem gostaria de fazer uma
visita naquela manhã.
Esperando ser bem aceito ali, muniu-se do prólogo impresso que
escrevera em Hannover e que havia sido recitado por Ifland.
Antes disso, Liebetraut, o jovem estalajadeiro, o obrigou a tomar o café
da manhã com ele e parecia ter particular prazer em sua companhia, pois
logo começou a torná-lo confidente de sua história amorosa, que consistia
em ter arrendado a estalagem para poder se casar o quanto antes com
uma jovem a quem amava.
Reiser foi então à casa de Eckhof, e, no trajeto, todos os planos que fez
desde o começo de sua caminhada voltaram a se concentrar em sua alma,
quando se viu tão próximo do objetivo daquela viagem; a melodia e os
versos de Lisuart e Dariolette continuavam a soar em seus ouvidos, e dessa
vez pelo menos sua esperança não o enganou. – Eckhof o recebeu melhor
do que Reiser esperara e conversou com ele por quase uma hora.
O entusiasmo juvenil de Reiser pela arte dramática pareceu não
desagradar ao velho – que conversou sobre temas de arte e não
desaprovou de modo algum que quisesse se dedicar ao teatro,
acrescentando que sem dúvida faltavam pessoas assim, que se dedicavam
aos palcos não movidas por circunstâncias externas, mas por um impulso
próprio para a arte.
O que poderia ser, para Reiser, mais encorajador do que essa
observação? – Em sua cabeça, ele já se imaginou como aluno daquele
excelente mestre.
Reiser sacou o seu prólogo impresso, recebendo toda a aprovação de
Eckhof, que também o pediu emprestado, e assinalou como o talento para
o teatro e para a poesia estão muito próximos um do outro e como, de
certo modo, um pressupõe o outro.
Nesse momento, Reiser se sentiu tão feliz, como só podia se sentir um
jovem que viajou quase 65 quilômetros a pé, comendo pão seco, para ver e
falar com Eckhof, e se tornar ator sob sua direção.
Em relação ao contrato, disse Eckhof, era preciso principalmente que
se apresentasse ao bibliotecário Reichardt, com quem ele mesmo falaria
sobre Reiser.
Reiser não perdeu nem um instante para seguir essa recomendação, e
foi da residência de Eckhof, que morava na casa de um padeiro, até a do
bibliotecário Reichardt, que também o recebeu bem, sem lhe dar,
entretanto, tanta atenção quanto Eckhof. Mas deu-lhe esperança de obter
um papel de estreia, o que era o grande desejo de Reiser, pois, se o
conseguisse, não duvidava de que alcançaria seu objetivo.
Voltou para casa com a alegria estampada no rosto, porque julgou
extremamente afortunado o início desse empreendimento e estava muito
confiante de que seu desejo, em tais circunstâncias favoráveis, não
poderia mais malograr.
E, embora não tivesse revelado logo tudo ao seu anfitrião, este parecia
não ter mais dúvida alguma de que ele permaneceria em Gotha e iniciaria
sua carreira teatral ali.
Totalmente confiante em si e em seu destino, Reiser desfrutou um
almoço extremamente agradável na companhia do velho capitão, do
lacaio da corte e do estalajadeiro; e cheio de perspectivas radiantes, já que
tudo parecia estar a seu favor, ele, num delírio de alegria, excedeu pela
primeira vez, naquele almoço, os recursos de seu caixa e teve por isso a
impressão de estar mais vinculado àquele lugar e à perseguição obstinada
de seu plano.
Quase todo dia ele visitava Eckhof, que o aconselhou primeiro a
frequentar assiduamente os ensaios no teatro, o que Reiser fez, e pôde
então ver o velho Eckhof inteiramente em seu elemento, como era atento
a cada detalhe e como também fazia muitas advertências aos atores
principais. Reiser também foi autorizado a frequentar sem pagar o teatro,
e em sua primeira vez lá um certo Bindrin estreou no papel de pai na peça
Zaire.
Como não foi especialmente aplaudido, e Reiser sentiu que na maioria
dos trechos a expressão tinha de ser completamente diferente, isso o
incentivou ainda mais a atuar o quanto antes no palco, num papel de
destaque, e ficou insistindo com Eckhof para ter um papel numa das peças
que seriam encenadas em seguida.
Quando encenaram Os poetas da moda, Reiser sugeriu que ele mesmo
interpretasse o Obscuro, mas foi dissuadido por Eckhof com a justificativa
de que o papel era dele mesmo, e não era aconselhável que um ator
novato se apresentasse pela primeira vez justamente num papel que
estavam habituados a ver representado por um ator velho e experiente.
Assim, sua estreia era adiada de um dia para o outro, ao passo que sua
esperança de estrear se alimentava mais e mais, e todo o seu destino
dependia agora dessa decisão.
Todas as vezes que Reiser começava a ficar desalentado, encontrava
sempre consolo e nova esperança em Eckhof; pois Eckhof gostava de
conversar com ele e lhe inspirava autoconfiança e novo ânimo.
Mesmo assim, algumas palavras de Eckhof foram extremamente
desanimadoras; pois, quando certa vez conversaram sobre seu contrato, e
Reiser se referiu a um jovem que representara o papel de Reimreich na
peça Os poetas da moda, Eckhof disse que o aceitaram sobretudo por sua
juventude, e parecia por isso dar a entender que Reiser não cumpria mais
esse requisito; à época ele ainda tinha 19 anos, mas, ao que parecia, era
considerado bem mais velho por todos; assim, privado de toda alegria da
juventude, nem ao menos lhe restara a aparência dela.
E outra vez, quando falavam de Goethe, Eckhof disse que ele tinha mais
ou menos a estatura de Reiser, mas boa fisionomia, e esse mas já teria por
si só aniquilado o ator em Reiser se Eckhof não lhe tivesse dito
casualmente algo animador em seguida, ao lhe perguntar se ele, além do
prólogo, não tinha escrito mais nada. Reiser respondeu que sim e, logo que
chegou em casa, pôs no papel os seus versos, que sabia de cor, para levá-
los a Eckhof.
Passou alguns bons dias envolvido com esse trabalho, e o estalajadeiro
pôs na cabeça que Reiser estava compondo uma obra dramática. Nada o
dissuadiu disso, e desejou antecipadamente a Reiser sorte na brilhante
carreira que iria iniciar.
Quando Eckhof leu os poemas, demonstrou sua aprovação a Reiser e
disse que também gostaria de mostrá-los ao bibliotecário Reichardt. Para
Reiser, isso foi um estímulo ímpar, porque ele ainda se lembrava da
primeira frase de Eckhof: o ator e o poeta estão próximos um do outro.
Reiser não duvidou de que esses poemas lhe abririam ainda mais o
caminho para o teatro e que logo o levariam para mais perto de seu
objetivo. Ademais, o ator Grossmann, que estava em Gotha àquela altura e
encontrou Reiser um dia na rua, lhe insuflou novo ânimo ao ponderar que
eles não o teriam retido por muito tempo ali, mesmo sem uma estreia, se
não tivessem a intenção de contratá-lo no teatro, pois já fazia três
semanas que Reiser estava na cidade.
Essas palavras consoladoras e o tratamento amistoso de Grossmann
foram naquele momento um verdadeiro bálsamo para Reiser, que
caminhava solitário de um lado para o outro, perto do castelo em obras,
pensando com sombrio mau humor sobre seu destino ainda incerto.
Reiser voltou para casa com boas esperanças e passou o dia ainda
muito satisfeito com o estalajadeiro.
No dia seguinte, foi ao ensaio, e eles estavam representando
justamente naquele dia a opereta O desertor, em que um ator estranho, de
nome Neuhaus, fazia o papel do desertor; e sua esposa, o de Lilla.
Eckhof se mostrou incansável durante o ensaio, e Reiser ficou na coxia
observando com prazer como, do esforço e da atenção de cada um, nascia
a linda obra que deveria deleitar os espectadores à noite.
Pensava no quão vivamente próximo ele se encontrava daquela
movimentação excitante, e que seu futuro se decidiria também com sua
atuação naquele palco, e sua existência se desenvolveria naquele lugar.
Pois todos os seus desejos, depois da longa viagem, estavam limitados a
esse palco; ali ele se viu, ali ele se reencontrou. Ali o futuro abria para ele
todo o seu rico tesouro de douradas fantasias, permitindo-lhe contemplar
um lindo horizonte, cada vez mais lindo ainda. – –
Um dia, ele estava de pé na coxia, absorto em seus pensamentos, como
tantas vezes ficara, quando de repente viu se aproximar o bibliotecário
Reichardt, de quem já havia alguns dias aguardava uma resposta decisiva.
As feições do bibliotecário já anunciavam algo ruim; tratou Reiser com
palavras secas, dizendo-lhe que infelizmente não era possível contratá-lo
para o teatro e que ele tampouco poderia estrear em algum papel. Com
essas palavras lhe devolveu os poemas escritos, acrescentando, como que
para consolá-lo, que nele havia uma versificação leve e que Reiser não
deveria negligenciar aquele talento.
Com o corpo e a alma paralisados, ele não conseguiu responder uma
palavra, mas se dirigiu ao fundo do teatro, cuja última cortina ficava ao
lado de um muro frio, e, completamente desesperado, bateu a cabeça na
parede. Pois agora era de fato um desgraçado, duplamente desgraçado.
A privação imaginada e a privação real se reuniram numa terrível
harmonia para encher sua alma de pavor e horror diante do futuro.
Não viu saída para esse labirinto a que sua própria tolice o conduzira –
lá estava o muro frio e vazio, o espetáculo ilusório chegara ao fim.
Saiu correndo para fora da porta da cidade e zanzou, completamente
desesperado, pela alameda onde tantas vezes se ocupara com as ideias
mais agradáveis; as pessoas passavam frias diante dele; ninguém sabia que
naquele momento ele perdera a única esperança de sua vida e era um dos
mais desamparados seres humanos.
E era curioso que justo nessa situação de completo abandono se
agitasse dentro dele um desconhecido sentimento de necessidade de
amor, pois seu desespero se converteu em compaixão por sua própria
situação, e agora lhe faltava um ser que pudesse ter essa compaixão por
ele.
Não ousou ir para casa ao meio-dia e não comeu nada, retornando à
tarde – à noite foi ao teatro, onde estava sendo encenada a opereta O
desertor, peça que marcou a morte de suas esperanças.
Porém, jamais em sua vida seu interesse por um destino alheio foi tão
forte como nessa noite com o destino dos amantes que deveriam ser
separados pelo golpe ameaçador da morte. Aconteceu com ele o que
Homero disse das moças que choraram por Pátroclo assassinado – elas
choravam ao mesmo tempo o próprio destino.
Até mesmo a música o levava às lágrimas, e cada expressão tocava o
íntimo de seu ser. Mas ele se sentiu ainda mais tocado com a cena em que
o desertor, que já sabe de sua sentença de morte, quer escrever da cadeia à
sua amada, e seu companheiro de cela, bêbado, não o deixa em paz,
porque quer aprender a soletrar uma palavra.
Reiser sentiu profundamente o quão pouco um ser humano é para o
outro, o quão pouco o destino de alguém importa aos outros; e novamente
se fez presente em sua alma o amigo com o distintivo em seu chapéu. Mas
por que ele limparia o distintivo do chapéu se não fosse para agradar à sua
namorada, que era sua única deusa, alguém em quem queria se
reencontrar e por quem queria ser amado novamente?
A peça terminou alegre, os infelizes foram consolados, o choro se
transformou em riso, a tristeza, em alegria – mas Reiser foi para casa triste
e de coração pesado – via tudo escuro, nenhuma centelha de esperança.
Quando chegou em casa, foi imediatamente para a cama – seus
sentidos estavam embotados – seus pensamentos não conseguiam
encontrar mais saída alguma – e o sono era a única coisa que ainda lhe
restava. – Era como se não fosse mais despertar desse sono – pois todas as
perspectivas de vida lhe haviam sido tiradas, e não havia mais esperança
pela qual devesse acordar.
O pensamento de dissolução, de esquecimento completo de si mesmo,
de interrupção de todas as recordações e de toda a consciência lhe foi tão
doce que nessa noite desfrutou fartamente o bem-estar proporcionado
pelo sono – pois nenhum desejo leve impedia mais o completo
relaxamento de todas as forças de sua alma; nenhum sonho de esperança
ilusória pairava diante dele – tudo agora havia passado e terminado na
silenciosa e eterna noite do túmulo.
Quão generosa é a natureza ao oferecer àquele que não tem esperança
o cálice em que pode beber o esquecimento de seus sofrimentos,
extinguindo de sua alma todas as recordações de coisas que desejou ou
que almejou.
Quando na manhã seguinte Reiser despertou, já tarde, de seu sono
profundo, sentiu-se maravilhosamente fortalecido no corpo e na alma –
sentiu força em si para empreender qualquer coisa e, mesmo naquelas
circunstâncias, alcançar o objetivo de seus desejos.
Sobreveio-lhe uma ideia: candidatar-se a dar aulas particulares;
sustentar-se com seu próprio esforço e trabalhar de graça no teatro. – Essa
decisão foi ganhando vida dentro dele, e, logo que viu diante de si uma
centelha de esperança, confiou completamente em suas forças para
alcançar seu objetivo.
Com esses pensamentos em mente, ele se vestiu e foi até a casa de
Eckhof, a quem revelou sua decisão e pediu um conselho, assegurando-lhe
que conseguiria se manter, mas sem mencionar o modo como o faria.
Eckhof louvou e aprovou sua perseverança e lhe disse que não
duvidava de que aceitariam seu pedido. O bibliotecário Reichardt, a quem
Reiser também informara sua decisão, prometeu lhe dar uma resposta no
outro dia.
Reiser voltou para casa cheio de novas esperanças – e toda essa sua
empresa lhe pareceu mais respeitável, já que conciliaria a arte com a
dedicação a ocupações úteis, e com o ganha-pão – e todas as suas horas
vagas seriam sacrificadas à arte.
Novamente cheio de confiança, almoçou com o estalajadeiro – e sentiu
em seu interior um ânimo irresistível para suportar a maior dureza na
vida por amor à arte, para se limitar às necessidades mais básicas e não
descansar nem de dia nem de noite, a fim de se exercitar na arte e se
dedicar ao mesmo tempo apropriadamente às suas aulas.
Com tais decisões, que insuflaram nele um genuíno ânimo heroico, foi
na manhã seguinte à casa de Reichardt, e ouviu a sentença final de que
eles não poderiam aceitar seu pedido para trabalhar de graça, pois por ora
simplesmente não haveria nenhuma nova contratação no teatro. – Se
Reiser tivesse chegado algumas semanas antes, teria sido possível fazer
algo por ele, mas agora tudo era inútil.
Essa segunda resposta negativa, e totalmente inesperada, provocou
uma espécie de amargura interior em Reiser – que naquele momento
começou a se odiar e a se desprezar, e perguntou se ele não poderia ser
ponto, copista de papéis ou limpar as luminárias. – Reichardt respondeu:
ele lamentava que Reiser revelasse tanto entusiasmo pelo teatro e que seu
empenho não tivesse dado certo ali; mas talvez tivesse êxito em outro
lugar.
Reiser saiu da casa de Reichardt imerso em pensamentos e ficou
andando de um lado para outro, perto das obras do castelo, onde alguns
trabalhadores levavam pedras em carriolas e outros as organizavam. –
Permaneceu uma hora ali, sempre observando o trabalho – até que surgiu
nele o desejo insólito de tirar sua boa vestimenta e também carregar
pedras em carriolas, junto com aqueles diaristas da construção.
Era por volta do meio-dia e o sol ia ficando cada vez mais quente. – As
mãos dos trabalhadores estavam fatigadas – eles repousavam e
almoçavam no chão. – Reiser trocou algumas palavras com um deles e lhe
perguntou quanto ganhava por dia. Eram alguns trocados, que Reiser não
possuía mais, dinheiro que podia ser ganho num dia.
A decisão de trabalhar por aquela diária era tão certa para Reiser
naquele momento que teve de rir internamente do trabalhador que tirou
o gorro para conversar com ele e que mal sabia que talvez no futuro
viessem a ser companheiros de trabalho.
A única coisa que conseguiu atenuar sua amargura, seu ódio e o
desprezo de si foi essa sua decisão, em que voltava a se respeitar. Pois
agora queria revelar sua verdadeira situação ao estalajadeiro, deixar sua
espada e sua roupa como pagamento para ele, e em seguida ir carregar
pedra nas obras do castelo.
Enquanto essas coisas passavam por sua cabeça, ele acreditava que
aquilo era realmente a sério, mal sabendo que sua imaginação de novo o
enganava e que já estava outra vez representando mentalmente um papel.
Pois como servente nas obras do castelo ele se encontraria na condição
mais baixa em que poderia estar; esse rebaixamento escolhido e
espontâneo tinha um fascínio extraordinário para ele – viveria agora
como os outros de sua condição, frequentaria assiduamente a igreja aos
domingos e seria um ser humano quieto e religioso – nas horas solitárias,
ele se deleitaria com Shakespeare e Homero, e teria em seu interior uma
vida real que não podia ter fora de si.
O que especialmente o comovia ao imaginar essas coisas era o
pensamento de que frequentaria assiduamente a igreja aos domingos e
ouviria o pregador com muita atenção. – Pois agindo assim, ele de algum
modo aniquilava a si mesmo, porque consideraria muito instrutivo tudo o
que mesmo o pior pregador lhe dissesse, e não gostaria de ser mais
inteligente do que o ser humano mais simplório.
Imaginava-se novamente na situação em que vivera como aprendiz de
chapeleiro, quando considerava o pregador de que gostava como um ser
superior e contemplava com veneração mesmo o coro de alunos na rua.
Naquela situação, não fazia a mínima ideia do que era teatro – mas outra
vez era para ele como se essa mesma situação talvez pudesse de novo
aproximá-lo milagrosamente de seu primeiro desejo.
Antes, porém, de se candidatar ao posto de diarista nas obras do
castelo, ele não pôde deixar de visitar Eckhof mais uma vez, para se
despedir dele e lhe contar que sua última esperança também fracassara.
Não foi capaz de lhe contar aquilo sem sentir comoção e um aperto no
coração, porque compreendia toda a sua situação de agora em diante, e,
portanto, seu pensamento ia muito mais longe do que aquilo que ele dizia.

O bom Eckhof o aconselhou: que não se deixasse abater; a trupe de
Barzant estava agora a pouco menos de 5 quilômetros dali, em Eisenach;
ele seria aceito nessa trupe; deveria procurar se exercitar com eles
durante um tempo e depois voltar a Gotha, onde talvez as circunstâncias
lhe fossem mais favoráveis, e sua admissão seria muito mais fácil se já
tivesse participado de uma trupe por algum tempo – isso era fácil de ser
tentado, e o caminho de Gotha a Eisenach pela estrada real era como um
passeio.
Com essas palavras de Eckhof, todo o projeto de carregar pedras e
trabalhar por uma diária desapareceu de repente do pensamento de
Reiser. – Pois, de maneira inesperada, viu que o objetivo que queria afinal
alcançar estava outra vez próximo, e todas as preocupações cessaram
quando pensou que o caminho de Gotha a Eisenach era um passeio, e que
não cometeria nenhuma deslealdade com o estalajadeiro, pois, como ator
em Eisenach, poderia pagá-lo antes e com mais facilidade do que como
diarista.
Como já passava bastante do meio-dia, saiu assim mesmo como estava
da casa de Eckhof e, sem olhar para o lado, seguiu direto para Eisenach. Na
verdade, o percurso foi realmente tão fácil quanto um passeio. Pois todas
as esperanças extintas estavam de repente renovadas em sua alma e
formaram um contraste vivo e agradável com as ideias melancólicas que
tivera ainda naquela manhã sobre querer ser contratado como diarista.
Imaginou que estaria sempre perto de Gotha e que retornaria no dia
seguinte trazendo uma boa notícia ao estalajadeiro. Isso fez com que as
belezas da natureza novamente o deleitassem; caminhava pelo vale
romântico entre as montanhas com satisfação interior e, ao avistar pela
primeira vez as torres do velho castelo Wartburg, sobre as quais já ouvira
na infância, seu espírito abraçou os objetos ao redor com tal calor e afeto
que tudo se tornou duplamente belo para ele; era como se pairasse num
sonho doce, em que as coisas por ele pensadas antigamente lhe estivessem
sendo realmente apresentadas uma após a outra.
Era como se pudesse estar em todos os lugares que quisesse, pois de
repente se via em poucas horas deslocado de Gotha para Eisenach, algo em
que não pensara na manhã daquele mesmo dia.
Deixara em casa seu sobretudo e outras coisas que costumava levar
consigo, e entrou em Eisenach vestindo sua melhor roupa, com a espada
ao lado, tal qual quando havia visitado Reichardt e Eckhof. No bolso da
calça ainda estavam por acaso os poemas que havia escrito e o cartaz em
latim em que constava seu nome, mas o Homero e parte de seu traje
ficaram para trás, junto com o sobretudo.
Quando chegou à cidade, tudo lhe pareceu ter um aspecto alegre e
divertido; era como se as pessoas estivessem afinadas com a alegria, de
modo que entrou na estalagem em que pretendia passar a noite somente
com pressentimentos alegres e, nem bem havia se sentado, perguntou se
não encenariam uma peça de teatro naquela noite.
Que golpe não foi para ele quando lhe responderam que a companhia de
teatro de Barzant tinha viajado para Mühlhausen justamente naquela manhã! –
Era como se um destino hostil estivesse sempre no seu encalço e
frustrasse, como que de propósito, todas as suas esperanças.
A isso se acrescentava o fato de que era infeliz não só na imaginação,
mas também na realidade, porque a única esperança de encontrar seu
sustento e ao mesmo tempo pagar sua dívida em Gotha estava em ser
admitido na trupe de Barzant, em Eisenach, e esta tinha partido
justamente na direção da qual ele viera naquele mesmo dia.
Sua situação o levou à beira do desespero e fez com que ele pela
primeira vez ficasse indiferente a seu destino e caísse numa espécie de
esquecimento de si, que aparentemente o tornou alegre e bem-humorado.
Era como se aquele golpe inesperado e traiçoeiro do destino o tivesse
libertado de todos os seus vínculos, e ele pudesse se considerar agora um
ser abandonado e rejeitado, que não merecia mais nenhuma consideração.
Sem comer o dia inteiro, no fim da tarde pediu cerveja e pão, e à noite
uma cama, onde desfrutou o sono mais suave, pois não contava mais com
o futuro e não era incomodado por nenhum pensamento sobre o destino
ou sobre sua própria vida, pois agora suas expectativas haviam chegado ao
fim.
No entanto, na manhã seguinte sentiu que o sono benéfico despertara
de novo suas forças adormecidas – em vez de sentir uma espécie de
paralisia, sentiu novamente certa obstinação e amargura em relação ao
destino, o que o encorajou a mesmo assim tolerar e arriscar tudo outra vez
a fim de alcançar sua meta: decidiu ir atrás da companhia de teatro de
Barzant e percorrer o mesmo caminho pelo qual viera, de Eisenach até
Mühlhausen.
Depois de ter pagado sua conta na estalagem, restaram-lhe ainda, de
todos os seus recursos, cinco ou seis moedas de 3 centavos, que lhe
possibilitaram subir ao Wartburg e contemplar a ampla e linda região de
lá.
O sargento que se encontrava no Wartburg tratou Reiser com muita
gentileza e lhe perguntou se não gostaria de ver as coisas interessantes do
lugar. Ao que Reiser respondeu que ele voltaria acompanhado à tarde e
agora só queria olhar um pouco a vista.
Observando a região daquele ponto de vista, sentiu-se superior ao seu
destino; pois, apesar de todas as adversidades, chegara até aquele lugar, e
ninguém conseguiria roubar dele esse lindo momento de contemplação de
uma vista comovente da natureza circundante. Reuniu, por assim dizer,
forças para a lida e para a viagem que recomeçaria cheia de preocupações.
O plano que esboçara para a viagem consistia em nada menos que
utilizar só para dormir as poucas moedas que lhe restaram e se alimentar
com raízes do campo durante o dia, pois no caminho de ida para Gotha ele
já havia experimentado arrancar algumas raízes campestres, as quais,
como não havia comido nada o dia inteiro, lhe proporcionaram um
reconforto bem agradável.
Assim que despertou pela manhã, lembrou-se desse plano – e isso foi
sobretudo o que o inspirou a resistir ao destino, imaginando-se agora
quase completamente independente dele.
Começou a levar a cabo sua decisão ainda naquele mesmo dia, com a
mesma dignidade com que se limitara a se alimentar de cerveja e pão em
sua primeira viagem, e se sentiu muito mais independente do que daquela
vez; pois, enquanto o sargento no Wartburg talvez esperasse que ele
voltasse com outras pessoas para lhe mostrar as coisas interessantes do
castelo, Reiser comia sua refeição de raízes cruas no campo, raízes que ele
mesmo cortava em fatias com uma velha navalha que havia ganhado de
seu amigo Philipp Reiser, as quais comia com o maior gosto.
Mas, estando a menos de 2 quilômetros de Eisenach, porque
permanecera muito tempo em Wartburg, invadiu-lhe uma irresistível
moleza depois de ter comido suas raízes, de modo que acabou cochilando
no meio do campo e só acordou de tardezinha, ao pôr do sol.
Como quis ir até a aldeia mais próxima, desviou-se da rota, chegando
tarde a uma estalagem, onde não comeu nada, pagando na manhã
seguinte apenas pela cama de palha.
Saindo dessa aldeia, novamente se perdeu naquele dia procurando
raízes pelos campos, e de novo lhe invadiu a moleza do dia anterior, o
calor estava sufocante, e onde encontrava a sombra de uma árvore, ali se
sentava e logo adormecia; de modo que o caminho de Eisenach até Gotha,
que na ida ele percorrera em poucas horas, durou agora quase quatro dias.
Suas jornadas também se tornaram labirínticas como o seu destino, e
Reiser não conseguia mais encontrar a saída de nenhum dos dois; sua
estrada parecia dar meia-volta próximo de Gotha, mas ele tinha de
atravessá-la caso quisesse prosseguir pelo caminho até Mühlhausen; e,
porque agora evitava o caminho mais direto, de certo modo até gostava de
se perder.
O cartaz em latim o tirou duas vezes de dificuldades no caminho; uma,
quando o consideraram uma pessoa suspeita por não apresentar
passaporte; outra, quando lhe exigiram um passaporte que provasse que
não vinha de uma região dominada por uma epidemia que atacava os
animais; mostrou seu cartaz em latim, acrescentando que era estudante, e
por isso portava um passaporte em latim. – O juiz da aldeia, ou corregedor
do lugar, quis dar a impressão de que sabia latim para sua mulher e para
os outros camponeses, e com cara séria leu o cartaz e disse que estava
certo!
Nesses dias em que Reiser perambulou numa espécie de atordoamento,
como que à deriva, foi dominado única e exclusivamente pela imaginação;
pois, como vivia agora no campo, parecia-lhe que não tinha mais vínculo
algum e soltou as rédeas da imaginação.
Mas seu destino não era romanesco o bastante para ele. Como seu
desejo de se tornar ator tinha fracassado, eis o papel banal que
desempenhou – deveria ter cometido um crime que o obrigaria a
perambular sem rumo; ele inventou o crime: imaginou que entrara na
universidade de Göttingen com o jovem nobre a quem dera aulas em H., e
o jovem, bêbado, o obrigara a um duelo no qual ele só se defendia e o
outro, furioso, lançou-se sobre sua espada, com o que Reiser fugiu sem
saber se o jovem estava morto ou vivo.
Essa sua fábula própria se impôs a ele quase como uma verdade em
suas andanças pelo campo; chegou a sonhar com ela ao adormecer: viu seu
adversário caído na poça de sangue; ao acordar, declamava alto,
representando desse modo em sua fantasia, no meio do campo entre
Gotha e Eisenach, os papéis que lhe haviam sido negados no teatro.
E era somente isso o que o salvava do desespero, pois, se tivesse
pensado em como sua situação era realmente vazia e banal, ele mesmo
teria se aviltado e caído em opróbrio.
Mas conseguia suportar o mais amargo: o segundo dia de seu retorno
de Eisenach para Gotha era um domingo e fazia um calor sufocante. Reiser
seguiu pelo campo por um vilarejo e procurou por sombra, que só
conseguiu encontrar num largo arborizado bem defronte da igreja.
Primeiro pediu um copo de água na casa de um camponês; em seguida,
sentou-se sob uma árvore, enquanto entoavam cantos na igreja em frente;
adormeceu com aqueles cantos e só acordou quando o pregador saiu da
igreja acompanhado pelo filho, que tinha também acabado de voltar da
universidade. Ambos caminharam até Reiser e lhe perguntaram de onde
ele vinha e para onde ia. Reiser deu uma resposta confusa, dizendo por fim
que se tornara um fugitivo por causa de um duelo que travara em
Göttingen. Era como se sua confissão tivesse sido extremamente difícil e a
ideia da inverdade do fato já quase não lhe passava pela cabeça: pois, como
vivia no mundo das ideias, afastado de todas as relações com o mundo
real, tudo o que uma vez fora firmemente gravado em sua imaginação era
real para ele, e em sua mente a parede que separa o sonho da realidade
ameaçava ruir.
O pregador o convidou a entrar em sua casa e quis que ele comesse. –
Reiser, no entanto, impelido pelo medo, afastou-se assim que possível. –
Pois, em sua situação imaginária, tinha de fugir da companhia dos
homens.
Perto de Gotha, novamente foi convidado a entrar na casa de um
pregador, o qual conversou uma boa metade do dia com ele, contando-lhe
que, havia alguns anos, também a pé e bem-vestido, passara por ali um
viajante letrado com quem ele conversara bastante; ele havia anotado o
dia no calendário e quase não duvidava de que era o dr. Barth.
Esse pregador contou então a sua história a Reiser: durante um bom
tempo vagara por aí como preceptor, e ali, naquela velha paróquia,
encontrara finalmente um retiro onde só podia acompanhar de longe o
que acontecia no mundo.
Reiser também contou ao pregador sua infeliz história imaginária,
enquanto o pregador lhe oferecia refresco de frutas em conserva numa
xicarazinha de café; e assim incutia ânimo nele, dizendo-lhe que talvez
ainda pudesse reparar seu crime; ao ver a bainha branca da espada que
Reiser levava, perguntou-lhe se ela não seria de fato o sinal da maçonaria
e se Reiser não pertenceria a essa ordem. – Quanto mais Reiser negava,
tanto mais firmemente o pregador acreditava ver um maçom diante de si,
que só não queria revelar essa sua condição a ele.
Várias vezes o pregador examinou Reiser da cabeça aos pés e parecia
ter sobretudo ideias bizarras a respeito dele. – O homem o tomou por
alguém que ficava muito mais quieto do que falava, não sabendo ao certo
como lidar com ele. Apesar disso, não pôde deixar de continuar lhe
fazendo perguntas, até que Reiser, porque o sol já estava se pondo,
finalmente se despediu dele, e o pregador, acompanhando-o, ainda o
exortou a expiar seu crime com penitências.
A imaginação de Reiser ficou ainda mais excitada pela longa conversa
com o pregador e pelas exortações deste. Chegou a Gotha no fim da tarde
e, numa espécie de atordoamento e insensibilidade persistentes, passou
bem em frente à Cruz Dourada, onde estivera hospedado, saiu de novo da
cidade pela porta pela qual havia entrado pela primeira vez em Gotha e
pegou seu caminho em direção a Erfurt, para em seguida ir dali a
Mühlhausen e alcançar finalmente a companhia de teatro de Barzant.
Pois apenas quando passou novamente por Gotha foi desaparecendo
também aos poucos a história imaginária que o fizera vagar três dias
diante da cidade; a expectativa inicial se abriu de novo para ele; Gotha
ficou de novo para trás e voltou a ser o centro de suas aspirações; assim
como de Eisenach, esperava também retornar de Mühlhausen para lá, e
com melhor sorte.
Mas agora já estava escuro para poder chegar a uma aldeia; perdeu-se
e vagou em círculos por cerca de 1,5 quilômetro, mas voltou por fim à
estrada certa e chegou à mesma estalagem em que passara uma das noites
mais repugnantes da viagem de Erfurt a Gotha, na companhia daqueles
cocheiros rudes, cujo “quam” ainda estava fresco em sua lembrança.
Tudo ainda estava bem agitado nessa estalagem, e um artesão, sentado
no chão entre os camponeses, lhes contava sua viagem pela Saxônia.
Justamente no momento em que Reiser entrava na estalagem, apareceu
também o estalajadeiro e pediu ao narrador que ficasse em silêncio,
porque já era tarde da noite e chegara a hora de dormir.
O artesão e os camponeses se deitaram na palha, que já estava
preparada e onde Reiser também se acomodou. – O artesão não se deu por
satisfeito com a rudeza do dono, e não conseguiu dormir, afirmando
inúmeras vezes que ele ainda não vivenciara esse tipo de rudeza de
nenhum estalajadeiro em toda a Saxônia.
Quando na manhã seguinte Reiser pagou o pernoite com suas moedas
de 3 centavos, seus recursos ficaram reduzidos a 9 centavos; e de repente
começou a se sentir bastante exaurido, pois já fazia muitos dias que raízes
cruas eram sua única alimentação, de maneira que pensar no 1,5
quilômetro que deveria vencer o deixou apavorado; pois ele se sentia
como que paralisado naquela manhã, e a distância dali a Mühlhausen lhe
pareceu um deserto assustador, pelo qual deveria viajar sem bebida e sem
comida.
O artesão que havia narrado suas viagens pela Saxônia até bem tarde
na noite anterior estava a caminho de Erfurt e perguntou se Reiser iria
também na mesma direção. Reiser respondeu que sim e caminharam
juntos num passo não muito veloz.
O artesão, que era encadernador de livros e já avançado em idade,
perguntou a profissão de Reiser, que respondeu ser ajudante de sapateiro,
descobrindo mesmo uma espécie de dignidade ao se intitular assim; pois,
enquanto tal, ele era alguma coisa; mas, como alguém que perseguia
meras ilusões de sua fantasia, não era ninguém.
Pelos seus relatos, parecia que o encadernador de livros já tinha
transformado havia muitos anos a viagem num negócio próprio, e não era
reservado ao contar suas experiências ao companheiro de viagem,
ensinando-lhe como se podem fazer longos trajetos sem passar
necessidades, especialmente no verão e na estação das frutas.
Frutas, disse, ninguém jamais negaria, e pão também não era fácil
negar, desse modo era preciso gastar apenas alguns centavos por dia. –
Assim ele já viajara muitas vezes pela Saxônia e passara muito bem; em
suma, julgou Reiser digno de ser iniciado em sua ordem, cujas vantagens e
comodidade ele lhe descreveu da maneira a mais atraente, porque era
uma vida cheia de incessante mudança e independência.
Mas Reiser sentiu os joelhos tremerem, e seu cansaço aumentava
muito a cada passo, de modo que naquele momento aceitaria de bom
grado a vida mais monótona e dependente, se lhe oferecessem um lugar
tranquilo.
Seu companheiro de viagem parecia notar seu incômodo e procurou
insuflar-lhe coragem e consolo, quando já perto de Erfurt chegaram a uma
fonte fresca e clara, que o encadernador de livros já conhecia e onde, sob
um calor sufocante, eles mataram a sede.
Dificilmente aquela fonte benéfica, muito conhecida pelos moradores
de Erfurt, pôde ser tão revigorante para um viajante como foi para Reiser,
que, completamente exausto, se jogou no chão e recebeu, diretamente do
manancial da natureza, a bebida que muitas vezes não ousava pedir aos
seres humanos.
E algo assim adquiria um duplo valor para Reiser, porque ele lhe
acrescentava o aspecto poético, que agora se tornava real nele e sobre o
qual se podia dizer que era a única indenização para as consequências
necessárias de sua loucura, em relação à qual ele mesmo não podia fazer
nada, porque leis naturais a entrelaçavam necessariamente ao seu destino
desde a infância.
Quando as velhas torres de Erfurt se ergueram novamente do vale e
Reiser caminhava, sem esperança, de volta ao lugar de onde ainda pouco
antes havia partido com o brilho juvenil da primeira esperança, foi
surpreendido quando seu companheiro de viagem, o encadernador de
livros, lhe disse de repente que não acreditava que Reiser fosse um
ajudante de sapateiro, mas o considerava um estudante universitário que
queria estudar na Universidade de Erfurt.
Reiser, já de novo extenuado a ponto de desfalecer, se sentiu como que
chamado de volta à vida por aquelas palavras casuais do encadernador de
livros.
Tão logo se decidisse a estudar e permanecer ali, aquela cidade que
estava bem à sua frente seria o fim de suas viagens esfalfantes; ela era a
finalidade, o objetivo de sua viagem, que agora via tão próximo diante de
si, mas nela ele ainda podia mudar seu plano de maneira honrosa. Quanto
mais seu cansaço crescia, mais atraente e desejável se tornava para ele a
ideia de uma estada naquela cidade grande, onde também, como pensou,
ainda podia encontrar um cantinho.
Essa situação de errância, triste e desesperançada, em que já se
encontrava havia muitos dias, não podia ser mais sustentada por nenhum
estímulo de uma imaginação tensa e excitada; ao contrário, a ideia de total
desamparo o fatigava ainda mais a cada passo, e o cansaço aumentava por
sua vez a ideia de desamparo, que tinha origem sobretudo no declínio de
seu ânimo e no esgotamento de suas forças.
Chegaram à cidade e passaram diante de uma padaria, onde havia um
monte de pães empilhados num mostrador: Reiser quis escolher um, mas
nem bem tocou num deles, quase toda a pilha de pães desabou na rua. – As
pessoas da padaria começaram a fazer um grande alarido, e Reiser teve de
virar correndo a esquina com seu companheiro de viagem para fugir dos
insultos. A sina adversa de Reiser não lhe dava trégua.
Entraram numa estalagem onde Reiser não pôde conter sua sede e,
com os últimos 9 centavos que lhe restavam, pediu uma cerveja. Por essa
única bebida, ele gastou portanto o dinheiro para seus três pernoites
seguintes e não lhe restou nada a não ser ficar totalmente ao relento.
Ao pensar nisso, era como se com aquela cerveja ele bebesse o
esquecimento de todo o futuro e de todo o passado, e de repente se
livrasse de todas as preocupações. Pois agora tinha se entregado
completamente a seu destino e se olhava de novo como um ser estranho,
com quem ele já não se preocupava, porque estava irrecuperavelmente
perdido; assim, caiu no sono e dormiu por uma hora.
Quando acordou, ainda faltava uma hora para o meio-dia; seu
companheiro de viagem partira, e ele, em mudo desespero, estava sentado
com a cabeça apoiada na mão quando um homem, à sua frente, o
interpelou perguntando se não era um estudante estrangeiro.
Quando respondeu que sim, o homem contou, como se de algum modo
conhecesse a situação de Reiser, que o atual pró-reitor da universidade, o
abade do mosteiro dos beneditinos no Petersberg, era um homem
extremamente acolhedor, que não fazia muito tempo conseguira ajuda
para um jovem que chegara ali sem nada e o recebera com a maior
afabilidade. Se Reiser quisesse visitar esse prelado, ele não deveria se
acanhar e ir até lá; teria sem dúvida uma ótima acolhida. Nisso chegaram
outras pessoas, com as quais o homem começou a conversar.
Mas Reiser – já restabelecido pelo completo relaxamento de todas as
suas forças espirituais e físicas e pelo cochilo benéfico, consequência do
relaxamento – sentiu-se de repente encorajado por nova esperança e novo
ânimo, ao pensar no prelado do mosteiro beneditino no Petersberg.
Pôs-se imediatamente a caminho, informando-se sobre como ir ao
Petersberg; um jovem estudante que encontrara não só lhe explicou
gentilmente como também o acompanhou durante um tempo para
mostrar corretamente o caminho. Isso foi um bom presságio para ele.
Subiu o Petersberg, que era protegido por fortificações, e os vigias o
deixaram passar sem entraves.
Chegou à residência do prelado, cujo serviçal o recebeu amistosamente
e, tão logo disse que era estudante, prometeu-lhe anunciá-lo ao prelado. –
Foi conduzido por uma escada a um enorme salão em que havia
quadros nas paredes, entre os quais um representava São Pedro
aquecendo-se junto ao fogo na casa do sumo sacerdote. – O olhar de Reiser
ainda estava fixo nesse quadro quando o prelado surgiu no hábito preto de
sua ordem, com o breviário na mão; Reiser lhe dirigiu um breve discurso
em latim, que havia inventado ao subir o Petersberg, cujo conteúdo era a
sina adversa que o acabara levando a Erfurt, na esperança de encontrar ali
algum apoio para continuar de algum modo os estudos que havia iniciado.
Com grande amabilidade, o prelado lhe perguntou, novamente em
latim, se ele era católico ou se professava a confissão de Augsburgo, e,
quando Reiser respondeu afirmativamente a última, o prelado então lhe
contestou, quase com as palavras dele, que lamentava realmente que uma
sina adversa o tivesse desviado até ali, mas não via nenhum meio pelo
qual ele pudesse encontrar apoio naquela universidade. Não gostaria, no
entanto, de tirar a esperança dele.
Em seguida, perguntou pelo local de nascimento de Reiser, e, quando
este disse Hannover, o prelado o aconselhou a procurar o dr. Froriep, que
era de certo modo seu conterrâneo. Reiser deveria se apresentar a esse
homem e depois voltar até ele. Com essas palavras, o prelado apertou na
mão de Reiser uma moeda de prata e acrescentou que, na falta de algo
melhor, ele aceitasse aquela pequena refeição.
Se algo pôde erguer o seu ânimo destroçado e salvar o seu completo
abatimento do desespero foram as feições e o tom com que o prelado
Günther respondeu ao pedido e aconselhou Reiser.
Comovido até as lágrimas com esse tratamento, Reiser saiu apressado e
pensou que estivesse sonhando quando, do lado de fora, diante da porta,
observou sua moeda e de repente se viu outra vez em posse de meio
florim; pouco antes ele não tinha nem 3 centavos para o pernoite. – Esse
meio florim lhe pareceu agora uma riqueza incalculável e realmente o era,
porque de novo lhe infundiu o ânimo do qual dependia todo o seu destino.
Foi a um refeitório e depois de muito tempo desfrutou novamente um
prato quente. Mas, logo depois de ter comido, procurou saber onde ficava
a igreja do Comerciante, perto da qual o dr. Froriep morava. Às duas da
tarde, encontrou o doutor, quando este ia dar aula, e dirigiu-lhe a palavra
em latim, de modo semelhante ao que fizera com o abade Günther.
Quando ouviu que Reiser era de Hannover, o dr. Froriep o recebeu de
maneira extremamente amistosa e o levou até seu auditório, onde os
estudantes já estavam sentados com chapéu na cabeça – para Reiser, foi
uma cena completamente incomum; e se tornou ainda mais incomum
quando notou que troçavam dele porque não estava usando chapéu.
De repente, ele se viu em Erfurt, no auditório de um professor, sentado
entre os estudantes, ele que, na manhã daquele mesmo dia, tinha como
única perspectiva de moradia o campo aberto pelo qual viajava.
O dr. Froriep lecionava história eclesiástica, entremeando-a com
muitas anedotas engraçadas, que animavam o auditório e eram
frequentemente acompanhadas por sonoras gargalhadas pelos discípulos
de Apolo. Para Reiser, tudo isso ainda era um sonho. Lembrou-se dos anos
de sua infância em que o auditório da escola já lhe era sagrado; agora se
encontrava de novo num auditório acadêmico, acima do qual não havia
mais nada.
Quando a aula terminou, o dr. Froriep levou Reiser a sua sala e o
indagou sobre sua história, na qual ele introduziu uma nova mudança,
dizendo que o ódio de uma pessoa importante de Hannover, provocado
por um escrito que fora mal interpretado, o obrigou a sair de lá. – Como
não tinha mais perspectiva alguma, pensou em se dedicar ao teatro, mas,
após madura reflexão, acabou desistindo porque compreendeu que com
um passo como aquele iria prejudicar seu futuro para sempre; e por isso
tinha pensado em se dedicar de novo aos estudos, em Erfurt.
Era curioso como Reiser procurou transformar em verdade para si
mesmo, antes até de contá-la, a mentira que inventara durante a aula do
dr. Froriep, e como, ao fazê-lo, ele enganava jesuiticamente a si mesmo.
Em seus pensamentos, procurava se persuadir de que de fato compreendia
a completa tolice de seu empreendimento, de que havia mudado por livre
e espontânea vontade a sua decisão, e que permaneceria firme nesse seu
propósito, mesmo que agora lhe fosse oferecida a melhor ocasião para
subir ao palco.
E, no que diz respeito à primeira metade de sua mentira, procurou
imaginar que no discurso que fizera no aniversário da rainha havia
realmente algumas passagens embaraçosas, que alguém poderia ter
interpretado de um modo que lhe fosse prejudicial. Não entrou na questão
de saber se isso de fato havia ocorrido, contentou-se com sua mera
possibilidade, porque não via outra saída.
Pois, para que seu ímpeto pelo estudo continuasse sendo verossímil,
ele não podia dizer que saíra de Hannover por inclinação ao teatro, e a
história do duelo também não convinha ali.
O dr. Froriep pareceu não acreditar muito nele, mas formou uma ideia
mais elevada de Reiser do que este podia esperar, pois o considerou filho
de pais ilustres, com os quais havia rompido relações e cujos nomes
mantinha em silêncio. Reiser achou lisonjeiro que se pudesse ter uma
opinião dessas sobre ele, porque, além de favorecê-lo e acobertar muito
bem sua mentira, o dr. Froriep justificava desse modo a inverdade em que
ele mesmo não acreditava.
O que aconteceu estava além de toda a sua expectativa. O dr. Froriep o
aconselhou apenas a manter bom ânimo; ele lhe providenciaria
imediatamente casa e comida. Reiser, que na manhã daquele mesmo dia
tinha se visto abandonado por todo mundo, não podia acreditar nas
palavras consoladoras que agora ouvia, e naquele momento acreditou ver
ali diante dele, no dr. Froriep, o seu anjo da guarda.
Este escreveu algumas linhas para Reiser levar na manhã seguinte ao
abade Günther a fim de que, a pedido de Froriep, fosse matriculado de
graça como estudante.
Tão afortunada mudança de destino levou Reiser a esquecer todas as
adversidades, de modo que não mais se arrependia de sua errância pelo
desconhecido, já que ela lhe permitira viver aquele momento, do qual
ninguém pode ter uma ideia exata sem que tenha estado uma vez na vida
desprovido de qualquer ajuda e paralisado no corpo e na alma, sem
perspectiva nem esperança.
Com alegria em seu coração, correu para a estalagem onde queria
passar a noite, pediu papel e começou a anotar em sequência seus poemas,
que sabia de cor, para levá-los no dia seguinte ao dr. Froriep e assim se
mostrar de certo modo digno de sua atenção.
Escreveu até de noite e encheu alguns cadernos. Na manhã seguinte,
voltou a subir cedo o Petersberg, com ideias muito diferentes das do dia
anterior; o gentil abade Günther se alegrou ao revê-lo, atendeu com gosto
a seu pedido e terminou imediatamente de fazer sua matrícula,
entregando-lhe o regulamento acadêmico impresso, cuja promessa de
cumprimento foi selada com um aperto de mão.
O regulamento, o aperto de mão e a matrícula, na qual se lia Universitas
perantiqua, foram coisas sagradas para Reiser, e durante um tempo ele
pensou que aquilo significava muito mais do que ser ator. Pertencia outra
vez a um grupo, a uma classe de pessoas que aspiravam a se destacar dos
outros por um grau mais alto de formação. A matrícula decidia a sua
existência: em suma, ao descer o Petersberg, pôde ver-se como um ser
diferente.
Por volta do meio-dia, mostrou ao dr. Froriep a matrícula e, ao mesmo
tempo, entregou-lhe seus poemas, que dessa vez fizeram mais sucesso do
que esperara. Em Erfurt, o estudo das belas-letras ainda era raro entre os
estudantes, e agradava ao dr. Froriep ter mais alguém que servisse de
certo modo como exemplo aos outros na matéria.
Os poemas, portanto, fizeram o novo benfeitor de Reiser se interessar
ainda mais por ele; o dr. Froriep não o deixou mais nenhuma noite na
estalagem e incumbiu imediatamente o encarregado pelas hospedagens
no alojamento da universidade, que era também professor de esgrima, de
arranjar um alojamento para ele. Esse professor o alojou inicialmente no
quarto de um estudante de medicina que morava em sua casa, e, como
tinha de cuidar também da refeição gratuita dos estudantes, acolheu-o
primeiro em sua própria mesa.
Apesar dessas circunstâncias felizes, Reiser ainda voltou a ser em
certas horas o ser humano mais infeliz do mundo, porque sua educação e a
mágoa de seus anos de escola ainda lhe pesavam. A ideia da refeição
gratuita, da qual tivera de se beneficiar como estudante, pesava como um
fardo sobre ele, e de fato se sentia muito mais infeliz quando devia ir para
a mesa do professor de esgrima do que quando comia raízes cruas no
campo entre Gotha e Eisenach.
Isso fez os estudantes que também comiam com Reiser na mesa do
professor de esgrima passarem a considerá-lo uma pessoa tímida e idiota;
e como seu anfitrião, que tratava os estudantes conforme a índole deles,
não lhe fazia muita cerimônia, sua situação se tornou ainda mais
insuportável; era como se de repente ele mergulhasse outra vez, da
liberdade ilimitada, na mais abjeta dependência.
Apesar de sua timidez, ainda o poupavam, e isso graças aos poemas que
escrevera, sobre os quais o dr. Froriep comentara com muitas pessoas, e
que tornaram, sem que ele mesmo soubesse, seu nome conhecido entre os
estudantes de Erfurt, de modo que atribuíam seu jeito esquisito ao talento
poético.
Faltava-lhe completamente o que vestir e, se tivesse tido a mínima
confiança nas pessoas, teria podido suprir muito facilmente essa
necessidade. Mas não conseguia confessar essa necessidade, que lhe era a
mais premente e, no fundo, causadora de sua maior tristeza, à qual ele
sempre atribuía, para si mesmo, outras coisas, pelas quais fingia se
entristecer, porque a falta de roupa lhe parecia um tema demasiado
mesquinho e sem poesia.
O professor de esgrima lhe indicou um alojamento permanente com
um estudante de nome R., com quem tinha de compartilhar o quarto, e
que imediatamente quis editar uma revista semanal com ele, porque tinha
em alta conta o talento poético e literário de Reiser. Este logo elaborou um
projeto para uma revista semanal, que deveria começar com uma sátira a
esse tipo de revista e se chamar A Última Revista Semanal; quando, no
entanto, seu novo companheiro de quarto se deu conta de que ele não
tinha dinheiro, tampouco nenhuma perspectiva certa de consegui-lo,
passou a agir de modo bastante frio com ele aconselhando-o primeiro a
empenhar sua espada, o que Reiser fez, e de repente recebeu novamente
olhares mais amigáveis. Pois o sr. R., que era um homem muito ordeiro,
não queria ter gastos com o empreendimento literário bilateral.
Os dois foram a um tipógrafo em Erfurt de nome G. para apresentar o
plano de sua nova revista semanal: o tipógrafo mostrou com muita ênfase
aos dois como um empreendimento daquela natureza era delicado, e como
era muito mais seguro publicar os artigos num jornal já conhecido e
apreciado pelo público, como a Revista Semanal dos Burgueses e dos
Camponeses, que ele mesmo editava e que era distribuída por garotos
mendigos nas cervejarias de Erfurt.
Foi justamente essa Revista Semanal dos Burgueses e dos Camponeses que
Reiser havia encontrado em sua primeira viagem na casa daquele caçador
que morava perto de Mühlhausen, e agora ele e seu companheiro de
quarto eram escolhidos como colaboradores pelo editor e redator da
revista. À noite, ambos tiveram de jantar na casa do tipógrafo, que lhes
serviu rabanete e um tipo de queijinho muito duro e alongado, comum em
Erfurt, que os dois colaboradores comeram sem parar, enquanto a esposa
do tipógrafo olhava para eles de quando em quando com cara carrancuda.
O primeiro texto que o estudante R. publicou na Revista Semanal dos
Burgueses e dos Camponeses foi uma imitação prosaica do Beatus ille de
Horácio. E o primeiro de Reiser foi seu duro poema sobre o mundo, que
escrevera na escola de Hannover.
Mas, como não recebiam nenhum honorário pelos textos e como o
plano do estudante R. – conquistar notoriedade por meio da revista
semanal que editaria com Reiser – não deu certo, a revista deixou de ter
interesse para o estudante, que não deve ser levado a mal por isso, já que,
por sua melancolia, que no caso provinha sobretudo da falta de roupas e
também do péssimo estado de seus sapatos, Reiser não passava de um
companheiro triste.
Depois de oito dias morando juntos, o estudante R. tentou arranjar
outro alojamento para Reiser. – Encontrou um à beira do riacho
Kirschlache, na casa de um cervejeiro, onde já estava hospedado um
estudante, e o filho da casa também frequentava a escola.
Ali Reiser mais uma vez não teve um quarto só para si, mas teve de
morar, assim como o estudante, junto com a família. – A casa, no entanto,
tinha uma localização agradável – situava-se numa fileira de casinhas
diante das quais corria um riacho estreito, cuja margem adjacente às
casinhas era arborizada.
Assim, a rua não era tão estreita, e o curso d’água e também a
pequeneza das casas contribuíam para dar um ar de liberdade campestre a
essa região da cidade velha.
Logo atrás da casa ficava a muralha da cidade velha, de onde se tinha
uma vista para o monastério dos cartuxos. Algumas partes do alto da
muralha estavam cobertas de grama, e ela desmoronara parcialmente em
diversos pontos, de modo que se podia subir comodamente nela e avistar
assim os grandes planos de jardins que ainda cercavam Erfurt pelo lado de
dentro de suas muralhas.
Nesse período, Reiser também recebia a refeição gratuita regulamentar
da universidade, e a ideia de uma permanência tranquila se tornou de vez
tão preponderante que agora, aos 19 anos, ele escreveu ao seu amigo em
H., dizendo-lhe que esperava, e de agora em diante desejava, passar o
resto de seus dias em Erfurt.
Pois sua carreira de estudante ali deveria passar imediatamente para a
docência, e assim seria alcançada a meta de todos os seus desejos e
esperanças. – Acreditou ter renunciado a todos os brilhos restantes, e
todas as reluzentes fantasias do teatro pareciam ter durante um bom
tempo sumido de sua cabeça.
De uma hora para outra, ele fora colocado num novo mundo e obtivera
surpreendentemente muitos ganhos em relação a sua estada em H.
Quando ia passear ao redor da cidade, sobre as muralhas de Erfurt,
sentia vivamente que fora tirado de sua situação insuportável por esforço
próprio e modificara sua posição no mundo com suas próprias forças.
Quando ouvia soar os sinos de Erfurt, todas as suas recordações do
passado eram pouco a pouco reanimadas – o momento presente não
limitava sua existência – mas abarcava de novo tudo o que já havia
desaparecido.
E esses foram os momentos mais felizes de sua vida, nos quais começou
a se interessar por sua própria existência, porque a observava dentro de
certo contexto, e não isolada e fragmentada.
Em sua existência, o isolado, o desconexo e o fragmentado sempre lhe
despertaram tédio e asco.
E isso nascia muitas vezes quando, sob pressão das circunstâncias, seu
pensamento não conseguia ultrapassar o momento presente. – Nessa hora
tudo era tão sem significado, tão vazio e seco, que não valia o esforço de
pensar.
Nesse estado, ele sempre desejava a chegada da noite, um sono
profundo, um completo esquecimento de si mesmo – para ele, o tempo
caminhava a passos de lesma – e jamais conseguia dar uma explicação de
por que naquele momento estava vivo.
No princípio de sua estada em Erfurt, esses momentos eram raros –
cada vez mais, ele contemplava a vida como um todo – a mudança de lugar
ainda era recente – sua imaginação ainda não estava presa pela perpétua
repetição.
A perpétua repetição das impressões sensíveis parece ser
principalmente o que põe freio aos seres humanos e os limita a um
pequeno cerco. – Sentimo-nos pouco a pouco irresistivelmente atraídos
pela monotonia do círculo em que giramos, nos apegamos ao velho,
fugindo do novo. – Parece uma espécie de sacrilégio sair desse ambiente
que virou, por assim dizer, um segundo corpo para nós, ao qual o primeiro
se adaptou.
A casa de Reiser no Kirschlache parecia ser feita justamente para
prender de novo sua imaginação.
A vista para o mosteiro dos cartuxos, passando pelos jardins, tinha
mesmo algo de romântico, que atraía Reiser irresistivelmente e prendia
seu olhar àquele lugar silencioso onde residia a solidão, pela qual sentia
uma secreta nostalgia.
Como o edifício de sua fantasia fracassara e Reiser não conseguira
encenar as estrepitosas cenas do mundo nem na vida real nem no teatro,
ele, como era habitual acontecer, foi levado com toda a sua sensibilidade
ao extremo oposto.
Era para ele um atrativo indizível ser completamente esquecido pelo
mundo, estar isolado das pessoas e passar seus dias em silenciosa solidão –
e esse isolamento alcançava um valor mais alto em seu pensamento
quanto maior era o sacrifício que fazia. – Pois isso a que ele renunciava
eram seus desejos mais caros, que pareciam estar enlaçados ao seu ser.
As luminárias, os bastidores e o anfiteatro resplandecente haviam
desaparecido – a cela solitária o acolheu.
A alta muralha que cercava o mosteiro dos cartuxos, a torrezinha da
igreja, as casinhas isoladas do lado de dentro da muralha, alinhadas e
separadas umas das outras por um muro, cada qual com pequenos espaços
para o jardim; tudo isso formava uma paisagem muito interessante, e,
daquela altura da muralha, as casinhas isoladas e os jardins entre elas
marcavam de maneira muito saliente e significativa a solidão e o
isolamento dos moradores do lugar.
Sempre que o sino da torrezinha badalava, soava aos ouvidos de Reiser
em direção à vida futura, como o sino de morte de todos os desejos e
perspectivas terrenas.
Pois ali estava o destino final de tudo – o pé do iniciado jamais podia
pisar fora da área compreendida por aquela muralha – ali ele encontrou
sua casa definitiva e seu túmulo.
O modo, a lentidão com que o tocavam, tornava o repique do sino dos
cartuxos ainda mais triste e melancólico.
Pois, reunidos no coro, os cartuxos tocavam um de cada vez o sino e
em seguida se sentavam no seu lugar, até que todos, do mais velho ao mais
jovem, fizessem a sua entrada.
Por vezes Reiser ouvia o som do sino no silêncio do meio-dia, em
outras ocasiões, à meia-noite ou de manhã cedo, e a cada vez a impressão
se renovava tão intensamente em seu espírito que sempre despertava a
imagem completa da solidão e do silêncio sepulcral.
Era como se aquelas pessoas isoladas sobrevivessem à própria morte,
vagassem em seus túmulos e estendessem as mãos umas às outras.
Essa ideia foi se tornando mais e mais íntima, e ele se afeiçoou tanto a
ela que muitas vezes não a trocaria pela mais agradável perspectiva de
vida.
Ele mais uma vez recebera uma carta que Philipp Reiser enviara de
Hannover, na qual, em vez de demonstrar interesse pela vida do amigo,
fazia uma descrição detalhada de seu amor atual, como nas suas conversas
passadas, dos progressos que havia feito e dos obstáculos que lhe restavam
pelo caminho.
Apesar disso, Reiser levava sempre consigo essa carta, e
frequentemente a lia de cabo a rabo, porque Philipp Reiser era mesmo seu
único amigo.
Não longe do Kirschlache havia um passeio agradável, onde corria um
riacho de águas límpidas por entre arbustos verdes do vale. – A vista era
cercada por todos os lados, e era possível estar então numa solidão
estimulante.
Reiser passou muitas horas ali na relva verde, na margem do riacho,
pensando em seu destino, e, quando cansava de pensar, lia novamente a
carta de seu amigo, que por fim quase acabou decorando, por menos que o
conteúdo lhe interessasse – pois não tinha nada de mais próximo para ler
além daquela carta.
Além disso, havia outro detalhe: Philipp Reiser era natural de Erfurt; os
dois tinham trocado suas cidades natais – e Anton Reiser se encontrava no
mesmo lugar em que seu amigo passara os primeiros dias de juventude e
em que recebera as primeiras impressões do mundo circundante.
Ali no vale, ele percorria a infância de Philipp Reiser, vivenciando-a em
pensamento, e nele se duplicava, quando se sentava à margem do riacho e
lia a sua carta, que lhe trazia de novo a lembrança de todo o seu ser.
Por isso, entre os estudantes, ele gostava muito também de O., que
conhecera Philipp Reiser ainda em Erfurt, fazendo do amigo o assunto
mais frequente de suas conversas.
Na época, esse O. era um adorável jovem devaneador, diante de sua
fantasia ainda pairava o encanto juvenil da vida, e elevados sentimentos
de amizade o animavam – por vezes transparecia uma pequena afetação,
mas no fundo tinha realmente um coração cheio de sentimento.
Reiser encontrou nele a pessoa certa e não sossegou enquanto não
foram juntos num domingo à igreja dos cartuxos; sozinho ele ainda não
havia se atrevido a entrar lá, porque lhe parecia que chamaria muita
atenção.
Durante o caminho conversaram sobre a nulidade e a brevidade da
vida, embora nessa época Reiser tivesse 19 anos e O., 20, e não soubessem
o que deveriam fazer com o resto de seus dias, até que chegaram ao
mosteiro e entraram na igreja, cujas paredes brancas e vazias e o coro
ermo faziam uma prédica ao silêncio sepulcral.
Afora os cartuxos, a igreja não era frequentada por quase mais
ninguém, e, como não havia paroquianos, também não havia púlpito,
cadeiras ou bancos, mas tão somente paredes vazias e piso liso, o que, com
a luz crepuscular que caía do alto pelas janelas, dava à igreja um ar muito
grave e melancólico.
Estando completamente sozinhos, O. e Reiser se ajoelharam diante do
coro, quando foram surgindo um a um os monges vestidos de branco, e
cada um deles, curvando-se, puxava uma vez o sino.
Sentaram-se em seus lugares, no coro, e entoaram o canto de
penitência em tons profundos, tristes – levantaram-se em seguida e
cantaram hinos cujos ecos ressoavam tristemente; depois se prostraram e
suplicaram misericórdia em tons de lamento profundo.
Numa extremidade do semicírculo, havia um jovem cujas faces pálidas
eram de uma beleza incomum. – Reiser não conseguia desviar seus olhos
dos do jovem, que ele dirigia aos céus em total devoção.
O. conhecia aquele infeliz, que havia entrado na ordem dos cartuxos
porque um raio atingira um amigo de infância que estava a seu lado – e
desde então a imagem do jovem se encontrava sempre presente na alma
de Reiser.
Passava metade do dia sobre a velha muralha atrás de sua casa,
ansiando estar na área delimitada por aqueles muros silenciosos, que,
segundo sua opinião, mantinham recluso um mundo inteiro, com todos os
seus enganos e ilusões.
Era lá, com aquele jovem, que ele queria murchar e fenecer junto ao
túmulo – era lá que queria fazer seu próprio jardim solitário – saudar o
suave raio do sol da tarde em sua cela – e olhar a morte com tranquilidade
e alegria, desprovido de todos os desejos e esperanças terrenos.
Nesse estado de ânimo, ele compôs, na velha e derruída muralha que
ficava atrás de sua casa, o seguinte poema:

Tu, silenciosa e consagrada moradia, comovente imagem do túmulo,


Qual secreto sentimento atrai meus olhos marejados
A tuas cabanas solitárias? Tu, ancião venerável, morador
Do lugar do silêncio e da devoção! Viva! Longe da agitação vazia,
Da enganadora vaidade e do bulício do orgulho,
Podes cultivar teu jardinzinho solitário com tuas próprias mãos,
E tornar tua alma, que aspira assídua, com nobre
Indignação, a fugir do calabouço, a cada dia
Mais digna do céu. – Viva! Desfruta as bênçãos
Da completa solidão divina, que teu espírito, apartado há muito tempo
Dos pensamentos terrenos, possa desfazer-se em sentimentos angelicais
E vibrante levantar voo rumo a sua origem eterna – magníficos,
Ó ancião, assim era a sina dos teus dias! Mas tu, a quem os anos
Vividos nas preocupações da vida ainda não tornaram
Madura a fronte pendente, homem vigoroso, e tu, jovem forte e florescente,
Que escolheste a solitária cela às alegrias da vida;
Oh, foste talvez o alvo do desprezo, do orgulho zombador?
Te enganou talvez um amigo falso? Ou sentiste vivamente
Que todos os desejos dos homens e todas as suas esperanças
São tão vãos e mesmo assim tão orgulhosos? Ou foi um asco amargo
Das alegrias insossas e insípidas da vida que outrora te
Transformou o teatro florido num deserto triste?
Que felicidade a tua por encontrar um asilo seguro contra todas
As ardilosas intrigas da maldade, e contra todo o bulício
Dos tolos, e a sedução do belo vício reluzente,
E das alegrias ilusórias da vida! – Mas que vejo eu?
No olho uma lágrima muda escorre trêmula e lenta pela
Maçã do rosto do jovem, que, triste e pálido, chora
Por sua vida interrompida e agonizante, e como flor sedenta
Murcha em dias abafados. – Tu, no calabouço sagrado,
Que padeces de opressão e descaso e sem o reconforto de luz alguma,
Ó jovem, chora, chora! Teu Deus perdoa tuas lágrimas
Que o desejo inocente da natureza arranca de tua alma!
Oh, se eu pudesse misturar minhas lágrimas às tuas
E verter um suave e reconfortante consolo em tua alma!
Na tarde de primavera o sol se põe com delicado sorriso,
Seu último raio ainda aquece com compaixão tua janela solitária,
Tu te deitas em teu leito e sonhas com os dias vindouros
De perspectivas reluzentes, nadas em sentimentos de deleite, perdes-te
Em labirintos de alegria, despertas do sono feliz,
E vês – ah, da tua cela triste as quatro paredes desertas, e
Nenhum raio de esperança sorri – Oh! que o Zéfiro sussurre
Ao redor da casa do jovem, que afague e seque com compaixão
As lágrimas de seus olhos! Desabrochai, flores, em seu jardim,
E faz ouvir à sua janela teu canto consolador, Filomela!
Até que aquele que a tudo ama liberte a alma sofrida
Das torturantes amarras da vida
Então tu, cheio de terna melancolia,
Virás chorar ainda muitas vezes nas noites de orvalho em sua tumba.

A alma de Reiser vivia de fato tão inteiramente entre os cartuxos que ele
começou a pensar seriamente se não poderia também passar seus dias
apartado do mundo, e assim estaria liberto, de uma vez por todas, de tudo
aquilo que o oprimia, dos desejos e anseios que o atormentavam.
Estivera imerso alguns dias nesse pensamento quando O. apareceu e
lhe disse que os estudantes em Erfurt gostariam de encenar uma peça de
teatro, e alguns papéis ainda estavam livres. – –
Essa fala teve um efeito tão forte na fantasia de Reiser que o mosteiro
dos cartuxos passou num instante, com suas altas muralhas, totalmente
para o segundo plano, e de repente a ribalta e suas luzes ocuparam o seu
lugar; além disso, quando O. acrescentou que estavam pensando em
oferecer a Reiser um papel na peça que iriam representar, todos aqueles
pensamentos graves e melancólicos desapareceram completamente.
A peça que os estudantes queriam representar em Erfurt intitulava-se
Medon ou A vingança do sábio, e dela poder-se-ia dizer que incluía a
totalidade da moral, tantas eram as virtudes pregadas por todos os
personagens.
Na peça, Reiser deveria representar o papel de Clélia, a amante de
Medon, porque em seu queixo havia pouco vestígio de barba e porque sua
altura passaria despercebida no papel de concubina, visto que o ator que
representava Medon tinha quase a altura de um gigante.
Apesar da notória esquisitice do papel, Reiser não conseguiu de modo
algum resistir a seu pendor ao teatro, até porque a oportunidade lhe havia
surgido sem que a tivesse buscado.
Nesse meio-tempo, o dr. Froriep escrevera a Hannover a fim de obter
informações sobre ele de seu antigo professor, o reitor S., em cuja casa ele
havia morado, e este, ao contrário do que Reiser supusera, deu um
testemunho que contribuiu para que ele caísse ainda mais nas graças do
dr. Froriep.
O reitor S. escreveu que, sem dúvida, as disposições naturais daquele
jovem prometiam muito. E isso bastou para o dr. Froriep considerar com
respeito e indulgência o que havia de negativo no testemunho e receber
Reiser com redobrado zelo a fim de conseguir novamente para ele, caso
possível, o favor do príncipe.
O testemunho, no entanto, também fora redigido com respeito e
indulgência, excetuando o ponto em que Reiser era suspeito de devassidão
por causa de seus passeios noturnos; acusavam-no, assim, de uma coisa da
qual ele estava o mais distante possível, porque justamente a opressão de
sua situação, o desprezo de si mesmo e até seus devaneios o mantinham
afastado daquilo.
O pendor ao teatro era aquilo a que, não sem razão, se atribuíam os
seus outros desregramentos, e muitos jovens na escola em H. também
tinham se deixado levar por ele.
E, justamente quando a carta chegou, Reiser estava mais uma vez
prestes a encenar uma peça de teatro com os estudantes em Erfurt. – O dr.
Froriep o desaconselhou; mas, ao notar o quanto seu coração se inclinava
àquilo, perdoou-lhe também aquela tolice, e sua solicitude não diminuiu
em nada por causa dela.
Os preparativos para o espetáculo estavam feitos; Reiser havia
decorado o papel de Clélia, e ensaios haviam sido repetidos com
frequência, nos quais Reiser conheceu grande parte dos estudantes de
Erfurt, e todos se comportavam com gentileza para com ele, tendo uma
boa opinião a seu respeito; ele se viu transportado para um mundo
completamente diferente daquele em que vivera desde a infância.
Entre um ensaio e outro, Reiser não deixou de ir assiduamente às aulas
do dr. Froriep, frequentadas por um número de estudantes que, às portas
fechadas na igreja do Comerciante, praticavam a pregação na presença do
dr. Froriep e de outros estudantes.
Reiser também desejava se apresentar ali para que ouvissem sua
declamação, e uma das perspectivas mais fascinantes sempre foi o dia em
que o dr. Froriep lhe permitiria subir ao púlpito. Já havia pensado até no
tema, descreveria com cores poéticas a beleza da natureza e a mudança
das estações do ano, e encerraria sua pregação de maneira patética, com
as brilhantes e reluzentes perspectivas da eternidade. Mas sempre
surgiam obstáculos que não lhe davam a chance de realizar esse desejo em
Erfurt.
Assim como duvidamos de tudo o que ardentemente desejamos, ele
sempre tinha dúvidas se a apresentação da peça aconteceria e se teria um
papel nela. O desejo foi então realizado. Vestiram-no de Clélia com todo o
esmero e elegância. As luzes foram acesas, a cortina subiu fazendo
barulho, e ele estava ali, diante de um auditório numeroso, representando
sem nenhum embaraço seu longo papel, sem que este lhe soasse artificial
sequer uma vez, de tão concentrado que estava na ideia de que agora
participava de uma representação teatral, e de que sua participação era
indispensável em todos os momentos.
Essa concentração no tema fez com que ele se esquecesse de si mesmo,
que o público não reparasse tanto na artificialidade do papel e que ainda
fosse aplaudido pela atuação. Ter subido ao palco mantendo-se ainda
como estudante lhe deu um duplo prazer, e ao recordar aquela noite nos
dias seguintes ele se sentia tão feliz que tudo o que lhe acontecera nas
poucas semanas que já havia passado em Erfurt parecia quase um sonho.
De quando em quando, ele também enviava poemas para a Revista
Semanal dos Burgueses e dos Camponeses, semanário que tornou o seu nome
conhecido como escritor entre os cidadãos de Erfurt. Fazia também
correções para o tipógrafo G., e por meio dele acabou conhecendo um
homem culto que, apesar das excepcionais qualidades de inteligência e de
coração, foi perseguido por um destino adverso até a morte, porque a
pressão continuada, ininterrupta, das condições o fizera desaprender a
impor seu valor, e justamente a força pela qual precisava fincar pé no
mundo e afirmar o seu lugar estava nele paralisada.
Esse dr. Sauer escrevera para o tipógrafo G. uma revista semanal
intitulada Medon ou Os Três Amigos, publicada durante um ano. Via-se
também como ele tinha de enfrentar a pressão das circunstâncias; como
lhe deve ter sido difícil ter de escrever um monte de artigos triviais, nos
quais mesmo assim ainda faiscavam as centelhas do gênio reprimido.
No entanto, ele era obrigado a escrever e entregar semanalmente suas
folhas para poder continuar levando sua penosa vida. – Quando a revista
deixou de ser publicada, ele se viu novamente constrangido a sustentar
sua vida com trabalhos de revisão. E como mantinha em sua escrivaninha
composições dramáticas de muita qualidade que não ousava mostrar a
ninguém, a fim de prolongar sua vida por mais alguns dias, era obrigado a
ganhar dinheiro copiando, com todo o cuidado e correção de um copista,
um drama para um senhor importante de Erfurt.
Não recebia nada como médico: pois sentia dentro de si um pendor
especial para ajudar justo as pessoas que mais necessitavam de ajuda e que
menos a recebiam. E, porque estas são as que não têm condições de pagar
pela ajuda, o próprio médico corria assim grande perigo de passar fome se
não editasse revistas semanais, fizesse revisões e copiasse dramas.
Em suma, ele não aceitava pagamento por seus tratamentos e ainda
levava os remédios, que ele mesmo fabricava, para os pobres em suas
casas, gastando nisso o pouco dinheiro que lhe restava ou que não lhe
restava. E como desse modo ele, por assim dizer, se rebaixava, as pessoas
da alta e nobre sociedade não confiavam nele; ninguém o consultava, e seu
nome nem era conhecido entre a maioria, embora como médico já tivesse
adquirido não pouca experiência e destreza.
Ele também já tinha publicado alguns textos importantes nessa área,
os quais, no entanto, tiveram o azar de se perderem entre tantos outros e,
assim como seu autor, não foram notados pelos contemporâneos. E
enquanto mantinha fechados em sua escrivaninha os demais escritos
sobre medicina, a fim de viver de seu salário de tradutor e continuar
preparando novos medicamentos para seus doentes desamparados e
pobres, tinha de traduzir para o latim a obra de um médico francês que
viera a Erfurt e soubera se fazer conhecer melhor do que o dr. Sauer.
Era preciso ser completamente insensível para não sentir essa
indignidade e humilhação do destino. O dr. Sauer esboçava um sorriso,
mas no mais íntimo de sua alma cada uma dessas humilhações e
menosprezos minava sua capacidade de agir e paralisava seu ânimo. Como
ele ainda podia se fiar em seu valor interior se o mundo inteiro não o
reconhecia?
Graças a sua relação com o tipógrafo G., para quem fazia as correções,
ele também publicava às vezes textos para a famosa Revista Semanal dos
Burgueses e dos Camponeses, de Erfurt; e nela certa vez Reiser leu um poema
dele sobre os americanos, que haviam se tornado independentes – esse
texto mereceria estar numa antologia dos melhores poemas da língua
alemã e agora estava perdido num jornal distribuído nas cervejarias de
Erfurt.
Era como se nesse poema seu espírito oprimido tivesse mais uma vez
exalado todo o seu sentimento de liberdade, tais eram o ímpeto e a
inflamada compaixão que governavam suas ideias.
Muito encantado com o poema, Reiser não descansou enquanto não
conheceu o extraordinário colaborador da Revista Semanal dos Burgueses e
dos Camponeses. Mas foi difícil realizar esse desejo, porque o dr. Sauer não
sentia grande inclinação para estabelecer um vínculo qualquer com
alguém daquela classe de pessoas que, de certo modo, o excluíram.
Uma saída, no entanto, foi encontrada: como tinha continuado seus
estudos de língua inglesa em Erfurt, Reiser se ofereceu para ensinar inglês
ao dr. Sauer, já que este algumas vezes manifestara o desejo de conhecer
essa língua. A oferta foi aceita, e assim Reiser teve oportunidade de se
encontrar ao menos alguns dias por semana com esse homem de quem ele
desejava estar o mais próximo possível.
Nessas ocasiões, o doutor se tornava cada vez mais franco com Reiser e
contava sobre as muitas pressões, tanto de familiares como de professores,
às quais fora exposto desde a infância, e depois sobre todos os golpes
consecutivos do destino, que o tinham vergado até o pó; de modo que
Reiser, em sua furiosa indignação, não se conteve em chamar de maliciosa
aquela cadeia de eventos em que um ser pensante e sensível é, por assim
dizer, intencionalmente tão constrangido e torturado.
Quando Reiser expressava desse modo sua indignação, a boca de Sauer
se torcia num leve sorriso, indicando sem dúvida que ele estava acima
dessa indignação, mas ao mesmo tempo já desligado dos vínculos
terrestres, pressentindo sua próxima e completa libertação. – Sua luta
estava praticamente vencida, ele não empregava força de resistência nem
se obstinava contra o destino.
Apesar disso, a chama da vida às vezes ainda se inflamava nele. De
quando em quando, ainda esperava ver dias felizes e se dedicava bastante
aos estudos de inglês, porque tinha muitas expectativas com relação a
isso, sobretudo para utilizar as obras de medicina escritas em inglês e
também para ganhar dinheiro com traduções.
Surgiu-lhe então uma pequena perspectiva de sustento em Erfurt – e
para ele isso foi uma mudança bastante afortunada, que atribuiu
especialmente a sua perseverança. Quem quisesse conseguir algo em
Erfurt, dizia ele com frequência a Reiser, tinha de perseverar muito tempo
e não perder a paciência! Era tão humilde e moderado em seus desejos que
muitas vezes qualquer fagulha de uma sorte melhor já o animava.
Não sabia que toda a sua sorte externa não mais podia ajudá-lo, já que
a fonte da sorte secara dentro dele, e a flor de sua vida havia se partido, de
modo que suas folhas tinham necessariamente de murchar.
Reiser se sentia cativado por aquela compaixão, como se o destino
daquele homem fosse o seu, ou como se o seu fosse inseparável do dele.
Era como se aquele homem precisasse ser feliz para que as coisas
pudessem permanecer em seus eixos.
Mas dessa vez, assim como depois outras tantas, Reiser foi enganado
em seus pressentimentos e em sua crença de que haveria necessariamente
uma reparação na terra para o desgosto sofrido. – Algum tempo depois,
Sauer morreu sem ter visto dias melhores. Quando a sorte apareceu e lhe
sorriu um pouco, suas forças internas estavam destruídas; e passou
despercebido, permanecendo desconhecido até sua morte; de modo que
na viela onde morava, quando o caixão passou, seus vizinhos mais
próximos perguntaram quem estava sendo enterrado. Numa cidade pouco
povoada como Erfurt, passar despercebido a esse ponto é muito
significativo.
Os poucos dias que Reiser havia passado em Erfurt com o dr. Sauer
foram extremamente importantes para ele, porque deram de certo modo
um novo impulso a sua alma: ele concentrava suas forças contra todas as
opressões que tanto paralisaram a mente do amigo. E a indignação que
sentira também lhe inspirou certa obstinação para que, como ele, não
sucumbisse às dificuldades e para vingar em alguma medida, pela
resistência, o que Sauer sofrera.
Certo dia, fizeram juntos um passeio até uma aldeia próxima de Erfurt,
e O. também os acompanhou. – Quando retornavam à noitinha, chegaram
a um riacho cercado de uma mata espessa, que se arrastava em águas
escuras junto às margens. Sauer se postou ali e procurou medir a
profundidade com uma vareta, mas não conseguiu alcançá-la. Permaneceu
em pé e com os braços cruzados olhou para a água, notando a superfície
escura fluindo muito vagarosamente.
A imagem de Sauer com as maçãs do rosto pálidas e os braços
cruzados, observando com olhar expressivo aquele rio estígio, reapareceu
vívida na alma de Reiser quando tempos depois ficou sabendo de sua
morte. – Pois, se houve alguma vez que uma imagem significativa se
formou, que signo e coisa se tornaram uma coisa só, foi ali.
Mas outras perspectivas alegres se abriram novamente para Reiser: os
estudantes tiveram a ideia de encenar mais uma peça, porque tinham de
fato adquirido gosto por aquele divertimento.
As peças escolhidas foram O desconfiado e O tesouro, de Lessing: na
primeira, Reiser mais uma vez ficou com dois papéis femininos, que teve
de representar trocando de traje, e, na segunda, o papel de Maskaril, e
agora sua credibilidade como ator estava tão bem consolidada entre os
estudantes que viam como um favor da parte dele aceitar fazer esses
papéis, de modo que Reiser não deveria de maneira alguma se forçar a
interpretá-los.
Enquanto preparavam essa segunda apresentação teatral, Reiser
começou ao mesmo tempo a redigir um texto sobre a sensibilidade, com o
qual gostaria de vir a público pela primeira vez como escritor. Nesse
escrito a sensibilidade afetada deveria ser ridicularizada, e a verdadeira
sensibilidade apresentada em sua devida luz.
Aquilo que deveria ter sido uma sátira da sensibilidade resultou, no
entanto, em algo bastante grosseiro, porque ele a comparou a uma
epidemia contra a qual era necessário tomar precauções, barrando a
entrada das cidades e aldeias a todos aqueles que viessem dos arredores
onde reinava a sensibilidade.
Essa indignação havia sido despertada em Reiser sobretudo pelas
viagens sentimentais que eram sucessivamente publicadas na Alemanha e
pelas muitas imitações afetadas de Os sofrimentos do jovem Werther, embora
ele também se acusasse secretamente desse pecado; por isso mesmo
procurava combatê-lo com veemência, para o seu próprio bem.
Certa noite, justamente quando estava escrevendo esse trabalho, o
tipógrafo P., de Hannover, entrou em seu quarto, trazendo-lhe uma carta
de Philipp Reiser. Era o mesmo tipógrafo para quem ele compusera em
Hannover uma série de pequenos votos de Ano-Novo, nos quais vira pela
primeira vez algo seu impresso.
Quando Reiser acompanhou o tipógrafo até a porta, este lhe apertou
uma moedinha de ouro na mão, suficiente para erguer instantaneamente
da terra alguém que estava sem dinheiro havia já algumas semanas e que
não queria deixar que notassem a sua penúria.
Esse presente inesperado adquiriu um valor ainda maior pelo modo
como foi dado, pois o tipógrafo P. acrescentou as seguintes palavras:
aquela ninharia era uma antiga dívida que ele quitava, pois, em Hannover,
Reiser escrevera para ele votos de Ano-Novo, poemas etc., apenas por uma
questão de honra.
Nas circunstâncias em que Reiser se encontrava, 1 florim de ouro, era
este o valor, era algo inestimável e o arrancava repentinamente de
inúmeros pequenos embaraços sobre os quais não poderia contar a
ninguém. Isso fez com que vivesse de fato alguns dias felizes em Erfurt,
onde não era pressionado por nada, nem de fora nem de dentro, e não
havia nenhuma perspectiva nebulosa para o futuro.
A carta de Philipp Reiser também era mais interessante que a anterior,
pois trazia a notícia de que vários colegas de escola de Reiser, que tinham
encenado peças junto com ele em Hannover, haviam seguido seu exemplo
e alguns deles haviam partido também em segredo para se dedicar ao
teatro.
Entre eles estavam sobretudo I., que representara Beaumarchais em
Clavigo; o filho do mestre de capela W.; o líder do coro, chamado O.; e um
certo T., filho de um pastor, com quem Reiser ainda fizera algumas
caminhadas românticas perto de Hannover pouco antes de partir. Como
Reiser havia sido imitado por todos os colegas, sentiu certo orgulho de ter
sido ele o primeiro a ter coragem de dar aquele passo.
Por fim, Reiser lhe escreveu em seu estilo exaltado que o poeta Hölty
morrera em Hannover, concluindo a carta com as seguintes palavras:
“Alegra-te, poeta! Chora, homem!”. A carta pouco dizia sobre a
continuação de seu romance amoroso.
Reiser se ocupava com os papéis da segunda peça quando conheceu um
novo amigo em Erfurt, um estudante de nome N., nascido em Hamburgo,
que morava na casa do dr. Froriep; este lhe mostrou a N. uma cópia do
poema de Reiser, “O mosteiro dos cartuxos”, e assim arranjou de repente
um novo amigo para o autor.
Foi uma amizade do gênero sentimental, contra o qual Reiser estava
escrevendo um ensaio crítico.
O jovem N. tinha realmente um coração sensível, mas se deixava levar
pela corrente e o tempo todo representava o papel do sentimental sem
sabê-lo; pois muitas vezes invectivava junto com Reiser contra o ridículo
de uma sensibilidade afetada – como procurava não só parecer
sentimental diante dos outros, mas ser realmente sentimental para si
mesmo, isso não lhe parecia ser afetação, mas agia assim como se fosse
uma coisa totalmente séria, da qual não poderia zombar, e puxava aos
poucos Reiser para dentro desse turbilhão em que a alma gira durante um
bom tempo até chegar ao estado mais insosso que se possa imaginar.
Já era um estímulo para Reiser que alguém a quem não faltavam bens
materiais se aproximasse dele, apesar de seu estado de penúria. – Pouco a
pouco, no entanto, formaram-se nele um amor e uma afeição genuína pelo
jovem N., sentimentos que foram aumentando sempre mais pela
verdadeira amizade que nutria por Reiser, de modo que, mesmo em seus
disparates, os dois se tornavam cada vez mais íntimos e compartilhavam
sua melancolia e sensibilidade.
Isso acontecia principalmente em seus passeios solitários, nos quais
montavam com muita frequência uma cena entre eles e a natureza, ao ler,
por exemplo, Os discípulos de Emaús, de Klopstock, ao entardecer, ou A
criação do inferno, de Zacharias, num dia nublado.
Muitas vezes, acomodavam-se na encosta do bosque Steiger, de onde
se podia avistar a cidade de Erfurt com suas torres antigas e toda a
extensão de seus jardins. Os moradores de Erfurt frequentemente sobem
até lá para passear, acendem uma pequena fogueira e fazem o café para
renovar as ideias do modo de vida patriarcal.
Ali, N. e Reiser também ficavam muitas vezes sentados horas a fio, e
liam alternadamente algum poeta em voz alta; o que, na maior parte do
tempo, demandava um verdadeiro empenho e trabalho, e os colocava
numa situação penosa que um não confessava ao outro para reter consigo
no final apenas a seguinte ideia: “Estávamos sentados amigavelmente no
bosque Steiger, de onde avistávamos o vale muito gracioso lá embaixo, e
nosso espírito se alimentava de uma linda obra de arte poética”.
Se ponderamos quantas pequenas circunstâncias têm de ocorrer para a
leitura ser agradável e sossegada a céu aberto, podemos imaginar com
quantos pequenos transtornos N. e Reiser tinham de lutar durante essas
cenas sentimentais: quantas vezes o solo estava úmido, as formigas
subiam pelas pernas, a página era levada pelo vento etc.
N. encontrou um prazer especial em ler para Reiser todo O messias, de
Klopstock; mesmo com o terrível tédio que a leitura provocou nos dois, e
que mal ousaram confessar um ao outro ou a si mesmos, N. ainda tinha a
vantagem de ler em voz alta, o que fazia o tempo passar para ele; Reiser,
por sua vez, estava condenado a ouvir e se encantar com o que ouvia – o
que fez com que aquelas horas, tanto quanto é capaz de se lembrar,
estivessem entre as mais tristes de sua vida, entre as que mais o fariam
evitar repassar o percurso dos seus dias desde o princípio. Pois não pode
haver tormento maior do que o vazio completo da alma, quando esta se
esforça em vão para sair dessa situação, e a todo instante atribui
inocentemente a si mesma a culpa e acusa a própria apatia de não se
comover nem se afetar pelos sons sublimes que soam incessantemente em
seus ouvidos.
Ainda que os dois fossem quase inseparáveis, Reiser sentia falta dos
passeios solitários que sempre lhe propiciavam o mais puro prazer; mas
também estes agora se tornaram fastidiosos; pois ele costumava esperar
muito desses passeios e voltava para casa aborrecido se não tivesse
encontrado o que buscava; assim que o lá virava o aqui, perdia-se todo o
encanto e secava a fonte da alegria.
O tédio que então tomava o lugar da excitante esperança era de uma
natureza tão rude, comum e vulgar, que não restava nem a menor
intensidade de uma suave melancolia ou algo semelhante. Era mais ou
menos a sensação de um homem que está todo molhado pela chuva e,
quando chega em casa, arrepiado de frio, encontra também um quarto
gelado.
Essa era a vida que Reiser levava enquanto escrevia seu ensaio contra a
falsa sensibilidade, quando num de seus passeios solitários notou uma
singular manifestação de sensibilidade de quem ele menos teria esperado;
de um homem comum.
Passeava entre os jardins de Erfurt e, como era época de ameixas, não
resistiu e apanhou de um galho inclinado uma linda ameixa madura; o
proprietário do jardim percebeu isso e com palavras rudes lhe perguntou
se por acaso sabia que as ameixas que tinha acabado de colher lhe
custariam 1 ducado.
Reiser tentou negociar, mas teve de confessar que não tinha dinheiro
algum. Entretanto, para satisfazer o proprietário da ameixa roubada, teve
de lhe entregar, tirando de seu bolso, seu único lenço de boa qualidade,
cuja perda provocou muito sofrimento em Reiser.
Quando estava indo embora triste, viu, depois de poucos passos, um
bonito canivete no chão à sua frente; rapidamente pegou-o e de novo
chamou o proprietário do jardim, propondo-lhe uma troca: ele não
gostaria de lhe devolver o lenço em troca do canivete encontrado?
Qual não foi o espanto de Reiser quando o proprietário, antes tão rude,
de repente o abraçou e o beijou, oferecendo-lhe sua amizade; Reiser havia
de ser necessariamente um favorecido pela Providência, já que ela
permitiu que encontrasse o canivete que havia sido perdido por ninguém
menos que ele próprio; ele então devolveu com alegria o lenço a Reiser e
lhe assegurou que seu jardim estaria aberto a qualquer hora para que
apanhasse quantas ameixas quisesse e que não deixaria de lhe servir em
qualquer coisa que estivesse ao seu alcance; pois nunca lhe ocorrera algo
tão extraordinário.
Ao sair, pensando nesse estranho acaso, Reiser ficou ainda mais
impressionado, porque era a primeira vez na vida que realmente lhe
ocorria um lance de sorte, para o qual tiveram de concorrer muitas
circunstâncias raras.
Sua sorte parece ter sido, por assim dizer, completamente liquidada
naquela ninharia, para fazê-lo expiar no todo a culpa pelo fato de
simplesmente existir.
Era como o vigário de Wakefield, que, jogando dados com seu amigo,
fez um excepcional lance de sorte por alguns poucos centavos, pouco
antes de receber a notícia da bancarrota do comerciante para quem
perdeu toda a sua fortuna.
Por um breve tempo, o destino conteve as humilhações que preparara
para Reiser, não perturbando o prazer que ele obteve com a segunda
encenação teatral, na qual fizera três papéis.
Embora não tivesse a oportunidade de brilhar em nenhum papel
trágico, seu desejo mais ardente tinha de certo modo se realizado. E, mais
do que isso, tinham alguma confiança em seus conhecimentos teatrais,
pediam-lhe conselhos e ele, tanto por sua participação em peças como
pelos poemas escritos, se tornou ainda mais conhecido entre os
estudantes, que o tratavam com muita deferência, compensação agradável
para a sua situação na escola de H.
Nesse tempo, frequentou assiduamente a biblioteca da universidade,
na qual encontrou um prazer todo especial em estudar a Descrição da China,
de Du Halde, empenhando muito tempo nesse livro.
Na mesma época foi publicado o Siegwart, história de um monge, e ele
leu o livro várias vezes com seu amigo N., e ambos, tomados do mais
terrível tédio, se obrigavam a permanecer na emoção inicial durante a
leitura dos três volumes.
No fim, Reiser não tinha outra coisa em mente a não ser transformar
toda a narrativa numa tragédia histórica, e, para tanto, fez realmente todo
tipo de rascunhos, desperdiçando um tempo precioso naquilo.
Quando o resultado não saía como desejava, após cada tentativa inútil
daquele tipo ele passava as horas mais tristes e desfavoráveis que se pode
imaginar. A natureza inteira e todas as suas ideias perdiam o encanto,
cada momento era opressivo e a vida se tornava literalmente um
tormento.
Os sofrimentos da poesia

poderiam, nesse sentido, ser muito bem considerados um capítulo à parte


na história dos sofrimentos de Reiser, pois apresentariam todos os
aspectos de seu estado interno e externo, mediante os quais seria trazido à
tona aquilo que permanece inconsciente e obscuro para muitas pessoas ao
longo da vida, porque elas têm medo de descer ao fundo e à fonte de seus
sentimentos desagradáveis.
Esses sofrimentos secretos eram aquilo contra o qual Reiser teve de
lutar quase desde a infância.
Quando o encanto da arte poética o tomava involuntariamente, surgia
primeiro uma sensação melancólica em sua alma; imaginava algo em que
ele próprio se perdia, diante do qual tudo o que já havia ouvido, lido ou
pensado desaparecia, algo cuja existência, se realmente conseguisse
apresentá-la, provocaria um prazer que até então não fora sentido nem
nomeado.
Ainda não estava decidido, no entanto, se aquele algo seria uma
tragédia, um romance ou um poema elegíaco; bastava que fosse algo que
despertasse realmente a sensação daquilo que o poeta já havia pressentido
de alguma maneira.
Nos momentos desse afortunado pressentimento, a língua só produzia
balbucios isolados. Um pouco como os sons de algumas odes de Klopstock,
em que as lacunas da expressão são preenchidas com reticências.
Mas esses sons isolados significavam sempre algo genérico, grandioso,
sublime, lágrimas de deleite etc. Isso perdurava até a sensação voltar a
mergulhar em si mesma – sem nem ao menos ter dado origem a algumas
linhas sensatas, como início de algo definido.
Durante tais crises não surgia, portanto, nada de belo a que a alma
pudesse depois se ater, e todo o resto que realmente já se encontrava ali
não era digno de nenhum olhar de consideração. Era como se a alma
tivesse tido uma representação obscura de algo que ela mesma não podia
ser e que tornava sua própria existência desprezível.
É, de fato, sinal inconfundível de falta de vocação poética se alguém é
levado a escrever apenas por um sentimento genérico, alguém em quem a
cena determinada que quer escrever não está já nele antes ou, pelo menos,
ao mesmo tempo que esse sentimento. Em suma, aquele que, durante o
sentimento, não pode lançar ao mesmo tempo um olhar a todos os
detalhes da cena, este tem apenas sentimento, mas nenhuma capacidade
poética.
E não há nada mais perigoso do que se deixar levar por essa espécie de
tendência ilusória; a voz previdente não tem como alertar o jovem a
tempo para examinar o seu íntimo e descobrir se seu desejo não tomou o
lugar da capacidade, e, como ele jamais pode preencher esse lugar, um
eterno mal-estar permanece o castigo do prazer proibido.
Esse foi o caso de Reiser, que estragou as melhores horas de sua vida
com tentativas fracassadas, com esforços inúteis para alcançar uma
aparência enganadora que sempre pairou diante de sua alma, e, quando
pensava tê-la agarrado, ela desaparecia de repente em fumaça e névoa.
Se alguma vez o encanto poético contrastou com a vida e o destino de
uma pessoa, esse foi o caso de Reiser, que desde a infância esteve numa
esfera que o rebaixava e, para alcançar o poético, teve sempre de pular
uma etapa da formação humana, sem conseguir se manter na etapa
seguinte.
Era o que agora acontecia novamente em sua condição de vida
material; ele não possuía realmente um aposento só para si, mas, agora
que voltava a fazer frio, precisava morar numa sala compartilhada, cujos
moradores tinham de sair enquanto se fazia a limpeza.
Nesse cômodo morava uma família inteira, mais Reiser e outro
estudante, e cada um recebia ali suas visitas; contavam-se histórias, e as
crianças faziam barulho, cantavam, brigavam e gritavam; era esse o
ambiente em que Reiser pensava escrever seu ensaio filosófico sobre
sensibilidade e expor seus ideais poéticos.
E era ali que a tragédia de Siegwart deveria ser escrita, começando com
o seu recolhimento na figura do eremita, que sempre foi a ideia favorita de
Reiser e costuma ser a ideia favorita de quase todos os jovens que
imaginam ter uma vocação poética. O que é bastante natural, porque a
condição de um eremita já é, em si, poesia, e o poeta encontra sua matéria
já quase pré-elaborada.
Mas naquele que se dedica principalmente a tais temas isso indica
quase sempre que não há nele nenhuma veia poética genuína, porque, a
fim de embelezar cada objeto que se apresenta à sua imaginação, busca
nesses temas a poesia que já tinha de estar nele mesmo.
Do mesmo modo, a escolha do terrível é igualmente mau sinal, se essa
é a primeira escolha em que recai o suposto gênio poético; pois aqui o
poético já se elabora por si mesmo e o vazio e a esterilidade internos
devem ser substituídos pela matéria externa.
Esse era o caso de Reiser já na escola em H., quando procurou reunir
perjúrio, incesto e parricídio numa tragédia que seria intitulada O perjúrio,
toda elaborada com o pensamento na encenação da peça e, ao mesmo
tempo, no efeito que ela provocaria nos espectadores.
Esse segundo sinal também já deveria ser desencorajador para todos
que se examinam cuidadosamente no que diz respeito à vocação poética.
Pois o verdadeiro poeta e artista não encontra, e não espera, sua
recompensa no efeito que sua obra possa ter, mas encontra satisfação no
próprio trabalho e não o consideraria perdido se ninguém chegasse a vê-
lo. Sua obra o atrai espontaneamente para dentro de si mesmo, nele
próprio reside a força para os seus progressos, e a glória é apenas a espora
que o estimula.
Essa mera sede de glória talvez possa inspirar uma vontade de começar
uma grande obra, mas jamais dará capacidade a quem já não a possua
antes mesmo de conhecer a sede de glória.
Um terceiro mau sinal é o gosto dos jovens poetas pelos temas
distantes e desconhecidos; preferindo trabalhar com as maneiras de
representar dos países orientais ou algo parecido, em que tudo é
absolutamente diferente das cenas da vida comum familiares a nós;
tornando, portanto, o tema poético por si mesmo.
Esse foi também o caso de Reiser: havia muito tempo ele se ocupava
com um poema sobre a criação, cujo tema, naturalmente, era o mais
distante que a imaginação podia conceber, e, em vez do detalhe, que lhe
causava receio, ele via diante de si uma massa enorme cuja representação
é considerada a poesia sublime propriamente dita, e com a qual os jovens
poetas sem vocação sentem muito mais prazer do que com aquilo que está
próximo do homem; pois certamente aquela sublimidade que os jovens
poetas acreditam encontrar já diante de si naquela grande massa precisa
ser antes trazida àquilo que se encontra próximo.
Assim, as condições exteriores de Reiser se tornavam mais opressivas a
cada dia, porque o apoio esperado de H. não se realizou, e os donos da casa
o olhavam de soslaio quanto mais se davam conta de que ele não tinha
dinheiro nem esperança de vir a ter. Reiser não tinha mais condições de
pagar o café da manhã e o jantar, e eles deixaram claro que não tinham
mais a intenção de lhe emprestar; como não podiam angariar nada de útil
dele, e por ser ele, além disso, uma companhia triste, era natural que
desejassem que fosse embora e o despejassem da casa.
Por menos surpreendente que isso fosse, Reiser tomava como um
acontecimento trágico. A ideia de ser um peso e, por assim dizer, ser
apenas tolerado pelas pessoas com as quais vivia tornou mais uma vez sua
própria existência repugnante para si mesmo. Todas as recordações da
juventude e da infância estavam apinhadas em sua cabeça. Ele mesmo
atraiu para si toda a vergonha e quis desesperadamente se entregar mais
uma vez a um destino cego.
Quis nesse mesmo dia sair de Erfurt, e em sua cabeça se cruzaram
infinitas ideias romanescas, entre as quais uma se destacou: queria
procurar em Weimar o autor de Os sofrimentos do jovem Werther para ser seu
criado, sob quaisquer condições; assim ele conseguiria, de algum modo,
sem ser reconhecido, se aproximar da pessoa que, entre todos os homens
da terra, provocara a impressão mais forte em sua alma; atravessou a
porta da cidade e olhou para o monte Etter, que era como uma parede que
o separava de seus desejos.
Dirigiu-se à casa de Froriep para se despedir, sem conseguir lhe dizer
exatamente por que deixaria outra vez Erfurt. O dr. Froriep atribuiu essa
decisão à sua melancolia, dizendo-lhe que ele deveria ficar, e não o deixou
ir embora antes de Reiser prometer que pelo menos não partiria nem
naquele dia nem no seguinte.
Reiser se sentiu muito lisonjeado com esse interesse por seu destino;
mas, logo que se encontrou novamente sozinho, a ideia de ser um peso no
ambiente em que vivia o perseguiu como um espírito incômodo pelos
arredores, e não encontrou paz em lugar algum; vagou pelos recantos
mais solitários de Erfurt, próximo ao mosteiro dos cartuxos, ansiando
seriamente por aquele local como um refúgio seguro, e lançou olhares
nostálgicos por cima dos muros silenciosos.
Depois continuou a vagar até anoitecer, quando o céu se carregou de
nuvens e uma forte chuva caiu, encharcando-o num instante. O calafrio,
somado aos desassossegos interiores de sua mente, o impeliu a continuar
vagando, na tempestade e na chuva, pelas antigas muralhas, por ruas
ermas e solitárias; pois ele não conseguia suportar a simples ideia de
voltar para sua atual casa.
Subiu a escada alta para a antiga catedral, enrolou um lenço na cabeça
e procurou se proteger um pouco da chuva sob a antiga muralha. Por
causa do cansaço, caiu ali numa espécie de torpor, do qual foi despertado
por um novo aguaceiro e pelo ruído do vento, e tornou a vagar pelas ruas.
Enquanto a chuva pingava em seu rosto, ele se lembrou de uma
passagem do Rei Lear: “To shut me out, in such a night as this!” (Fechar-me as
portas numa noite como esta!). E representou então o papel de Lear em
seu próprio desespero, esquecendo-se de si no destino de Lear, que,
banido pelas próprias filhas, vagou pela noite tempestuosa, convocando os
elementos para vingar a terrível ofensa.
Essa cena o entreteve, de modo que pensou por um tempo, com uma
espécie de volúpia, no estado em que se encontrava, até que esse
sentimento também arrefeceu e por fim nada mais lhe restou senão a
realidade vazia, que o fez rir-se sardonicamente de si mesmo.
Nesse estado de ânimo, retornou à antiga catedral, que já estava aberta
e onde os senhores do coro se reuniam à luz de velas para rezar o louvor
da manhã. A construção em gótico antigo, as poucas luzes e o reflexo das
janelas do alto provocaram uma impressão maravilhosa em Reiser – que
havia perambulado a noite inteira e agora estava sentado num banco.
Como num alojamento, ele estava protegido da chuva, mas ali não era uma
residência para os vivos. Aquele que procurava um refúgio da vida, aquela
abóbada escura parecia convidá-lo, e aquele que passara uma noite como
Reiser passara a anterior estaria propenso a seguir esse chamado. No
banco da catedral, Reiser se sentiu transportado para um tipo de retiro
silencioso que guardava um prazer indescritível, livrando-o de uma só vez
de todas as preocupações e de todos os pesares, tornando o passado de
fato passado. Ele tinha bebido do Lete e sentia que passava, num sono
suave, para o país da paz. Enquanto isso, seu olhar ia se fixando nos
reflexos desbotados das janelas altas, e era isso, em especial, que parecia
transportá-lo para um novo mundo: era uma alcova majestática em que
ele abriu os olhos depois de ter passado a noite num sonho agitado.
Pois momentos assim na vida de Reiser eram de fato como sonhos de
um doente febril, mas estavam presentes e tinham sua razão de ser nas
fatalidades por que passou desde a infância. Não era sempre o desprezo de
si, o amor-próprio reprimido, o que o colocava num estado desses? E esse
desprezo de si não era sempre causado nele pela pressão externa,
certamente ocasionada mais pelo acaso do que pelas pessoas?
Quando o dia raiou, Reiser voltou da catedral com a alma mais
tranquila, e na rua encontrou seu amigo N. indo já cedinho à faculdade.
Ele se assustou ao ver o rosto de Reiser; aquela noite havia sido para ele
extenuante e deturpadora demais.
N. não se acalmou até que Reiser lhe revelou todo o seu estado. Após
acusações amistosas de que Reiser não mais confiava nele, o amigo o levou
novamente para sua antiga casa, procurou apresentá-lo sob uma nova luz
e pagou sua pequena dívida.
Esse interesse sincero de seu amigo revigorou o amor-próprio
adoentado de Reiser; estava de certo modo orgulhoso de N. e se sentia
honrado de tê-lo como amigo.
Para ficar sozinho, exigiu o direito de se instalar num tabique que
ficava no sótão da casa, deram-lhe também uma cama e ali passou,
totalmente entregue a si mesmo, algumas semanas que não lhe foram
desagradáveis.
Lia e estudava lá em cima, e teria sido totalmente feliz naquele
isolamento se não fosse perturbado por seu poema sobre a criação, que
muitas vezes fazia com que entrasse numa espécie de desespero ao querer
expressar coisas que acreditava sentir e que estavam além de toda
expressão.
O que mais o atormentava era a descrição do caos, que tomava quase
todo o primeiro canto do poema, e que era o lugar preferido para ele se
deter com sua imaginação doentia, mas nunca conseguia encontrar
palavras para suas ideias monstruosas e grotescas.
Seus pensamentos projetavam uma espécie de criação falsa e
enganadora no interior do caos, que num instante se tornava de novo
sonho e ilusão; uma criação muito mais bela que a real, mas que por isso
mesmo não tinha consistência nem duração.
Um sol falso despontava no horizonte e anunciava um dia radiante. –
Sob sua influência, o pântano sem fundo forrava-se com uma crosta na
qual brotavam flores e murmuravam fontes; de repente, forças contrárias
surgiam das profundezas, a tempestade uivava do abismo, as trevas com
todos os seus terrores irrompiam de seu fundo oculto e tragavam de novo
num túmulo temível o dia recém-nascido. As forças sempre represadas
procuravam se expandir por todos os lados, gemendo sob a pesada
resistência. As ondas se curvavam, lamentando-se sob a rajada uivante de
vento. As chamas contidas urravam nas profundezas; o solo que havia se
erguido, o rochedo que havia se sustentado, novamente afundavam ao
ruído do trovão no abismo que a tudo devora.
A fantasia de Reiser se esfalfava com essas imagens monstruosas, nas
horas em que seu próprio íntimo era um caos que o raio do pensamento
calmo não iluminava; as forças da alma haviam perdido seu equilíbrio e o
ânimo já eclipsara; o encanto da realidade desaparecia de sua frente e ele
preferia o sonho e a loucura à ordem, à luz e à verdade.
E todos esses fenômenos se fundavam de certo modo no idealismo, ao
qual ele já se inclinava naturalmente e no qual se via mais corroborado
pelos sistemas filosóficos que estudou em H. E nessa borda sem apoio ele
não conseguia encontrar um lugar em que seus pés pudessem se firmar.
Uma aspiração angustiada, uma inquietação, o seguia a cada passo seu.
Era isso o que o afastava da companhia dos homens e o levava aos
sótãos e às alcovas, onde passava com frequência suas horas mais
prazerosas, sonhando fantasiosamente, e ao mesmo tempo era isso que
lhe inspirava o impulso irresistível para o romântico e o teatral.
Mais uma vez ele estava completamente perdido no mundo ideal por
causa de seu atual estado interno e externo; não era de admirar, portanto,
que na primeira ocasião sua antiga paixão novamente pegasse fogo, e ele
fixasse seu pensamento no teatro, que em seu caso não era necessidade
artística, mas necessidade vital.
Essa ocasião se apresentou assim que a trupe teatral de Sp. chegou a
Erfurt e obteve autorização para encenar no salão de baile, o mesmo onde
os estudantes tinham encenado suas peças.
Reiser já era conhecido ali e tinha até construído certa fama por causa
de seu talento teatral, pelo qual logo se tornou próximo do diretor dessa
pequena trupe, que queria contratá-lo tão logo ele sentisse vontade de ser
ator.
Era uma tentação forte demais para Reiser que agora lhe oferecessem
espontaneamente aquilo pelo que se empenhara inutilmente, lutando
contra todas as adversidades da vida. Não levou mais nada em
consideração e passou a viver inteiramente no mundo do teatro, pelo qual
voltou a nutrir uma veneração entusiástica, que incluía o cartaz da peça
como em H.; e os componentes da trupe, incluindo o ponto e o copista,
eram vistos por ele com uma espécie de inveja.
Um deles, de nome B., que integrava a trupe naquela época e depois
veio a se tornar um ator famoso, era quem em geral despertava sua
curiosidade. B. se destacava sobremaneira dentre os membros da trupe, e
Reiser não desejava nada com mais ardor do que conhecê-lo
pessoalmente, o que também não foi difícil; ele revelou seu desejo a B., que
também o apoiou em sua decisão de se dedicar ao teatro, e nele Reiser
esperava encontrar agora um amigo.
Reiser não levou mais nada em conta; procurou, na medida do possível,
não pensar no dr. Froriep e em seu amigo N.; sem dizer nada a ninguém,
fechou o contrato com o diretor da trupe; Reiser tinha coragem e
esperança de que, assim que representasse seu primeiro papel, todos
aprovariam sua decisão.
Tudo dependia agora do primeiro papel no qual iria se apresentar no
palco; e aconteceu por acaso que a peça Os poetas da moda deveria ser
encenada dentro de alguns dias e nela lhe ofereceram um papel.
Seu desejo era representar o Obscuro, e já tinha decorado o papel
quando seu novo amigo, o ator B., o desaconselhou porque sempre havia
representado esse papel e sempre se saíra muito bem; Reiser então
deveria aceitar o de Reimreich, porque pertencia a um ator menos
conhecido.
Reiser aceitou de muito bom grado, porque, tendo já representado com
sucesso os papéis de Maskaril e do mestre Blasius, julgava-se dotado de
certa força para a comédia.
Transcreveu então seu papel, decorando-o. Estava completamente feliz
com a perspectiva de sua carreira teatral quando uma observação, que
nessas circunstâncias foi a mais terrível para ele, o deixou atemorizado e
horrorizado. Era como se um dos anjos de Satã o tivesse esmurrado:
percebeu que estava a ponto de perder os cabelos.
Justamente no momento em que ele tinha mais necessidade de um
corpo sem mácula, acontecia-lhe esse incidente, que o encheu
antecipadamente de repulsa de si mesmo.
Aflito, correu ao dr. Sauer, seu amigo íntimo, que lhe deu esperança de
conservar seus cabelos; na noite em que a peça Os poetas da moda seria
encenada, ele apareceu no camarim, nos bastidores, e se vestiu de maneira
bastante cômica para representar Reimreich sob a ótica mais engraçada;
nesse dia, seu nome já estava anunciado no cartaz da peça, espalhado por
todas as esquinas.
Quando o espetáculo estava para começar, seu amigo N. veio ao teatro
e lhe fez as mais amargas repreensões; Reiser não permitiu que nada o
perturbasse no êxtase de sua paixão; ele estava completamente
mergulhado em seu papel, pelo qual seu amigo N., que riu de seu traje
cômico, também acabou por se interessar, quando de repente apareceu
um mensageiro e anunciou ao diretor que se ousasse permitir que o
estudante, cujo nome estava impresso no cartaz da peça, pisasse o palco, o
dr. Froriep se dirigiria ao intendente e apresentaria uma queixa contra
ele; a consequência inevitável seria a perda da concessão de se
apresentarem ali.
Reiser ficou petrificado, e o diretor, temeroso, não sabia o que fazer,
até um ator se oferecer para interpretar o papel de Reimreich o melhor
que pudesse, com o auxílio do ponto; pois a plateia já exigia que a cortina
fosse levantada.
Nas coxias, Reiser andava furioso de um lado para outro, mastigando o
texto de seu personagem, que tinha em mãos. Depois correu o mais rápido
que pôde para fora do teatro e andou outra vez sem rumo pelas ruas,
debaixo de tempestade e chuva, até que, por volta da meia-noite, sobre
uma ponte coberta que o protegia da tempestade, ele se jogou no chão,
extenuado, e descansou um pouco para então voltar a andar sem rumo até
o dia raiar.
Esses esforços extremos da natureza eram a única coisa que
compensava de algum modo a perda no primeiro instante mais amargo da
dor. Havia algo na permanência desse estado de sofrimento que dava novo
alimento a sua nostalgia insatisfeita. Era como se a vida inteira de
fracassos teatrais se concentrasse naquela noite, na qual ele percorreu
interiormente em sua alma todos os estados da paixão que não tinha
podido representar fora de si.
O dr. Froriep o chamou no dia seguinte e conversou com ele como um
pai. Fazendo uso de expressões aduladoras, disse que os talentos de Reiser
o destinavam a algo melhor do que ser ator, que ele não tinha consciência
de si e não percebia o próprio valor.
Quando Reiser se deu conta da impossibilidade de satisfazer seu desejo
em Erfurt, mais uma vez se iludiu e se convenceu de que renunciava
espontaneamente à ideia de se dedicar ao teatro, porque tudo, por assim
dizer, se unia para frustrar sua decisão, e porque o modo como o dr.
Froriep o demoveu de seu desejo foi igualmente muito adulador.
Mas, assim que se encontrava sozinho, seu autoengano se vingava por
meio de um desânimo renovado e amargo, da indecisão e da luta consigo
mesmo, até que, depois de alguns dias, foi atingido pelo golpe mais forte
que ele ainda continuava tendo esperança de evitar: o de que viria a
perder cabelo.
A ideia de começar a usar uma peruca – coisa bastante incomum entre
os estudantes de Erfurt – lhe era insuportável. Com o pouco dinheiro que
ainda possuía, ele foi até o ponto mais afastado da cidade e se alojou numa
estalagem, onde apenas pernoitava, e à noite pedia um pouco de pão com
cerveja para que seu dinheiro durasse mais.
Na maior parte do dia, caminhava pelos arredores ermos e, quando
chovia, buscava abrigo nas igrejas; assim passou quase 14 dias, tempo em
que ninguém soube onde estava; até que finalmente um de seus amigos o
espionou, e de repente ele foi surpreendido na estalagem por N., O., W. e
outros mais que se interessavam por ele e amigavelmente o repreenderam
pelo sumiço.
Conseguia pentear um pouco seu cabelo para a frente da testa através
da peruca; e, se ainda se empoasse bastante, tinha-se até certo ponto a
impressão de que era seu próprio cabelo.
Decidiu então voltar para a companhia dos homens com os amigos que
vieram buscá-lo, mas quis, tanto quanto fosse possível, estar apenas com
eles, e desejou acima de tudo morar afastado e sozinho.
Não deixaram de lhe conceder também esse desejo. O bondoso W. falou
logo com seu tio, o professor Springer, que naquele tempo era conselheiro
do governo em Erfurt, e lhe fez uma apresentação clara da situação de
Reiser e de sua necessidade de morar sozinho.
O conselheiro Springer pediu que Reiser fosse procurá-lo, e, se alguma
vez ele foi tratado com encorajamento e recebido com verdadeira
simpatia, foi por aquele homem, por quem Reiser sentiu a mais íntima
afeição e veneração.
Naquela época ele estava dando um curso de estatística, do qual Reiser
ouviu algumas aulas, e, como este se interessou bastante pelo assunto, o
conselheiro Springer não só o convidou a se dedicar a essa disciplina como
também pretendia apoiá-lo de todas as maneiras possíveis.
Esse apoio começou quando o conselheiro Springer, seguindo o desejo
de Reiser, lhe ofereceu uma residência solitária, cedendo-lhe o pavilhão de
seu jardim, cuja chave Reiser recebeu, e de cuja janela tinha a mais bela
vista para uma parte dos jardins vizinhos, que rodeavam toda a cidade de
Erfurt.
Reiser voltou a comer de graça, o dr. Froriep assumiu seu caso com
todo o empenho e procurou de todos os modos conseguir-lhe sustento; ele
começou até a assistir a aulas de matemática, seus melhores amigos o
levavam junto para todos os encontros literários, liam partes de seus
textos para ele, de modo que a partir de então as coisas iam muito bem,
não fosse um novo e infeliz acesso de poesia que pôs tudo a perder.
A nova estada na casa solitária e romântica talvez tenha contribuído
bastante para a excitação de sua imaginação. Acrescente-se a isso uma
carta que escreveu para Philipp Reiser em Hannover e que acelerou sua
recaída.
Essa carta havia sido redigida inteiramente no tom das cartas de
Werther. Era preciso novamente despertar de qualquer forma as ideias
patriarcais; pena, no entanto, que isso não podia acontecer sem afetação.
Pois, para poder escrever essa carta, Reiser primeiro arranjou uma
chaleira e pegou emprestada uma xícara, e, como não tinha madeira em
casa, comprou palha, que em Erfurt é usada para queimar, a fim de
preparar o chá num pequeno fogão em seu quartinho, mas, depois de
quase ter sido asfixiado pela fumaça, acabou conseguindo escrevê-la.
E, quando o chá estava pronto, ele escreveu com um tom triunfante
para Philipp Reiser:

Meu querido! Eu me encontro agora numa situação na qual não posso desejar nada mais
encantador. De minha janelinha, avisto o vasto prado, vejo lá longe uma fileira de árvores
que se erguem sobre um pequeno monte, e penso então em você, meu querido etc. Tenho a
chave desta casa solitária e aqui sou o dono da casa e do jardim etc. Muitas vezes, quando
me sento aqui, próximo do fogãozinho, eu mesmo preparo meu chá etc.
E continuava nesse tom; ficou uma carta imponente e longa. E, como
Reiser não pôde deixar de mostrar essa linda carta ao dr. Sauer, seu amigo
crítico, isso acabou estragando tudo, já que ele, conforme sua educação
generosa, fez-lhe um elogio dizendo que, se a presença de Reiser não lhe
fosse tão cara, desejaria estar distante só para receber aquela carta dele.
E de repente reacendeu o já quase extinto impulso poético de Reiser.
Procurou então primeiro concluir a parte relativa ao caos em seu poema
sobre a criação, e mais uma vez começou a se atormentar e a se perder na
representação das terríveis contradições e monstruosas tramas
labirínticas do pensamento, até que por fim os dois hexâmetros seguintes,
tirados da Bíblia, o salvaram de um inferno de conceitos.

Nas águas silenciosas murmurava suave a voz do Eterno


Quando então disse: faça-se a luz! E a luz se fez.

Curiosamente, assim que o tema deixou de ser aterrador, ele perdeu a


vontade de continuar fazendo o poema. Procurou então um tema que
continuasse sempre aterrador e que pudesse elaborar em vários cantos; e
que outra coisa poderia ser senão a morte!
Além disso, estava lisonjeado com a ideia de ainda ser jovem e escolher
um assunto tão sério para cantar; começou então seu poema assim:

Um jovem, que cedo bebeu o cálice do sofrimento etc.

Mas quando começou a compor e realmente quis escrever o primeiro


canto de seu poema, cujo título ele já tinha escrito em letras lindas, viu sua
esperança de encontrar um reino de imagens aterradoras se frustrar de
maneira mais amarga.
Caíram-lhe as asas e ele sentiu sua alma paralisada, pois não avistava à
sua frente nada além de um amplo vazio, um deserto negro, onde não era
possível expressar nem mesmo a vida que em vão tentava se erguer, como
na representação do caos, mas uma noite eterna escondia todas as figuras
e um sono eterno atava todos os movimentos.
Forçou, com uma espécie de fúria, sua imaginação a enfiar imagens
nessa escuridão, mas elas escureceram, como as folhas verdes da coroa de
álamo na cabeça de Hércules quando, para pegar Cérbero, aproximou-se
da casa de Plutão. Tudo o que ele queria pôr no papel desvanecia em
fumaça e neblina, e o papel branco permaneceu intocado.
Acabou sucumbindo a essas tentativas de um falso impulso poético,
sempre repetidas em vão, e caiu numa espécie de letargia e completo tédio
de viver.
Certa noite, jogou-se vestido na cama e ficou a noite e o dia seguinte
inteiro numa modorra, da qual só veio a despertar na noite do dia
seguinte, já véspera de Natal, por um mensageiro de seu protetor, o
conselheiro governamental Springer, cuja mulher havia enviado de
presente a Reiser um enorme pão natalino.
E foi isso justamente o que intensificou ainda mais sua irresistível
modorra. Ele se trancou com esse pão enorme e dele viveu catorze dias,
porque comia pouco, e passava dia e noite, se não dormindo
continuamente, ao menos cochilando, excetuando os últimos dias. Não há
dúvida de que a circunstância de não ter madeira para o aquecimento
contribuiu; mas ele poderia ter dito uma só palavra para satisfazer essa
sua necessidade, se não tivesse optado por alegar a falta de madeira como
um motivo para seu jeito esquisito de viver.
Reiser, nessa situação, também não foi incomodado por seus amigos,
porque diversas vezes tinha expressado o desejo de ficar ao menos uma
vez completamente sozinho por umas semanas.
Mas essa situação teve um efeito estranho em Reiser: ele passou os
primeiros oito dias numa espécie de relaxamento e indiferença absolutos,
e a situação que se esforçara em vão para cantar no poema, ele de certo
modo a representou dentro de si. Parecia ter bebido do Lete e
aparentemente não restava mais nele faísca alguma da vontade de viver.
Os últimos oito dias, no entanto, ele esteve numa situação que,
considerada isoladamente, tem de estar entre as mais felizes de sua vida.
As forças – que estavam adormecidas – foram aos poucos
restabelecidas pelo longo e contínuo relaxamento. Seus cochilos se
tornaram cada vez mais suaves; por suas veias parecia se espalhar uma
nova vida; suas esperanças juvenis iam se despertando uma após a outra;
glória e sucesso o coroavam novamente; lindos sonhos abriam seus olhos
para um futuro dourado. Estava inebriado com esse prolongado sono e,
toda vez que acordava um pouco dessa doce soneca, sentia-se num
agradável êxtase. Sua própria vigília era um incessante sonho; e ele teria
dado tudo para poder permanecer eternamente nesse estado.
Quando fitava, portanto, as janelas congeladas, esta era a vista perfeita,
porque desse modo era obrigado a permanecer ainda mais um dia inteiro
na cama. Considerava o pão enorme sobre a mesa como um santuário que
era preciso poupar tanto quanto fosse possível, porque a duração de seu
estado de felicidade dependia da duração daquele pão.
Mas agora ele sentia que seria capaz de tudo, quando chegasse o
momento. A ideia do teatro novamente lhe aparecia tão radiante quanto
antes; todas as paixões teatrais voltaram a tomar paulatinamente a sua
alma, e os ânimos da plateia eram comovidos por sua interpretação.
Quando seu pão acabou, levantou-se por volta do fim da tarde,
arrumou seu traje tão bem quanto pôde, e a primeira vez que saiu foi para
ir ao teatro, onde se sentou num canto e viu primeiro a apresentação de
uma peça intitulada Inkle e Yariko e em seguida Os sofrimentos do jovem
Werther. O autor desta última não fizera quase nada a não ser transformar
as cartas de Werther em diálogos e monólogos, os quais haviam deixado a
peça sem dúvida muito longa, mas mesmo assim interessaram muito o
público e os atores pelo tema comovente.
Mas justo no momento da catástrofe trágica da última peça ocorreu
um acidente bastante cômico. Tinham pegado emprestadas algumas
pistolas antigas e enferrujadas em algum lugar, e foram desleixados
demais, sem testá-las antes.
O ator que fazia Werther pegou uma delas da mesa e disse tudo o que
estava no Werther, literalmente: “Tuas mãos a tocaram; tu mesmo limpaste
o pó dela” etc.
Para representar tudo exata e perfeitamente, havia também pedido
que trouxessem uma jarra pequena de vinho e pão, e o criado não deixou
faltar também sobre a mesa uma faca de pão.
Mas, no fim, a peça estava montada de tal modo que o amigo de
Werther, Wilhelm, ao ouvir o tiro, entraria precipitadamente e gritaria: “Ó
meu Deus! Ouvi um tiro!”.
Tudo isso era de fato muito bom; mas, quando Werther pegou a
maldita pistola, aproximou-a do lado direito, perto da testa, e apertou o
gatilho, ela falhou.
Ainda sem ter perdido totalmente o controle por causa desse incidente
desagradável, o ator, decidido, lançou a pistola para longe e exclamou
pateticamente: “Até esse triste serviço tu queres me negar?”. Depois, num
instante, pegou a outra, apertou o gatilho como da primeira, e, que azar!,
essa também não funcionou.
As palavras lhe morreram nos lábios; com as mãos tremendo, pegou a
faca de pão que por acaso jazia sobre a mesa e espetou com ela, para
sobressalto dos espectadores, o casaco e o colete. – Enquanto caía, seu
amigo Wilhelm entrou apressadamente e gritou: “Ó meu Deus! Ouvi um
tiro!”.
Dificilmente uma tragédia poderia ter um fim mais cômico que esse. –
Mas isso não tirou Reiser de suas exaltadas fantasias, ao contrário,
reforçou-as ainda mais, porque ele via à sua frente algo imperfeito que
deveria ser substituído por algo perfeito.
Ficou sabendo que dentro de oito dias os atores partiriam de Erfurt e
iriam para Leipzig; ouviu também que o mais talentoso dos atores dessa
trupe, de nome B., teria recebido um chamado para ir a Gotha; portanto,
ele não tinha de temer mais nenhum concorrente; Leipzig era o lugar para
brilhar; conseguiu disfarçar sua peruca muito bem com os cabelos que
novamente iam crescendo. Quantos novos motivos para a paixão, que já
existia antes e que por um tempo estivera apenas adormecida, vencer
outra vez a razão.
Anunciou imediatamente aos amigos sua decisão, a saber, que iria para
Leipzig com a trupe de Sp., pois sentia um impulso irresistível em seu
interior, que, se ele o barrasse, isso o tornaria infeliz e sempre o
atrapalharia em todas as suas iniciativas.
Apresentou seus motivos tão apaixonada e intensamente que mesmo
seu amigo N. não pôde lhe dizer nada contra; ele já lhe tinha feito as
descrições mais emocionantes de como na primavera seguinte leriam
outra vez Klopstock na floresta Steiger etc.
Reiser já vivia com os atores e, enquanto devolvia ao conselheiro
Springer a chave da casa dos fundos, ia lhe contando da maneira mais
vivaz como sua condição seria infeliz se porventura reprimisse seu
impulso ao teatro.
Também dessa vez, o conselheiro Springer tratou Reiser de modo
extremamente tolerante. Aconselhou-o a seguir o impulso caso fosse tão
irresistível, porque esse impulso, que sempre voltava, talvez abrigasse em
si uma verdadeira vocação para a arte, e ele portanto não deveria negá-la.
Mas, se fosse o contrário e Reiser estivesse iludido, e não fosse feliz em seu
intento, não deveria hesitar em se dirigir ao conselheiro, em qualquer
circunstância e situação, e estar seguro de sua ajuda.
Reiser se despediu com o coração tão comovido que não conseguiu
dizer nada, de tão forte que haviam tocado sua alma a generosidade e a
benevolência do conselheiro. Ao partir, ele se fez as mais amargas
censuras por não ter podido se mostrar mais digno daquele amor e
amizade naquele momento.
Quando Reiser foi se despedir do dr. Froriep, a quem N. já havia
comunicado sua decisão, foi tratado por ele com a mesma indulgência que
por seu outro benfeitor; e o dr. Froriep esclareceu que não só não o
demoveria de sua decisão, mas também a apoiaria se o teatro já fosse uma
escola dos bons costumes, na medida em que realmente poderia e deveria
ser.
Acrescentou por fim, não sem razão, uma pequena ironia, dizendo a
sua filhinha, que ele segurava nos braços: “Quando você crescer, também
ouvirá falar do famoso ator Reiser, cujo nome é conhecido em toda a
Alemanha!”. Mas mesmo essa ironia muito bem-intencionada permaneceu
estéril para Reiser, que apesar disso, com íntima comoção e amargas
repreensões contra si mesmo, recordou-se de tudo o que o dr. Froriep
havia feito por ele, e cuja intenção ele frustrava com sua decisão.
Mas era como um dever de autopreservação não dar ouvidos a todas
essas íntimas repreensões, porque acreditava estar bem convencido de
que seria o homem mais infeliz do mundo se não seguisse sua inclinação.
Nas últimas semanas, no entanto, a trupe de Sp. caíra na mais extrema
pobreza por falta de receitas. O diretor Sp. viajou antecipadamente para
Leipzig apenas com os figurinos, e os outros atores tiveram de se virar da
melhor maneira possível para chegar ao lugar de destino; uns viajaram a
cavalo, outros em carroças, e outros ainda a pé, conforme as
circunstâncias permitiam a cada um, pois o caixa coletivo estava havia
tempos vazio; mas em Leipzig eles esperavam recuperá-lo rapidamente.
Na mesma tarde em que se despedira, Reiser iniciou também sua
viagem a pé, e seu amigo N. o acompanhou a cavalo até a aldeia seguinte
no caminho para Leipzig, onde pretendia pregar no domingo seguinte.
Depois de terem entrado na estalagem e mais uma vez recordado todas
as cenas felizes que desfrutaram quando haviam lido juntos O Messias, de
Klopstock, na encosta do Steiger, Reiser retomou sua viagem, e N. o
acompanhou ainda um bom trecho até escurecer.
Então se abraçaram e se despediram com muita comoção, e nessa
despedida pela primeira vez se chamaram de “irmãos”. Reiser se soltou,
correu e gritou para o amigo: “Agora você já pode cavalgar de volta!”.
Quando, no entanto, ele já estava um pouco distante, olhou à sua volta
e gritou mais uma vez: “Boa noite!”. Ter dito aquelas palavras lhe foi fatal,
e ele se aborrecia toda vez que as recordava. Pois a recordação de toda
essa cena sentimental sofria um golpe; soa estranho desejar mais uma vez
boa-noite a uma pessoa a quem acabamos de dizer adeus, quer por um
tempo, quer para todo o sempre, como se fôssemos lhe fazer uma visita na
manhã seguinte. –
Fazia um frio cortante. Mas agora Reiser caminhava sem carregar
nenhum fardo, seguia seu caminho com as estimulantes perspectivas de
glória e sucesso.
Muitas vezes, quando chegava a algum monte, ficava um pouco quieto
e abarcava com os olhos o prado nevado, enquanto por um momento um
pensamento esquisito atravessava sua alma, era como se ele se visse
caminhando por ali como um estrangeiro e seu destino distante estivesse
envolto numa escuridão. – Essa ilusão, no entanto, desaparecia tão rápido
como havia surgido; e Reiser tornava a pensar então no caminho à sua
frente, em como seria Leipzig, que tipo de papel ele encenaria etc.
Assim, refez com muito prazer o caminho de Erfurt para Leipzig; mas,
durante o trajeto, pronunciou muitas vezes o nome de N., a quem
realmente amava, e chorou copiosamente até recordar o esquisito “boa-
noite” que ele não sabia de modo algum como harmonizar com essa
comovente recordação.
Em Erfurt, já tinham lhe dito que em Leipzig ele teria de ficar na
estalagem Coração Dourado, onde os atores sempre se hospedavam, pois
lá era como se fosse o alojamento deles.
Quando entrou na sala, encontrou já um número considerável de
membros da trupe de Sp., que quis cumprimentar como seus futuros
colegas, quando notou em todos um forte desalento, que logo se
esclareceu ao lhe darem a notícia desoladora de que o digno diretor
daquela trupe tinha vendido os figurinos assim que chegou a Leipzig e ido
embora com o dinheiro. – A trupe de Sp. era agora um rebanho disperso.
POSFÁCIO
MÁRCIO
SUZUKI
Entre os anos de 1786 e 1787, Karl Philipp Moritz estava em Roma,
escrevendo, sob contrato com o editor alemão Campe, uma obra sobre as
artes e costumes da Itália – Viagem de um alemão à Itália. Numa carta datada
do dia 1º de março de 1787, que integra o relato, Moritz explica ao seu
destinatário a razão da interrupção temporária de sua correspondência:

Depois de longa pausa, você está recebendo de novo uma carta minha – pois minhas
excursões por Roma, que comecei a lhe descrever, foram interrompidas há algum tempo
por incidente adverso.
Minha última excursão foi uma cavalgada na companhia de amigos à foz do Tibre, em
Fiumicino.
Voltamos bastante tarde e chegamos bem em Roma, onde os restos do pavimento antigo
na região do Panteão foram desta vez um mau sinal para mim.
Pois justamente neste pavimento, já totalmente liso pelo tempo e ainda mais
escorregadio devido a uma chuva fina, tive a sina de quebrar o braço esquerdo pela queda
do meu cavalo.[30]

Por causa desse acidente, Moritz teve de ficar meses em casa, aos cuidados
de amigos – como o pintor Johann Heinrich Wilhelm Tischbein e Johann
Wolfgang von Goethe, que ele conhecera poucos dias antes em Roma. O
episódio ilustra bem o que foi a vida de Moritz, com os seus momentos de
felicidade repentinamente interrompidos pelos caprichos do destino. Ele
teve de aprender desde cedo a conviver com a má estrela que o
acompanhou pela vida afora.
É verdade que, na Itália, a fortuna lhe acena um pouco menos
timidamente, pois encontra em Goethe, além de um admirador e parceiro,
uma espécie de gênio tutelar. A proximidade da trajetória dos dois autores
até esse encontro é digna de ser relembrada.
Os laços de amizade com o futuro criador de Fausto não ocorreram por
acaso. O destino já havia marcado um encontro entre eles, e a
aproximação é selada justamente no período de convalescença de Moritz,
quando o grande poeta, fazendo-lhe companhia e prestando-lhe todo tipo
de ajuda, discute longas horas com ele sobre os mais variados assuntos,
apresenta-lhe a sua teoria do fenômeno originário e o estimula a sair do
isolamento e de sua natural melancolia. Moritz foi, por seu lado, um
interlocutor à altura. Muitas ideias que vieram a florescer pouco depois
nos escritos de ambos foram gestadas nessas conversas e podem ser
consideradas um trabalho em conjunto realizado durante a estada dos
dois em Roma. É assim que, em Viagem à Itália (obra que só veio à luz em
1813 e 1817, enquanto Viagem de um alemão à Itália, de Moritz, foi publicado
entre 1792 e 1793), Goethe republica parte de um texto muito importante
de Moritz, “A imitação formadora do belo”, que diz ser resultado daquelas
conversas: as ideias ali surgidas teriam sido utilizadas depois pelo amigo
para redigir o seu ensaio. Goethe transcreve também outra criação de
Moritz, o divertido e engenhoso “jogo etimológico”, feito para
desenvolver a sensibilidade linguística dos jogadores. Durante a
convalescença, Moritz conta partes de sua vida a Goethe, conforme relato
deste a sua amiga Charlotte von Stein, numa carta de 14 de dezembro de
1786:

Quando estive na casa dele, Moritz, ainda se recuperando do braço quebrado, me contou
trechos da sua vida, e fiquei espantado pela semelhança com a minha. Ele é um irmão mais
jovem meu, da mesma espécie, só que desamparado e prejudicado, enquanto eu fui
favorecido e distinguido. Isso provocou uma estranha retrospecção sobre mim mesmo.

O trecho é uma preciosidade: Goethe sabe muito bem a distância social


que o separa de Moritz e não hesita, por isso, em ajudar o seu “irmão mais
jovem” menos afortunado, transformando-se naquele momento em seu
“guarda, confessor e confidente”, além de seu “ministro das finanças e
secretário privado”. A distância das condições de um e outro lembra uma
diferença que Wilhelm Meister apresentará, alguns anos depois, entre o
nobre e o burguês: enquanto aquele pode ascender a qualquer posto na
sociedade, o burguês já tem desde o início “o puro sentimento tácito da
linha demarcatória que lhe foi traçada”. De qualquer modo, essa linha de
demarcação entre as condições sociais não impede que haja um vínculo
espiritual profundo entre os homens mais e menos favorecidos, como é o
caso de Moritz, que vem das camadas menos privilegiadas da sociedade.
Seria mais que um exercício de curiosidade tentar descobrir que
trechos da vida de Moritz teriam causado tanto espanto a Goethe em
virtude das semelhanças com sua própria vida. A pergunta tem interesse
porque, quando os dois se conhecem na Itália em 1786, as três primeiras
partes de Anton Reiser já tinham sido publicadas com êxito no ano anterior,
e Goethe, se não as havia lido, pelo menos sabia de sua existência, ainda
mais porque Moritz já era um autor de algum renome. De onde vinha,
pois, o seu assombro? Se Goethe não leu as partes publicadas, ou não se
lembrava delas, o que pode tê-lo impressionado foi o paralelismo das
trajetórias – ambas marcadas por uma juventude ambiciosa, de busca pela
redenção afetiva e espiritual por intermédio da arte, redenção essa que, de
algum modo, não se consuma em toda a sua plenitude desejada. Se, pelo
contrário, Goethe já havia lido as partes publicadas do Anton Reiser, o
impacto da narrativa deve lhe ter sido ainda maior, porque pode ter
constatado então que quase não havia distância entre aquilo que havia
lido e aquilo que lhe era agora relatado, ou seja, quase não havia diferença
entre o real e o ficcional. O romance autobiográfico como que ganha uma
confirmação na pele de Moritz ali convalescente. O que é tanto mais digno
de nota, já que a vida de Reiser/Moritz é emblemática de toda uma
geração de jovens alemães da década de 1770.
Como toda uma legião de jovens seus contemporâneos, Moritz cresceu
rodeado por uma literatura que reforçava o lado sentimental de sua
infância quietista e pietista: são obras de autores do movimento pré-
romântico alemão (também conhecido pelo nome de Sturm und Drang),
como Bürger, Hölty, Voß, os irmãos Stolberg, o próprio Goethe etc.,
escritores que ele procurou imitar em suas primeiras tentativas poéticas e
dramáticas, assim como havia imitado na pré-adolescência os sermões dos
pregadores que admirava. Na mesma época ocorre a descoberta de
Shakespeare, que fazia enorme sucesso então. É com a leitura do bardo
inglês que se inicia para Reiser o conhecimento do universo das paixões, é
nesse momento que pensa em converter seu diário, voltado até então para
os acontecimentos externos insignificantes, numa “história interior de seu
espírito”; é nesse momento também que começa a se pôr questões como
“o que é minha existência, o que é minha vida?” etc.
Pouco depois, viria outra grande revelação com Os sofrimentos do jovem
Werther, que ele recebe do amigo Philipp Reiser. O livro, como se sabe, se
tornou uma verdadeira febre na Alemanha e levou a mudanças de hábitos,
incluindo a maneira de vestir (os jovens passaram a usar a indumentária
do herói: fraque azul-escuro, colete amarelo, calça amarela até o joelho e
bota de cano alto, com a borda superior virada). Hoje se põe em dúvida o
aumento do número de suicídios provocado pela publicação da obra em
1774; permanece certo, no entanto, que Os sofrimentos do jovem Werther
determinaram uma mudança enorme no estado de espírito da juventude
alemã da década de 1770, da qual Moritz/Reiser faziam parte.
Quando encontra Goethe em Roma, Moritz já não é o mesmo jovem
imaginoso de antes, grande entusiasta daquele romance epistolar de tanto
sucesso. Goethe tampouco permaneceu o mesmo. Muito pelo contrário, na
Itália ele se faz passar pelo pittore Filippo Miller justamente para não dar na
vista como o autor do Werther. Por caminhos distintos, porém afins, os
dois se distanciaram das convicções estéticas da juventude. Isso é
perceptível na quarta parte do Anton Reiser, publicada em 1790, quando
Moritz já havia retornado da Itália.
De fato, todo o romance se constrói, como se lê no início da quarta
parte, em resposta à pergunta: “em que medida um jovem está em
condições de escolher para si mesmo a sua vocação?”. Pergunta
fundamental, sem dúvida, pois era também, com poucas nuances, a
mesma que se fazia Goethe quando começou a pensar em escrever o seu
Wilhelm Meister, em 1782. A coincidência é certamente notável e explica
provavelmente o espanto de Goethe. Existe, com efeito, uma versão
anterior do romance goethiano, apenas publicada postumamente no início
do século XX, que tinha por título A missão teatral de Wilhelm Meister. A
temática da vocação profissional é exatamente a mesma trabalhada por
Moritz em sua autobiografia, sem que, no entanto, um conhecesse o
trabalho do outro. A coincidência pode ser, sem dúvida, resultado de um
movimento geracional, já que ambos estavam passando a limpo o seu
passado sentimental. Não deixa de ser surpreendente, contudo, que
tenham chegado ao mesmo diagnóstico dos problemas de sua época e,
mais ainda, que tenham buscado uma solução semelhante para eles.
O balanço crítico que ambos fazem do passado vem junto com a
preocupação estética de não cometer os mesmos erros. Daí a clareza com
que colocam a indagação sobre a escolha da vocação, tanto em Reiser
como em Os anos de aprendizado de Wilhelm Meister, romance de formação
que começa a ser publicado em 1795. Não há como deixar de observar a
semelhança de vários temas nas duas obras: o conhecimento das próprias
forças pelos obstáculos que têm de enfrentar, os encontros inesperados
com figuras tutelares, a confissão religiosa, a errância, a paixão pelo palco,
a convivência imprevisível nas trupes teatrais, a desqualificação social do
ator, a frustração e o reconhecimento da própria limitação. O liame
implícito de todos esses temas nos dois romances é a ideia de mestria
técnica ou artesanal. O próprio título da versão final do romance de
formação de Goethe o indica: a trajetória nele narrada se refere aos anos de
aprendizado do protagonista, e a expressão se referia na época
principalmente ao período em que o aprendiz passava junto ao mestre até
se tornar um artesão.
É claro que a expressão se aplica problematicamente ao caso de Anton
e de Wilhelm: nenhum dos dois cabe exatamente numa condição social
precisa, eles não fazem ou não conseguem fazer parte de nenhuma
corporação de ofício, Wilhelm porque vem de um estrato social mais alto
(o pai é comerciante) e quer entrar para uma trupe teatral (o que à época
não era bem considerado um ofício); Anton porque não quer abraçar a
profissão imposta pelo pai. As desventuras de Anton começam quando
recebe a notícia de que não pode mais estudar nem continuar as aulas de
latim e, mais ainda, quando descobre que isso já havia sido maquinado
antes pelo pai, que queria enviar o filho para trabalhar como ajudante e
aprendiz de um mestre chapeleiro (na vida real, o pai de Moritz era
músico militar, de parcos recursos que mal davam para o sustento da
família). A despeito disso, o aprendizado de uma técnica ou de uma arte
constituiu um passo decisivo tanto para Goethe como para Moritz:
abdicando ambos do espontaneísmo, a recusa das convenções e regras que
lhes marcara a juventude, porque perceberam o quanto isso lhes foi
prejudicial, sua convicção era a de que todo homem precisava ser de
algum modo um artesão ou um mestre, não para “vencer” na vida, mas
para saber situar a si mesmo no mundo e na sociedade. A formação do
indivíduo dependia, assim, de um aprendizado, não exatamente para que
se tornasse um “artista”, mas para aprender a conhecer as próprias
capacidades no corpo a corpo com um saber prático. O homem se
desenvolve e transforma pela própria operosidade, na qual aprende ao
mesmo tempo a lapidar o diamante bruto que é ele mesmo. Essa
concepção tem muita semelhança com a ideia do indivíduo entendido
como uma obra de arte de Friedrich Nietzsche e com a noção de “técnica
de si” de Michel Foucault.
Não obstante todas essas aproximações, é certo também que os dois
romances apresentam diferenças significativas. Todo leitor de Os anos de
aprendizado percebe a estilização do livro, sua tendência idealizante, que o
eleva um tom acima daquele que é habitual nos romances. Já a história de
seu irmão menos afortunado se desenrola toda ela terra a terra, sem
nenhuma impostação, mas também sem medo de mostrar como as coisas
efetivamente foram e são. Ao lado da diferença de renome entre os dois
autores, essa discrepância foi talvez um dos fatores que levaram Reiser a
ficar muito tempo na sombra de Meister. Como hoje os valores estéticos se
inverteram, é provável que venha daí a vitalidade do romance de Karl
Philipp Moritz.
Pois, se não veste o traje a rigor da alta literatura, se aparentemente
lhe falta estilo, se seguramente é uma obra um tanto irregular, Anton Reiser
tem uma contundência psicológica única, que, por mais dada à
introspecção que seja, nunca perde o fio de contato com o social. O
narrador o diz com todas as letras: o infortúnio do protagonista é
resultado de uma sucessão de desencontros entre ele mesmo e os outros,
de uma ação coordenada, por assim dizer, mas ao mesmo tempo equívoca,
de ambas as partes. São inúmeras as situações de encalacramento: o
menino sem autoestima e sonhador vai se enterrando mais e mais em si
mesmo, incapaz de encontrar saída para sua solidão e desespero. Não
apenas o mundo lhe é adverso: Anton também complica excessivamente o
seu modo de pensar e agir, a ponto de sentir dissabor mesmo naqueles
instantes em que sua alma pôde se extroverter, porque a expectativa era
sempre superior a qualquer realização, e acabava, justamente por isso,
numa frustração ainda maior. É fato, entretanto, que seu desajuste
decorre também do seu desconhecimento das regras do mundo: o garoto
de educação quietista não poderia ir à igreja nem muito menos imitar os
sermões do pastor em casa, pelo que recebe punição do pai; a possibilidade
de ter aulas de piano é uma afronta aos outros empregados do mestre
chapeleiro; o jovem estudante que está prestes a realizar um grande
sonho, o de representar o papel de Reimreich em Erfurt, só percebe a
confusão que está provocando poucos minutos antes da estreia da peça,
quando vê seu profesor e benfeitor ameaçar a trupe teatral, caso ele entre
em cena etc.
O tamanho de sua expectativa é sempre inversamente proporcional à
pouca quantidade de consideração e afeto que recebe. O avanço da
narrativa se dá por um acúmulo de desastres, que criam uma sensação de
sufocamento desesperador, para o qual não se vê saída. Uma das
passagens mais impressionantes do livro é aquela em que o jovem, objeto
de escárnio e desprezo dos colegas, caminha pelas ruas sob um vento
úmido e uma mistura de chuva e neve, e de repente lhe vem o sentimento
de que não podia fugir de si mesmo, de que, a cada passo seu, aquela figura
odiosa que não era outra senão ele mesmo seguia se arrastando atrás dele.
Não poder ser visto pelos outros, odiar a própria imagem: eis o que explica
o isolamento e as escapadas de Anton para o mundo dos livros, para o
teatro, para o ar livre dos campos. O livro é o substituto do verdadeiro
contato com o outro, e a insociabilidade de Anton cresce com as dívidas
que contrai com o alfarrabista da cidade; o teatro é o lugar para pessoas
que não têm personalidade própria ou não se satisfazem com a que têm,
que estão o tempo todo substituindo a si mesmas por personalidades
alheias, e é por isso que Anton não resiste em trocar o seu papel na vida
real pelas personagens que vê no palco; a viagem (Reiser, em alemão, quer
dizer literalmente viajante, aquele que viaja) é o desejo de estar em todos
os lugares e não estar efetivamente em nenhum.
O fim da história do jovem Reiser deixado em suspense é um lance de
mestre do escritor, que não deixa margem alguma para o otimismo. De
fato, nada mais desconcertante e desalentador que a cena final na
hospedaria Coração Dourado, em Erfurt, onde Anton reencontra os atores
da trupe à qual queria se juntar, atores que deveriam ser o sinal de sua
futura glória, mas que marcam uma derradeira decepção.
No período que se segue aos fatos relatados no romance, a curta vida
de Karl Philipp Moritz não foi menos atribulada que seus anos de
aprendizado. Depois do fracasso em se tornar ator, Moritz consegue ainda
estudar teologia na Universidade de Wittenberg, assumindo em seguida o
cargo de professor no Philanthropinum, a famosa escola fundada por
Johann Bernhard Basedow em Dessau, e, depois, no mosteiro Graues
Kloster, em Berlim. Tendo conseguido juntar recursos, faz um tour pela
Grã-Bretanha, que é narrado em suas Viagens de um alemão à Inglaterra
(1782), obra de grande repercussão na época. Na volta dessa viagem,
torna-se por dois anos redator de jornal. Surge então a oportunidade de ir
à Itália. Ele chega a Roma em setembro e conhece Goethe no dia 1º de
dezembro de 1786.
Na volta da Itália, aceita o convite do poeta para ir encontrá-lo em
Weimar, mas lá chegando tem de esperar alguns dias, sem roupas nem
dinheiro, pois Goethe não se encontra na cidade. A situação não é muito
diferente daquela vivida poucos anos antes, quando Anton, não
encontrando a trupe teatral, pensa em ir bater à porta de Goethe para lhe
pedir o emprego de criado. Quando o amigo finalmente chega, depois de
algumas semanas, apresenta-o ao duque de Weimar, que se encanta com
Moritz, de quem recebe aulas de inglês. O duque o leva a Berlim,
conseguindo para ele o posto de professor na Academia Real de Belas-
Artes, onde teve como alunos Tieck, Wackenroder e Alexander von
Humboldt. Retribuindo o que recebera de Goethe, Moritz ajuda o escritor
Jean Paul a publicar seu primeiro livro, dando-lhe inclusive um
adiantamento considerável pelo manuscrito. Esses anos em Berlim são os
de maior estabilidade e fecundidade para ele, nos quais escreve muitos
trabalhos sobre estética, mitologia e linguagem.
Embora o narrador do romance afirme que Anton não podia se
reconhecer em personagens romanescas apaixonadas, porque jamais
imaginou ser correspondido por alguém, o Moritz real se casa com
Christiane Friederike Matzdorff em 8 de agosto de 1792. Logo em seguida,
é verdade, a mulher é raptada pelo ex-amante. Em dezembro, vem a
separação. Moritz, entretanto, vai atrás da esposa. Em 27 de abril de 1793,
volta a se casar com Christiane. Mas o escritor morre logo depois, em 26
de junho, contando apenas 36 anos de idade.
A grande atualidade do romance Anton Reiser está certamente na
mistura de autobiografia e invenção, mistura que antecipa de certo modo
o que hoje se conhece com o nome de “autoficção”. É preciso, contudo,
ressaltar a especificidade da obra. Anton Reiser é um esquadrinhamento
profundo e impiedoso da interioridade do sujeito, que guarda
semelhanças com as Confissões de Rousseau. Mas é, ao mesmo tempo, um
retrato social inigualável. Nada mais degradante, por exemplo, para um
jovem ambicioso, mas pobre e tímido, do que ter de receber seu almoço
diário na casa de diferentes famílias, que pretendem educá-lo no seu modo
provinciano de ser: ele prefere passar a pão e cerveja, quando não
tomando chá e água quente ou pedindo ao primo fabricante de perucas a
dura crosta em que ele cozia os cabelos, como se fosse para dar de comer
ao seu cão. Muito mais denso que o Wilhelm Meister na imersão no real,
Reiser representa também a biografia de toda uma legião de jovens
alemães sem condição social definida, que comeram o pão que o diabo
amassou, muitos dos quais, porém, tiveram força suficiente para não
desistir de seus propósitos e se tornaram conhecidos, como Hölderlin,
Fichte, Salomon Maimon e Jean Paul, para talvez ficar apenas nos nomes
mais ilustres.
Moritz muito certamente não quis escrever sua autobiografia de uma
maneira convencional. Para tanto, ele criou um gênero, a que dá o nome
de “romance psicológico”, num sentido muito próprio. Por certo, não
hesitou em dizer que a obra também pode ser lida como uma biografia,
porque as observações são em grande parte tiradas de sua vida, mas o
livro é bem diferente, por exemplo, da obra De minha vida: poesia e verdade,
em que Goethe relata suas vivências, da infância até 1775. Para o Moritz
maduro, a palavra é uma forma de libertação, porém não mais daquele
tipo de libertação momentânea, conquistada nos momentos de inspiração
em que escreve seus primeiros poemas ou peças dramáticas. Aos poucos,
ele foi afinando melhor seus instrumentos de escrita: seus diários juvenis
de observações pessoais foram retrabalhados, por exemplo, numa obra
dividida em tópicos e redigida na forma de aforismos, as Contribuições à
filosofia da vida (1781). Esse primeiro esforço de formalização é
interessante por mostrar a necessidade de um recuo crescente em relação
a si mesmo, pois aquele que quer se conhecer não pode agir apenas como
o ator que sabe dominar as próprias emoções, mas tem de sair do palco e
se colocar como espectador daquilo que nele ocorre. Moritz explica que
esse exercício depende da “arte de ser um frio observador de si mesmo”.
Esse esforço para chegar a uma técnica de introspecção distanciada
culmina em Anton Reiser e na outra narrativa também autobiográfica,
Andreas Hartknopf (1786).
Com Anton Reiser, a estratégia de deixar o leitor na indecisão sobre o
que é vida real e o que é vida fictícia é inteiramente proposital. Pela
interposição do narrador, pela criação do alter ego, pela indicação apenas
vaga dos nomes e dos lugares, Moritz se afasta de si mesmo a fim de
encontrar o recuo necessário, o ponto de vista adequado para observar e
analisar as suas ações e sentimentos. Que se trate de uma vida particular é
pouco importante para ele. O que lhe interessa é tornar essa vida
instrutiva, mas não exatamente exemplar. A sua vida é como que posta em
contraste com todas as histórias edificantes de meninos que ou nasceram
em berço esplêndido, caíram na miséria e voltaram a recuperar sua
condição, ou que, inversamente, vieram de baixo e galgaram uma boa
posição social. Como outros gêneros ficcionais, esse tipo tradicional de
construção romanesca reforçaria, segundo ele, a inclinação ao fantasioso,
prejudicial à formação dos jovens por levá-los aos sofrimentos da poesia, aos
sofrimentos da imaginação, tal como os vividos por Werther e por ele
mesmo.
Em oposição à ficção romanesca, o romance deve ter, para Moritz, uma
função pedagógica, que lembra em alguma medida os propósitos
educacionais do Emílio de Rousseau. Ele deve almejar uma forma de
objetivação, de exposição da interioridade, de maneira que os leitores
possam tomar conhecimento dos problemas e das possíveis soluções para
os impasses da própria subjetividade. Em seus anos como professor,
Moritz desenvolveu um trabalho semelhante com seus alunos: estes
podiam lhe escrever para se abrir com ele, inclusive quando se sentissem
de algum modo injustiçados, e essa correspondência, além de conversas
francas e observações seguidas, lhe permitia compreender melhor a
personalidade de cada um. Estratégia similar foi desenvolvida por ele na
sua Revista de Psicologia Experimental, iniciada em 1783. Nela, Moritz exorta
os cientistas de todas as especialidades e as pessoas de todas as condições
sociais a enviar para publicação relatos que pudessem contribuir para o
conhecimento da psique humana. Durante dez números de sua existência,
a revista veiculou diversos casos de “anomalias”, todas elas apresentadas
sem nenhum preconceito, juízo de valor, ideia feita ou “moral da
história”. O único diagnóstico possível é o leitor quem deve fazer: é ele
quem deve entender o que se relata, aplicando-o ou não a si mesmo ou a
pessoas conhecidas.
A revista deveria funcionar assim, em primeiro lugar, como uma
terapêutica, uma medicina mentis, para os leitores. Num segundo momento,
deveria servir também para pastores, juízes e médicos, mas,
principalmente, seria indispensável para o escritor que quisesse escrever
sobre o coração humano. A esperança que nutria o seu intento era a de
que cessasse a repetição de chavões, a condenação sumária dos “desvios
de conduta”, e o poeta e o romancista pudessem passar a escrever sobre
aquilo que é necessário e vale realmente a pena conhecer. O romance
psicológico Anton Reiser deve ser lido segundo essa perspectiva pedagógica
e formadora; é menos uma obra acabada que uma obra de libertação, mas
um convite ao autoconhecimento, um prelúdio a romances futuros.

MÁRCIO SUZUKI é tradutor e professor de Estética do Departamento de


Filosofia da Universidade de São Paulo (USP). Autor de A forma e o
sentimento do mundo: jogo, humor e arte de viver na filosofia do século XVIII
(Editora 34, 2014).
NOTA DO TRADUTOR JOSÉ FERES SABINO

A tradução do romance Anton Reiser foi feita a partir da edição Karl Philipp
Moritz, Werke (Anton Reiser, Dichtungen), vol. I, editada por Heide Hollmer e
Albert Meier (Deutscher Klassiker Verlag, Frankfurt am Main, 2006). Foi
consultado também o volume Anton Reiser: Ein psychologischer Roman, com
edição de Horst Günther (Insel Verlag, Frankfurt am Main, 1998). Nas duas
obras, os editores mantiveram as iniciais dos nomes das personagens e dos
lugares, como no original, e esclarecem a opção. Segundo Horst Günther,
os nomes foram suprimidos propositalmente, mas não de maneira
inteiramente homogênea, pois alguns são revelados. Karl P. Moritz esteve
nesses lugares e conviveu com muitas daquelas pessoas, que existiram
realmente. Ao manter só as iniciais, o autor foi coerente com a poética
estabelecida no próprio livro. Para que a imaginação do leitor não se
dispersasse em busca da suposta realidade dos fatos narrados, o romance
deveria perder o caráter autobiográfico e acentuar o caráter de vidas
possíveis.
Esta tradução optou também por manter o uso de travessões adotado
por Moritz, que obedece a uma lógica particular. Não apenas neste
romance, como em outras obras do autor, o sinal gráfico serve para
marcar o ritmo narrativo e a cadência de sua escrita, algo que não
encontra similar em autores de língua alemã do século XVIII, seus
contemporâneos. Uso parecido pode ser encontrado no romance do
irlandês Laurence Sterne, A vida e as opiniões do cavalheiro Tristram Shandy,
cujo primeiro volume antecede em 25 anos a primeira parte de Anton
Reiser.
O tradutor agradece a leitura e as contribuições trazidas por Meire
Cristina Gomes, Marcelo Rondinelli, Marianne Gareis, Márcio Suzuki,
Marcella Marino Medeiros Silva, Francisco de Arruda Sampaio e Vicente
de Arruda Sampaio.
JOSÉ FERES SABINO é graduado em Filosofia pela Universidade de São
Paulo (USP), onde também fez seu mestrado, com a dissertação Ensaios de
Karl Philipp Moritz: linguagem, arte, filosofia (Seleção, introdução, tradução e
notas). É tradutor e professor de Filosofia.
1. Acerra philologica (1637) era uma coletânea, em língua alemã, de histórias, anedotas e mitologias
gregas e romanas. [Todas as notas são do tradutor.] [««]

2. Esses sufixos em alemão formam substantivos abstratos; por exemplo, “die Ewigkeit” (a
eternidade), “die Vergessenheit” (o esquecimento), “die Ahnung” (o pressentimento). [««]

3. “Ruprecht” é um personagem do folclore alemão relacionado às festas de Natal, que, no fim do


século XVII, acompanhava o Menino Jesus e, a partir do século XVIII, São Nicolau. Enquanto este
distribuía os presentes natalinos na véspera do dia 6 dezembro, Ruprecht, seu criado, punia as
crianças malcriadas. [««]

4. Referência a Élio Donato, retor e gramático romano do século IV, autor das gramáticas do latim
Ars minor (para iniciantes) e Ars maior (para avançados). [««]

5. Anton acreditava que, pela semelhança da terminação, singulariter (no singular) e plurariter (no
plural) são povos, como os amoritas (Amoriter) e os jesubitas (Jesubiter), que dizem mensa (“mesa”
em latim – nominativo) ou mensae (genitivo, nominativo plural), respectivamente. [««]

6. Em latim, “é necessário”. [««]

7. O Novo Testamento. [««]

8. O narrador cita, com ligeira alteração, um dos preceitos que, segundo o relato bíblico, Deus disse
a Moisés. [««]

9. Salmo 15 (1-5), Bíblia Sagrada, tradução de João Ferreira de Almeida. [««]

10. Charles James Fox (1749-1806), político e líder dos whig no Parlamento inglês, que K. P. Moritz
viu quando visitou Londres em 1782. [««]

11. A frase foi tirada do livro De viris illustribus [Sobre homens ilustres], do historiador romano
Cornélio Nepos (100-25 a.C.), em que consta uma biografia do político e general Temístocles (525-
460 a.C.). A frase inteira é: “A ofensa não o derruba, mas o fortalece”. [««]

12. “Non equidem invideo; miror magis.” Em latim: “Na verdade, não sinto inveja, estou apenas
surpreso”. Segundo verso da primeira écloga de Virgílio (70-19 a.C.). [««]

13. Antiga moeda alemã. “Real” porque tinha validade em todo o reino. [««]

14. Benjamin Schmolke (1672-1737), teólogo alemão, autor de hinos e escritos edificantes. [««]
15. Coletânea latina de máximas atribuídas a Marco Pórcio Catão (234-149 a.C.). [««]

16. A história de Alexandre, o Grande, de Quinto Cúrcio Rufo. [««]

17. Citação de Juvenal, Sátiras, III, v. 152. [««]

18. Versos iniciais do poema “Thränen bey den Grabe Christi”, de Christian Gryphius (1649-1706).
[««]

19. “Um exercício extemporâneo” trata-se de um exercício improvisado, nas escolas da época, em
que frases ditadas em alemão eram traduzidas imediatamente para o latim. [««]

20. Citação do poeta romano Quinto Horácio Flaco (65-8 a.C.), Sátiras, 3, 243. [««]

21. “Por que fugaz se esforça a linfa em ir fluindo, nas curvas de um regato?”, de Quinto Horácio
Flaco, Odes, II, 3. [««]

22. Frase modificada do romance Os sofrimentos do jovem Werther. [««]

23. Citação de Os sofrimentos do jovem Werther, carta de 8 de dezembro. [««]

24. Frase final do prefácio de Os sofrimentos do jovem Werther, em que o editor fictício das cartas se
dirige ao leitor. [««]

25. “Ubi” e “hic”, em latim, respectivamente “onde” e “aqui”. [««]

26. Em alemão, “reisen” quer dizer “viajar”; “viagem” é “Reise”; e “viajante”, “Reisender”. [««]

27. Antiga moeda de Bremen. [««]

28. “Alternadamente”, em latim. [««]

29. “Quam” é a pronúncia da região da Baixa Saxônia para “kam”, passado do verbo “kommen” (ir,
vir, chegar). [««]

30. Tradução de Oliver Tolle (Humanitas/Imprensa Oficial, 2008). [««]


© Editora Carambaia, 2023
Título original: Anton Reiser [Berlim, 1785-1790]
PREPARAÇÃO
Tamara Sender
REVISÃO
Ricardo Jensen de Oliveira e Cecília Floresta
PROJETO GRÁFICO DA EDIÇÃO NUMERADA
Arquivo · Hannah Uesugi e Pedro Botton
VERSÃO DIGITAL
Antonio Hermida

A tradução desta obra contou com o auxílio do Programa de Apoio à Tradução do Goethe-Institut,
que é financiado pelo Ministério das Relações Exteriores da Alemanha.

CIP-Brasil. Catalogação na Publicação


Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ
M852a

Moritz, Karl Philipp, 1756-1793


Anton Reiser [recurso eletrônico]: um romance psicológico / Karl Philipp Moritz; tradução José
Feres Sabino; posfácio Márcio Suzuki. – 1. ed. São Paulo: Carambaia, 2023.
recurso digital; 6 MB

Tradução de: Anton Reiser


Formato: ebook
Modo de acesso: world wide web
ISBN 978-65-5461-010-0 (recurso eletrônico)
1. Romance alemão. 2. Livros eletrônicos. I. Sabino, José Feres. II. Franz, Pedro. III. Suzuki,
Márcio. IV. Título.
23-83072 CDD: 833 CDU: 82-31(430)

Meri Gleice Rodrigues de Souza


Bibliotecária - CRB-7/6439
DIRETOR-EXECUTIVO Fabiano Curi

EDITORIAL
Graziella Beting (diretora editorial)
Livia Deorsola (editora)
Laura Lotufo (editora de arte)
Kaio Cassio (editor-assistente)
Lilia Góes (produtora gráfica)

RELAÇÕES INSTITUCIONAIS E IMPRENSA Clara Dias

COMUNICAÇÃO Ronaldo Vitor

COMERCIAL Fábio Igaki

ADMINISTRATIVO Lilian Périgo

EXPEDIÇÃO Nelson Figueiredo

ATENDIMENTO AO CLIENTE Meire David

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Folha de Rosto
PARTE 1
PARTE 2
PARTE 3
PARTE 4
POSFÁCIO
NOTA DOTRADUTOR
NOTAS
CRÉDITOS

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