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Folha de Rosto
PARTE 1
PARTE 2
PARTE 3
PARTE 4
POSFÁCIO
NOTA DO
TRADUTOR
NOTAS
CRÉDITOS
PARTE 1
Este romance psicológico poderia também ser eventualmente chamado
biografia, porque as observações são em grande parte tiradas da vida real.
– Quem conhece o curso das coisas humanas e sabe que, no desenrolar da
vida, aquilo que inicialmente parecia pequeno e insignificante pode
muitas vezes se tornar bastante importante não se incomodará com a
aparente insignificância de certas situações narradas aqui. Também não se
deve esperar uma variedade de personagens num livro que conta
sobretudo a história interior do homem: pois o livro não deve dispersar a
força de representação, mas concentrá-la, aguçando o olhar da alma para
si mesma. – Essa questão, sem dúvida, não é assim tão simples para que
toda tentativa nesse sentido resulte necessariamente em êxito – mas
sobretudo, ao menos do ponto de vista pedagógico, nunca será
completamente inútil o empenho de fixar a atenção do homem mais sobre
si mesmo e tornar a sua existência individual mais importante para ele.
Em P., lugar famoso por suas fontes termais, vivia em sua quinta, ainda no
ano de 1756, um fidalgo, líder na Alemanha de uma seita conhecida pelo
nome Quietistas ou Separatistas, cujas doutrinas estão contidas sobretudo
nos escritos de Madame Guyon, célebre fanática que viveu na França nos
tempos de Fénelon e com quem também manteve relações.
O sr. de F., assim se chamava o fidalgo, morava ali tão isolado de todos
os outros moradores, tão isolado da religião, dos costumes e hábitos do
lugar quanto sua casa era separada deles por um muro alto que a cercava
por todos os lados.
Aquela casa era como uma pequena república fechada em si, regida
decerto por uma constituição completamente diferente da que havia por
todo o país. Toda a criadagem da casa, até o mais humilde serviçal, era
composta de pessoas cujo empenho se dirigia, ou parecia se dirigir,
unicamente a entrar de novo em seu nada (como Madame Guyon o
denominava), a mortificar todas as paixões e a extirpar toda singularidade.
Todas aquelas pessoas tinham de se reunir uma vez por dia num
enorme cômodo da casa para uma espécie de culto, introduzido pelo
próprio sr. de F., que consistia, sentados todos em torno de uma mesa, de
olhos fechados e com a cabeça apoiada sobre ela, em esperar cerca de meia
hora a fim de ouvir talvez a voz de Deus ou a palavra interior dentro de si.
Aquele que ouvia algo anunciava então aos demais.
O sr. de F. também estipulava as leituras de seu pessoal, e quem entre
os criados e criadas tivesse um quarto de hora ocioso era visto sentado e
lendo em posição meditativa, tendo nas mãos os escritos de Madame
Guyon sobre a prece interior, ou algo semelhante.
Tudo naquela casa, até a menor ocupação doméstica, tinha um aspecto
grave, severo e solene. Em todos os rostos, podia-se ler mortificação e
abnegação; e em todos os atos, saída de si e entrada no nada.
O sr. de F. não voltou a se casar após a morte de sua primeira esposa,
mas vivia recolhido com a irmã, a sra. de P., para poder se dedicar total e
tranquilamente a uma tarefa maior, a de divulgar as doutrinas de Madame
Guyon.
O administrador, de nome H., e a governanta com sua filha formavam,
por assim dizer, o estrato médio da casa, e, em seguida, vinha a criadagem
inferior. – Essas pessoas eram de fato muito ligadas e todas tinham
ilimitada veneração pelo sr. de F., cuja conduta era realmente
irrepreensível, se bem que os moradores do lugar andassem às voltas com
histórias as mais desagradáveis a seu respeito.
Toda noite, ele se levantava três vezes em horas marcadas para rezar e
passava a maior parte do tempo, durante o dia, traduzindo do francês os
escritos de Madame Guyon, uma grande quantidade de volumes, que ele
então mandava imprimir a sua custa e distribuir de graça entre seus
seguidores.
As doutrinas contidas nesses escritos tratam em sua grande maioria da
já mencionada saída completa de si mesmo e da entrada no bem-
aventurado nada, daquela mortificação completa de toda assim chamada
singularidade ou amor-próprio, e de um amor completo e desinteressado por
Deus, ao qual, para ser puro, não se pode mesclar fagulha alguma de amor-
próprio, de onde surge por fim uma quietude perfeita e bem-aventurada,
objetivo mais alto de todo esse empenho.
Como Madame Guyon quase não teve outra ocupação ao longo da vida
a não ser escrever, a quantidade de seus livros é tão espantosa que mesmo
Martinho Lutero dificilmente pode ter escrito mais. Entre os escritos,
apenas uma explicação mística de toda a Bíblia perfaz uns vinte volumes.
Madame Guyon parece ter sido muito perseguida e, como suas
doutrinas eram consideradas perigosas, acabou sendo presa na Bastilha,
onde faleceu após dez anos de cativeiro. Quando, depois de sua morte, lhe
abriram a cabeça, encontraram seu cérebro praticamente seco. Por tudo
isso, ela ainda hoje é venerada por seus seguidores como uma santa de
primeira grandeza, quase uma divindade, e suas máximas são
consideradas como estando à mesma altura que as da Bíblia; porque se
admite que ela, pela completa mortificação de toda singularidade, estava
certamente tão unida a Deus que todos os seus pensamentos também
tinham de ser necessariamente pensamentos divinos.
O sr. de F. conhecera os escritos de Madame Guyon em sua viagem à
França, e o árido fanatismo metafísico que neles reinava exerceu tanta
atração em sua disposição de ânimo que se dedicou a eles com o mesmo
zelo com o qual provavelmente, em outras circunstâncias, teria se
dedicado ao mais elevado estoicismo, com o qual as doutrinas de Madame
Guyon, levando-se em conta a completa mortificação de todos os desejos
etc., tinham por vezes uma semelhança evidente.
Ele também era igualmente venerado como um santo por seus
seguidores, e realmente julgavam que era capaz de ver o íntimo da alma
de uma pessoa à primeira vista.
Peregrinos de todos os cantos acorriam a sua casa, e entre os que a
visitavam ao menos uma vez por ano estava também o pai de Anton.
Esse homem, que crescera sem uma educação formal, casara-se muito
cedo com a primeira esposa e levara sempre uma vida bastante desregrada
e errante. Ainda que tenha experimentado por vezes alguns
arrebatamentos religiosos, não lhes deu a devida atenção. Até que, após a
morte de sua primeira mulher, caiu de repente em si, tornando-se
subitamente pensativo e, como se diz, um homem completamente
diferente; durante sua permanência em P., conheceu primeiro por acaso o
administrador do sr. de F. e em seguida, por meio deste, o próprio sr. de F.
Pouco a pouco, este foi lhe dando a ler os escritos de Madame Guyon,
pelos quais ele tomou gosto, logo se tornando um seguidor declarado do
sr. de F.
Não obstante, teve a ideia de se casar outra vez, e conheceu a mãe de
Anton, que logo consentiu em se casar, o que jamais teria feito se tivesse
pressentido o inferno de infortúnio que viria a ameaçá-la no casamento.
Ela esperava de seu marido ainda mais amor e cuidado do que tinha até
então desfrutado entre seus parentes, mas que terrível engano ela sofreu.
Quanto mais a doutrina de Madame Guyon a respeito da total
mortificação e do aniquilamento de todas as paixões, inclusive as ternas e
meigas, concordava com a alma dura e insensível de seu marido, menor
era a possibilidade de algum dia ela se entender com essas ideias, contra as
quais seu coração se insurgia.
Esse foi o primeiro embrião de todas as posteriores desavenças
conjugais.
O marido começou a desprezar suas convicções, porque ela não queria
aprender os elevados mistérios que Madame Guyon ensinava.
O desprezo alcançou posteriormente também suas demais convicções,
e quanto mais ela o sentia tanto mais o amor conjugal inevitavelmente
diminuía, e a insatisfação recíproca aumentava a cada dia.
A mãe de Anton era profundamente versada na Bíblia e tinha um
conhecimento bastante claro de seu sistema religioso; ela sabia, por
exemplo, falar de modo bastante edificante sobre como a fé sem obras é
morta etc.
De fato, ela lia a Bíblia por horas e horas com profunda satisfação, mas,
assim que seu marido tentava ler para ela em voz alta os escritos de
Madame Guyon, ela sentia uma espécie de receio, nascido supostamente
da ideia de que dessa maneira se desviaria da verdadeira fé.
Ela então procurou de todos os modos se libertar. – Ademais, atribuía
muito da natureza fria e insensível do marido à doutrina de Madame
Guyon, que ela começou a amaldiçoar cada vez mais em seu coração, e
amaldiçoava em voz alta quando irrompeu de vez a discórdia conjugal.
Assim a paz doméstica, a tranquilidade e o bem-estar de uma família
foram abalados durante anos por esses livros desastrosos, que
provavelmente nem um nem outro eram capazes de entender.
Nessas circunstâncias nasceu Anton, e dele se pode dizer
verdadeiramente que foi oprimido desde o berço.
Os primeiros sons que seu ouvido escutou e que seu entendimento
nascente compreendeu foram insultos e maldições recíprocos do casal,
que se achava ligado por laços indissolúveis.
Embora tivesse pai e mãe, ele foi abandonado pelos dois já na infância,
pois não sabia a quem deveria se unir, a quem se agarrar, já que ambos se
odiavam e ele estava tão próximo de um quanto do outro.
Na infância, jamais recebeu os afagos de pais carinhosos, nem mesmo o
sorriso recompensador deles após um pequeno esforço de sua parte.
Quando entrava na casa dos pais, entrava numa casa de insatisfação,
ira, lágrimas e lamentos.
Durante toda a vida, essas primeiras impressões jamais foram apagadas
de sua alma, convertendo-se muitas vezes em ponto de encontro de
pensamentos sombrios que ele não conseguiu remover com nenhuma
filosofia.
Quando seu pai foi para a frente de batalha na Guerra dos Sete Anos,
sua mãe e ele foram viver durante dois anos numa pequena aldeia.
Lá ele teve bastante liberdade e algumas compensações pelos
sofrimentos de sua infância.
As imagens dos primeiros prados que viu – o trigal que subia por uma
leve colina e era coroado no alto por bosques verdes, a montanha azul,
alguns arbustos e árvores que lançavam suas sombras sobre a relva
verdejante ao sopé da montanha e tornavam-se cada vez mais densos à
medida que subiam –, essas imagens continuam a se misturar entre seus
pensamentos mais agradáveis e constituem, por assim dizer, a base de
todas as imagens ilusórias que sua fantasia costuma pintar.
Mas como aqueles dois anos felizes passaram voando!
Restabelecida a paz, a mãe de Anton se mudou com ele para a cidade, a
fim de morar com o marido.
A longa separação do pai provocou uma breve ilusão de harmonia
conjugal, mas uma tempestade muito mais terrível se seguiu à calmaria
enganosa.
O coração de Anton se desfazia em tristeza ao ter de dar razão a um de
seus pais, e isso ocorria muitas vezes quando seu pai, a quem ele
simplesmente temia, tinha mais razão que sua mãe, a quem ele amava.
Assim, com relação aos pais, sua alma de menino oscilava
constantemente entre ódio e amor, entre medo e confiança.
Pouco antes de Anton completar 8 anos, sua mãe deu à luz o segundo
filho, sobre quem recaiu inteiramente o pouco do amor paterno e materno
restante, de tal modo que ele foi quase completamente abandonado, e,
sempre que se falava dele, ouvia-se designá-lo com uma espécie de
desdém e desprezo que lhe atravessavam a alma.
Como poderia, pois, nascer nele o desejo veemente de ser tratado
afetuosamente se ele mesmo jamais havia sido habituado a isso e,
portanto, mal podia ter a mais vaga ideia a respeito?
É claro que esse sentimento acabou perdendo bastante seu vigor; para
ele era quase como se precisasse ser constantemente repreendido, e o
olhar amigo que certa vez recebeu foi algo completamente estranho para
ele, pois não se ajustava muito bem às reprimendas que geralmente
recebia.
Sentia intensamente a necessidade da amizade de seus semelhantes: e,
com frequência, quando via um garoto de sua idade, sua alma inteira se
apegava, e teria dado tudo em troca da amizade do garoto; mas o
sentimento humilhante de desprezo que recebia dos pais e a vergonha por
causa de suas roupas pobres, sujas e rasgadas o detinham de tal modo que
ele não se atrevia a falar com nenhum garoto mais afortunado.
Assim, ele andava quase sempre triste e solitário, porque a maioria da
garotada da vizinhança, mais ordeira, asseada e bem-vestida, não queria
contato com ele, e com os demais era ele que não queria ter nenhum
contato por causa do desleixo deles e quem sabe também por certo
orgulho.
Ele não tinha ninguém a quem pudesse se unir, nenhum colega de
infância, nenhum amigo, quer entre os grandes, quer entre os pequenos.
Apesar de tudo, aos 8 anos, seu pai começou a ensiná-lo a ler aos
poucos e acabou lhe comprando dois pequenos livros, um contendo
instruções sobre como soletrar e o outro, um tratado contra o soletrar.
No primeiro, Anton tinha de soletrar sobretudo complicados nomes
bíblicos, tais como Nabucodonosor, Abdênago etc., que ele não tinha a
menor ideia de quem poderiam ter sido, de modo que o aprendizado
caminhou um pouco lento.
Mas, tão logo percebeu que ideias sensatas eram realmente expressas
pela combinação das letras, sua curiosidade para aprender a ler se tornou
dia a dia mais forte.
Seu pai mal lhe dera algumas horas de instrução, e ele aprendeu a ler
sozinho em poucas semanas, para o espanto de todos.
Com profunda satisfação, ele ainda agora se lembra da intensa alegria
que então sentiu quando proferiu pela primeira vez, com muito custo,
soletrando bastante, algumas linhas nas quais podia entender alguma
coisa.
Mas não conseguia compreender como era possível que os outros
pudessem ler tão rápido quanto falavam; nessa época, ficou
completamente desesperado com a possibilidade de não conseguir.
Tanto maiores foram sua surpresa e sua alegria quando também o
conseguiu, depois de algumas semanas.
Ao que parece, isso também fez com que recebesse alguma
consideração dos pais, e ainda mais dos parentes, algo que não lhe passou
despercebido, mas que jamais se tornou a causa real que o estimulava a
estudar.
Sua curiosidade de ler era insaciável. Por sorte, no livro de instrução
para soletrar havia também, além das máximas bíblicas, algumas
narrativas sobre crianças devotas, lidas por ele mais de cem vezes, embora
não tivessem tanto atrativo.
Uma delas era sobre um garoto de 6 anos que, na época das
perseguições, não quis renegar a religião cristã, preferindo passar pelas
mais terríveis torturas e morrer ao lado da mãe como um mártir da
religião; a outra era sobre um garoto malvado de 20 anos que se converteu
e faleceu logo em seguida.
Agora era a vez do outro pequeno livro, o do tratado contra o soletrar,
no qual ele, para grande espanto seu, leu que era prejudicial, e mesmo
nocivo à alma, ensinar as crianças a ler soletrando.
Nesse livro encontrou também um método para professores ensinarem
as crianças a ler e um tratado sobre como proferir cada sílaba pelos órgãos
da fala: por mais árido que lhe parecesse, leu o livro de cabo a rabo com
máxima perseverança, na falta de algo melhor para fazer.
A leitura lhe abriu subitamente um mundo novo cujo deleite lhe
permitiu compensar de certo modo todas as coisas desagradáveis de seu
mundo real. Quando ao seu redor só havia barulhos, repreensões e
desavença doméstica, quando não encontrava ninguém com quem
brincar, ele corria para seu livro.
Assim, desde muito cedo foi deslocado de um mundo infantil natural
para um mundo idealista antinatural, o que indispôs seu espírito para
milhares de alegrias da vida, as quais outras pessoas eram capazes de
desfrutar de alma plena.
Aos 8 anos, ele contraiu uma doença debilitante. Não lhe deram
esperança de vida, e ouvia falar constantemente de si como de alguém já
considerado morto. Isso sempre lhe pareceu ridículo, ou melhor, morrer,
como então imaginava, era algo mais ridículo do que grave. Sua prima,
que parecia gostar um pouco mais dele do que os pais, levou-o enfim ao
médico, e o tratamento de alguns meses o restabeleceu.
Fazia apenas poucas semanas que havia se recuperado, quando, num
passeio pelo campo com os pais, o que era algo muito raro e por isso
mesmo tanto mais atraente, seu pé esquerdo começou a doer. Depois de
ter se recuperado da doença, aquele tinha sido seu primeiro passeio e
durante um bom tempo seria o último.
No terceiro dia, o inchaço e a inflamação do pé tinham se agravado
tanto que no quarto dia começaram a pensar numa amputação. A mãe de
Anton ficou abatida e chorou, e seu pai lhe deu 2 centavos. Essas foram as
primeiras demonstrações de compaixão de seus pais de que Anton se
lembrava, e, por sua raridade, deixaram uma impressão ainda mais forte
nele.
Na véspera do dia marcado para a amputação, um sapateiro
misericordioso veio ter com a mãe de Anton, trazendo-lhe uma pomada
cuja aplicação amainou em poucas horas o inchaço e a inflamação no pé.
Ainda que se tenha evitado a amputação, a lesão levou quatro anos para
ser curada, tempo em que nosso Anton, sofrendo frequentemente dores
indizíveis, teve de renunciar outra vez a todas as alegrias da infância.
Em função da ferida, Anton não pôde sair de casa por um trimestre
inteiro, pois ela melhorava um pouco e voltava a se abrir.
Muitas vezes, teve de gemer e se queixar durante noites inteiras,
suportando quase diariamente as mais terríveis dores por causa das
ataduras. Naturalmente, isso o afastava mais do mundo e do contato com
seus semelhantes, prendendo-o cada vez mais à leitura e aos livros. No
mais das vezes, ele lia enquanto embalava o irmão mais novo, e, se
naquela época lhe faltava um livro, era como se lhe faltasse um amigo:
pois, para ele, o livro tinha de ser amigo e consolador e tudo o mais.
Aos 9 anos, ele já tinha lido do começo ao fim tudo o que havia de
história na Bíblia; e quando morria um dos personagens principais, como
Moisés, Samuel ou Davi, ele era capaz de passar o dia todo entristecido,
sentindo-se como se tivesse morrido um amigo, pois as pessoas que
tinham feito algo admirável no mundo e adquirido renome se tornavam
sempre muito caras para ele.
Assim, Joab era seu herói, e lhe dava pena sempre que era levado a
pensar algo ruim sobre ele. Os traços de generosidade nas histórias de
Davi, quando este poupava o pior inimigo mesmo tendo-o em seu poder,
comoviam-no particularmente até as lágrimas.
Caiu-lhe então nas mãos a Vida dos padres do deserto, que seu pai tinha
em alto apreço, citando os padres como autoridades em qualquer situação.
Seus discursos morais começavam habitualmente assim: Madame Guyon
afirma, ou Santo Macário ou Santo Antônio disse etc.
Os padres, por mais absurdas e excêntricas que suas histórias muitas
vezes pudessem ser, foram para Anton os modelos mais dignos de
imitação, e durante algum tempo o único desejo que conheceu foi tornar-
se parecido com Santo Antônio, seu maior homônimo, e, como ele,
abandonar pai e mãe e fugir para o deserto que esperava encontrar não
muito longe da entrada da cidade e para onde certa vez empreendeu
realmente uma viagem, quando se afastou mais de cem passos da casa dos
pais, e talvez tivesse ido mais longe ainda se as dores do pé não o tivessem
obrigado a retornar. Ele começou até mesmo a se espetar de vez em
quando com agulhas, ou a se torturar, para se assemelhar de certo modo
aos padres santos, já que dores eram o que não lhe faltava.
Durante aquelas leituras, ganhou de presente um pequeno livro de
cujo título não se lembra, mas que tratava de um temor primordial a Deus,
e nele havia instruções de como se poderia, dos 6 aos 14 anos, crescer na
devoção. Os tratados nesse livrinho eram assim intitulados: “Para crianças
de 6 anos”, “Para crianças de 7 anos” etc. Anton leu então a parte “Para
crianças de 9 anos” e achou que ainda tinha tempo de ser tornar um
homem religioso, pois só tinha perdido três anos.
Isso comoveu sua alma inteira, e a decisão de converter-se foi muito
firme, como raramente acontece mesmo entre os adultos. Daquele
momento em diante, seguiu à risca tudo o que estava escrito no livro
sobre oração, obediência, paciência, ordem etc., e qualquer passo
precipitado ele transformava quase num pecado. A que distância, pensou,
já não estarei em cinco anos se eu persistir assim? Pois no livrinho o
avanço na devoção havia se transformado, por assim dizer, numa questão
de ambição, assim como nos alegramos ao subir de uma classe para outra
cada vez mais elevada.
Às vezes, como era natural, ele se esquecia de si e, sentindo alívio no
pé, saía correndo ou pulando por aí, pelo que sofria então os mais
violentos remorsos, e para ele era sempre como se tivesse de voltar a
descer alguns degraus.
O livrinho exerceu forte influência sobre suas ações e convicções, pois
ele procurava também pôr imediatamente em prática aquilo que lia. Com
muito escrúpulo, lia a cada dia da semana as bênçãos matutinas e
vespertinas, porque no catecismo se dizia que era obrigatório lê-las;
tampouco se esquecia de fazer, como era prescrito no catecismo, o sinal da
cruz e dizer Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, Amém.
No mais, ele via pouca gente devota, apesar de quase sempre ouvir
falar muito dela e de sua mãe o abençoar toda noite e jamais se esquecer,
antes que ele dormisse, de fazer o sinal da cruz sobre ele.
O sr. de F. traduzira para o alemão, entre outras coisas, os cânticos
espirituais de Madame Guyon, e o pai de Anton, que conhecia música,
adaptou para eles melodias que tinham sobretudo um andamento rápido e
alegre.
Se porventura ocorresse de ele voltar para casa após uma longa
separação, a esposa se deixava persuadir a cantar, acompanhada por ele à
cítara, alguns desses cânticos. Em geral, isso acontecia logo após a alegria
do reencontro, e essas horas seriam provavelmente ainda as mais felizes
do casal.
Anton ficava felicíssimo e com frequência juntava, tanto quanto podia,
sua voz aos cânticos, que eram um sinal da raríssima harmonia e
concórdia recíproca entre seus pais.
Seu pai lhe deu os cânticos porque já o considerava maduro o bastante
para essa leitura e obrigou-o a decorar uma parte deles.
A despeito da tradução dura, os cânticos ainda tinham realmente tanta
ternura de alma, uma doçura tão inimitável na expressão, um claro-escuro
tão suave na apresentação e tanta atração irresistível para uma alma
delicada que a impressão deixada no coração de Anton permaneceu
indelével.
Muitas vezes, nas horas solitárias em que pensava ter sido abandonado
por tudo e por todos, ele se consolava com o cântico da feliz saída de si
mesmo e da doce aniquilação na fonte primordial da existência.
Assim, já naquele tempo suas ideias infantis lhe reservavam
frequentemente uma espécie de tranquilidade celestial.
Certa vez, seus pais foram convidados pelo dono da casa em que
moravam para uma pequena festa de família à noite. Anton foi obrigado a
assistir da janela às crianças da vizinhança chegando bem-vestidas para a
festa, enquanto ele tinha de permanecer sozinho no quarto, porque seus
pais tinham vergonha de seus péssimos trajes. Anoiteceu e ele começou a
sentir fome; e seus pais não lhe haviam deixado nem um pedacinho de
pão.
Enquanto permanecia lá em cima, sozinho e chorando, o barulho do
alegre tumulto lá embaixo subia até ele. – Abandonado por todos, sentiu
primeiramente certo desprezo amargo de si mesmo, que logo se
transformou numa melancolia indizível, quando abriu ao acaso os cânticos
de Madame Guyon e encontrou um que parecia convir ao seu estado. –
Uma tal aniquilação, como estava sentindo naquele momento, tinha de
anteceder, conforme o cântico de Madame Guyon, a perda de si no abismo
do amor eterno, assim como uma gota se perde no oceano. – Mas, como
sua fome começou a se tornar insuportável, nem mesmo os consolos de
Madame Guyon puderam mais ajudar, e ele arriscou descer até onde seus
pais comiam e bebiam em grande companhia, abriu um pouco a porta e
pediu a sua mãe a chave da despensa e a permissão para pegar um pouco
de pão, porque estava com muita fome.
Isso primeiro provocou gargalhadas e, depois, compaixão no grupo,
junto a certa indignação para com os pais.
Ele foi levado à mesa, onde lhe serviram as melhores iguarias, que
certamente lhe deram uma alegria bastante diferente daquela que lhe
havia sido dada pelo cântico de consolo de Madame Guyon.
Mas mesmo aquela alegria taciturna e lacrimosa sempre lhe reservava
algo de atraente, e ele se entregava a ela lendo os cânticos de Madame
Guyon todas as vezes que um desejo não se realizava, ou algo triste estava
na iminência de acontecer, como quando soube antecipadamente que seu
pé deveria ser enfaixado e a ferida, untada com pedra-infernal.
O segundo livro que seu pai o deixou ler, além dos cânticos de Guyon,
foi a Instrução para oração interior, da mesma autora.
Nele era demonstrado como se pode aos poucos chegar a conversar
verdadeiramente com Deus, escutar nitidamente sua voz no coração ou
mais precisamente a palavra interior; ou seja, era preciso primeiro se
desprender tanto quanto possível dos sentidos e procurar se ocupar de si
mesmo e dos seus próprios pensamentos, ou aprender a meditar, mas isso
também tinha de cessar e era preciso se esquecer de si mesmo antes de ser
capaz de escutar a voz de Deus dentro de si.
Anton seguiu a instrução com grande fervor, porque estava realmente
ávido para ouvir dentro de si algo assim tão maravilhoso como a voz de
Deus.
Passou então a se sentar durante meia hora de olhos fechados para se
afastar da sensibilidade. Para enorme pesar de sua mãe, o pai fazia a
mesma coisa. Ela, no entanto, não estava preocupada com Anton, porque
não pensava que ele pudesse ter algum propósito com aquilo.
Anton logo esteve a ponto de acreditar estar razoavelmente afastado
dos sentidos e começou então a conversar realmente com Deus, com quem
logo estabeleceu relações bastante íntimas. Ele conversava com Deus
durante o dia todo, em seus passeios solitários, em seus trabalhos e até nas
brincadeiras, sempre com uma espécie de amor e confiança, mas também
como se fala com um semelhante com quem não se tem muita cerimônia,
e para ele era realmente como se Deus respondesse isso ou aquilo.
Certamente não foram poucas as vezes em que se sentiu insatisfeito,
quando porventura uma brincadeira inocente ou então um desejo era
frustrado. Nessas ocasiões ele dizia a si mesmo: “Mas nem mesmo essa
ninharia me foi concedida!” ou: “Você poderia ter deixado isso acontecer
se ao menos fosse possível!”. E Anton não se recriminava por às vezes se
zangar um pouco com Deus do seu jeito; pois, embora nos escritos de
Madame Guyon não constasse nada a esse respeito, ele acreditava que isso
fazia parte do convívio familiar.
Todas essas mudanças lhe aconteceram dos 9 para os 10 anos. Nesse
período, seu pai também o levava, por causa do pé machucado, até as
fontes termais em P. Que alegria ele não sentiu ao conhecer pessoalmente
o sr. de F., de quem seu pai lhe falava constantemente com veneração por
ser uma pessoa sobre-humana, e que alegria não sentiu ao poder prestar
contas ali de seus grandes progressos na devoção interior: sua imaginação
pintou o lugar como uma espécie de templo, onde ele se iniciaria como
sacerdote e aonde retornaria como um, para a surpresa de todos que o
conheciam.
Ele fez sua primeira viagem com o pai, e durante o trajeto este também
foi mais bondoso com o menino, ocupando-se dele mais do que em casa.
Anton viu a natureza em sua inefável beleza. Distantes e próximos, as
montanhas circunvizinhas e os lindos vales encantavam sua alma e a
desmanchavam em nostalgia, em parte nascida da expectativa de que
grandes coisas poderiam lhe acontecer.
O primeiro passeio foi à casa do sr. de F., onde seu pai primeiro falou
com o administrador, o sr. H., abraçou-o e beijou-o, sendo recebido por ele
da maneira mais amigável.
Apesar das fortes dores no pé durante a viagem, Anton estava fora de
si de alegria ao entrar na casa do sr. de F. Naquele dia, ele permaneceu no
quarto do sr. H., com quem a partir de então teve de jantar todas as noites.
Aliás, na casa, não se preocuparam muito com ele como havia esperado.
Ele continuava bem dedicado aos seus exercícios de oração interior;
claro que estes às vezes não podiam deixar de receber uma inflexão
bastante infantil. Havia um enorme pomar atrás da casa onde seu pai
estava hospedado em P.: ali ele encontrou por acaso uma carriola e se
divertia empurrando-a por todo o pomar.
Mas, como começou a considerar a brincadeira um pecado, teve uma
ideia bem extravagante para justificá-la. Nos escritos de Madame Guyon, e
em outros lugares, ele tinha lido muito sobre o Menino Jesus, de quem se
dizia que poderia estar por toda parte e que se poderia conviver
permanentemente com ele em todos os lugares.
Aquele tratamento infantil – Menino Jesus – levou-o a imaginar um
menino ainda menor que ele, e, como já tinha familiaridade com o próprio
Deus, por que não teria ainda mais com Seu filho, a quem julgava ser
incapaz de se recusar a brincar com ele e que, por isso, não se oporia se
Anton quisesse levá-lo para passear um pouco de carriola.
Ele, no entanto, estimava como uma tremenda sorte poder levar uma
pessoa tão nobre sobre a carriola e ainda lhe proporcionar diversão; e,
como essa pessoa era uma criação de sua imaginação, ele também fazia
dela o que queria, fazia com que tomasse gosto, ora por pouco tempo, ora
por muito, em passear de carriola, dizendo por vezes com todo o respeito,
quando ficava cansado de empurrá-la: “Por mais que queira, agora me é
impossível continuar empurrando a carriola”.
Assim, ao final, ele via aquilo como uma espécie de cerimônia religiosa
e não considerava mais um pecado passar metade do dia entretido com a
carriola.
Mas então teve em mãos, com a anuência do próprio sr. de F., um livro
que o introduziu num mundo completamente diferente e novo. Era a
Acerra philologica[1]. Nele leu a história de Troia, de Ulisses, de Circe, de
Tártaro e Elísio, e logo conheceu todos os deuses e deusas pagãos. Em
seguida, deram-lhe para ler também o Telêmaco, igualmente com a
anuência do sr. de F., talvez porque o autor fosse o mesmo sr. Fénelon que
tivera relações com Madame Guyon.
A Acerra philologica havia sido para ele uma ótima preparação para a
leitura de Telêmaco, porque por meio dela ficou conhecendo bastante a
mitologia e se interessou pela maioria dos heróis que encontrou
novamente no Telêmaco.
Um após o outro, com grande apetite e verdadeiro encanto, esses
livros foram lidos várias vezes por ele, especialmente o Telêmaco, no qual
pela primeira vez experimentou a atração de uma bela narrativa
concatenada.
Em todo o Telêmaco, a passagem que o tocou com mais vivacidade foi a
fala comovente do velho Mentor ao jovem Telêmaco, quando este, na ilha
de Chipre, estava a ponto de confundir a virtude com o vício, e de repente
lhe apareceu novamente seu fiel Mentor, que para ele já estava perdido
havia muito tempo e cujo olhar triste o abalou até o mais íntimo da alma.
Certamente para a alma de Anton aquelas histórias foram muito mais
atraentes do que as bíblicas e do que tudo o que lera antes na Vida dos
padres do deserto ou nos escritos de Madame Guyon; e, como jamais lhe
tinha sido dito realmente o que era verdadeiro e o que era falso, ele não
achou de modo algum inadequado acreditar realmente nas histórias dos
deuses pagãos, com tudo o que pulsava dentro delas.
Mas tampouco podia rejeitar o que estava na Bíblia, ainda mais porque
aquilo afinal havia constituído as primeiras impressões de sua alma.
Buscou então a única coisa que lhe restava, unir os diferentes sistemas tão
bem quanto pudesse em sua cabeça e assim fundir a Bíblia com o Telêmaco,
a Vida dos padres do deserto com a Acerra philologica, e o mundo pagão com o
cristão.
A primeira pessoa da divindade e Júpiter, Calipso e Madame Guyon, o
céu e o Elísio, o inferno e o Tártaro, Plutão e o diabo faziam nele a mais
esquisita combinação de ideias que jamais existiu em algum cérebro
humano.
Isso provocou uma impressão tão forte em seu ânimo que ainda muito
tempo depois ele manteve uma inegável veneração pelas divindades
pagãs.
Era um caminho bastante longo da casa na qual o pai de Anton estava
hospedado até as fontes termais e sua alameda. Anton mesmo assim se
arrastava dali para fora com o pé dolorido, o livro embaixo do braço, e se
sentava num banco na alameda, onde ia aos poucos esquecendo sua dor na
leitura, e de repente se encontrava não no banco em P., mas numa ilha
qualquer com castelos e torres altas, ou no meio do tumulto de uma
guerra violenta.
Lia com uma espécie de alegria melancólica e, quando os heróis
tombavam, sofria com isso, mas, pensava Anton, parecia que eles tinham
mesmo de tombar.
Isso provavelmente teve também grande influência em suas
brincadeiras infantis. Um terreno cheio de urtigas e cardos bem crescidos
significara para ele muitas cabeças inimigas, entre as quais às vezes se
enfurecia barbaramente, derrubando uma após a outra com seu bastão.
Quando passeava pelo campo, fazia uma divisão e em pensamento
punha cara a cara dois exércitos de flores amarelas e brancas. As maiores
entre elas recebiam os nomes de seus heróis, e uma recebia seu próprio
nome. Depois, imaginava uma espécie de fatalidade cega, fechava os olhos
e golpeava com seu bastão, atingindo qualquer coisa.
Quando abria novamente os olhos, via a terrível destruição, aqui um
herói e lá outro esticado no chão, e com frequência se via entre os caídos,
com uma sensação esquisita e melancólica, mas agradável.
Depois, chorava um pouco por seus heróis e abandonava o horrível
campo de batalha. Em casa, não tão longe da residência dos pais, havia um
cemitério onde ele reinava com cetro de ferro sobre toda uma geração de
flores e plantas, e não havia um dia sequer em que não as passava em
revista.
Quando viajou de P. de volta para casa, esculpiu em papel todos os
heróis do Telêmaco, pintou-os com capacete e armadura conforme as
gravuras e deixou-os alguns dias em posição de batalha, até que
finalmente decidiu o destino deles e dizimou-os com facadas terríveis,
arrancando o capacete de uns, o crânio de outros, e viu à sua volta tão
somente morte e estrago.
Do mesmo modo, todas as suas brincadeiras com sementes de cereja e
ameixa acabavam em estrago e destruição. Estas também eram
governadas por um destino cego, quando ele punha cara a cara dois tipos
diferentes de exército e, de olhos fechados, batia o martelo de aço neles, e
onde atingia, destruía.
Quando exterminava insetos com um mata-moscas, fazia-o com certa
solenidade, segurando nas mãos um pedaço de latão e para cada um deles
tocava antes o sino da morte. Seu maior prazer era quando podia queimar
uma cidade construída com casinhas de papel e em seguida observar com
solene gravidade e melancolia as cinzas que restavam.
Quando uma casa realmente pegou fogo à noite na cidade onde seus
pais moravam, ele sentiu, apesar de todo o sobressalto, certo desejo
secreto de que o fogo não se apagasse tão rápido.
Esse desejo não se fundava de modo algum numa satisfação com a
desgraça alheia, mas tinha origem num obscuro pressentimento de
grandes mudanças, migrações e revoluções, nas quais todas as coisas
adquiririam uma forma completamente diferente e poriam fim àquela
uniformidade.
Mesmo o pensamento de sua própria destruição não só lhe era
agradável como também lhe causava uma sensação de volúpia, quando à
noite, antes de dormir, muitas vezes pensava intensamente na dissolução
e dilaceração de seu corpo.
Os três meses de estada de Anton em P. lhe foram muito vantajosos sob
vários aspectos, porque ele quase sempre estava entregue a si mesmo e
teve a sorte de estar por um tempo novamente longe dos pais, já que sua
mãe permanecera em casa e seu pai tinha outros negócios em P. e não se
preocupava tanto com ele; no entanto, quando às vezes o via, o pai era
muito mais amoroso do que em casa.
Na casa em que o pai de Anton estava hospedado havia também um
inglês que falava bem alemão e se ocupou de Anton muito mais que
qualquer outra pessoa até então, pois começou a ensinar inglês a Anton
simplesmente falando e se alegrava com seus progressos. Eles
conversavam, passeavam, e por fim o inglês já não conseguia fazer nada
sem ele.
Este foi o primeiro amigo que Anton encontrou na terra: dele se
despediu com melancolia. Ao partir, o inglês pôs na mão de Anton um
medalhão de prata, que ele deveria guardar como lembrança até quando
fosse alguma vez à Inglaterra, onde sua casa lhe estaria sempre aberta:
quinze anos depois, Anton foi realmente para a Inglaterra e ainda tinha
consigo o medalhão, mas o primeiro amigo de sua infância estava morto.
Certa vez Anton deveria dizer a um estrangeiro que queria visitar o
inglês que este não estava em casa. Não houve jeito de convencê-lo porque
não queria mentir.
Naquela época, essa atitude fez crescer bastante a estima por ele, e foi
apenas uma das ocasiões em que Anton quis parecer mais virtuoso do que
realmente era, pois não fazia muito caso de uma mentirinha; mas ninguém
notava sua verdadeira luta interna, na qual muitas vezes sacrificava seus
desejos mais inocentes em razão de um suposto desagrado a um ser
divino.
Nesse meio-tempo, em P., o modo amoroso com que o tratavam foi
bastante animador e elevou um pouco seu espírito deprimido. Mostravam
compaixão por ele em atenção à dor no pé, tratavam-no com afabilidade
na casa do sr. de F., e este lhe dava um beijo na testa todas as vezes que o
encontrava na rua. Esses tratamentos eram algo um tanto incomum e
comovente para Anton, sua testa ficava de novo mais relaxada, seus olhos,
mais abertos e sua alma, mais alegre.
Começou então a se dedicar também à poesia, celebrando o que via e
ouvia. Ele tinha dois meios-irmãos que aprendiam o ofício de alfaiate em
P., e o mestre deles também era adepto da doutrina do sr. de F. Anton se
despediu deles bem comovido, assim como da casa do sr. de F., em versos
que havia composto e decorado.
É claro que não retornou de P. para casa como esperara, mas também
tinha se tornado uma pessoa completamente diferente num curto espaço
de tempo, e seu mundo de ideias havia se ampliado e enriquecido.
Mas em casa, com o recomeço da desavença entre os pais, para a qual
provavelmente contribuiu a chegada de seus dois meios-irmãos, e das
incessantes broncas e censuras de sua mãe, logo se extinguiram as boas
impressões que recebera em P., sobretudo na casa do sr. de F., e ele de
novo se viu em sua odiosa situação anterior, o que tornava sua alma mais
sombria e misantropa.
Como os meios-irmãos de Anton logo partiram em viagem, a paz
doméstica voltou a imperar, e, em vez dos escritos de Madame Guyon, o
pai de Anton lia de vez em quando um pouco do Telêmaco em voz alta, ou
contava parte de uma história antiga ou moderna, nas quais era bastante
versado, pois além da música, em cuja prática havia avançado muito,
sempre se dedicava à leitura de livros profícuos, até que finalmente os
escritos de Madame Guyon suplantaram todo o resto.
Por isso falava uma espécie de língua livresca, e Anton ainda se lembra
exatamente de que, aos 7 ou 8 anos, ouvia frequentemente com muita
atenção quando seu pai falava, e se admirava de que, embora conseguisse
entender o que se falava, ele não entedia nenhuma sílaba de todas as
palavras que terminavam em “heit”, “keit” e “ung”[2].
Fora de casa, o pai de Anton era um homem muito sociável e conseguia
conversar agradavelmente com qualquer pessoa sobre qualquer assunto.
Talvez as coisas pudessem ter ido melhor no casamento se a mãe de Anton
não tivesse tido a infelicidade de se sentir muitas vezes ofendida, e gostar
de ser ofendida mesmo quando não o fora realmente, apenas para ter
motivo de ficar doente e magoada, e sentir certa compaixão de si mesma,
encontrando nisso uma espécie de contentamento.
Infelizmente ela parece ter legado essa doença ao filho, que mesmo
agora tem de lutar muitas vezes em vão contra ela.
Ainda criança, quando, durante a distribuição de algo, todos recebiam
seu quinhão, e o de Anton era colocado diante dele sem que dissessem que
era seu, ele preferia deixá-lo ali mesmo sabendo que lhe era destinado só
para sentir a doçura do sofrimento da injustiça e poder dizer que todos os
outros tinham recebido algo e ele, nada! Se sentia já tão fortemente a
injustiça inventada, quão mais forte não teria de sentir a verdadeira! E de
fato para ninguém o sentimento de injustiça é mais forte do que para as
crianças, e a ninguém é mais fácil de cometer injustiça; afirmação que
todos os pedagogos deveriam levar em consideração todo dia e toda hora.
Anton conseguia muitas vezes refletir durante horas e ponderar da
maneira mais precisa, razão por razão, sobre se um castigo recebido de
seu pai era justo ou injusto.
Agora, aos 11 anos, ele usufruía pela primeira vez o indizível prazer
das leituras proibidas.
Seu pai era um inimigo ferrenho de todos os romances e ameaçava
queimar esse tipo de livro se o encontrasse em casa. Mesmo assim, Anton
recebia A bela Banise, As mil e uma noites e A ilha de Felsenburg de sua prima,
que ele lia secreta e furtivamente na alcova, com o consentimento da mãe,
devorando-os, por assim dizer, com insaciável curiosidade.
Aquelas foram algumas das horas mais doces de sua vida. Por mais que
sua mãe o interrompesse, era apenas para adverti-lo da chegada do pai,
sem lhe proibir a leitura daqueles livros em que ela havia encontrado
outrora o mesmo prazer e encanto.
A narrativa de A ilha de Felsenburg teve um efeito muito forte sobre
Anton, pois durante algum tempo suas ideias diziam respeito tão somente
a ter um papel de destaque no mundo e atrair ao redor de si primeiro um
pequeno círculo de pessoas, do qual ele seria o centro, e depois outro cada
vez maior: este se ampliava cada vez mais e sua imaginação extravagante
finalmente arrastava para dentro da esfera de sua existência até animais,
plantas e criaturas inanimadas, enfim, tudo aquilo que o rodeava, e tudo
tinha de girar ao seu redor, como o único centro, até deixá-lo tonto.
Naquela época, esse jogo de sua imaginação muitas vezes lhe deu horas
de completo deleite, algo que depois ele jamais voltou a desfrutar.
Assim sua imaginação produzia a maioria dos sofrimentos e alegrias de
sua infância. Quantas vezes, encerrado em seu quarto naqueles dias
sombrios de tédio e asco, uma ponta de raio de sol entrava pela vidraça e
de repente despertava nele imagens do paraíso, do Elísio ou da ilha de
Calipso, que o encantavam durante horas inteiras.
Mas ele também se lembra dos tormentos infernais que, a partir dos 2
ou 3 anos, os contos de fadas de sua mãe e de sua prima provocavam nele,
acordado ou dormindo: se em sonho via só conhecidos à sua volta, eles de
repente lhe arreganhavam os dentes com o rosto monstruosamente
transfigurado, ou então ele subia uma escada alta e escura, e uma figura
medonha o impedia de voltar, ou ainda era o diabo que lhe aparecia, ora
como uma galinha pintada, ora como um pano preto na parede.
Quando sua mãe e ele ainda viviam na aldeia, qualquer senhora idosa
lhe metia medo e horror, de tanto que ouvia falar de bruxas e feitiçarias; e,
quando o vento soprava muitas vezes com um som estranho através da
choupana, sua mãe chamava isso, em sentido alegórico, de o homem sem
mão, sem querer dizer nada de mais com essa expressão.
Mas ela não teria feito o que fez se soubesse quantas horas tenebrosas
e quantas noites sem dormir esse homem sem mão veio a causar ao seu
filho.
Em especial, as últimas quatro semanas que antecediam o Natal eram
sempre um purgatório para Anton, e para evitá-lo ele poderia passar sem
a árvore de Natal iluminada com velas e enfeitada com maçãs e nozes
prateadas.
Como não havia dia em que não ouvisse um estrondo esquisito
aparentemente vindo de sinos, um escarafunchar diante da porta ou uma
voz abafada anunciando Ruprecht[3], o precursor do Menino Jesus que
Anton, com total seriedade, considerava um espírito ou um ser sobre-
humano, também em toda essa época não havia noite que passasse sem
acordar assustado e com a testa suando frio.
Isso perdurou até seus 8 anos, quando só então sua crença na
existência de Ruprecht começou a vacilar, assim como na do Menino
Jesus.
Sua mãe lhe transmitiu também o medo infantil dos trovões. Seu único
refúgio era juntar bem as mãos tão firmemente quanto conseguisse e não
deixar que se soltassem até a trovoada passar; isso, além do sinal da cruz,
era também seu refúgio e, por assim dizer, um forte apoio nas vezes que
dormia sozinho, porque assim acreditava que nem diabo nem fantasma
podiam lhe fazer algum mal.
Sua mãe dizia uma frase esquisita: “Quem quer fugir de um fantasma,
os calcanhares espicham”; e isso ele sentia literalmente, assim que
acreditava ver algo parecido com um fantasma na escuridão. Ela
costumava dizer também de um moribundo que a morte já havia pousado
na sua língua; Anton também a levou ao pé da letra, e, quando o marido da
prima morreu, ele se postou ao lado da cama olhando muito incisivamente
dentro da boca para descobrir se a morte aparecia na língua do morto, por
exemplo, como uma figurinha preta.
Por volta dos 5 anos teve a primeira ideia que ia além de seu horizonte
infantil, quando a mãe ainda vivia com Anton na aldeia e estava sentada
certa noite na sala com uma vizinha idosa, com ele e seus meios-irmãos.
A conversa girava em torno da irmãzinha de Anton, que falecera havia
pouco, aos 2 anos, e por cuja perda sua mãe permaneceu inconsolável
durante quase um ano.
“Onde Julinha poderia estar agora?”, disse ela após uma longa pausa e
ficou em silêncio de novo. Anton olhou pela janela, através da qual não se
via luz alguma na noite escura, e pela primeira vez sentiu a extraordinária
limitação que tornava aquela vida tão diferente da atual, como a
existência diferindo do não existente.
“Onde Julinha poderia estar agora?”, pensou ele seguindo sua mãe, e
proximidade e distância, estreiteza e largueza, presente e futuro raiaram
em sua alma. Mas essa sensação não deixou nenhuma marca; milhares de
vezes ela é despertada em sua alma de novo, mas nunca com a força
inicial.
Quão grande é a alegria da limitação, de que no entanto procuramos
fugir com todas as forças! Ela é como uma ilhota feliz num mar
tempestuoso: afortunado é aquele que pode tirar uma soneca em seu colo:
nenhum perigo o desperta, nenhuma tempestade o ameaça. Mas ai
daquele que, impelido por uma curiosidade infeliz, ousa subir a serra
crepuscular que delimita beneficamente seu horizonte.
Num mar violento e tempestuoso de intranquilidade e dúvida, ele é
lançado para lá e para cá, procura regiões desconhecidas a uma distância
inalcançável, e a ilhota em que vivia com tanta segurança perde todos os
seus atrativos.
Uma das lembranças mais venturosas que Anton tem dos primeiros
anos de sua infância é sua mãe enrolando-o no casaco dela e carregando-o
pela tempestade e pela chuva. O mundo era belo para ele na pequena
aldeia, mas atrás da montanha azul, para onde sempre olhava
nostalgicamente, já esperavam por ele os sofrimentos que estragariam os
anos de sua infância.
Ora, uma vez que já retrocedi em minha história para recuperar as
primeiras sensações e imagens do mundo de Anton, tenho ainda de
mencionar aqui duas lembranças de seus primeiros anos no que diz
respeito ao seu sentimento de injustiça.
Anton tem nítida consciência de que, aos 2 anos, quando sua mãe ainda
não morava com ele na aldeia, atravessou vez ou outra a rua, correndo de
sua casa a outra que ficava em frente, e impediu o caminho de um homem
bem-vestido, a quem esmurrou violentamente, porque procurava
persuadir a si mesmo e a outras pessoas de que haviam cometido uma
injustiça contra ele, embora sentisse internamente que era ele a parte
ofensora.
Tal lembrança é admirável por sua raridade e nitidez; também é
autêntica porque a circunstância em si era por demais insignificante para
que pudesse lhe ter sido contada posteriormente por alguém.
A segunda lembrança é dos 4 anos, quando a mãe ralhou com ele por
causa de uma verdadeira falta de modos; enquanto ele estava se despindo,
calhou de uma das peças de roupa cair na cadeira, fazendo algum barulho:
a mãe achou que ele fizera aquilo por birra e lhe deu umas fortes
palmadas.
Essa foi a primeira verdadeira injustiça que ele sentiu profundamente
e que jamais abandonou sua alma; desde então considerava também a mãe
injusta e a cada nova palmada ele se lembrava desse episódio.
Já mencionei como ele via a morte na infância. Isso durou até os seus
10 anos, quando certa vez uma vizinha visitou seus pais e contou como o
primo dela, que era mineiro, caíra da escada dentro da mina e despedaçara
o crânio.
Anton escutava com atenção e, ao ouvir falar em despedaçamento do
crânio, de repente imaginou que cessava completamente de pensar e
sentir, encontrando-se numa espécie de aniquilação e falta de si mesmo
que o enchia de pavor e sobressalto todas as vezes que voltava a pensar
intensamente nisso. Desde então, teve um forte medo da morte, o qual lhe
causou muitas horas tristes.
Ainda tenho de dizer algo sobre suas primeiras ideias acerca de Deus e
do mundo por volta de seus 10 anos.
Sempre que o céu estava encoberto e o horizonte ficava mais estreito,
ele sentia certo receio de que o mundo inteiro também estivesse envolto
por um teto como o do quarto em que morava, e, quando ultrapassava
com seus pensamentos esse teto de nuvens, o mundo em si mesmo lhe
parecia muitíssimo menor, como se estivesse novamente encerrado num
outro e assim por diante.
Sentia algo semelhante com a imagem de Deus quando queria pensar
Nele como o ser supremo.
Certa vez, sentado sozinho diante da porta de casa num entardecer
encoberto, refletia sobre isso enquanto olhava ora para o céu, ora para a
terra, quando notou que esta estava mais negra e sombria em comparação
com o céu nublado.
Além do céu, ele imaginou que Deus, mas qualquer Deus, mesmo o
Deus supremo que seu pensamento inventava, era para ele muito
pequeno, e tinha de haver sempre ainda um ser maior acima deste, diante
do qual ele desaparecia completamente e assim ao infinito.
Mas jamais havia lido ou ouvido algo a respeito. O mais estranho era
que, pela reflexão constante e pela introspecção, Anton incorreu num
solipsismo que poderia tê-lo deixado praticamente louco.
Isso porque, como a maioria de seus sonhos era extremamente viva e
parecia quase confinar com a realidade, ocorreu-lhe também que poderia
sonhar durante o dia, e que as pessoas ao seu redor, sobretudo as que ele
via, poderiam ser criações de sua imaginação.
Essa ideia lhe era assustadora, fazendo-o temer por si mesmo, e, todas
as vezes que lhe vinha à cabeça, ele tentava se livrar dela distraindo-se
realmente.
Após essa digressão, retomemos a sequência temporal da história de
Anton, a quem havíamos abandonado aos 11 anos lendo A bela Banise e A
ilha de Felsenburg. Ganhou também o Diálogo dos mortos, de Fénelon, com
seus contos, e seu professor de caligrafia mandou-o fazer algumas cartas e
composições.
Anton jamais havia sentido uma alegria como aquela. Começou então a
aproveitar suas leituras, e vez ou outra a apresentar-lhe imitações do que
lia, merecendo o aplauso e o respeito de seu professor.
Seu pai, tendo tocado num concerto em que foi executada A morte de
Jesus, de Ramler, trouxe para casa um texto impresso da peça. Para Anton,
era tão arrebatadora e superava de tão longe toda a poesia por ele lida até
então que a leu inúmeras vezes e com tal encanto até sabê-la quase de cor.
Graças a essa leitura casual e única, tantas vezes repetida, seu gosto
pela poesia recebeu certa formação e solidez, as quais ele nunca mais
perdeu desde então; o mesmo ocorreu com o gosto pela prosa graças ao
Telêmaco; pois, apesar do prazer que encontrara em A bela Banise e em A
ilha de Felsenburg, percebia nitidamente o caráter escancarado e vulgar
daquela maneira de escrever.
De prosa poética caiu-lhe nas mãos o Daniel na cova dos leões, de Karl
von Moser, que Anton leu diversas vezes de cabo a rabo; seu pai também
costumava ler para ele trechos desse autor em voz alta.
Chegou novamente a época das fontes termais, e o pai de Anton
decidiu levá-lo consigo novamente para P., mas dessa vez Anton não
desfrutaria tanta alegria como no ano anterior, pois a mãe viajou com eles.
Sua incessante proibição de coisas insignificantes e as frequentes
broncas e castigos fora de hora fizeram Anton perder o gosto por todas as
sensações mais nobres que ali tivera um ano antes; seu sentimento do que
era elogio e aprovação ficou de tal modo oprimido que ele, quase contra a
sua natureza, acabou por encontrar uma espécie de prazer em se meter
com os meninos de rua mais imundos e se entrosar com eles,
simplesmente porque se desesperava por conquistar novamente em P. o
amor e o respeito que a mãe o fizera perder; ela não falava de outra coisa,
não só com o pai, mas também com pessoas totalmente estranhas, senão
de seu péssimo comportamento, que assim começava realmente a piorar,
enquanto seu coração também parecia se degradar.
Anton também ia raramente à casa do sr. de F., e dessa vez o tempo de
sua estada em P. transcorria para ele com tal desconforto e tristeza que
muitas vezes ainda relembrava com nostalgia a alegria dos anos
anteriores, por mais que agora não tivesse de suportar tantas dores no pé,
que começou a melhorar depois da extração do osso lesionado.
Logo após o retorno de seus pais a H., Anton completou 12 anos, idade
em que lhe estavam reservadas muitas mudanças: naquele mesmo ano ele
deveria se separar dos pais. Mas antes uma grande alegria estava prestes a
surpreendê-lo.
Seguindo o conselho de conhecidos, o pai de Anton o deixou
frequentar um curso particular de latim na escola pública da cidade, para
que ele pudesse ao menos aprender uma declinação, como se dizia. Mas,
para grande desgosto da mãe e dos parentes, seu pai não queria enviá-lo
de jeito nenhum aos demais cursos da escola pública, em que o principal
era a aula de religião.
Mas um dos desejos mais ardentes de Anton, poder ir a uma escola
pública, fora em parte realizado.
Já no primeiro dia de aula, as paredes grossas, as escuras salas
abobadadas, os bancos centenários e as cátedras perfuradas por carunchos
não lhe causaram outra impressão senão a de santuários, que lhe
encheram a alma de veneração.
O vice-reitor, um homenzinho espevitado, infundiu nele profundo
respeito por causa da sobrecasaca preta e da peruca curta, apesar de seu ar
não ser lá muito grave.
Esse homem também tratava seus alunos de modo bastante amistoso,
de igual para igual: tinha o hábito de chamar cada um deles por vós, mas os
quatro mais adiantados, que em tom de brincadeira chamava de
veteranos, preferia tratá-los por senhor.
Embora fosse muito rígido, Anton jamais recebeu censura dele, muito
menos palmada, e assim acreditava encontrar até na escola muito mais
justiça do que na casa de seus pais.
Era a hora de começar a aprender de cor o Donato[4], mas ele tinha uma
acentuação estranha, que se revelou logo na segunda lição, ao ter de
recitar mensa de cor, e quando dizia singulariter e pluraliter punha o acento
na penúltima sílaba porque, ao decorar essa lição, imaginou, por causa do
parentesco das palavras Amoriter, Jebusiter etc., que os singulariter eram um
povo que dizia mensa, e os pluraliter eram outro povo, que dizia mensae.[5]
Quantas vezes tais equívocos não são originados quando o professor se
deixa satisfazer com as primeiras palavras dos alunos, sem penetrar no
significado delas!
E assim ele continuava decorando. O amo, amem, amas, ames foi logo
recitado de cor no compasso certo, e nas primeiras seis semanas já sabia o
oportet[6] de cor e salteado; assim, decorava vocábulos diariamente e, como
nunca errava um, subiu em pouco tempo de um nível a outro,
aproximando-se cada vez mais dos veteranos.
Mas que situação de sorte, que carreira feliz para Anton, que pela
primeira vez na vida via se abrir diante de si uma vereda para a fama, algo
que havia tanto tempo ele em vão desejara!
Mesmo o breve tempo que passava em casa, ele desfrutava com
bastante prazer, porque toda manhã, enquanto seus pais tomavam café,
ele era obrigado a ler em voz alta A imitação de Cristo, de Thomas de
Kempis, o que adorava fazer.
Em seguida, falavam a respeito do livro, e às vezes ele também tinha
permissão para dar sua palavra. Aliás, tinha a sorte de não ficar muito em
casa, porque na mesma época ele também frequentava as aulas de seu
antigo professor de caligrafia, a quem Anton amava tão sinceramente que
se sacrificaria por ele, apesar das pancadas na cabeça que dele recebera.
Pois esse homem tinha frequentemente conversas amistosas e
proveitosas com ele e seus colegas de escola, e, como ele parecia ser por
natureza muito mais duro, sua amizade e bondade tinham algo de ainda
mais comovente, que conquistava corações.
Assim, pelo menos por algumas semanas, Anton foi feliz em duas
situações diferentes: mas quão rápido essa felicidade foi destruída! Para
que sua felicidade não lhe subisse à cabeça, duras humilhações já estavam
preparadas para ele!
Pois, embora estudasse em companhia de crianças bem-educadas, sua
mãe o mandava fazer o serviço da criada mais humilde.
Ele tinha de levar água, pegar manteiga e queijo na mercearia e ir à
feira para comprar os alimentos, como uma mulher com o cesto no braço.
Nem preciso dizer o quão profundamente isso o magoava quando um
de seus afortunados colegas de escola passava por ele rindo com sarcasmo.
Mas Anton se consolava com a alegria de poder frequentar uma escola
de latim, onde, após dois meses, ele progredira tanto que já podia
participar das atividades da mesa mais alta, a dos assim chamados quatro
veteranos.
Por essa época seu pai também o levou pela primeira vez para
conhecer em H. um homem bastante singular que era objeto de suas
conversas já havia muito tempo. O homem se chamava Tischer e tinha 105
anos.
Estudara teologia e por fim tinha sido preceptor das crianças de um
rico comerciante em H., em cuja casa ainda vivia, recebendo seu sustento
do atual proprietário, que fora seu aluno e já era agora praticamente um
ancião.
Era surdo desde os 15 anos, e quem quisesse conversar com ele
precisava ter sempre tinta e pena à mão para lhe escrever os
pensamentos, que ele respondia oralmente de maneira bem audível e
clara.
Além disso, aos 105 anos, ele ainda conseguia ler sem óculos as miúdas
letrinhas de seu Testamento grego[7] e falar continuamente de modo
muito verdadeiro e coerente, embora às vezes mais baixo ou mais alto do
que o necessário, porque não podia ouvir a si mesmo.
Ele não era conhecido por outro nome em casa a não ser o homem velho.
Levavam-lhe comida e outros regalos, mas de resto não se preocupavam
muito com ele.
Eis que uma noite, quando Anton estava estudando o Donato, seu pai o
pegou pela mão e disse: “Venha, vou levá-lo até um homem em quem você
vai ver de novo Santo Antônio, São Paulo e o patriarca Abraão”.
E, conforme caminhavam, seu pai o preparava para o que ele em breve
iria ver.
Entraram na casa. O coração de Anton palpitava.
Atravessaram um longo pátio e subiram uma pequena escada caracol
que dava num corredor comprido e escuro, no fim do qual subiram outra
escada e em seguida desceram novamente alguns degraus: as passagens
pareciam labirínticas para Anton.
Finalmente havia um pequeno compartimento à esquerda, por onde a
luz, que vinha de outra janela, passava pelas vidraças.
Já era inverno, e as portas eram guarnecidas com panos do lado de
fora; o pai de Anton as abriu: entardecia, o cômodo, espaçoso e grande, era
decorado com tapeçarias escuras, e o ancião estava sentado numa
poltrona ao centro, diante de uma mesa sobre a qual livros estavam
espalhados.
Ele veio de cabeça descoberta ao encontro deles.
A velhice não o curvara, era um homem comprido, de aparência
grande e majestosa. Os cachos brancos de neve enfeitavam-lhe as
têmporas, e dos olhos brotava uma amizade indizivelmente delicada.
Sentaram-se.
O pai de Anton escreveu alguma coisa para ele. “Vamos rezar”,
começou o ancião após uma pausa, “e que meu pequeno amigo faça
parte”.
Em seguida, ele se ajoelhou, com a cabeça descoberta, tendo o pai à
direita e Anton à esquerda.
É claro que Anton achou mais que verdadeiro tudo aquilo que o pai lhe
dissera. Ele realmente acreditou que se ajoelhara ao lado de um dos
Apóstolos de Cristo, e seu coração se ergueu a uma elevada devoção
quando o ancião abriu as mãos e começou a rezar com verdadeiro fervor,
prosseguindo ora em voz alta, ora em voz baixa.
Suas palavras eram as de alguém que já está com todos os pensamentos
e desejos além-túmulo, a quem somente um acaso ainda concede uma
permanência um pouco maior do que a esperada deste lado de cá.
Desse modo todos os pensamentos também eram, por assim dizer,
trazidos da outra vida para esta, e, enquanto rezava, os olhos e a testa
pareciam se transfigurar.
Terminada a oração, eles se levantaram e em seu coração Anton já
considerava o homem velho quase uma criatura superior e sobre-humana.
E, quando voltou para casa à noitinha, não quis de jeito nenhum
passear na neve num pequeno trenó com alguns de seus colegas de escola,
porque aquilo lhe parecia algo muito sacrílego e ele acreditava que assim
profanaria o dia.
Seu pai o deixava ir com maior frequência à casa do homem velho, e
ele, quando não estava na escola, passava praticamente o dia inteiro com o
ancião.
Passou então a se servir da sua biblioteca, formada em sua maior parte
por livros místicos, tendo lido muitos deles atentamente do começo ao
fim. Também prestava contas com frequência ao homem velho dos seus
progressos no latim e das composições que fazia para o professor de
caligrafia. Assim Anton passou alguns meses numa felicidade muito rara.
Mas que choque não foi para ele quando, quase na mesma época,
ocorreu o terrível anúncio de que seu professor particular de latim ia
parar com as aulas ainda naquele mês, e ele também deveria ser enviado a
outra escola de caligrafia.
De nada adiantaram lágrimas e pedidos, a decisão já estava tomada.
Catorze dias antes, Anton soube que deveria deixar a escola de latim, e
quanto maior o seu progresso maior a sua dor.
Para tornar mais leve a despedida da escola, ele recorreu a um
expediente do qual um garoto de sua idade raramente seria capaz. Em vez
de se esforçar para continuar progredindo, fez o contrário: ou não dizia de
propósito o que sabia, ou então tratava de descer de algum modo um
degrau diariamente, algo que o vice-reitor e os colegas de escola não
puderam entender, e muitas vezes lhe testemunhavam surpresa com isso.
Só Anton sabia o motivo e levava consigo sua mágoa secreta para casa
e para a escola. Cada degrau que descia assim espontaneamente custava-
lhe milhares de lágrimas, que derramava secretamente em casa; mas o
remédio que ele mesmo se prescreveu, por mais amargo que fosse, fez
efeito.
Ele próprio havia se organizado para que no último dia já fosse
necessariamente o pior aluno. Mas isso era muito duro para ele. Com
lágrimas nos olhos, pediu para permanecer em seu lugar apenas naquele
dia, e no dia seguinte aceitaria de bom grado o último lugar.
Todos tiveram compaixão por ele e o deixaram permanecer no mesmo
lugar. No dia seguinte, o mês já estava terminado e ele não viria mais.
O quanto tinha lhe custado esse sacrifício espontâneo pode ser
deduzido do zelo e do esforço com que ele havia procurado galgar cada
posto mais alto.
Por vezes, quando o vice-reitor em seu roupão olhava da janela e ele
passava por ali, pensava: “você poderia abrir seu coração a este homem”,
mas a distância entre ele e seu professor parecia grande demais.
Logo em seguida, apesar de todas as súplicas e pedidos, também foi
separado do adorado professor de caligrafia.
Este, sem dúvida, tinha deixado passar algumas negligências nos livros
de caligrafia e aritmética de Anton, o que irritara seu pai.
Anton assumiu inteira culpa com todo o empenho, prometendo e
jurando em nome de todas as suas forças, mas tudo isso de nada serviu;
teve de largar seu velho e fiel professor e começar no fim do mês a estudar
caligrafia na escola pública da cidade.
Os dois golpes de uma vez foram muito duros para Anton.
Quis ainda se segurar num último apoio e pediu aos antigos colegas de
escola cada tarefa escolar passada para estudá-la em casa e, dessa maneira,
avançar junto com eles, mas, como isso não deu certo, a virtude e a
devoção que mantivera até então não resistiram e durante um tempo ele
se transformou, por uma espécie de desânimo e desespero, naquilo que se
pode chamar um garoto mau.
Na escola, procurava arranjar um jeito de levar umas bofetadas e
depois as aguentava com desafiante firmeza, impassível, o que, além disso,
lhe dava algum prazer que por muito tempo permaneceu agradavelmente
em sua memória.
Brigava com os garotos da rua e batia neles, faltava à aula na escola e
maltratava o cão de seus pais, como e onde pudesse.
Na igreja, onde antes fora um modelo de devoção, tagarelava com seus
companheiros durante toda a missa.
Com frequência lhe ocorria pensar que estava no mau caminho: ele se
lembrava com nostalgia de seus antigos esforços para se tornar um
homem devoto, mas muitas vezes, prestes a voltar atrás, certo desprezo
por si mesmo e um corrosivo desânimo derrubavam suas melhores
intenções, fazendo com que procurasse esquecer-se novamente de si em
todo tipo de distração rebelde.
O pensamento de que seus mais adorados desejos e esperanças haviam
malogrado e de que a iniciada carreira rumo à fama estava para sempre
fechada o corroía incessantemente, sem que tivesse sempre clara
consciência disso, impelindo-o a todo tipo de excesso.
Ele se tornara um hipócrita perante Deus, perante os outros e perante
si mesmo.
Lia pontualmente como antes suas orações matutinas e vespertinas,
mas sem nenhum sentimento.
Quando visitava o homem velho, fazia-o fingindo tudo o que antes
havia feito com sinceridade no coração, trapaceando nas feições devotas e
nas palavras escritas, nas quais fingia certa sede e anseio de Deus, de modo
a preservar a estima daquele homem.
Às vezes ria às escondidas enquanto o homem velho lia o que ele tinha
escrito.
Começou também a enganar seu pai. Certa vez este teria dito como ele
havia sido um menino completamente diferente três anos antes, quando,
em P., se recusou a contar uma mentirinha inocente, negando que o inglês
estivesse em casa.
Como Anton estava ciente de que o que acontecera na época era mais
uma espécie de afetação do que realmente uma aversão à mentira, ele
pensou consigo: se basta tão pouco para ser querido, isso não deve me
custar muito esforço; e assim, em pouco tempo, graças a certa hipocrisia
que procurava dissimular para si mesmo, ele soube levar aquilo tão longe
que seu pai trocou cartas sobre ele com o sr. de F., informando-o do estado
de alma de Anton a fim de ouvir seus conselhos.
Vendo que a coisa se tornava séria, Anton também se tornou mais
sério ainda e algumas vezes decidiu seriamente largar sua vida má, porque
não conseguiria encobrir sozinho para si mesmo por muito mais tempo a
hipocrisia vivida até então.
Lembrou-se, porém, dos anos que perdera desde o tempo de sua antiga
e verdadeira conversão, e de como já poderia estar bem longe se não
tivesse feito aquilo. Isso o deixava extremamente insatisfeito e triste.
Além do mais, leu na casa do homem velho um livro em que se
descrevia minuciosamente, com todos os sinais e sintomas, o processo de
salvação pela penitência, pela fé e pela vida piedosa.
Na penitência era preciso haver lágrimas, arrependimento, tristeza e
insatisfação: tudo isso ele tinha.
Na fé era preciso ter na alma uma serenidade incomum e confiança em
Deus: isso também se fez presente.
E era preciso, em terceiro lugar, que a vida piedosa se manifestasse por
si mesma: já isso não era tão fácil assim.
Anton acreditava que, se um dia quiséssemos viver devota e
piedosamente, tínhamos de ser assim também por todo o tempo e em cada
momento, em todas as feições, gestos e até mesmo em nossos
pensamentos; também não deveríamos esquecer em momento algum que
desejamos ser devotos.
Mas com muita frequência ele naturalmente se esquecia disso: seu
rosto não permanecia sério, seu andar não era respeitável e seus
pensamentos vagavam pelas coisas do mundo terreno.
Agora ele acreditava que tudo acabara, que não fizera praticamente
nada e teria de começar novamente do princípio.
Assim acontecia muitas e diversas vezes numa hora, e essa era uma
situação penosa e angustiante para Anton.
Novamente se entregou a suas antigas distrações, mas sempre com
medo e o coração palpitante.
Ele começou então a obra de conversão novamente desde o princípio e
oscilava constantemente para lá e para cá, não encontrando nem
tranquilidade nem satisfação, amargando em vão a mais inocente alegria
de sua infância, sem no entanto jamais ir longe em outras obras.
Essa constante oscilação é, ao mesmo tempo, a imagem de todo o
percurso de vida de seu pai, que ainda não chegara aos 50 anos e ainda
esperava encontrar o caminho certo pelo qual tinha por tanto tempo se
esforçado em vão.
Com Anton, inicialmente, tudo correra bastante bem: mas desde que
não pôde mais estudar latim, sua devoção sofreu um grande golpe; por ser
de natureza receosa, forçada, ela nunca avançava direito.
Ele leu em algum lugar que o autoaprimoramento é inútil e prejudicial,
e que precisamos nos comportar simplesmente sofrendo e deixar que a
compaixão divina aja em nós: por isso ele rezava frequentemente com
muita sinceridade: “Senhor, converte-me, que serei convertido!”. Mas
tudo foi em vão.
Naquele verão, seu pai viajou de novo para P., e Anton lhe escreveu
contando que tinha progredido pouco no autoaprimoramento, e que nisso
ele errara, porque a compaixão divina tinha de fazer tudo.
Sua mãe considerou que a carta inteira era uma hipocrisia, que de fato
ele não conseguia se libertar totalmente dela, e escreveu embaixo, de
punho próprio: “Anton se comporta como qualquer garoto ímpio”.
Ora, ele tinha consciência de estar travando uma verdadeira luta
consigo mesmo e, portanto, deve ter sido extremamente humilhante para
ele ser jogado na categoria dos garotos ímpios.
Ficou tão abatido que durante algum tempo realmente voltou a levar
uma vida desregrada e passou a conviver deliberadamente com garotos
rebeldes, no que ainda era cada vez mais encorajado pelas repreensões e
pelos pretensos sermões da mãe: pois eles o abatiam cada vez mais, tanto
que por fim julgou não passar de um menino de rua comum e por isso logo
voltou a se juntar a eles.
Isso durou até seu pai retornar de P.
Então de repente se abriram perspectivas totalmente novas para
Anton.
Já no começo do ano sua mãe deu à luz dois gêmeos, e apenas um
sobreviveu, do qual um chapeleiro em B., de nome L., se tornou padrinho.
Ele era um dos seguidores do sr. de F., por intermédio de quem o pai de
Anton o conhecia já havia alguns anos.
Como, em algum momento, Anton deveria ficar sob os cuidados de um
mestre de ofício (pois seus dois meios-irmãos já tinham terminado os
estudos e cada qual estava insatisfeito com o ofício que a autoridade
paterna os obrigara a aceitar), e como o chapeleiro L. queria um rapaz que
temporariamente o ajudasse, o pai de Anton imaginou a esplêndida
oportunidade que surgia: assim como os dois meios-irmãos, ele seria
colocado sob os cuidados de um homem extremamente devoto, além de
ardoroso seguidor do sr. de F., pelas mãos de quem seria exortado à
verdadeira bem-aventurança divina e à devoção.
Isso já devia ter sido tramado havia tempos e supostamente foi a causa
de o pai de Anton tê-lo tirado da escola de latim.
Mas, desde que aprendeu latim, Anton pôs firmemente na cabeça que
também iria frequentar a universidade; pois tinha um respeito tão grande
por todos os que haviam cursado a universidade e vestiam sobrecasaca
preta que considerava essas pessoas seres quase sobre-humanos.
O que era mais natural do que aspirar àquilo que lhe parecia ser o mais
desejável no mundo?
Agora se dizia que o chapeleiro L. de Braunschweig cuidaria de Anton
como um amigo, ele seria tratado como uma criança, encarregando-se
apenas de trabalhos leves e convenientes, como anotar algumas contas,
tirar pedidos e outras coisas semelhantes; além disso, deveria ir à escola
por mais dois anos, até que fosse confirmado e pudesse então se decidir
por algo.
Isso soava extremamente agradável aos ouvidos de Anton, sobretudo o
último ponto referente à escola; pois, acreditava ele, assim que tivesse
alcançado essa meta, nada lhe faltaria para se distinguir com tal
excelência que encontraria facilmente meios e caminhos para cursar a
universidade.
Imediatamente ele mesmo escreveu, com o pai, ao chapeleiro L., de
quem já tinha gostado muito de antemão, e se alegrava com os dias felizes
que desfrutaria em sua companhia.
Que encanto era para ele mudar de lugar!
A estada em H., a eterna e monótona vista das mesmas ruas e casas, se
tornou insuportável: novas torres, portas da cidade, baluartes e castelos se
erguiam incessantemente em sua alma, e uma imagem suplantava a outra.
Estava inquieto e contava as horas e os minutos até sua partida.
O dia tão esperado finalmente chegou. Anton se despediu da mãe e dos
dois irmãos: Christian, o mais velho, com 5 anos; e Simon, o mais novo,
que recebera o nome do chapeleiro L. e tinha apenas 1 ano.
O pai viajou com ele, metade a pé e metade de carruagem, quando
aparecia uma oportunidade a preço módico.
Anton agora desfrutava pela primeira vez em sua vida o prazer de
viajar a pé, um prazer que lhe estaria reservado ainda com muito mais
frequência no futuro.
Quanto mais se aproximavam de Braunschweig, mais o coração de
Anton se enchia de expectativas. A torre da igreja de Santo André
sobressaía majestosa com suas cúpulas vermelhas.
Anoitecia. A distância, Anton viu a sentinela indo e vindo sobre o
baluarte.
Milhares de imagens de como seria a aparência de seu futuro benfeitor,
da sua idade, andar e feições, nele surgiam e logo em seguida
desapareciam.
Compôs por fim uma imagem tão bela dele que já o adorava
antecipadamente.
Em sua infância, Anton, provocado pelo som de alguns nomes próprios
de pessoas ou cidades, tinha em geral o costume de formar imagens e
noções particulares dos objetos designados pelos nomes.
O tom agudo ou grave das vogais num nome desses era o que mais
contribuía para a definição da imagem.
Assim, o nome Hannover soava constantemente suntuoso ao seu
ouvido, e, mesmo antes de vê-la, a cidade era para ele um lugar de casas
altas e torres, de aparência clara e iluminada.
Braunschweig parecia ter uma aparência mais sombria, alongada e
maior, e imaginava Paris bem cheia de casas brancas e claras, conforme
um desses obscuros sentimentos evocados pelo nome.
O que também é muito natural: pois a alma trabalha, mesmo por meio
da mais remota semelhança, para esboçar uma imagem de algo sobre o
qual nada conhecemos a não ser o nome, e, na falta de todas as outras
comparações, ela tem de buscar seu refúgio no nome arbitrário das coisas,
no qual nota o som que soa forte ou fraco, grave ou agudo, alto ou baixo,
abafado ou nítido, e, entre eles e os objetos visíveis, estipula uma espécie
de comparação que por vezes, casualmente, é certeira.
Pelo nome L., Anton imaginou mais ou menos um homem um pouco
alto, franco e íntegro, com uma fronte livre e aberta etc.
Mas dessa vez sua interpretação do nome o enganou bastante.
Já começava a escurecer quando Anton e seu pai atravessaram as
imensas pontes levadiças e entraram pelas portas da cidade de B.
Passaram por muitas vielas estreitas, diante do castelo, e finalmente,
através de uma ponte longa, chegaram a uma rua escura onde morava o
chapeleiro L., em frente a um comprido edifício público.
Pararam diante da casa. A fachada enegrecida tinha uma grande porta
preta com muitos pregos.
Do alto, pendia uma tabuleta com um chapéu, na qual se podia ler o
nome de L.
Uma velha senhorinha, governanta da casa, abriu-lhes a porta e os
conduziu pelo lado direito a um grande aposento revestido de madeira
envernizada de marrom-escuro, sobre a qual ainda se podia distinguir,
com muito custo, uma representação semiapagada dos cinco sentidos.
Ali foram recebidos pelo dono da casa. Um homem de meia-idade, mais
baixo que alto, de rosto ainda bastante juvenil embora pálido e
melancólico, que raramente tomava outra feição a não ser um tipo de
sorriso agridoce, de cabelos negros, olhos razoavelmente exaltados, um
pouco fino e delicado em sua conversa, movimentos e trejeitos, coisa rara
de encontrar em artesãos, e uma fala límpida mas extremamente lenta,
preguiçosa e arrastada, que alongava não se sabe quanto as palavras,
sobretudo quando o diálogo era sobre assuntos religiosos: tinha também
um olhar insuportavelmente intolerante, quando suas sobrancelhas pretas
franziam diante da perversidade e maldade dos homens, em especial de
seus vizinhos ou dos seus próprios empregados.
A primeira vez que Anton o viu, ele vestia um gorro verde de pele,
lenço azul no pescoço e camisa marrom, junto com um avental preto, sua
roupa doméstica habitual, e à primeira vista era como se tivesse
encontrado nele um senhor e mestre severo em vez de um futuro amigo e
benfeitor.
O amor profundo que por ele antecipadamente concebera se apagou
como uma centelha de fogo em que se derrama água, quando a primeira
cara fria, seca, imperiosa de seu suposto benfeitor o fez suspeitar de que
não seria nada mais que seu aprendiz.
Nos poucos dias que seu pai passou ali, ainda foi tratado com alguma
consideração; mas, logo que o pai partiu, ele teve de trabalhar na oficina
tanto quanto o outro aprendiz.
Ele foi usado para fazer os trabalhos mais ordinários; tinha de rachar
lenha, buscar água e varrer a oficina.
Por mais que isso contrastasse com suas expectativas, o desagrado foi
até certo ponto substituído pela atração da novidade. E de fato encontrou
certo prazer em varrer, rachar lenha e buscar água.
Sua imaginação, por meio da qual fantasiava tudo aquilo, também lhe
era muito propícia. – Muitas vezes, a ampla oficina, com suas paredes
pretas e uma escuridão horripilante, iluminada à tarde e à noite apenas
pelo brilho de alguns candeeiros, era para Anton um templo onde ele
servia.
De manhã, acendia o intenso fogo sagrado embaixo das grandes
caldeiras, que mantinha todos em trabalho e atividade durante o dia
inteiro, e desse modo muitas mãos permaneciam ocupadas.
Considerava essa atividade um tipo de ofício que a seus olhos lhe
conferia certa dignidade.
Logo atrás da oficina corria o rio Oker, sobre o qual havia sido
construída uma armação ou um ressalto de tábuas para pegar água.
Ele considerava de certo modo tudo isso seu território, e, quando às
vezes limpava a oficina, enchia as grandes caldeiras muradas e acendia o
fogo embaixo delas, podia se alegrar, satisfeito, com sua obra – como se
tivesse dado a cada coisa aquilo que lhe era de direito –, sua sempre
ocupada imaginação vivificava o inanimado à sua volta, tornando-os seres
reais, com os quais convivia e conversava.
Além disso, o curso regular dos negócios, que percebia ali, dava-lhe
certa sensação agradável de que ele era uma roda dessa máquina que se
movimentava tão regularmente: pois em casa jamais conheceu algo
parecido.
O chapeleiro L. prezava realmente a ordem em sua casa, e tudo ali era
feito com rigorosa pontualidade: trabalhar, comer, dormir.
Se havia alguma exceção, era em relação ao sono, que de fato tinha de
ser suspenso quando se trabalhava à noite, o que ocorria ao menos uma
vez na semana.
Do contrário, a hora do almoço era sempre pontualmente ao meio-dia;
o café da manhã, às oito da manhã; e o jantar, às oito da noite em ponto.
Também se contava com a mesma pontualidade no trabalho – e assim
corria naquele tempo a vida de Anton: de manhã, a partir das seis,
enquanto trabalhava, já contava com o café da manhã, que sempre
saboreava na imaginação, e, quando chegava a hora, ele o devorava com o
apetite mais saudável que um homem pode ter, embora não passasse de
uma borra de café com um pouco de leite e um pãozinho de 2 vinténs.
O trabalho era então retomado com ânimo renovado, e a expectativa
do almoço trazia novo interesse às horas da manhã, quando a monotonia
do trabalho era fastidiosa demais.
Entrava ano, saía ano, à tardinha se servia uma caneca gelada de
cerveja forte. Suficientemente estimulante para adoçar os trabalhos da
tarde.
E, depois do jantar até a hora de dormir, era o pensamento do descanso
iminente e ansiado que espalhava novamente seu brilho consolador sobre
o desconforto e o cansaço do trabalho.
É claro que se sabia que o curso da vida recomeçaria tal qual no dia
seguinte. Mas por fim também essa monotonia fastidiosa na vida era
quebrada novamente de maneira agradável pela expectativa do domingo.
Quando o atrativo do café da manhã, do almoço e do jantar não era
mais suficiente para manter o prazer de viver e de trabalhar, contava-se
quanto tempo ainda faltava até o domingo, quando se podia comemorar
um dia inteiro longe do trabalho, deixar uma vez a oficina escura, sair pela
porta da cidade para o campo aberto e desfrutar a vista da natureza livre e
aberta.
Ah, quantos atrativos o domingo não tinha para o artesão que eram
desconhecidos das classes mais altas dos homens, os quais podiam
descansar de suas atividades quando quisessem. –
“Para que se alegre o filho de tua escrava!”[8] – Apenas o trabalhador
manual pode sentir completamente o grande e esplêndido sentido
humano contido nessa lei! –
Se ao longo de seis dias já ficavam na expectativa de um dia de
descanso, valia a pena contar com os três ou quatro feriados sucessivos, o
que dava um terço do ano.
Quando muitas vezes até mesmo pensar no domingo já não era
suficiente para evitar o fastio da monotonia, o estímulo de vida era
renovado pela proximidade da Páscoa, do Pentecostes ou do Natal.
E se tudo isso era muito fraco, vinha então a doce esperança do
encerramento dos anos de aprendizado, do tornar-se um oficial, que
ultrapassava tudo o mais e trazia uma nova e grande época para a vida.
Mas as perspectivas do colega de aprendizado de Anton não iam além
disso – e seu estado certamente não era pior por isso.
Por um benevolente e sábio arranjo das coisas, até a exaustiva e
monótona vida de trabalhador manual tem suas fases e períodos, que
impõem certo ritmo e harmonia à vida, de sorte que esta corre
despercebida, sem que seu proprietário também venha a sentir tédio.
Mas a alma de Anton, por causa de suas ideias romanescas, destoava
daquele ritmo.
Logo em frente à casa do chapeleiro havia uma escola de latim que
Anton tivera a vã expectativa de frequentar – todas as vezes que via os
alunos saindo e entrando, voltava a pensar com nostalgia na escola de
latim e no vice-reitor em H. –, e ao passar algumas vezes diante da grande
escola São Martinho, ao ver os alunos mais velhos saindo, teria dado tudo
para poder observar uma única vez o interior daquele santuário.
Em sua situação atual, julgava impossível poder um dia frequentar
aquela escola; mesmo assim, não conseguiu se privar inteiramente de um
fraco brilho de esperança em relação a isso.
Até mesmo o coro de alunos lhe parecia ser de uma esfera superior; e,
se os ouvia cantando na rua, não conseguia deixar de ir atrás deles,
deleitar-se em contemplá-los e invejar-lhes o destino grandioso.
Quando estava sozinho na oficina com seu colega de aprendizado,
procurava compartilhar com ele todos os pequenos conhecimentos que
adquirira, em parte por suas leituras, em parte pelas aulas que tivera.
Contava-lhe sobre Júpiter e Juno, procurava esclarecer a diferença
entre adjetivo e substantivo para ensinar-lhe onde deveria colocar
corretamente uma letra maiúscula ou minúscula.
O colega o ouvia com atenção, e ambos com frequência discorriam
sobre temas morais e religiosos. Nessas ocasiões, o colega de aprendizado
era excelente em inventar novas palavras com as quais designava seus
conceitos. Assim ele nomeou, por exemplo, a obediência ao mandamento
divino de a satisfatibilidade de Deus. – E, quando procurava imitar
principalmente as expressões religiosas do sr. L. sobre a mortificação etc.,
ele caía em galimatias singulares.
Quando acreditava estar sendo depreciado ou caluniado pela
governanta ou por qualquer outra pessoa, ele sabia se servir com especial
ênfase de algumas passagens dos Salmos de Davi em que as opiniões a
respeito dos inimigos não eram exatamente brandas.
Assim, exceto o seu colega, todos os inquilinos da casa eram mais ou
menos contagiados pelos delírios religiosos do sr. L. Quando este
tagarelava demais sobre mortificação e aniquilação, o colega lançava-lhe
um tal olhar de mortificação e aniquilação que o sr. L. se virava de repulsa
e se calava.
Se isso não ocorria, o sr. L. podia às vezes passar sermões contra todo o
gênero humano por horas e horas. Com um movimento suave da mão
direita, distribuía bênção e danação. Nessas ocasiões, por mais que seu
semblante estivesse cheio de compaixão, a intolerância e o ódio humano
se alojavam entre suas sobrancelhas negras.
O objetivo prático do sermão, bastante político, era sempre exortar
seus empregados à dedicação e à lealdade no trabalho – se não quisessem
arder eternamente no fogo do inferno.
Achava que os empregados nunca trabalhavam o suficiente – ao sair,
fazia o sinal da cruz sobre o pão e a manteiga.
Talvez por Anton não conseguir trabalhar o bastante, ele lhe azedava o
almoço repetindo milhares de vezes lições de como segurar a faca e o
garfo, de como levar a comida à boca, de modo que com frequência ele
perdia a vontade de comer; até que uma vez o colega interveio
energicamente a seu favor e Anton pôde comer em paz. –
Aliás, ele não podia sequer ousar abrir a boca, pois L. encontrava
sempre alguma coisa para criticar em tudo o que dizia, nas suas
expressões faciais e nos seus menores gestos; nada que Anton fizesse lhe
agradava, e por fim temia até caminhar na sua presença, porque ele podia
encontrar algo a censurar em qualquer passo que desse. – Sua intolerância
se estendia a cada sorriso e a cada manifestação inocente de prazer que
surgissem nas expressões faciais e nos movimentos de Anton: ali ele podia
descarregar sua intolerância realmente à vontade, porque sabia que não
seria contrariado.
Durante essa época, os cinco sentidos que decoravam o lambril preto e
estavam completamente desbotados ganharam uma demão de verniz – a
recordação desse cheiro, que durou algumas semanas, foi posteriormente
quase sempre associada por Anton à ideia de seu estado naquela época.
Toda vez que sentia involuntariamente um cheiro de verniz, erguiam-se
em sua alma todas as desagradáveis imagens daquele tempo, e vice-versa,
quando às vezes estava numa situação que tinha uma semelhança casual
com aquilo, também achava que sentia um cheiro de verniz.
Um acaso melhorou um pouco a situação de Anton.
O chapeleiro L. era um fanático extremamente hipocondríaco;
acreditava em pressentimentos e tinha visões que lhe despertavam com
frequência medo e pavor. Uma senhora idosa, antiga inquilina da casa,
morreu e lhe aparecia em sonho à noite, de modo que ele muitas vezes
acordava com calafrios e pavor, e como desperto ainda continuava
sonhando com ela, acreditava também ver a sombra dela em algum canto
de sua alcova. Daí em diante, Anton teve de lhe fazer companhia e dormir
numa cama ao lado dele. Desse modo ele se tornou até certo ponto
imprescindível para o chapeleiro, e este passou a ser um pouco mais
amável com Anton. Muitas vezes, o chapeleiro entabulava conversas com
ele, perguntando como estava com Deus em seu coração, e lhe ensinava
que bastava se entregar a Deus: se por sorte fosse escolhido como um de
Seus filhos, o próprio Deus começaria e completaria a obra de conversão
nele etc. – À noite, antes de ir para cama, Anton tinha de ficar em pé à
parte e rezar baixinho, e a oração também não podia ser muito curta –
senão L. perguntava se ele já havia terminado e se não tinha mais nada a
dizer a Deus. – Para Anton, isso era uma nova ocasião para a hipocrisia e a
simulação totalmente contrárias à sua natureza. – Embora rezasse
baixinho, procurava pronunciar suas palavras de modo muito claro para
que L. pudesse entendê-lo muito bem – e assim, durante sua oração,
predominava não tanto o pensamento em Deus, mas o modo como ele, por
alguma expressão de arrependimento, remorso, nostalgia de Deus e outras
coisas semelhantes, conseguiria o melhor jeito de cair nas graças do sr. L. –
Esse foi o esplêndido benefício que a oração forçada teve sobre o coração e
a personalidade de Anton.
Mas às vezes Anton encontrava também nas orações solitárias um tipo
de satisfação secreta, quando se ajoelhava em algum canto da oficina e
pedia a Deus que produzisse em sua alma uma única das grandes
mudanças sobre as quais ele tinha lido e ouvido muito desde a infância. E a
ilusão de sua imaginação ia tão longe que por vezes era realmente como se
acontecesse algo totalmente especial no mais fundo de sua alma; e logo a
seguir estava ali presente também o pensamento de como ele poderia
vestir esse seu estado de alma numa carta a seu pai ou ao sr. de F., ou
então como contaria isso ao sr. L. Esses sentimentos interiores imaginários
eram sempre um doce alimento para sua vaidade, e a satisfação interna
que experimentava era sobretudo despertada pelo pensamento de que
ainda podia dizer que tinha sentido essas satisfações divinas e celestiais em
sua alma – sempre se sentia lisonjeado quando pessoas adultas e idosas
julgavam muito importante o estado da sua alma, a ponto de se
preocuparem com ele. Foi essa a razão pela qual supôs ter muitas vezes
um estado de alma mutante, para assim poder se queixar um pouco ao sr.
L. de que se encontrava numa situação de vazio, de secura, e que não
notava em si anseio algum por Deus etc., e assim podia solicitar o conselho
do sr. L. sobre seu estado de alma, conselho que também lhe era dado com
uma importância que para ele era lisonjeira.
Certa vez isso foi tão longe que chegaram a trocar correspondência
com o sr. de F. sobre o estado de alma de Anton, e lhe foi mostrado um
trecho da carta do sr. de F. que se referia a ele. Não era de estranhar então
que ele se visse levado a manter essa sua importância, tanto a seus olhos
como aos dos outros, graças a todo tipo de mudanças imaginárias do seu
estado de alma, pois era considerado um ser no qual se revelava
inteiramente uma direção própria e especial de Deus.
Também recebeu então um avental preto como o outro aprendiz, e, em
vez de tê-lo deixado abatido, ao contrário, essa situação contribuiu ainda
mais para sua satisfação. Ele se via como um homem que já tinha
começado a ocupar certa posição. O avental o colocava, por assim dizer,
no mesmo nível de seus semelhantes, pois antes ele estava isolado e
abandonado – por um tempo o avental o fez esquecer sua inclinação para
os estudos; começou também a encontrar uma espécie de prazer em
outras atividades manuais e não desejava nada mais fervorosamente do
que poder participar delas. Alegrava-se interiormente todas as vezes que
ouvia a saudação de um oficial que de passagem vinha exigir a oferenda
habitual; e não podia imaginar maior felicidade do que também imigrar
assim um dia como oficial e recitar as palavras de saudação prescritas pelo
costume do ofício.
Assim, o ânimo juvenil sempre se apega mais aos sinais do que às
coisas, e pouco ou quase nada se pode concluir das tenras declarações das
crianças sobre a escolha de suas futuras profissões. – Logo que aprendeu a
ler, Anton sentia um prazer indescritível em ir à igreja, para não pouco
contentamento de sua mãe e de sua prima. No entanto, o que o impelia a ir
à igreja era o triunfo que desfrutava toda vez que olhava para o quadro-
negro no qual estavam escritos os números dos cânticos e conseguia dizer
que número era aquele ao adulto que por acaso estivesse perto, ou quando
conseguia encontrar esse número no livro de cantos tão ou ainda mais
rápido que os adultos, e podia cantar com eles.
A afeição do sr. L. por Anton agora parecia crescer cada vez mais,
conforme este demonstrasse desejo por sua condução espiritual. – Ele
deixava Anton participar com frequência, até por volta da meia-noite, dos
diálogos com seus amigos mais próximos, com os quais costumava
conversar sobre suas visões e as dos outros, por vezes tão horripilantes
que Anton ouvia atento e de cabelo em pé. Em geral, ia para cama muito
tarde. E, quando a noite tinha transcorrido com esses diálogos, L.
costumava perguntar de manhã, assim que acordava, se Anton não tinha
percebido nada à noite, se não tinha ouvido nada da alcova.
L. muitas vezes conversava à noite só com Anton, e juntos liam um
pouco os escritos de Tauler, de São João da Cruz e livros semelhantes. Era
como se brotasse uma duradoura amizade entre eles. Anton também foi
realmente tomado de uma espécie de amor por L., mas essa sensação
estava sempre misturada com certa amargura, com certo sentimento de
mortificação e aniquilação, causado pelo sorriso agridoce de L.
Anton, porém, permanecia, mais do que antes, poupado de trabalhos
pesados e baixos. Muitas vezes, L. saía para passear em sua companhia;
chegou até a admitir um professor de piano para ele – Anton estava
encantado com sua situação e escreveu uma carta ao pai na qual lhe dava
as provas mais vivas de sua satisfação.
Mas, agora que a sorte de Anton na casa de L. alcançara o mais alto
cume, sua queda estava próxima. Desde que lhe arranjaram um professor
de piano, todos o olhavam com inveja. Formaram-se conluios como se
estivessem numa pequena corte; difamavam-no, procuravam derrubá-lo.
Enquanto L. procedeu de modo duro e exigente para com Anton, ele
desfrutava a compaixão e a amizade de todos os outros moradores da casa;
mas a inimizade e a desconfiança deles aumentavam na mesma medida
em que L. parecia lhe dedicar sua amizade e confiança. E, tão logo
lograram rebaixá-lo de novo e conseguiram que o professor de piano se
demitisse, não tinham mais nada contra Anton: eram seus amigos como
antes.
Mas não era difícil privá-lo do favor de um homem desconfiado e
suspeitoso como L.; bastava contar algumas declarações animadas dele,
bastava chamar a atenção do sr. L. para os variados e efetivos erros de
negligência e desordem que Anton tinha cometido a cada ocasião para
logo dar outra direção a suas intenções. Isso foi realizado com muito zelo
pela governanta e pelos demais empregados. – Mesmo assim, ainda
demorou alguns meses para conseguirem alcançar completamente seu
objetivo. Nessa época, L. até se esforçou para converter o professor de
piano de Anton, um homem muito reto e religioso, mas que, segundo a
opinião do sr. L., não se entregara ainda completamente a Deus nem era
submisso o bastante a Ele.
O professor também precisava comer frequentemente na casa do sr. L.,
mas acabou estragando tudo porque passava muita manteiga no pão; a
governanta chamou a atenção do sr. L. para aquele fato, de modo a
alcançar seu objetivo de dar um fim às aulas de piano de Anton e assim
impedir que ele ficasse acima dos outros inquilinos da casa.
Anton, além do mais, não tinha muito gênio para a música e
consequentemente não aprendeu muito em suas aulas. Algumas árias e
coros foram tudo o que conseguiu dominar com muito esforço. E para ele
as aulas de piano eram sempre uma hora muito desagradável. Até o
dedilhado era muito difícil para ele, e L. sempre encontrava algo a criticar
em seus dedos escanchados.
Certa vez ele conseguiu expulsar o espírito do mal do sr. L. graças à
força da música, assim como Davi fizera com Saul. Anton cometera um
pequeno descuido, e, como a afeição por ele já começara a se transformar
em ódio, o sr. L. tinha pensado em lhe dar um duro castigo antes de
dormir. Anton percebia isso muito bem em tudo. E, quando o momento
parecia se aproximar, ele tomou coragem para tocar um coro ao piano, o
primeiro que aprendera, e começou a cantá-lo. Isso surpreendeu o sr. L., o
qual confessou que estava justo naquele momento decidido a aplicar-lhe
uma rigorosa punição, mas que agora o perdoaria.
Anton até se atreveu a fazer algumas reprimendas ao sr. L. por causa
da visível diminuição da amizade e do amor para com ele, e L. lhe
confessou que sua afeição certamente já não era tão forte assim, e que isso
se devia necessariamente à deterioração do estado de alma de Anton, o
que interpôs, por assim dizer, um muro entre ele e seu antigo amor. Disse
que tinha exposto o assunto em oração a Deus e recebido essa explicação.
Isso foi muito triste para Anton, e ele se perguntou o que teria de fazer
para melhorar seu estado de alma deteriorado. A resposta, a única
maneira de salvar sua alma, era percorrer seu caminho na simplicidade e
entregar-se completamente a Deus. Não foram dadas outras instruções
além dessa. O sr. L. não achou bom se antecipar a Deus, que, por assim
dizer, parecia ter se afastado de Anton. – Mas as enfáticas palavras
percorrer seu caminho na simplicidade tinham relação com o fato de que, para
o sr. L., Anton desde algum tempo começara a ficar esperto, eloquente e
sutil demais, e excessivamente vivo, sobretudo por causa da satisfação
com seu estado. – Para ele, essa vivacidade era o caminho direto para a
perdição de Anton, que, a julgar pela jovialidade em seu rosto, tinha
necessariamente de se tornar um homem inescrupuloso e mundano, de
quem não se poderia supor outra coisa a não ser que Deus mesmo o
abandonaria em seus pecados. –
Tivesse percebido melhor sua vantagem, Anton teria podido colocar
tudo em ordem outra vez com um comportamento abatido e misantropo,
com inquietações e angústias fingidas. Pois assim L. teria acreditado que
Deus estava prestes a trazer novamente a alma perdida para junto Dele. –
Mas como L. sustentava o princípio de que aquele que Deus quer
converter será convertido sem sua participação; e de que Deus escolhe
quem Ele quer, rejeita quem Ele quer e endurece com quem Ele quer só
para revelar sua magnificência – parecia-lhe, por assim dizer, perigoso se
misturar nos assuntos divinos quando alguém tem a aparência de ter sido
realmente rejeitado por Deus.
Por sua conduta vivaz e mundana, Anton realmente tinha quase essa
aparência para o sr. L. – o assunto motivou uma correspondência com o sr.
de F. E mostrou então a Anton que mais uma vez a carta do sr. de F. o
mencionava; ali, afirmava que, segundo todas as evidências, a construção do
templo do diabo no coração de Anton estava tão avançada que dificilmente
poderia ser destruído de novo.
Isso atingiu Anton como um raio – mas ele se examinou atentamente e
comparou seu atual estado com o anterior, e foi impossível encontrar
qualquer diferença entre os dois; ele frequentemente ainda tinha, como
antes, comoções e sentimentos imaginários e divinos; não conseguia se
convencer de que tinha sido totalmente alijado da graça e de que fora
rejeitado por Deus. Começou a duvidar da verdade da sentença oracular
do sr. de F.
Com isso, o seu abatimento voltou a desaparecer, abatimento que
talvez tivesse podido abrir-lhe de novo o caminho para o favorecimento
do sr. L., cuja amizade a satisfação constante de seu rosto pôs inteiramente
a perder.
A primeira consequência disso foi que L. o afastou de sua alcova, e ele
teve de dormir novamente com o outro jovem aprendiz, que voltou a ser
seu amigo porque já não o invejava; a segunda foi ter de voltar a fazer,
mais do que nunca, os trabalhos mais difíceis e ordinários, o que o
obrigava a permanecer sempre na oficina, e apenas raramente tinha
permissão para ir ao quarto do sr. L. O professor de piano ainda foi
mantido somente porque L. queria completar a obra de conversão que
havia iniciado, e portanto, no lugar de uma alma perdida, ele pretendia
conduzir uma outra a Deus.
O inverno chegou, e a situação de Anton começava a ficar então
realmente difícil: ele tinha de executar trabalhos que excediam, e muito,
sua idade e suas forças. L. parecia crer que, como agora já não era possível
esperar nada da alma de Anton, era preciso ao menos fazer todo o uso
possível do seu corpo. Ele considerava o corpo de Anton como uma
ferramenta que se joga fora depois de usar.
Em pouco tempo, por causa do frio e do trabalho, as mãos de Anton
ficaram completamente imprestáveis para tocar piano. – Quase toda
semana, ele tinha de ficar acordado algumas noites junto com os outros
aprendizes para tirar os chapéus tingidos de preto da fervura da caldeira e
em seguida lavá-los imediatamente no rio Oker, que passava por ali, e para
tal fim era preciso abrir um buraco no gelo. Essa passagem
frequentemente repetida do calor para o frio provocou rachaduras nas
mãos de Anton, pelas quais o sangue brotava.
Mas, em vez de abatê-lo, isso elevou seu ânimo. Olhou com certo
orgulho para as mãos, observando as marcas de sangue como muitas
insígnias de honra de seu trabalho; e, enquanto ainda traziam o atrativo
da novidade, esses trabalhos difíceis lhe davam certo prazer, que consistia
principalmente em sentir suas forças corporais; ao mesmo tempo, lhe
davam uma espécie de doce sentimento de liberdade, que até então ainda
não conhecera.
Era como se ele agora pudesse também ser mais indulgente consigo
mesmo, depois de ter trabalhado tanto quanto os outros e ter suportado o
fardo e o calor do dia como eles. Mesmo sob os trabalhos mais penosos, ele
experimentava uma espécie de apreço interior que o emprego de suas
forças lhe proporcionava; e muitas vezes dificilmente teria trocado essa
situação pela desagradável condição em que se encontrava quando
desfrutava a amizade de L., amizade severa e exterminadora de qualquer
liberdade.
Este, porém, começou a pressioná-lo cada vez mais: no frio intenso,
durante o dia inteiro, tinha frequentemente de cardar lã numa sala sem
aquecimento. Era um modo matreiro, concebido pelo sr. L., de aumentar a
laboriosidade de Anton: pois, se não quisesse morrer de frio, precisaria se
mexer tanto quanto suas forças aguentassem, de forma que à noite seus
braços muitas vezes ficavam como que paralisados, e mesmo assim as
mãos e pés congelavam.
Por causa da eterna monotonia, o trabalho tornava a sorte de Anton
mais dura. Principalmente quando por vezes sua fantasia não queria
entrar em funcionamento; quando, ao contrário, ele entrava em
movimento graças à circulação sanguínea mais rápida, as horas do dia
fluíam frequentemente sem que percebesse. Muitas vezes, ele se perdia
em visões encantadoras. Outras, cantava seus sentimentos, recitando-os
com melodias próprias. Quando então ficava particularmente cansado do
trabalho, com as forças esgotadas, sentindo-se pressionado por sua
condição, ele preferia mesmo se perder em exaltações religiosas de
sacrifício, entrega total etc., e a expressão altar do sacrifício era a que mais o
comovia, de modo que a incluía em todas as pequenas canções e
recitativos de sua criação.
As conversas com o colega aprendiz (que se chamava August)
começaram a ser de novo estimulantes, e seus diálogos se tornaram
íntimos, pois um e outro eram novamente iguais. A amizade deles se
tornou mais intensa nas noites em que por vezes precisavam ficar juntos
em vigília. Mas a intimidade crescia ainda mais quando se sentavam juntos
na sala de secagem. Esta consistia em um buraco emparedado na terra,
encimada por arcos de tijolos, onde cabia apenas um homem em pé e não
mais que dois sentados. Nesse buraco havia um grande braseiro, e nas
paredes ao redor estavam penduradas peles de coelhos pintadas com
água-forte, cujo pelo recebia uma leve decapagem a fim de ser usado
depois como matéria-prima para os chapéus mais finos.
Anton e August se sentavam à frente do braseiro em meio àquela
fumaça no buraco quase subterrâneo, onde entravam mais rastejando que
andando, e, por causa da estreiteza do lugar e do isolamento, do silêncio e
da ameaça dessa abóbada escura, eles se sentiam tão unidos que o coração
de ambos por vezes transbordava em manifestações de amizade recíproca.
Ali revelavam os mais íntimos pensamentos de sua alma; ali passavam as
horas mais venturosas.
Como o sr. de F. e todos os seus seguidores, L. era um separatista que
não frequentava a igreja nem comungava. Enquanto sua amizade com
Anton durou, este praticamente nunca foi à igreja em B. Agora August o
levava aos domingos e sempre iam a outras, porque Anton gostava de
ouvir os diferentes sermões, um depois do outro.
Certa vez, Anton e August estavam sentados por volta da meia-noite na
sala de secagem, conversando sobre distintas pregações que tinham
ouvido, quando este último prometeu a Anton que iria levá-lo à igreja B.
no domingo seguinte, onde ouviria um pregador que superava todos os
que ele pudesse pensar e imaginar. Esse pregador se chamava P., e August
não parava de contar quantas vezes fora abalado e comovido pelas
pregações do homem. Nada parecia mais estimulante para Anton do que a
visão de um orador público capaz de conquistar o coração de milhares de
pessoas. Ele ouvia atentamente aquilo que August lhe contava. Via em
pensamento o pastor P. no púlpito, já o ouvia pregando. Seu único desejo
era que já fosse domingo!
O domingo chegou. Anton se levantou bem cedo, como de hábito, e se
vestiu. Quando badalaram os sinos, teve uma espécie de pressentimento
agradável daquilo que iria ouvir. Foram à igreja. As ruas que conduziam à
igreja B. estavam tomadas por uma multidão de gente apressada. O pastor
P. estivera doente por algum tempo, e era a primeira vez que pregava
desde então: esse foi também o motivo pelo qual August não havia, antes,
ido diretamente a essa igreja com Anton.
Quando entraram, tiveram dificuldade de encontrar um lugarzinho
diante do púlpito. Todos os bancos, corredores e coros estavam cheios, e
as pessoas se esforçavam para enxergar umas por cima das outras. A igreja
era um edifício gótico antigo, de pilares grossos que sustentavam a alta
abóbada e descomunais janelas longas e curvas, cujos vitrais eram
pintados de tal modo que apenas uma luz fraca podia passar por eles.
A igreja já estava cheia de gente antes do início do culto. Imperava um
silêncio solene. De repente, o grande órgão soou com toda a força, e o
canto de louvor que saía da boca daquela multidão parecia sacudir as
abóbadas. Quando o último canto chegou ao fim, todos cravaram o olhar
no púlpito, e não se notava outro desejo senão o de ver e ouvir aquele
pregador quase idolatrado.
Finalmente, ele entrou e se ajoelhou no último degrau do púlpito,
antes de subir. Ergueu-se de novo em seguida e se postou diante do povo
reunido. Um homem ainda em plena força da idade – o semblante era
pálido, a boca parecia se contorcer num sorriso suave, os olhos irradiavam
celeste devoção – foi logo pregando do jeito que estava, com essas
expressões faciais, as mãos suavemente unidas.
E, quando começou, que voz, que expressão! – No início lento e solene,
e depois fluindo cada vez mais rápido: assim que entrava intimamente na
matéria, o fogo da eloquência começava a brilhar em seus olhos, a respirar
em seu peito, a faiscar até na pontinha de seus dedos. Tudo nele se
movimentava; graças ao semblante, à atitude e aos gestos, sua expressão
ultrapassava todas as regras da arte e mesmo assim era natural, bela,
arrebatadora.
Não havia pausa no jorro poderoso de seus sentimentos e ideias; a
palavra seguinte sempre pronta a irromper antes que a anterior estivesse
completamente dita; como uma onda traga a seguinte na preamar, cada
nova sensação se perdia imediatamente naquela que a seguia, mas esta
representava sempre apenas a evocação viva da anterior.
Sua voz assemelhava-se à de um claro tenor que conservava o volume
mesmo nos tons mais altos; o tom de um metal puro que vibrava por todos
os nervos. Guiando-se pelo Evangelho, falava contra a injustiça e a
opressão, contra a opulência e o esbanjamento; e, no mais alto fogo de
entusiasmo, por fim, chamando-a pelo nome, se dirigia à cidade
voluptuosa e luxuriosa, cujos moradores em sua maior parte reuniam-se
naquela igreja; revelava seus pecados e delitos; recordava-lhes os tempos
da guerra, o cerco da cidade, o perigo geral pelo qual a necessidade havia
transformado todos em iguais, em que havia imperado a harmonia
fraterna; em que os moradores opulentos, em lugar de suas mesas agora
gementes sob o peso das iguarias, eram ameaçados pela fome e a carestia,
e, em vez das pulseiras e joias, viviam sob a ameaça dos grilhões – Anton
acreditava estar ouvindo um dos profetas que puniam com fervor santo o
povo de Israel e invectivava contra os crimes da cidade de Jerusalém.
Anton saiu da igreja e foi para casa sem dizer uma palavra a August;
mas a partir daí, por onde fosse e onde estivesse, não pensava em nada a
não ser no pastor P. De noite ele sonhava com o pastor e de dia falava
sobre ele; sua imagem, seu rosto e cada um dos seus movimentos tinham
se impregnado bem fundo na alma de Anton. – Cardando lã na oficina e
lavando chapéus, ele se ocupou durante toda a semana com os
encantadores pensamentos da pregação do pastor P., repetindo milhares
de vezes para si cada expressão que o comovera ou que o levara às
lágrimas. Sua imaginação criou então a antiga igreja majestosa e a
multidão atenta e a voz do pregador, que agora soava ainda mais
celestialmente em sua fantasia. – Ele contava as horas e os minutos até o
domingo seguinte.
E o domingo chegou; e se houve algo que causou uma impressão
inextinguível na alma de Anton foi a pregação que ouviu naquele dia. – O
número de pessoas era, tanto quanto possível, maior do que no domingo
anterior. – Antes da pregação, cantou-se um breve cântico que continha as
palavras do Salmo:
Quem, Senhor, habitará na Tua tenda? quem morará no Teu santo monte?
Aquele que anda irrepreensivelmente e pratica a justiça, e do coração fala a verdade;
que não difama com a sua língua, nem faz mal ao seu próximo, nem contra ele aceita
nenhuma afronta;
aquele a cujos olhos o réprobo é desprezado, mas que honra os que temem ao Senhor;
aquele que, embora jure com dano seu, não muda;
que não empresta o seu dinheiro a juros, nem recebe peitas contra o inocente. Aquele que
assim procede nunca será abalado.[9]
Essas palavras, ditas com pausas mais frequentes e com o páthos mais
sublime, tiveram um efeito incrível. Quando o pastor terminou, todos
respiraram aliviados; limparam o suor da testa. – E então a natureza do
perjúrio foi investigada, suas consequências postas sob uma luz terrível,
cada vez mais terrível. O trovão caiu sobre a cabeça do perjuro, a perdição
se aproximou dele como um homem armado, o pecador estremeceu no
mais fundo de sua alma – ele gritou: “Que suas montanhas caiam sobre
mim, e que suas colinas me cubram!”. – O perjuro não merecia compaixão,
ele fora aniquilado perante a ira do Eterno. –
Nesse ponto silenciou, exaurido – um terror pânico dominou todos os
ouvintes. – Anton percorreu num rápido cálculo os anos de sua vida para
saber se não era culpado de algum perjúrio.
Mas então teve início o consolo – seriam anunciados a graça e o perdão
ao desesperado – desde que pagasse dez vezes o que arrancou de viúvas e
órfãos; desde que, ao longo da vida, procurasse lavar de novo sua culpa
com lágrimas de arrependimento e boas ações.
A graça não era simplesmente dada ao criminoso; era preciso alcançá-
la com prece e lágrimas. E agora era como se ele quisesse alcançá-la pela
própria prece e lágrimas diante de todos, diante de Deus, colocando-se ele
mesmo no lugar do pecador de alma arrependida. –
Ao desesperado, é dito: “Ajoelha-te no pó e nas cinzas, até que teus
joelhos fiquem feridos, e fala: ‘Eu pequei no céu diante de Ti!’” – cada
período começava com um “Eu pequei no céu diante de Ti!”, e depois
vinha a confissão nesta ordem: oprimi viúvas e órfãos; tomei dos fracos
seu único esteio, dos famintos, seu pão – e assim se passava o registro
completo dos sacrilégios. – E cada período se encerrava assim: “Senhor, é
possível que eu ainda encontre a graça!”. –
Todos os presentes se esvaíram em lágrimas e melancolia. O refrão dito
a cada período teve um efeito incrível – era como se a cada vez a emoção
recebesse uma nova descarga elétrica, reforçando-a até o mais alto grau. –
Por fim, até mesmo a exaustão resultante, a rouquidão do orador (era
como se gritasse a Deus pelos pecados do povo), contribuiu para a comoção
geral contagiante que a pregação causou; não havia ali criança que não
tivesse suspirado e chorado junto.
Três terços de hora já tinham se passado como minutos – de repente,
ele se deteve e, após uma pausa, concluiu com o mesmo verso que havia
começado. – Com voz cansada e abafada, leu então a confissão pública, a
confissão dos pecados e o subsequente anúncio do perdão dos pecados; a
seguir, orou pelos que quisessem comungar, ele mesmo também
comungou, e deu em seguida a bênção de mãos abertas. – Nessa leitura, a
voz mais baixa, em comparação ao tom dominante da pregação, soava
muito mais solene e comovente.
Anton não saiu da igreja, primeiro precisava ver o pastor P. comungar.
– Cada passo dele lhe era sagrado. Com uma espécie de veneração, pisou o
lugar por onde sabia que o pastor P. tinha passado. O que não teria dado
para estar com o pastor na comunhão! Viu então o pastor P. ir para casa
junto com o filho, um garoto de 9 anos – Anton teria dado sua existência
inteira para ser esse filho felizardo. – Quando via o pastor P. caminhar
pela rua com os paroquianos que o rodeavam por todos os lados, e
agradecer cordialmente aos que o cumprimentavam, era como se
distinguisse certo brilho em torno de sua cabeça e avistasse um ser sobre-
humano caminhando por entre os mortais – seu maior desejo era, tirando
seu chapéu, atrair para si um olhar do pastor. – E, quando conseguiu isso,
voltou correndo para casa a fim de guardar, por assim dizer, aquele olhar
em seu coração.
Na tarde do domingo seguinte, o pastor P. pregou sobre o amor ao
próximo, e, se sua pregação contra o perjúrio comovera bastante a alma,
esta tocou-a com mais suavidade; as palavras fluíam de seus lábios como
mel, cada movimento era diferente, todo o seu ser parecia transformado
conforme o tema que pregava. E não havia ali a menor afetação. Era-lhe
natural se envolver com todos os pensamentos e sentimentos que o tema
do discurso suscitava.
Naquela manhã, Anton ouvira, com espantoso tédio, o outro pregador
dessa igreja – algumas vezes sentia raiva dele, quando tudo sugeria que
iria dizer amém e em seguida começava de novo no mesmo tom. Mas
agora mais do que nunca o martírio de Anton era maior do que quando
ouvia uma daquelas pregações entediantes, pois não podia evitar
estabelecer constantemente comparações com a pregação do pastor P.
depois que as imaginara como o ideal supremo, inatingível por qualquer
outra pessoa.
Quando a pregação da manhã terminou, era a vez de o pastor P.
celebrar a consagração da comunhão, que Anton ouviu pela primeira vez
dele – e que figura venerável! Estava em pé no fundo da igreja, diante do
grande altar, e cantou as palavras: “Agradeçam ao Senhor, pois Ele é
atencioso e Sua bondade dura eternamente” – com uma voz que se erguia
ao céu e uma expressão tão poderosa que Anton acreditou por um
momento estar alçado a regiões elevadas – para ele era como se tudo
acontecesse atrás de uma cortina, num santuário, onde seus pés não
tinham permissão para se aproximar – como ele invejava os fiéis que
pisavam o altar e podiam receber a comunhão das mãos do pastor P.! –
Uma moça bem jovem, vestida de preto, de face pálida e fisionomia
repleta de devoção celeste, subiu ao altar, deixando no coração de Anton
uma impressão que ele até então desconhecia. Nunca mais voltou a vê-la,
mas a imagem dela jamais se apagou de sua alma.
Agora sua imaginação se divertia de outra forma. – A ideia da
comunhão o acompanhava de quando ia dormir à hora em que se
levantava, ocupando todo o seu dia quando se encontrava só no trabalho;
assim, o pastor P. pairava sempre em sua mente com sua voz suave e
encorpada e seus olhos erguidos ao céu, que pareciam iluminar mais do
que uma devoção terrena. Às vezes, a imagem da jovem vestida de preto,
de face pálida e fisionomia repleta de devoção, também se impunha em
sua imaginação.
Essas coisas todas deixavam sua imaginação tão entusiasmada que ele
se consideraria a pessoa mais feliz do mundo se pudesse comungar no
domingo seguinte. Prometia a si mesmo uma consolação tão celestial e
sobrenatural ao desfrutar a comunhão que antecipadamente já vertia
lágrimas de alegria; ao mesmo tempo sentia certa compaixão suave e
tranquilizante para consigo mesmo, que lhe atenuava todas as coisas
amargas e desagradáveis de sua situação, quando refletia que, mesmo
como aprendiz de chapeleiro, ninguém poderia lhe roubar essa
consolação. Ele se propôs a comungar no mínimo a cada catorze dias,
assim que estivesse preparado – e nesse desejo se insinuava muito
discretamente a esperança de que, ao comungar com certa frequência,
talvez o pastor P. pudesse finalmente reparar nele: era sobretudo esse
pensamento que trazia uma doçura indizível a essas imagens. Assim, aqui
também a vaidade lhe tramava uma cilada onde talvez menos se
suspeitava.
Ele não podia acreditar que permaneceria desconhecido e ignorado
como era agora. Segundo certas ideias romanescas que pusera na cabeça,
haveria de calhar que um dia algum homem nobre o encontraria na rua e
perceberia nele algo que lhe chamaria atenção, e então tomaria Anton sob
seus cuidados. Para ele, a primeira coisa que despertaria a atenção era
certo semblante taciturno e melancólico, que assumiu com esse propósito.
Por isso, muitas vezes ainda fingia possuí-lo no mais alto grau, como se lhe
fosse natural. Quando a fisionomia de algum homem distinto lhe inspirava
confiança, ele frequentemente estava já quase a ponto de abordá-lo, de
dirigir-lhe a palavra e lhe revelar sua situação – mas sempre o intimidava
o pensamento de que esse homem distinto pudesse talvez tomá-lo por um
tolo.
Quando caminhava pela rua, por vezes também cantava, com certa voz
de lamento, alguns cânticos de Madame Guyon que sabia de cor e nos
quais acreditava encontrar alusões ao seu destino; pensava que, como nos
romances às vezes uma música de lamento entoada por alguém realiza
prodígios, talvez ele também conseguisse dar outro rumo ao seu destino,
atraindo para si a atenção de algum filantropo.
Quanto ao pastor P., sua admiração por ele era tão grande que não
teria se atrevido a lhe dirigir a palavra. Quando ele se aproximava, Anton
estremecia como se estivesse ao lado de um anjo.
Não conseguia imaginar, ou então procurava intencionalmente evitar
o pensamento, que o pastor P. se levantava, ia dormir, realizava todas as
ações naturais como os demais seres humanos. Visualizar o pastor de
pijama e touca de dormir lhe era completamente impossível – ou, antes,
ele fugia desse pensamento como se uma fissura se produzisse em sua
alma. Em especial a imagem da touca de dormir era para ele algo
completamente insuportável, sempre que lhe ocorria pensar nela
associada ao pastor P. era como se entrassem em desarmonia em todas as
imagens restantes.
Certa vez, porém, calhou de Anton se encontrar em pé na porta da
igreja quando o pastor P. entrava e disse em baixo-alemão para o sacristão
que mais tarde ainda teriam de batizar uma criança.
Se alguma vez um contraste provocou um efeito intenso na alma de
Anton, foi esse – aquele homem, que ele jamais imaginara senão com
aquela maneira solene e desconcertante de se dirigir à assembleia do
povo, ele o ouvia agora falando em baixo-alemão com o sacristão, como se
fosse um simples artesão, sobre um assunto tão solene como o de um
batismo; e falava num tom nada solene, com o qual se diria a alguém para
não se esquecer de trazer a bacia.
Esse único incidente acarretou de certo modo a diminuição da idolatria
de Anton pelo pastor P. Ele passou a idolatrá-lo menos e a amá-lo mais.
No entanto, ele havia retirado totalmente do pastor P. seu ideal de
bem-aventurança. Não conseguia pensar em nada mais sublime ou
estimulante que poder falar em público diante do povo tal como o pastor
P. e, em seguida, como ele, tratar às vezes a cidade pelo nome. Em especial,
esse último tratamento significava para ele algo de grande e patético – de
modo que com frequência, durante o dia todo, ocupava incessantemente
seu pensamento com isso –, e até mesmo quando por acaso precisava
atravessar a rua para pegar uma cerveja, e via alguns jovens brigando, não
conseguia se abster de repetir na mente as palavras do pastor P. e de
alertar a cidade inescrupulosa de sua perdição, ao mesmo tempo que
erguia o braço, ameaçando. – Por onde passava e parava, arengava em
pensamento a si mesmo e, quando ficava impulsivo, fazia a pregação
contra o perjúrio.
Assim, durante algum tempo ele pairou nesses agradáveis devaneios,
que o faziam praticamente se esquecer por completo de que estava a
cardar lã na sala gelada, a lavar chapéus no gelo, e da falta de sono,
quando muitas vezes tinha de varar noites em vigília. Enquanto
trabalhava, as horas muitas vezes fugiam dele, como minutos, contanto
que conseguisse se imaginar dentro do caráter de um orador público.
Mas ou a tensão não natural de suas forças anímicas ou o grande
esforço, para sua idade, de seu corpo no trabalho acabou por derrubá-lo –
ele ficou gravemente doente. Seu tratamento não foi o melhor. Com febre,
delirava e permanecia deitado sozinho por dias inteiros, sem que alguém
cuidasse dele.
Mas, por fim, sua natureza sadia triunfou: ele se restabeleceu. Mesmo
assim, restaram ainda certa indolência e desânimo da doença – e o
filantrópico sr. L. quase provocou nele uma recaída mortal com uma de
suas leves advertências.
Certo dia, ao entardecer, L. tomava um banho quente de ervas num
aposento escuro e isolado, e Anton deveria ficar à sua disposição. Como
estava suando no banho e sentindo muito medo, disse a Anton com uma
voz que penetrava até os ossos: “Anton! Anton! Tome cuidado com o
inferno!” – e então olhou petrificado para um canto.
Anton tremeu ao ouvir essas palavras, e um arrepio instantâneo lhe
percorreu o corpo inteiro. Todo o terror da morte o invadiu – pois não
duvidou nem um pouquinho de que L., naquele momento, tivera uma
visão que lhe indicava a morte de Anton; e foi o que o levou a soltar o
temido grito: “Tome cuidado, hein! Tome cuidado com o inferno!”.
Após o grito, L. saiu de repente do banho, e Anton teve de iluminar o
caminho até sua alcova. Caminhava à frente com os joelhos tremendo: e,
quando o deixou, L. parecia estar mais pálido que a morte.
Se alguma vez houve alguém que rezou para Deus com verdadeira
devoção e veemência, foi Anton; assim que se encontrava sozinho, ele se
jogava num barracão encostado à oficina, não de joelhos, mas de cara
voltada para o chão, e suplicava a Deus por sua vida, pedia-lhe, como um
desgraçado já condenado, apenas um prazo de conversão, se tivesse de
morrer – pois ele se lembrou de que percorrera mais de vinte vezes as
ruas, pulara e sorrira maldosamente – e todos os martírios do inferno
estavam sobre ele, martírios que eternamente haveria de suportar. –
“Tome cuidado, hein! Tome cuidado com o inferno!”, zumbia ainda em
seus ouvidos como se um espírito saído do túmulo tivesse lhe gritado essas
palavras – e continuou rezando hora após hora, só pararia no meio da
noite ao perceber um alívio de sua angústia – mas como seu peito
expelisse um suspiro angustiado após outro, até que enfim lhe vieram as
lágrimas, era como se Deus tivesse atendido a seu pedido – e Deus preferia,
como antes com os ninivitas, desonrar um profeta a deixar sua alma se
perder. – Anton tinha afastado sua febre com reza, mas ela provavelmente
voltaria se espíritos irritados não encontrassem essa saída. Muitas vezes
uma exaltação, um delírio, cura o outro – os diabos são exorcizados por
Belzebu.
Após esse esgotamento, Anton acordou na manhã seguinte revigorado
pelo sono tranquilo – mas o pensamento da morte também despertou.
Acreditou que, quando muito, lhe seria dado um pequeno prazo para a
conversão, e por isso teria de se apressar bastante se ainda quisesse salvar
sua alma.
Fez o mais que pôde; rezava durante o dia inumeráveis vezes,
ajoelhado num canto, e conseguiu assim se imbuir de tal convicção da
graça divina e de tamanha alegria da alma que muitas vezes acreditou já
estar no céu, e de vez em quando desejava a morte antes que pudesse ser
afastado novamente desse bom caminho.
Mas, apesar de todas essas extravagâncias de sua fantasia, a natureza
não deixou de observar o momento certo de regressar – e o amor natural
pela vida, o amor pela vida mesma, despertou de novo na alma de Anton. –
É claro que nessa circunstância o pensamento de sua morte iminente era
muito triste e desagradável, e ele considerava esses momentos como
aqueles em que novamente era afastado da graça divina, caindo em novo
medo, porque não lhe era possível reprimir a voz da natureza dentro de si.
Ele sentia agora em dobro todas as tristes consequências da
superstição que lhe tinham incutido desde sua mais tenra infância – os
seus sofrimentos podem ser chamados literalmente de sofrimentos da
imaginação – para ele, de fato, foram sofrimentos reais, que lhe roubaram a
alegria de sua juventude. –
Sabia por sua mãe que um sinal certo da proximidade da morte ocorre
quando alguém lava as mãos e elas não soltam mais vapor – então ele
sempre se via morrendo ao lavar as mãos. – Tinha escutado que, quando
um cão uiva na casa com o focinho virado para a terra, está farejando a
morte de um ser humano – assim cada uivo de um cão profetizava sua
morte. Quando uma galinha cantava como galo, era um sinal inequívoco
de que em breve alguém morreria na casa – e justo naquele momento uma
dessas galinhas que pressagiavam infortúnios andava em volta do quintal,
cantando artificialmente, sem parar, como um galo. Para Anton, nenhum
sino da morte soava tão amedrontador como esse canto; e essa galinha lhe
deu mais horas sombrias em sua vida do que qualquer adversidade que já
sofrera.
Quando a galinha ficava quieta alguns dias, ele muitas vezes
recuperava o consolo e a esperança na vida – tão logo se podia ouvi-la
novamente, todas as suas lindas esperanças e projetos de repente
fracassavam.
Quando ele andava às voltas com puros pensamentos de morte,
coincidiu, pela primeira vez após sua doença, de retornar à igreja onde o
pastor P. pregava. Este já estava no púlpito pregando – sobre a morte.
Aquilo caiu como um raio sobre Anton; pois certa vez aprendera,
conforme o que lhe havia sido posto na cabeça por uma especial conduta
divina, a relacionar tudo a si mesmo – a quem mais a pregação sobre a
morte se dirigia senão a ele? Um criminoso não poderia ouvir sua
sentença de morte com pavor maior do que Anton sentia ao ouvir aquela
pregação. Certamente o pastor P. aduziu razões de consolação suficientes
contra os terrores da morte, mas qual a serventia disso contra o amor
natural pela vida que prevalecia nele, apesar dos delírios que atulhavam
sua cabeça?
Foi para casa com o coração abatido e entristecido, e a pregação o
deixou melancólico por catorze dias, e, se o pastor P. soubesse que ela
surtiria o mesmo efeito sentido em Anton em mais duas pessoas, ele
provavelmente não a teria feito.
Assim, seguindo a direção peculiar dada pelos instrumentos escolhidos
pela graça divina, Anton se tornara, aos 13 anos, um completo
hipocondríaco, de quem se podia dizer literalmente que a cada momento
morria vivendo. O gozo da juventude lhe foi vergonhosamente roubado – a
graça obsequiosa lhe enlouqueceu a cabeça.
Mas a primavera chegou novamente, e a natureza, que a tudo cura,
começou também aos poucos a melhorar mais uma vez o que a graça tinha
estragado.
Anton sentiu em si mesmo uma nova força de vida; ele se lavava, e suas
mãos voltaram a soltar vapor – nenhum cão uivava mais – a galinha parou
de cantar – e o pastor P. não fez mais pregações sobre a morte. –
Anton voltou a passear sozinho aos domingos, e certa vez, sem se dar
conta, calhou de estar diante da porta da cidade na qual mais ou menos
um ano e meio antes entrara com o pai, vindo de H. Não se pôde conter e
saiu a percorrer a larga estrada real ladeada por salgueiros, por onde
outrora passara. Estranhas sensações se manifestavam em sua alma. Ao
avistar a sentinela indo e vindo lá em cima do baluarte, sua vida inteira
desde aquela época surgiu de repente em sua memória – e começou a ter
diversas ideias de como seria a aparência da cidade lá dentro, de como
fora construída a casinha de L. Era como se despertasse de um sonho – e
estivesse novamente no local onde o sonho começara –, todas as
cambiantes cenas vividas nesse um ano e meio em B. se comprimiam umas
nas outras, e as imagens isoladas pareciam diminuir segundo a maior
medida adquirida repentinamente por sua alma.
Como é poderoso o efeito da ideia do lugar à qual atamos todas as
outras. As ruas e casas isoladas, que Anton via diariamente, eram o
imutável de suas representações, às quais sempre se unia o mutável de sua
vida, e, por meio do imutável, a vida adquiria coerência e verdade e ele
diferenciava a vigília do sonho.
Na infância, é especialmente necessário que todas as outras ideias se
juntem às de lugar, pois elas, por assim dizer, têm em si mesmas ainda
pouca consistência e não conseguem ainda se manter firmes em si
mesmas.
Por isso, com frequência é realmente difícil diferenciar a vigília do
sonho na infância; e lembro que um de nossos maiores filósofos vivos me
fez sobre esse assunto uma observação bastante notável a respeito dos
anos de sua infância.
Em razão de certo péssimo hábito, bastante comum entre as crianças,
ele tinha sido castigado muitas vezes com vara. Mas sempre lhe ocorrera
um sonho bem vivo, como também é comum, em que se apoiava na parede
e… Se às vezes, durante o dia, estava realmente apoiado na parede para
esse fim, ele se lembrava então do castigo pesado sofrido tantas vezes – e
aguardava durante algum tempo antes de ousar satisfazer uma
necessidade premente da natureza, porque temia ser novamente um
sonho do qual teria mais uma vez de esperar um castigo severo – até olhar
para os lados e em seguida calcular o quanto de tempo se passara antes de
poder se convencer completamente de que não estava sonhando.
Ao despertar pela manhã, temos também o costume de por vezes
sonhar ainda um pouco, e a passagem para a vigília é feita gradualmente,
de modo que começamos primeiro a nos orientar e, quando de repente
sentimos o raio da manhã pela janela, todo o resto se organiza pouco a
pouco por si mesmo.
Por isso era tão evidente que Anton, mesmo depois de estar já havia
algumas semanas em B., na casa de L., acreditasse pela manhã que ainda
estava sonhando, quando já tinha realmente acordado, porque o prego no
qual, ao despertar de manhã, ele sempre atava tanto as ideias dos dias
anteriores como as de sua vida pregressa, por meio do qual elas adquiriam
coerência e verdade, tinha, por assim dizer, se deslocado; porque a ideia de
lugar não era mais a mesma.
Devemos nos espantar se a mudança de lugar frequentemente
contribui bastante para nos fazer esquecer, como se fosse um sonho,
daquilo que não gostamos de pensar ser real?
Em anos posteriores, especialmente quando já viajamos muito, esse
vínculo das ideias ao lugar se perde em outra coisa. Aonde se vai, ou
vemos tetos, janelas, portas, calçamento, igrejas e torres, ou vemos
campo, floresta, plantações ou charneca. – As diferenças salientes
desaparecem; a terra se torna igual por toda parte. –
Quando Anton caminhava pela rua em B., sobretudo à tarde, no
começo do crepúsculo, muitas vezes era como se de repente estivesse
sonhando. Além do mais, era comum isso acontecer quando caminhava
por uma rua qualquer, que lhe parecia ter uma semelhança distante com
uma rua de H. Então, por um momento, seu estado em H. novamente se
fazia presente; as cenas de sua vida se emaranhavam umas nas outras.
Em seus passeios, sempre sentia uma atração especial para conhecer os
arredores da cidade que ainda não visitara. Sua alma se alargava cada vez
mais, era como se tivesse ousado dar um pulo para fora do estreito círculo
de sua existência; as ideias cotidianas se perdiam, e perspectivas grandes e
agradáveis, os labirintos do futuro, se abriam diante dele.
Mas ele ainda não conseguira reunir num único e completo olhar sua
vida inteira em B., com todas as diversas mudanças. Todas as vezes, o
lugar onde se encontrava lhe recordava com muita força alguma parte
isolada da vida, para deixar ainda lugar para o todo em seu pensamento;
ele sempre girava com as ideias num círculo estreito de sua existência.
E para ter uma imagem clara do todo de sua vida naquele lugar era
preciso praticamente cortar todos os fios, fios que sempre prendiam sua
atenção ao aspecto momentâneo, cotidiano e despedaçado da vida; e que
ele, ao mesmo tempo, se deslocasse para o lugar de onde observava sua
vida em B., antes de seu início, quando ela ainda aparecia diante dele
como um futuro nascente.
Agora ele se encontrava na porta da cidade, o mesmo lugar por onde
havia saído casualmente e por onde havia entrado mais ou menos um ano
e meio antes, passando pela larga estrada real ladeada por salgueiros, e
avistara a sentinela indo e vindo em cima do baluarte.
Esse lugar tinha de ser exatamente aquele que, por meio da repentina
recordação de milhares de ninharias, parecia deslocá-lo outra vez
justamente para o estado em que se encontrava imediatamente antes do
começo de sua vida ali. Tudo o que estava entre os dois momentos tinha
agora de se condensar em sua imaginação como sombras misturadas umas
às outras, tornando-se semelhantes a um sonho. Pois seu atual estar ali na
ponte e olhar para o alto do baluarte, onde a sentinela estava, associavam-se
estreitamente ao seu estar ali e olhar para o alto do baluarte de um ano e
meio antes. Anton imaginava agora o passado e todas as cenas da vida que
levara em B. como, naquela época, um ano e meio antes, ele as havia
pensado como futuro, e a imagem muito viva e a rememoração do lugar
fizeram a lembrança do tempo transcorrido entre os dois momentos se
extinguir ou se atenuar – de qualquer forma, é difícil explicar de outro
modo o fenômeno daquela estranha sensação que Anton teve então, e que
cada um ao menos algumas vezes se lembrará de ter tido na vida.
Mais de dez vezes Anton esteve a ponto de não retornar à cidade, mas
de pegar o caminho à sua frente e voltar para H., se o pensamento de fome
e frio não o tivesse intimidado.
Mas daquele dia em diante ele manteve o firme propósito de não
permanecer muito mais tempo na casa de L., custasse o que custasse. Por
isso ficou mais indiferente a tudo, porque imaginava que aquilo não
duraria muito. O próprio L. começou a ficar tão farto de Anton que
finalmente escreveu para seu pai em H., dizendo-lhe que poderia vir
buscar o filho, pois não seria possível fazer mais nada com ele.
Para Anton, nada poderia ter sido tão bem-vindo quanto a notícia de
que nos dias seguintes seu pai o levaria de volta para casa. Concluiu que
seria enviado de qualquer maneira a uma escola em H. antes que o
deixassem fazer a comunhão, e nesse caso ia querer se destacar para que
prestassem mais atenção nele. Antes ele ambicionava tanto ir para B.,
agora queria voltar para H., e de novo ele se embalava em agradáveis
sonhos do futuro.
Apesar de sua difícil situação, acabou adorando tantas coisas em B. que
muitas vezes certo pesar se misturava a suas agradáveis esperanças,
mergulhando-o numa leve melancolia. – Ficava frequentemente sozinho
às margens do Oker, seguindo com o olhar, até onde sua vista pudesse
acompanhar, algum barquinho que passasse por ali – em seguida, muitas
vezes inesperadamente, era como se tivesse uma visão do futuro sombrio,
mas, quando pensava ter agarrado firme essa agradável ilusão, ela num
instante desaparecia.
Procurou então se divertir ainda uma vez em todos os arredores da
cidade, que até então tinha visitado em seus passeios dominicais,
despedindo-se com pesar deles um após outro, já esperando jamais voltar
a vê-los.
Ouviu ainda várias pregações do pastor P., das quais algumas passagens
isoladas jamais sairiam de sua memória.
Ficou extremamente comovido numa pregação sobre a paixão de Jesus
na qual o pastor P. dizia as seguintes palavras, com afeto sempre
crescente: “Pleno de compaixão, ele olha para baixo, para os seus
assassinos, e reza, e reza, e reza – Pai, perdoai-lhes, pois não sabem o que
fazem!”.
E numa pregação sobre a confissão, feita com os versículos do
evangelho sobre a cura do leproso que deveria se mostrar ao sacerdote, as
palavras dirigidas aos hipócritas que observavam minuciosamente todas
as práticas aparentes da religião, mas carregavam no peito um coração
hostil, ele iniciava cada período com: “Vinde ao confessionário e vos
mostrai ao sacerdote, mas ele não pode olhar dentro de vossos corações
etc.”. Logo também se repetia com bastante frequência uma frase na
pregação, que para Anton era excepcionalmente comovente e lhe soava
assim: Subireis às alturas. – A última palavra, a que era sempre engolida, de
modo que não conseguia entendê-la direito, soava-lhe como o alto, e essa
palavra ou esse som o comovia até as lágrimas toda vez que pensava
novamente nela.
Igualmente atraente era a expressão que ocorria muitas vezes na
pregação do pastor P. – os cumes da razão –, mas essa tinha suas causas
específicas, cuja explanação não será inútil. O coro da igreja, onde o órgão
estava e os alunos cantavam, lhe pareceu sempre algo inalcançável;
ansioso, ele olhava muitas vezes naquela direção e não desejava bem-
aventurança maior do que poder observar uma única vez a maravilhosa
estrutura do órgão e o que mais estivesse ali próximo, pois essas coisas
todas ele só podia admirar a distância. – Essa fantasia tinha parentesco
com outra que trouxera de H. – lá havia certa torre que sempre fora um
objeto de atração incomum para ele; observava-a com encanto e muitas
vezes invejava os músicos da cidade que ficavam lá em cima na galeria,
tocando de manhã e de tarde para os que estavam lá embaixo.
Podia ficar observando horas e horas essa galeria que, lá de baixo, lhe
parecia tão pequena que não alcançaria nem seus joelhos e da qual mal
sobressaía a cabeça dos músicos da cidade que ali tocavam; mas se
destacava por completo o mostrador do relógio, que, segundo várias
pessoas que haviam estado lá em cima, devia ser tão grande quanto uma
roda de carroça, mas que para ele lá embaixo não era maior que a roda de
uma carriola. – Tudo isso estimulava sua curiosidade no mais alto grau, de
modo que por dias inteiros ele muitas vezes não lidava com nada a não ser
com o pensamento e o desejo de poder observar uma vez de perto essa
galeria e o mostrador do relógio.
Agora, na torre em H., podia-se ver, pelas sineiras abertas sobre a
galeria, o balanço dos sinos; e Anton quase devorava com os olhos esse
espetáculo, para ele totalmente novo, pois via a grande máquina de metal,
a qual produzia o som que fazia vibrar tudo, subir e descer
alternadamente sob os pés de pessoas aparentemente bem pequenas que
estavam lá em cima e acionavam os sinos pisando os pedais.
Era como se ele olhasse no mais íntimo das entranhas da torre e se lhe
revelasse, mesmo a distância, a misteriosa engrenagem dos sons
maravilhosos que tantas vezes ouvira emocionado. Mas por causa disso,
em vez de se apaziguar, sua curiosidade era ainda mais estimulada – ele
tinha visto apenas metade do sino, que se erguia com sua abóbada
descomunal, e não toda a sua extensão – desde criança ouvira sobre a
grandeza do sino, e a imaginação ainda aumentava consideravelmente a
imagem em sua alma, produzindo assim as ideias mais romanescas e
exageradas.
Com a dor que sentia nos pés, com a opressão que sofria dos pais, qual
era seu consolo? Qual era o sonho mais agradável de sua infância? Qual era
seu mais ansiado desejo, que muitas vezes o fazia esquecer tudo? – O que,
senão observar de perto o mostrador do relógio e a galeria na torre da
parte nova da cidade de H., com seus sinos?
Por mais de um ano esse jogo de fantasia atenuou as horas mais
sombrias de sua vida – mas, ah, ele teve de abandonar H. sem que seu mais
ansiado desejo fosse realizado. A imagem da torre da parte nova da cidade,
porém, jamais lhe saiu do pensamento, perseguindo-o até B., e em sonhos
noturnos frequentemente lhe vinha a ideia de estar no alto da escada de
milhares de curvas labirínticas, por onde subia na torre, chegava à galeria
e apalpava com prazer indizível o mostrador, e depois não só via, próximo
de seus olhos, interiormente o grande sino como também outros
incontáveis pequenos sinos, ao lado de mais coisas maravilhosas, até
esbarrar a cabeça na borda imensa do grande sino e despertar.
Agora todas as vezes que o pastor P. falava sobre os cumes da razão
Anton pensava encantado na altura de sua querida torre, no sino dentro
dela e no mostrador do relógio – e depois no coro superior onde se situava
o órgão da igreja em B. –, depois de repente despertavam todos os seus
anseios novamente, e a expressão os cumes da razão lhe arrancava lágrimas
de melancolia.
A parte propriamente expositiva das pregações do pastor P., na qual
ele falava com velocidade espantosa, Anton a perdia porque não conseguia
acompanhá-lo de modo algum com o pensamento. Mas, depositando a
esperança na parte exortativa, ele o ouvia com prazer – como se primeiro
as nuvens se aglomerassem para em seguida irromper numa tempestade
benéfica ou numa chuva leve.
Certa vez, porém, foi à igreja com o propósito de anotar em casa a
pregação do pastor P., e de repente era como se, à medida que ouvia, sua
alma se iluminasse, sua atenção tomasse uma nova direção – antes
escutara com o coração, agora pela primeira vez escutava com o
entendimento. Ele não queria apenas ficar comovido com passagens
isoladas, mas abarcar toda a pregação, e começou então a achar a parte
expositiva tão interessante quanto a exortativa. A pregação abordava o
amor ao próximo, como os homens seriam felizes se cada um procurasse
promover o bem de todos os outros, e todos os outros, o bem de cada um.
Essa pregação, com todas as suas partes e subpartes, jamais lhe saiu da
memória, e ele a ouviu com o propósito de anotá-la, o que fez assim que
chegou em casa, e August, para quem ele a leu, ficou completamente
admirado.
A anotação dessa pregação provocara certo desenvolvimento de sua
capacidade de compreensão. Pois desde então suas ideias aos poucos
começaram a se ordenar umas às outras – aprendeu sozinho a refletir
sobre um tema –; procurava novamente expor a ordem de seus
pensamentos, e, já que não conseguia dizê-la a ninguém, escrevia
dissertações, que sem dúvida eram com frequência demasiado estranhas.
Como antes falara com Deus pessoalmente, começou então a se
corresponder com Ele e Lhe escreveu longas preces nas quais Lhe contava
sobre seu estado.
Sentiu-se impelido a escrever mais dissertações, porque lhe fazia muita
falta todo tipo de leitura – e já fazia muito tempo que L. não lhe dava mais
nenhum livro, exceto a Descrição do céu e do inferno, de Engelbrecht, um
artesão de tecidos em Winser, às margens do rio Aller, com que o havia
presenteado.
Não é possível que tenha havido pior fanfarrão no mundo do que esse
Engelbrecht, que havia realmente sido considerado morto, e que, após o
restabelecimento, fez sua velha avó crer que estivera de fato no céu e no
inferno; ela continuou contando a história e assim nasceu o divertido
livro.
O sujeito não tinha vergonha de afirmar que flutuara no mais fundo do
céu com Cristo e os anjos de Deus, e lá pegou o Sol com uma das mãos e a
Lua com a outra, e contou as estrelas do céu.
Não obstante, suas comparações por vezes eram bastante ingênuas –
ele comparou, por exemplo, o céu a uma deliciosa sopa de vinho, da qual
se provaram na terra apenas algumas poucas gotas e que se podia tomar
com colher – e afirmava que a música celestial era superior à terrestre
assim como um lindo concerto comparado à monotonia de uma gaita de
foles ou ao apito de uma corneta de guarda-noturno.
E prosseguia assim, se vangloriando das inúmeras honras recebidas no
céu.
Por falta de alimento melhor, a alma de Anton teve de se contentar
com essa refeição rala, ao menos assim sua imaginação ficava ocupada –
seu entendimento permanecia, por assim dizer, neutro –, ele nem
acreditava nem duvidava daquilo; apenas imaginava tudo com vivacidade.
Enquanto isso, o desdém e o ódio de L. direcionados a Anton
frequentemente acabavam em reprimendas e sovas; ele atormentou a vida
de Anton da maneira mais cruel; delegava-lhe os trabalhos mais baixos e
humilhantes. – Mas nada foi mais ofensivo para Anton do que quando teve
de carregar um peso em suas costas pela primeira vez na vida, um cesto
com chapéus empacotados, pela rua pública, enquanto L. ia à sua frente –
para ele, era como se todas as pessoas na rua o estivessem observando.
Todo o peso que conseguia levar diante de si, ou sob os braços, ou nas
mãos, lhe parecia muito honroso para acreditar que o desonrava. – Mas
ter de caminhar curvo, com a nuca vergada ao jugo como um animal de
carga, enquanto seu dono orgulhoso caminhava à sua frente, isso ao
mesmo tempo abatia todo o seu ânimo e tornava o peso milhares de vezes
mais pesado. Acreditava que tinha de afundar na terra tanto de cansaço
como de vergonha, antes de chegar com seu fardo a determinado lugar.
Esse lugar era o arsenal onde eram entregues os chapéus solicitados
pelo serviço militar. – Anton não desejara ver os sinos e o mostrador do
relógio da torre da parte nova da cidade em H. mais ardentemente do que
ver esse arsenal por dentro, diante do qual passara tantas vezes sem poder
saciar essa vontade. Mas ter conseguido ver o arsenal nesse estado
estragou seu prazer.
Carregar aquele peso nas costas debilitou seu ânimo mais do que
qualquer humilhação que já sofrera e mais do que as reprimendas e as
sovas de L. Era como se ele não pudesse se rebaixar mais; olhava a si
mesmo quase como uma criatura desprezível e descartável: era uma das
situações mais cruéis de toda a sua vida, da qual se recordava de modo
intenso sempre que posteriormente via um arsenal, cuja imagem de novo
crescia logo que ouvia a palavra subjugar.
Quando algo assim acontecia, ele procurava se esconder de todas as
pessoas; cada som de alegria o repugnava; corria para o lugarzinho atrás
da casa, às margens do rio Oker, e muitas vezes olhava melancólico por
horas e horas a correnteza do rio. – Se alguma voz humana o alcançava ali,
vinda de uma das casas vizinhas, ou ele ouvia cantar, sorrir ou falar, era
como se o mundo lhe desse uma risada sardônica, de tão desprezível e
aniquilado ele se achava desde que curvara sua nuca sob o jugo de um
cesto.
Para ele, era uma espécie de deleite soltar junto uma gargalhada
sarcástica quando, em sua lúgubre fantasia, ouvia os outros gargalhando
dele – numa dessas horas terríveis em que, cheio de desespero, desatou
numa risada sarcástica, o desgosto pela vida se tornou tão forte que a
fraca tábua em que estava começou a tremer e a balançar. Seus joelhos
não o sustentavam mais; ele caiu na correnteza do rio – August foi seu
anjo da guarda; havia já algum tempo ele estava atrás dele sem ser
percebido e o puxou pelo braço, tirando-o dali. Entretanto, mais pessoas
haviam chegado – a casa inteira acorreu ao local, e daquele momento em
diante Anton foi considerado uma pessoa perigosa que precisava ser
arredada da casa assim que possível. L. imediatamente escreveu relatando
o ocorrido para o pai de Anton, que chegou a B. catorze dias depois, com a
alma completamente desanimada, a fim de levar de volta a H. seu filho
desnaturado, em cujo coração, segundo julgamento do sr. de F., Satã
construíra um templo indestrutível.
Anton ainda permaneceu alguns dias com o chapeleiro L., e durante
esse tempo, na companhia do pai, resolveu, ainda com zelo redobrado,
todos os seus negócios e procurou nisso tranquilidade para finalizar tudo
o que estava ao alcance de suas forças. Em pensamento, ele se despediu da
oficina, da sala de secagem, do chão de madeira e da igreja de B. – e sua
ideia mais agradável era poder contar à mãe sobre o pastor P. quando
chegasse a H.
Quanto mais se aproximava a hora da despedida, mais leve ficava seu
coração. Em breve sairia de sua situação estreita e opressiva. O amplo
mundo se abria novamente diante dele.
Com August, a despedida foi terna, com L., gélida – era uma tarde de
domingo, com céu nublado, e Anton saiu da casa de L. novamente
acompanhado pelo pai – contemplou mais uma vez a porta preta com
grandes pregos e, confiante, lhe deu as costas para sair mais uma vez
caminhando pela porta da cidade, diante da qual fizera havia pouco tempo
um passeio interessante. Os altos baluartes da cidade e a torre da igreja de
Santo André sumiram rapidamente de seu campo de visão, e ao longe viu,
no escuro entardecer, apenas o Brocken coberto de neve desaparecendo
por entre densas nuvens que pairavam sobre ele.
O coração de seu pai estava frio e fechado para ele; pois o observava
totalmente com os olhos do chapeleiro L. e do sr. de F., como aquele em
cujo coração Satã ergueu seu templo – no caminho, falou-se pouco, mas
continuaram caminhando sempre mais silenciosos, e Anton mal se deu
conta da extensão do caminho, de tão agradável era a conversa com os
próprios pensamentos – quando revisse a mãe e os irmãos, poderia contar
a eles sua sina.
As quatro lindas torres de H. enfim sobressaíram – e, como um amigo
que revemos após uma longa separação, Anton observou a torre da parte
nova da cidade e de repente despertou novamente seu amor pelo sino.
Ele se viu outra vez do lado de dentro das muralhas de H. e tudo lhe era
novo – seus pais haviam se instalado em outra residência, pequena e
escura, numa rua isolada, e enquanto subia as escadas aquilo tudo lhe era
estranho como se fosse impossível fazer parte daquela família.
Mas, se o comportamento do pai com ele fora tão frio e desanimador, a
alegria da mãe e dos irmãos foi tão ruidosa e explosiva que eles correram
em sua direção, olhando atentamente suas mãos rachadas de frio, e pela
primeira vez sentiram pena dele.
Quando, no dia seguinte, ele visitou todos os lugares conhecidos em
que costumava brincar – era como se tivesse envelhecido nesse meio-
tempo e quisesse agora recordar os anos de sua juventude –, topou com
uma trupe de antigos colegas de escola e companheiros de brincadeira,
que lhe apertaram a mão e se alegraram com seu retorno.
Assim que ficou sozinho com sua mãe, o que ele poderia ter feito senão
lhe contar sobre o pastor P.? – De qualquer modo, ela tinha uma
veneração ilimitada por aquilo que dizia respeito aos sacerdotes e pôde
muito bem simpatizar com Anton em seu sentimento pelo pastor P. – Ah!,
mas que horas bem-aventuradas não foram aquelas em que Anton pôde
verter seu coração e falar horas a fio sobre o homem por quem, de todos
os homens da terra, tinha o maior amor e respeito.
Ouviu então os pregadores de H., mas que distância! Entre todos não
encontrou nenhum pastor P., exceto um de nome N., que, quando falava
com intensa emoção, assemelhava-se um pouco. –
Nenhum pregador podia receber a aprovação de Anton se não falasse
ao menos tão rápido quanto o pastor P. – e se o pregador é considerado
orador, tenho minhas dúvidas se Anton estaria totalmente errado. – O
professor tem de falar devagar, o orador, rápido. O professor deve
iluminar gradualmente o entendimento, o orador, penetrar
irresistivelmente o coração. Com o entendimento é preciso proceder
devagar, com o coração, rápido, quando se quer não errar a finalidade – é
claro que ele sempre será um péssimo professor se não for às vezes um
orador, e será um péssimo orador se não for às vezes professor – mas,
quando Fox[10] fala no Parlamento inglês, sobrevém uma velocidade que
não há igual, e nessa impetuosa corrente ele leva tudo consigo,
comovendo a alma de seus ouvintes como o pastor P. fez em sua pregação
sobre o perjúrio.
Num domingo, Anton ouviu com a maior má vontade um pregador de
nome M. pregar na igreja G., em H., porque, não tendo também a menor
semelhança com o pastor P., era praticamente o contrário dele no que
concerne à fala, um pouco lenta e acomodada. Ao chegar em casa, Anton
não conseguiu se conter e desabafou com a mãe o ódio que nutria por esse
pregador – mas que espanto não sentiu quando sua mãe lhe disse que teria
de ir às aulas de religião, confessar e comungar justamente com ele,
porque era seu confessor e ela pertencia à sua paróquia.
Quem diria que Anton um dia poderia amar esse homem pelo qual ele
antes experimentara uma aversão irresistível, que um dia esse homem se
tornaria seu amigo e benfeitor?
Ocorreu, no entanto, um incidente que deixou a alma de Anton, já
inclinada à melancolia, num humor ainda mais soturno: sua mãe estava
com uma doença mortal e durante catorze dias correu perigo de vida. –
Não é possível descrever o que Anton sentiu nessa situação. – Era como se
ele mesmo morresse em sua mãe, tão intimamente sua existência estava
entrelaçada à dela. – Muitas vezes, chorava noites inteiras quando ouvia o
médico dizer que perdera a esperança na recuperação. – Era como se não
lhe fosse verdadeiramente possível suportar a perda da mãe. – O que era
evidente, pois fora abandonado por todos, e só se encontrou novamente
no amor e na confiança dela.
O pastor M. chegou e administrou a comunhão à mãe de Anton – agora
ele acreditava que não havia mais esperança e estava inconsolável –
suplicou a Deus pela vida dela e lhe ocorreu pensar no rei Ezequias, que
recebeu um sinal de Deus de que seu pedido tinha sido atendido e sua vida,
prolongada.
Anton agora procurava também por um sinal desses; será que a sombra
não recuaria no muro do jardim? – e a sombra finalmente pareceu recuar,
pois uma fina nuvem passara diante do sol. Ou sua fantasia fez essa
sombra recuar – mas daquele momento em diante teve uma nova
esperança; e sua mãe começou realmente a se recuperar. Ele também
voltou a viver – e fez de tudo para ser amado pelos pais. Mas com seu pai
não deu certo; este, desde que fora buscar Anton em B., dispensava-lhe um
ódio amargo e implacável, que ele o fazia sentir a cada ocasião – cada
refeição lhe era cobrada, e Anton teve muitas vezes de comer seu pão
literalmente com lágrimas.
Seu único consolo nessa situação eram os passeios só com seus dois
irmãos, com os quais fazia verdadeiras caminhadas pelos baluartes da
cidade, fixando sempre um destino, o que tornava o passeio, por assim
dizer, uma viagem.
Essa era sua atividade preferida desde a mais tenra infância e, quando
ainda mal conseguia andar, já fixava como tal destino a esquina da rua
onde seus pais moravam, limite de suas pequenas caminhadas.
Transformava em montanha o baluarte que escalava, em floresta os
arbustos através dos quais abria trilhas, e em ilha um morrinho de terra
nas valas da cidade; e assim ele e os irmãos, num perímetro de menos de
cem passos, empreendiam frequentemente várias viagens de muitas
léguas – eles se perdiam e erravam na floresta, escalavam penhascos altos
e chegavam a uma ilha inabitada – em suma, com os irmãos, ele realizava
seu mundo romanesco da melhor forma que podia.
Em casa, inventava todo tipo de brincadeiras com os irmãos, muitas
vezes arriscadas – cercou cidades, conquistou as fortalezas construídas
com os livros de Madame Guyon, atirando nelas castanhas selvagens como
bombas. Por vezes, também pregava, e seus irmãos eram obrigados a ouvi-
lo. Na primeira vez, ele construíra um púlpito com as cadeiras, e os irmãos
se sentavam no escabelo diante dele; ficou muito emocionado – o púlpito
desabou, e ele caiu com a cadeira em que estava sobre a cabeça de seus
irmãos. A gritaria e a confusão foram gerais – nisso seu pai entrou e
começou a repreendê-lo energicamente pela pregação. A mãe de Anton
chegou e quis arrancá-lo das mãos do pai; como não conseguiu, sua ira
tomou direção totalmente contrária, e ela começou também a bater com
todas as suas forças em Anton, a quem todas as súplicas e pedidos de nada
ajudaram. Jamais uma pregação ocorreria de maneira tão desastrada como
essa primeira que Anton fez em sua vida. Mesmo em sonho, as lembranças
desse acontecimento frequentemente o deixavam aterrorizado.
Mas isso não o desencorajou, passou a subir com ainda mais frequência
em seu púlpito e lia toda a pregação escrita, com evangelho, tema e
divisões. Pois, desde que começara a copiar pela primeira vez a pregação
do pastor P., havia ficado ainda mais fácil ordenar seus pensamentos e
estabelecer certa ligação entre eles.
Agora não passava um domingo sem copiar uma pregação, e com isso
logo adquiriu tal destreza que era capaz de completar de memória o que
estava faltando, conseguindo passar inteira para o papel uma pregação
que ouvira e da qual copiara o principal.
Anton estava com 14 anos nessa época; e era necessário que, para ser
confirmado ou aceito no seio da Igreja cristã, frequentasse por um tempo
alguma escola na qual fossem ministradas aulas de religião.
Havia então em H. um instituto no qual jovens eram formados como
futuros mestres-escola de pequenos povoados, associado também a uma
escola livre que auxiliava os futuros professores na prática de aulas. Essa
escola, portanto, existia realmente mais em função dos professores do que
os professores em função dela – como os alunos não precisavam pagar
nada, esse estabelecimento era um abrigo para os pobres que lá podiam
levar suas crianças para ter aulas sem pagar nada; e, como não estava tão
disposto a gastar muito com o filho arruinado e excluído da graça divina, o
pai de Anton o levou enfim até lá, onde ele viu de repente se abrir diante
de si uma carreira inteiramente nova.
Foi uma visão solene para Anton, pois logo na primeira aula da manhã
viu todos os futuros professores reunidos com alunos e alunas numa
classe. – O padre que era inspetor dessa instituição catequizava os alunos
todas as manhãs, e a catequese devia servir de modelo aos professores. –
Estes ficavam todos sentados às mesas para anotar as perguntas e as
respostas, enquanto o inspetor ia de um lado para outro, perguntando.
Numa das aulas da tarde, um dos professores tinha de repetir com os
alunos, na presença do inspetor, a catequese que este havia proferido de
manhã.
Copiar tinha já se tornado uma coisa muito fácil para Anton, e, quando
à tarde o professor repetiu a lição da manhã, Anton, mesmo em pé, a tinha
copiado muito melhor em sua lousa do que o professor e, assim, conseguiu
naturalmente responder mais do que este lhe perguntava, o que pareceu
despertar um pouco a atenção do inspetor, deixando Anton extremamente
lisonjeado.
Mas, para que não ficasse envaidecido de seu êxito, o dia seguinte lhe
preparava uma humilhação que praticamente superava aquela em B.,
quando pela primeira vez teve de caminhar com o cesto nas costas.
Na segunda aula da manhã seguinte, havia um exercício de soletração
em que um dos meninos tinha de soletrar uma sílaba sozinho e gritar, e
depois todos os outros, feito uma só boca, tinham de repetir em voz alta.
Essa gritaria zumbindo nos ouvidos e o exercício inteiro pareciam algo
maluco e vertiginoso a Anton, e ele muito se envergonhava de ter de
recomeçar a aprender a soletrar, pois se gabava de já conseguir ler com
estilo – mas logo chegou sua vez de gritar, pois aquilo corria rápido como
um rastilho; e ele ficou sentado e estacou, e de repente toda a bela música
saiu do compasso. – “Agora continue!”, disse o inspetor e, como não houve
prosseguimento, olhou para Anton com um olhar de extremo desprezo,
dizendo: “Garoto idiota!”, e mandou o seguinte continuar soletrando.
Naquele momento Anton acreditou estar aniquilado; de repente, se viu
profundamente rebaixado na opinião de um homem com cuja aprovação
havia contado muito, e que presumia agora que ele não era nem mesmo
capaz de soletrar.
Se em B. seu corpo havia sido subjugado pelo peso que teve de
carregar, muito mais o era agora seu espírito, abatido pelo peso com que
as palavras do inspetor caíram sobre ele: Garoto idiota!.
Mas dessa vez valeu para ele o que se conta sobre Temístocles, que
certa vez em sua juventude também passou por uma reprimenda pública:
non fregit eum, sed erexit [11]. – Desde o dia em que sofreu essa humilhação,
ele se esforçou dez vezes mais do que antes para angariar o respeito de
seus professores, a fim de que o inspetor, que o havia julgado mal, viesse a
se envergonhar e se arrepender da injustiça que havia cometido.
Todas as manhãs, na primeira aula, o inspetor expunha
dogmaticamente os conceitos doutrinais da Igreja Luterana, com todas as
contestações, tanto dos papistas quanto dos reformistas, baseando sua
exposição na interpretação de Gesenius do Catecismo menor de Lutero – a
cabeça de Anton obviamente se encheu de coisas inúteis, mas ele
aprendeu a separar o principal do secundário, aprendeu a proceder
sistematicamente.
Seus cadernos de cópia aumentavam cada vez mais, e em menos de um
ano ele possuía uma dogmática completa com todas as provas tiradas da
Bíblia, juntamente com a polêmica completa contra pagãos, turcos,
judeus, gregos, papistas e reformistas – sabia discorrer, como um livro,
sobre a transubstanciação na eucaristia, sobre os cinco passos da exaltação
e humilhação de Cristo, sobre as principais lições do Alcorão e sobre as
principais provas da existência de Deus contra os espíritos livres.
E então discorria realmente sobre todas essas coisas como um livro. O
material de pregação era farto, e seus irmãos tiveram de ouvi-lo repetir de
novo, do púlpito ameaçador instalado no quarto, todos aqueles cadernos
de anotações.
De quando em quando, aos domingos, ele era convidado para ir à casa
de um primo, onde havia uma reunião de artesãos, e, nessa reunião, tinha
de ficar em pé diante da mesa e fazer uma pregação segundo todos os
conformes, com texto, tema e divisões, na qual refutava em geral a
doutrina papista da transubstanciação, ou os contestadores de Deus, e
enumerava, com muita ênfase, uma após outra, as provas da existência de
Deus, e expunha todos os pontos fracos da doutrina do acaso.
O instituto em que Anton recebia sua instrução estava de tal maneira
organizado que, aos domingos, os adultos, que estudavam para se tornar
mestres-escola, tinham de se dividir em todas as igrejas e copiar as
pregações, as quais eram depois levadas para o inspetor examinar. –
Anton mais uma vez encontrou muito prazer em copiá-las, pois viu que
exercia a mesma ocupação de seus professores, aos quais ele as
apresentava, e eles demonstravam cada vez mais respeito por ele,
tratando-o quase como um igual.
Ao fim e ao cabo, reuniu um grosso volume de pregações copiadas, que
ele considerava um grande tesouro, e duas delas em particular lhe
pareciam verdadeiras preciosidades: a do pastor U., que tinha a maior
semelhança com o pastor P. por causa da velocidade da fala, fora
apresentada na igreja de A. e tratava do Juízo Final. – Com verdadeiro
entusiasmo, Anton expunha amiúde novamente essa pregação a sua mãe,
em que a destruição dos elementos, o desmoronamento da estrutura do
universo, o estremecimento e o receio do pecador, o alegre despertar dos
devotos eram apresentados num contraste que excitava a fantasia até o
mais alto grau – e isso tinha a ver com Anton. Ele não gostava da fria
pregação da razão. A segunda pregação, que ele julgava entre todas a
principal, era a pregação de despedida do pastor L., que ele fez na igreja de
C., e na qual ele mesmo foi interrompido quase do começo ao fim por
lágrimas e soluços, tão querido era por sua paróquia. O páthos comovente,
com o qual esse discurso foi efetivamente proferido, deixou uma
impressão indelével no coração de Anton, e ele não desejou maior bem-
aventurança do que um dia poder também proferir um discurso de
despedida como aquele perante uma quantidade de pessoas que, como
aquelas, choravam com ele.
Em situações assim ele se encontrava em seu elemento e sentia um
prazer indizível na melancólica sensação em que afundara. Ninguém, em
tais ocasiões, sentiu mais o deleite das lágrimas (the joy of grief) do que ele.
Um daqueles abalos que a alma sentia com a pregação tinha mais valor
para ele do que todos os outros prazeres da vida, e em troca dele teria
dado o sono e a comida.
Seu sentimento de amizade também conseguiu novo alimento. Ele
adorava realmente alguns de seus professores e ansiava por se relacionar
com eles – expressou, em especial, sua amizade com um de nome R., que
parecia um homem muito duro e severo, mas na verdade possuía o mais
nobre coração, o que só pode ser encontrado num futuro mestre-escola de
pequenos povoados.
Anton tinha com ele aulas de aritmética e caligrafia pagas por seu pai –
pois aritmética e caligrafia eram ainda as únicas coisas que ele
considerava valer a pena Anton aprender. – Como já grafava as letras
corretamente, R. o mandou logo fazer algumas composições, que
obtiveram sua aprovação, o que para Anton era tão adulador que ele
ousou finalmente abrir seu coração a esse professor e lhe falar aberta e
sinceramente, como durante muito tempo ele jamais pôde falar com
alguém.
Confiou assim ao professor sua insuperável inclinação para o estudo, e
a severidade de seu pai, que o impedia de estudar e queria que ele não
aprendesse nada a não ser um ofício. O rude R. pareceu comovido com
essa confiança e encorajou Anton a se abrir com o inspetor, que talvez
pudesse ainda ser útil para o seu objetivo. Mas o inspetor era o mesmo que
tinha dito a Anton com cara de maior desprezo “garoto idiota!”, quando
este não quis gritar durante o exercício de soletração, algo que Anton
ainda não conseguira esquecer e por isso ainda carregava muitas dúvidas
se deveria revelar sua inclinação aos estudos para o homem que havia
duvidado de que ele fosse capaz de soletrar.
No entanto, o respeito que depositavam em Anton na escola crescia dia
a dia, e ele realizava seu desejo de ser o primeiro e de ter a maior parte das
atenções dirigida a si. Sem dúvida, isso era um alimento para sua vaidade,
de modo que muitas vezes já se via em pensamento como pregador, em
particular quando vestia calça preta – caminhava então com passos dignos
e mais sérios do que o normal.
Nos fins de semana, aos sábados, depois de terem cantado o hino “Deus
me trouxe até aqui”, um dos alunos sempre lia uma longa prece – quando
chegava sua vez, era uma verdadeira festa para Anton. Ele se imaginava no
púlpito, onde organizava suas ideias ainda durante os últimos versos do
hino, e de repente, como o pastor P., com toda a riqueza da eloquência,
começava uma prece fervorosa. Para um menino em idade escolar, sua
declamação ganhava obviamente um páthos muito grande para deixar de
ser notada. O professor, portanto, muito raramente o mandava ler a prece.
Os professores começaram mesmo a ter certa inveja de Anton. Um
deles passou um exercício em que um dos alunos tinha de recontar com as
próprias palavras uma das histórias bíblicas de Hübner. Com toda a sua
fantasia, Anton enfeitou poeticamente essa história e a reproduziu com
adornos de oratória – isso ofendeu o professor, que ao final fez a
observação de que Anton deveria narrar com mais brevidade. Da vez
seguinte, ele resumiu então toda a história em algumas palavras e não
passou de dois minutos para acabar. – Para o professor, foi breve demais, e
mais uma vez ficou aborrecido – e não o deixou mais de modo algum
contar uma história com as próprias palavras. De tarde, os professores que
repetiam a catequese sentiam-se temerosos de lhe fazer perguntas,
porque ele sempre copiara muito mais que eles – ele não conseguiu mais
ter a oportunidade de mostrar suas capacidades a fim de atrair a atenção
para si, seu maior desejo.
Completamente contrariado, pois tinha sempre de ficar sentado mudo
e sem que lhe fizessem perguntas, com os olhos marejados, finalmente se
dirigiu ao inspetor, que reiteradas vezes lhe havia feito perguntas durante
as aulas da manhã e parecia ter mudado seu julgamento sobre ele – o
inspetor perguntou o que lhe faltava, se havia ocorrido alguma coisa
errada com seus colegas de escola, e Anton respondeu: não com seus
colegas de escola, mas com seus professores, sim, estava ocorrendo algo
errado, eles o desprezavam, e ninguém mais lhe fazia perguntas, embora
soubesse mais da matéria do que os outros. Sobre esse ponto, seria preciso
garantir seu direito!
O inspetor tentou dissuadi-lo e justificou os professores por causa da
quantidade de alunos, mas dali em diante começou a prestar mais atenção
nele, a perguntar-lhe de manhã cedinho mais do que era seu costume.
Uma aula por semana era dedicada a exercícios com salmos, dos quais
cada aluno tinha de extrair lições; estas eram escritas numa folha de papel
ou numa lousa e depois lidas em voz alta; muitos acabavam suando
bastante ao fazer isso. – O inspetor estava presente. Anton não anotou
nada. Mas, quando chegou a sua vez, ele leu o salmo inteiro e fez um
discurso meticuloso, ou uma pregação, que durou quase meia hora, de
modo que o próprio inspetor no fim disse: “Basta – não era para explicar o
salmo, mas extrair apenas algumas lições morais”.
Assim se passou quase um ano, e nesse período Anton fez progressos
extraordinários em sua dedicação aos estudos, comportando-se tão
irrepreensivelmente que alcançou seu objetivo de atrair o máximo de
atenção para si, o que acabou provocando também a inveja dos
professores.
Ele se encontrava agora num momento decisivo, em que deveria
escolher uma maneira de viver, e a rigidez de seu pai, que fazia de tudo
para se livrar logo dele, crescia dia a dia, de tal modo que a escola, por
assim dizer, era um refúgio seguro da pressão e da perseguição em sua
casa.
Seu querido professor R. foi promovido a mestre-escola num pequeno
povoado e agora ele não tinha mais um verdadeiro amigo entre os
professores. – Na despedida, ele aconselhou Anton mais uma vez a falar
diretamente com o inspetor – e, como ele não tinha mais tempo algum
para tomar uma decisão, ousou certo dia, com o coração disparado, pedir
ao inspetor que o escutasse, porque tinha algo importante a dizer. – O
inspetor o levou até sua sala, e ali Anton, com uma franqueza muito maior,
abriu todo o seu coração e lhe contou suas sinas – o inspetor lhe descreveu
as dificuldades, os custos do estudo, sem lhe tirar toda a esperança,
prometendo-lhe, no entanto, que faria o que estivesse ao seu alcance para
que Anton pudesse frequentar uma escola de latim sem pagar – mas tudo
isso lhe parecia muito distante, porque não poderia esperar nenhuma
ajuda de seus pais, nem mesmo casa e comida, já que o pai tinha
conseguido um pequeno emprego a quase 10 quilômetros de H., e assim
teria de se mudar dali em bem pouco tempo.
Entretanto, o inspetor falara a favor de Anton com G., o conselheiro
consistorial, sob cuja direção ficava o instituto de pedagogia, e este o
chamou para conversar. Ao ver aquele venerável ancião, de início a
coragem de Anton e seus joelhos tremeram por estar diante dele – mas,
quando o ancião apertou afavelmente sua mão e falou com voz suave, ele
começou a falar com franqueza e revelar sua inclinação para o estudo. – O
conselheiro consistorial G. ordenou que ele lesse em voz alta uma das odes
espirituais de Gellert a fim de ouvir como eram a fala e a voz daquele que
queria se dedicar ao ministério da pregação. Prometeu-lhe arrumar aulas
gratuitas e financiá-lo com livros; mas isso era tudo o que poderia fazer. –
Anton estava tão alegre com essas ofertas que seu agradecimento não teve
limite, e pensou ter escalado num instante todas as montanhas. Pois ainda
não tinha se dado conta de que, além de aulas gratuitas e livros, ele ainda
precisaria de comida, casa e roupa.
Triunfante, correu para casa e anunciou sua sorte aos pais – mas o
quão abatida não ficou sua alegria quando seu pai lhe disse a sangue-frio:
se quisesse estudar, Anton não poderia contar com seu dinheiro – se fosse
capaz de arrumar pão e roupa por conta própria, ele não teria objeções a
fazer contra seus estudos. – Em algumas semanas, ele partiria de H., e se
até lá Anton não estivesse trabalhando com um mestre de ofício, onde é
que ele iria encontrar abrigo? Ou por acaso iria esperar sentado até que
uma das pessoas que o aconselharam com tanto empenho aos estudos
também se importasse com seu sustento?
Triste e pensativo, Anton saiu para passear e refletiu sobre sua sina – a
ideia de estudar estava arraigada em sua alma e deveria impor ainda mais
dificuldades no caminho – vários projetos cruzavam sua cabeça. Ele se
lembrou de ter lido que antigamente, na Grécia, houve um rapazote com
vontade de aprender que cortava lenha e carregava água para o próprio
sustento, a fim de que pudesse se dedicar aos estudos no tempo que
sobrasse. – Ele gostaria de seguir esse exemplo e muitas vezes esteve
decidido a trabalhar por jornada em horas determinadas para ter o tempo
restante ao seu dispor – mas assim ele não poderia se dedicar
regularmente às aulas – todas as suas meditações e reflexões o tornaram
cada vez mais pensativo e indeciso. Enquanto isso, aproximava-se o
momento em que teria de tomar uma decisão. – Ele deveria abandonar a
escola que frequentara até então para ir ainda por um tempo à escola da
guarnição, porque deveria ser confirmado pelo capelão da guarnição M.,
cujas aulas de preparação e de catequese Anton já começava a frequentar,
e de quem chamara atenção por causa de suas respostas. Mas ele mesmo
jamais teria ousado revelar a mágoa de sua alma a esse homem em quem
ainda mal confiava.
Como nenhuma firme perspectiva de estudos se abria para Anton, ele
provavelmente teria tomado enfim a decisão de aprender algum ofício se,
contra as expectativas, uma circunstância aparentemente muito
insignificante não tivesse dado outro rumo ao destino de toda a sua vida
vindoura.
PARTE 2
Para evitar outros juízos errôneos, como alguns que já recaíram sobre este
livro, vejo-me obrigado a esclarecer que aquilo que chamei, por motivos
que considerei fáceis de adivinhar, um romance psicológico é, no sentido
mais próprio da palavra, uma biografia e, até em suas mínimas nuances,
uma das mais verdadeiras e fiéis representações de uma vida humana,
como talvez jamais tenha existido. –
Aquele que tiver algum interesse nessa representação fiel não se
incomodará com aquilo que de início é insignificante e parece ser
irrelevante, mas ponderará que esse tecido de vida humana,
artisticamente trançado, é composto de uma quantidade infinita de
ninharias, as quais se tornam extremamente importantes nessa trama, por
mais que pareçam insignificantes em si mesmas.
Aquele que começa a prestar atenção em sua vida passada muitas vezes
acredita ver primeiramente apenas inutilidade, fios soltos, confusão, noite
e escuridão; no entanto, quanto mais fixa seu olhar, mais a escuridão
desaparece, mais a inutilidade se esvai, os fios soltos voltam a se atar, o
amontoado e o confuso se ajeitam – e o dissonante imperceptivelmente se
resolve em consonância e harmonia.
A circunstância que provocou inesperadamente uma feliz mudança no
destino de Anton Reiser foi a seguinte: ele se engalfinhou na rua com uma
dupla de jovens que caçoaram dele na saída da escola, algo que não queria
mais tolerar; quando eles estavam se pegando pelos cabelos, o pastor M.
passava de repente por ali – e que tamanha vergonha e embaraço não
passou Reiser quando os dois jovens chamaram sua atenção para a
chegada do pastor e lhe exibiram, com certa alegria maliciosa, a ira que o
pastor M. lançaria sobre ele.
Quê?! – Quero me tornar um dia um homem respeitável, como este que
se aproxima – gostaria que neste momento cada um perceba isso em mim,
para encontrar alguém que me aceite e me tire do pó, mas justo agora que
teria a oportunidade de mostrar o que tenho de melhor, sou surpreendido
nessa atitude pelo homem que deverá me dar a confirmação. O que
pensará esse homem de mim, por quem me tomará?
Esses pensamentos atravessavam a cabeça de Reiser, assediando-o
subitamente com tanta vergonha, confusão e desprezo de si que quase
quis enfiar a cabeça na terra. Mas reuniu forças, e a autoconfiança, sob a
vergonha asfixiante, abriu caminho novamente, insuflando-lhe ao mesmo
tempo coragem e confiança no pastor M. – rápido, tomou coragem,
aproximou-se sem rodeios dele e lhe dirigiu a palavra na rua pública,
dizendo-lhe que era um dos garotos que frequentaram seu catecismo, e
que o pastor M. não deveria ficar bravo com ele por ter brigado com os
dois jovens, aquilo não fazia absolutamente parte de sua índole; os jovens
não lhe davam trégua; e isso nunca mais voltaria a acontecer.
O pastor M. estava muito surpreso por ser tratado na rua daquela
maneira por um garoto que havia brigado com uma dupla de jovens – após
breve pausa, ele respondeu que, sem dúvida, é muito incorreto e
indecente se engalfinhar, mas não teria mais nada a dizer se ele deixasse
de fazer isso no futuro; a seguir, quis saber também seu nome e o de seus
pais, perguntou-lhe em que escola havia estudado etc., e com muita
amabilidade se despediu dele – quem poderia estar mais contente que
Reiser? E como seu coração estava aliviado por se acreditar novamente
livre daquela situação perigosa.
E teria ficado ainda muito mais feliz se soubesse que aquele caso
fortuito poria fim a todas as suas receosas preocupações e seria o primeiro
alicerce de sua felicidade futura. – Pois desde aquele momento o pastor M.
tinha tomado a decisão de se inteirar mais sobre aquele jovem ser humano
e se encarregar pessoalmente dele, porque supôs, não sem motivo, que o
comportamento do jovem Reiser em relação a ele não era fingimento –
isso pressupunha um modo de pensar pouco comum num garoto daquela
idade – e o semblante dele parecia garantir que não era fingimento.
Na tarde do domingo seguinte, durante o catecismo, o pastor M. lhe fez
muito mais perguntas que de costume; de certo modo, Reiser já alcançara
um de seus desejos, o de poder ao menos falar de alguma forma
publicamente na igreja diante do povo reunido, uma vez que respondia às
perguntas do catecismo do pastor em alto e bom som, de modo que se
destacava bastante de todos os outros, pois acentuava corretamente as
palavras, ao passo que as respostas dos outros eram recitadas num tom
escolar comum e cantado.
Encerrado o catecismo, o pastor M. lhe acenou à parte, ordenando-lhe
que viesse até ele na manhã seguinte – uma alegre inquietude se apoderou
de repente de seu pensamento, já que alguém parecia querer ter um
cuidado maior com ele. Ficou sem dúvida lisonjeado com o fato de o pastor
M. começar a prestar mais atenção nele por suas respostas; e então se
propôs a confiar nesse homem e a lhe revelar todos os seus desejos.
Quando, na manhã seguinte, após uma noite quase insone, ele foi se
encontrar com o pastor M., este primeiro lhe perguntou a que tipo de vida
pensaria em se dedicar, abrindo-lhe caminho para aquilo que ele mesmo já
planejara. – Reiser lhe revelou seus planos. – O pastor M. mostrou-lhe as
dificuldades, mas ao mesmo tempo também o encorajou, e começou a
estimulá-lo efetivamente, prometendo-lhe que seu único filho, que estava
na primeira série do liceu em H., lhe daria aulas de latim, as quais
começariam ainda naquela mesma semana.
Mesmo assim, Reiser acreditava ler nas feições e no comportamento do
pastor M. que este ainda guardava alguma coisa importante a lhe ser dita a
seu tempo: essa suposição foi reforçada pelas misteriosas frases do
sacristão da guarnição, cujas aulas ele também frequentava, e que lhe
oferecia sempre uma cadeira quando chegava, ao passo que os outros se
sentavam nos bancos. – Quando a aula acabava, o sacristão costumava
então lhe dizer: esteja muito vigilante, e pense, estão sempre atentos em
você. – Grandes coisas estão sendo tramadas para você! E outras coisas
mais; Reiser com isso começou sem dúvida a acreditar ser uma pessoa
mais importante do que era até então, e sua pequena vaidade recebeu
muito mais alimento, manifestando-se amiúde de maneira bastante tonta
em seu andar e em suas feições, quando por vezes caminhava pela rua
concentrado em seus pensamentos, com toda a seriedade e dignidade de
um professor do povo, como já havia feito em B., sobretudo quando estava
vestido de colete e calças pretos. Em sua caminhada, havia adotado como
modelo o andar de um jovem religioso que outrora foi pregador na casa de
misericórdia em H. e vice-reitor no liceu, porque este tinha algo no modo
de portar o queixo que agradava muito especialmente a Reiser.
Ninguém jamais foi mais feliz desfrutando qualquer coisa do que
Reiser naquele tempo à espera das grandes coisas que deveriam lhe
acontecer. Essa expectativa excitava demasiadamente sua imaginação. E
agora que se aproximava cada vez mais o momento em que deveria
receber a eucaristia despertavam novamente todas as ideias exaltadas
sobre esse assunto que ele já havia enfiado na cabeça em B., alimentadas
pelas aulas do sacristão da guarnição, que, ao preparar os que iam receber
a eucaristia, lhes descrevia o céu e o inferno de maneira tão medonha que
seus ouvintes eram tomados de sobressalto e pavor, aos quais, porém,
vinha se associar aquela agradável sensação com a qual estamos em geral
habituados a ouvir algo que assusta e aterroriza, e ele sentia novamente a
satisfação de ter tocado seus ouvintes, o que o fazia verter lágrimas de
deleite, tornando ainda mais solene toda a cena daquele anoitecer em que
ele se encontrava entre os seus ouvintes na sala iluminada da escola.
O pastor M. também dava semanalmente algumas aulas em que
preparava aqueles que deveriam receber a eucaristia, mas o que dizia não
chegava perto dos discursos emocionantes de seu sacristão, embora, para
Reiser, parecessem mais bem proferidas e muito mais coerentes. – Nada
deixou Anton mais lisonjeado do que a ocasião em que o pastor M.
explicou a ideia de que os crentes são os filhos de Deus, citando o exemplo
de como iria tratar com mais esmero um de seus muitos jovens ouvintes,
convidando-o especialmente para vir a sua casa e conversando com ele –
este, sim, seria também mais próximo dele do que todos os outros, assim
como os filhos de Deus também estariam mais próximos do Senhor do que
o restante dos homens. Reiser acreditou então ser o único, entre seus
companheiros de escola, ao qual o pastor M. prestaria mais atenção – mas,
por mais que isso alimentasse sua vaidade, logo em seguida o enchia outra
vez de uma melancolia indescritível, já que todos os outros não fariam
parte dessa alegria que somente a ele fora dada, e ficariam, por assim
dizer, sempre excluídos do convívio mais íntimo com o pastor M.
Melancolia que ele recordou já ter tido uma vez nos primeiros anos de sua
infância, quando sua prima lhe comprara um brinquedo numa loja, e ele,
ao sair de casa, o carregava nas mãos; diante da porta da casa estava
sentada uma menina vestindo uma roupa esfarrapada, mais ou menos da
sua idade, que, completamente admirada, exclamou diante do belo
brinquedo: “Ah, Senhor Deus, como isso é lindo!”. Reiser deveria ter
naquela época 6 ou 7 anos – apesar da enorme admiração, o tom de
paciente privação com o qual a menina esfarrapada disse as palavras “Ah,
Senhor Deus, como isso é lindo!” invadiu a alma de Reiser. A pobre menina
era obrigada a ver toda aquela beleza exposta diante de si e não podia nem
ao menos pensar em ter sequer um pedaço dela. Estava excluída, por
assim dizer, para sempre do prazer dessas coisas preciosas – como seria
bom se ele tivesse voltado e presenteado a menina esfarrapada com o
precioso brinquedo, se sua prima o tivesse admitido! – depois, todas as
vezes que pensava nisso, sentia um remorso amargo de não tê-lo dado
imediatamente à menina. Era esse tipo de melancolia piedosa que Reiser
sentia ao acreditar ser o único agraciado com os favores do pastor M., o que
punha seus companheiros de escola, sem que tivessem merecido, numa
posição bem abaixo da sua.
Era exatamente essa sensação que mais tarde se despertava em sua
alma sempre que chegava às palavras da primeira écloga de Virgílio: nec
invideo[12] etc. Quando ele se colocava no lugar do pastor feliz, que pode
tranquilamente se sentar à sombra de sua árvore, ao passo que o outro
tem de virar as costas para sua casa e seu campo, ele sempre se sentia,
com o nec invideo deste último, como a menina esfarrapada quando disse:
“Ah, Senhor Deus, como isso é lindo!”.
Para relacionar aquilo que, segundo o meu entendimento, está ligado,
serei obrigado aqui a retomar algumas coisas na vida de Reiser e antecipar
outras. Farei isso com muito mais frequência; e a quem compreendeu meu
propósito não preciso pedir desculpas por esses saltos aparentes.
Vê-se facilmente que a vaidade de Anton Reiser foi alimentada em
exagero pelas circunstâncias que agora conjuravam para tornar sua
pessoa importante para ele mesmo. Ele precisava novamente de uma
pequena humilhação, e esta não tardou em vir. Gabava-se, não sem
motivo, de ser o primeiro entre todos os que foram confirmados pelo
pastor M. Sentava-se também à frente e estava certo de que ninguém iria
disputar esse lugar com ele. Mas de repente um jovem bem-vestido, de sua
idade e nível de instrução, que também frequentava as aulas do pastor M.,
o relegou à sombra tanto por seus modos refinados como pela especial
atenção com que o pastor M. o tratava, passando imediatamente a ocupar
o primeiro lugar.
O doce sonho de Reiser de ser o primeiro entre os seus colegas de
escola havia de repente desaparecido. Ele se sentiu humilhado, rebaixado
e igual a todos os outros. – Inteirou-se sobre seu temível rival com o criado
do pastor M., constatando que era filho de um alto funcionário público e
estava hospedado na casa do pastor M., e que também seria confirmado
juntamente com todos os outros. A mais negra inveja se apoderou durante
um tempo da alma de Anton; a sobrecasaca azul com o colarinho de
veludo que o filho do alto funcionário público vestia, os modos refinados,
o belo cabelo o abateram e o deixaram mais insatisfeito consigo mesmo;
mas logo se reacendeu nele o sentimento de que aquilo era errado, e ficou
ainda mais insatisfeito com sua insatisfação.
Ah, ele não precisaria ter invejado o pobre rapaz, cujo sol da sorte em
pouco tempo não brilharia mais. Dentro de catorze dias, chegou a notícia
de que o pai fora demitido por deslealdade em serviço. Assim, não pôde
mais continuar pagando a hospedagem para o jovem; o pastor o enviou de
volta a sua família, e Reiser recuperou o primeiro lugar. Não pôde reprimir
sua alegria pelas consequências que esse acontecimento tinha para ele, e
ele próprio se censurou por isso – procurou obrigar-se a ter compaixão,
porque considerava isso certo – e a reprimir a alegria, porque a
considerava errada; mas, apesar de tudo, ela predominou, e, no fim, viu
que de nada adiantava ir contra o destino que quis fazer o jovem infeliz.
Aqui a pergunta é: se o destino do jovem de repente tivesse mudado de
novo, Reiser espontaneamente deixaria, sorridente e simpático, que o
jovem ocupasse o primeiro lugar, ou seria preciso se esforçar para ter esse
sentimento, porque o considerava correto e nobre? – A sequência da
história talvez responda a essa questão!
Todo fim de tarde Reiser tinha aula de latim com o filho do pastor M., e
ele realmente avançou muito, de sorte que em quatro semanas já era
capaz de interpretar e traduzir Cornélio Nepos muito bem. Foi delicioso
para ele quando, por exemplo, o sacristão se aproximou e perguntou o que
os dois senhores estudantes faziam – e quando, à época, o pastor M. casou sua
filha mais velha com um jovem pregador, e este ensinou o catecismo a
Anton numa tarde de domingo, e parecia prestar cada vez mais atenção
em Reiser conforme o ouvia responder. Que momento encantador para
Reiser quando ele mesmo se dirigiu ao pastor M. após o culto, e o genro do
pastor o tratou com o maior respeito, dizendo-lhe que ainda na igreja,
quando Reiser foi o primeiro a lhe responder, ele já sabia que aquele bem
poderia ser o jovem de quem o sogro lhe falara muito bem, e estava
contente de não ter errado.
Anton jamais tivera em sua vida sensação semelhante à causada por tal
tratamento respeitoso. – Como não aprendera o linguajar do modo de vida
refinado, e como também não queria se expressar rudemente, ele usava
naquelas ocasiões o linguajar dos livros, que, em seu caso, vinha do
Telêmaco, da Bíblia e do catecismo, o que dava muitas vezes às suas
respostas um raro traço de originalidade, pois nessas ocasiões costumava
dizer, por exemplo, que não conseguia resistir ao impulso de estudar que o
arrebatava incessantemente, e que era seu desejo, de todos os modos
possíveis, ser digno do amparo que lhe tinham proporcionado,
conduzindo sua vida até o fim em completa bem-aventurança e honradez.
Nesse meio-tempo, o conselheiro consistorial G., ao qual Reiser já
havia se dirigido previamente, tinha lhe conseguido a possibilidade de
frequentar de graça a Escola Básica da Cidade Nova, como era chamada. –
No entanto, o pastor M. disse que isso não poderia acontecer agora; Reiser
deveria continuar tendo aulas com seu filho até ser confirmado, para
poder então ir diretamente à Escola Superior da Cidade Velha, onde o
diretor se encarregaria dele; e, pela rivalidade que costumava reinar entre
as duas escolas, seria melhor que não frequentasse inicialmente a
primeira. – O próprio Reiser teria de dizer isso ao conselheiro consistorial
G., recusando o curso gratuito que ele lhe oferecera, o que acabou por
melindrar o conselheiro, que primeiro tratou Reiser de modo duro e por
fim o dispensou, dizendo-lhe, como forma de incentivo, que cuidaria dele
de outro modo.
Parecia então que de repente todos estavam interessados no destino de
Reiser, com o qual antes ninguém se preocupara. Ouviu falar da rivalidade
entre as escolas por sua causa. – O conselheiro consistorial G. e o pastor M.
pareciam de certa forma disputá-lo a fim de saber quem cuidaria mais
dele. O pastor M. saiu-se com a seguinte ideia: ele deveria dizer apenas ao
conselheiro consistorial G. que, em seu nome, as providências já haviam
sido tomadas, e providências ainda seriam tomadas de modo que Anton
estivesse suficientemente preparado para a Escola Superior da Cidade
Velha, sem antes frequentar a Escola Básica da Cidade Nova. – Portanto, as
providências deveriam ser tomadas por causa de um garoto cujos próprios
pais não o tinham considerado sequer digno de atenção.
Por enquanto não posso dizer com que sonhos e perspectivas radiantes
de futuro isso preencheu a fantasia de Reiser. Sobretudo quando ainda
persistiam as misteriosas alusões do sacristão e a reserva do pastor M., por
meio da qual este parecia silenciar algo importante a Reiser. –
Finalmente veio a saber-se que, por recomendação do pastor M., o
príncipe… se encarregaria do jovem Reiser e lhe prometia uma soma
mensal de x táleres reais[13] para seu sustento. De uma hora para outra,
Reiser se viu livre de todas as suas preocupações quanto ao futuro; o doce
sonho de uma felicidade ardentemente almejada, mas que jamais
esperaria encontrar, havia sido realizado quando menos esperava, e ele
podia agora se entregar a suas mais agradáveis fantasias sem temer ser
perturbado pela carência e pela miséria.
Seu coração realmente se derramava em agradecimentos à
Providência. – Nenhuma noite se passou sem que tivesse incluído o
príncipe e o pastor M. em suas preces noturnas – e muitas vezes verteu,
em silêncio, lágrimas de alegria e de gratidão ao refletir sobre essa feliz
mudança de seu destino.
O pai de Reiser não fez mais nenhuma objeção aos estudos do filho, tão
logo ouviu que não lhe iriam custar nada. Além disso, chegou o momento
em que teve de assumir seu pequeno posto num lugar a quase 10
quilômetros de H., e seu filho já não lhe seria um peso. Após a partida dos
pais, restou uma dúvida: na casa de quem Reiser moraria e comeria? O
pastor M. não parecia estar inclinado a levá-lo para sua casa. Era preciso
pensar então em outro lugar de pessoas respeitáveis para hospedá-lo. E
um oboísta do regimento do príncipe…, chamado F., se ofereceu
espontaneamente para que Reiser viesse morar com ele sem pagar nada.
Um sapateiro em cuja casa seus pais certa vez moraram, outro oboísta, um
músico da corte, um cozinheiro e um bordador de seda, cada qual lhe
ofereceu uma refeição por semana.
Isso de certo modo diminuiu a alegria de Reiser; ele pensou que aquilo
que o príncipe lhe daria seria suficiente para seu sustento sem que
precisasse comer o pão em mesa estranha. Mas também não diminuiu a
sua alegria sem motivo, pois, como veremos a seguir, muitas vezes esteve
exposto a uma situação extremamente penosa e preocupante, de modo
que teve de comer muitas vezes seu pão literalmente com lágrimas. – Pois,
se todos se apressavam em prestar-lhe favores, cada um acreditava por
isso mesmo ter conquistado o direito de vigiar sua conduta e dar-lhe
conselhos sobre o seu comportamento, conselhos que ele deveria aceitar
cegamente se não quisesse irritar seu benfeitor. Agora Reiser dependia de
tantas pessoas, de tão distintos modos de pensar, que cada um, ao lhe dar
uma refeição, ameaçava abandoná-lo se ele não seguisse o conselho, que
muitas vezes contradizia diretamente o conselho de outro benfeitor. Para
um, seu cabelo estava muito bem cortado, para outro, estava mal; para
um, andava malvestido, para outro, muito bem-vestido para um garoto
que vivia da ajuda de um benfeitor – e havia ainda outras humilhações e
menosprezos afins, aos quais Reiser estava mais ou menos exposto por
desfrutar a refeição, e aos quais certamente está mais ou menos exposto
todo jovem em idade escolar que tem a infelicidade de buscar seu sustento
nessas refeições gratuitas e de comer ao longo da semana ora na casa de
um, ora na de outro.
Tudo isso foi obscuramente pressentido por Reiser quando aceitou
todas aquelas refeições gratuitas em seu nome e não recusou nenhum
favor de quem quisesse lhe oferecer. Mas jamais costuma faltar boa
vontade quando as pessoas se julgam úteis para o estudo de um jovem – o
que desperta um entusiasmo bastante especial. Cada um pensa
obscuramente: quando um dia esse homem estiver no púlpito, isso
também será obra minha. Surgiu assim uma verdadeira disputa por Reiser,
e qualquer um, até o mais pobre, queria se tornar seu benfeitor de uma
hora para outra, como um pobre sapateiro que se destacou ao lhe oferecer
o que comer todas as tardes de domingo – tudo isso foi aceito com alegria
em seu nome, e pelos cálculos de seus pais, junto com o oboísta e a esposa,
Reiser iria ficar muito contente por ter o que comer todos os dias da
semana, e eles poderiam economizar o dinheiro que o príncipe dava a ele.
Ah! – as brilhantes expectativas que Reiser havia construído sobre sua
felicidade futura voltaram a se eclipsar. Mas a agradável vertigem inicial,
na qual o cuidado ativo e a participação de tantas pessoas em seu destino o
haviam mergulhado, ainda durou um bom tempo.
O imenso campo da ciência se abria diante dele – durante todo o dia, o
seu único pensamento era o seu futuro empenho, como empregar bem
cada hora de seus futuros estudos, e o deleite que aí encontraria, os
admiráveis progressos que faria, por meio dos quais ganharia fama e
aprovação: ele se levantava e ia dormir com essas doces ideias – mas não
sabia que a asfixia e o rebaixamento de sua situação externa estragariam
tanto seu prazer. Estar sempre alimentado e vestido era simplesmente
necessário a um jovem que deve ter coragem para se dedicar aos estudos.
Não era o caso de Reiser. Queriam economizar em seu nome, mas enquanto
isso o largaram realmente na miséria.
Seus pais também partiram, e ele se mudou, com seus poucos objetos
pessoais, para a casa do oboísta F., cuja mulher ajudara a cuidar dele desde
a infância. – O modo de vida que imperava na casa desse casal sem filhos
obedecia à maior disciplina que talvez jamais tenha existido em qualquer
outra parte. Não havia nada ali, nem escova nem tesoura, que não tivesse
seu lugar corretamente determinado havia anos. Não havia irromper da
manhã em que o café não fosse tomado às oito horas e a oração matinal
lida às nove, sempre de joelhos; enquanto a sra. F. lia Benjamin
Schmolke[14] em voz alta, Reiser também tinha de ficar de joelhos. À noite,
depois das nove, cada um igualmente se ajoelhava diante de sua cadeira, e
a oração noturna era lida também dos textos de Schmolke, e em seguida
iam para cama. Essa era a ordem inviolável que vinha sendo observada por
essas pessoas havia já quase vinte anos em que viviam naquele mesmo
aposento. E certamente estavam muito felizes com ela, mas não poderiam
ser perturbados por absolutamente nada, sem que ao mesmo tempo sua
paz interior, em grande parte baseada nessa ordem inviolável, sofresse
com isso. Não haviam ponderado direito quando decidiram colocar
naquele seu aposento mais uma pessoa que de maneira alguma podia se
adaptar inteiramente, da noite para o dia, à ordem que tinham
estabelecido havia vinte anos e que se transformara numa segunda
natureza.
Não demorou muito, portanto, para começarem a se arrepender – eles
mesmos haviam se impingido um fardo que se tornou mais pesado do que
haviam imaginado. Como só tinham uma sala e uma alcova, Reiser teve de
dormir na sala, e toda manhã, assim que nela entravam, tinham uma
inesperada visão de desordem, com a qual não estavam acostumados e que
realmente incomodava a paz deles. – Anton logo se deu conta disso, e a
ideia de ser um incômodo lhe era tão assustadora e penosa que raramente
ousava tossir quando via no olhar de seus benfeitores que, no fim das
contas, era um peso para eles. – Pois era obrigado a guardar suas poucas
coisas em algum canto, e onde quer que as pusesse elas perturbavam de
algum modo a ordem, porque cada canto já estava destinado a alguma
outra coisa. Era-lhe impossível, porém, desvencilhar-se novamente dessa
situação penosa. Tudo isso o mergulhava muitas vezes por horas a fio
numa melancolia indescritível, que ele não conseguia explicar para si
mesmo, atribuindo-a inicialmente apenas à falta de hábito com sua nova
moradia.
Mas o que o abatia era tão somente a ideia humilhante de ser um
incômodo. Se não tivera muita alegria nem com os pais nem com o
chapeleiro L., tinha certo direito de estar lá. Com os primeiros, porque
eram seus pais; com o segundo, porque trabalhava. Mas aqui a cadeira em
que se sentava era um favor. Seria bom que todos aqueles que querem
realizar boas ações a alguém considerassem isso e antes examinassem bem
se vão se comportar de um modo que sua decisão jamais chegue a ser um
tormento para o necessitado.
O ano em que Reiser passou nessa situação, embora todos o julgassem
feliz, foi, em certas horas e em certos momentos, um dos mais dolorosos
de sua vida.
Talvez pudesse ter tornado seu estado mais agradável se tivesse tido
apenas o que se denomina em muitos jovens de índole insinuante. Mas faz
parte também de uma índole insinuante certa autoconfiança, algo que
desde criança lhe fora tirado; para nos tornarmos agradáveis, temos antes
de ter a ideia de que também podemos ser agradáveis. – A autoconfiança
de Reiser tinha de ser primeiro despertada por bondade atenciosa, antes
de ele ousar se tornar querido. – E logo que notava nos outros uma
aparência de insatisfação com ele tinha então grande tendência a duvidar
da possibilidade de alguma vez se tornar objeto do amor ou do respeito
deles. É certo, portanto, que fazia parte disso um imenso esforço seu para
se mostrar como objeto de atenção, sem saber como as pessoas reagiriam
à sua impertinência.
Sua prima muitas vezes lhe profetizara como a falta daquela índole
insinuante iria prejudicá-lo em seu progresso no mundo. Ensinou-lhe
como deveria falar com a sra. F. e dizer: “Querida sra. F., seja a senhora por
ora minha mãe, pois eu estou sem pai nem mãe e quero também gostar da
senhora como a uma mãe”. – Mas, quando Reiser foi dizer essa frase, era
como se as palavras tivessem morrido em sua boca; o resultado teria sido
extremamente desajeitado se quisesse dizer algo assim. Nenhum
comportamento atencioso ou bondoso de qualquer pessoa para com ele
jamais havia conseguido tirar frases tão ternas de sua boca; sua língua não
tinha nenhuma maleabilidade para tanto – e foi impossível seguir os
conselhos da prima. Quando seu coração se inflamava, ele procurava
frases por todos os lugares onde as pudesse encontrar. Mas ele não
aprendera a falar a língua do modo de vida refinado. – O que se denomina
índole insinuante teria sido bajulação rastejante para ele.
À medida que foi chegando o tempo em que deveria ser confirmado e
sua profissão de fé ser feita publicamente na igreja – um grande alimento
para sua vaidade –, Reiser imaginou as pessoas reunidas, ele como o
primeiro entre seus colegas de escola que, por meio da voz, dos
movimentos e dos gestos, atrairia toda a atenção para si com suas
respostas. – O dia amanheceu e Reiser acordou como um general romano
acordaria no dia em que um triunfo estaria prestes a acontecer. – Ele foi
muito bem penteado por seu primo, um peruqueiro, e vestiu uma
sobrecasaca azulada e calças pretas, traje que se assemelhava mais ao dos
religiosos.
Mas assim como o triunfo do maior general foi por vezes estragado por
inesperada humilhação, de modo que só podia desfrutar parte dele, assim
também aconteceu com Reiser no dia de sua fama e esplendor. – Nesse dia,
tiveram início suas refeições – a primeira, o almoço, com o sacristão da
guarnição, e a segunda, o jantar, com o pobre sapateiro – e embora o
sacristão tivesse o coração de uma generosidade sem igual e contasse o
percurso de sua vida a Reiser – como ele, um estudante pobre, participara
também do coro pela primeira vez, mas já com seus 17 anos trocara o
sobretudo azul pelo preto –, sua esposa era a própria inveja e má vontade,
e cada olhar dela envenenava o pedaço de comida que Reiser punha na
boca. No primeiro dia, ela não deixou transparecer, mas isso se tornou
bastante claro, de modo que Reiser, com o coração abatido sem bem saber
por quê, foi à igreja e sentiu apenas em parte a alegria que ele fantasiara
ansiosamente para esse dia tão desejado. – Ele devia ir até lá para
pronunciar, por assim dizer, sua profissão de fé. –
Pensando sobre isso, veio-lhe a lembrança de que algum tempo antes
seu pai tinha contado em casa como prestara juramento em razão do novo
serviço, tendo sentido tudo menos indiferença – e, a caminho da igreja,
Reiser parecia estar indiferente ao juramento que deveria prestar. – A
partir do ensinamento recebido na religião, ele tinha uma ideia muito
elevada de juramento e considerava sua indiferença altamente punível.
Ele então se obrigava a não ser indiferente, mas a ser comovido e sério
nesse passo importante, e estava insatisfeito consigo por não se sentir
mais comovido; mas os olhares da mulher do sacristão continuavam
afugentando todas as sensações suaves e agradáveis de seu coração.
Não pôde se alegrar realmente, porque ninguém tinha o menor
interesse em sua alegria e porque pensou que naquele mesmo dia teria de
comer em mesa estranha. Assim que entrou na igreja e se aproximou do
altar, ocupando o primeiro lugar da fila, tudo isso aqueceu novamente sua
fantasia – mas ainda estava longe de ser o que havia esperado. – E
justamente não lhe coube o que havia de mais importante e solene, ser
aquele que devia fazer a profissão de fé em nome dos outros, ele que já
havia se exercitado na fisionomia, no movimento e no tom com que
pretendia pronunciar a profissão de fé.
Anton pensou que o pastor M. lhe pediria que fosse à tarde a sua casa,
mas ele não o fez – e enquanto seus colegas de escola iam para casa, ao
encontro da recepção carinhosa de seus pais, Reiser vagou sozinho e
abandonado pela rua onde o diretor do liceu o encontrou, lhe dirigiu a
palavra e perguntou se ele não se chamava Reiserus. – E, quando Reiser
respondeu que sim, o diretor lhe apertou amigavelmente a mão; e disse
que já havia escutado muitas coisas boas a seu respeito vindas do pastor
M., e que logo mais eles se conheceriam melhor.
Foi um inesperado incentivo esse homem, o qual já havia observado
tantas vezes com profundo respeito, honrá-lo na rua cumprimentando-o e
chamá-lo Reiserus!
O diretor B. era realmente um homem capaz de inspirar respeito e
amor a qualquer um que o visse. Vestia-se com elegância, mas com
decência, portava nobreza, era bem instruído, tinha uma cara alegríssima,
mas disposta a mostrar a mais rigorosa seriedade quando quisesse. Era um
pedagogo exatamente como deveria ser a fim de afastar dessa profissão,
marcada pelo pedantismo habitual, o desprezo do mundo refinado.
Só Deus sabe como ele chegou a chamar Reiser de Reiserus, mas
bastava-lhe que assim o chamasse, e Reiser ficava não pouco lisonjeado de
ver seu nome rebatizado pela primeira vez com us. – Ele sempre havia
associado a ideia de dignidade e de espantosa erudição a essa terminação
do nome e, em pensamento, já se ouvia sendo chamado de o sábio e famoso
Reiserus.
Essa denominação, com a qual o diretor B. o honrara de maneira tão
casual, lhe voltou muitas vezes à mente, e era por vezes também uma
espora para seu empenho; pois o us em seu nome despertou de repente
toda uma série de ideias – tornar-se um dia um sábio famoso, como
Erasmus de Roterdã – e outros, cujas biografias lera parcialmente e cujos
retratos vira gravados em cobre.
À noitinha, ele foi à casa do sapateiro pobre e ao menos ali foi acolhido
com um olhar mais amistoso que o da esposa do sacristão. O sapateiro
Heidorn, assim se chamava seu benfeitor, tinha lido os escritos de Tauler e
outros semelhantes, e por isso falava certo tipo de língua culta com a qual
ele muitas vezes assumia certo tom de pregação. Normalmente citava um
tal Periandro, quando fazia afirmações como: “o homem tem de entregar-
se apenas a Deus”, diz Periandro – e assim tudo o que o sapateiro Heidorn
dizia, também havia dito Periandro, que de fato não passava de um
personagem alegórico, o qual aparece na Viagem de um cristão de Bunyan
ou em qualquer outro lugar. Mas o nome Periandro soava bem doce aos
ouvidos de Reiser. Ele imaginava algo sublime, misterioso, e sempre
gostava de ouvir o sapateiro Heidorn falar de Periandro.
Mas o bom Heidorn o segurara até um pouco mais tarde, e, quando ele
chegou em casa, seu anfitrião e sua anfitriã já tinham lido a oração
noturna, e não puderam ir imediatamente para cama, fato que
provavelmente não acontecia havia muitos anos. Essa foi a causa de Reiser
ter sido recebido de modo bastante frio e sombrio, e de ter ido dormir com
o coração triste nesse dia em que por tanto tempo depositara ansiosas
expectativas.
Nessa semana, pela primeira vez, Anton teve de comer cada dia num
lugar, e, na segunda-feira, começou pelo taberneiro, em que fez sua
refeição com outras pessoas que pagavam por ela e não se preocupavam
nem um pouco com ele. – Isso era o que ele desejava e sempre ia lá com o
coração mais leve.
Para o almoço de terça-feira, ele ia à casa do sapateiro S., onde seus
pais haviam morado, e era acolhido da maneira mais carinhosa e amistosa.
Aquelas boas pessoas o haviam conhecido ainda criancinha, e a mãe idosa
do sapateiro S. sempre dizia que o jovem ainda se tornaria alguém – e ela
se alegrava de que sua profecia parecia se confirmar. E se alguma vez
Reiser não sentiu que estava comendo pão alheio foi àquela mesa
hospitaleira, em que amiúde se esquecia de sua aflição e saía de cara
alegre, quando havia chegado triste. Pois ele se aprofundava cada vez mais
em diálogos filosóficos com o sapateiro S., até a mãe idosa dizer: “Agora,
meninos, parem com isso e não deixem essa boa refeição esfriar!”. Mas
que homem era o sapateiro S.! Dele com certeza poderíamos dizer que
deveria instruir, da cátedra, o espírito daqueles para os quais fazia
sapatos. – Em suas conversas, ele e Reiser chegavam muitas vezes sem
nenhuma orientação a coisas que Reiser veio depois a ouvir novamente
como a mais profunda sabedoria nas aulas de metafísica, e sobre isso já
havia conversado horas a fio com o sapateiro S. – pois, sozinhos, haviam
alcançado completamente o desenvolvimento dos conceitos de espaço e
tempo, do mundo subjetivo e objetivo etc.; sem conhecerem a
terminologia escolástica, eles se serviam da língua comum das pessoas tão
bem quanto podiam, o que muitas vezes resultava em algo bastante
original – em suma, na casa do sapateiro S., Reiser logo se esquecia de
todas as coisas desagradáveis de sua situação, ali ele se sentia, por assim
dizer, transportado para o elevado mundo espiritual, e seu ser era
novamente enobrecido, porque encontrou alguém com quem se entendia
e com quem trocava ideias. As horas que passou ali com os amigos de sua
infância e juventude foram naquela época, sem dúvida alguma, as mais
agradáveis de sua vida. Foi somente ali que sentiu algo como uma plena
confiança, como se estivesse em casa.
Na quarta-feira, comia na casa de seu anfitrião, onde o pouco que
saboreava, mesmo que as pessoas pudessem ter a melhor das intenções
para com ele, quase sempre o afligia, de modo que temia esse dia muito
mais que os outros. Pois no almoço sua benfeitora, a sra. F., não costumava
discorrer diretamente sobre o comportamento de Reiser, mas o fazia por
alusões, falando ao marido sobre a gratidão que ele deveria ter para com
seu benfeitor ou mencionando de passagem coisas a respeito de pessoas
que teriam adquirido o hábito de comer demais e que por fim não
conseguiam mais se satisfazer. – Nessa época, Reiser estava em pleno
crescimento e tinha realmente bom apetite, mas, quando ouvia uma
daquelas indiretas, enfiava tremendo cada bocado de comida na boca. As
indiretas que a sra. F. dava não eram causadas tanto por avareza ou inveja,
mas pelo sentimento refinado de ordem, ofendido quando, segundo sua
opinião, alguém comia demais. – Ela costumava falar então sobre
pequenas nascentes ou fontes de bênção que secam quando não são
aproveitadas com moderação.
A esposa do músico da corte, que às quintas-feiras lhe dava de comer,
era, nessas ocasiões, um pouco rude em seu comportamento, mas não o
atormentava tanto quanto a sra. F. com toda a sua fineza. – Às sextas-
feiras, porém, ele voltava a ter um dia ruim, porque comia na companhia
de pessoas que não lhe davam indiretas, mas que o faziam sentir, de
maneira bastante grosseira, que eram seus benfeitores. Elas também o
haviam conhecido criança e, mesmo tendo ele começado a fazer parte do
mundo adulto, ainda o chamavam, não de modo carinhoso, mas
desprezível, pelo seu primeiro nome, Anton. Em suma, essas pessoas o
tratavam de tal modo que ele costumava passar a sexta-feira toda mal-
humorado e triste, sem vontade de fazer nada, e muitas vezes sem saber
por quê, mas o motivo era estar exposto no almoço ao encontro
humilhante com essas pessoas, cuja boa ação era obrigado a aceitar de
bom grado, caso contrário seu comportamento poderia ser interpretado
como o mais imperdoável orgulho. – Aos sábados, ele comia na casa de seu
primo, o peruqueiro, onde pagava uma ninharia e comia com o coração
alegre; aos domingos, comia novamente na casa do sacristão.
Essa lista de refeições de Reiser, e das pessoas que as forneciam,
certamente não é tão sem importância como talvez possa parecer à
primeira vista para muitas pessoas – tais circunstâncias aparentemente
pequenas são também aquilo que compõe a vida e deixam a mais forte
impressão na constituição do temperamento de um ser humano. Para a
dedicação e os progressos que Reiser deveria fazer diariamente, era muito
importante que tivesse uma perspectiva dos dias seguintes – se, por
exemplo, teria de comer na casa do sapateiro S., ou na da sra. F., ou na do
sacristão. Seu comportamento subsequente podia, em grande parte, ser
esclarecido por essa sua situação diária, comportamento que, além do
mais, parecia muitas vezes estar em contradição com seu caráter.
Para Reiser teria sido uma grande vantagem se o pastor M. o tivesse
deixado comer uma vez por semana em sua casa. Em vez disso, no
entanto, dava-lhe a chamada mesada, assim como também fazia o
bordador de seda; com esses poucos trocados, Reiser tinha de custear
semanalmente seu café da manhã e o jantar. Assim a sra. F. ordenara. Pois
tudo o que o príncipe lhe dava deveria ser poupado. Seu café da manhã
consistia em um pouco de chá e uma fatia de pão; e o jantar, em um pouco
de pão com manteiga e sal. Depois, a sra. F. disse que ele teria de moderar
no almoço, querendo dizer, no entanto, que teria de evitar se
empanturrar.
Assim foi então montada a economia doméstica no que diz respeito ao
sustento de Reiser. Mas, em relação a sua roupa, não só não era tirado
nada do dinheiro que o príncipe lhe dava como também lhe foi comprado
um velho e rústico uniforme vermelho de soldado, que foi ajustado ao seu
tamanho, e com o qual deveria frequentar a escola pública, onde o mais
pobre estaria mais bem-vestido que ele, circunstância que contribuiu não
pouco, já no início, para abater seu ânimo.
Além disso, Anton ainda tinha de buscar o pão de munição que o
oboísta F. recebia como parte de seu soldo e carregá-lo debaixo do braço
pela cidade, o que na verdade fazia, quando possível, ao anoitecer, sem
fazer notar que estava com vergonha para que seu ato não fosse
interpretado como um orgulho imperdoável; pois desse pão vinha
semanalmente um pouco de dinheiro com o qual ele tinha de custear seu
café da manhã e seu jantar.
Reiser não tinha a menor condição de se rebelar contra tudo isso,
porque o pastor M. depositava confiança ilimitada no juízo que a sra. F.
fazia da educação e da condução de seu modo de vida. Na mesma semana,
ele visitou também essas mesmas pessoas, agradecendo-lhes por terem se
encarregado de cuidar mais de perto de Reiser, que agora o pastor M.
confiava à plena guarda deles. Durante a visita, Reiser se sentou um pouco
triste próximo ao fogão, embora não quisesse ser ingrato com as
precauções do pastor M. Mas, daquele momento em diante, ele dependia
totalmente de pessoas em cuja casa já havia passado poucos dias numa
situação bastante penosa. Ele nunca conseguia se alegrar com toda aquela
bondade aparente que lhe era demonstrada, mas estava sempre receoso e
constrangido, porque cada insatisfação, até as menores, que lhe
demonstravam era ofensiva em dobro, quando pensava que o lugar
próprio de sua existência, o teto que desfrutava, dependia simplesmente
da bondade de pessoas tão sensíveis e facilmente melindrosas como F. e
ainda mais sua esposa.
Apesar disso, ele se animava com a ideia de que na semana seguinte
deveria começar a frequentar a chamada escola superior. Durante muito
tempo, esse havia sido seu mais ansiado desejo. Quantas vezes, ao
atravessar o adro, não admirara com respeito o imenso edifício da escola
com a alta escada de pedras. Muitas vezes, ficava horas a fio parado ali
como se pudesse ver através da janela algo que se passava lá dentro.
Cintilava então casualmente pela janela uma parte da grande cátedra do
liceu – e como sua fantasia imaginava aquilo! Quantas vezes não sonhou à
noite com essa cátedra e com a longa fileira de bancos em que se sentavam
os venturosos alunos da sabedoria, em cuja companhia ele em breve
deveria ser admitido.
Desde a infância seus genuínos prazeres existiam em grande parte na
imaginação, e por isso de certa forma passou incólume pela falta da
verdadeira alegria juvenil que os outros desfrutavam plenamente. – Rente
à escola, duas longas passagens levavam às casas dos sacerdotes,
construídas uma ao lado da outra. Elas lhe davam uma vista tão venerável
que sua imagem e a do edifício da escola eram dominantes dia e noite em
sua alma – e o nome escola superior, que era usual entre pessoas comuns, e
a expressão alunos da escola superior, que muitas vezes ele ouvira também,
faziam sua determinação de frequentar essa escola lhe parecer cada vez
maior e mais importante.
Chegou o momento em que isso deveria acontecer, e, com o coração
palpitando, esperou a hora em que o diretor B. iria conduzi-lo a um desses
auditórios de sabedoria. Ele foi examinado pelo diretor e considerado apto
a frequentar o primeiro grau. A amizade, associada a uma dignidade
natural, com a qual aquele homem o chamou primeiramente de “meu
querido Reiser!”, penetrou sua alma e lhe inspirou a mais íntima confiança
e um respeito ilimitado pelo diretor. Ah!, que poder não exerce um
pedagogo sobre o coração dos jovens, quando ele, exatamente como o
diretor B., sabe encontrar em sua conduta o tom correto de uma dignidade
temperada pela afabilidade!
No domingo posterior à confirmação, Reiser foi receber pela primeira
vez a comunhão e procurou pôr em prática, da maneira mais escrupulosa,
as lições que havia anotado e decorado, como o exame prévio segundo o
catálogo da penitência e dos pecados e, em seguida, a subida ao altar com
um estremecimento alegre. Procurou de todos os modos se entregar àquele
tipo de estremecimento alegre: mas não conseguiu, e ele mesmo se
censurou com rigor por seu coração estar muito enrijecido. Por fim,
começou a tremer de frio, e isso de certo modo o acalmou.
Mas a sensação celeste e o sentimento de bem-aventurança que esse
alimento da alma lhe deveria conceder, tudo isso ele não experimentou –
atribuiu, porém, a culpa simplesmente ao próprio coração teimoso e se
torturou com o estado de indiferença no qual se encontrava.
O que mais lhe doía era não poder chegar de fato a reconhecer seus
miseráveis pecados, algo necessário para a edificação de uma vida. No dia
anterior, teve de admitir no confessionário, numa confissão que havia
aprendido de cor, que infelizmente havia cometido muitos e distintos
pecados, em pensamento, palavras e obras, omitindo-se de praticar o bem
e praticando o mal.
Os pecados dos quais ele se sentia culpado eram sobretudo de omissão.
Não rezava com bastante devoção, não amava a Deus com bastante fervor,
não se sentia grato o bastante aos seus benfeitores e não tinha a sensação
de estremecimento alegre quando comungava. – Todas essas coisas o
abalavam, mas não conseguia remediá-las à força, e por essa razão foi bom
quando o pastor M. absolveu suas faltas.
Ainda assim, sempre permanecia insatisfeito consigo mesmo: pois
considerava particularmente que a bem-aventurança divina e a
religiosidade eram a atenção a cada um dos seus passos, a cada sorriso, a
cada semblante, a cada palavra que falava, a cada pensamento que tinha.
Essa atenção era muitas vezes interrompida naturalmente, e não podia
durar numa pessoa mais que uma hora – assim que Reiser percebia sua
distração, ficava insatisfeito consigo mesmo e considerava por fim
impossível levar corretamente uma vida bem-aventurada e religiosa.
A sra. F. lhe fez uma longa pregação, no dia em que ele foi à comunhão,
sobre os maus prazeres e os desejos que costumavam nascer naquela
idade, contra os quais ele tinha de lutar. Felizmente, Reiser não entendeu
o que ela realmente queria dizer com aquilo e também não ousou lhe
pedir explicações mais detalhadas, mas apenas decidiu que, quando os
prazeres ruins pudessem nascer, fossem do tipo que fossem, lutaria
nobremente contra eles.
Nas aulas de religião no seminário, ele já tinha ouvido falar sobre
pecados de todo tipo, dos quais jamais conseguira ter uma ideia clara,
como o de sodomia, os pecados silenciosos e da masturbação, todos
mencionados durante a explicação do sexto mandamento, os quais
inclusive já havia anotado. Mas os nomes eram tudo o que ele sabia sobre
aquilo; pois o inspetor felizmente pintara os pecados com cores tão
assustadoras que Reiser já tinha medo só de imaginar esses pecados
monstruosos e não ousava penetrar mais fundo com seus pensamentos
nas trevas que os envolviam. Em geral, suas ideias sobre a origem dos
bebês eram ainda muito mais obscuras e confusas, embora não acreditasse
mais que a cegonha trouxesse as crianças. Naquele tempo, seus
pensamentos eram provavelmente puros; pois certa sensação de pudor,
que lhe parecia natural, era a causa de não deter muito seus pensamentos
nesses objetos nem se atrever a conversar sobre isso com seus colegas de
escola e conhecidos. Suas ideias religiosas sobre o pecado também o
favoreceram nisso. Para ele, já era temível o bastante que tais vícios, os
quais só conhecia pelo nome, realmente existissem no mundo; que dirá
então ter tido o pensamento de conhecê-los mais de perto.
Na segunda-feira pela manhã, o diretor B. o introduziu no primeiro
grau do liceu onde o vice-reitor e o mestre de capela lecionavam. – O vice-
reitor era também pregador, e Reiser já o havia escutado pregar várias
vezes. – O jeito como ele se portava em seu hábito sacerdotal agradava
especialmente a Reiser, de modo que este procurava imitá-lo
frequentemente com certo movimento do queixo para cima e para baixo.
O pastor G., como era chamado, era um homem ainda muito jovem; o
mestre de capela, ao contrário, era um homem velho e meio
hipocondríaco.
No primeiro grau, havia jovens já bastante crescidos, e Reiser não se
vangloriava pouco de ser um aluno do liceu.
As aulas começaram: o vice-reitor ensinava teologia, história,
estilística e o Novo Testamento. – O mestre da capela, catecismo, geografia
e gramática latina. De manhã, as aulas começavam às sete horas, iam até
as dez; à tarde, da uma às quatro. – Reiser teve de passar ali, junto com
outros vinte ou trinta jovens, uma boa parte de sua vida de então. Não era,
portanto, irrelevante o modo como as aulas estavam organizadas.
Segundo a ordem prescrita, toda manhã logo cedo era lido primeiro
um capítulo da Bíblia, respeitando a sequência, não importando se fosse
longo ou curto. A seguir, duas vezes por semana se ensinava uma espécie
de teologia segundo a ordem da salvação, na qual havia, por exemplo, a
opera ad extra e a opera ad intra, que eram muito bem memorizadas. Entre
as primeiras se incluíam as obras nas quais todas as três pessoas faziam
parte da divindade, como a criação, a salvação etc., embora fossem
imputadas principalmente a uma pessoa; e entre as segundas se incluíam
as obras em que uma pessoa se diferenciava da outra, e o que condizia
unicamente a ela, como a geração do Filho pelo Pai, a origem do Espírito
Santo a partir do Pai e do Filho etc. Reiser já havia aprendido essa
diferença no seminário, mas ficava muito contente porque agora sabia
também chamá-las pelo nome latino. Das aulas de teologia, a opera ad extra
e a opera ad intra deixaram marcas muito profundas nele.
Duas vezes por semana, o vice-reitor expunha uma espécie de história
universal segundo Holberg, e o mestre de capela ensinava geografia
segundo Hübner. Essas eram as aulas de ciência. Todo o tempo restante
era empregado no aprendizado de língua latina. Isso também era o único
modo de alguém conseguir ter fama e aprovação. Pois a posição dos alunos
na classe era definida conforme o desempenho em latim.
O método do mestre de capela era ditar semanalmente um pequeno
texto sobre um número de regras tiradas da grande Grammatica Latina
Marchica, que tinha de ser traduzido em latim e no qual as frases eram
selecionadas de modo que sempre as respectivas regras gramaticais
pudessem ser empregadas. Quem prestava mais atenção na explicação
delas conseguia também fazer melhor o chamado exercitium e galgar, com
isso, um lugar mais alto.
Por mais que as frases alemãs, selecionadas em função do latim,
soassem estranhas, aquele exercício era de fato muito útil e um forte
incentivo à emulação. – Pois dentro de um ano Reiser progrediu tanto que
escrevia em latim sem um único erro gramatical, expressando-se mais
corretamente nessa língua do que em alemão. Pois em latim sabia onde
tinha de usar o acusativo e o dativo. Mas em alemão ele nem imaginava
que mich, por exemplo, era o acusativo, e mir o dativo, e que era preciso
declinar e conjugar sua língua materna tanto quanto o latim. – Ele, no
entanto, assimilou imperceptivelmente alguns conceitos gerais que mais
tarde pôde usar em sua língua materna. – Começou aos poucos a ter noção
clara do que se denomina substantivo e verbo, algo que ele
frequentemente ainda confundia quando um se aproximava do outro,
como, por exemplo, gehn (caminhar) e das Gehen (a caminhada). Mas, como
esses lapsos costumavam ocasionar erros na redação de latim, ele passou a
ficar muito mais atento e aprendeu também, sem perceber, a reconhecer
as diferenças mais delicadas entre partes do discurso e suas alterações; de
modo que, um tempo depois, ele mesmo às vezes se espantava de ter
cometido recentemente erros tão evidentes.
O mestre de capela costumava pôr seu vidi (visto) embaixo de cada
composição de latim, depois de ter assinalado nas laterais em traços
vermelhos o número de erros. Como Reiser via esse vidi embaixo de cada
exercitium, acreditava que era uma palavra que ele também teria de
escrever sempre no fim da redação, e cuja omissão o mestre de capela
tinha lhe atribuído como um erro. Escreveu então de próprio punho vidi
embaixo de seu segundo exercitium, e o mestre de capela e seu filho, que
estava presente, riram alto dele e lhe explicaram o que aquilo significava.
– De repente, Reiser viu seu erro e não pôde compreender como ele
mesmo não tinha percebido a explicação correta do vidi, pois, além do
mais, já sabia bem o que significava vidi.
Era como se despertasse envergonhado de uma espécie de tolice que
tomara conta dele. E por um momento ficou quase tão abatido como
quando outrora o inspetor lhe disse no seminário “garoto idiota”,
acreditando que ele nem sequer conseguiria soletrar. Esse tipo de tolice
real ou aparente em determinados casos provém em parte de uma falta de
presença de espírito, em parte de certa timidez ou indolência, pela qual
durante algum tempo a capacidade natural do pensamento é impedida de
agir livremente.
Outra lição fundamental eram as biografias dos generais gregos, de
Cornélio Nepos, de onde se retirava um capítulo da vida de um general
para semanalmente ser recitado de cor. Esses exercícios de memória se
tornaram muito fáceis para Reiser, porque ele procurava não só gravar as
palavras como também as coisas, o que fazia toda vez à noite antes de
dormir; e de manhã, ao acordar, as ideias estavam bem mais claras e
ordenadas em sua memória do que na noite anterior, como se a alma
continuasse, de certo modo, trabalhando durante o sono, e o que ela uma
vez havia começado seria terminado vagarosamente durante o completo
sossego do corpo.
Tudo o que Reiser confiava a sua memória, ele costumava decorar
dessa maneira.
Começou também a se dedicar à poesia, o que já fizera na infância,
quando seus versos costumavam abordar a natureza bela, a vida
campestre e outros temas semelhantes. Pois a única coisa que em sua
situação realmente lhe provocava um entusiasmo poético eram suas
caminhadas solitárias e a vista da relva verde nas vezes que saía pela porta
da cidade.
Quando garoto, aos 10 anos, fez algumas estrofes que começavam
assim:
e que foram musicadas por seu pai. E o poema que ele acabara de compor
era um “Convite ao campo”, em que pelo menos as palavras não foram mal
escolhidas. – Entregou esse poeminha ao jovem M., que o fez chegar às
mãos do pastor M. e do diretor, e os dois aprovaram o poema, de modo
que Reiser começou a se considerar um poeta. Mas o mestre de capela o
fez ver em seguida seu erro quando repassou o poema verso a verso com
Reiser, mostrando-lhe não só os erros de métrica, mas também os de
expressão e a falta de coerência nas ideias.
Essa crítica aguda do mestre de capela era um verdadeiro benefício
para Reiser, e ele jamais lhe pôde agradecer o bastante. De outra forma, a
aprovação, que esse primeiro produto de sua musa recebeu
imerecidamente, o teria prejudicado por toda a vida.
Apesar disso, às vezes ainda era tomado pelo furor poeticus, e, como
agora realmente o que mais o entusiasmava era o prazer de se dedicar ao
estudo, ele se atreveu então a fazer um novo poema em louvor das
ciências, que começava de maneira muito estranha:
isso lhe causou muita mágoa e vergonha, e ele teria dado qualquer coisa
para não ter composto esses versos.
Depois de ter frequentado por um trimestre as aulas de canto do
mestre de capela, Reiser alcançou sua tão ansiada e desejada felicidade de
cantar no coro, no qual era contralto. A alegria com sua nova posição de
corista durou algumas semanas, enquanto o clima esteve bom. Encontrou
imenso prazer tanto nas árias e motetos que ouviu cantar como nas
conversas amigáveis com seus colegas de escola, enquanto iam de uma
casa a outra, de uma rua a outra.
Esse tipo de coro tem muita semelhança com uma trupe de atores
ambulantes, na qual de certo modo também compartilham entre si alegria
e sofrimento, tempo bom e ruim etc., o que costuma sempre provocar uma
união bastante estreita entre os participantes.
Reiser esperou ansioso pelo sobretudo azul que seria seu futuro
adorno. – Pois esse sobretudo já era algo parecido com a vestimenta de
sacerdote. – Mas mesmo essa esperança o iludiu bastante; pois, a fim de
economizar para Reiser, a sra. F. mandou fazer para ele um sobretudo com
alguns velhos aventais azuis, com o qual ele não representava um papel de
destaque entre os demais alunos do coro.
Logo no primeiro dia, Reiser notou que um dentre esses alunos se
destacava mais que os outros. – Percebia-se de imediato que era um
forasteiro, ainda que não o ouvisse falar em sua língua. Pois qualquer
expressão facial e gestos dele demonstravam mais vivacidade e
desenvoltura que a aparência cerimoniosa e desengonçada dos moradores
de H. – Reiser não se cansava de olhá-lo; e, ao ouvi-lo falar, não conseguia
deixar de admirar suas frases bem formuladas em dialeto da Alta Saxônia;
tudo o que os moradores de H. diziam lhe parecia deselegante e sem graça.
– O líder do coro era um rapaz bêbado, com quem esse forasteiro sempre
entrava num bate-boca e a quem costumava dar em geral respostas muito
adequadas e certeiras quando o líder pretendia exercer certa supremacia
sobre ele. E quando este certa vez lhe disse, entre outras coisas, que era
líder havia muito tempo para permitir que um moleque o insultasse, o
forasteiro respondeu então que sem dúvida não o honrava ser um rapaz
mais velho e continuar apenas líder de coro. – Essa superioridade de
astúcia com a qual o estrangeiro repentinamente humilhou o líder fez
Reiser prestar mais atenção nele, e, quando se informou sobre o seu nome,
ficou sabendo que se chamava Reiser e era de Erfurt.
Para Reiser, era muito impressionante que esse jovem, a quem já
estava afeiçoado, tivesse exatamente o sobrenome dele, embora, em razão
da distância do local de nascimento, dificilmente poderia ser seu parente.
Gostaria de fazer amizade imediatamente com ele, mas não ousou, porque
seu homônimo era primeiranista e ele ainda era secundanista. Também
tinha medo de sua astúcia, da qual não se sentia à altura, se alguma vez
viesse a se dirigir a ele. No entanto, a aproximação entre os dois ocorreu
naturalmente, porque Philipp Reiser se tornava cada vez mais atento ao
modo silencioso e ensimesmado de Anton, enquanto este dava atenção ao
modo vivaz do primeiro, e eles logo se encontraram em meio à multidão e
ficaram amigos, apesar da diferença de temperamento.
Esse Philipp Reiser era sem dúvida uma mente brilhante, mas, por
circunstâncias nas quais o destino o havia posto, era também oprimido. –
Além de uma sensibilidade refinada, era dotado de muita astúcia e humor,
de verdadeiro talento musical e, ao mesmo tempo, de uma cabeça
excelente para mecânica – mas era pobre e extremamente orgulhoso.
Antes de aceitar qualquer favor, preferia passar fome, o que de fato
frequentemente ocorria. – Porém, quando tinha dinheiro, era generoso e
hospitaleiro como um rei – desfrutava mais aquilo que comia quando
podia compartilhar em abundância com os outros – mas sem dúvida não
aprendera muito bem a calcular receitas e despesas, e por isso teve muitas
e frequentes ocasiões de praticar a grande arte da privação voluntária
daquilo que gostaria de ter. – Sem jamais ter tido instrução, fabricava
pianos muito bons, o que lhe proporcionava algumas vezes uma boa
receita, mas que sem dúvida não o ajudava muito por causa de sua imensa
generosidade. Ideias romanescas enchiam de modo constante sua cabeça,
e sempre estava perdidamente apaixonado por alguma mulher; quando
chegava a esse ponto, era como se ouvíssemos um amante dos tempos da
cavalaria. – Sua fidelidade na amizade, seu desejo de ajudar os
necessitados e mesmo sua hospitalidade tinham a mesma característica e
se baseavam em parte nas ideias romanescas que nutriam sua fantasia,
embora o verdadeiro fundamento fosse seu bom coração – pois esses
exageros de virtudes romanescas só podem germinar e criar raízes no
fundo de um bom coração. Numa alma egoísta e num coração atrofiado, a
mais frequente leitura de romances jamais produzirá tais efeitos. –
É fácil ver por que Philipp e Anton Reiser encontraram um ao outro no
meio do caminho, e, com o convívio mais íntimo, pareciam feitos um para
o outro. O primeiro tinha quase 20 anos quando Reiser o conheceu; os
anos a mais o tornavam de certo modo líder e conselheiro, mas foi uma
pena que, no ponto principal, no que se refere à organização da vida, Reiser
não achou um líder e conselheiro melhor. Mas havia encontrado o
primeiro verdadeiro amigo de sua juventude, cujo convívio e conversas
tornavam de alguma forma suportáveis as horas que tinha de passar no
coro.
O bom tempo se fora, e a chuva, a neve e o frio chegaram – mesmo
assim, o coro tinha de cantar na rua em horas determinadas. – Ah!, e como
Reiser, congelado pelo frio, contava os minutos para acabar o canto
maçante que antes parecia soar a seus ouvidos como uma música celestial.
As quartas-feiras, os sábados à tarde e os domingos inteiros eram
ocupados apenas pelo coral – pois todas as manhãs de domingo os coristas
tinham de estar na igreja para cantar o Amém lá do alto do coro. –
Também no sábado à tarde, durante a preparação da eucaristia, os jovens
alunos do coro tinham de entoar uma canção com o mestre de capela, e
um deles devia ler um salmo lá de cima do coro, o que era novamente uma
imensa descoberta para Reiser – com essas leituras públicas e em voz alta
dos salmos, ele se sentia recompensado por todo o incômodo de cantar no
coro. – Já se via ali em pé como o pastor P. em B., falando com a voz
comovida para o povo reunido.
Aliás, o coro logo se tornou para ele a coisa mais desagradável do
mundo. Roubava-lhe todas as horas de repouso que ainda lhe sobravam,
deixando-o sem a perspectiva sequer de um único dia de sossego na
semana. Como se dissiparam os sonhos dourados que nutrira! – E como
teria sido bom, se fosse possível, ter se libertado daquela escravidão. – Mas
o dinheiro do coro já fazia parte de seus rendimentos regulares, e ele não
se permitia sequer pensar em largar o coral.
Não acontecia nada melhor com a maior parte de seus companheiros
de escravidão, que estavam fartos dessa vida tanto quanto ele. – E também
é de fato muito triste a vida de um aluno de coro, obrigado a cantar pelo
seu sustento de porta em porta. Se alguém não perde de todo o ânimo
nessa situação, trata-se então de um caso raro. – A maioria das pessoas
acaba por se tornar servil e, uma vez assim, jamais se livra desse traço.
O chamado coral do Ano-Novo, que dura três dias seguidos, provocou
em Reiser uma impressão estranha e que, por causa das muitas mudanças
de cenas que nele ocorrem, tem muita semelhança com uma jornada de
aventura. – Sob neve e frio, alunos ficam na rua, apinhados e encostados
uns aos outros, até que um mensageiro, enviado de vez em quando, traz a
notícia de que se deve cantar em uma das casas. – Em seguida, eles entram
e são obrigados a cantar na sala, primeiro uma ária ou moteto apropriado
à época do ano. – Depois que cantam, alguns donos das casas costumam
fazer a gentileza de servir vinho, ou café, e bolo aos alunos do coro. Essa
recepção numa sala quentinha depois de terem ficado longo tempo no
frio, com as bebidas oferecidas, era um revigoramento, e a variedade de
objetos, já que viam num único dia mais de vinte mobiliários domésticos
distintos e famílias reunidas em suas salas de estar, provocava uma
impressão tão agradável na alma que durante os três dias eles pairavam
em certo encantamento e numa constante expectativa de novas cenas,
tolerando de bom grado os rigores do clima. – O canto durava até a noite, e
a iluminação noturna deixava a cena mais solene. Entre outros lugares, o
coro de alunos cantou também o Ano-Novo num asilo de senhoras idosas,
onde tiveram de formar um círculo com as mães idosas e cantar de mãos
postas: “Até aqui Deus me trouxe” etc. – Nesse canto de Ano-Novo todos
pareciam ser mais amigáveis uns com os outros. Não se atentava muito à
hierarquia, os primeiranistas conversavam com os secundanistas, e uma
alegria incomum tomava conta de todos os ânimos.
Naquele Ano-Novo, Reiser também foi tomado por um furor
surpreendente para fazer versos. – Os votos de Ano-Novo para os pais,
para o irmão, para a sra. F. e sabe-se lá para quem mais foram escritos em
versos, e neles falava dos riachos de prata serpenteando entre as flores, e
dos delicados zéfiros, e de dias dourados, que eram de admirar – seu pai
sentira um prazer maravilhoso com o riacho de prata; mas sua mãe ficou
surpresa por ele chamar o pai de “o pai melhor”, pois ele só tinha um.
Seu aprendizado de poesia consistia à época em quase nada, a não ser
os escritos breves de Lessing, emprestados por Philipp Reiser e que sabia
praticamente de cor de tanto que os havia lido. A propósito, via-se
facilmente que, desde que tinha entrado para o coral, não sobrava mais
tempo para os seus próprios trabalhos. Apesar disso, tinha grandes
projetos de todo tipo; o estilo em Cornélio Nepos, por exemplo, não lhe
era suficientemente elevado, e ele teve a ideia de dar uma roupagem
completamente diferente à história dos generais; algo parecido à maneira
como estava escrito Daniel na cova dos leões – que também deveria se tornar
uma espécie de poema épico.
Nas aulas particulares com o vice-reitor, foram lidas as comédias de
Terêncio, e a mera ideia de que esse autor fosse considerado um dos mais
difíceis levou-o a estudá-lo com mais afinco do que Fedro ou Eutrópio, e
cada peça lida na escola, ele a traduzia imediatamente em casa.
Quando realizou desse modo verdadeiros e imensos progressos em tão
pouco tempo, fez uma nova visita ao homem velho e surdo, que já passara
dos 100 anos e já havia um bom tempo voltara a ser criança, mas para o
assombro de todos recuperara completamente o juízo um ano antes de sua
morte. Reiser sabia que seu quarto ficava no fim de um corredor escuro e
sentiu um pequeno arrepio quando ouviu a distância os passos rastejantes
do velho, que, assim que Reiser entrou, lhe deu as boas-vindas
amigavelmente, acenando-lhe com a mão para que lhe escrevesse alguma
coisa.
Com verdadeiro arrebatamento Reiser escreveu que agora estava
estudando e já traduzia Terêncio e o Novo Testamento!
O ancião consentiu em participar de sua alegria infantil e ficou
admirado de Reiser já poder entender Terêncio, que requer o domínio de
um amplo vocabulário. Por fim, Reiser, para ostentar sua sabedoria, lhe
escreveu alguma coisa em letras gregas – e o ancião o estimulou a
continuar sua dedicação aos estudos, exortando-o a não se esquecer da
oração, e ali mesmo se ajoelharam, e assim como cinco anos antes, quando
Reiser o viu pela primeira vez, rezaram novamente juntos.
Reiser foi para casa com o coração comovido e se propôs a voltar-se
novamente para Deus, o que para ele significava pensar incessantemente
em Deus – ele se recordou melancólico do estado no qual se encontrava na
infância quando entabulava conversa com Deus, e cada vez mais tinha
altas expectativas de que grandes coisas ocorreriam dentro dele. – Havia
nessas recordações uma doçura indescritível, pois o romance encenado
pela devota fantasia das almas crentes com o supremo ser, por quem se
creem ora abandonadas, ora aceitas de novo, ora sentem nostalgia e
avidez por ele, ora estão novamente num estado de secura e vazio no
coração, tem algo de realmente sublime, de grandioso, e mantém a vida
espiritual numa atividade incessante, de modo que os sonhos noturnos
também se ocupam de coisas sobrenaturais, tal como Reiser uma vez
sonhou que fora aceito na sociedade dos bem-aventurados que tomavam
banho em rio cristalino – um sonho que muitas e frequentes vezes
encantou sua imaginação.
Reiser pegou novamente emprestados do velho Tischer os escritos de
Madame Guyon e enquanto lia recordou aqueles tempos felizes em que,
segundo sua opinião, estava ocupado com o caminho para a perfeição. –
Quando muitas vezes ficava triste e mal-humorado em razão de
circunstâncias externas, e nenhuma leitura era de seu gosto, a Bíblia e os
cânticos de Madame Guyon eram seu único refúgio, por causa da atraente
obscuridade que neles imperava. Através do véu de suas frases
enigmáticas, brilhava uma luz desconhecida que revigorava sua fantasia
mortificada – mas mesmo assim não conseguia progredir mais nem com
verdadeira crença nem com o pensamento incessante em Deus. – Entre as
pessoas de seu convívio, ninguém mais se preocupava com seu estado de
alma, e ele tinha tantas distrações na escola e no coro que não conseguia
sequer por uma semana manter-se fiel à tendência a voltar-se
constantemente para dentro de si mesmo.
No entanto, ele ainda visitou muitas vezes o ancião, até que certo dia
em que quis visitá-lo soube que estava morto e enterrado – suas últimas
palavras haviam sido: tudo! tudo! tudo!. Reiser se lembrou de ter ouvido
muitas vezes dele essas palavras no meio da oração, ou então, após uma
pausa, numa espécie de arrebatamento. – Às vezes parecia querer exalar,
com essas palavras, seu espírito maduro para a eternidade, e se desfazer
naquele instante de sua carcaça mortal. – Por isso Reiser ficou muito
impressionado quando soube que o ancião morrera dizendo essas palavras
e, no entanto, para ele era como se também não tivesse morrido, pois o
religioso ancião sempre havia passado uma forte impressão de viver em
outro mundo – das últimas vezes que Reiser falou com ele, morte e
eternidade foram quase seu único pensamento. – Para Reiser, daquela vez
que tentou visitar o ancião, era quase como se ele tivesse mudado de
morada, e isso não se devia à indiferença, mas à íntima familiaridade
daquele homem com a ideia da morte.
Mas, por outro lado, perdera no ancião um amigo de sua juventude,
cujo interesse em seu destino lhe dera alegria tantas vezes. Em muitos
momentos, ele se sentia, sem saber o motivo, mais abandonado que antes.
A sra. F. estava também cada vez mais farta com o peso de sua estada e
finalmente lhe disse, após ter tido paciência ao longo de nove meses, que
ele deveria deixar a casa, aconselhando-o, com a melhor das intenções, a
procurar outro lugar. Nesse meio-tempo, o reitor do liceu partiu, e o novo
reitor S., escolhido para ficar em seu lugar, era um bom amigo do pastor
M.; este pensou então em levar Reiser para a casa do novo reitor e lhe
chamou antecipadamente atenção para as grandes vantagens que assim o
beneficiariam, se tivesse a sorte de ser acolhido por ele em sua casa. –
Reiser deveria então se mudar para a casa do reitor – e isso deixou sua
vaidade muito lisonjeada! Pois pensou que, se tivesse a sorte de se tornar
querido pelo reitor, perspectivas radiantes se abririam para ele, pois, além
do mais, o reitor seria seu professor, porque, após o fim de seu primeiro
ano escolar na segunda série, ele seria transferido para a primeira série,
onde só o diretor e o reitor davam aulas.
No fim das contas, foi extremamente favorável para Reiser que a sra. F.
o tivesse alertado para deixar a casa, porque ele jamais teria ousado
mencionar uma palavra sobre querer se mudar dali. – Além disso, ainda
tinha a maior expectativa de ser inquilino na casa do reitor, seu futuro
professor. Mas, por volta dessa época, ele começou a formar em sua
imaginação uma nova ideia extravagante, que teve grande influência em
toda a sua vida futura.
Já mencionei os exercícios de declamação ministrados pelo vice-reitor
na segunda série. Isso era para Reiser e I. um estímulo tão extraordinário
que tudo o mais ficava obscurecido, e ele não desejava mais nada a não ser
a oportunidade de um dia representar uma peça de teatro com alguns dos
seus colegas de escola, para que pudessem ouvi-lo declamar – isso era um
estímulo tão infinito que durante um tempo ficava às voltas com esse
pensamento, dia e noite, e fez até um esboço para uma peça na qual dois
amigos seriam separados e por isso estavam inconsoláveis etc. –
Encontrou também, num dos volumes da Biblioteca para crianças e jovens, de
Leyding, que alguém lhe havia emprestado, o comovente drama em versos
O eremita, que gostaria de montar com I. Desejava realmente um papel
afetado em que falasse com o maior páthos e pudesse ter uma série de
sensações almejadas, mas que não podia ter em seu mundo real, onde tudo
acontecia de maneira tão fria e pobre. – Em Reiser, esse desejo era muito
natural; era capaz de sentir amizade, gratidão, generosidade e nobre
determinação, sentimentos que estavam adormecidos dentro dele sem
nenhuma utilidade; pois seu coração estava contraído por sua situação
exterior. Era de esperar que buscasse novamente se expandir num mundo
ideal e se entregar aos seus sentimentos naturais! No teatro ele parecia,
por assim dizer, se reencontrar, depois de quase se perder no mundo real.
Por isso, como consequência, sua amizade com Philipp Reiser também se
tornou praticamente uma amizade teatral, que muitas vezes foi tão longe
a ponto de um estar decidido a morrer pelo outro. – A ideia extravagante
do teatro adquiriu tanto valor para ele que a obsessão por pregar foi
praticamente expulsa de sua alma – pois aqui sua imaginação encontrou
um espaço muito maior de atuação, muito mais próximo da vida real e do
seu interesse do que no eterno monólogo do pregador. Quando repassava
as cenas de um drama que havia lido ou esboçado em pensamento, Reiser
encarnava de fato um após o outro todos os papéis que representava, ora
era generoso, ora grato, ora magoado e paciente, ora impetuoso,
enfrentando corajosamente qualquer ataque.
Nesse momento, ir para a primeira classe era uma perspectiva
extraordinariamente atraente para ele – pois os primeiranistas do liceu
em H. tinham sem dúvida muitas prerrogativas externas, como se
encontram em poucas escolas. Todo Ano-Novo, eles faziam um desfile
público com música e tochas diante de uma grande quantidade de
espectadores, dando vivas ao diretor e ao reitor. Na noite seguinte, eles
espontaneamente entregavam, um ano ao diretor e outro ao reitor, um
presente conjunto, que valia em geral mais de cem moedas de prata, e
aquele que o entregava também fazia um pequeno discurso em latim –
depois lhes eram servidos vinho e bolo, e podiam tomar a liberdade de
gritar um alto e retumbante viva ao seu professor na casa deste.
A organização daquele desfile sempre começava a ser discutida quase
um trimestre antes.
Todo verão, durante a canícula, os primeiranistas encenavam as peças,
escolhidas por eles, e eram responsáveis por sua organização. Isso os
ocupava quase todo o verão. Depois, em janeiro, era a festa de aniversário
da rainha e, em maio, a do rei, em que sempre era proferido um discurso
com grande solenidade, ao qual compareciam o príncipe, os ministros e
quase todos os notáveis da cidade. A preparação de cada uma dessas
celebrações tomava muito tempo. Além disso, anualmente eram
realizados dois exames públicos, cada qual sempre seguido por um
feriado. Perdia-se muito tempo com isso. Mas, para um jovem ambicioso,
tudo significava metas muito atraentes, que sempre lhe revigoravam o
encanto pelo ano letivo, tão logo este ameaçava se extinguir.
Ser uma vez um dos comandantes no desfile com tochas, ou fazer um
discurso em latim na entrega do presente, ou ter um papel principal numa
das peças encenadas, ou até mesmo proferir um discurso no aniversário
do rei ou da rainha eram os desejos e as perspectivas de um primeiranista
do liceu em H. Acrescente-se ainda o elegante auditório da primeira
classe, com uma cátedra dupla elegantemente construída de nogueira
encerada, e cortinas verdes diante das janelas, tudo reunido para
preencher de novo a fantasia de Reiser com imagens comoventes de sua
situação futura e excitar ao mais alto grau sua expectativa quanto ao que
lhe aconteceria. Tornar-se um primeiranista imediatamente após seu
primeiro ano escolar era uma alegria com a qual mal teria podido sonhar.
Repleto dessas esperanças e perspectivas, na semana de férias antes da
Páscoa, Reiser viajou, com cocheiros que percorriam o mesmo caminho,
para a casa dos pais a fim de lhes contar sua alegria. Nessa viagem, em que
grande parte do caminho era pela floresta e pela charneca, sua fantasia, já
entusiasmada, foi tomada por um impulso extraordinário: ele esboçou
poemas épicos, tragédias, romances, e quem sabe o que mais – às vezes
também lhe ocorria pensar em escrever sua vida; mas o começo que ele
imaginava era sempre igual às robinsonadas que havia lido, a saber, tinha
nascido em tal e tal ano, em H., de pais pobres, mas honrados, e assim por
diante.
Todas as outras vezes que viajou depois à casa dos pais, a pé ou de
carroça, sua imaginação se mantinha sempre completamente ocupada
durante o trajeto – todo o espaço de tempo de sua vida pregressa surgia
diante dele assim que perdia de vista as quatro torres de H. – o horizonte
de sua alma se ampliava com o horizonte diante de seus olhos. – Sentia-se
transposto do limitado círculo de sua existência para o grande e amplo
mundo, no qual eram possíveis todos os acontecimentos maravilhosos que
já havia lido nos romances – por exemplo, daquela colina, de repente o pai
e a mãe viriam ao seu encontro e ele alegremente se apressaria na direção
deles – Reiser já pensava ouvir o tom de voz dos pais – e, quando fez pela
primeira vez essa viagem, sentiu realmente o mais puro prazer da ansiada
expectativa de estar com eles: que grandes coisas não teria para lhes
contar!
Quando ele chegou, ao meio-dia do dia seguinte, os pais e os dois
irmãos o saudaram com alegria cordial em sua residência campestre. Eles
tinham um pequeno jardim no fundo da casa. Até então, tudo parecia bem.
Mas quanto à paz doméstica, como logo viu, tudo continuava infelizmente
como antes. Ouviu, porém, seu pai tocar de novo a cítara e cantar os
cânticos de Madame Guyon. Conversaram também sobre a doutrina de
Madame Guyon, e Reiser, que já havia formado em sua cabeça uma espécie
de metafísica, próxima do spinozismo, muitas vezes concordava
milagrosamente com o pai quando falavam sobre o tudo da divindade e o
nada da criatura, o que era ensinado por Madame Guyon. Eles acreditavam
se entender, e Reiser sentiu um infinito prazer nessas conversas com o
pai, que antes parecia julgá-lo apenas um garoto idiota; conversar agora
sobre assuntos sublimes com ele era algo que o lisonjeava. Depois
visitaram o pregador e os notáveis do lugar; Reiser foi convidado por
todos para participar das conversas e, como esse tratamento também lhe
inspirou autoconfiança, ele se comportou muito bem. – Os vizinhos de
seus pais, e quem chegasse ali, estavam todos atentos ao filho do escrivão,
cujos estudos em H. eram sustentados pelo príncipe. – A alegria pura e
serena que Reiser desfrutou naqueles dias, junto com as esperanças mais
agradáveis, compensou fartamente todos os desgostos e as humilhações
imerecidos que sofrera durante todo o ano.
Mas ninguém no mundo, nenhum familiar, esteve tão interessado em
seu destino como sua mãe – à noite, quando Reiser ia se deitar, ela se
curvava sobre ele e dizia em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, Amém,
fazendo o sinal da cruz sobre a testa dele, como antigamente, para que
dormisse protegido, e não havia noite ou manhã em que ela, mesmo na
ausência do filho, não o incluísse em sua prece. – Com melancolia, Reiser
se despediu dos pais, e, ao ver de novo as torres de H., tristes
pressentimentos apertaram seu coração.
No dia seguinte ao de seu retorno, ele foi examinado pelo diretor para
a transferência de grau escolar, e, como deveria traduzir um trecho de Dos
deveres, de Cícero, do latim para o alemão, quis o acaso que ele
infelizmente virasse uma página do exemplar que o diretor havia lhe dado
com tal falta de jeito que quase a rasgou. Por causa disso, a sensibilidade
do diretor, que sempre procurava ser extremamente delicado em tudo, só
pôde ficar gravemente ofendida. – Reiser decaiu infinitamente aos olhos
do diretor por esse gesto que aparentemente indicava falta de sentimento
e de modo de vida refinados. O diretor repreendeu sua inabilidade de
maneira muito severa, de tal modo que a confiança de Reiser nele recebeu
um golpe violento do qual jamais conseguiu se recuperar, por causa da
vergonha causada pela severa repreensão. Por esse motivo, o modo de ser
acanhado que Reiser a partir daí demonstrava na presença do diretor
acabou por depreciá-lo ainda mais. Em suma, de uma única página virada
rapidamente no exemplar do diretor de Dos deveres, de Cícero, procederam
em grande parte todos os sofrimentos que Reiser passaria a viver a partir
de então em seus anos de aprendizado, e que se baseavam
fundamentalmente na falta de respeito do diretor, cuja aprovação, que
tanto lhe importava, ele perdera apenas por ter virado a página rápido
demais.
Além disso, apesar de já ter se mudado da casa da sra. F., ela ainda
guardava trancada sua roupa nova, e Reiser era obrigado a frequentar a
primeira classe, na qual se via cercado de jovens quase todos muito bem-
vestidos, com a antiga sobrecasaca recebida pelo chapeleiro L. A
sobrecasaca lhe dava um ar ridículo porque lhe ficara muito curta. Ele
mesmo se sentia assim, e tal circunstância contribuiu muito para sua
timidez, a qual demonstrou naquela classe como nunca. O mestre de
capela e o vice-reitor também ficaram extremamente zangados com
Reiser, pois ele não havia dito previamente nada sobre sua transferência
para a primeira classe e dera esse passo sem o conselho deles. Ele se
desculpou tanto quanto pôde, alegando que não havia pensado naquilo. O
mestre de capela logo o perdoou, mas o vice-reitor jamais, e ainda o fez
pagar por isso durante um bom tempo. Exigiu de Reiser um valor alto para
as aulas particulares que haviam sido dadas, as quais todos achavam
serem de graça – durante alguns anos, esse dinheiro saía do pagamento
que Reiser recebia do coro, muitas vezes no momento em que dele mais
necessitava – circunstância que também o deixou muito abatido.
Ele conseguiu então uma sala e uma alcova na casa do reitor, e nada
mais, pois este ainda não estava totalmente instalado. Reiser ainda tinha
uma manta de lã dos pais; além disso, para economizar o máximo possível,
alugaram-lhe um travesseiro e um colchão; quando esfriava à noite, ele
era obrigado a recorrer à sua roupa a fim de se cobrir bem. Seu velho
piano servia-lhe de mesa; tinha também um banquinho do auditório do
reitor, uma pequena prateleira pendurada com prego sobre a cama, e uma
mala velha com algumas roupas usadas na alcova – era esse todo o seu
mobiliário doméstico, mas ali ele se sentia muito mais feliz do que na sala
da sra. F., mesmo havendo lá muito mais conforto.
Ao ficar sozinho em sua sala, ele se sentia muito bem, mas ainda não se
sentia confiante na presença do reitor. Quando o via de pijama e touca de
dormir, parecia se espalhar ao seu redor uma aura de seriedade e
dignidade que mantinha Reiser a grande distância – ele tinha de ajudá-lo a
organizar sua biblioteca; às vezes, quando lhe passava os livros, chegava a
ficar tão perto dele que Reiser podia ouvir sua respiração, e com
frequência sentia então uma força dentro de si para estabelecer o vínculo
– mas logo a seguir a timidez e o embaraço voltavam. – Apesar disso, ele
amava o reitor – e sua cabeça cheia de ideias romanescas às vezes o fazia
desejar ser transposto com o reitor para uma ilha inabitada qualquer,
onde eles, igualados pelo destino, pudessem ter relações amistosas e
familiares.
O reitor fez de tudo para inspirar coragem e confiança em Reiser;
várias vezes convidou-o para comer à sua mesa, só os dois, e conversavam
– naquela época, Reiser já tinha o projeto de ser escritor: queria melhorar
o estilo da antiga Acerra philologica, e o reitor teve a generosidade de
sempre encorajá-lo a alimentar esses projetos futuros e a se ocupar de sua
elaboração.
Quando Reiser falava coisas assim com o reitor, faltavam-lhe sempre os
termos corretos que deveria usar, o que acabava por quebrar bastante
suas frases. – Pois ele preferia ficar em silêncio a escolher a palavra errada
para o pensamento que queria expressar. – Nesses momentos, o reitor o
acudia com muita indulgência. – Muitas vezes, pedia que ele viesse à noite
até a sala e lesse em voz alta. –
Às vezes, Reiser ousava lhe fazer perguntas: por exemplo, em que
medida uma cadeira pode ser denominada um indivíduo, já que se pode
dividi-la sempre mais e mais, dúvida que lhe ocorrera na aula de lógica do
diretor – e o reitor solucionou sua dúvida com muita condescendência e o
elogiou por suas reflexões sobre questões semelhantes; às vezes, brincava
com Reiser, e, caso o encarregasse de buscar um livro ou outra coisa
qualquer, jamais fazia isso em tom de ordem, mas de pedido. – Assim as
coisas seguiam muito bem – mas para virar a página Reiser ainda parecia
ter azar – certa vez, a pedido do reitor, teve de abrir, com uma faca de
pena, páginas de livros encadernados, e as abriu com tamanha falta de
jeito que fez cortes profundos a ponto de os livros ficarem praticamente
estragados. O reitor ficou muito bravo e lhe fez uma dura reprimenda,
como se Reiser tivesse feito os cortes nas páginas por maldade a fim de se
livrar do trabalho. – Certamente não foi esse o motivo – a reprimenda
feriu Reiser e muito contribuiu para abater novamente seu ânimo, que aos
poucos se erguia.
No entanto, ele ainda se recuperou mais uma vez, quando o reitor o
levou numa pequena viagem a uma cidade católica vizinha a fim assistir à
celebração do Corpus Christi. – O reitor, o vice-reitor, o mestre de capela e
alguns alunos de teologia viajaram na mala-posta extra, na qual Reiser
também conseguiu um lugar. Na ocasião, viu esses homens veneráveis,
que haviam se tornado mais íntimos pelo laço mútuo que costuma ocorrer
numa pequena viagem em grupo, brincarem uns com os outros com muita
vivacidade; e isso teve um efeito bastante especial em Reiser. – A aura ao
redor de suas cabeças foi desaparecendo pouco a pouco, e pela primeira
vez ele os viu simplesmente como seres humanos – pois jamais havia visto
um grupo de sacerdotes que debatessem descontraídos uns com os outros,
despindo-se momentaneamente da postura rígida e cerimoniosa que
normalmente lhes é atribuída em razão de sua posição. Somente o bom
mestre de capela manteve certa postura rígida, e, ao longo do trajeto,
quando um grande número de mendigos se aproximava da carruagem
entoando canções espirituais, os companheiros troçavam do mestre de
capela por essa cena, compadecendo-se dele afetuosamente por causa do
horrível tom desafinado que estremecia por completo seus ouvidos. Era a
primeira vez que Reiser via como aqueles homens veneráveis também
podiam troçar uns dos outros, como qualquer outra pessoa. E essa
experiência se tornou muito útil para ele; agora, quando via um pregador
que ainda considerava de algum modo uma espécie de ser sobre-humano,
ele o imaginava dentro daquele círculo de companheiros de viagem, e em
sua imaginação desfazia com facilidade a aura que antes o rodeava.
Apesar disso, tornou a sentir intensamente o quanto era insignificante
no grupo; e enquanto admiravam todas as particularidades dos mosteiros
e outras coisas na cidade católica, junto com certo número de pessoas,
inclusive estrangeiros, ele percebeu, o que sempre foi evidente, que era o
último em tudo e que tinha de encarar isso como uma grande honra – essa
ideia fez com que tivesse um comportamento constrangido, tolo e
estúpido no grupo, e sentiu esse seu comportamento de novo muito mais
fortemente do que qualquer pessoa além dele; por isso, durante aquele
momento em que pôde ouvir e ver tantas coisas novas, ele não foi nem um
pouco feliz e desejou novamente estar em seu cantinho solitário, com o
banco e o velho piano, e com a prateleira que estava pendurada no prego
sobre sua cama.
Mas o que começou fundamentalmente a amargar seu destino foi uma
nova e imerecida humilhação, provocada pela atual situação em que se
encontrava e que ele não conseguia modificar.
As primeiras vezes que compareceu à primeira classe, ouviu um ou
outro cochicho atrás de si: veja, este é o fâmulo do reitor! – Uma
denominação à qual Reiser associava o mais baixo conceito; pois ainda não
sabia nada sobre os comportamentos de um fâmulo na universidade. Para
Reiser, fâmulo significava, talvez, ainda menos que um serviçal que
engraxa os sapatos do patrão. E, para ele, era como se seus colegas em
geral o considerassem com certo tipo de desprezo. Em seguida, ele se
imaginou vestindo sua sobrecasaca curta, com a qual parecia sempre ter
um aspecto ridículo – apesar de suas roupas velhas, na segunda série ainda
era respeitado por seus colegas de escola, em virtude da elevada opinião
que tinham dele, pois seus estudos eram custeados pelo príncipe. Na
primeira série, sabia-se disso em parte, mas a ideia de que era o fâmulo do
reitor parecia depreciá-lo perante os olhos de todos. Agora, na classe mais
alta, era extremamente importante o lugar onde se sentava: os lugares
mais altos só podiam ser alcançados por meio de prolongada e contínua
dedicação aos estudos. Em geral, subia-se um banco apenas a cada meio
ano. – Os primeiros quatro bancos formavam a seção inferior; e os últimos
três, a seção superior. – Aquele que ao longo do semestre não avançava
sofria com isso uma das maiores humilhações.
Logo na manhã do terceiro dia, enquanto um primeiranista lia uma
prece da cátedra inferior, Reiser dera um sorriso quando seu vizinho lhe
disse algo; e nesse instante ele viu que o diretor havia percebido aquilo e
imediatamente procurou fazer uma expressão séria – e a impressão da
página virada que havia permanecido em sua alma fez com que a
repentina mudança de fisionomia não ocorresse de modo a revelar um
medo nobre, mas antes apenas um medo extremamente desconfiado,
vulgar e servil, do qual o diretor, com um olhar de ira e desprezo lançado a
Reiser durante a oração, parecia concluir que seu modo de pensar era
inferior e vulgar. Um olhar assim do diretor já era algo que costumava
chamar a atenção geral. Mas, uma vez terminada a oração, ele disse a
Reiser algumas palavras sobre a vilania estampada em seu rosto, palavras
que expuseram Reiser de vez ao desprezo da classe inteira, para a qual os
ditos do diretor eram um oráculo.
Daquele momento em diante, Reiser não mais ousou levantar os olhos
para o diretor e, em suas aulas, foi obrigado a se ver como um ser a quem
não se dava a menor consideração: pois o diretor nunca mais o chamou.
Alguns jovens que chegaram à primeira classe depois de Reiser foram
colocados à sua frente, e durante vários meses ele teve de permanecer no
último lugar. O jovem R., uma mente primorosa, que viria a se tornar um
famoso pintor, sentava-se ao seu lado e parecia querer se aproximar dele;
mas um olhar do diretor, com o qual este certa vez o encarou quando
falava com Reiser, abafou todas as fagulhas de respeito que ele parecia ter
por Reiser, afastando seu coração dele. O comportamento do diretor para
com ele era uma consequência de seu caráter tímido e desconfiado, que
parecia revelar uma alma inferior; mas o diretor não considerava que esse
caráter tímido e desconfiado era também a consequência de seu
comportamento inicial em relação a ele.
Reiser acabou perdendo o respeito de seus colegas de escola, e agora
todos queriam montar em seu cangote, fazer brincadeiras com ele, e, caso
reagisse de determinado modo com um, outros vinte disputavam uns com
os outros para torná-lo alvo de escárnio; até mesmo sua bravura, quando
às vezes brigava com aqueles que passavam dos limites, que teria feito
qualquer outra pessoa ser respeitada, acabou ridicularizada. Não
cochichavam mais nos ouvidos “olhem o fâmulo do reitor!”, mas de
manhã, assim que ele entrava, diziam: lá vem o fâmulo!, e essa
denominação honrosa lhe era lançada de todos os cantos. Era como se
todos tivessem tramado para montar em seu cangote e ridicularizá-lo.
Essa situação se tornou infernal para Reiser – ele berrava, se enfurecia
e caía numa espécie de frenesi, e isso também era ridicularizado.
Finalmente, uma espécie de embotamento dos sentidos tomava algumas
vezes o lugar do furor e do frenesi de seu orgulho ferido – ele nem via
mais o que se passava ao redor e permitia que os outros fizessem o que
bem entendessem dele, de modo que, nesse estado, parecia ser um objeto
digno de escárnio e desprezo.
Não seria espantoso se ele por fim, se continuassem a tratá-lo desse
modo, começasse realmente a pender para a vilania. Mas em certas horas
ainda sentia força dentro de si para sair de seu mundo real. Era o que o
mantinha de pé – quando em seu mundo real sua alma era diminuída por
milhares de humilhações, ele exercitava os nobres sentimentos de
generosidade, firmeza, altruísmo e persistência todas as vezes que lia com
atenção algum romance ou algum drama épico, ou pensava com
profundidade sobre eles. Desse modo, enquanto se enrijecia pelo frio que
sentia cantando no coro, com frequência se transportava em sonho para
cenas alegres que pairavam além de todas as aflições da terra, e assim
fantasiava por muitas horas durante as quais certas melodias que ouvia e
cantava o ajudavam frequentemente a propagar seu sonho. Nada lhe
soava, por exemplo, mais comovente e sublime do que quando o líder do
coro começava a cantar:
Bastava o lãsi para levá-lo a regiões elevadas, dando todas as vezes um elã
extraordinário a sua imaginação, porque tomava a palavra por alguma
expressão oriental, que não entendia e por isso mesmo podia lhe atribuir
ao seu bel-prazer um sentido tão sublime: até que certa vez viu o texto
escrito entre notas e descobriu o que significava:
Os raios disparam
Os trovões retumbam
E o homem do campo volta para casa
Aborrecido, aborrecido. –
A palavra aborrecido era tão especialmente bem expressa pela música que
todo o encanto da fantasia poderia ter sido arruinado por essa única
palavra – considerada de certa forma o antídoto a toda sentimentalidade e
exaltação elevada, que pode coexistir com aquilo que é doloroso, terrível,
que prostra, que encoleriza, mas não com aquilo que aborrece. –
Mas esse antídoto não ajudou Reiser – ele perambulava solitário o dia
todo, pensando no que poderia fazer para ser um camponês, sem dar de
fato nenhum passo para isso – pelo contrário, passou a sentir novamente
prazer com essas doces exaltações. – Quando se imaginava um camponês,
acreditava estar destinado a algo melhor e, no tocante ao seu destino,
sentia novamente uma espécie de compaixão consoladora consigo mesmo.
Enquanto essa fantasia ainda o manteve em pé, ele estava apenas
melancólico e triste, mas não propriamente aborrecido com seu estado. Até
a privação de suas necessidades mais prementes lhe dava certo prazer,
pois ele estava quase certo de que tinha de expiar além da conta suas
culpas, conservando assim a doce sensação de compaixão por si mesmo.
Mas, finalmente, após ter ficado pela primeira vez três dias sem comer,
e ter se mantido o dia todo com chá, a fome o invadiu com ímpeto,
derrubando terrivelmente todo o lindo edifício de sua fantasia – ele batia a
cabeça contra a parede, vociferava, se enraivecia, e estava à beira do
desespero, quando seu amigo Philipp Reiser, que ele negligenciara por
muito tempo, entrou em seu quarto e dividiu com ele a sua miséria, que
certamente também se reduzia a apenas alguns vinténs.
Isso, no entanto, não passou de um paliativo muito pequeno – pois
Philipp Reiser não se encontrava naquele tempo em melhores condições
do que Anton Reiser.
Este realmente caiu num estado terrível permanente, próximo do
desespero. –
Conforme seu corpo recebia cada vez menos alimento, aos poucos a
fantasia que ainda o animava ia se extinguindo, e sua compaixão por si
mesmo se transformou em ódio e amargura contra seu próprio ser; em vez
de dar um passo em direção à melhora de seu estado, ou se dirigir com ar
de súplica a uma pessoa qualquer, preferiu se submeter espontaneamente,
com a mais inaudita obsessão, à miséria mais terrível.
Pois, durante várias semanas, ele realmente comia apenas num único
dia da semana quando ia ao sapateiro S., e nos outros jejuava e se
sustentava apenas com chá e água quente, as únicas coisas que ainda
podia conseguir de graça. – Numa espécie de terrível contentamento, viu
seu corpo decaindo dia a dia com a mesma indiferença com que via sua
roupa degradar-se.
Quando caminhava pela rua, e as pessoas apontavam o dedo para ele, e
seus colegas de escola zombavam dele, e iam ao seu encalço assobiando, e
garotos de rua faziam comentários sobre ele – Reiser cerrava então os
dentes e aceitava interiormente as risadas de escárnio que ouvia ressoar
atrás de si.
Mas, quando chegava novamente à casa do sapateiro S., ele se esquecia
de tudo. – Ali encontrava seres humanos, ali seu coração por um momento
amolecia; com o corpo saciado, sua capacidade de pensar e sua imaginação
readquiriam um novo impulso, e voltava a entabular um diálogo filosófico
com o sapateiro S., que durava horas, e com ele Reiser recomeçava a
respirar e seu espírito tomava fôlego – depois, no calor da discussão,
falava frequentemente tão alegre e descontraído sobre um assunto como
se nada no mundo o desencorajasse – não deixava que se ouvisse uma
sílaba sequer sobre seu estado.
Mesmo com seu primo, o peruqueiro, jamais se queixava quando
chegava à sua casa, saindo assim que percebia que iriam comer – mas se
serviu de um truque por meio do qual conseguiu não morrer de fome.
Alegando que daria a um cão que tinha em casa, pediu ao primo a
crosta dura da massa na qual era assado o cabelo para as perucas, e seu
sustento era essa crosta, junto com a refeição na casa do sapateiro S. e a
água quente que bebia.
Quando seu corpo recebia algum alimento, às vezes voltava a sentir
algum ânimo em seu interior. Possuía ainda um Virgílio velho que o
alfarrabista não quisera comprar dele; nesse exemplar começou a ler as
éclogas. De um semanário, As Horas Vespertinas, que pegara emprestado de
Philipp Reiser, começou a decorar um poema, “O ateu”, de que
especialmente gostara, e alguns ensaios em prosa. – Mas, com a falta de
alimento que logo se fez sentir de novo, veio a se extinguir também o
novo ânimo incandescente, e assim a atividade de sua alma ficou como
que paralisada. Para se salvar desse estado mortal de cessação de toda
atividade, teve de buscar outra vez refúgio nas brincadeiras infantis, porque
elas acabavam em destruição.
Reunia uma grande quantidade de caroços de cereja e de ameixa,
sentava-se no chão e os colocava em posição de batalha uns contra os
outros – os mais bonitos entre eles, Reiser os distinguia pintando neles
letras e figuras, e estes viravam generais – depois, pegava um martelo e
com os olhos fechados imaginava a fatalidade cega, descendo o martelo ora
de um lado, ora de outro – quando reabria os olhos, via com secreto
contentamento a terrível devastação, aqui e ali um herói caído, jazendo
despedaçado em meio à multidão inglória. Depois, sopesava o destino de
cada exército e contava os caídos de cada lado.
Ocupava metade do dia dessa maneira – e sua impotente e pueril
vingança do destino que o destruíra criou desse jeito um mundo que ele
pôde novamente destruir a seu bel-prazer – por mais infantil e risível que
esse jogo pudesse parecer aos olhos da plateia, era de fato o resultado mais
pavoroso do mais alto desespero que jamais havia sido provocado pelo
encadeamento das coisas em um mortal.
Mas nisso se vê também como seu estado naquele tempo se avizinhava
da insanidade – e, assim que foi capaz de se interessar novamente por seus
caroços de cereja e de ameixa, seu estado de ânimo se tornou suportável. –
Mas antes disso, quando se sentava e com a pluma pintava traços no papel ou
com a faca rabiscava sobre a mesa – esses foram os piores momentos, em que
sua existência pesava sobre ele como um fardo insuportável, não lhe
provocando nem dor nem tristeza, mas aborrecimento – nesses momentos,
tomado por um calafrio pavoroso, tentava muitas vezes se livrar disso.
Sua amizade com Philipp Reiser naquela época não podia lhe ser de
ajuda, porque este não ia melhor do que ele – a situação de Anton e
Philipp Reiser era como a de dois caminhantes que correm perigo de
morrer de sede num deserto abrasante e, tentando sair dele, não estão em
condições de conversar muito e de oferecer consolação um ao outro.
Mas justamente aquele G., que outrora representara o Sócrates
moribundo, apelido que Reiser ainda continuava tendo, decidiu ir morar
com ele, e também se encontrava na mesma situação de Reiser, mas com
uma diferença apenas: chegara a ela por verdadeiro desregramento – nele
Reiser encontrou, portanto, um digno companheiro de quarto.
Não passou muito tempo, e o filho do camponês, chamado M., que
igualmente não se encontrava em melhores condições, também foi morar
com os dois. – Formou-se ali, então, uma agremiação de três dos mais
pobres seres humanos que talvez jamais tiveram estado fechados entre
quatro paredes.
Havia muitos dias em que todos os três sobreviviam apenas à base de
água quente e pão – G. e M., no entanto, recebiam ainda algumas refeições
gratuitas.
G. era, no fundo, uma pessoa inteligente, alguém que falava muito bem,
e por quem Reiser sempre sentira muito respeito.
Certa vez, ambos tiveram um ataque de dedicação aos estudos e
começaram a ler as éclogas de Virgílio, desfrutando realmente o prazer
mais puro, quando, após terem desvendado sozinhos com muito trabalho
uma écloga, cada um copiou sua tradução. Mas, naquelas circunstâncias, é
evidente que isso não podia durar muito – assim que cada um percebeu de
novo vivamente sua situação, todo o ânimo e vontade de estudar
desapareceram.
Quanto às roupas, as de G. e M. eram tão ruins quanto as de Reiser –
por isso, quando saíam, formavam um cortejo que parecia a verdadeira
imagem do desleixo e da desordem, e as pessoas apontavam o dedo para
eles, motivo pelo qual, quando saíam para passear, procuravam sempre
deixar a cidade pelos atalhos e ruas estreitas.
Os três também levavam uma vida que combinava completamente com
a condição deles – ora permaneciam o dia todo deitados na cama, ora os
três juntos se sentavam, apoiavam a cabeça na mão e refletiam sobre seu
destino, ora se separavam e cada um fazia o que lhe desse vontade. Reiser
se sentava no chão e passava em revista seus caroços de cereja; M. ia
buscar seu grande pedaço de pão, que tinha trancado cuidadosamente
numa mala; e G. permanecia deitado na cama, fazendo projetos que não
eram bons, como logo depois se revelou. Nessa época, Reiser leu várias
vezes dois livros de cabo a rabo, já que não tinha outros, sentado no chão
entre seus caroços de cereja – os livros eram a obra do filósofo de
Sanssouci e a obra de Pope, na tradução de Dusch, livros que tinha tomado
emprestados do sapateiro S.
Certo dia, os três passeavam juntos num dos belos arredores de H., às
margens do rio de onde surgia uma pequena ilha repleta de cerejeiras.
Para nossos três aventureiros, essas cerejeiras, todas carregadas das
mais lindas cerejas, eram uma paisagem tão convidativa que eles não
conseguiram evitar o desejo de serem transportados para a ilha, a fim de
poderem se satisfazer à vontade com esses frutos esplêndidos.
Calhou então de uma quantidade de pedaços de madeira descer
boiando o rio; esses pedaços às vezes emperravam na parte estreita do rio,
entre a margem e a ilha, formando aparentemente uma ponte para a ilha.
Sob o comando de G., que parecia já estar treinado na execução de tais
projetos, empreenderam uma façanha arriscada, que facilmente poderia
ter custado a vida dos três. No lugar onde os pedaços de madeira tinham
parado, eles retiraram da água um pedaço após outro e os levaram até um
lugar no qual a distância entre a margem e a ilha lhes pareceu mais
estreita, e ali construíram a ponte pela qual queriam atravessar o rio,
jogando um pedaço de madeira após outro à frente deles para firmarem os
pés – é claro que essa ponte começou a afundar embaixo de seus pés, e eles
mergulharam fundo na água ainda antes de terem percorrido quase a
metade de sua perigosa travessia – mas, mesmo correndo risco de vida,
eles finalmente chegaram à ilha.
E de repente os três foram tomados por um espírito de roubo e de
avidez, cada um se atirou a uma cerejeira e se pôs a saqueá-la com uma
espécie de furor. –
Era como se tivessem conquistado de assalto uma fortaleza; queriam
receber uma recompensa pelo perigo suportado – perigo que eles mesmos
haviam provocado.
Quando já estavam fartos de comer e haviam enchido de cerejas todos
os bolsos, lenços, echarpes, chapéus e qualquer outra coisa que pudesse
conter algo –, tomaram, no entardecer, o caminho de volta, passando pela
perigosa ponte, da qual uma parte já tinha sido levada pela correnteza do
rio, e, apesar da pilhagem que os aventureiros estavam carregando, tudo
terminou bem, muito mais pelo acaso que por habilidade ou cautela.
Reiser não se sentia nem um pouco mal em expedições assim – não lhe
parecia ser propriamente um roubo, mas tão somente uma perambulação
num terreno inimigo que, pela coragem exigida, não deixava de ser algo
honroso.
E quem sabe em quantas mais façanhas arriscadas desse tipo ele ainda
não teria entrado sob o comando de G. se ainda continuassem morando
juntos por mais tempo. –
Mas G., de fato, fazia parte mais do grupo dos astuciosos do que dos
intrépidos – pois era vil o bastante para roubar seus dois companheiros de
quarto, Reiser e M., dos quais tinha pegado alguns livros e outras coisas e
vendido secretamente, como depois se revelou. –
Em suma, esse G., com quem Reiser viveu tão próximo, era na verdade
um larápio astucioso que, ao passar o dia inteiro deitado na cama
especulando, não pensava em nada a não ser nos delitos que gostaria de
cometer – e mesmo assim era capaz de falar da virtude e da moralidade
como um livro, o que havia originalmente inspirado a veneração de Reiser
por ele.
Pois naquela época ele tinha formado um ideal esquisito sobre a
virtude, que absorvia de tal modo sua imaginação a ponto de bastar o
nome virtude para muitas vezes ser levado às lágrimas.
Mas sob o nome de virtude ele pensava em algo demasiado geral, e num
geral muito obscuro, e com pouca aplicação a situações específicas, de
modo que não poderia ter conseguido realizar nem mesmo o mais sincero
intento de ser virtuoso – pois jamais pensou por onde deveria realmente
começar.
Certa vez, numa linda noite, chegou em casa de um passeio solitário, e
a contemplação da natureza tinha derretido seu coração em suaves
sensações, o que o fez derramar muitas lágrimas e, em silêncio, jurar a
partir de então ser eternamente fiel à virtude! – e, como agarrara firme
esse desígnio, sentiu uma satisfação tão celestial com essa decisão que lhe
parecia quase impossível vir algum dia a se desviar desse afortunado
desígnio. – Com esses pensamentos ele adormeceu – e, quando de manhã
despertou, seu coração estava novamente bem vazio; a perspectiva do dia
era sombria e erma; todas as suas relações exteriores estavam
irrecuperavelmente destroçadas; um invencível tédio de viver ocupou o
lugar de suas sensações do dia anterior, com as quais adormecera –
procurou salvar-se de si e deu os primeiros passos para ser virtuoso; para
tanto, sentou-se no chão e destroçou os caroços de cereja que estavam em
ordem de batalha.
O verdadeiro começo para a prática da virtude teria sido deixar de
fazer isso e ler uma écloga no velho Virgílio, que ele ainda possuía – mas,
com sua decisão heroica, não tinha se preparado para esse caso
aparentemente muito insignificante.
Se examinássemos as ideias de virtude que as pessoas têm, para a
maioria delas tais ideias não passariam talvez de representações obscuras
e confusas – do que se pode ao menos concluir como é inútil pregar sobre
a virtude em geral, sem que o conceito seja aplicado a casos muito
particulares e muitas vezes aparentemente insignificantes.
O próprio Reiser naquela época se admirava com frequência ao
constatar como seu repentino ataque de fervor pela virtude podia se
dissipar rapidamente sem deixar nenhum vestígio – mas não cogitava que
a autoestima, que para ele à época só podia estar baseada na estima de
outras pessoas, é a base da virtude. – E que, sem a virtude, o mais lindo
edifício de sua fantasia teria de desabar outra vez a qualquer momento.
No estado em que se encontrava, todas as vezes que ainda lhe era
possível juntar alguns trocados, ele sempre ia gastar no teatro – mas
quando, no meio do verão, a companhia de atores novamente se mudou, o
campo que se estendia diante da nova porta da cidade era não só a meta
de seus passeios, mas quase sua estada permanente. – Muitas vezes, ficava
deitado o dia todo num lugar à luz do sol, ou passeava ao longo do rio,
alegrando-se sobretudo quando à hora cálida do meio-dia não avistava
nenhuma pessoa à sua volta.
Por dias inteiros, enquanto se entregava ali aos seus pensamentos
melancólicos, sua imaginação se nutria imperceptivelmente de grandes
imagens que, no entanto, começariam a se desenvolver aos poucos um ano
depois.
Mas desse modo seu tédio de viver chegou ao extremo – muitas vezes,
nesses passeios, ele ficava na margem do rio Leine, curvando-se em
direção à torrente caudalosa, enquanto a admirável ânsia de respirar
lutava contra o desespero e, com terrível força, puxava de volta o seu
corpo inclinado.
PARTE 3
Com a conclusão desta parte, têm início as andanças de Anton Reiser e,
com elas, o verdadeiro romance de sua vida. O conteúdo desta parte é uma
representação fiel das cenas de seus anos de juventude, representação que
talvez possa servir de lição e advertência àqueles a quem esse tempo
inestimável ainda não transcorreu. Talvez essa representação também
contenha muitas sugestões, não de todo inúteis, para os professores e
educadores, que os levem a ser mais cuidadosos no tratamento de alguns
de seus alunos e mais justos ao julgá-los!
Assim, Reiser passou doze semanas terríveis de sua vida até que
finalmente o pastor M., por intermédio de terceiros, o fez saber que o
aceitaria novamente tão logo ele se dignasse se desculpar e se arrepender
seriamente por seu comportamento.
Com isso, seu coração enfim amoleceu, pois, além de tudo, estava
cansado de sua obstinada teimosia e da morosa miséria que dela resultava.
Ele se sentou e escreveu uma longa carta ao pastor M., na qual se
depreciava com a maior amargura – descrevendo-se como o homem mais
indigno que já aparecera sob o sol – e não profetizava para si destino
melhor do que morrer um dia de pobreza e necessidade, a céu aberto.
Em suma, essa carta, redigida com os mais exaltados termos de
desprezo e aviltamento de si que se possa imaginar, podia ser tudo, menos
hipocrisia.
Naquela época, Reiser se considerava realmente um monstro de
maldade e ingratidão; e escreveu a carta inteira ao pastor M. com uma
severidade contra si que raramente seria possível encontrar em outra
pessoa – ele não pensou em se desculpar, mas em se acusar ainda mais.
Apesar disso, compreendeu que o furor pelos romances e pelo teatro
era o motivo mais imediato de seu estado atual – mas naquele tempo seu
raciocínio não teve força suficiente para retroceder até as razões pelas
quais a leitura de romances e as peças de teatro se tornaram uma
necessidade fundamental para ele – toda a desonra e o desprezo que desde
criança o haviam impelido de seu mundo real para um mundo ideal. – E
por isso fez contra si mesmo acusações talvez mais injustas que outros
teriam feito a ele – em muitas horas não só se desprezava, mas também se
odiava e sentia repulsa de si mesmo.
Por isso, a confissão que fez na carta endereçada ao pastor M. foi
terrível e única em seu estilo – de modo que o pastor M. ficou espantado
quando a leu – pois jamais em sua vida alguém se confessara assim a ele.
Desde que enviara a carta, Reiser apenas aguardava a ocasião em que
seria recebido pelo pastor M.; e foi marcado um dia, que ele aguardou com
estranhos e misturados sentimentos de temor, de esperança e de
desespero resignado.
Ele havia se preparado para uma cena um tanto teatral, que resultou,
porém, num total fracasso. – O que pretendia era cair aos pés do pastor M.
e rogar que este lançasse toda a sua ira sobre ele. – Reiser já esboçara em
pensamento todas as palavras que iria dirigir ao pastor, e, por onde quer
que fosse ou onde quer que estivesse, levava sempre consigo essa ideia,
até o dia em que deveria ser recebido pelo pastor M. –
Mas, enquanto esperava, um evento o deixou extremamente
aborrecido. – Seu pai soube de seu estado e viajou para H. a fim de
interceder a favor do filho, deixando Reiser um tanto desgostoso, porque
não achava que precisasse da intervenção de qualquer pessoa, mas se
julgava suficientemente capaz de tocar o coração do pastor M. com o
discurso apaixonado que concebera.
Despertou enfim para o importante dia em que falaria com o pastor M.
– e sua fantasia estava ocupada com coisas grandiosas – como se jogaria
aos pés do pastor M. cheio de arrependimento e desespero – e este o
ergueria comovido e o perdoaria.
E finalmente chegou à casa do pastor M., aproximando-se com anseio
pavoroso da cena tão longamente preparada; enquanto esperava ali fora
ser chamado, surgiu um criado e lhe disse que já poderia entrar, seu pai já
se encontrava com o pastor M.
Essa notícia foi um choque para ele – por um momento ficou
atordoado. – Nesse instante todo o seu plano falhara – ele queria falar com
o pastor M. sem testemunhas, pois só assim estaria em condições de
representar toda a cena de ajoelhar-se diante dele e lhe dirigir as palavras
com comoção e paixão. – Era-lhe impossível ficar de joelhos diante do
pastor M. na presença de um terceiro, principalmente na de seu pai. –
Mandou o criado entrar de novo e dizer que precisava falar sozinho
com o pastor M. – Esse diálogo lhe foi negado, e, em vez da brilhante e
comovente cena que pensava em apresentar, teve de ficar ali, assim que
entrou, como um delinquente, humilhado e aviltado pela presença do pai,
sem poder apresentar uma única palavra de todo o discurso que havia
tempo planejara –
Com isso, apoderou-se dele um sentimento que ainda não havia
conhecido em sua vida – ver seu pai ao seu lado em posição de súplica diante do
pastor M. lhe foi insuportável –, e teria dado tudo no mundo para que
naquele momento seu pai estivesse a quilômetros de distância dali. Ele se
sentia duplamente humilhado e envergonhado na pessoa do pai, e a isso se
acrescia o aborrecimento de que toda aquela cena – estar aos pés de
alguém – não resultara em nada – tudo se passou de maneira tão fria, tão
comum e tão habitual – Reiser ficou ali tão indistinto quanto um facínora
comum e vulgar a quem se podiam fazer merecidas acusações por seu
comportamento – e ele mesmo quis se descrever como um grande
facínora e suplicar que caísse sobre ele o mais duro castigo por seu crime.
–
Mas talvez nenhum acaso em sua vida tenha contado mais para sua
legítima vantagem do que justamente esse. – Se dessa vez tivesse
conseguido executar as cenas planejadas, quem sabe o que não teria feito
depois e que papéis não teria representado? – Talvez esse fosse mesmo o
momento decisivo em que seu destino estava em jogo: seria hipócrita e
ladrão, ou deveria continuar sendo um homem correto e honesto?
A cena de se jogar aos pés de alguém teria sido fundamentalmente
afetação, embora não fosse claramente hipocrisia e dissimulação, e como é
simples a passagem da afetação para a hipocrisia e a dissimulação!
Foi certamente um verdadeiro benefício para Reiser o pastor M. não
dar atenção a todas as frases exageradas de sua carta, e, em vez de se
comover, achá-las risíveis e declará-las um parto imaturo de uma fantasia
excitada pela leitura de romances e pelas peças de teatro; com o acréscimo
de que, se Reiser fosse mesmo um facínora, como havia se descrito na
carta, o pastor M. não teria a menor preocupação com ele, mas o
detestaria como a um monstro.
E em vez de estender-se em novas explicações de que o passado lhe
seria perdoado desde que tivesse outro comportamento no futuro, ou algo
assim, o pastor M., de maneira nada sentimental, começou logo falando
das meias e dos sapatos rotos de Reiser, das dívidas que contraíra, e de
como teria de pagá-las e de como deveria consertar suas roupas
esfarrapadas. – Não deu sequer uma vez a chance para um voto solene de
melhora futura ou algo comovente. – Todo o seu comportamento em
relação a Reiser, embora de cara o aceitasse de volta, era seco e duro – mas
era justamente esse comportamento seco e duro o que despertava Reiser
do torpor, transportando-o de seu mundo ideal de romances e peças de
teatro para o mundo real, sobretudo quando seu romance, que pensou em
apresentar ao pastor M., fracassara, e ele teve de sair novamente de seu
terrível estado não pela fantasia oca de tornar-se um camponês, ou algo
assim, mas para sair realmente dele.
Com essa mudança de seu destino, inumeráveis bons propósitos e
decisões se erguiam outra vez em sua alma; a desastrosa cena de ajoelhar-
se ainda lhe doía, mas finalmente também nesse aspecto ele se reconciliou
com seu destino – e assim teve início uma nova época de sua vida.
Ele se mudou da casa do fazedor de vassouras e foi ser inquilino de um
alfaiate, com quem tinha de dividir o mesmo cômodo, dormindo no sótão.
– A sra. F. e o músico da corte, que também moravam na mesma casa,
encarregaram-se dele mais uma vez, dando-lhe de comer uma vez por
semana. – A sra. F. lhe pediu que ensinasse a menininha que estava
morando com eles a escrever e que a instruísse no catecismo. Reiser
voltou a frequentar a escola regularmente, e despertaram novas
esperanças nele – o próprio príncipe o convocou e lhe falou na presença
do pastor M., que recebeu do príncipe o dinheiro para o sustento de
Reiser, quitando assim suas dívidas.
Tudo então voltou a correr muito bem – e ele novamente passou a se
dedicar aos estudos –, embora ali sua situação externa também não fosse
propícia a isso – pois na casa do alfaiate não tinha nada, a não ser um
cantinho onde ficava seu piano, que lhe servia ao mesmo tempo de mesa e
embaixo do qual ele também montara toda a sua biblioteca numa pequena
prateleira. – Quando lia em voz baixa e trabalhava, não podia exigir
silêncio ao seu redor; e, enquanto durou o inverno, foi obrigado a ficar no
cômodo de seu patrono – no verão, ele ia com seu piano e os livros para o
sótão, onde dormia e ficava sozinho e sossegado.
Fazia ainda poucas semanas que havia deixado sua antiga moradia e
seus antigos companheiros de quarto, G. e M., quando aconteceu um
evento terrível que o fez sentir muito intensamente a grandeza e a
proximidade do perigo no qual havia se envolvido.
É que G., certo dia cantando no coral, foi detido em plena rua e
imediatamente levado preso a uma das mais profundas masmorras nas
portas de…, destinada apenas aos piores criminosos.
Ao ver que o levavam, Reiser foi tomado de espanto e pavor – e o que
era mais estranho: a ideia de que o considerassem cúmplice do ainda
desconhecido delito de seu antigo companheiro de moradia fez surgir
imediatamente nele sinais de vergonha e confusão, como se realmente
fosse cúmplice – de modo que seu medo se tornou tão grande como se de
fato tivesse cometido o delito. Isso era uma consequência natural de sua
autoestima reprimida desde a infância, que naquele tempo não era forte o
suficiente para se contrapor aos juízos dos outros sobre ele – se alguém o
tivesse considerado um notório criminoso, Reiser provavelmente teria,
por fim, concordado.
Finalmente, soube-se que seu antigo companheiro de moradia, G.,
cometera um roubo na igreja, tendo furtado à noite galões da toalha do
altar, arrebentado até as fechaduras dos bancos da igreja para roubar a
prata dos livros de hino que eram ali guardados.
Então eram esses os projetos que G. havia tramado e matutado por dias
inteiros, deitado na cama.
Apesar de ter cometido antes diversos outros roubos, ele de fato só
havia roubado a igreja depois de Reiser já ter ido embora.
Para o seu delito, cabia realmente a forca – e o temor de ter destino
parecido sempre tomava conta de Reiser quando pensava no quão
próximo estivera daquele indivíduo e com que facilidade poderia ter sido
seduzido gradualmente por ele de um risco a outro, visto que o heroico
pontapé inicial já havia sido dado pela expedição à ilha das cerejas. –
Reiser teria achado o roubo noturno da igreja muito mais heroico que
infame e talvez não tivesse sido muito mais difícil para G. convencê-lo a
participar dessa aventura do que daquela na ilha das cerejas.
Talvez essa reflexão ou essa consciência vaga contribuíssem para a
confusão de Reiser todas as vezes que falavam sobre G. – parecia-lhe haver
apenas um passo muito pequeno entre ele e o delito que poderia ter sido
levado a cometer, de modo que ele se sentia como quem tem vertigens
diante de um abismo do qual se mantém suficientemente distante para
não cair, mas, absorvido por seu temor, sente-se irresistivelmente atraído e
pensa já estar se afundando nele.
A mera possibilidade de poder ter participado do crime de G. despertou
quase um sentimento parecido em Reiser, como se realmente tivesse
participado do crime, o que pode, portanto, esclarecer muito bem seu
medo e confusão.
G., no fim, não foi enforcado, mas, após alguns meses na prisão, sua
sentença foi comutada, e ele foi levado para a fronteira e expulso do país.
– Reiser não soube mais sobre seu destino. – Assim chegou ao fim o
verdadeiro Sócrates moribundo, apelido que Reiser carregou por tanto
tempo, mesmo sem ter representado o papel, somente o de um amigo sem
importância, que não fez nada além de ficar num canto e chorar, enquanto
o Sócrates moribundo, para a comoção de toda a plateia, podia beber a
taça de veneno e se mostrar ainda na mais esplêndida luz em seu leito de
morte.
Àquela época, já fazia mais de um ano que Reiser começara a escrever
um diário no qual anotava tudo o que lhe acontecia. Era um diário
bastante singular, porque não omitia uma única circunstância sequer de
sua vida nem um único incidente de seu dia, por mais insignificante que
pudesse ser. – Como anotava apenas os acontecimentos verdadeiros, e não
as fantasias que tivera durante o dia, as narrativas só podiam ser muito
vazias e insossas, e eram desinteressantes como os próprios
acontecimentos. – Reiser vivia, de fato, sempre uma vida dupla, interna e
externa, completamente diferentes uma da outra, e seu diário descrevia
exatamente a parte externa de sua vida, que não valia a pena ser anotada.
– Àquela época ele ainda não sabia observar a influência dos incidentes
externos, reais, sobre o estado interno de seu ânimo; sua atenção para
consigo ainda não tinha tomado o rumo certo.
No entanto, seu diário foi melhorando à medida que começou a anotar
nele não só os acontecimentos, mas também seus propósitos e decisões,
para ver depois de um tempo quais deles haviam se concretizado. – Então
impunha a si mesmo suas próprias leis, que anotava em seu diário para
executá-las. Às vezes ele até se fazia promessas solenes, como levantar
cedo, dividir ordenadamente o dia em horas, e outras coisas assim.
Mas era estranho – justamente os mais solenes propósitos que concebia
costumavam em geral se cumprir de modo tardio e frio. – Quando
conseguia realizá-los nas pequenas coisas, o fogo da fantasia, com o qual
imaginara tomar em conjunto as coisas com todas as suas agradáveis
consequências, já estava extinto. – Quando, ao contrário, ele se preparava
para fazer tudo de modo simples e sem toda a pompa e solenidade, a
execução costumava ocorrer muito mais cedo e melhor.
Ele era inesgotável em bons propósitos. – Mas isso também o deixava
constantemente insatisfeito consigo mesmo, porque os bons propósitos
eram tantos que ele nunca conseguia se satisfazer. –
Certa vez, esteve por três dias ininterruptos satisfeito consigo mesmo,
e ele anotou os três dias como uma grande raridade em sua vida, e de fato
haviam sido – pois, até onde conseguia se lembrar, esses três dias foram os
únicos assim. – Mas nesses três dias de fato ocorreu uma feliz coincidência
de circunstâncias, clima bom, saúde boa, rosto amistoso das pessoas com
as quais esteve, e outras pequenas coisas, que lhe facilitaram
sensivelmente a execução de seus bons propósitos. –
Aliás, ele recorria a qualquer meio para se manter devoto e virtuoso. –
Procurou principalmente despertar em si, todas as manhãs, intenções
nobres e boas, enquanto recitava “A oração universal”, de Pope, que ele
havia copiado e decorado em inglês, e, cada vez que a dizia, ficava
realmente comovido e reanimado para bons propósitos e decisões. – Além
disso, transcreveu de um livro uma porção de regras de vida, que lia em
horas determinadas no decorrer do dia – e algumas árias, que possuíam
temas especialmente animadores para a virtude e a devoção, também
eram cantadas dia a dia bem meticulosamente por ele, em horas
determinadas.
Se paralelamente a isso suas condições exteriores tivessem se tornado
um pouco mais vantajosas e animadoras com esses propósitos e esforços,
bastante raros num jovem de sua idade (ele estava à época com um pouco
mais de 16 anos), Reiser teria se tornado um modelo de virtude.
Mas o que reiteradamente o derrubava era a opinião dos outros em
relação a ele, que não conseguia mudar à força, e, apesar de todos os seus
esforços para se tornar um ser humano melhor, não mais se moldava a seu
favor. Reiser parecia ter estragado e decepcionado por demais as
expectativas dos outros em relação a ele para poder merecer o respeito e o
amor que suscitava anteriormente nas pessoas.
Em especial, uma imerecida suspeita caiu sobre ele – era a suspeita de
libertinagem, porque tinha morado com um libertino como G. – Reiser
estava tão distante disso que, três anos depois, de maneira casual, lhe caiu
nas mãos um livro de anatomia que lançou luz sobre certos assuntos a
respeito dos quais suas ideias ainda eram bastante confusas e obscuras
naquela época.
Mas sua leitura de livros no alfarrabista e suas idas ao teatro eram
vistas da pior maneira e julgadas ainda uma falta imperdoável.
Entretanto, calhou de uma companhia de acrobatas chegar a H., e, já
que a entrada custava uma ninharia, certa noite ele foi assistir a essa
arriscada arte. – Foi visto por lá – e, como isso também era uma espécie de
teatro, comentou-se que seu antigo pendor fora de novo despertado e não
havia noite em que não fosse ao teatro ver os acrobatas; e ele de novo
gastaria lá seu dinheiro – já dava para ver que não iria melhorar.
Sua voz era muito fraca para se erguer contra as afirmações dos que
diziam tê-lo visto todas as noites no espetáculo dos acrobatas – em suma, a
única noite em que estivera lá contribuiu mais para que decaísse
novamente na opinião das pessoas do que toda a sua dedicação anterior
aos estudos e seu comportamento correto tinham até então contribuído
para melhorá-la.
Além disso, alguns acontecimentos o deixaram muito abatido. Estava
chegando o Ano-Novo, e ele se alegrava porque, novamente desfrutando
os privilégios de sua posição, iria sair em fila junto aos demais no cortejo
com tochas e música, e não seria mais, como da última vez, um dos
últimos a se perfilar.
Mas, para que pudesse pagar a tocha, sua cota na música e outros
custos, ele estava esperando apenas a distribuição do dinheiro do coral,
que penosamente ganhou cantando no frio e na chuva, e, quando foi até o
diretor para receber, o vice-diretor teve a ideia de confiscar o dinheiro
pelas aulas particulares que lhe dera na segunda série e ainda não tinham
sido pagas. Reiser foi até o vice-diretor e lhe pediu encarecidamente que
lhe desse ao menos metade do dinheiro do coral; mas ele foi inflexível; e,
quando Reiser voltou ao diretor, também este lhe fez as mais duras
acusações de que tinha estado de novo no teatro dos acrobatas e até
mesmo comprara mel e pão na feira em frente à escola e comera na rua. –
Coisa que Reiser considerava muito inocente e nada humilhante, mas que
agora era interpretada como a maior infâmia, levando o diretor a tachá-lo
de menino mau, que não tinha honra nem vergonha e de quem ele não
queria mais se encarregar.
Em toda a sua vida, dificilmente Reiser esteve mais triste e abatido do
que nesse momento em que saía da casa do diretor para voltar à sua. Ele
não só não reparou no vento nem na nevasca como vagou por hora e meia
pelo baluarte e pela cidade, entregue a seu pesar e a seus ruidosos
lamentos.
Pois de repente tudo fracassou: seu esforço para novamente cair nas
graças do diretor por seu comportamento; a esperança de receber um bom
dinheiro do coral, dinheiro que costumava ser sempre muito mais
considerável na época do Ano-Novo; e o ardente desejo de estar na
procissão com tocha e música no dia seguinte e assim caminhar
publicamente em fila.
Mas o que mais lhe doía era verdadeiramente a última coisa – e isso era
muito claro; pois, ao participar do cortejo, ele se sentia outra vez em posse
de todos os direitos de sua posição, dos quais muitas vezes fora privado. –
Permanecer excluído disso lhe parecia uma das maiores adversidades que
lhe podiam acontecer. – Esse era também o motivo pelo qual pedira tão
encarecidamente ao vice-diretor a liberação de metade do dinheiro do
coral, humilhação pela qual de outro modo jamais teria passado.
Todos os seus planos para arrumar dinheiro de nada o ajudaram; ele
não conseguiu comprar tochas e, na noite seguinte, teve de ficar em casa
pesaroso e sentado ao piano, enquanto todos os seus colegas de escola
percorriam com pompa reluzente a rua, em meio a uma multidão de
espectadores – procurou se consolar da melhor maneira possível; mas, ao
ouvir a música vinda lá de longe, ela produzia um efeito curioso em seu
ânimo – ele imaginava com vivacidade o brilho das tochas, a multidão de
espectadores, o tumulto, e seus colegas de escola como os personagens
principais dessa suntuosa apresentação. – E ele excluído, solitário e
abandonado por todo mundo – isso o afundou numa melancolia muito
semelhante à sentida quando seus pais o largaram sozinho lá em cima no
quarto, enquanto festejavam com o proprietário embaixo, e as risadas
alegres da festa e o barulho dos copos ressoavam alto em cima, e ele se
sentia tão sozinho e abandonado por todo mundo, consolando-se com os
cânticos de Madame Guyon.
Acontecimentos assim o impeliam cada vez mais do mundo para a
solidão – ele não se sentia mais contente senão quando podia se sentar
sozinho ao piano e ler em voz baixa e trabalhar – e não almejou nada mais
ardentemente do que a chegada do verão para que pudesse passar o dia
todo sozinho no sótão, onde colocaria sua cama.
E, quando esse tão almejado verão chegou, Reiser desfrutou antes de
mais nada o prazer dos estudos solitários. Havia algum tempo ele
recomeçara a pegar emprestados livros no alfarrabista; mas seu gosto
estava dirigido exclusivamente a livros científicos. Desde aquela terrível
época de sua vida, suas leituras de romances e peças de teatro tinham
cessado inteiramente.
Assim que o tempo começou a esquentar, ele correu para seu sótão e lá
passou as mais prazerosas horas de sua vida, lendo e estudando.
Pegara emprestado do alfarrabista, entre outras coisas, o Filosofia de
Gottsched, e, embora as matérias nesse livro também fossem muito
diluídas, ele deu de certa forma o primeiro estímulo a sua capacidade de
pensar – conseguiu ter assim ao menos uma ligeira visão geral de todas as
ciências filosóficas, o que organizou as ideias em sua cabeça.
Logo que percebeu isso, cresceu também dia a dia sua avidez de ter
rapidamente uma visão geral dos assuntos. – Viu que a mera leitura não
ajudava em nada – começou então a esboçar por escrito tabelas em
folhinhas, nas quais sempre subordinava adequadamente o detalhe ao
todo, e desse modo procurava formar uma noção clara daquilo.
A simples cópia do sumário já tornava o assunto mais interessante para
ele – pois, mantendo diante de si, durante a leitura do livro, a folha na
qual copiara as matérias contidas nele, tinha assim a vantagem de, ao
mirar o singular, jamais perder de vista o todo, o que no pensamento filosófico
é sempre uma exigência fundamental, embora seja também a origem de
todas as dificuldades.
Tudo aquilo sobre o que ainda não havia refletido estava diante dele
nesse mapa como um país desconhecido, o qual verdadeiramente ansiava
por conhecer melhor. –
Os contornos, a armação já tinham sido traçados em sua alma por essa
visão geral do conjunto, e ele se esforçava para preencher uma a uma as
lacunas que só agora podia perceber. – E o que antes pareceu ser para ele
apenas meros termos vazios aos poucos se tornou conceitos claros e com
conteúdo, e, quando relia ou repensava um termo e de repente tudo o que
antes lhe era obscuro e confuso se tornava claro e nítido, ele era tomado
por um sentimento tão agradável como jamais sentira antes – saboreava
pela primeira vez o deleite do pensamento.
O apetite constante de logo avistar o todo o guiava através de todas as
dificuldades do singular. – Em sua capacidade de pensar estava ocorrendo
uma nova criação. – Era como se agora seu entendimento estivesse
acordando e pouco a pouco o dia irrompesse, e ele não se cansasse de ver a
luz revigorante.
Nesses momentos, quase se esquecia de comer e beber e de tudo o que
estava à sua volta, e durante um período de seis semanas, alegando estar
doente, quase não saiu de seu sótão. – Sentava-se diante de seu livro, com
a pena na mão, da manhã até a noite, e não descansava antes de ter lido o
livro de cabo a rabo.
Mas o que jamais deixou sua avidez se extinguir foi, como já dito,
manter diante dos olhos constantemente o conteúdo principal – e a permanente
ordenação e classificação das matérias, tanto em sua cabeça como no
papel.
Apesar de suas circunstâncias externas quase não terem melhorado,
ele passou aquele verão bastante contente.
De todo modo, as horas que passou solitário no sótão estavam entre as
mais felizes de sua vida. – Daquele momento em diante, ele ficava em geral
menos infeliz, porque sua capacidade de pensar começara a se
desenvolver.
Aonde fosse ou onde estivesse, ele agora refletia em vez de
simplesmente fantasiar como antes – e suas ideias se ocupavam com os
mais sublimes objetos do pensamento – com as representações do espaço
e do tempo, com a suprema faculdade de representação etc.
Mas, já naquela época, muitas vezes ao refletir sentia como se algo de
repente o impedisse, como se uma parede de madeira ou um teto
impenetrável de repente tapasse sua visão – era como se ele não pensasse
em nada – a não ser em palavras.
Ali ele deparou com a impenetrável parede que separa o pensamento humano
do pensamento dos seres superiores e os torna distintos, deparou com a
necessidade imperiosa da linguagem, sem a qual a capacidade humana de pensar
não pode ganhar impulso próprio – que é, de certo modo, apenas um recurso
artificial para produzir algo parecido ao verdadeiro pensamento puro, o
que talvez algum dia alcançaremos.
A linguagem lhe parecia um estorvo para o pensamento, mas ele não
conseguia pensar sem a linguagem.
Às vezes, afligia-se horas a fio tentando ver se era possível pensar sem
palavras. – E então vinha ao seu encontro o conceito de existência como o
limite de todo pensamento humano – e tudo ficava escuro e ermo. – Então
olhava por alguns momentos a curta duração de sua existência, e o
pensamento, ou melhor, o não pensamento do não ser, estremecia-lhe a
alma – era inexplicável que ele agora existisse realmente e que antes não
tivesse existido. – Assim, vagava sem apoio e sem guia nas profundezas da
metafísica.
Às vezes, quando estava cantando no coral e, em vez de conversar com
seus colegas de escola, retirava-se solitário, os colegas por trás diziam: “Lá
vai o melancólico!”; ele refletia então sobre a natureza do som e procurava
investigar o que não se deixava expressar com palavras. – Isso agora ocupava
o lugar de seus antigos sonhos românticos, com os quais ele antes havia
devaneado em tantas horas sombrias, quando em dias tristes de inverno
cantava na neve e na chuva.
Pegou emprestada do alfarrabista a Metafísica de Wolf e a leu também
segundo o método anterior – e, quando foi até a casa do sapateiro S., a
matéria para seus diálogos filosóficos estava muito mais rica que antes – e
eles por si mesmos chegaram a todos os diferentes sistemas expostos pelos
filósofos antigos e modernos, sempre repetidos maquinalmente por uma
multidão de pessoas.
Nesse meio-tempo, o diretor B., em cuja amizade Reiser havia colocado
muita esperança, tendo sido iludido tantas vezes, fora também promovido
a superintendente numa pequena cidade não muito longe de H., e seu
lugar foi ocupado por outro, de nome S.
Essa mudança praticamente não interessou a Reiser, que naquela
época não pensava em nada a não ser em sua metafísica. – O novo diretor
era já um senhor, de conhecimentos e muito gosto, e estava bastante livre
do pedantismo, caso muito raro nos antigos pedagogos.
Além disso, durante a mudança, muitas aulas foram canceladas. – As
faltas de Reiser nem sequer eram notadas. – E, se alguma vez uma falta às
aulas públicas foi bem aproveitada, foi o caso de Reiser – em poucos
meses, ele fez mais, ampliando seu entendimento com muito mais
conceitos, do que em todos os anos de estudos escolares.
Ao menos nunca voltou a ouvir todo o curso de filosofia exposto tão
detalhadamente quanto naquela época em que ele o concebera por si
mesmo – até as outras ciências, como a dogmática, a história etc., ele
nunca mais viu explicadas com tanta riqueza na universidade como havia
ouvido em parte na escola em H.
Na infância, não recebeu instrução alguma, exceto de aritmética e de
caligrafia, que agora estavam quase completamente perdidas, porque não
tivera chance de fazer exercícios de aritmética e havia machucado a mão
copiando textos. – Calhou de receber algumas aulas de caligrafia, que lhe
foram de pouca ou quase nenhuma utilidade, mas lhe permitiram
exercitar bastante a mão; quando começou de novo a preparar as tarefas
escolares e levar seus exercícios ao reitor, este ficou tão admirado com a
melhora de sua mão que lhe deu imediatamente algo para copiar, e o
obrigou a fazer em sua casa, de modo que Reiser assim conseguiu de novo
entrar na casa do reitor; isso o animou com alguma esperança de ter
crédito novamente, mas foi logo suprimida, quando seu pai certa vez
chegou a H. e o pastor M. não lhe deu nenhum consolo, limitando-se a
dizer que Reiser era um depravado que não se tornaria nada.
Quando seu pai voltou para casa, Reiser o acompanhou até o lado de
fora das portas da cidade, e foi ali que o pai o fez saber das palavras do
pastor M., reprimindo-o duramente, ao dizer que ele não reconhecia os
favores que recebia, enquanto apontava para a sobrecasaca que Reiser
estava vestindo, descrevendo-a como um presente imerecido de seus
benfeitores. – Esse último comentário irritou Reiser, pois a sobrecasaca,
que era de pano rústico e cinzento, que ele sempre odiou, lhe dava uma
aparência completa de serviçal, e por isso disse ao pai que aquela
sobrecasaca de serviçal, que era obrigado a vestir para o próprio desgosto,
não podia despertar nele nenhum grande sentimento de gratidão.
Seu pai, para quem eram sagrados os princípios da humilhação e da
mortificação de todo orgulho e presunção saídos dos escritos de Madame
Guyon, encheu-se de uma espécie de furor – rapidamente lhe deu as costas
e, caminhando, lhe rogou sua maldição. – Assim Reiser se viu numa
situação até então inédita; tudo o que havia sofrido e aguentado de seu
destino adverso, mesmo o fato de seu pai agora também o rejeitar e lhe
rogar maldição, percorreu-lhe a alma naquele instante.
Enquanto voltava para a cidade, soltava em voz alta imprecações
contra Deus, encontrando-se próximo do desespero – desejou realmente
ser tragado pela terra –, e a maldição de seu pai parecia estar de fato em
seu encalço.
Por um tempo, isso deteve novamente todos os seus bons propósitos e
sua dedicação até então espontânea e ininterrupta.
O verão estava chegando ao fim – e uma contínua dor física começou
com mais frequência a prostrar sua mente. Reiser sentia uma dor de
cabeça constante, que durou um ano inteiro, de modo que quase não havia
dia ou hora em que se visse livre dela.
O alfaiate, em cuja casa Reiser havia morado por um ano, disse-lhe
também que a hospedagem terminara, e ele se mudou para a casa de um
açougueiro numa rua distante, onde estavam alojados outros estudantes e
dois soldados rasos.
Ali teve também de ficar na parte de baixo, junto com outros, na sala; e
sua mobília, o piano e a estante de livros permaneceram lá embaixo, como
antes – em vez do sótão, ele conseguiu, no entanto, um cubículo na parte
de cima, onde dormia com outro aluno do coral, e no verão, quando estava
quente, cada um podia ficar sozinho.
As relações com seu anfitrião, o açougueiro, e com os dois soldados que
lá estavam alojados, além de alguns colegas desregrados do coral que
ainda moravam com ele, não contribuíram muito para sua formação e o
refinamento de seus costumes.
Nas noites de inverno, todos se reuniam na sala, e, como ele não
conseguia trabalhar com ruído e barulho, preferia se misturar ao bando, se
divertindo tanto quanto podia com as pessoas que agora compunham seu
círculo mais íntimo.
Apesar de suas constantes dores de cabeça, também trabalhava
sozinho sempre que conseguia ter um pouco de sossego, e dessa maneira
aprendeu francês em poucas semanas, pegando emprestado um livro de
Terêncio em latim, com tradução para o francês, e estudando diariamente
uma lição, sem interrupção; com isso, progrediu a ponto de compreender
razoavelmente qualquer livro em francês.
Como suas condições de vida não haviam melhorado e, além do mais,
continuava padecendo da dor física, encontrou-se em uma disposição de
alma em que os Pensamentos noturnos, de Young, que naquela época ele
conseguira por acaso, lhe caíram muitíssimo bem – parecia-lhe que
encontrava ali novamente todas as suas ideias anteriores sobre a nulidade
da vida e a vaidade de todas as coisas humanas. – Não se cansava de ler
esse livro e quase decorou os pensamentos e sentimentos que ali
imperavam.
O único alívio para sua dor de cabeça era quando podia se esticar de
costas na cama – nessa posição ficava com frequência lendo o dia todo. –
Era o único prazer da vida que ainda lhe restava e ao qual ainda se
apegava, porque de outro modo o tédio mortal teria tornado insuportável
a vida miserável em que ele se arrastava.
Para fugir às vezes do barulho que o rodeava, Reiser não se esquivava
nem da chuva nem da neve, mas no fim da tarde, quando já escurecera, e
estava certo de que não seria visto por ninguém e de que nenhuma pessoa
iria lhe dirigir a palavra, fazia um passeio pelo baluarte em volta da
cidade; era nesses passeios que seu espírito sempre se reanimava um
pouco e uma faísca de esperança voltava a arder em sua alma para libertá-
lo de seu terrível estado.
Quando, pelas ruas contíguas ao baluarte, ele via uma luz acesa dentro
das casas, imaginava que em cada cômodo iluminado – e havia muitos em
uma casa – vivia uma família, ou então uma comunidade de pessoas, ou
uma pessoa sozinha, e que naquele momento um cômodo daquele
abarcava em si os destinos e a vida e os pensamentos daquela pessoa, ou
de uma comunidade de pessoas; e que ele, após o passeio completo,
retornaria também para um cômodo ao qual estaria como que atado e que
seria o lugar próprio de sua existência; primeiramente isso provocava nele
uma estranha sensação de humilhação, como se seu destino estivesse
perdido nesse infinito e confuso amontoado de destinos humanos cruzados
e se tornasse por isso mesmo pequeno e insignificante. Mas, depois, essas
mesmas luzes em cada um dos cômodos das casas próximas ao baluarte
reerguiam pouco a pouco seu espírito, quando extraía delas uma visão do
todo e conseguia sair de sua própria e limitante esfera, na qual se perdia
entre todos os habitantes da terra que passavam despercebidos e
indistintos na vida, e profetizava para si um destino particular e
extraordinário, cuja doce ideia o animava com nova esperança e coragem
enquanto avançava a passos rápidos.
Uma série de salas de estar iluminadas numa casa desconhecida e
estranha para ele – onde imaginava um número de famílias de cuja vida e
destino pouco sabia, tanto quanto sabiam da sua e do seu – despertou-lhe
posteriormente sempre sensações estranhas – e a limitação de cada um
dos homens se tornava evidente para ele.
Percebeu a verdade: somos apenas mais um entre milhares e milhares
que são e foram.
Muitas vezes, seu desejo era poder se colocar inteiro no ser e na
essência de outra pessoa – às vezes, quando caminhava na rua perto de
uma pessoa completamente estranha, o pensamento da estranheza, da
completa inconsciência do nome e do destino de um em relação ao do
outro, era tão vivo que ele se acercava dessa pessoa, o mais próximo que
as boas maneiras permitiam, para se achegar à sua atmosfera e ver se não
conseguia atravessar o muro que separava suas memórias e seus
pensamentos das memórias e pensamentos desse estranho.
Talvez não seja inconveniente trazer aqui mais uma sensação de sua
infância – naquela época, ele às vezes imaginava ter outros pais que não os
seus, que não conhecesse e que lhe fossem completamente estranhos. – Ao
pensar nisso, muitas vezes vertia lágrimas infantis – seus pais poderiam
ser o que fossem, mas lhe eram os mais queridos, e ele não os teria trocado
pelos mais ilustres e bondosos. Mas ao mesmo tempo já lhe vinha naquela
época o estranho sentimento de se perder na multidão, e do fato de que
ainda havia uma quantidade muito grande de pais com filhos, inclusive os
seus, que também se perdiam nela.
Depois, todas as vezes que se encontrava numa multidão, ele tinha o
mesmo sentimento de pequenez, de particularidade e quase o de
insignificância semelhante ao nada. – Quantas dessas pessoas têm a mesma
matéria que a minha! Com que quantidade dessa massa de pessoas se
constroem Estados e exércitos, assim como de troncos de árvores se
constroem casas e torres!
Eram mais ou menos esses os pensamentos que à época produziam
nele um sentimento obscuro, porque não conseguia vesti-los em palavras
e não sabia como torná-los claros.
Certa vez, quando quatro criminosos foram decapitados no patíbulo às
portas de H., ele saiu com a multidão e viu lá embaixo, apartados dos
restantes, os quatro que deveriam ser exterminados e esquartejados. – Já
que a massa de pessoas que os circundava era muito maior, aquilo lhe
pareceu tão pequeno e insignificante – como se uma árvore fosse
derrubada na floresta ou um boi, abatido. – E, quando os pedaços daqueles
homens condenados foram içados à roda, ele se imaginou esquartejado e as
pessoas que o rodeavam em pé também – o ser humano se tornou tão sem
valor e tão insignificante para Reiser que ele sepultou seu destino e tudo o
mais na ideia de despedaçabilidade do animal – voltou para casa com certo
prazer até e ao longo do caminho comeu sua pasta de peruca – pois aquela
época havia sido justamente seu pior trimestre, em que muitos dias viveu
simplesmente daquilo. Comida e roupa eram para ele tão indiferentes
quanto morte e vida – que diferença faz uma massa de carne móvel
daquelas, da qual havia uma quantidade assustadora no mundo,
caminhando ou não por aí? – Depois não podia se controlar e sempre se
punha no lugar dos criminosos executados, esquartejados e exibidos em
pedaços na roda – e pensava no que Salomão já pensara: O homem é como o
gado; assim como o gado morre, morre ele também.
Desde então, toda vez que via abaterem um animal, Reiser sempre se
unia a ele em pensamento – e, como muitas vezes teve ocasião de ver um
abate na casa do açougueiro, durante um bom tempo seu pensamento
simples passava horas tentando descobrir a diferença entre ele e um
animal abatido. – Muitas vezes, ficava horas a fio fitando um bezerro com
cabeça, olhos, orelhas, boca e nariz; e se inclinava, como fazia com pessoas
estranhas, tão perto quanto possível, muitas vezes com a tola ilusão de
que talvez pudesse se colocar pouco a pouco na essência daquele animal –
porque queria saber toda a diferença entre ele e o animal. – Às vezes se
esquecia tanto de si nessas observações incessantes que realmente
chegava a pensar que naquele instante tinha sentido o modo de existência
daquele ser. – Em suma, como seria se, por exemplo, ele fosse um cão que
vivia entre os homens, ou outro animal – já desde a infância isso ocupava
seu pensamento com frequência. – E, como pensara então na diferença de
corpo e alma, nada lhe era mais importante do que descobrir também
qualquer diferença fundamental entre ele e o animal, porque caso
contrário não poderia se convencer de que o animal, que era muito
parecido com ele em sua estrutura corporal, não teria também uma alma
como ele.
E onde permanecia a alma após a destruição e o despedaçamento do
corpo? – Todos os pensamentos de milhares e milhares de pessoas que
antes estavam separados uns dos outros pela parede do corpo e que se
comunicavam através do movimento de algumas partes dessa parede
pareciam, após a morte da pessoa, confluir todos para a unidade – lá não
havia nada mais que os isolasse e os separasse uns dos outros – ele
imaginava um homem de que só tivesse restado o intelecto pairando no ar,
intelecto que logo se dissolvia em sua faculdade de representação.
E daí lhe parecia surgir, da imensa massa de homens, uma imensa e
informe massa de almas – ele nem sempre compreendia por que seriam
exatamente tantas e não mais nem menos, e como o número parecia ir ao
infinito, o singular por fim se tornava quase tão insignificante quanto o
nada.
Essa insignificância, essa perda na multidão, era fundamentalmente o que
muitas vezes tornava sua existência enfadonha.
Certo fim de tarde, caminhava pelas ruas triste e irritado – o sol já se
punha, mas ainda não estava tão escuro que não pudesse ser visto por
ninguém – e o olhar das pessoas lhe era insuportável porque ele
acreditava ser objeto de escárnio e de desprezo delas.
Havia um vento úmido, uma mistura de chuva com neve – toda a sua
roupa estava encharcada – e de repente surgiu nele o sentimento de que
não podia fugir de si mesmo.
E com esse pensamento ele sentiu como se uma montanha lhe caísse
em cima – procurou com todas as forças se erguer, mas era como se o
fardo de sua existência o forçasse para baixo.
Teria de se levantar e se deitar consigo todo santo dia – a cada passo,
seu odiado si mesmo seguiria se arrastando com ele.
Com a sensação de desprezo e rejeição, sua consciência de si ficou tão
pesada quanto seu corpo com a sensação de umidade e frio; se naquela
época uma morte almejada lhe tivesse sorrido de um recanto qualquer, ele
teria se despojado de seu corpo de bom grado e com prazer, como de suas
roupas encharcadas.
Irrevogavelmente Reiser tinha de ser ele mesmo e não podia mais ser
outra pessoa; o fato de estar limitado e confinado a si mesmo pouco a pouco
lhe provocou um grau de desespero que o levou à beira do rio que
atravessava uma parte da cidade onde não havia nenhum parapeito.
Ali, durante meia hora, entre o mais terrível tédio de viver e o desejo
instintivo e inexplicável de continuar respirando, permaneceu em pé,
lutando até perder finalmente as forças e cair sobre o tronco de uma
árvore derrubada que estava perto da margem. Ali, durante um momento,
como que desafiando a natureza, deixou-se molhar pela chuva até que a
sensação de um calafrio de febre e uma bateção de dentes o trouxessem
novamente a si, e por acaso lhe ocorreu recordar que naquela noite ele
comeria linguiça fresca na casa do seu anfitrião, o açougueiro; e que a sala
estaria muito bem aquecida. – Essas lembranças sensoriais e animalescas
revigoraram sua vontade de viver – ele se esqueceu completamente de
que era homem, assim como se esquecera disso depois da execução dos
criminosos, e voltou para casa em seus propósitos e sensações como um
animal.
E como animal ele desejou continuar vivendo; como ser humano, cada
momento da continuação de sua existência se tornara insuportável.
Mas como ele, quando as coisas apertavam, já fora tantas vezes salvo
de seu mundo real pelo mundo dos livros dessa vez também pegou
emprestada no alfarrabista justamente a tradução de Wieland das obras de
Shakespeare – e todo um mundo novo de repente se abriu para seu
pensamento e sensibilidade!
Reiser encontrou ali muito mais do que até então havia pensado, lido e
sentido. – Leu Macbeth, Hamlet, Lear e sentiu seu espírito arrebatar-se
irresistivelmente – cada hora da vida em que lia Shakespeare era
inestimável. – Por onde quer que fosse, agora vivia, pensava e sonhava
com Shakespeare, e seu maior desejo era compartilhar tudo o que sentia
ao lê-lo. – A pessoa mais próxima com quem pôde compartilhar isso, e que
também era muito sensível ao autor inglês, era seu amigo Philipp Reiser,
que morava numa vizinhança distante da cidade, onde instalara uma nova
oficina e construía pianos – ele continuava cantando no coral, mas não no
mesmo de Anton Reiser. – Apesar da estreita amizade dos dois, as
circunstâncias da vida os haviam separado durante um bom tempo.
Mas, quando Anton Reiser não podia desfrutar seu Shakespeare
sozinho, ele sabia que não havia nada melhor a não ser correr para seu
amigo romântico.
Ler em voz alta para o amigo uma peça inteira de Shakespeare e notar
com prazer todas as sensações e declarações dele era para Reiser o maior
deleite que desfrutara na vida.
Eles dedicavam noites inteiras às leituras, nas quais Philipp Reiser fazia
o papel de anfitrião, preparava o café por volta de meia-noite e botava
lenha na lareira. – Depois ambos se sentavam a uma mesinha à luz de uma
pequena lamparina. – Philipp Reiser inclinava o longo pescoço sobre o
livro enquanto Anton Reiser continuava lendo, e a intensa paixão
aumentava junto com o interesse pela ação.
Essas noites shakespearianas fazem parte das mais agradáveis
recordações na vida de Reiser. Se algo formou seu espírito, foram essas
leituras, em relação às quais tudo o que havia lido de teatro até então ficou
totalmente à sombra e obscurecido. Aprendeu de maneira nobre a não se
importar nem mesmo com suas condições de vida – apesar da melancolia,
sua fantasia tomava um impulso maior.
Shakespeare o fizera percorrer o mundo das paixões humanas – o
círculo estreito de sua existência ideal fora ampliado. Não vivia de modo
tão isolado e insignificante a ponto de se perder na multidão – pois ele
havia sentido profundamente as sensações que milhares sentiram ao ler
Shakespeare também.
Depois de ter lido Shakespeare, e da maneira como o havia lido, ele já
não era um homem vulgar e comum – e não demorou muito para que seu
espírito sobrepujasse todas as suas condições externas de vida opressiva, o
escárnio e o desprezo que antes sofrera – como a sequência desta história
irá mostrar.
Os monólogos de Hamlet fixaram sua atenção primeiramente na
totalidade da vida humana – não se imaginava mais sozinho quando se
sentia atormentado, oprimido e limitado; começou a considerar isso o
destino universal da humanidade.
Assim, seus lamentos se tornaram mais nobres que antes – a leitura dos
Pensamentos noturnos, de Young, já tinha em certa medida provocado esse
efeito, mas esses Pensamentos também foram suplantados por Shakespeare.
– Shakespeare tornou mais forte o antes frouxo laço de amizade entre
Philipp Reiser e Anton Reiser. Como Anton precisava de alguém a quem
pudesse dirigir todos os seus pensamentos e sentimentos, em quem
poderia recair sua escolha a não ser sobre aquele que tinha sentido o seu
adorado Shakespeare inteiramente como ele?
A necessidade de compartilhar seus pensamentos e sentimentos lhe
suscitou a ideia de fazer novamente uma espécie de diário no qual não
pretendia anotar os insignificantes acontecimentos externos como antes,
mas a história interna de seu espírito, e endereçar o que anotava ao
amigo, como numa carta.
Philipp, por sua vez, deveria também lhe escrever, o que acabou se
tornando um exercício mútuo de estilo. – Esse exercício foi a primeira
formação de Anton Reiser como escritor; começou a sentir um
indescritível prazer em expressar seus pensamentos, que concebera para
si próprio, em palavras adequadas para poder compartilhá-los com o
amigo – e assim nasceram de seu punho vários pequenos ensaios, alguns
dos quais não o envergonhariam mesmo em seus anos de maturidade.
Mesmo sendo esse exercício unilateral – já que Philipp Reiser ficou
para trás com os seus ensaios –, Anton Reiser agora tinha alguém em cujo
sentimento e gosto podia confiar, cuja aprovação ou censura não lhe eram
indiferentes, e em quem podia pensar todas as vezes que escrevia algo.
Era estranho; no princípio, quando queria anotar algo, sempre lhe
vinham à pena as palavras: o que é minha existência, o que é minha vida?. E
por isso essas palavras estavam também em muitos pequenos pedacinhos
de papel em que ele tinha intenção de escrever, e, se não conseguia,
jogava-os fora.
Sua concepção obscura da vida e da existência, que estavam diante dele
como um abismo, era sempre a primeira coisa a se impor em sua alma –
sentia-se pressionado a corrigir primeiramente o ponto mais importante
de sua dúvida e preocupação antes de dirigir o pensamento a qualquer
outro objeto. – Era portanto muito claro que, contra a sua vontade,
aquelas palavras sempre viessem à sua pena quando se esforçava para
anotar pensamentos.
Por fim, a expressão abriu caminho através dos pensamentos – e o primeiro
que lhe foi possível vestir em palavras adequadas foi um pensamento
metafísico sobre o eu e a autoconsciência.
Como queria continuar pensando e anotando seus pensamentos, sem
dúvida a primeira coisa que lhe vinha à mente era: queria ser, por assim
dizer, veraz consigo mesmo antes de proceder com as outras coisas.
Começou então a perseguir o conceito de indivíduo, que alguns anos
antes, quando ouvira pela primeira vez algo sobre lógica, tinha se tornado
de fundamental importância para ele – e, ao deparar com o mais elevado
grau de determinação do ser sob todos os aspectos e a perfeita identidade de
si mesmo – após algumas meditações, foi como se ele mesmo tivesse se
desvanecido – e tivesse novamente de procurar-se na sequência de
recordações do passado. – Percebeu então que a existência só pode ser
agarrada no encadeamento dessas recordações ininterruptas.
A verdadeira existência lhe parecia estar limitada apenas ao indivíduo
real – e ele não podia pensar num indivíduo verdadeiro exceto num ser
eternamente imutável que abarcava tudo num só olhar.
No fim de suas investigações, parecia-lhe que até sua existência não
passava de mera ilusão, uma ideia abstrata – um conjunto de similaridades
que cada momento de sua vida tinha com o momento que havia
desvanecido. – Por meio dos conceitos de sua própria limitação, seus
conceitos de divindade foram enobrecidos – agora começava a perceber,
nesse grande conceito, a própria existência, que sem ele parecia se
dissolver, tornando-se sem finalidade, desordenada e despedaçada. –
Dessas reflexões se formou o primeiro ensaio que escreveu e enviou
em forma de carta ao amigo com quem costumava conversar sobre esses
temas e que pelo menos parecia compreendê-lo.
No entanto, continuava a ter dores de cabeça – mas acostumou-se de
tal modo a elas que seu estado lhe pareceria seriamente em perigo, ou um
estado artificial, se um dia inesperadamente não mais as sentisse.
Seus encontros com Philipp Reiser se tornaram cada vez mais
frequentes – e ele conquistou de maneira inesperada mais um amigo; era o
filho do mestre de capela, chamado W., um dos colegas na escola, cuja
feição e formato do rosto quase sempre tinham inspirado em Reiser uma
espécie de antipatia, ao mesmo tempo que pensava que W. o desprezava.
W. soube por seu pai que Anton Reiser certa vez escrevera versos, e,
como ele mesmo prometera fazer para alguém um poema por ocasião de
um aniversário, procurou Reiser e lhe pediu que compusesse o poema que
não tinha nem vontade nem tempo para fazer. – Para Reiser, esse foi o
primeiro motivo que o levou a retomar a poesia, a qual havia
negligenciado por completo.
O pequeno poema não saiu nada mau. – W., a partir daquele momento,
visitava-o com mais frequência e prometeu um dia lhe apresentar um
homem notável, que vivia completamente às escuras e não era nada além
de um vinagreiro. – Reiser ficou com muita vontade de conhecê-lo – mas
ainda demorou um bocado de tempo para que isso acontecesse.
Com os versos que conseguiu fazer para W., sua inclinação adormecida
para a poesia voltou a despertar – mas sua indolência o levou de volta à
prosa harmônica, a que as repetidas leituras da primorosa tradução de
Ebert dos Pensamentos noturnos, de Young, tinham habituado seus ouvidos.
– Agora estava faltando apenas um motivo externo para dar um impulso
inabitual à sua imaginação.
Esse motivo ocorreu numa tarde de domingo turva e chuvosa – quando
cantava no coral. – Ele havia falado antes com W., que quis saber, entre
outras coisas, quais eram suas leituras, admirado de sempre o encontrar
lendo. – Reiser lhe respondeu que ler era a única coisa que ainda o
mantinha a salvo do desprezo ao qual estivera comumente exposto na
escola e no coral.
A conversa com W., na qual ele refletiu brevemente sobre sua situação,
deixou seu coração aberto a impressões intensas – e acabou coincidindo
que aquele V., com quem havia representado Sócrates moribundo junto com
G., o tomou por objeto de seu humor grosseiro, ridicularizando-o com
alusões de todo tipo diante de seus colegas de escola, que logo se juntaram
a G., tornando Reiser alvo do deboche deles por quase meia hora.
Não disse nenhuma palavra sobre aquilo e, enquanto ia embora
solitário, sentiu-se magoado interiormente; e, apesar de se esforçar para
transformar sua mágoa em desprezo, não conseguiu; até que finalmente,
sem perceber, sua fantasia o fez entrar num amargo humor misantropo,
que só veio a se atenuar com a lembrança do amigo Philipp Reiser. – Uma
vez que a intenção de anotar seus sentimentos e pensamentos para o
amigo havia se tornado predominante, dessa vez também acabou se
sobrepondo a seu aborrecimento e sua mágoa; procurou traduzir a mágoa
que sentira, e ainda sentia, em palavras que pudessem representá-la tanto
mais vivamente à sua imaginação. – E, antes de o coral terminar, o texto já
estava da mesma forma completamente finalizado, ensaio que ele iria
escrever em casa, em meio a todo o barulho, escárnio e risada zombeteira
à sua volta – e a alegria sentida com isso o ergueu de certo modo além de
si mesmo e de sua aflição. – Assim que chegou em casa – com uma
sensação estranha, confusa e melancólica, repleto de dor por seu estado e
repleto de alegria por ter conseguido esboçar com a linguagem uma
imagem viva dele –, anotou as seguintes palavras:
Para R.
Que triste é a existência do homem! – e, em vez de aliviarmos nosso fardo com um
convívio familiar neste deserto de vida, nós ainda tornamos essa vã existência insuportável
uns para os outros. – –
Não basta vagarmos em ilusão e enganos incessantes como se vagássemos num país
encantado?
Monstros também teriam de gritar conosco? – Um pérfido sátiro também teria de
penetrar em nossa alma com sua risada zombeteira?
Como é árido, como é triste tudo aqui ao meu redor! – Abandonado e solitário, tenho de
vagar – sem apoio, sem guia! –
Feliz de mim! Avisto uma multidão; homens iguais a mim também vagam por este
deserto –
“Ó amigos, me acolham, me acolham, que percorro este deserto com vocês; e ele se
tornará para mim um prado verdejante!”
Eles me acolhem – fico feliz! – –
Ai de mim! – o que vejo? – Aqueles ainda são os homens, meus irmãos? –
Ah, suas máscaras caem – são demônios – e o deserto se torna inferno para mim. –
Fujo, e a risada zombeteira deles me persegue. –
“Então vocês me enganaram, máscaras humanas? – Ah, máscara alguma poderá me
enganar de novo! – Que agora seja hospitaleira a noite, e você, solidão, e você, melancolia
mais negra! – Máscaras da morte, que sejam eternamente banidas de mim todas as suas
brincadeiras risonhas, toda a sua alegria ruidosa!” –
Assim eu caminhava e pensava, e o pesar sombrio preenchia minha alma. –
Quando de repente um jovem parou diante de mim – seu olhar anunciava amizade –
seus olhos meigos denotavam sensibilidade –; eu quis fugir o quanto antes – mas ele pegou
minha mão com muita familiaridade, e eu permaneci em pé – ele me abraçou, eu a ele –
nossas almas confluíram –
E à nossa volta fez-se o Elísio.
Reiser, de fato, não teria podido traçar imagem mais verdadeira do seu
estado do que essa – não havia exagero em nada do que disse –, pois as
pessoas com as quais ele primeiramente caminhou pela vida se lhe
tornaram realmente almas atormentadoras. – E dos monstros que lhe
gritaram fazia parte sobretudo V., cujo deboche grosseiro e pérfido
naquela tarde de domingo magoara Reiser até o fundo de sua alma, pois
esse V. sempre quisera ser seu amigo – ao menos ele e G., que fora expulso do
país, eram os únicos que, após a apresentação da peça de teatro, ainda se
relacionavam com Reiser, porque os três compartilhavam uma sina igual,
o ódio e o desprezo de todos os colegas de escola. – E o próprio V. se
colocava agora junto daqueles para os quais Reiser era um objeto de
escárnio – e provocava esse escárnio por seus deboches grosseiros,
tornando-se engraçado à custa de Reiser. – Tudo isso se somou para deixá-
lo com o humor misantropo com o qual esboçou o texto anterior. – Por
causa da lembrança de Philipp Reiser e porque até mesmo o filho do
mestre de capela, seu antigo inimigo, começou a se tornar seu amigo, seu
humor amargo se atenuou tanto que ele transigiu na conclusão de seu
texto e voltou a dar ouvidos aos sentimentos afáveis.
Dessa maneira, ele já redigira ao amigo vários pequenos ensaios em seu
diário, quando então a primavera chegou e, na Páscoa, foram realizadas as
habituais provas públicas escolares, às quais também compareceu.
Mas qual não foi o forte abalo de seu ânimo quando observou os outros
e percebeu que entre todos ele era o que estava mais malvestido? – Sentou-
se ali como se estivesse perdido; sem que ninguém lhe desse atenção –
sem que lhe fosse feita uma única pergunta.
Suportou aquilo antes do almoço – mas, quando retornou à tarde e
outra vez se viu perdido no meio daquela multidão que o rodeava – não
pôde mais suportar – e foi embora antes mesmo de a prova começar.
E então correu diretamente para as portas da cidade – o céu estava
turvo e nublado –, dirigindo-se a um pequeno bosque que não ficava tão
longe de H.
Tão logo se pôs fora do tumulto da cidade e viu as torres de H. atrás de
si, milhares de sensações cambiantes se apoderaram dele. – De repente,
tudo se lhe apresentou sob um ponto de vista diferente. Viu-se fora de
todas as minúsculas circunstâncias que o estreitavam, atormentavam e
pressionavam naquela cidade com as suas quatro torres; de repente,
encontrava-se lançado na natureza grande e aberta, respirando de novo
mais livremente – seu orgulho e sua autoestima se elevaram – fixou o
olhar naquilo que havia ficado para trás, recolhendo-o num quadro em
escala menor. –
Viu os padres com seus sobretudos e colarinhos pretos subirem as
escadas e distribuírem prêmios entre seus colegas de escola; depois viu
como cada um voltava para casa, tudo girando em círculo – e no perímetro
da cidade, que agora estava atrás dele e de onde se distanciava cada vez
mais, viu toda aquela agitação emaranhada. – Tudo ali, tão apinhado, tão
pequeno, lhe parecia se misturar como um amontoado de casas adjacentes
que ainda conseguia ver a distância. – E agora, já no campo livre, ele
pensava no silêncio, pensava que ninguém o notaria, ninguém lhe faria
uma cara fingida – e lá a turba barulhenta, o chiado das carruagens, às
quais ele tinha de dar passagem, os olhares das pessoas que ele evitava –
isso tudo, pintado em escala menor em sua imaginação, despertava nele
um sentimento maravilhoso, como no entardecer o dia se separa da noite,
e uma metade do céu ainda é iluminada pelo pôr do sol, enquanto a outra
já repousa na escuridão.
Sentiu uma força incomum em sua alma para não levar em
consideração nada que o jogasse para baixo – pois o espaço que
compreendia todo aquele emaranhado ao qual suas preocupações e
aflições estavam entrelaçadas era pequeno demais e diante dele estava o
grande mundo.
Mas em seguida o sentimento de melancolia voltou: onde deveria ele
criar raízes fortes nesse grande mundo ermo, já que se via expulso de todo
o convívio? Ali, naquela pequena mancha de terra, para onde convergiam
os destinos humanos, não havia nada, absolutamente nada!
Veio-lhe à lembrança que desde a infância seu destino havia sido não
ter um lugar – quando queria assistir a qualquer coisa e era preciso se
acotovelar, pois os outros eram sempre mais atrevidos que ele e se
punham à sua frente. – Reiser pensava que em algum momento surgiria
uma brecha por onde ele, sem empurrar ninguém de sua frente, pudesse
encontrar um lugar – mas não surgia nenhuma – e voluntariamente se
retirava e, solitário, observava o empurra-empurra a distância.
E, ao estar solitário ali, a ideia de que podia observar tranquilamente, sem
se misturar, lhe deu certa compensação para a privação daquilo que não
pudera ver – solitário, sentiu-se mais nobre e mais extraordinário que
perdido naquele tumulto. – Sublevando-se, seu orgulho venceu o tédio que
experimentara antes – o fato de não conseguir se juntar àquele
aglomerado de gente impelia-o de volta a si mesmo – e o enobrecia,
elevando seus pensamentos e sensações.
Isso também foi o que lhe ocorreu durante o passeio solitário na tarde
nublada e chuvosa em que, pressentindo os olhares sarcásticos dos colegas
de escola, o completo desprezo e o insuportável não ser notado, ele saiu
correndo sozinho rumo à floresta pelas portas da cidade de H.
Esse passeio solitário fez desabrochar de repente outras sensações em
sua alma e contribuiu mais para a verdadeira formação de sua mente do
que todas as aulas a que tinha assistido até então.
Esse passeio solitário, que elevou a autoestima de Reiser e ampliou seu
horizonte, deu-lhe uma ideia clara de sua existência própria, verdadeira e
isolada; existência que, durante algum tempo, não esteve mais vinculada a
nenhuma circunstância de vida, mas existia em si e por si mesma.
Ao lançar um olhar para o todo da vida humana, ele aprendeu antes de
tudo a diferenciar o que é relevante na vida do que são os seus pormenores.
Tudo o que o havia magoado parecia pequeno e insignificante, não
merecendo o esforço do pensamento.
Mas agora cresciam em sua alma outras dúvidas, outras preocupações
– nutridas por ele havia muito tempo – sobre a origem e a finalidade,
sobre o começo e o fim de sua existência, encobertas pela escuridão
impenetrável – e sobre a procedência e o destino de sua peregrinação pela
vida – que se tornara tão difícil para ele sem que soubesse a razão. – E
finalmente qual seria o destino de tudo aquilo?
Isso gerou uma profunda melancolia nele. Enquanto com muito esforço
caminhava na areia amarela através da charneca seca rumo à floresta, o
céu ia ficando mais enevoado, e um chuvisco molhava sua roupa. –
Quando chegou à floresta, cortou um cajado na sarça e continuou sua
marcha. – Chegou então a uma aldeia, e, com a paz silenciosa que reinava
naquelas casinhas de campo, concebeu todo tipo de ideias afáveis, quando
ouviu um casal brigando numa das casas, provavelmente marido e mulher,
e uma criança chorando.
Portanto, onde quer que haja homens, há mau humor,
descontentamento e insatisfação, pensou, e prosseguiu caminhando com
seu cajado. – Passou a desejar o deserto mais solitário – e, quando
finalmente lá também o tédio mortal o incomodasse, a sepultura seria seu
último desejo – e, como não compreendia por que ao longo dos anos de
sua vida teve de ser oprimido, alijado e repelido por todos, duvidou por
fim que sua existência tivesse uma causa racional – sua existência lhe
parecia obra de uma casualidade terrível, cega.
Anoiteceu mais cedo do que habitualmente, porque o céu estava
nublado, e começou a chover mais forte – e quando chegou em casa era já
escuridão completa. Sentou-se embaixo de sua lamparina e escreveu para
Philipp Reiser:
Molhado de chuva e gelado de frio, eu me dirijo a você, e, se não a você, à morte, pois, desde
a tarde de hoje, o fardo da vida, para a qual não vejo nenhuma finalidade, é-me
insuportável. – Sua amizade é o apoio no qual ainda me aferro quando não quero me
afundar irresistivelmente no desejo preponderante de aniquilação de meu ser.
E de repente surgiu outra vez a ideia de ganhar a aprovação de seu amigo
pela expressão dos sentimentos. – Isso era de certo modo o novo esteio em
que ele voltara a prender sua vontade de viver – e, como naquela tarde
todos os seus sentimentos haviam sido tão excepcionalmente fortes e
vivos, não lhe foi difícil chamá-los de volta. – Ele então começou:
Era como se o poema emanasse de sua alma. – Até a rima e a métrica não
lhe ofereciam quase dificuldade, e ele o escreveu em menos de uma hora.
– Depois, logo começou a fazer poesia só por fazer, mas isso nunca lhe
rendeu bons resultados.
Mas a primavera e o verão do ano de 1775 transcorreram em plena
poesia. – As agradáveis noites shakespearianas que passara no inverno
com Philipp Reiser foram substituídas por passeios matinais ainda mais
agradáveis.
Não tão longe de H., onde o rio forma uma cachoeira artificial, há um
pequeno bosque, como dificilmente se pode encontrar mais agradável e
mais convidativo em outro lugar.
Então passaram a caminhar até lá antes de o sol nascer – os dois
peregrinos levavam consigo o café da manhã e, quando chegavam ao
bosque, roubavam uma porção de musgos dos troncos das árvores,
preparavam um assento macio onde se acomodavam e, quando já haviam
acabado de comer, liam em voz alta um para o outro. – Para tanto,
selecionavam especialmente poemas de Kleist, que eram quase decorados
em tais ocasiões.
Quando voltavam no outro dia, procuravam primeiramente em todo o
bosque pelo lugar em que estiveram no dia anterior, e se sentiam ali, na
imensa e livre natureza, como em casa, o que lhes dava uma sensação
muito especial de exaltação no coração. – Tudo o que os rodeava nesse
imenso círculo pertencia aos olhos, aos ouvidos e aos sentimentos deles –
o verde viçoso das árvores, o canto dos pássaros e a fresca fragrância da
manhã.
Ao voltarem para casa, Philipp Reiser ia para sua oficina e fazia pianos,
enquanto Anton Reiser frequentava a escola, onde agora a maioria de seus
colegas pertencia a uma turma diferente, de modo que ele também podia
frequentá-la com o coração mais aliviado.
Em muitos momentos, Anton Reiser também procurava sua amada
solidão, embora agora tivesse um amigo – e, quando a tarde estava bonita
buscava um cantinho à margem do rio, no campo perto de H., por onde
um regato cristalino corria sobre os seixos, fluindo por fim para o rio que
passava ali. – Como sempre visitava aquele cantinho, o local havia se
tornado para ele uma espécie de pátria na imensa natureza que o rodeava;
e ele também se sentia em casa quando se sentava ali e não estava
limitado por paredes ou muros, mas desfrutava livre e sem freios tudo à
sua volta. – Jamais frequentou aquele cantinho sem levar Horácio ou
Virgílio no bolso. – Lá Reiser lia sobre a fonte de Bandúsia e sobre como
fluía a torrente
O mundano e o cristão
A alma do sábio
O homem provém do pó
E com ele seu mundo –
O homem se torna presa do túmulo
E com ele seu mundo. –
Philipp Reiser censurou o poema todo, exceto a última estrofe, que ele
achou suportável:
Mesmo com tudo isso acontecendo, naquela época, Anton Reiser não
perdia suas aulas na escola, na qual o novo diretor, que no fundo era um
homem de gosto e de conhecimento, embora um pouco pedante, instituiu
exercícios de declamação que despertariam toda a sua ambição.
Mas quem quisesse se apresentar publicamente para declamar tinha ao
menos de ter um traje adequado, o que faltava a Reiser, que, além de sua
roupa de tecido cinza, própria de serviçais, possuía apenas um velho
sobretudo, e não ousou se apresentar com nenhum dos dois. – Suas
péssimas roupas eram de novo, portanto, a pedra em seu caminho e o que
abatia seu ânimo.
Ainda esse obstáculo foi finalmente removido quando o príncipe lhe
ofereceu de novo quantia suficiente para que pudesse arrumar um traje
adequado.
E agora todos os seus pensamentos e esforços se dirigiam para compor
um poema que considerasse digno de ser declamado em público.
Não era nada comum que alguém quisesse declamar um poema
composto por si mesmo, mas, sim, que copiasse um de algum lugar e,
enquanto o declamava, segurasse o papel diante de si ou o entregasse para
o diretor acompanhar.
Mas Reiser pusera na cabeça que seria o autor do poema que
declamaria pela primeira vez – ele só precisava de um tema digno;
desejava sobretudo trabalhar num tema que fosse possível declamar.
E quando, numa linda noite de luar claro, saiu repleto dessas ideias
para passear em torno do baluarte, ele se recordou de um poema contra os
ateus, que havia alguns anos quase decorara graças ao estilo declamatório
que nele dominava, cujas ideias lhe pareciam extremamente sem vida –
mas naquele momento o assunto se tornou muito vivo para ele – de modo
que deu ainda mais uma volta em torno do baluarte e, durante esse tempo,
concluiu em sua mente o poema “O ateu”.
Seus pensamentos tomaram forma própria, bem diferente dos
pensamentos corriqueiros do poema que sabia de cor. – Imaginou o ateu
como escravo de ventanias, de trovões, de elementos enfurecidos, de
doença e de decomposição, em suma, como escravo de todos os seres
irracionais e inanimados, que são mais fortes que ele e se tornam seus
senhores quando o ateu não quer reverenciar o espírito pleno de graça
eterna. – Quando Reiser estava tentando compor e declamar um poema
sobre Deus, nasceu de maneira tão violenta em sua alma a necessidade de
crer em um que sentiu uma espécie de justa animosidade contra todos que
queriam roubar dele essa consolação, e conseguiu se manter no ardor até
que o poema ficasse pronto, o qual começava e terminava com a alegre
convicção da existência de uma causa racional de todas as coisas que são e
acontecem, e, apesar de toda a irregularidade e frequentes expressões
forçadas, compôs um todo de sensações que Reiser até então ainda não
conseguira produzir. – Portanto, não será supérfluo aqui dar notícia desse
poema, embora não mereça ser conservado:
O ateu
A última estrofe:
Por esse tempo, Reiser também conheceu, graças a W., o filho do mestre
de capela, uma pessoa muito interessante, o vinagreiro filosófico, a quem
W. quisera apresentá-lo fazia já meio ano, mas nunca tivera a
oportunidade.
Certa noite, W. foi buscá-lo, e Reiser estava cheio de expectativas – no
caminho, W. lhe ensinou como deveria se comportar com o vinagreiro,
que ele não deveria lhe dar boa-tarde quando o encontrasse nem boa-
noite quando deixasse o lugar. – Foram pela longa rua Oster, repleta de
casas no estilo franco antigo, passaram pelo portão e atravessaram um
longo pátio até a cervejaria, onde, lá no fundo, isolado, o vinagreiro tinha
seu próprio local, sempre aquecido, no qual os barris ficavam enfileirados
num imenso depósito, formando longos corredores nos quais era possível
se perder. – Quando se falava ali, produzia-se um eco abafado. – Não era
possível ver ninguém, então W. começou a gritar: “Ubi?” – e uma voz lá
longe respondeu: “Hic?”.[25] – Passaram pela cervejaria propriamente dita,
ao lado da fila dos barris, e o vinagreiro, de camisa branca e avental azul,
com as mangas arregaçadas, estava à janela escrevendo – “Termino logo”,
ele disse e depois passou a W. um papel em que havia uns versos em latim
que acabara de compor para ele.
Para Reiser, o vinagreiro parecia um homem de uns 30 anos – em cada
movimento de seus músculos, em seu olhar fulgurante, havia como que a
expressão de uma força contida. – O vinagreiro lhe inspirou respeito logo
no primeiro olhar – ele parecia não se importar com Reiser, mas falava
com W. sobre algumas novas partituras de música e outras coisas, e não
disse nenhuma palavra que não fosse em baixo-alemão, expressando-se de
maneira tão correta e nobre que até mesmo o mais rude baixo-alemão
ganhava certa atração em sua boca, o que fazia qualquer pessoa, quando
ele falava, vidrar em seus lábios, como Reiser tantas vezes depois
vivenciou ao aprender, entre aqueles seus barris, a sabedoria ensinada
pelo vinagreiro.
Como era uma noite de outono já bastante fria, o vinagreiro conduziu
as duas visitas para seu salão aquecido, onde havia uma longa fileira de
barris, servindo-lhes um tipo de cerveja doce muito saborosa, o que
tornou a conversa mais geral; ao falarem de um conhecido comum, um
velho bastante engraçado e esquisito, o vinagreiro descreveu nos mínimos
detalhes a personalidade inteira desse homem, com o humor de Sterne. –
Depois, leu em voz alta trechos do Tom Jones com tal expressão e com uma
declamação tão verdadeira e correta que Reiser pensou que dificilmente
encontrara noutro lugar conversa melhor e, ao ir embora, não conseguiu
descrever muito bem ao jovem W. o prazer de ter conhecido o vinagreiro.
A partir de então visitava o vinagreiro quase toda noite, na companhia
de W. ou sozinho, e, quando se sentavam em seus banquinhos de madeira
perto do fogão quente, entre os barris com candeeiros pendurados, e liam
o Tom Jones, ou faziam a descrição dos personagens, ele se sentia feliz e
satisfeito como jamais se sentira antes, exceto com Philipp Reiser – mas no
convívio com o vinagreiro ele sempre se sentia elevado e forte ao
ponderar que um homem daqueles, dotado de conhecimentos e
capacidades, se submetia, com paciência e constância da alma, a um
destino que o excluía completamente de todo o convívio com o mundo
refinado e de todos os alimentos do espírito que poderia receber. – E
justamente o pensamento de que aquele homem vivia tão escondido e na
escuridão destacava ainda mais seu valor para Reiser – como uma luz cujo
brilho parece resplandecer mais forte na escuridão do que entre muitas
luzes.
Como vinagreiro, K., assim se chamava, era realmente um grande
homem, e talvez o tivesse sido também como homem de letras, embora
não na mesma proporção – porque sem essa luta com seu destino, a
sublime e paciente força de sua alma não poderia ter se desenvolvido
tanto assim. – Não havia virtude filantrópica possível de ser praticada em
sua situação que ele não tivesse praticado.
De seus ganhos penosamente obtidos, ele sempre poupava o quanto
podia, a fim de receber por vezes, à noite, em sua mesa, alguns jovens para
cuja formação a sua contribuição constituía a alegria de sua vida, e a fim
também de passear algumas vezes com eles, passeios em que sua
satisfação era sempre pagar o que consumiam. – Além disso, sustentava
uma família pobre, dando-lhe diariamente uma moeda de prata que
retirava de seu módico ganho – pois ele era, de fato, apenas um serviçal
naquela cervejaria, da qual seu primo, um ancião decrépito a quem
ajudava no trabalho, era o patrão.
W., Philipp Reiser e o vinagreiro eram agora os principais
companheiros de Reiser, aos quais veio se somar mais um jovem que,
estimulado pelo exemplo de Reiser, havia decidido estudar, apesar da
pobreza de seus pais. – Por meio de W., o vinagreiro também tentou atrair
para si esse jovem, contribuindo para a formação de seu espírito. Suas
conversas eram em geral verdadeiros diálogos platônicos, que ele muitas
vezes temperava com a zombaria mais refinada sobre a tolice infantil ou
sobre a vaidade de suas jovens companhias.
Quando o inverno chegou, Reiser sentiu um estímulo que soprou ainda
mais ânimo do que tudo até então. – É que recebeu do diretor o respeitável
encargo de escrever um discurso em alemão para o aniversário da rainha
da Inglaterra, que ocorreria em janeiro, discurso que deveria ser
pronunciado durante a solenidade.
Esse era o mais elevado e radiante objetivo a que um jovem dessa
escola podia aspirar, e só pouquíssimos o alcançavam: pois geralmente os
discursos em homenagem ao aniversário do rei e da rainha eram feitos
apenas por jovens nobres. – Dessa solenidade costumavam participar o
príncipe e os ministros, juntamente com todas as personalidades da cidade
– que, após o término do discurso, desejavam boa sorte àquele jovem que
era considerado a esperança do Estado – uma cena que frequentemente
abatia Reiser, pois pensava que jamais conseguiria ter tamanho brilho em
sua vida.
E ele, que no começo daquele mesmo ano havia sido desprezado e
posto de lado por todos, recebia agora repentinamente, e sem sua
intervenção, um encargo muito excitante, a cuja execução se dedicou
também com o maior zelo.
Quis compor seu discurso alemão em hexâmetros: o diretor então lhe
havia emprestado as Cartas sobre literatura, recomendando-lhe que as lesse
com muita atenção. Nelas deparou, entre outras coisas, com a resenha em
que a tradução de Zacharia do Paraíso perdido, de Milton, é censurada por
seus péssimos hexâmetros, ao mesmo tempo que se diziam muitas outras
coisas fundamentais sobre a construção de hexâmetros, suas cesuras etc. –
Reiser compreendeu isso e procurou lapidar seus hexâmetros com o maior
cuidado. – Havia dias em que mal conseguia compor três ou quatro versos
– toda noite ia à casa de Philipp Reiser e submetia seus versos mais uma
vez às críticas dele; liam juntos também todos os volumes das Cartas sobre
literatura e naquele inverno retomaram suas noites shakespearianas.
Em novembro, Reiser estava com quase metade de seu discurso pronto
e foi encontrar o diretor para que ele fizesse suas críticas. – O diretor
expressou imensa aprovação ao trabalho de Reiser, informando-lhe,
porém, que ele não poderia mais fazer o discurso em público, porque isso
exigia diversos custos com que Reiser não teria condições de arcar. – Um
raio não o teria abatido mais do que essa notícia – todas as suas brilhantes
perspectivas, das quais se gabara durante a composição do discurso,
desapareceram de uma só vez, e voltou a cair em seu nada anterior. O
diretor procurou consolá-lo – mas ele se afastou do diretor, com o coração
pesado e o pensamento melancólico de que estava destinado à eterna
obscuridade; então lhe vieram à mente os versos que compusera para
Philipp Reiser e que agora cabiam bem em sua situação:
– Georg! –
Ressoem harpas! Soe o canto de júbilo de todas as
Nações afortunadas! – Cala-te, minha canção! Pois em vão
Te atreves a conquistar seu louvor, o louvor de Georg –
A águia em seu voo ousado muitas vezes se arrisca a subir até o sol,
Pairando sobre campos, montanhas e nuvens, lá no alto,
Pensa estar mais perto do sol, mal percebe que seu voo de lesma
Permanece sempre sobre a terra – que para ela desaparecia – que sons
Soariam assaz fortes e harmônicos para imitar,
Um pouco apenas, a harmonia divina das virtudes
Sublimes de Georg? – etc.
Esse prólogo foi impresso como um livreto, que também trazia a lista de
personagens, e no título constava escrito por Reiser, recitado por I. – Reiser se
viu então novamente publicado e, além disso, recebeu de seus colegas de
escola a incumbência de convidar o príncipe para ver a peça; convite que
fez com a espada na cintura e vestido com sua roupa de gala, a mesma que
usara no discurso.
A nobreza e os notáveis da cidade foram pessoalmente convidados
pelos jovens, e Reiser teve assim a oportunidade de ver de perto, tal qual
quando discursara, uma parte da alta sociedade que antes admirava
apenas a distância – viu que os ministros, condes e nobres, com os quais
havia conversado cara a cara, para espanto seu, não eram seres tão
diferentes dele, mas pessoas comuns, cujos comentários continham
muitas vezes algo de esquisito e ridículo, o que fazia desaparecer a aura
que os envolvia tão logo os escutássemos falar e conversássemos
proximamente a eles.
Por mais notável que parecesse agora a condição de Reiser,
caminhando pela rua para visitar as primeiras casas, essa condição podia
ser muito bem definida como uma miséria notável – pois a péssima
proporção de suas despesas com seus ganhos tornava suas condições cada
vez mais desconfortáveis e sua situação mais preocupante. – Além disso,
afligiam-no a monotonia em que vivia e o fato de ainda não ter nenhuma
perspectiva de entrar dignamente na universidade – também o aplauso
imediato que o ator pode receber se tornara tão importante e tão almejado
por ele que sua inclinação passou a tender mais para o teatro do que para
a universidade.
Foi de fato a época mais notável do teatro na Alemanha, e não era de
admirar que a ideia de seguir uma carreira tão brilhante como a teatral
lançasse fagulhas na cabeça de muitos jovens e inflamasse sua fantasia – à
época, esse foi também o caso da companhia dramática em H. – tendo
reunido os talentos mais extraordinários, um Brockmann, um Reinicke,
um Schröder, para uma finalidade artística, ela colhia diariamente os
louros, e não era realmente nada desonroso emular esses modelos.
Ademais, para alcançar essa finalidade, não era preciso passar antes
três anos na universidade. – Depois, Reiser foi tomado pelo anseio
irresistível de viajar, que se apoderara dele desde sua peregrinação
aventureira até Bremen – e a ideia de se afastar de suas atuais
circunstâncias, nas quais mesmo as melhores coisas só davam certo pela
metade, e procurar sua felicidade no vasto mundo, começou pouco a
pouco a se tornar imperiosa nele – mas isso era ainda mero jogo de sua
fantasia; e Reiser não estava verdadeiramente decidido a realizar essa
ideia.
Nessa época, seu pai visitou-o em H., e Reiser pôde pela primeira vez
acolhê-lo em seu aposento, que era muito bem mobiliado e lindamente
revestido com papel de parede. – Procurou então descrever ao pai a parte
mais agradável e vantajosa de sua situação, e lhe apresentou a encenação
da peça de teatro como uma coisa por meio da qual, tanto pelo prólogo
impresso como pelo convite que ele mesmo fizera ao príncipe, atraía a
atenção para si, e, como na ocasião do discurso no aniversário da rainha,
podia novamente se fazer notado.
O pai de Reiser exprimiu então uma ideia muito importante e
verdadeira: as oportunidades de aparecer publicamente para vantagem
própria, como no discurso feito no aniversário da rainha, deveriam ser
consideradas de algum modo uma vitória a ser perseguida, já que eram raras.
Quando o pai foi embora, Reiser o acompanhou por uma hora depois
de saírem pela porta da cidade, e, quando chegaram ao lugar em que o pai
o amaldiçoara, permaneceram inesperadamente em silêncio – só depois
Reiser lembrou que era o mesmo lugar – até ali foram conversando sobre
os assuntos mais importantes e sublimes, em que a mística e a metafísica
coincidiam, e o pai de Reiser selou uma aliança com o filho. – A partir de
então ambos se esforçariam para se aproximar, mais e mais, da grande
meta de união com o supremo ser pensante; e, em seguida, justamente no
mesmo lugar em que antes o amaldiçoara, ele, com a mão sobre o filho,
concedeu sua bênção.
Reiser voltou para casa muito bem-disposto – e permaneceu assim até
que uma nova distribuição de papéis para as próximas peças a serem
encenadas, além de O desertor por amor filial, excitou novamente sua
fantasia, despertando as ideias romanescas que suas reflexões sensatas
haviam arrefecido.
Ainda foram encenadas as peças Clavigo, O homem pontual e O pajem. –
Em O desertor por amor filial, Reiser teve de se contentar com um papel
secundário, e agora esperava obter pelo menos o papel de Clavigo – como
todos os desejos de seu coração estavam fixados no teatro, ansiava por
esse papel – mas não lhe deram o papel, que ficou com um ator que
evidentemente representava pior do que Reiser.
Reiser se sentiu tão ofendido com isso que foi empurrado numa espécie
de melancolia real. – A quem isso pareça improvável e antinatural, que
leve em conta que todo o desejo de Reiser, alimentado por ele durante
anos, chegava agora ao ponto decisivo; poder desenvolver seu talento em
público diante dos habitantes de sua cidade natal, e mostrar o quão
profundamente sentia o que dizia e o quão poderosamente estava em
condições de dizê-lo, pela voz e expressão – excitar esses sentimentos
arrebatadores em milhares de pessoas, assim como Reinicke, que
representou Clavigo, excitara-os nele, era para Reiser uma ideia tão
grande, altiva, e dava tanto enlevo à alma, como talvez jamais papel algum
fora para um mortal numa tragédia. – Nele, todos os desejos, alimentados
havia mais de cinco anos, teriam sido satisfeitos para além de suas
expectativas. – Pois o auditório estava radiante e lotado como nunca. – O
teatro, que abrigava alguns milhares de pessoas, estava tão cheio que
ninguém achava mais lugar, e entre os espectadores se encontrava o
príncipe, como toda a nobreza, o clero e os letrados e os artistas da cidade.
– Apresentar-se publicamente, com toda a intensidade de sentimento e
expressão que até agora ele conseguira desenvolver por si mesmo, diante
daquele auditório e ainda mais numa cidade que era praticamente sua
cidade natal, em que fora educado e vivera tantos reveses – poderia haver
algo mais desejável em sua situação?
Mas desde Sócrates moribundo parecia que o gênio da arte teatral estava
bravo com ele.
Pediu teimosamente que lhe dessem o papel de Clavigo, mas de nada
adiantou; seu rival venceu.
Seu lado mais vulnerável foi assim atingido, no ponto mais delicado de
sua vida – o que lhe amargou todo o resto. – Ninguém que perdesse o
papel de Clavigo teria sofrido tanto quanto ele por não ter conseguido o
papel. – Como a verdadeira situação de sua vida naquele momento lhe era
bastante obscura, era como se uma espécie de véu tivesse passado sobre
todo o restante dela; todas as coisas foram encobertas por um luto
melancólico – buscou, como pôde, novamente a solidão e começou a
descuidar de sua aparência.
Enquanto isso, Philipp Reiser fazia pianos em seu aposento sem
participar daquela farsa. – Desde que se vinculara à companhia de teatro,
Anton Reiser raramente o visitava – mas, agora que poucas coisas lá saíam
como ele desejava, ele visitava Philipp com maior frequência, entregando-
se à sua melancolia sem lhe dizer o verdadeiro motivo – pois não queria de
modo algum admitir a si mesmo que tudo era simplesmente por não ter
conseguido o papel de Clavigo, mas preferia persuadir-se de que era uma
consequência de sua observação da vida humana.
No entanto, desde o momento em que não conseguiu o papel de
Clavigo, sua estada em H. se tornou maçante; começou a ficar inconstante
e desleixado. – Seu mais ansiado desejo de tantos anos tinha de ser
realizado, não importava onde fosse – ele tinha de realizar em algum lugar
tudo o que até agora tinha sido amadurecido em sua fantasia por uma longa
e persistente leitura de peças, e por sua já duradoura inclinação para o
teatro.
Quando estavam ensaiando Clavigo, Reiser se escondia num dos
camarotes. – Enquanto I., como Beaumarchais, esbravejava no palco,
Reiser, estirado no chão do camarote, esbravejava consigo mesmo, e sua
raiva foi tanta que ele acabou cortando o rosto com cacos de vidro
espalhados pelo chão e arrancando os cabelos. – A iluminação, os olhares
de inumeráveis espectadores, cravados apenas nele, e ele expressando as
forças mais íntimas de sua alma diante de todos aqueles olhares
inquisitivos e atuando com o estremecimento de seus nervos sobre os
nervos dos espectadores – tudo isso se lhe tornou presente naquele
instante – e ele deveria ser um nada, mero espectador perdido na multidão,
como era agora, enquanto o idiota que representava Clavigo atraía toda a
atenção para si, atenção que era de direito dele, por ser muito mais
sensível.
Depois de Reiser ter passado por todas aquelas situações em que se
encontrava havia anos, o papel de Clavigo se tornara para ele como que a
finalidade de sua vida, a qual, em razão de milhares de situações
opressivas, fora então completamente subjugada ao domínio da fantasia,
que agora queria exercer seus direitos sobre ela. – – A corda fora
tensionada ao máximo e então arrebentou.
Quando esse horrível ensaio terminou, Reiser se encontrou outra vez
totalmente sozinho, sem amigo, sem alguém que cuidasse dele. – Queria
lamentar sua aflição e foi até I., que, daquele momento em diante, de
maneira mais forte do que nunca, se vinculou a ele, porque também sentia
a mesma necessidade que levara Reiser a procurá-lo.
A fantasia de I. fora também esticada ao máximo, e sua inclinação para
o teatro se tornara preponderante, levando-o a precisar de alguém a quem
pudesse revelar seus mais secretos desejos e sua aflição.
O pai e o irmão mais velho de I. temiam, não sem razão, que a
inclinação ao teatro pudesse ser alimentada em demasia com a grande
aprovação que recebeu em sua apresentação e acabasse se tornando
predominante, e assim o proibiram de participar de exercícios dramáticos,
contra o que ele levantou todas as objeções possíveis, e nesse momento
ainda estava em negociação com seu pai. – I. fez de Reiser seu confidente
contando-lhe o plano de se dedicar totalmente ao teatro, assim como
antes falara sobre sua decisão de se tornar um pregador no campo. – Os
papéis que I. já representara eram o do desertor em O desertor por amor
filial e o judeu em Diamante, encenado como epílogo ao Desertor. I.
representara tão magistralmente o judeu que depois estreou com o
mesmo papel diante de Eckhof, inaugurando sua carreira teatral – assim
como representara de modo sublime o judeu na comédia, também o fez
com Beaumarchais na tragédia, e sua representação foi realmente tão
magnífica que era como estar ouvindo e vendo o próprio Brockmann; e
agora o pai queria tirar seu prazer de se apresentar em público nesse
papel. – I. obrigou Reiser a passar a noite com ele em seu quarto, onde se
perderam, até adormecerem, em doces sonhos sobre a felicidade que a
condição de ator lhes proporcionaria.
Agora os dois eram praticamente inseparáveis, estavam juntos dia e
noite. – E, quando saíram numa manhã quente, mas nublada, lado a lado
pelas portas da cidade, I. disse que o tempo estava bom para passear – e o
clima parecia também tão propício para viajar, o céu tão próximo da terra,
os objetos ao redor tão escuros, como se a atenção quisesse como que se
fixar apenas no caminho a ser percorrido. – A ideia na mente de ambos se
tornou tão viva que por muito pouco não se puseram em marcha – mas I.
ainda queria, se possível, representar seu Beaumarchais em H. – e
voltaram para a cidade. – E, mesmo com as muitas solicitações de I. de um
papel para Reiser, foi impossível que ele conseguisse o papel de Clavigo –
em vez disso, o ator que fazia Clavigo finalmente lhe cedeu o papel de
príncipe em O pajem – e, em O homem pontual, Reiser conseguiu o papel do
mestre Blasius.
Reiser estava melancólico por não poder representar Clavigo, e I. por
não poder mais fazer teatro – mas ambos procuraram se convencer de que
estavam entediados com a própria vida, e, certa noite, carregaram duas
pistolas com as quais passaram quase a noite inteira se divertindo
enquanto improvisavam tragicamente o ser ou não ser.
Mas, para Reiser, o tédio de viver ia se tornando tão profundo a ponto
de não se mexer quando I. lhe apontava a pistola carregada e punha o
dedo no gatilho para disparar, enquanto Reiser fazia a mesma coisa com I.
No dia seguinte, ao visitar Philipp Reiser, teve uma discussão mais
séria com ele. – Não dormira a noite, uma letargia tola transparecia em seus
olhos fundos, o tédio de viver pousou em sua testa, toda a energia de sua
alma desapareceu – ele disse “bom dia!” para Philipp Reiser – e depois
ficou ali em pé como uma porta.
Philipp Reiser, que tantas vezes já o tinha visto em estado de
prostração, mas jamais nesse grau, começou a temer o que poderia se
passar com o amigo – propôs seriamente a Anton matá-lo com um tiro, antes
que ele se tornasse um homem abjeto e mau, como era o caso naquele
momento. – Não era uma boa circunstância para se brincar com Philipp
Reiser, cujos conceitos eram também românticos e exagerados. – Anton
Reiser recusou então imediatamente esse tratamento ao menos por ora e
lhe garantiu que se recuperaria mais uma vez de sua prostração atual.
Nesse meio-tempo, sua situação começou a piorar cada vez mais –
como os gastos requeridos por sua participação na representação teatral
eram superiores aos seus ganhos, e como faltava às aulas particulares que
deveria dar, foi afundando em dívidas e logo começou a lhe faltar para as
necessidades mais básicas da vida, porque não aprendera a arte de viver
com crédito.
Seu vestuário para o príncipe em O pajem, que ele mesmo teve de
adquirir, assim como todos os atores faziam, custou tanto quanto suas
despesas de um mês inteiro – e mesmo assim não conseguiu alcançar seu
objetivo de se mostrar num papel trágico de destaque, o que fora desde
sempre seu verdadeiro desejo.
Numa noite, foram encenadas três peças seguidas: a primeira foi
Clavigo; a segunda, O homem pontual; e, por último, O pajem.
Durante as encenações de Clavigo, Reiser procurava tanto quanto
possível entorpecer seus sentidos e tapar os ouvidos no camarim contíguo
ao palco – cada som que ouvia vindo da peça era uma estocada que lhe
atravessava a alma – pois era exatamente ali que realmente fracassava o
edifício de sua fantasia, construído durante anos, e ele era obrigado a estar
presente sem nada poder fazer para impedir – procurando se consolar
com os dois papéis que ainda tinha para representar e concentrar toda a
sua atenção nisso, mas em vão. Enquanto o papel de Clavigo era
representado realmente por outro diante da plateia numerosa, ele se sentia
como quem vê todos os seus bens serem consumidos pelas chamas sem
chance de salvação – até o último dia manteve a esperança de conseguir
esse papel, custasse o que custasse – mas agora tudo estava acabado.
E quando tudo realmente acabou, e encerraram as encenações de
Clavigo, Reiser ficou um pouco mais aliviado. – Mas continuava com um
espinho no peito. Fez então o papel do mestre Blasius em O homem pontual,
em que I. era o homem pontual, e foi muito aplaudido. – Mas não era o
aplauso que tinha desejado. Não queria provocar o riso, mas comover a
alma com sua representação. Para ele, o príncipe em O pajem era
realmente um papel nobre, mas muito leve – e, além do mais, a
representação da peça foi de certo modo um fracasso – pois, quando
Clavigo e O homem pontual terminavam, a maioria dos espectadores ia
embora, porque já era muito tarde, e não ficava ali nem uma terça parte
para aguardar O pajem. Esse fato e o pensamento torturante sobre Clavigo,
que não conseguia reprimir, eram o motivo pelo qual Reiser representava
o príncipe em O pajem com muito descuido, de modo muito pior do que
teria sido capaz – e, quando tudo terminava, voltava insatisfeito e triste
para casa. – Continuava com o sonho de se apresentar no teatro num
papel intenso e comovente, custasse o que custasse. O fato de pela
primeira vez lhe ter sido negado esse prazer só veio a estimular o seu
desejo com ainda mais força – e como podia esperar com mais certeza a
realização de seu supremo desejo do que transformando em verdadeira
ocupação de sua vida aquilo a que todo o seu coração já estava afeiçoado?
– Por isso, em vez de ser reprimida, a ideia de dedicar-se ao teatro ganhou
ainda mais força nele.
Mas assim como se procura sempre criar os motivos mais prementes para
aquilo que se deseja fazer, a fim de justificar seu comportamento, perante si
mesmo – assim também Reiser procurou apresentar a quitação das
pequenas dívidas que fora levado a fazer como uma coisa tão impossível e
sua revelação como algo tão ruim que já pensava, em razão disso, ter de se
afastar de H. – Mas seus reais motivos eram o impulso irresistível de mudar
a sua situação e o desejo de se apresentar de algum modo em público, o
mais rápido possível, para angariar fama e aplauso, e para isso nada lhe
parecia mais oportuno do que o teatro, onde não se pode imputar vaidade
a alguém por querer se mostrar, todas as vezes possíveis, para proveito
próprio, mas onde a busca pelo aplauso é, ao contrário, privilegiada.
Enquanto isso, suas pequenas dívidas também começaram a pressioná-
lo, somando-se ainda algumas humilhações, que tornavam muito
desagradável sua estada um pouco mais longa em H.
Uma dessas humilhações foi quando um jovem fidalgo, a quem Reiser
dava aula e com quem muitas vezes costumava conversar ainda um pouco
no quarto dele, disse-lhe que ele tinha a honra de se despedir antes que o
próprio Reiser tivesse se despedido. – Era muito provável que realmente
acreditasse que Reiser tivesse feito menção de sair e havia sido um pouco
obsequioso com o cumprimento de despedida – mas mesmo essa
obsequiosidade foi tão terrivelmente chocante para Reiser, e todo o seu ser
se sentiu de uma só vez tão desencorajado, que, quando já tinha saído,
permaneceu um tempo em silêncio, os braços caídos junto ao corpo –
aquele obsequioso eu tenho a honra de despedir-me do senhor se juntou de
repente em sua mente ao garoto idiota! do inspetor do seminário, ao não me
refiro ao senhor! do comerciante, ao par nobile Fratrum dos primeiranistas e
ao isso é uma verdadeira idiotice! do reitor. – Sentiu-se aniquilado por um
momento, todas as forças de sua alma estavam paralisadas. – O
pensamento de ter sido importuno, mesmo que por um momento, caiu como
uma montanha sobre ele – livrar-se daquela existência tão incômoda aos
outros foi o que gostaria de ter feito naquele instante.
Saiu em seguida pelas portas da cidade em direção ao cemitério onde
estava enterrado o filho do pastor M., e perto da tumba chorou as lágrimas
mais amargas de desgosto e fastio da vida. – Tudo lhe pareceu de repente
sob uma luz triste e melancólica – todo o futuro de sua vida era sombrio. –
Desejou estar misturado ao pó que seu pé pisava, e tudo isso por causa do
obsequioso: eu tenho a honra de despedir-me do senhor. – Essas palavras
deixaram um espinho em sua alma, que ele em vão tentou de novo
arrancar – embora ele mesmo não confessasse isso, mas procurasse
derivar seu desgosto e fastio da vida das considerações gerais sobre a
insignificância da vida humana e a vaidade das coisas. – É claro que essas
considerações gerais também estavam presentes, mas, sem aquela ideia
dominante, elas ocupariam apenas seu entendimento e não tocariam seu
coração. – No fundo, o que o dominava e o fazia odiar a vida era o
sentimento de que a humanidade estava oprimida pelas relações sociais – era
obrigado a dar aula a um jovem fidalgo que o pagava por isso e que,
terminada a aula, podia lhe mostrar educadamente a porta da rua quando
lhe aprouvesse. – Que crime teria cometido antes de seu nascimento para
não ter se tornado também um ser humano merecedor da preocupação e
dos esforços de outros seres humanos? – Por que lhe coube o papel daquele
que trabalha e ao outro o daquele que paga? Se suas condições no mundo o
tivessem feito alegre e satisfeito, ele teria visto por todo lado finalidade e
ordem, mas agora tudo lhe parecia contradição, desordem e confusão.
Quando voltava para casa, foi primeiramente admoestado na rua por
um de seus credores – e quando caminhava de cabeça baixa, melancólico,
distraído, ouviu atrás de si um jovem dizer a outro: “Ali vai o mestre
Blasius!”. – Isso o fez explodir de tal modo que deu alguns tapas no jovem
na rua, o qual então o seguiu xingando até que Reiser chegasse em casa.
Daquele dia em diante, a visão das ruas de H. causava horror a Reiser –
e a rua na qual o jovem o tinha seguido xingando lhe era a que mais
despertava abominação; evitava passar por ela sempre que podia, e, se por
acaso precisasse passar por ali, era como se as casas se precipitassem
sobre ele – para onde fosse, acreditava ouvir atrás de si a ralé zombeteira
ou um credor impaciente.
Essas humilhações foram se sucedendo muito rapidamente umas às
outras para que Reiser pudesse superá-las mais uma vez sob a opressão
que a partir daí tornou odioso para ele o lugar onde morava. – A ideia de
abandonar H. e buscar sua felicidade no vasto mundo tornou-se desde
então uma decisão firme, que, no entanto, ele não revelou a ninguém,
exceto a Philipp Reiser – naquela época, este estava muito ocupado
consigo mesmo, porque de novo se divertia com um caso de amor e toda a
sua atenção estava dirigida às maneiras de agradar sua amada. – Para ele,
portanto, o destino de Anton era menos importante do que teria sido em
outra época.
Embora Anton Reiser talvez estivesse prestes a deixar para sempre H.
dentro de poucos dias, seu amigo o reteve com todos os detalhes de seu
namoro, como se Anton tivesse algum interesse no resultado daquilo. Às
vezes aquela história bem que o aborrecia – mas Philipp Reiser era mesmo
seu mais íntimo confidente – e não havia outra pessoa com quem pudesse
se abrir.
Uma vez que, para procurar sua felicidade no vasto mundo, tinha de
escolher algum ponto como destino de sua viagem, escolheu Weimar,
onde a trupe de Seiler, tendo Eckhof como diretor, deveria estar parada
naquele momento. Era lá que Reiser queria pôr em prática sua decisão de
se dedicar ao teatro.
Ocupado com essa ideia, sofreu mais uma humilhação que reforçou
totalmente a sua decisão.
Uma tarde, passeava num jardim público na entrada da cidade com
colegas da escola que faziam parte da companhia de teatro. – Talvez as
ideias com as quais se ocupava lhe dessem um ar estranho e distraído, que
o destacava de seus companheiros não tanto para vantagem sua – e, antes
que se desse conta, seus camaradas caíram novamente de chofre sobre ele,
com uma zombaria daquelas, e não lhe foi possível responder uma palavra
sequer contra tudo o que diziam. – Não encontrando resistência, a
zombaria não tinha fim – e como, além disso, dois oficiais se encontravam
próximos e ouviram a conversa, Reiser não pôde resistir por muito tempo.
– Saiu de mansinho da mesa, pagou sua parte ao taberneiro e correu dali
tão rápido quanto pôde – e, assim que se encontrou sozinho, soltou de
novo imprecações em voz alta contra si mesmo e seu destino. Zombava de
si porque acreditava ter nascido para ser zombado e desprezado.
De onde vinha o estigma que trazia na testa, como se estivesse no
mundo para o escárnio de todos? – Que marca de ridículo vinha colada a
ele e que nada parecia capaz de apagar – e que o expunha novamente à
gargalhada dos colegas, mesmo agora que era respeitado por eles?
Era a paralisia involuntária da alma, provocada pela atitude
depreciativa dos seus pais para com ele, paralisia que, desde a infância, ele
não fora capaz de atenuar. – Havia se tornado impossível para Reiser
considerar alguém como seu igual – todos pareciam ser de algum modo mais
importantes, mais significativos no mundo do que ele – e, por isso, as relações
de amizade dos outros para com ele se lhe afiguravam sempre como uma
espécie de condescendência – porque acreditava poder ser desprezado, ele
realmente era desprezado. – E o que muitas vezes ele tomara como
desprezo, alguém dotado de mais dignidade própria não o consideraria
como tal. – E esse parece ser o confronto das forças do espírito umas com
as outras: onde a força não depara com uma força oposta, ela se alastra e
destrói, como a correnteza quando o dique cede diante dela. O amor-
próprio mais forte devora – pela zombaria, pelo desprezo, por
estigmatizar o objeto ridicularizado – incessantemente o mais fraco.
Tornar-se ridículo é uma forma de aniquilação, e ridicularizar alguém é uma
forma inigualável de assassinato da dignidade pessoal. Por outro lado,
tornar-se odiado por todos exceto por si mesmo é desejável e apetecível.
Esse ódio universal não mataria o amor-próprio, mas poderia animá-lo
com uma obstinação da qual poderia viver por milênios, espumando de
raiva contra esse mundo detestável. – Mas não ter amigo,
A alma de Reiser vivia de fato tão inteiramente entre os cartuxos que ele
começou a pensar seriamente se não poderia também passar seus dias
apartado do mundo, e assim estaria liberto, de uma vez por todas, de tudo
aquilo que o oprimia, dos desejos e anseios que o atormentavam.
Estivera imerso alguns dias nesse pensamento quando O. apareceu e
lhe disse que os estudantes em Erfurt gostariam de encenar uma peça de
teatro, e alguns papéis ainda estavam livres. – –
Essa fala teve um efeito tão forte na fantasia de Reiser que o mosteiro
dos cartuxos passou num instante, com suas altas muralhas, totalmente
para o segundo plano, e de repente a ribalta e suas luzes ocuparam o seu
lugar; além disso, quando O. acrescentou que estavam pensando em
oferecer a Reiser um papel na peça que iriam representar, todos aqueles
pensamentos graves e melancólicos desapareceram completamente.
A peça que os estudantes queriam representar em Erfurt intitulava-se
Medon ou A vingança do sábio, e dela poder-se-ia dizer que incluía a
totalidade da moral, tantas eram as virtudes pregadas por todos os
personagens.
Na peça, Reiser deveria representar o papel de Clélia, a amante de
Medon, porque em seu queixo havia pouco vestígio de barba e porque sua
altura passaria despercebida no papel de concubina, visto que o ator que
representava Medon tinha quase a altura de um gigante.
Apesar da notória esquisitice do papel, Reiser não conseguiu de modo
algum resistir a seu pendor ao teatro, até porque a oportunidade lhe havia
surgido sem que a tivesse buscado.
Nesse meio-tempo, o dr. Froriep escrevera a Hannover a fim de obter
informações sobre ele de seu antigo professor, o reitor S., em cuja casa ele
havia morado, e este, ao contrário do que Reiser supusera, deu um
testemunho que contribuiu para que ele caísse ainda mais nas graças do
dr. Froriep.
O reitor S. escreveu que, sem dúvida, as disposições naturais daquele
jovem prometiam muito. E isso bastou para o dr. Froriep considerar com
respeito e indulgência o que havia de negativo no testemunho e receber
Reiser com redobrado zelo a fim de conseguir novamente para ele, caso
possível, o favor do príncipe.
O testemunho, no entanto, também fora redigido com respeito e
indulgência, excetuando o ponto em que Reiser era suspeito de devassidão
por causa de seus passeios noturnos; acusavam-no, assim, de uma coisa da
qual ele estava o mais distante possível, porque justamente a opressão de
sua situação, o desprezo de si mesmo e até seus devaneios o mantinham
afastado daquilo.
O pendor ao teatro era aquilo a que, não sem razão, se atribuíam os
seus outros desregramentos, e muitos jovens na escola em H. também
tinham se deixado levar por ele.
E, justamente quando a carta chegou, Reiser estava mais uma vez
prestes a encenar uma peça de teatro com os estudantes em Erfurt. – O dr.
Froriep o desaconselhou; mas, ao notar o quanto seu coração se inclinava
àquilo, perdoou-lhe também aquela tolice, e sua solicitude não diminuiu
em nada por causa dela.
Os preparativos para o espetáculo estavam feitos; Reiser havia
decorado o papel de Clélia, e ensaios haviam sido repetidos com
frequência, nos quais Reiser conheceu grande parte dos estudantes de
Erfurt, e todos se comportavam com gentileza para com ele, tendo uma
boa opinião a seu respeito; ele se viu transportado para um mundo
completamente diferente daquele em que vivera desde a infância.
Entre um ensaio e outro, Reiser não deixou de ir assiduamente às aulas
do dr. Froriep, frequentadas por um número de estudantes que, às portas
fechadas na igreja do Comerciante, praticavam a pregação na presença do
dr. Froriep e de outros estudantes.
Reiser também desejava se apresentar ali para que ouvissem sua
declamação, e uma das perspectivas mais fascinantes sempre foi o dia em
que o dr. Froriep lhe permitiria subir ao púlpito. Já havia pensado até no
tema, descreveria com cores poéticas a beleza da natureza e a mudança
das estações do ano, e encerraria sua pregação de maneira patética, com
as brilhantes e reluzentes perspectivas da eternidade. Mas sempre
surgiam obstáculos que não lhe davam a chance de realizar esse desejo em
Erfurt.
Assim como duvidamos de tudo o que ardentemente desejamos, ele
sempre tinha dúvidas se a apresentação da peça aconteceria e se teria um
papel nela. O desejo foi então realizado. Vestiram-no de Clélia com todo o
esmero e elegância. As luzes foram acesas, a cortina subiu fazendo
barulho, e ele estava ali, diante de um auditório numeroso, representando
sem nenhum embaraço seu longo papel, sem que este lhe soasse artificial
sequer uma vez, de tão concentrado que estava na ideia de que agora
participava de uma representação teatral, e de que sua participação era
indispensável em todos os momentos.
Essa concentração no tema fez com que ele se esquecesse de si mesmo,
que o público não reparasse tanto na artificialidade do papel e que ainda
fosse aplaudido pela atuação. Ter subido ao palco mantendo-se ainda
como estudante lhe deu um duplo prazer, e ao recordar aquela noite nos
dias seguintes ele se sentia tão feliz que tudo o que lhe acontecera nas
poucas semanas que já havia passado em Erfurt parecia quase um sonho.
De quando em quando, ele também enviava poemas para a Revista
Semanal dos Burgueses e dos Camponeses, semanário que tornou o seu nome
conhecido como escritor entre os cidadãos de Erfurt. Fazia também
correções para o tipógrafo G., e por meio dele acabou conhecendo um
homem culto que, apesar das excepcionais qualidades de inteligência e de
coração, foi perseguido por um destino adverso até a morte, porque a
pressão continuada, ininterrupta, das condições o fizera desaprender a
impor seu valor, e justamente a força pela qual precisava fincar pé no
mundo e afirmar o seu lugar estava nele paralisada.
Esse dr. Sauer escrevera para o tipógrafo G. uma revista semanal
intitulada Medon ou Os Três Amigos, publicada durante um ano. Via-se
também como ele tinha de enfrentar a pressão das circunstâncias; como
lhe deve ter sido difícil ter de escrever um monte de artigos triviais, nos
quais mesmo assim ainda faiscavam as centelhas do gênio reprimido.
No entanto, ele era obrigado a escrever e entregar semanalmente suas
folhas para poder continuar levando sua penosa vida. – Quando a revista
deixou de ser publicada, ele se viu novamente constrangido a sustentar
sua vida com trabalhos de revisão. E como mantinha em sua escrivaninha
composições dramáticas de muita qualidade que não ousava mostrar a
ninguém, a fim de prolongar sua vida por mais alguns dias, era obrigado a
ganhar dinheiro copiando, com todo o cuidado e correção de um copista,
um drama para um senhor importante de Erfurt.
Não recebia nada como médico: pois sentia dentro de si um pendor
especial para ajudar justo as pessoas que mais necessitavam de ajuda e que
menos a recebiam. E, porque estas são as que não têm condições de pagar
pela ajuda, o próprio médico corria assim grande perigo de passar fome se
não editasse revistas semanais, fizesse revisões e copiasse dramas.
Em suma, ele não aceitava pagamento por seus tratamentos e ainda
levava os remédios, que ele mesmo fabricava, para os pobres em suas
casas, gastando nisso o pouco dinheiro que lhe restava ou que não lhe
restava. E como desse modo ele, por assim dizer, se rebaixava, as pessoas
da alta e nobre sociedade não confiavam nele; ninguém o consultava, e seu
nome nem era conhecido entre a maioria, embora como médico já tivesse
adquirido não pouca experiência e destreza.
Ele também já tinha publicado alguns textos importantes nessa área,
os quais, no entanto, tiveram o azar de se perderem entre tantos outros e,
assim como seu autor, não foram notados pelos contemporâneos. E
enquanto mantinha fechados em sua escrivaninha os demais escritos
sobre medicina, a fim de viver de seu salário de tradutor e continuar
preparando novos medicamentos para seus doentes desamparados e
pobres, tinha de traduzir para o latim a obra de um médico francês que
viera a Erfurt e soubera se fazer conhecer melhor do que o dr. Sauer.
Era preciso ser completamente insensível para não sentir essa
indignidade e humilhação do destino. O dr. Sauer esboçava um sorriso,
mas no mais íntimo de sua alma cada uma dessas humilhações e
menosprezos minava sua capacidade de agir e paralisava seu ânimo. Como
ele ainda podia se fiar em seu valor interior se o mundo inteiro não o
reconhecia?
Graças a sua relação com o tipógrafo G., para quem fazia as correções,
ele também publicava às vezes textos para a famosa Revista Semanal dos
Burgueses e dos Camponeses, de Erfurt; e nela certa vez Reiser leu um poema
dele sobre os americanos, que haviam se tornado independentes – esse
texto mereceria estar numa antologia dos melhores poemas da língua
alemã e agora estava perdido num jornal distribuído nas cervejarias de
Erfurt.
Era como se nesse poema seu espírito oprimido tivesse mais uma vez
exalado todo o seu sentimento de liberdade, tais eram o ímpeto e a
inflamada compaixão que governavam suas ideias.
Muito encantado com o poema, Reiser não descansou enquanto não
conheceu o extraordinário colaborador da Revista Semanal dos Burgueses e
dos Camponeses. Mas foi difícil realizar esse desejo, porque o dr. Sauer não
sentia grande inclinação para estabelecer um vínculo qualquer com
alguém daquela classe de pessoas que, de certo modo, o excluíram.
Uma saída, no entanto, foi encontrada: como tinha continuado seus
estudos de língua inglesa em Erfurt, Reiser se ofereceu para ensinar inglês
ao dr. Sauer, já que este algumas vezes manifestara o desejo de conhecer
essa língua. A oferta foi aceita, e assim Reiser teve oportunidade de se
encontrar ao menos alguns dias por semana com esse homem de quem ele
desejava estar o mais próximo possível.
Nessas ocasiões, o doutor se tornava cada vez mais franco com Reiser e
contava sobre as muitas pressões, tanto de familiares como de professores,
às quais fora exposto desde a infância, e depois sobre todos os golpes
consecutivos do destino, que o tinham vergado até o pó; de modo que
Reiser, em sua furiosa indignação, não se conteve em chamar de maliciosa
aquela cadeia de eventos em que um ser pensante e sensível é, por assim
dizer, intencionalmente tão constrangido e torturado.
Quando Reiser expressava desse modo sua indignação, a boca de Sauer
se torcia num leve sorriso, indicando sem dúvida que ele estava acima
dessa indignação, mas ao mesmo tempo já desligado dos vínculos
terrestres, pressentindo sua próxima e completa libertação. – Sua luta
estava praticamente vencida, ele não empregava força de resistência nem
se obstinava contra o destino.
Apesar disso, a chama da vida às vezes ainda se inflamava nele. De
quando em quando, ainda esperava ver dias felizes e se dedicava bastante
aos estudos de inglês, porque tinha muitas expectativas com relação a
isso, sobretudo para utilizar as obras de medicina escritas em inglês e
também para ganhar dinheiro com traduções.
Surgiu-lhe então uma pequena perspectiva de sustento em Erfurt – e
para ele isso foi uma mudança bastante afortunada, que atribuiu
especialmente a sua perseverança. Quem quisesse conseguir algo em
Erfurt, dizia ele com frequência a Reiser, tinha de perseverar muito tempo
e não perder a paciência! Era tão humilde e moderado em seus desejos que
muitas vezes qualquer fagulha de uma sorte melhor já o animava.
Não sabia que toda a sua sorte externa não mais podia ajudá-lo, já que
a fonte da sorte secara dentro dele, e a flor de sua vida havia se partido, de
modo que suas folhas tinham necessariamente de murchar.
Reiser se sentia cativado por aquela compaixão, como se o destino
daquele homem fosse o seu, ou como se o seu fosse inseparável do dele.
Era como se aquele homem precisasse ser feliz para que as coisas
pudessem permanecer em seus eixos.
Mas dessa vez, assim como depois outras tantas, Reiser foi enganado
em seus pressentimentos e em sua crença de que haveria necessariamente
uma reparação na terra para o desgosto sofrido. – Algum tempo depois,
Sauer morreu sem ter visto dias melhores. Quando a sorte apareceu e lhe
sorriu um pouco, suas forças internas estavam destruídas; e passou
despercebido, permanecendo desconhecido até sua morte; de modo que
na viela onde morava, quando o caixão passou, seus vizinhos mais
próximos perguntaram quem estava sendo enterrado. Numa cidade pouco
povoada como Erfurt, passar despercebido a esse ponto é muito
significativo.
Os poucos dias que Reiser havia passado em Erfurt com o dr. Sauer
foram extremamente importantes para ele, porque deram de certo modo
um novo impulso a sua alma: ele concentrava suas forças contra todas as
opressões que tanto paralisaram a mente do amigo. E a indignação que
sentira também lhe inspirou certa obstinação para que, como ele, não
sucumbisse às dificuldades e para vingar em alguma medida, pela
resistência, o que Sauer sofrera.
Certo dia, fizeram juntos um passeio até uma aldeia próxima de Erfurt,
e O. também os acompanhou. – Quando retornavam à noitinha, chegaram
a um riacho cercado de uma mata espessa, que se arrastava em águas
escuras junto às margens. Sauer se postou ali e procurou medir a
profundidade com uma vareta, mas não conseguiu alcançá-la. Permaneceu
em pé e com os braços cruzados olhou para a água, notando a superfície
escura fluindo muito vagarosamente.
A imagem de Sauer com as maçãs do rosto pálidas e os braços
cruzados, observando com olhar expressivo aquele rio estígio, reapareceu
vívida na alma de Reiser quando tempos depois ficou sabendo de sua
morte. – Pois, se houve alguma vez que uma imagem significativa se
formou, que signo e coisa se tornaram uma coisa só, foi ali.
Mas outras perspectivas alegres se abriram novamente para Reiser: os
estudantes tiveram a ideia de encenar mais uma peça, porque tinham de
fato adquirido gosto por aquele divertimento.
As peças escolhidas foram O desconfiado e O tesouro, de Lessing: na
primeira, Reiser mais uma vez ficou com dois papéis femininos, que teve
de representar trocando de traje, e, na segunda, o papel de Maskaril, e
agora sua credibilidade como ator estava tão bem consolidada entre os
estudantes que viam como um favor da parte dele aceitar fazer esses
papéis, de modo que Reiser não deveria de maneira alguma se forçar a
interpretá-los.
Enquanto preparavam essa segunda apresentação teatral, Reiser
começou ao mesmo tempo a redigir um texto sobre a sensibilidade, com o
qual gostaria de vir a público pela primeira vez como escritor. Nesse
escrito a sensibilidade afetada deveria ser ridicularizada, e a verdadeira
sensibilidade apresentada em sua devida luz.
Aquilo que deveria ter sido uma sátira da sensibilidade resultou, no
entanto, em algo bastante grosseiro, porque ele a comparou a uma
epidemia contra a qual era necessário tomar precauções, barrando a
entrada das cidades e aldeias a todos aqueles que viessem dos arredores
onde reinava a sensibilidade.
Essa indignação havia sido despertada em Reiser sobretudo pelas
viagens sentimentais que eram sucessivamente publicadas na Alemanha e
pelas muitas imitações afetadas de Os sofrimentos do jovem Werther, embora
ele também se acusasse secretamente desse pecado; por isso mesmo
procurava combatê-lo com veemência, para o seu próprio bem.
Certa noite, justamente quando estava escrevendo esse trabalho, o
tipógrafo P., de Hannover, entrou em seu quarto, trazendo-lhe uma carta
de Philipp Reiser. Era o mesmo tipógrafo para quem ele compusera em
Hannover uma série de pequenos votos de Ano-Novo, nos quais vira pela
primeira vez algo seu impresso.
Quando Reiser acompanhou o tipógrafo até a porta, este lhe apertou
uma moedinha de ouro na mão, suficiente para erguer instantaneamente
da terra alguém que estava sem dinheiro havia já algumas semanas e que
não queria deixar que notassem a sua penúria.
Esse presente inesperado adquiriu um valor ainda maior pelo modo
como foi dado, pois o tipógrafo P. acrescentou as seguintes palavras:
aquela ninharia era uma antiga dívida que ele quitava, pois, em Hannover,
Reiser escrevera para ele votos de Ano-Novo, poemas etc., apenas por uma
questão de honra.
Nas circunstâncias em que Reiser se encontrava, 1 florim de ouro, era
este o valor, era algo inestimável e o arrancava repentinamente de
inúmeros pequenos embaraços sobre os quais não poderia contar a
ninguém. Isso fez com que vivesse de fato alguns dias felizes em Erfurt,
onde não era pressionado por nada, nem de fora nem de dentro, e não
havia nenhuma perspectiva nebulosa para o futuro.
A carta de Philipp Reiser também era mais interessante que a anterior,
pois trazia a notícia de que vários colegas de escola de Reiser, que tinham
encenado peças junto com ele em Hannover, haviam seguido seu exemplo
e alguns deles haviam partido também em segredo para se dedicar ao
teatro.
Entre eles estavam sobretudo I., que representara Beaumarchais em
Clavigo; o filho do mestre de capela W.; o líder do coro, chamado O.; e um
certo T., filho de um pastor, com quem Reiser ainda fizera algumas
caminhadas românticas perto de Hannover pouco antes de partir. Como
Reiser havia sido imitado por todos os colegas, sentiu certo orgulho de ter
sido ele o primeiro a ter coragem de dar aquele passo.
Por fim, Reiser lhe escreveu em seu estilo exaltado que o poeta Hölty
morrera em Hannover, concluindo a carta com as seguintes palavras:
“Alegra-te, poeta! Chora, homem!”. A carta pouco dizia sobre a
continuação de seu romance amoroso.
Reiser se ocupava com os papéis da segunda peça quando conheceu um
novo amigo em Erfurt, um estudante de nome N., nascido em Hamburgo,
que morava na casa do dr. Froriep; este lhe mostrou a N. uma cópia do
poema de Reiser, “O mosteiro dos cartuxos”, e assim arranjou de repente
um novo amigo para o autor.
Foi uma amizade do gênero sentimental, contra o qual Reiser estava
escrevendo um ensaio crítico.
O jovem N. tinha realmente um coração sensível, mas se deixava levar
pela corrente e o tempo todo representava o papel do sentimental sem
sabê-lo; pois muitas vezes invectivava junto com Reiser contra o ridículo
de uma sensibilidade afetada – como procurava não só parecer
sentimental diante dos outros, mas ser realmente sentimental para si
mesmo, isso não lhe parecia ser afetação, mas agia assim como se fosse
uma coisa totalmente séria, da qual não poderia zombar, e puxava aos
poucos Reiser para dentro desse turbilhão em que a alma gira durante um
bom tempo até chegar ao estado mais insosso que se possa imaginar.
Já era um estímulo para Reiser que alguém a quem não faltavam bens
materiais se aproximasse dele, apesar de seu estado de penúria. – Pouco a
pouco, no entanto, formaram-se nele um amor e uma afeição genuína pelo
jovem N., sentimentos que foram aumentando sempre mais pela
verdadeira amizade que nutria por Reiser, de modo que, mesmo em seus
disparates, os dois se tornavam cada vez mais íntimos e compartilhavam
sua melancolia e sensibilidade.
Isso acontecia principalmente em seus passeios solitários, nos quais
montavam com muita frequência uma cena entre eles e a natureza, ao ler,
por exemplo, Os discípulos de Emaús, de Klopstock, ao entardecer, ou A
criação do inferno, de Zacharias, num dia nublado.
Muitas vezes, acomodavam-se na encosta do bosque Steiger, de onde
se podia avistar a cidade de Erfurt com suas torres antigas e toda a
extensão de seus jardins. Os moradores de Erfurt frequentemente sobem
até lá para passear, acendem uma pequena fogueira e fazem o café para
renovar as ideias do modo de vida patriarcal.
Ali, N. e Reiser também ficavam muitas vezes sentados horas a fio, e
liam alternadamente algum poeta em voz alta; o que, na maior parte do
tempo, demandava um verdadeiro empenho e trabalho, e os colocava
numa situação penosa que um não confessava ao outro para reter consigo
no final apenas a seguinte ideia: “Estávamos sentados amigavelmente no
bosque Steiger, de onde avistávamos o vale muito gracioso lá embaixo, e
nosso espírito se alimentava de uma linda obra de arte poética”.
Se ponderamos quantas pequenas circunstâncias têm de ocorrer para a
leitura ser agradável e sossegada a céu aberto, podemos imaginar com
quantos pequenos transtornos N. e Reiser tinham de lutar durante essas
cenas sentimentais: quantas vezes o solo estava úmido, as formigas
subiam pelas pernas, a página era levada pelo vento etc.
N. encontrou um prazer especial em ler para Reiser todo O messias, de
Klopstock; mesmo com o terrível tédio que a leitura provocou nos dois, e
que mal ousaram confessar um ao outro ou a si mesmos, N. ainda tinha a
vantagem de ler em voz alta, o que fazia o tempo passar para ele; Reiser,
por sua vez, estava condenado a ouvir e se encantar com o que ouvia – o
que fez com que aquelas horas, tanto quanto é capaz de se lembrar,
estivessem entre as mais tristes de sua vida, entre as que mais o fariam
evitar repassar o percurso dos seus dias desde o princípio. Pois não pode
haver tormento maior do que o vazio completo da alma, quando esta se
esforça em vão para sair dessa situação, e a todo instante atribui
inocentemente a si mesma a culpa e acusa a própria apatia de não se
comover nem se afetar pelos sons sublimes que soam incessantemente em
seus ouvidos.
Ainda que os dois fossem quase inseparáveis, Reiser sentia falta dos
passeios solitários que sempre lhe propiciavam o mais puro prazer; mas
também estes agora se tornaram fastidiosos; pois ele costumava esperar
muito desses passeios e voltava para casa aborrecido se não tivesse
encontrado o que buscava; assim que o lá virava o aqui, perdia-se todo o
encanto e secava a fonte da alegria.
O tédio que então tomava o lugar da excitante esperança era de uma
natureza tão rude, comum e vulgar, que não restava nem a menor
intensidade de uma suave melancolia ou algo semelhante. Era mais ou
menos a sensação de um homem que está todo molhado pela chuva e,
quando chega em casa, arrepiado de frio, encontra também um quarto
gelado.
Essa era a vida que Reiser levava enquanto escrevia seu ensaio contra a
falsa sensibilidade, quando num de seus passeios solitários notou uma
singular manifestação de sensibilidade de quem ele menos teria esperado;
de um homem comum.
Passeava entre os jardins de Erfurt e, como era época de ameixas, não
resistiu e apanhou de um galho inclinado uma linda ameixa madura; o
proprietário do jardim percebeu isso e com palavras rudes lhe perguntou
se por acaso sabia que as ameixas que tinha acabado de colher lhe
custariam 1 ducado.
Reiser tentou negociar, mas teve de confessar que não tinha dinheiro
algum. Entretanto, para satisfazer o proprietário da ameixa roubada, teve
de lhe entregar, tirando de seu bolso, seu único lenço de boa qualidade,
cuja perda provocou muito sofrimento em Reiser.
Quando estava indo embora triste, viu, depois de poucos passos, um
bonito canivete no chão à sua frente; rapidamente pegou-o e de novo
chamou o proprietário do jardim, propondo-lhe uma troca: ele não
gostaria de lhe devolver o lenço em troca do canivete encontrado?
Qual não foi o espanto de Reiser quando o proprietário, antes tão rude,
de repente o abraçou e o beijou, oferecendo-lhe sua amizade; Reiser havia
de ser necessariamente um favorecido pela Providência, já que ela
permitiu que encontrasse o canivete que havia sido perdido por ninguém
menos que ele próprio; ele então devolveu com alegria o lenço a Reiser e
lhe assegurou que seu jardim estaria aberto a qualquer hora para que
apanhasse quantas ameixas quisesse e que não deixaria de lhe servir em
qualquer coisa que estivesse ao seu alcance; pois nunca lhe ocorrera algo
tão extraordinário.
Ao sair, pensando nesse estranho acaso, Reiser ficou ainda mais
impressionado, porque era a primeira vez na vida que realmente lhe
ocorria um lance de sorte, para o qual tiveram de concorrer muitas
circunstâncias raras.
Sua sorte parece ter sido, por assim dizer, completamente liquidada
naquela ninharia, para fazê-lo expiar no todo a culpa pelo fato de
simplesmente existir.
Era como o vigário de Wakefield, que, jogando dados com seu amigo,
fez um excepcional lance de sorte por alguns poucos centavos, pouco
antes de receber a notícia da bancarrota do comerciante para quem
perdeu toda a sua fortuna.
Por um breve tempo, o destino conteve as humilhações que preparara
para Reiser, não perturbando o prazer que ele obteve com a segunda
encenação teatral, na qual fizera três papéis.
Embora não tivesse a oportunidade de brilhar em nenhum papel
trágico, seu desejo mais ardente tinha de certo modo se realizado. E, mais
do que isso, tinham alguma confiança em seus conhecimentos teatrais,
pediam-lhe conselhos e ele, tanto por sua participação em peças como
pelos poemas escritos, se tornou ainda mais conhecido entre os
estudantes, que o tratavam com muita deferência, compensação agradável
para a sua situação na escola de H.
Nesse tempo, frequentou assiduamente a biblioteca da universidade,
na qual encontrou um prazer todo especial em estudar a Descrição da China,
de Du Halde, empenhando muito tempo nesse livro.
Na mesma época foi publicado o Siegwart, história de um monge, e ele
leu o livro várias vezes com seu amigo N., e ambos, tomados do mais
terrível tédio, se obrigavam a permanecer na emoção inicial durante a
leitura dos três volumes.
No fim, Reiser não tinha outra coisa em mente a não ser transformar
toda a narrativa numa tragédia histórica, e, para tanto, fez realmente todo
tipo de rascunhos, desperdiçando um tempo precioso naquilo.
Quando o resultado não saía como desejava, após cada tentativa inútil
daquele tipo ele passava as horas mais tristes e desfavoráveis que se pode
imaginar. A natureza inteira e todas as suas ideias perdiam o encanto,
cada momento era opressivo e a vida se tornava literalmente um
tormento.
Os sofrimentos da poesia
Meu querido! Eu me encontro agora numa situação na qual não posso desejar nada mais
encantador. De minha janelinha, avisto o vasto prado, vejo lá longe uma fileira de árvores
que se erguem sobre um pequeno monte, e penso então em você, meu querido etc. Tenho a
chave desta casa solitária e aqui sou o dono da casa e do jardim etc. Muitas vezes, quando
me sento aqui, próximo do fogãozinho, eu mesmo preparo meu chá etc.
E continuava nesse tom; ficou uma carta imponente e longa. E, como
Reiser não pôde deixar de mostrar essa linda carta ao dr. Sauer, seu amigo
crítico, isso acabou estragando tudo, já que ele, conforme sua educação
generosa, fez-lhe um elogio dizendo que, se a presença de Reiser não lhe
fosse tão cara, desejaria estar distante só para receber aquela carta dele.
E de repente reacendeu o já quase extinto impulso poético de Reiser.
Procurou então primeiro concluir a parte relativa ao caos em seu poema
sobre a criação, e mais uma vez começou a se atormentar e a se perder na
representação das terríveis contradições e monstruosas tramas
labirínticas do pensamento, até que por fim os dois hexâmetros seguintes,
tirados da Bíblia, o salvaram de um inferno de conceitos.
Depois de longa pausa, você está recebendo de novo uma carta minha – pois minhas
excursões por Roma, que comecei a lhe descrever, foram interrompidas há algum tempo
por incidente adverso.
Minha última excursão foi uma cavalgada na companhia de amigos à foz do Tibre, em
Fiumicino.
Voltamos bastante tarde e chegamos bem em Roma, onde os restos do pavimento antigo
na região do Panteão foram desta vez um mau sinal para mim.
Pois justamente neste pavimento, já totalmente liso pelo tempo e ainda mais
escorregadio devido a uma chuva fina, tive a sina de quebrar o braço esquerdo pela queda
do meu cavalo.[30]
Por causa desse acidente, Moritz teve de ficar meses em casa, aos cuidados
de amigos – como o pintor Johann Heinrich Wilhelm Tischbein e Johann
Wolfgang von Goethe, que ele conhecera poucos dias antes em Roma. O
episódio ilustra bem o que foi a vida de Moritz, com os seus momentos de
felicidade repentinamente interrompidos pelos caprichos do destino. Ele
teve de aprender desde cedo a conviver com a má estrela que o
acompanhou pela vida afora.
É verdade que, na Itália, a fortuna lhe acena um pouco menos
timidamente, pois encontra em Goethe, além de um admirador e parceiro,
uma espécie de gênio tutelar. A proximidade da trajetória dos dois autores
até esse encontro é digna de ser relembrada.
Os laços de amizade com o futuro criador de Fausto não ocorreram por
acaso. O destino já havia marcado um encontro entre eles, e a
aproximação é selada justamente no período de convalescença de Moritz,
quando o grande poeta, fazendo-lhe companhia e prestando-lhe todo tipo
de ajuda, discute longas horas com ele sobre os mais variados assuntos,
apresenta-lhe a sua teoria do fenômeno originário e o estimula a sair do
isolamento e de sua natural melancolia. Moritz foi, por seu lado, um
interlocutor à altura. Muitas ideias que vieram a florescer pouco depois
nos escritos de ambos foram gestadas nessas conversas e podem ser
consideradas um trabalho em conjunto realizado durante a estada dos
dois em Roma. É assim que, em Viagem à Itália (obra que só veio à luz em
1813 e 1817, enquanto Viagem de um alemão à Itália, de Moritz, foi publicado
entre 1792 e 1793), Goethe republica parte de um texto muito importante
de Moritz, “A imitação formadora do belo”, que diz ser resultado daquelas
conversas: as ideias ali surgidas teriam sido utilizadas depois pelo amigo
para redigir o seu ensaio. Goethe transcreve também outra criação de
Moritz, o divertido e engenhoso “jogo etimológico”, feito para
desenvolver a sensibilidade linguística dos jogadores. Durante a
convalescença, Moritz conta partes de sua vida a Goethe, conforme relato
deste a sua amiga Charlotte von Stein, numa carta de 14 de dezembro de
1786:
Quando estive na casa dele, Moritz, ainda se recuperando do braço quebrado, me contou
trechos da sua vida, e fiquei espantado pela semelhança com a minha. Ele é um irmão mais
jovem meu, da mesma espécie, só que desamparado e prejudicado, enquanto eu fui
favorecido e distinguido. Isso provocou uma estranha retrospecção sobre mim mesmo.
A tradução do romance Anton Reiser foi feita a partir da edição Karl Philipp
Moritz, Werke (Anton Reiser, Dichtungen), vol. I, editada por Heide Hollmer e
Albert Meier (Deutscher Klassiker Verlag, Frankfurt am Main, 2006). Foi
consultado também o volume Anton Reiser: Ein psychologischer Roman, com
edição de Horst Günther (Insel Verlag, Frankfurt am Main, 1998). Nas duas
obras, os editores mantiveram as iniciais dos nomes das personagens e dos
lugares, como no original, e esclarecem a opção. Segundo Horst Günther,
os nomes foram suprimidos propositalmente, mas não de maneira
inteiramente homogênea, pois alguns são revelados. Karl P. Moritz esteve
nesses lugares e conviveu com muitas daquelas pessoas, que existiram
realmente. Ao manter só as iniciais, o autor foi coerente com a poética
estabelecida no próprio livro. Para que a imaginação do leitor não se
dispersasse em busca da suposta realidade dos fatos narrados, o romance
deveria perder o caráter autobiográfico e acentuar o caráter de vidas
possíveis.
Esta tradução optou também por manter o uso de travessões adotado
por Moritz, que obedece a uma lógica particular. Não apenas neste
romance, como em outras obras do autor, o sinal gráfico serve para
marcar o ritmo narrativo e a cadência de sua escrita, algo que não
encontra similar em autores de língua alemã do século XVIII, seus
contemporâneos. Uso parecido pode ser encontrado no romance do
irlandês Laurence Sterne, A vida e as opiniões do cavalheiro Tristram Shandy,
cujo primeiro volume antecede em 25 anos a primeira parte de Anton
Reiser.
O tradutor agradece a leitura e as contribuições trazidas por Meire
Cristina Gomes, Marcelo Rondinelli, Marianne Gareis, Márcio Suzuki,
Marcella Marino Medeiros Silva, Francisco de Arruda Sampaio e Vicente
de Arruda Sampaio.
JOSÉ FERES SABINO é graduado em Filosofia pela Universidade de São
Paulo (USP), onde também fez seu mestrado, com a dissertação Ensaios de
Karl Philipp Moritz: linguagem, arte, filosofia (Seleção, introdução, tradução e
notas). É tradutor e professor de Filosofia.
1. Acerra philologica (1637) era uma coletânea, em língua alemã, de histórias, anedotas e mitologias
gregas e romanas. [Todas as notas são do tradutor.] [««]
2. Esses sufixos em alemão formam substantivos abstratos; por exemplo, “die Ewigkeit” (a
eternidade), “die Vergessenheit” (o esquecimento), “die Ahnung” (o pressentimento). [««]
4. Referência a Élio Donato, retor e gramático romano do século IV, autor das gramáticas do latim
Ars minor (para iniciantes) e Ars maior (para avançados). [««]
5. Anton acreditava que, pela semelhança da terminação, singulariter (no singular) e plurariter (no
plural) são povos, como os amoritas (Amoriter) e os jesubitas (Jesubiter), que dizem mensa (“mesa”
em latim – nominativo) ou mensae (genitivo, nominativo plural), respectivamente. [««]
8. O narrador cita, com ligeira alteração, um dos preceitos que, segundo o relato bíblico, Deus disse
a Moisés. [««]
10. Charles James Fox (1749-1806), político e líder dos whig no Parlamento inglês, que K. P. Moritz
viu quando visitou Londres em 1782. [««]
11. A frase foi tirada do livro De viris illustribus [Sobre homens ilustres], do historiador romano
Cornélio Nepos (100-25 a.C.), em que consta uma biografia do político e general Temístocles (525-
460 a.C.). A frase inteira é: “A ofensa não o derruba, mas o fortalece”. [««]
12. “Non equidem invideo; miror magis.” Em latim: “Na verdade, não sinto inveja, estou apenas
surpreso”. Segundo verso da primeira écloga de Virgílio (70-19 a.C.). [««]
13. Antiga moeda alemã. “Real” porque tinha validade em todo o reino. [««]
14. Benjamin Schmolke (1672-1737), teólogo alemão, autor de hinos e escritos edificantes. [««]
15. Coletânea latina de máximas atribuídas a Marco Pórcio Catão (234-149 a.C.). [««]
18. Versos iniciais do poema “Thränen bey den Grabe Christi”, de Christian Gryphius (1649-1706).
[««]
19. “Um exercício extemporâneo” trata-se de um exercício improvisado, nas escolas da época, em
que frases ditadas em alemão eram traduzidas imediatamente para o latim. [««]
20. Citação do poeta romano Quinto Horácio Flaco (65-8 a.C.), Sátiras, 3, 243. [««]
21. “Por que fugaz se esforça a linfa em ir fluindo, nas curvas de um regato?”, de Quinto Horácio
Flaco, Odes, II, 3. [««]
24. Frase final do prefácio de Os sofrimentos do jovem Werther, em que o editor fictício das cartas se
dirige ao leitor. [««]
26. Em alemão, “reisen” quer dizer “viajar”; “viagem” é “Reise”; e “viajante”, “Reisender”. [««]
29. “Quam” é a pronúncia da região da Baixa Saxônia para “kam”, passado do verbo “kommen” (ir,
vir, chegar). [««]
A tradução desta obra contou com o auxílio do Programa de Apoio à Tradução do Goethe-Institut,
que é financiado pelo Ministério das Relações Exteriores da Alemanha.
EDITORIAL
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Table of Contents
Folha de Rosto
PARTE 1
PARTE 2
PARTE 3
PARTE 4
POSFÁCIO
NOTA DOTRADUTOR
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