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Resenhas

LEWIS, Clive Staples. Cristianismo puro e simples. Trad. Gabriele Greggersen.


Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2017, 288p. ISBN: 978-85-7860-1775.

O presente livro é um dos maiores com pequenas adaptações para a lingua-


clássicos da apologética cristã. Sua difu- gem escrita.
são rendeu a Clive Staples Lewis (1898- A presente obra revela bastante ori-
1963) boa parte de sua fama internacio- ginalidade. As suas distintas analo-
nal. Com efeito, com G. K. Chesterton, gias são cativantes e criativas, além de
Lewis é um dos mais reputados apolo- esclarecer temas tão profundos quanto
gistas do século XX. a lei natural, o matrimônio, a Redenção
Muitos dos temas abordados em e a Santíssima Trindade. O Autor tam-
Cristianismo puro e simples estão con- bém tem o dom de apresentar os tópicos
cernidos no debate fé e razão, tema que com leveza e ao mesmo tempo acuidade,
ainda suscita muitas discussões na atu- sempre salpicados com algumas doses
alidade. Como se sabe, a tumultuada de humor.
juventude de Lewis em Belfast condu- O objetivo do livro não é fazer pro-
ziu-o ao ateísmo. Mais tarde, converteu- sélitos, tampouco determinar a escolha
-se ao Cristianismo, graças à influên- entre as diversas denominações cristãs,
cia do escritor católico J. R. R. Tolkien nem mesmo oferecer um estudo filo-
(1892-1973). Lewis comenta que Deus sófico-teológico sobre o Cristianismo.
agiu em sua alma como um caçador em Pretende somente apresentar as doutri-
busca da caça... e esta presa era incapaz nas que todos os cristãos compartilham.
de se esquivar do poder divino! Por isso, Lewis não trata de temas deli-
Embora nunca tenha aderido formal- cados, como os relacionados aos privi-
mente ao Catolicismo, o escritor britâni- légios da Virgem Maria. Por outro lado,
co tinha muitas amizades com sacerdo- pretende atingir também os não cristãos.
tes católicos e até se confessava com um Como ressalta o Autor, “o nome cris-
deles. O próprio tema do livro contém tãos foi empregado pela primeira vez
uma nota distintamente católica, isto é, em Antioquia (At 11,26) para designar
o diálogo fé e razão, tema não tão caro os ‘discípulos’, aqueles que aceitavam o
ao protestantismo. ensino dos apóstolos” (p. 19). Quando,
O conteúdo do livro é extraído de porém, alguém se diz cristão, mas não
diversas exposições para a Rádio BBC vive de acordo com a doutrina cristã,
entre 1942-1944, em meio à Segunda é melhor chamá-lo simplesmente mau
Grande Guerra. A mensagem do Autor cristão do que não cristão.
é de esperança para a tão combalida A introdução de Kathleen Norris
Inglaterra desses anos. Em 1952, as gra- ressalta que a obra não visa um públi-
vações foram compiladas em um livro, co acadêmico, mas se destina a “pesso-

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as em estado de guerra” (p. 22). Como O capítulo 2 se dedica a oferecer


se testemunha por suas obras de fic- algumas objeções ao tópico anterior.
ção, C. S. Lewis é um homem apaixo- Lewis relaciona a questão com os ins-
nado pela imaginação. O Autor recorre tintos. Destarte, “sentir o desejo de aju-
apenas à sua própria experiência de vida dar alguém é bem diferente de sentir que
para abordar quatro grandes assuntos, você tem a obrigação de ajudar indepen-
divididos em livros: I) O certo e o erra- dentemente de sua vontade” (p. 36-37).
do como indícios para a compreensão do Utilizando-se da analogia de um piano,
sentido do universo; II) No que acredi- comenta: “A Lei Moral nos diz qual é
tam os cristãos; III) Conduta cristã; IV) o tom que devemos tocar, ao passo que
Além da personalidade ou os primeiros nossos instintos não passam de teclas”
passos da doutrina da Trindade. (p. 37). Ora, essa lei subjacente, ressal-
O capítulo 1 do primeiro livro versa ta o Autor, não pode coincidir com os
sobre a lei da natureza humana, ou seja, próprios instintos, existindo, portan-
a lei natural. As leis da natureza, confor- to, de modo autônomo. Tampouco exis-
me hoje são entendidas, como a da gra- tem impulsos bons e ruins na nature-
vidade, são sempre cumpridas de modo za humana; eles simplesmente existem.
absoluto. Já “uma pessoa pode escolher De modo análogo, não há dois tipos de
se obedece ou não à Lei da Natureza teclas de piano, algumas certas outras
Humana” (p. 31). Em outros termos, ao erradas: cada uma é “correta em deter-
contrário do homem, a natureza é inca- minado momento, e errada em outro”
paz de infringir as suas próprias regras. (p. 39). Em algumas ocasiões, por exem-
Lewis reconhece que muita gente plo, o instinto de sociabilidade deverá
desconsidera esta “lei do comportamen- superar o instinto de conservação.
to digno” – lei natural – alegando estar Claro que as leis morais não são
desprovida de fundamento. No entan- meras convenções. Há atos melhores
to, argumenta ele, “imagine um país em que outros. Existe também o progresso,
que as pessoas fossem admiradas por um direcionamento a autênticas melho-
fugir da batalha ou que uma pessoa se rias e não apenas mudanças. O relativis-
orgulhasse de ter enganado todas aque- mo é, pois, contraditório em si mesmo.
las que foram legais com ela” (p. 33). Assim, a Lei do Certo e do Errado deve
Fica evidente a inversão de valores. De ser real, ou seja, deve realmente existir.
todos os modos, as pessoas podem dis- Ao comentar sobre o que há por trás
cordar quanto à monogamia ou à poli- da referida Lei, articula sobre a impossi-
gamia, mas não de que simplesmente bilidade do acaso. Sustenta, por sua vez,
se possa unir a qualquer mulher que se a visão religiosa, segundo a qual existe
deseje. uma mente por trás de tudo o que conhe-
cemos. E, nessa esteira, nem é necessá-

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rio postular a existência do Deus cris- Concordando inteiramente com a dou-


tão, somente a de um ser transcendente trina católica, Lewis sustenta que as reli-
e imaterial que dirige todo o universo, giões não cristãs contêm ao “menos uma
pois “nunca se viu uma porção de maté- parcela da verdade” (p. 67). A verdade
ria dando instruções” (p. 56). Por fim, o é como a aritmética: só há um resultado
Autor descarta uma posição intermediá- correto, mas há resultados errados mais
ria entre a visão religiosa e a visão mate- ou menos próximos do valor verdadeiro.
rialista. Em seguida, traz à baila alguns argu-
Sobre o progresso, comenta: “Se você mentos contrários à visão cristã, como o
estiver no caminho errado, o progresso panteísmo e o ateísmo, levantando ques-
significará dar meia-volta e retornar ao tões como: “Se o Deus que fez o mundo
caminho certo; e, nesse caso, a pessoa é bom, por que esse mundo desandou?”
que voltar atrás mais rápido será tam- (p. 70). Para Lewis, “o ateísmo é sim-
bém a mais progressista. Todos nós já plista demais” (p. 72), ao mesmo tem-
vimos esse fenômeno acontecer na arit- po que rechaça um “cristianismo água
mética. Sempre que começo um cálcu- com açúcar” (tradução perfeita para
lo errado, quanto mais cedo eu perce- “Christianity-and-water”).
ber, voltar atrás e começar de novo, mais O dualismo bem e mal conduz à ideia
rápido poderei continuar. Não há nada da existência do mal em si. Nesse sen-
de progressista em ser cabeça-dura e tido, argumenta o apologista britânico:
se recusar a admitir o erro” (p. 60). Em “Na realidade, não temos experiência de
outras palavras, o progressismo, para ninguém que goste da maldade só por-
funcionar, tem que ser conservador... que ela é má” (p. 76). Com efeito, nin-
Eis mais uma analogia espirituo- guém ama o mal pelo mal. As pessoas
sa: “Você descobrirá mais sobre Deus são más porque são sádicas ou porque
a partir da Lei Moral do que do univer- tiram alguma vantagem do mal (como a
so em geral, da mesma forma que desco- posse do dinheiro, do poder ou da segu-
brirá mais sobre o homem ouvindo sua rança). Ninguém é mau por amor à mal-
conversa do que observando uma casa dade, antes só há o mal porque existe o
que ele tenha construído” (p. 61). Nesse bem, pois a perversão nada mais é do
quadro se configuram o encontro com que a corrupção do bem.
Deus após a morte e a necessidade do Claro está que os cristãos vivem em
arrependimento para alcançar o perdão. estado de guerra, mas isso não signi-
Mas quem busca o consolo diretamente fica a existência de um mal autônomo.
nunca o conquista, quem busca a verda- Por outro lado, o livre arbítrio não con-
de, possui-la-á tanto quanto o consolo. tradiz a existência de Deus. Antes, sem
O livro II inicia-se tratando sobre o livre arbítrio, seríamos simples autô-
“as concepções concorrentes de Deus”. matos, incapacitados de amar. Um dos

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paradoxos nesse sentido é a questão do é reconhecer que, nesse departamen-


arrependimento: “Só uma pessoa boa to, Cristo não veio para pregar nenhu-
consegue arrepender-se perfeitamente” ma novidade do ponto de vista moral.
(p. 92), ou seja, aqueles que menos dele A Regra de Ouro do Novo Testamento
precisam. – Faça com os outros o que gostaria
A moral cristã é também, por assim que fizessem com você – é o resumo do
dizer, intrateológica, porque “o cris- que todas as pessoas no fundo sempre
tão acredita que qualquer bem que ele souberam ser o certo. Os grandes mes-
possa fazer, vem da vida em Cristo que tres da moral nunca introduzem morais
está dentro dele. Ele não acha que Deus novas; são os charlatões que fazem isso.
nos amará porque estamos sendo bons, Como o Dr. Johnson disse certa vez:
mas que Deus nos tornará bons porque ‘É bem mais frequente termos de lem-
ele nos ama” (p. 99). Alguns até pedem brar as pessoas das coisas do que as ins-
uma maior intervenção de Deus no mun- truir’” (p. 120). O tema, portanto, retor-
do, mas quando isso acontecer, comenta na à questão da lei natural, tratada logo
Lewis, já será o fim do mundo... no início do livro.
O livro III trata mais propriamente Também o apologista reflete sobre
da conduta cristã. De modo analógico, a diferença entre pecado e doença no
Lewis argumenta que “as regras morais âmbito da psicanálise. Com efeito, Deus
são instruções de uso da máquina huma- não julgará o homem pela “matéria-pri-
na” (p. 105). ma bruta, e sim pelo que este fez com
O Autor discute brevemente sobre ela” (p. 131). Afinal, ninguém recebe
as virtudes cardeais, as quais “todas as uma cruz maior do que possa carregar.
pessoas civilizadas reconhecem, ao pas- Seja como for, no juízo tudo ficará cla-
so que as ‘teologais’ são aquelas que, em ro: muito daquilo que se pensava pos-
geral, somente os cristãos conhecem” suir por mérito, será revelado como ape-
(p. 113). A prudência se resume no bom nas oriundo de um “bom metabolismo”,
senso. A temperança refere-se à mode- e aquilo que se reputava perverso nos
ração dos prazeres, embora infelizmen- homens se revelará como uma simples
te tenha sido restringida à mera absti- decorrência da má saúde.
nência de bebida alcoólica. A justiça é o Eis aqui ainda outro paradoxo: “Uma
“jogo limpo” e a fortaleza pode ser sin- pessoa moderadamente má sabe que
tetizada pela palavra inglesa “guts”, isto não é muito boa; já uma pessoa inteira-
é, coragem, bravura. mente má acha que está tudo bem. [...]
O capítulo 3 deste livro III se inicia Podemos entender o sono quando esta-
com uma luminosa reflexão: “O passo mos acordados, não enquanto estiver-
inicial para uma visão clara do exercício mos dormindo. [...] Podemos entender
da moralidade cristã entre os homens a natureza da embriaguez quando esta-

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mos sóbrios, não quando embriagados. guém mata a fome contemplando um


Pessoas boas conhecem o bem e o mal; belo filé ou uma fatia de bacon, tam-
pessoas más não fazem ideia de nenhu- bém é inconcebível fitar o corpo huma-
ma das duas coisas” (p. 133). no de outrem para saciar o apetite sexu-
Os capítulos 5 e 6 sobre a moralidade al. Enquanto as perversões do apetite
sexual e o casamento cristão são polê- alimentar são raras, as de natureza sexu-
micos por natureza. Sem dúvida, “a cas- al são inúmeras e multifacetadas. Com
tidade é a virtude cristã mais impopular, muita facilidade, geram vícios arraiga-
mas não há como escapar dela; a regra dos, difíceis de superar.
cristã é: ‘Ou o casamento, com fidelida- Com efeito, há pessoas que lucram
de completa ao parceiro, ou a total absti- muito ao manter o instinto sexual da
nência’” (p. 136). população inflamado. A mentira des-
O apologista cristão confronta o se “marketing” é defender que “qual-
pecado da luxúria com o pecado da quer ato sexual ao qual somos tentados
gula: “O propósito biológico do sexo naquele momento também é saudável e
são os filhos, da mesma forma que o normal” (p. 141). Nada mais atual do que
propósito biológico de comer é alimen- essa ponderação.
tar o corpo. Contudo, se comemos todas É evidente que Lewis reconhece a
as vezes em que nos sentirmos propen- dificuldade de praticar a castidade per-
sos a isso e o quanto quisermos, é bem feita – análoga à caridade perfeita –,
verdade que a maioria de nós acabará mas é necessário sempre reconhecer a
comendo demais; mas não extraordina- ajuda de Deus, que atua de modo varia-
riamente mais. Uma pessoa pode comer do em nossa formação como cristãos.
por duas, mas não por dez. O apetite Quanto ao casamento cristão, o Autor
pode ir um pouco além do seu propósi- desmonta vários equívocos. Jesus, quan-
to biológico, mas não de forma excessi- do exortou que o homem e a mulher
va. Se um jovem sadio se entregasse ao devem ser uma só carne, não quis cono-
seu apetite sexual sempre que se sentis- tar uma mera união de sentimentos.
se propenso a isso, e se cada ato gerasse Antes, tratava-se de um fato, isto é, de
um bebê, então em dez anos ele pode- uma combinação entre as duas meta-
ria facilmente povoar um pequeno vila- des do gênero humano: a masculina e a
rejo, uma vez que tal disposição excede- feminina. “A monstruosidade da relação
ria seu limite de forma ridícula e estapa- sexual fora do casamento é que aqueles
fúrdia” (p. 136). Mais uma comparação que se entregam a ela estão tentando iso-
iluminante de Lewis que ajuda a com- lar um tipo de união (a sexual) de todos
preender um assunto tão intricado. os outros tipos de união que deveriam
Outra analogia diz respeito à guar- acompanhá-la para constituir a união
da de olhares. Da mesma forma que nin- total. A atitude cristã não significa que

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haja algo de errado com o prazer sexu- orgulhosos. Note-se ainda que o orgu-
al mais do que com o prazer de comer, lho é sempre de ordem comparativa: os
e sim que você não deve isolar o prazer homens “se orgulham por serem mais
sexual e tentar obtê-lo sozinho, da mes- ricos, mais inteligentes e mais boni-
ma forma que você não deve tentar obter tos do que os outros” (p. 166). O orgu-
os prazeres do gosto, sem engolir e dige- lho consiste na principal desgraça do
rir, mastigando o alimento e cuspindo-o mundo, um verdadeiro câncer espiritu-
de novo” (p. 146). al “que corrói a própria possibilidade de
Outra questão debatida por Lewis é amor, ou de contentamento, ou mesmo
que o casamento não pode se basear no de bom senso” (p. 170).
mero fato de “estar apaixonado”. A pro- Em oposição à soberba, portanto,
messa nupcial continua válida mesmo nenhuma virtude é tão necessária quan-
quando a paixão vai embora. É impos- to a caridade, tema do capítulo 9. O
sível, pois, prometer estar sempre apai- Autor desmistifica o sentido de carida-
xonado, tanto quanto se comprometer de de, reduzido a “dar esmolas”. Para ele,
jamais ter dor de cabeça ou sentir fome. a caridade significa “amor no sentido
Os sentimentos são essencialmente ins- cristão” (p. 175), que reside não no senti-
táveis. Por isso, o Autor estimula os mento, mas sim na vontade. A caridade
casais a viver novas emoções que reno- supera o mero gosto ou a simpatia com
vem o pacto matrimonial. os demais. “Nós gostamos e ‘simpatiza-
O perdão é o tema do capítulo 7. mos’ com certas pessoas e outras, não.
Trata-se, sem dúvida, de uma atitu- É importante entender que esse ‘simpa-
de difícil, mas que se encontra no âma- tizar’ natural não é nem um pecado nem
go dos ensinamentos de Jesus, que con- uma virtude, assim como não o são nos-
vidou a perdoar até mesmo os inimigos. sas preferências alimentícias, e sim ape-
Entretanto, isso não significa cair num nas um fato” (p. 176). É impossível, ade-
pacifismo à outrance. Lewis salienta mais, simpatizar-se com toda humanida-
que o preceito “amar os inimigos” sig- de.
nifica desejar-lhes o bem e não necessa- Sobre a virtude da esperança, Lewis
riamente ter simpatia por eles, tampouco comenta que os que deixaram a sua mar-
aprovar o mal (p. 164). Como já demons- ca na terra foram justamente aqueles
trou Aristóteles, é impossível ser amigo cujas “mentes estavam ocupadas com
de um número considerável de pessoas. o Céu. [...] Aspire ao Céu, e terá a ter-
O capítulo 8 aborda o grande peca- ra de ‘lambuja’; aspire à Terra, e não terá
do, isto é, o orgulho. De fato, foi esse nenhum dos dois” (p. 180). Neste pon-
vício que tornou o diabo o que ele é. E to, não se compreende porque se escreve
o paradoxo é que quanto mais alguém é “terra” na primeira vez em letra minús-
orgulhoso, mais julga que os outros são cula e em seguida em maiúscula. No ori-

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ginal inglês ambas as formas estão em é necessário para recordar o que acredi-
minúsculas. tamos.
Nesse tópico, também aparece o cha- O livro IV e último contém tópi-
mado “argumento do desejo de Deus” cos bem variados. No primeiro capí-
para a prova de sua existência, que, tulo, Lewis desmistifica a ideia de
embora sem valor apodítico, oferece que as pessoas não querem conhecer
bons indícios no plano da analogia. Eis Teologia, mas apenas uma “religião sim-
a sua formulação: “As criaturas não nas- ples”. Reconhece, porém, que as pesso-
ceriam com desejos, se não existisse a as andam desanimadas com a Teologia,
satisfação para esses desejos. Um bebê com o pretexto de que ela não serviria
sente fome: muito bem, existe a comi- para nada.
da. Um pato deseja nadar: muito bem, Para o Autor, a Teologia se asseme-
existe a água. Os seres humanos sen- lha a um mapa. As doutrinas não equi-
tem desejo sexual: muito bem, existe o valem ao próprio Deus, mas são apenas
sexo. Ao descobrir em mim um desejo placas de sinalização, baseadas na expe-
que nenhuma experiência desse mun- riência de inúmeros cristãos. O mapa
do poderia satisfazer, a explicação mais não é tudo, mas ajuda a desbravar o ter-
provável é que eu tenha sido feito para reno, sobretudo considerando a Teologia
outro mundo” (p. 183). Efetivamente, hodierna, cada vez mais prática.
é impossível que um aborígene tenha O cristianismo vai além dos bons
desejo de tomar champanhe, se ele nun- conselhos. Contém toda uma doutri-
ca tiver experimentado a bebida ou ao na profunda sobre a própria natureza de
menos tiver ouvido falar a seu respei- Cristo, sobre a Redenção e outros temas
to. Se temos, pois, um desejo por algo complexos. De nada adianta, entretanto,
transcendente, este algo deveria forçosa- reclamar que essas matérias são difíceis.
mente existir. Embora o argumento não “O cristianismo afirma algo sobre outro
seja de todo convincente do ponto de mundo” (p. 207). Mais difícil ainda é a
vista filosófico, oferece uma faceta bas- doutrina sobre a Trindade, tema do capí-
tante original do pensamento lewisiano. tulo 2.
Para Lewis, a fé significa “a arte de O capítulo terceiro versa sobre o tem-
aderir a coisas que a sua razão já acei- po, recordando que Deus está absoluta-
tou, apesar de seus estados de espíri- mente fora dele. Assim, “você está tão a
to inconstantes, pois os humores vão sós com ele quanto se fosse o único ser
mudar independentemente da visão que que ele já criou. Quando Cristo morreu,
sua razão assuma” (p. 188). De fato, nos- ele morreu por você individualmente,
sos estados de espírito mudam, e, por como se você fosse o único ser humano
isso mesmo, o exercício do culto divino do mundo” (p. 220).

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Sobre o interminável debate entre Todos os humanos são diferentes,


Providência e liberdade, Lewis ofere- mas todos são chamados a se configu-
ce ao mesmo tempo uma explicação rar a Cristo, a tornarem-se “pequenos
clara e cabal: “Todos os dias são ‘ago- Cristos”. Antes, cada homem só se tor-
ra’ para ele [Deus]. Ou seja, ele não se na ele mesmo, de modo completo, com o
lembra de você fazendo coisas ontem; seu “eu verdadeiro”, na medida em que
ele simplesmente vê você fazendo essas permite que Cristo “assuma o controle”.
coisas, pois, embora você tenha perdi- Por fim, cito uma das frases mais
do o dia de ontem, ele não perdeu. Ele famosas do livro, inserida também na
não ‘prevê’ você fazendo coisas amanhã. introdução de Kathleen Norris: “Quão
Ele simplesmente o vê, realizando-as, monotonamente iguais têm sido todos os
pois, embora o amanhã ainda não ocor- grandes tiranos e conquistadores; quão
reu para você, já é para ele. Você nun- gloriosamente diferentes todos os san-
ca supôs que suas ações neste momen- tos” (p. 285).
to fossem menos livres só porque Deus A tradutora, já muito experiente nos
sabe o que você está fazendo. Bem, ele textos do escritor britânico, foi muito
conhece as suas ações futuras exatamen- feliz nesta versão para a editora Thomas
te da mesma forma – porque ele já está Nelson Brasil. Apontamos apenas
no futuro e pode simplesmente observá- alguns ínfimos deslizes, como na pági-
-las. Em certo sentido, ele não saberá da na 167: “... vai tentar conseguir mais o só
sua ação enquanto você não agir, porém, para afirmar seu poder” (a letra “o” está
no momento em que você tiver agido, já sobrando). E também na página 225:
será ‘agora’ para ele” (p. 223-224). “Imagine dois livros sobre a mesa, um
Uma reflexão interessante é sobre o em cima” (na realidade: “um em cima
sentido de “Deus é amor”: tal expressão do outro”).
só é possível se Deus contiver ao menos Cada um dos capítulos deste clássico
duas pessoas, pois, se assim não fosse, de apologética cristã pode ser lido sepa-
Deus não seria amor antes da criação do radamente. Antes, trata-se de um livro
mundo. A Trindade, por sua vez, traba- que merece ser relido e meditado.
lha seu amor através dos homens. Em última análise, que a obra de
Por outro lado, “o Filho de Deus se tor- Clive Staples Lewis possa beneficiar
nou homem para permitir aos homens se cada vez mais pessoas, cristãos e não
tornarem filhos de Deus” (p. 232). Ora, cristãos, como já tem feito nesses últi-
essa ideia de o Pai gerar filhos é, na visão mos anos.
lewisiana, de difícil compreensão. Mais
adiante, o Autor introduz a ideia da ora- Felipe de Azevedo Ramos, EP
ção do Pai-Nosso, que acaba por esclare- (Professor – IFAT)
cer nosso papel como filhos de Deus.

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