Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
lÁ Vida Literdria
_no C-.Srasil 1900
4" EDIÇÃO
J
..""""""i""'. !='-""""'�
' �
"/\. VIDA LITERÁRIA
n B RASIL - I9ºº'
Brito Broca, é obra que, de há
LEODEGÁRIO A. DE
AZEVEDO FILHO
BRITO BROCA
o o
© Herdeir9s de-Bdto Broca, 2004
edição à
Reservam-se os direitos desta
A.
EDITORA J O S É OLYMPIO LTD
Cristóvão
Rua Argentina, 171- 1º andar - São
va
20921-380 - Rió de Janeiro, RJ - República Federati do Brasil
Tel.: (21) 2585-2060 fox: (21) 2585-2 086
Printed in Brazíl /Impresso no Brasil
Atendemos pelo Reembolso Postal
Assistente de Design
FERNANDA MELLO
Foto
AUGUSTO MALTA
gentilmente cedida sua reprodução
pelo Museu llistórico Nacional
II ustrações
PLANTAS DE FACHADAS
feitas para o Album Comemorativo,
encomendado pela Comissão
da Avenída Central e publicado em 1905
B88Iv
Broca, Brito, 1903-1961
A vida literária no Brasil - 1900
Brito Broca. - 5.ed. - Rio de Janeiro : José Olympio:
Academia Brasileira de Letras, 2005
Apêndice
Inclui bibliografia
ISBN 85-03-00796-7
CAPÍTULO 1 3 5
LAeuforia do "1900""""" 1l(g tempo do "bota-abaixo""""" O alvião do prefeito
Passos"""" Mundanismo e vida literdria"""" "O Rio civiliza-se""""" LA 'era do
automóvel""""" LAntagonismo entre o subúrbio e o centro urbano
CAPÍTULO II 39
LA decadência da boêmia """" 'Da rua do Ouvidor à avenida Central """"
Influência da Academia Brasileira de Letras """" O drama de josé do Patrocínio
"""" LA esterilidade literdria de Aluísio Azevedo
CAPÍTULO III 55
LA boêmia dourada """" '11{,quintados e superfinos """" Os salões """" .(gurinda
Santos Lobo em Santa Teresa """" Coelho Neto na rua do Rozo """" Sousa
Bandeira em Barão de ltambi """" Uma musa da época """" Vila Kyrial """"
"'Freitas Vale, o Magnífico"
CAPÍTULO IV 71
Os cafls """" 13ilac e o advento da Confeitaria Colombo """" ú'vfarginais da li
teratura"""" Superestimação da anedota"""" Um Chat Noir carioca"""" "LAsu
blime porta""""" ú'vfachado de Assis na Garnier """" LA roda dos simbolistas
CAPÍTULO V 87
<Jfj!;remiações literdrias """" A Imprensa e a t_Academia dos Novos """" O fta
casso da "Goncourt" brasileira """" LA sociedade brasileira dos homens de letras
e seu programa """" "LA muralha que defenderd o pomar onde em sonhos
desabrochamos"
SUMÁRIO .g_.7
CAPÍTULO VI 97
Unidade e federação nas letras � vfcademias e agrupamentos literdrios esta
duais � (__/[visita de Coelho Neto ao Maranhão � <A Oficina de Novos, a
Tertúlia das Letras e a Nova Cruzada� Sílvio Romero e a província
CAPÍTULO IX 141
<Asedução de Paris � La douceur de vivre � Bilac intoxicado de "parisina"
� L/ÍS excentricidades de josé Albano� 'lheo Filho� Patrocínio Filho e sua
mitomania� .(j;teratura de panegírico � Euclides da Cunha prefere o sertão ao
bulevar � 'Densidade e tenuidade
CAPÍTULO X 153
e.A Grécia no Brasil � 'Da Arcddia ao Romantismo � úWachado de Assis
veste casaca nos deuses do Olimpo � O esporte e o Helenismo � Uma tese
falsa� úWonteiro Lobato lendo Homero em e.Areias� Os gregos" e os ''lati
nos" ameaçados
CAPÍTULO XI 161
úWodas literdrias � joão do Rio revela Oscar Wilde � N!.,etzsche �
Assunção e Exaltação� 'Tolstoi e o anarquismo� Elísio de Carvalho, homem
que adota todos os figurinos � lbsen � Eça de Queirós � 'Fradique Mendes
visto por juó Bananére
CAPÍTULO XV 209
cA Biblioteca Nacional na avenida ,_ uís iniciativas de Manuel Cícero
Peregrino da Silva ,_ O ministro Seabra foz política ,_ &vocações de João do
Rio e O/avo Bilac,_ Os apontamentos de Capistrano de Abreu,_ Onde as con
ferências não eram puramente "literdrías"� tAssunto para um romance de
]erome K Jerome
SUMÁRIO� 9
e o gosto de "dizer verdades" � 'Francisco Escobar, o amigo exemplar �
011onteiro Lobato e Godofredo Rangel
CAPÍTULO XX 315
Críticos militantes e cronistas� e.Aatividade de José Veríssimo� AraripeJúnior
� Osório Duque-Estrada, 'o guarda-noturno do vernáculo'; Medeiros e
Albuquerque, expressão típica do reviewer�João do Rio, historiador de uma época
� e.Acolaboraçãofeminina nosjornais� Çjilberto Amado e Antônio Torres
APílNDJCE II
Nota n 1 O "bota-abaixo" 353
º
APílNDJCE III
Origens literdrias do cinema brasileiro 366
SUMÁRIO �II
Francisco
de Assis Barbosa
li
Um dom Quixote das letras
Dos livros em que Brito Broca apenas começara a reunir sua produção jorna
lística na imprensa de São Paulo e do Rio de Janeiro (Americanos, 1944;
Machado de Assis e a política.. ., 1957; Horas de leitura, 1957), surge-nos uma
imagem incompleta, até deformada, do grande trabalhador intelectual que ele
foi, imagem como a que se reflete nos espelhos parabólicos: reduzindo, dimi
nuindo, empequenecendo a figura. Não é caso único em nossa literatura.
Carlos de Laet será talvez o exemplo mais ilustre de distorção, em confronto
semelhante, no conjunto da obra enfeixada em volumes e no da obra disper
sa na imprensa. E o grande polemista da fase final do Império e de quase to
da a Primeira República, um dos maiores escritores do seu tempo, em língua
portuguesa, inclusive da falada e escrita no Brasil, está ainda à espera de al
guém que se disponha a juntar os milhares de artigos que se encontram por
assim dizer perdidos em jornais e revistas numa militância que perdurou mais
de meio século. Como cronista literário, a militância de Brito Broca não
abrange, é bem verdade, período tão longo. Jornalista profissional desde 1927,
data da sua admissão em A Gazeta, de São Paulo, a decisão de só escrever so
bre literatura para os jornais coincide com a sua transferência para o Rio de
Janeiro (fins de 1937), continuando a manter na mesma A Gazeta a coluna
iniciada em 1935 com o pseud6nimo de Alceste. Até a morte, em 1961, são
mais de trinta anos de intensa atividade jornalística, dos quais vinte e cinco ex
clusivamente dedicados ao jornalismo literário. Desse escritor partido aos pe
daços, como ele próprio se definiu, numa entrevista a Renard Perez, publica
da no Correio da Manhã, uma seleção de tudo quanto publicou, em jornais e
revistas, segundo cálculo pessimista, daria para uns quinze volumes de trezen
tas páginas, num total nunca inferior a quatro mil e quinhentas páginas com
pactas, contendo a melhor informação literária nacional e estrangeira das úl-
que seria fatalmente a sua obra capital: a história da vida literária no Brasil, do
período colonial ao modernismo. O pedaço, aparecido em 1956, em edição
ilustrada do Serviço de Documentação do Ministério da Educação e Cultura,
reeditado em 1960, pela Livraria José Olympio Editora, A vida literdria no
Brasil- 1900, documentário da nossa historiografia literária, dá bem a idéia
do painel, se completado, em dimensão e profundidade.
A tantos projetos dilacerados se junta agora mais um: os pedaços das suas
memórias, de que se conheciam os trechos antológicos estampados na Revista
do Livro e no Jornal de Letras. Nascido na mesma cidade, amigo de duas gera
ções (meu pai já o fora do seu), coube a mim organizar a edição deste livro, uti
lizando o texto que encontrei datilografado em três cópias, do qual uma parte
fora a publicada no primeiro daqueles periódicos, sob o titulo "Quando havia
província", de que se tirou separata em 1961. Em todas as cópias, o autor fize
ra emendas, cotejadas com os originais manuscritos, sempre que possível, já
que destes pouca coisa se salvou. As outras duas partes do volume, ''Anos de
aprendizagem" e "Na Revolução de 32", foram construídas com artigos e crô
nicas de conteúdo autobiográfico. Com a epígrafe ''Anos de aprendizagem",
Brito Broca publicou muita coisa em A Gazeta, visando um livro de memórias.
Mas nem chegou a coletar o material, que tinha de ser com certeza selecionado
para uma nova redação mais literária e menos jornalística.
Não recebi em ordem os papéis destinados a esta edição. É preciso que
0 diga, embora sem qualquer intenção de censura a quem tão carinhosamente
os deteve. Cometeria com isso uma grande injustiça para com a irmã do es
critor, dedicadíssima à sua memória, e que em vida lhe fizera as vezes de anjo
da guarda, numa presença constante, embora não vivessem sob o mesmo te
to. Tampouco ouso fazer qualquer reparo ao meu amigo Alexandre Eulálio,
inexcedível na admiração ântuma e póstuma, e que se tornou por assim dizer
0 arquivista do seu acervo literário. Ao contrário. O que desejo deixar bem
claro é que assumo integral e absoluta responsabilidade na organização do tex
to das memórias, não só quanto à seriação dos capítulos da primeira parte, co
mo quanto à seleção do material coligido nas duas outras. Pois o organizador
·· ·-·· ·=��----
não deixa de ser um intruso, na sua forçada co-autoria, em obras deste gênero:
ninguém possui o dom divinatório de s_aber o que ainda passaria pelo crivo da
reelaboração ou o que estaria destinado, não à letra de fôrma, mas simples
mente ao cesto dos papéis inúteis. Brito Broca era, na sua aparente displicên
cia, muito exigente consigo mesmo, e talvez desejasse ainda polir aqui e ali o
meiro exemplar que recebeu da edição de 1956. Pai da primeira e tio da segun
da, editada por José Olympio. Foi esse o livro de maior repercussão naquele ano,
o que obteve maior número de prêmios. Mas o sucesso não lhe subiu à cabeça.
Continuou a ser o mesmo Brito Broca de todos os dias, só que bastante encabu
lado pelos cumprimentos e pelas homenagens. Tudo aquilo lhe parecia estranho,
porque demasiado e imerecido. Que falassem do livro, discutissem as suas idéias,
apontassem erros e defeitos. Nada, porém, de exageros. O exagero era uma doen
ça tropical, que precisava ser exterminada tal como acontecera com a febre ama
rela. O trabalho intelectual não poderia ser confundido com o futebol, o rádio,
o cinema, que criam os seus ídolos. Já se arrependia de ter concordado em escre
ver e publicar o livro. -1àlvez fosse preferível continuar tudo como antes, vivendo
afastado do ruído publicitário, anônimo, desconhecido, cumprindo a sua rotina
diária, do seu quarto de hotel à redação do jornal, não sem passar, é claro, pelos
.
··-
2 2 � <A Vida Literária no Brasil
o aspecto heróico, pelo qual eu o encarava, há dez anos atrás, nos primeiros
tempos da minha cidadania carioca. Lembro-me do ardor e da efusão lírica
com que lhe percorria os bairros, deixando-me ficar a sós, numa praça distan
te, ou num café modesto de arrabalde, excursionando pelas imediações dos
morros e em outros recantos típicos, à busca ansiosa dessa coisa vaga, fugidia,
terrivelmente abstrata que se costumava chamar o espírito da cidade. Ah! co
mo eu desejava então ler o livro, o romance que me desse tão preciosa chave!
Paris vive em centenas de novelas, nas mais diversas épocas históricas, desde a
Idade Média, com a Notre Dame de Victor Hugo, aos dias de ocupação de
1940, em que não faltaram romancistas, passando pela era napoleónica,
a Restauração, com Balzac, e ao Segundo Império, com Zola. E o Rio, onde
encontrar o livro em que a nossa cidade seja sentida, vivida, interpretada,
revelada na sua essência mais íntima?"
Leu todos os romances do Rio de Janeiro, de Joaquim Manuel de Macedo
e Manuel Antônio de Almeida a José de Alencar e Machado de Assis, de Aluísio
Azevedo e Lima Barreto a Gastão Cruls e Marques Rebelo, de Arnaldo Tabaiá
e Otávio de Faria a Miécio Tati e Carlos Heitor Cony. Passou a reconhecer to
da a coreografia carioca, física e sentimental. Por isso mesmo, lamentava que o
progresso não apenas do Rio, como o de São Paulo, as duas grandes cidades
brasileiras que ele mais amou, tivesse se processado de um modo tão arbitrário,
atendendo mais à gula dos especuladores imobiliários que ao planejamento dos
urbanistas. Na página de agora, conservando os traços elegantes do cronista,
surge o observador atento aos problemas de psicologia social e geografia huma
na. Primeiro, fala do contraste, do que se fez em Paris e do que deixou de ser
feito em São Paulo e no Rio de Janeiro: ''A evolução de Paris" - escreveu -,
"apesar do vandalismo estratégico do barão Haussmann, no século passado,
foi feita de modo a preservar o caráter próprio da cidade. Se a abertura dos
boulevards e outras remodelações de Haussmann prejudicaram-lhe a fisiono
mia urbana, esta não perdeu no que tem de mais característico. Não pudemos
impor a mesma lei às principais capitais do Brasil, como Rio e São Paulo, on
de o progresso demasiado rápido devia determinar fatalmente a desfiguração
da paisagem primitiva. "
E continua: "Mas o certo é que esse progresso) sobretudo no Rio) tem vio
lentado muito mais do que seria necessário o caráter da cidade. Nada se res-
* O chefe locaJ do PRP dissera num discurso que a oposição só venceria as eleições "no dia 50",
isto é, no "Dia de São Nunca". Aconrece que a oposição, presrigiada por Washington Lufs, em
dissídio com os Rodrigues Alves, acabou vencendo uma eleição em Guaratinguetá. E comemo
rou a vitória numa passeata que passaria à crônica da cidade con1 o non1e de Dia 50.
Esta introdução é reproduzida das Memórias de Brito Broca, cujo texto foi organizado e anota
do por Francisco de Assis Barbosa (N. da E.).
A VIDA LITERARIA
NO BRASIL - 1 900
B.B
Quando publiquei este livro, em 1 9 56, declarando que ele, embora com cará
ter autônomo, devia fazer parte de uma série de quatro, em que eu preten
dia historiar a vida literária no Brasil dos tempos coloniais ao modernismo,
tinha em mira só reeditá-lo algum dia, juntamente com os outros volumes,
já então em preparo. Mas uma sorte excepcional o bafejou, levando-o a des
pertar o maior interesse do público e desfrutar os favores da crítica, além dos
quatro prêmios com que foi contemplado. Esgotando-se rapidamente a edi
ção, meu velho e querido amigo José Olympio propôs-se a lançar a segunda,
dentro de poucos meses. Mas eu vi logo no livro várias falhas e não me con
formei em entregá-lo de novo ao público, sem corrigi-las na medida das mi
nhas possibilidades.
Pedi um pequeno prazo e voltei às pesquisas, ao mesmo tempo que me
valia de sugestões, informes e advertências de vários escritores, amigos e tes
temunhas da época. Continuava assim mergulhado no rexro, que já me con
sumira tanto tempo, e movido pelo desejo de melhorá-lo, corria o risco de
multiplicar indefinidamente as alterações e, numa permanente insatisfação,
não preparar tão cedo os originais da segunda edição. Foi preciso pois impor
um estreito limite a esse remanuseio. Na realidade, obras dessa natureza nun
ca chegam a uma versão definitiva, sendo sempre s�scetíveis de ampliações.
No caso, restringi-me a corrigir alguns erros de datas e de nomes, a enrique
cer com os elementos que possuía mais à mão a maioria dos capítulos,
sem que isso importasse numa alteração substancial dos mesmos. Somente o
capítulo sobre a Biblioteca Nacional sofreu algum tanto na estrutura, por
uma sugestão inteligente e amiga de Eugênio Gomes, que prontamente aco
lhi. Nos demais ) os acréscimos não atingiram a configuração primitiva. As
sirn mesmo, o livro ganhou cerca de trinta páginas, sendo o capítulo XVI
o que teve ampliação mais sensível.
Aos agradecimentos já manifestados aos que me auxiliaram na primeira
edição, devo juntar aqui outros a Vivaldo Coaracy, Cruz Filho, Jaime Adour
da Câmara, Andrade Muricy, Agrippino Grieco, Gastão Cruls, Alexandre
Eulália, que me valeram nesta, com preciosas contribu ições. Razões de or
dem técnica irnpediram o livro desta vez de trazer ilustrações; entretanto,
N O TA f::;:;A 3 l
vem ele enriquecido de um índice onomástico, que tanta falta lhe fizera.
E José Olympio me prometeu uma edição ilustrada, quando puder apresen
tar, de m{ia só vez, todos os volumes: a série completa. Deles posso dizer que
o quarto, intitulado A época modernista, já vai bem adiantado, devendo ficar
pronto ainda este ano, para ser também publicado separadamente.
B. B.
Rio, abril de 1959
'�
::1.& CAPÍTULO I � 3 5
nas, centenas de prédios. A 7 de setembro de 1904, o presidente da República
e outras .autoridades, num bonde sobre trilhos improvisados, já podiam per
correr a avenida Central de ponta a ponta. O plano de urbanização prosseguia
triunfante, desconcertando os céticos, os pessimistas que tinham julgado im
possível o êxito da empresa. E a transformação da paisagem urbana se ia refle
tindo na paisagem social e igualmente no quadro de nossa vida literária.
A frase já tão ridicularizada de Afrânio Peixoto, de que "a literatura é o sor
riso da sociedade)', apesar do seu tom melífluo, não será inteiramente errônea
se tomarmos literatura no caso por vida literária. 2
Com alguma razão, poderia ele dizer que a "vida literária é o sorriso da so
ciedade", ou antes que a literatura em termos de vida social se intensifica, na
medida em que há prosperidade, paz e harmonia no ambiente. A Revolta da
Armada e a Reação Florianista em 1893 desarticularam completamente a vida
literária do Rio. Retornando a calma, ela começa a se recompor. No governo
Rodrigues Alves, encontramo-la em pleno fastígio. Para criar um quadro social
adequado à modernização da cidade - e contribuir, talvez, para que esta fos
se mais bem aceita pelos refratários -, o próprio prefeito Pereira Passos pro
curava incentivar os espetáculos mundanos. Assim, promove ele batalhas de
flores no Campo de Santana, a exemplo do que se fazia nas capitais européias.
A primeira não chega a atrair o público; mas a segunda obtém pleno êxito;
instituem-se prêmios, ornamenta-se o parque, e o presidente Rodrigues Alves
comparece escoltado por um piquete de alunos da Escola Militar. Embora
a crônica da época diga que, na realidade, não houve batalha, a festa dá um be
lo saldo de mais de dezessete contos, distribuídos por associações de caridade.
,,
CAPÍTULO 1 é::A 3 7
lo infernal. "Para que a era se firmasse" - explica ele - "fora precisa a trans
figuração da cidade. E a transfiguração se fez, como nas feéricas fulgurantes, ao
tantã de Satanás. Ruas arrasaram-se, avenidas surgiram, os impostos aduanei
ros caíram, e triunfal e desabrido o automóvel entrou, arrastando desvairada
mente uma catadupa de automóveis. Agora, vivemos positivamente nos mo
mentos em que o chofer é rei, é sóberano, é tirano.>'
A Fon-Fon, revista da época, falava em nosso "meridionalismo exagerado",
no "esquisito feitio de supercivilizados", em que nos tínhamos ajeitado desde
que o "sr. Passos" nos tinha dado a avenida. O estilo art nouveau, também en
viado pela França com os livros e as revistas, predominava nas armações, nos
lustres e nas decorações das confeitarias e dos cafés. Eram os "clássicos)', os in
falíveis espelhos a que se refere Luís Edmundo, "diante dos quais os elegantes
da época alinhavam os plastrons das gravatas e corrigiam a posição das lustro
sas cartolas". 3
Os escritores superestimavam essa modernização da cidade, atribuindo ao
Rio, em contos, romances e crônicas, ambientes e tipos que na realidade aqui
não existiam. E os requintes de civilização, prevalecendo na parte urbana da
metrópole, iam fazendo naturalmente com que os velhos costumes recuassem
para a zona suburbana. Começaria a acentuar-se um certo antagonismo entre
a "cidade", os bairros aristocráticos, de gente fina, dos supercivilizados, e o su
b úrbio com sua pequena burguesia, de costumes simples - antagonismo de
que a obra de Lima Barreto constituiria uma admirável ilustração.
Já em 1 6 de abril de 1902, antes do governo Rodrigues Alves, um pequeno
jornal, intitulado Progresso Suburbano, pintava a vida nos subúrbios como uma
pastoral - "mais tranqüila, mais suave e talvez mais amorosa, poética e doira
dà' - em face da vida da cidade, "incômodos, empurrões, furtos e desgostos)).
Mas eram esses incômodos, esses empurrões e esses furtos, que a "grande
literaturà1 reclamava como elementos imprescindíveis do Rio parisiense, do
Rio civilizado de Figueiredo Pimentel.
3. Luís Edmundo. O Rio de Janeiro do meu tempo, vol. 2, pág. 517, Imprensa Nacional, Rio,
1938.
CAPÍTULO I I /:;;;:::::=r 3 9
Dois fatores, porém, concorreram sensivelmente para a decadência da boê
mia: o desenvolvimento e a remodelação da cidade e a fundação da Academia
Brasileira; em 1896. O Rio começou a perder o carárer semiprovinciano de
velha urbe, com a vida centralizada numa pequena área, onde todos se encon
travam e todos se conheciam. A abertura da avenida Central veio deslocar, em
parte, os pequenos grupos que se formavam, à tarde, em diferentes pontos da
rua do Ouvidor; e o sistema de expedientes em que repousa a subsistência dos
chamados boêmios sofria com isso um grande golpe. Era a dispersão dificul
tando as "facadas", o jantar "filado" e outras tantas estratégias cotidianas de
que viviam os Rocha Alazão e os Raul Braga. Mas também a popularidade
deles se desgastava com o crescimento da cidade. A cotação de um tipo popular
é tanto maior quanto menor o meio em que ele vive. Nas amplas perspectivas
da avenida Central os boêmios inveterados já não desfrutavam o prestígio
que os cercava nos estreitos limites da rua do Ouvidor.
Por outro lado, é impossível negar certa influência da Acadernia Brasileira
no crescente aburguesamento do escritor, entre nós, na primeira década do sé
culo XX. Sob o signo de Machado de Assis, a prova de compostura se tornara
imprescindível para a admissão no novo grêmio, que desde o início se revesti
ra de uma dignidade oficial incompatível com os desmandos da boêmia. De
onde a reação de um dos boêmios mais típicos: Paula Nei. Vendo-se excluído
do número dos quarenta imo rtais fundadores da Academia, lançou as bases
de uma Academia Livre de Letras, em que colocou alguns boêmios, como
B. Lopes, Emílio de Meneses, Dermeval da Fonseca, mas também alguns ho
mens sérios, como Érico Coelho, que protestou logo, dizendo não fazer parte
da referida sociedade. O propósito de Paula Nei era hostilizar o grupo de
Machado de Assis, tanto assim que publicara uma notícia dizendo não terem
sido aceitos na novel Academia, por não haverem reunido o número de sufrá
gios suficientes, os srs. Lúcio de Mendonça, Oliveira Lima, Rodrigo Otávio,
Graça Aranha. No entanto, desdenhando e ridicularizando a casa de Machado
de Assis1 rnuitos boêrnios não tiveram a superioridade precisa para voltar as
costas e ignorá-la: foi o que aconteceu com B. Lopes, Lima Barreto e Emílio
de Meneses, que acabaram indo bater-lhe às portas. Os dois primeiros, vendo
a ínu(ilidade da ten[ativa e sentindo, principalrnente, a i1npossibilidade de ab
dicar das condições de vida que os incornpatibilizavam corn a Academia, be1n
1 . Rodrigo Otávío, Minhas rnernórias dos outros (Nova Série), José Olyn1pio, Rio, 1 935.
CAP ÍTULO I I � 41
Segundo Medeiros e Albuquerque, a Academia já havia tido um membro
sem compostura: Pedro Rabelo. Não se sabe como Machado o tolerou; sen
do curiosa"" a coincidência de se tratar de um escritor que se especializava
em pastichar, com habilidade extraordinária, o romancista de Brds Cubas.
Mas Emílio de Meneses acabou eleito por medo - informa-nos Medeiros.
Muitos acadêmicos receavam as sátiras do poeta ) que faziam todo mundo rir
e eram "modelos de perversidade". Eleito, Emílio preparou um discurso
d e recepção, em que ao invés de estudar a obra do antecesso r, como era de
praxe, se punha a falar de si mesmo, defendendo-se das acusações de boêmia
e agredindo ferozmente alguns acadêmicos que lhe haviam combatido a can
didatura. Submetido à censura da Academia, o discurso teve vários trechos
impugnados pelo enrão presidente Medeiros e Albuquerque. Emílio fez-lhe
saber que cortaria tudo, mas quando fosse ler o discurso, incluiria o que
fora censurado. Medeiros mandou preveni-lo de que, se fizesse, ele, como
presidente, levantaria a sessão e daria ordem ao contínuo para rnergulhar
o salão em semi-obscuridade. O escândalo foi evitado porque Emílio morreu
antes do dia da posse. Mas o discurso, publicado na Revista da Academia
Brasileira de Letras (número de dezembro de 1 926), com os corres impostos
pela censura acadêmica, justifica o que Coelho Neto teria observado a
Medeiros e Albuquerque , quando acabou de ouvi-lo: "E dizer que isso é 0
discurso de um homem de espírito!''
A principal preocupação de Emílio de Meneses foi defender-se da pecha de
boêmio, renegando, na verdade, aquilo que havia sido o principal motivo
de sua popularidade. "Boêmio e desregrado ... " - exclama em cerra altura -,
"boêmio e desregrado porque nos momentos decisivos faz o que qualquer ho
mem medianamenre digno tem obrigação de fazer. Boêmio e desregrado que
nunca foi visto em espelun cas. Boêmio e desregrado que com mais de trinta
anos de residência no Rio não sabe o que seja um desses celebrizados bailes
carnavalescos, onde o mulherio2 se excita de jogo e condimenta de álcool.
Boêmio e desregrado, por fazer a sua hora3 à mesa de um café ou de uma con
feitaria, trocando idéia, dizendo ou ouvindo versos e frases de espírito, como
imenso e novo, precisa progredir. Cada cidadão, pois, deve organizar sua vida
dentro de normas utilitárias e práticas. O poeta boêmio é assim um tipo que
aqui não pode mais existir. O último deles foi decerto esse pobre B. Lopes,
onrem colhido pela morte." Sim, findara a época da boêmia, mas não passara
ainda a dos últimos boêmios, que se constituíam em pequenos núcleos até
mesmo depois da guerra de 1 9 14.
CAPÍTULO l i &::::'9 4 3
sava agora de uma sombra de si mesmo. Remontemos, num golpe de vista, às
origens desse drama.
A campanha abolicionista se fizera ainda sob o signo do romantismo, ani
mada muito mais pelo coração de que pela razão; e Patrocínio era o tipo do ins
tintivo, do temperamental, do orador romântico das barricadas liberais, ade
quado à situação. O movimento assemelhara-se a uma vaga sentimental que
viesse crescendo, encrespando-se, superando rodos os obstáculos, onda avassa
ladora cujo bramido se exprimia, principalmente, na voz do tribuno negro.
A índole boêmia e desregrada de Patrocínio se ajustava a essa atmosfera de lu
ta, passando a ser vista como parte integrante do ardor com que se lançava na
refrega. O 13 de maio trouxe a vitória. Nunca, no Rio de Janeiro, um homem
teria sido aclamado como Patrocínio. O povo delirava em torno dele, numa
efusão tamanha, que depois da semana comemorativa da Lei Áurea lhe foi ne
cessário procurar repouso numa cidade do interior. Na noite de 13 de maio,
quando os foguetes espocavam em rneio das lu1ninárias da cidade ern festas, al
guérn teria dito ao herói: "Que belo dia para rnorreres, Patrocínio!"
Vitoriosa a campanha, Patrocínio, que não morreu, pois não bastarn fra
ses românticas para decidir um destino, tornou-se um herói em disponibili
dade. Essencialmente temperamental, precisava aplicar o instinto de lura nu
n1a outra causa qualquer. E a causa que se oferecia agora à fibra do lidador era
a da República. Patrocínio adere à República, alegando que nunca tivera vo
cação monárquica. Dois anos depois do 1 5 de Novembro, Floriano o depor
tava, juntamente com outros insubordinados, para Cacuí, nos confins da
Amazônia. De lá regressando doente, Patrocínio procura debalde reaj ustar-se
num clima de lura; defende apaixonadamente Prudente de Morais, o restau
rador da ordem civil, a quem passaria a chamar de "santo varão". E continua
a proferir discursos no esforço inútil de transrnitir as sugestões de outrora.
Não mais consegue retomar o facho que caíra por terra; e no começo do sé
culo acentua-se a decadência do herói.
Passara o quarriênio agitado de Prudente de Morais, a República consolida
ra-se, iniciava-se um período de prosperidade, que se prolongaria pelos gover
nos de Rodrigues Alves e Afünso Pena. O ro1nantisrno pertencia a um passado
distante, os cosrurnes rnodificavam-se ern todo o sentido, a boêmia declinava, o
jornalismo transfórrnava�se atendendo às novas solicitações do público.
CA P Í T U L O 1 1 �45
tempo a contingência de trabalhar quase sem remuneração, na vaga esperan
ça do dia em que seu José tivesse dinheiro. Um a um, vão abandonando o jor
nal perm;necendo apenas, numa resistência dramática, os mais fiéis, como
Henrique Câncio e Batista Júnior. E ali, na rua do Rosário, a Cidade do Rio
vem, finalmente, a ''morree'.4
Mas, antes disso, Patrocínio Já encontrara derivativo para a vocação herói
ca, numa derradeira batalha. Quando ia mais ardente a campanha abolicionis
ta, revelara ele aos amigos a idéia que de há muito trazia em mente: construir
um balão, um balão dirigível, como ainda não se conhecia, e que seria a maior
conquista do século XX.5 Voltava agora, nos dias amargos da decadência, pa
ra o velho sonho, a ele se entregando de corpo e alma. Ah! Duvidavam do seu
gênio? Pois haviam de ver. Subiria ao céu no prodigioso invento e pairando
sobre a multidão deslumbrada recuperaria a auréola perdida do herói; o povo
iria carregá-lo em triunfo, ainda uma vez, como outrora. Os planos já lhe fer
viam no cérebro; pensava em ganhar muito dinheiro, pagar todas as dívidas e
fundar outro jornal com largo programa patriótico e construtivo.
Retirado numa espécie de hangar na solidão de lnhaúma, empenha-se
febrilmente na construção da aeronave, que reria o nome de Santa Cruz.
Muitos amigos se interessaram pelo invento, procurando obter o apoio de ai-
CAPÍTULO ll �49
..
do inteiro. Os telegramas e as notícias diárias dos jornais tinham desvendado
a verdadei!a face do povo até ali sempre visto por um prisma romântico. E o
livro já lhe parecia sem oportunidade, mesmo porque as previsões feitas pelo
autor divulgadas depois que os fatos as comprovaram podiam acarretar-lhe a
acusação de charlatanismo. Mas não haveria nisso um simples pretexto para
quem sentia cada vez menos o desejo de escrever? Só o conhecimento dos ori
ginais da obra incompleta, depositados na Academia Brasileira, segundo pare
ce, poderá dizer até onde se justificava o gesto do escritor.
Em Nápoles, em 1907, Rodrigo Otávio visitou o romancista, deixando
desse encontro um expressivo depoimento. Num passeio a Capri, "no jardim
de tosco albergue, mal protegido do sol pelas largas folhas de um parreiral",
não pôde deixar de dirigir a pergunta que um escritor faz a outro, principal
mente quando não o vê há muito tempo. Que livro teria na forja? Houve um
instante de constrangimento - diz o memorialista - quebrado pela presen
ça de um a rapariguinha graciosa que trazia um prato de figos. Não quis insis
tir na pergunta; mas foi o romancista quem se empenhou em explicar porme
norizadamente o caso, como quem procura justificar-se a si próprio. "Queria
trabalhar, por certo; tinha a ânsia de produzir, mas faltava-lhe a atmosfera, a
paisagem, o espetáculo. Se fora um poeta, faria versos em que falaria a sauda
de que tinha da terra; mas não era senão um pintor e faltava-lhe o modelo.
Estava estudando, acumulando elementos espirituais, mas que só se poderiam
materializar no livro, transformar-se no romance, quando voltasse a viver em
sua terra com sua gente. Escrever assim, longe e de memória, não devia; e es
tava tendo força para resistir ao desejo sôfrego que o queria arrastar, como se
resiste aos prazeres do fumo e do ópio. Mas, sentia que a obra sairia artificial
e imprestável." Seria exato isso, ou uma confissão disfarçada de esgotamento e
impotência? - interroga Rodrigo Otávio.7 Ficamos na mesma dúvida.
Mas ainda em Nápoles, em 1909, o convívio de Afrânio Peixoto que por
ali passara, em demanda da Grécia e Oriente Próximo, tivera o dom de desper
tar em Aluísio anseios de criação artística. Em carta de 3 de dezembro desse
ano, ao próprio Afrânio, escreve ele: "Por sua causa, só com aquelas palestras
lá em casa sobre literatura, têm-me aparecido tais pruridos de trabalhar que
C A P ÍT U L O II� 5 l
- mortes, depredações, incêndios, arrancamentos de tripas, e tudo isso a rir,
tudo isso de um c6mico que pretende tornar ridículo todo o sujeito com pre
tensões a"'"guapo e valentão de província ou de vila. Imagine como deve ser es
se trabalho, para ser coisa apresentável. Os sertões do Euclides vão fornecer-me
dados que eu terei de p6r no avesso. Os seus livros, que agradeço como famin
to agradece comida, ainda não chegaram cá. "9
Na carta seguinte, dois meses depois, não fazendo alusão ao romance em
preparo, continua a lembrar-se dos livros que Afr!inio lhe recomendara para
documentar-se; mas na de maio de 1 9 10, já não fala no romance nem nas lei
turas sobre religião. Teria sido posta de lado a tarefa? Conversando com
Afr!inio algum tempo depois, no Rio, de passagem para Buenos Aires, volta a
referir-se ao projeto. A idéia esrava ainda a preocupá-lo; não abandonara a em
presa - afirma convicto. A verdade é que a obra não foi escrita. A incapaci
dade para a produção literária parecia mesmo definitiva.
Alcides Flávio 10 alude também a um encontro com o romancista, em da
ta que não chega a precisar, e que deve ser pelo começo do século, durante o
qual palestraram sobre a Europa e a impressão produzida por esta no espírito
de ambos. Aluísio desenvolveu o plano do trabalho que tinha em mira: "Uma
obra sociológica, extensa, sobre as catedrais. Folheara compêndios, estudara,
coligira apontamentos ... Seria o livro da maturidade, as páginas que devem fi
car. " "Ouvi embevecido a longa descrição" - escreve Alcides Flávio -, "re
nascia a mocidade naquele qüinquagenário: sonhos, fantasias, aspirações... "
Tratar-se-ia de outro projeto frustrado do romancista que procurava de
balde voltar às letras para produzir qualquer coisa de mais sério e definitivo?
No entanto, numa confidência feita a Coelho Neto, nos tempos de mocida
de, parecia ele antecipar uma explicação para essa esterilidade que causaria
tanta estranheza aos amigos: "Escrevo por força da fatalidade. Dão-me as le
tras para viver, mas eu é que sei como vivo! Digo-te apenas que no dia - que
aliás não espero - em que conseguisse alguma coisa que me garantisse o te
to e a mesa, deixava de mão a pena, papel e tinta, todas essas burundangas
que só têm servido para incompatibilizar-me com o clero, nobreza e povo.
9. Idem, ibidem.
10. Alcides Flávio, l/êlaturas, Livraria Casrilho.
C A PÍ T U L O II� 5 3
ÍTULo I I I
li <3> C A
p
C A P Í T U LO III � 5 5
Aliás, o café já não se prestava ao ritual dessa camada superfina; teremos o
advento do chá, não aquele chá pacato e familiar tomado à noite, no âmbito
.,.
dos casarõ es patriarcais, mas servido às cinco da tarde com a designação bri
tânica de jive o'clock tea. "O Rio civiliza-se" - não se cansava de apregoar
Figueiredo Pimentel no "Binóculo". "O chá civiliza-se... tal qual o Rio", le
mos na Fon-Fon (15-6-191 1). E o progresso continua, como se lê no potin:
não se contentando com o simples rótulo inglês, o chá nos dias remotos de
1 9 1 1 passara a anunciar-se desta forma: "Five o' clock tea... chez Madame X."
Que é essa espécie de chá evoluído? A própria revista logo em seguida nos
elucida: é "o pretexto, a intenção benevolente para a elegância de reuniões de
escol, da delícia da palestra sussurrada, em tête-à-the, numa sala aromada
de hortênsia, iluminada à eletricidade, cheia de mulheres lindas".
É esse o ambiente que João do Rio e Figueiredo Pimentel evocam a to
do momento, nas suas crônicas em que gravitam as figuras mais conhecidas
e típicas da jeunesse dorée. Cronistas da "boêmia douradà' também se iden
tificam com o gênero de dandismo que a caracteriza. João do Rio é um
D'Orsay de chapéu-coco, monóculo e polainas; e ele descreve Elísio de
Carvalho nestes termos: "( ... ) tem a face pálida de sempre, o que indica uma
secreta vida de mistério, a elegância de um fato bem cortado e uma lindís
sima gravata com desenho esquisito, em que há das rosáceas bizantinas e das
paisagens do Japão."
Melhor ainda nos dará o diapasão da época, a maneira pela qual Valfredo
Martins, no prefácio para o Livro de amor de Nilo Bruzzi, traça o perfil do
poeta, tal como o conhecera por volta de 1 916: "Era um menino. Tinha a be-
1 i leza das mulheres e a volúpia dos homens. Seus cabelos esvoaçantes dir-se-iam
alvoroçados por carícias femininas. Nos olhos tinha o brilho inquieto das
vitrinas de joalherias. Nas olheiras, o violáceo dos crepúsculos e nas faces duas
rosas encarnadas. Sua boca era uma papoula esfarfalhada. Depois, este Dorian
Gray de Oscar Wilde surgia no luxo imprevisto das suas cigarreiras, tauxiadas
de madrepérola, dos seus anéis egípcios de lápis-lazúli, das suas cadeias de pia-
! 1 tina e oiro, das suas camisas rajadas e bizarras abrochando-lhe a gravata um
esrr1alte veneziano, onde sonhava a figura de um pierrô melancólico . "1 . .
l. Ni!o Bruz1.i, livro de tlmor (Prefácio), Tip. Bcsnard FrCrcs, Rio, 1926.
CAPÍTULO JIJ � 5 7
Barão de Flamengo, onde todas as noites, entre o chá e uma partida de bridge,
se reúne um grupo de rapazes finos e cultos, ligados "pela familiaridade dos res
•
taurantes e dos clubes". E recorta a figura do Pedro León y Villar, "homem su
periormente inteligente, e deliciosamente encantador no trato íntimo...
Soberanamente culto, conhecedor como poucos da história de todas as precio
sas do século da galanteria, profundamente cético... um desses bons !errados que
põe nas suas páginas o mesmo escrúpulo com que organiza a elegância das suas
belas roupas, o arranjo de sua casa e o prazer de sua existêncià'.3 Outros tipos
do mesmo gênero vão passando por essas páginas onde o nome de Oscar Wilde
vem constantemente à baila. São comparsas saídos dos romances de Jean
Lorrain, descendentes de Monsieur de Bougrelon e Monsieur de Phocas, à pro
cura do novo, do raro, com neuroses estéticas, cansados de civilização. Neles não
subsiste o sentido do cotidiano: surgem como criaturas meio exóticas na cidade
que se vai modernizando. Elísio de Carvalho evoca "a ironia cintilante de Paulo
Barros, o humorismo de Silva Maia e a musa histérica de Júlio Eugênio", nesses
ambientes em que se fala de D'Annunzio, de lbsen, de Metterlinck, e ama-se
tudo que respira originalidade. Um ligeiro pastiche dos quadros que Marcel
Proust iria fixar em A la recherche du temps perdu.4
E uma prostituição de alto bordo, marcando a paisagem social do Rio nes
sa época, estendia suas influências aos meios literários. "A cocote, como a he�
taira na Grécia e a gueixa no Japão, estava no centro da vidà) - escreve
Gilberto Amado. - "Na pensão da Tina Tatti políticos de prestígio, altos in
dustriais, discutiam problemas do dia. As regras do jogo social obedecidas, co
mo em Atenas e em Quioto. A palavra lupanar só aparecia em horas de zanga
em artigo ou discurso de Rui Barbosa. Condenar Susana Casterá, a referida
Tina Tatti, como mais tarde a Janine, a Eudóxia, donas de pensões de mulhe
res, seria prova de mau gosto. )'5
5-a. Luís Ed1nundo, O Rio de janeiro do nu'11 ten1po, 3° vol., ln1prcnsa Nacional, Rio, 1938.
C A P Í T U L 0-11-1 � 6 1
Santos Lobo, a ouvir a leitura da peça de Roberto Gomes, Berenice, feita pelo
próprio autor, na versão francesa.
Veja� esta passagem d A esfinge, de Afrânio Peixoto, reproduzindo uma
'
nhece o repertório?
A voz nítida de Vanda dizia ao canto do piano:
- Matelot! l&rsos de André Meunier. . .
E continuava, exagerando os ee mudos, carregando rr, nasalando mm e nn,
alongando o bico nos uu, aspirando os oui, cantando os finais com todo o bom
tom da gente fina do Rio, que supõefolarfrancês corretamente. "7
"- Quem lhe sugeriu este dou? -perguntei.
- D'Annunzio... no 11 Piacere... Apenas falta É/ena para vender champa
nha e limpar as mãos, por mais algumas moedas, jd se vê, na barba farte dum
príncipe italiano. . " 8
.
7. Afrânio PeixO(O, A esfinge (6ª ed.), pág. 177 e segs., Cia. Editora Nacional, Sâo Paulo, 1940.
8. Idem, ibidem. pág. 192.
{f
penumbra, punha-se ele a desfiar com voz cava os versos lúgubres: 'Nunca
mais! Nun�a mais!''1º
Compreende-se que os filhos de Coelho Neto, garotos endiabrados e ma
liciosos, não levassem muito a sério os figurões que ali se reuniam. E daí os
apelidos que pespegavam em alguns deles. Goulart de Andrade, sempre irre
quieto, passara a ser o "Mosquito Elétrico''; Bilac, o "Amolador", porque ti
nha o costume de intrometer-se nas brincadeiras dos pequenos, "ora acirran
do, ora satirizando os parceiros". 1 1 Mas o melhor espetáculo dessas reuniões
era o próprio Coelho Neto, com a sua palestra imaginosa e fértil, resumindo
os romances e as novelas que pretendia escrever, relembrando episódios de ju
ventude, transmitindo impressões de leitura, a voz nítida e empastada, a ges
ticulação perfeita, representando, não raro, como verdadeiro ator.
Em Orações e palestras, João Luso recorda, com emoção, o dia em que ou
viu a narrativa do "Bom Jesus da Matà', essa admirável novela que iria figu
rar no livro Treva. Outra vez, foi uma "primeira edição, tiragem verbal para
vinte ou trinta pessoas, da 'Fertilidade', com a sua apoteose do sangue do nas
cente regando e fecundando a terra do lavrador alucinado".12 Numa noite, fa
lava-se do luar e dos seus efeitos no sentimento de cada um. "Pois, a mim, o
luar me mete medo'', considerou Coelho Neto, e lá veio a história, desta vez
um caso verídico: a caminhada que, por motivo de doença súbita na família,
o escritor fora obrigado a fazer alta noite, ao plenilúnio, por entre as palmei
ras da rua Paissandu até a residência do médico. Quando ele concluiu, não ha
via no grupo quem não suasse frio, sob a sugestão da narrativa terrificante. 13
Era, sem dúvida, um grande improvisador. 14
Quando era, por qualquer motivo, obrigado a ficar em casa, eles iam para lá, reconstituindo a
roda, como em qualquer café da cidade."
15. Alceu Amoroso Lima explicou-me em que consistia esse divertimento, em que ele costu
mava tomar pane. Apresentava-se, por exemplo, um dos convivas com um cabo de vassoura na
mão. Isto queria dizer "pau". Vinha depois falar com este um outro, mostrando-lhe um pedaço
de papel escrito: era a "lista". Surgia, finalmente, um terceiro, dizendo ser natural de São Paulo,
o que constituía a decifração da charada: "paulista."
16. No seu Panorama do movimento simbolista brasileiro {vol. II, pág. 171), Andrade Muricy
aludindo à poesia de Orlando Teixeira diz que Leopoldo Fróis, habituado como Chaby
Pinheiro, a recitá-la, fizera representar uma con1édia baseada nessa fábula. Há um pequeno
equívoco no caso. A con1édia cm questão intitulava-se, realmente, O sapo e a estrela, mas só o
C A P ÍT U L O III,�65
qual se dizia um mísero batráquio a contemplar do charco o clarão que luzia
ao longe, no firmamento inacessível. Mas apesar de tudo, deixava-se embalar
por umá ilusão consoladora. Platonismo, sonho... a simples imagem da sílfide
loura a sorrir confortava-o. E certo dia parte a jovem para a Europa. Já não ha
via ilusão possível. O poeta definha pelas portas dos cafés da rua do Ouvidor e
do largo da Carioca. Abre-se o caminho para a tuberculose consumar a obra
destruidora. Na estação de Sítio, em Minas, irá morrer, apegado às lembranças
da felicidade precária que, naquele ambiente, a presença da criatura amada lhe
concedera um dia. Enquanto pelos chás dançantes e recepções as ressonâncias
do drama não tardarão a diluir-se em risos e palmas, ante os versos de O sapo
e a estrela, recitados com arte inimitável pela própria criatura que os inspirara.
Mas não era somente no Rio que continuava a tradição dos salões literá
rios. Em São Paulo tínhamos o de Vila Kyrial, residência de José de Freitas
Vale, um palacete de linhas harmoniosas nas alturas de Vila Mariana, bairro
ainda pouco povoado, ambiente propício ao recolhimento de um poeta sim
bolista. Grande amigo de Alphonsus de Guimaraens, que lhe dedicara um dos
livros, chamando-o de "Prince Royal du Symbole", Freitas Vale escrevia ver-
título fora decerto inspirado pela poesia, pois se tratava de tradução de um original francês de
Jacques Deval: Beauté. A semelhança entre o enredo arquitetado pelo comediógrafo e o ro
mance infeliz de Orlando Teixeira, narrado em O sapo e a estrela, devia ser puramen[e aciden
tal, já que não há probabilidade do autor francês ter tomado conhecimento do que se passara
com o poeta brasileiro.
Deval figurara o conflito de um astrônomo, homem feio, solteirão e já maduro, cuja vida quase
reclusa, inteiramente dedicada à ciência, sofre radical transformação, no momento em que se
apaixona por uma mulher jovem e leviana. Essa peça foi representada com grande êxito no Rio
e em São Paulo, por volta de 1924, encarregando-se Leopoldo Fróis e Sílvia Bertini dos papéis
principais. Acrescente-se o fato da tradução haver sido feita por João Luso, grande amigo de
Orlando Teixeira, de quem possivelmente partira a idéia de homenagear-lhe a memória, dando
o título de O sapo e a estrela à comédia de Jacques Deval.
A propósito desta nota, publicada na 1 ª edição, escreveu-me Andrade Muricy: "No que se refe
re ao esclarecimento que traz a menção por mim feita de uma peça intitulada O sapo e a estrela,
devo informar-lhe, sem mais insistir, que pessoalmente, da minha amiga, a cantora e decla
madora Violeta (Bebê) Lima Castro, a 'estrela' do 'sapo' Orlando Teixeira, recebi muito mate
rial referente ao poeta paulista. Doença grave e afinal mortal de João Luso, meu cornpanheiro
do Jornal do Commercio, impediu-me de controlar os possíveis excessos de subjetivismo da
musa do poeta. E coino be1n comprova, não levei além minhas pesquisas."
C A P Í T U L O IV f::;:;:;9 7 1
mais o seduzia na perspectiva de mudar-se para o Rio: não era a maravilhosa
paisagem da Guanabara nem a vertigem da vida civilizada numa metrópole;
era "poder conhecer e admirar de perto o grande estilista de Inverno em flor,
do jardim das oliveiras, enfim Coelho Neto". 1
Essa curiosidade d o provinciano seria facilmente satisfeita num passeio
à tarde, pelos pontos principais da rua do Ouvidor, que tanto surpreendeu o
herói da Capital Federal, de Coelho Neto, arrancando-lhe esta exclamação:
"Mas é um beco!..." Por esse beco passava tudo quanto o Rio literário possuía
de mais notável na época. Entretanto, uma desinteligência de Olavo Bilac com
o gerente da Confeitaria Pascoal, que ficava naquela rua, fazendo com que ele
trouxesse a sua roda para a Colombo, na rua Gonçalves Dias, deslocara algum
tanto a freqüência dos intelectuais do famoso beco. Na esteira de Bilac vieram
Dermeval da Fonseca, conhecido pela ironia mordaz e a erudição musical;
Emílio de Meneses; o padre Severiano de Resende, quando ainda não havia ti
rado a batina e usava-a com uma linda faixa de seda; Pedro Rabelo, sempre a
recitar o eterno soneto "A árvore", a fisionomia caracterizada pelo grosso pin
ce-nez de míope; Plácido Júnior, extremado na admiração por Bilac, a quem
chamava de excelso poeta; Guimarães Passos - as costeletas típicas, as polai
nas que lhe granjeavam prestígio mundano, os paletós justos -, tratando Bilac
i i de irmão e repetindo não raro o último verso do famoso soneto "O lenço":
Assim, aos poucos, todo mundo foi deixando a Pascoal. Oscar Lopes, "poe
1 : ta jovem, atleta, moreno como um turco"; Armínio de Melo Franco, irmão de
Afonso Arinos; José do Patrocínio, já no começo da enfermidade que devia
levá-lo ao túmulo; o filho Zeca, recém-chegado da Europa, "metido numa
sobrecasaca cor de cinza'' e contando histórias assombrosas; Alberto Ramos,
. : sempre empenhado em contrariar a opinião da maioria; Félix Bocaiúva,
que tendo ido à Europa como poeta e dali voltara sociólogo;2 e Martins
'
. '
1 '
'
1. 1-Iugo de Carvalho Ramos, "Correspondêncià', in Obras Completas, Cia. Editora Panorama,
São Paulo, 1950.
2. ]. C., A Confiitaria Colombo, hist6ria aned6tica, 1929.
CAPÍTU L O IV t:::A 7 3
Ao lado das figuras conhecidas nas letras, gravitavam artistas, desenhistas
e caricaturistas, como Crispim do Amaral, Calixto, Ricardo Casanova, Julião
Machadó, Bambino, Ramos Lobão, André Thoreau, Renato, Raul, J. Carlos;
não raro, gente de teatro, e também os que se esterilizaram na boêmia) cujo
talento fracassado os amigos vieram dizer depois que era grande, porque, na
realidade, constitui tradição da boêmia a crença de terem tido talento os que
dela fizeram parte. Fala-se dos admiráveis sonetos de Raul Braga, um dos mais
lamentáveis alcoólatras, chamando o amigo para um canto, recitando-lhe ver
sos e pedindo-lhe algumas moedas; fala-se do destino literário gorado de
às próprias palavras de Lima Barreto, na crônica "Os galeões do México" (Gazeta da Tarde,
20-5-1911), citada por Francisco de Assis Barbosa no livro A vida de Lima Barreto, pág. 131
(Livraria José Olympio Editora, Rio, 1952), fez com que dois ilustres críticos, Sérgio Milliet e
Wilson Martins, me atribuíssem um anacronismo por aludir ao uso do uísque entre os boêmios
do " 1900".
Mas é o próprio Lima Barreto quem fala e parece-me que ele tinha autoridade para informar
nos sobre o assunto. São suas palavras na referida crônica: "E bebíamos café, só café, pois as fi
nanças não penniti.�m o luxo da cerveja ou do uísque." Ta.inbém no Cemitério dos vivos {págs.
47-48), considerando as causas que o levaram à alcoolatria, conclui ele nestes termos: "( ... ) e eu
me aborrecia e procurava distrair-me, ficar n a cidade, avançar pela noite adentro, e assim co
nheci o chope, o uísque, as noitadas, amanhecendo na casa deste ou daquele." Será que o uísque
aí figura apenas como um eufemismo de cachaça? Em todo caso, se ele se refere ao uísque é
porque a bebida era familiar a muita gente na época.
Entretanto, René Thiollier, no livro Episódios da minha vida (Anhembi, São Paulo, 1956), re
montando ao ambiente literário do "1900", declara peremptoriamente: "O uísque ninguém o
suportava, no Brasil." Mas numa correspondência de São Paulo para o Correio da Manhã (17-
3-1907), encontro a notícia de uma desordem ocorrida durante o carnaval num clube, onde a
jeunesse dorée paulistana costumava tornar uísque e tentar a sorte na mesa verde.
E também Emílio de Meneses, no discurso de recepção na Academia, que não chegou a pro
nunciar e do qual reproduzo trechos no capitulo II, defendendo-se da pecha de boêmio, fala em
"confabulações inocentes", em que entrava certa dose de uísque e de água-de-coco. Podería
mos acrescentar ainda mais dois depoimentos, embora relativos ao fim do " 1900". No Diário
secreto, de Humberto de Campos (1.a volume), com data de 20 de abril de 1917, lemos o
seguinte: "Em uma casa de frutas um encontro: Oscar Lopes e Bastos Tigre bebem juntos um
uísque"; e a 23 do mesmo mês: "Alcides Maia que encontro quase todas as tardes, diante de
algumas tiras de papel e de tun copo de uísque, na terrasse da Sociedade Brasileira dos I-Iomens
de Letras."
Pois se os escritores bebiarn uísque em 1917, por que não havian1 de beber em 1911 ou anos
atrás? Decerto, não tanto c1uanro hoje, mas bebiam.
6. Raimundo de Meneses, Emílio de Meneses, O último boêmio (2ª ed.), Edição Saraiva, São
Paulo, 1949.
7. Veja-se, como exemplo, este soneto, intitulado «Requerimento engrossativo mas sincero -
Hino à dentada!", que Emílio de Meneses dirigiu a Manuel Lebrão, dono da Confeitaria Colombo,
; ;
que possuía extraordinária paciência com os literatos freqüentadores do estabelecimento:
8. Medeiros e Albuquerque, Minha vida, 2-2 vol., 2ª ed., Calvino Filho, Editor, Rio, 1934.
C A P Í T U LO IV bA 7 7
suficientemente originais. Depois apareceram os amigos dos estetas que,
em geral, desconhecem a estética, mas são bons rapazes."
Vê-s;, pois, que embora o estabelecimento fosse alemão, os intelectuais ali
se reuniam imitando Montmartre. As casas de chope proliferaram, na primeira
década do século, despertando a "rancorosa antipatià' de Artur Azevedo, que via
nelas um meio de distrair a freqüência dos teatros. Em 1 908, porém, já se acha
vam em decadência. "Outro dia, ao passar pela rua do Lavradio" - escreve o
autor do Cinematógrafo -, "observei com pesar que em toda a sua extensão ha
via apenas três casas de chope." E mais adiante: "Os chopes morrem. É como
vedor para quantos recordam a breve refulgência desses estabelecimentos."
Mas o que os intelectuais, os estetas, como os chamava João do Rio, ha
viam desejado durante muito tempo, fora um cabaré, um cabaré à moda do
Chat Noir e do Mirliton, onde pontificava a verve de Aristide Bruant, em
Montmartre. O Chat Noir tornara-se o mais ramoso dos cabarés parisienses
no jin de siecle, chegando a ter certa repercussão na literatura da época. Há to
da uma vasta cr6nica sobre ele e essas duas sílabas tão significativas aparecem
nas memórias de inúmeros escritores franceses, principalmente no diário de
Maurice Donnay. O Chat Noir passou mesmo a editar um pequeno jornal
com esse título sob a direção de Rodolfo Salis, no qual colaboraram grandes
j ;
figuras como Villiers de l'Isle Adam, Léon Bloy, Verlaine, Jean Moréas,
Laurent Tailhade, Jean Lorrain, etc. Todo o esprit montmartroís, esse produto
específico de Paris, ali florescia nas suas expressões mais típicas.
Num dos números da revista Kosmos, em 1904, Gonzaga Duque confessa:
"O cabaré foi a nossa grande aspiração. Se não o tivéssemos, estávamos desmo
ralizados, porque sujeitar-nos-íamos à vulgaridade do burguesismo." Era a as
'
. :
piração bem própria de um simbolista; queriam um Chat Noir brasileiro para
ali se reunirem, como haviam feito Verlaine, Moréas e tantos outros poetas,
desdenhosos da vulgaridade, em torno do absinto, num ambiente propício.
Procuravam debalde, na "turba dos especuladores", quem quisesse dotat
o Rio de um desses estabelecimentos, que seria para os '1estetas" algo semew
lhante a uma torre de marfim. Esperaram durante muito tempo até que um
dia surgiu a notícia: acabava de fundar-se no Rio um Chat Noir, exatamen
te nos moldes parisienses, tudo quanto havia de mais rive gauche, de mais
butte sacrée. A artista, dona do estabelecimento, apresentava-se travestida de
9. Eloy Pontes, A vida exuberante de OI.avo Bilac, Livraria José Olympio Editora, Rio, 1944.
C A P Í T U LO IV �79
maio daquele ano, escrevia ele: "Este é o modo de viver sensato, natural, na
opinião de todos, de um rapaz desocupado ou de um estudante em férias:
beber qÚalquer droga inferior que seja no Chat Noir."
Além dos cafés, as livrarias eram os pontos de reuniões dos escritores. E en
tre todas se destacava, como a mais freqüentada, e realmente a primeira, sob
qualquer aspecto, a Garnier. "A Sublime Portà' denominavam-se os umbrais
do famoso estabelecimento. ('Atravessá-là' - escrevia João Luso10 - "represen
ta já um primeiro êxito, qualquer coisa como transpor de um passo resoluto
e heróico o marco da estrada simbólica, pata aquém do qual tudo é obscuri
. '
1 dade, para além do qual tudo é consagração. Como geralmente se sabe e a to
1! do momento se repete, o grande público da rua do Ouvidor adota um siste
1; ma especialíssimo de satisfazer as suas necessidades de arte e de ideal. Foi ele
quem descobriu, pertence-lhe, nenhum outro público do mundo teria cora
gem de lho disputar. E aliás, nada mais fácil é o ovo de Colombo; cumpria, po
rém, tê-lo achado num momento de ditosa e radiosa inspiração. Consiste es
se magnífico sistema em avançar lentamente, despreocupadamente para os
i ; mostradores da Garnier; lancear pelos vient de parattre duramente apertados
na sua capa amarela e amontoados em colunas de inabalável solidez, um olhar
de quem apenas se distrai e não acha que pata outra coisa possam servir os li
vros e os autores; esbarrondar contra a vidraça duas ou três fumaças enérgicas
do cigarro que se ia apagar; e passar adiante a considerar com o mesmo des
fastio recreativo a vi trine dum ourives, duma modista ou dum merceeiro.''
"Ficar ali de perna trançada, o ombro contra o batente, as duas mãos soli
damente apoiadas no castão da bengala, eis a decisiva demonstração de talen
to ou de valor que a história exige para conscientemente se pronunciar. Parar
àquela soleira ilustre, é indicar aos séculos vindouros a atitude da própria
estátua; é posar para a posteridade. A Academia por ser exclusivamente de le
tras não pode dar, no seu seio restrito, lugar a todos os imortalizáveis; além
disso, dispõe apenas de quarenta cadeiras, em cada uma das quais se pode sen-
C A P Í T U L O IV � 8 l
piedade dos algozes ou de simpatia pelas vítimas... talvez compassividade
de quem duvida se vale a pena o sacrifício de tanta agitação estéril... Somente
lá distante, nos mostradores e armários, ele se afirmava na confiança serena
de seu gênio, naqueles volumes todos que trazem o seu nome e o levarão por
diante. . . Brás Cubas... Memorial de Aires... Vdrias histórias... Dom Casmurro... '11
Até pouco antes de recolher-se definitivamente ao leito para morrer, o ro
mancista não deixou de "assinar o ponto" na Garnier. Nos últimos tempos,
saía freqüentemente acompanhado por Mário de Alencar, de quem se separa
va no largo do Machado.
Mas havia outras rodas na Garnier: a dos simbolistas, que se uniam aos
anarquistas e socialistas, na mesma atitude de hostilidade ao autor de Quincas
Borba12 e na qual se agrupavam Gustavo Santiago, Rocha Pombo, Múcio
1 1 . Afrãnio Peixoto, A esfinge, pág. 341 (6ª ed.), Cia. Editora Nacional, São Paulo, 1940.
12. A propósíto, escreveu�me Andrade Muricy: "1Cndo freqüentado pessoalmente a todos os
intelectuais ali enun1erados, com exceção de Curvelo de Mendonça, creio poder assegurar�lhe
que não era uma antipatia etn cornum afinnada contra Machado de Assis que os reunia. Nem
mesmo era isso preocupação que desse na vista. Da parte dos simbolistas havia 'queixa', mágoa
pelo fato de Machàdo manter-se, não somente, como está no seu livro, 'acima das intrigas e
. i
dos mexericos peculiares aos círculos de escritores', porém alheio aos movimentos, que hoje
; ; sabernos terem sido perfeitamente legítimos, que vinham dar interesse mais complexo às nos
'
sas letras e até sincronizá-las com a sua contemporaneidade mundial, quando o Naturalismo e
• !
o Parnasianismo eram abalados pela brilhante falange dos simbolistas e dos impressionistas eu
ropeus, e aqui tidos por nefelibatas aqueles que encarnavam as novas tendências, cuja validade
nem sequer avaliavam aproximativamente. Reconheceu-o recentemente Alceu Amoroso Lima,
no seu Quadro sintético da literatura brasileira, quando escreve: 'Basta ver como o simbolismo
de 1890, ou mesmo de 1900, foi conservado à margem e os seus maiores representantes sis
tematicamente afastados da Academia, em 1897 (Cruz e Sousa estava então no auge de um
imenso prestígio em todo o território nacional, como documenta o meu Panorama), que pre
tendia ser, con10 quase foi - salvo esse erro capital dos maiores, como Machado de Assis ou
Joaquim Nabuco -, uma seleção de roda a elite intelectual da época. O simbolismo foi con
siderado, pela gerontocracia parnasiana, naturalista, ou simplesmente intelectual, coino sendo
uma minoria desprezível.' (Pág. 106.) O ressentimento dos simbolistas não era caso de an
tipatia ou de política literária, mas inevitável manifestação do próprio instinto de conservação.
Prova é que foi possível aos adversários dos simbolistas mantê-los num melancólico limbo até
nossos dias, quando ainda a crícica se não abalançou a um estudo sério de tantas e tão curiosas
personalidades, lirnitando-se a reconhecer, afinal, a extensão e a profundidade do movimento,
o que já representa um coineço da inevitável reabilitação, co1no quase sen1pre tardia para os in
justiçados. f necessário !ernbrar essas circunstâncias para não julgar aquela gente em função da
genialidade de Machado de Assis, mas da certeza de que se este se preocupasse com o aspecto
representativo da Literatura, eles e o movimento de repercussão mundial que aqui represen�
tavam poderiam ter tido um pouco de ar para respirar e um lugar ao sol."
13. Informação de Carlos Ribeiro.
C A PÍ T U L O IV � 8 3
Foi um tipo bem curioso de esquisitão, lembrando certos livreiros d o
cais d o Sena - remanescência pitoresca do Rio Imperial. Nascido na ilha
da Madei'ra, em 1840, veio para o Brasil muito jovem em busca de fortuna,
como tantos outros patrícios. Na terra natal já havia abandonado os estudos
depois do curso primário para dedicar-se ao comércio. Ao chegar ao Rio,
trazia apenas quatro libras no bolso, compensadas naturalmente por um
!inimo forte e a melhor disposição para lutar. Trabalhou primeiramente em
várias livrarias, como a de Cruz Coutinho e de José Maria de Lacerda; e n o
ano d e 1 871 se estabelecia com um pequeno sebo, à rua d o Parto (atual São
José), que já então centralizava esse gênero de comércio no Rio. Passou de
pois para a rua Uruguaiana e finalmente para a General Câmara, 345, onde
instalou a livraria na parte da frente, vindo a residir com a família nos fun
dos, no primeiro andar.
Ali se foram acumulando os volumes: raridades bibliográficas de toda espé
cie transbordavam das estantes, sob camadas de p6, em pilhas que dificulta
vam os movimentos dos fregueses. Dedicava-se João Martins de corpo e alma
ao estabelecimento, mas não encarava a profissão apenas pelo lado comercial;
tornara-se um grande entendido em assuntos bibliográficos e a ele recorriam
para resolver problemas dessa ordem muitos eruditos e pesquisadores. No sé
culo XIX tinham freqüentado a loja José Feliciano de Castilho, Castro Lopes,
Afonso Pena, Salvador de Mendonça, o visconde do Rio Branco e outros co
mo João Ribeiro, Rui Barbosa, Capistrano de Abreu, Leão Veloso, que nela
continuavam a ser vistos no começo do século XX.
Não somente livros velhos, como in-f6lios, manuscritos, se empilhavam
1
.
1
'
' :
'
j !
. '
'
. '
. '
. !
ÍTU LO V
11 lZt C
AP
1. Damos em seguida a lista dos intelectuais aos quais foram dirigidas circulares, convidando�
os para o plebiscito: Antônio Sales 1 Aderbal de Carvalho J Alvarenga Fonseca 1 Artur Dias 1
Alberto Silva 1 Alfredo Brito 1 Antônio Ausuegésilo 1 Alberto Ramos 1 Aníbal Amorim 1 A. S.
C AP Í TU L O V � 8 7
Em artigo de 12 de agosto n'A Imprensa, sob o pseudônimo de Antônio
Simples, José do Patrocínio Filho, provavelmente um dos promotores do em
preendi�ento, expunha o sentido da nova academia no "atual momento" da
literatura brasileira, procurando concluir do critério que deveria presidir à
eleição dos membros . Esse artigo é particularmente curioso pelo fato de já en
contrarmos reclamos de renovação em termos um tanto semelhantes aos que
iriam constituir mais tarde os slogans modernistas.
Num tom meio à la diable, Patrocínio procurava resumir a evolução literá
ria do Brasil, mostrando como havíamos passado do romanrismo para o par
nasianismo, deste para o simbolismo até aquele momento, no qual surgiam as
i '.
Castro Meneses 1 Agenor Carvoliva 1 Amorim Júnior j Álvaro Pais 1 Arlindo Leal 1 Agrippino
Grieco 1 Agripino Nazaré 1 Alcides Maia 1 Adelmar Tavares f Augusto dos Anjos 1 Adoastro de
i ! Godói 1 Abner Mourão 1 Álvaro Moreyra 1 Aníbal de Matos 1 Alberto Nunes 1 A. G. Cardoni 1
' ; Aristides Rabelo 1 Amaral Ornelas 1 Afonso Duarte de Barros 1 Álvaro Colás 1 Aloisío de Castro 1
Américo Facó 1 Afonso Lopes de Almeida 1 Alcibíades Furtado 1 Aluísio França 1 Araújo Jorge 1
Adernar Barbosa Romeu ! Artur T hiré 1 Álvaro Fontes 1 Arnardo Pereira ! Antero de Vasconcelos
1 Artur Lemos 1 Alfredo Gomes J Alfredo Sarandi Raposo 1 Afonso Duarte de Barros J Álvaro
Bomilcar 1 Augusto de Lima Júnior 1 Alfredo Guanabara 1 A. Gasparoni 1 Armênio Jouvin 1
Agenor de Roure [ B. Lopes 1 Bueno Monteiro 1 Batista Cepelos 1 Bolívar Bastos 1 Bandeira
Filho 1 Bastos Tigre j Barão de Paranapiacaba l Batista Júnior 1 Carlos Porto Carrero 1 Curveio
de Mendonça 1 Colarino Barroso 1 Chichorro da Gama 1 Celso Vieira 1 Cândido Campos 1
Costa Rego 1 Carlos Maul 1 Cipriano Lage 1 Carvalho Guimarães 1 C. Tavares Bastos 1 Carlos
Humberto 1 Carlos Leite 1 Cândido Binencourt 1 Costa Macedo 1 Castro Pinto j Constâncio
Alves 1 Cardoso de Oliveira 1 Cunha Mendes 1 Carlindo Lélis 1 Carlos Leal 1 Dunshee de
Abranches 1 Da Costa e Silva 1 Domingos Magarinos 1 Domingos Ribeiro Filho 1 Da Veiga
Cabral 1 Deoclides de Carvalho 1 Dario Leite de Barros 1 Demétrio de Toledo 1 Deodato Maia
1 Daltro Santos 1 Dias de Barros 1 Domingos Barbosa 1 Emílio de Meneses ! Ernesto Sena 1
Ernesto Luís de Oliveira 1 Evangelista da Silva 1 Elísio de Carvalho ! Eurides de Matos [ Ernâni
Rosas 1 Eugênio de Leios 1 Elói Pontes 1 Eduardo Nazareno 1 Eduardo Machado 1 Eduardo
Salamonde j Emílio Alvim 1 Edmundo Rego [ Euclides Teixeira 1 Farias Brito 1 Fausto Barreto
1 Fábio Luz 1 Félix Pacheco 1 Floriano de Lemos 1 Felipe d'Oliveira 1 Faria Rocha 1 Figueiredo
Pimentel 1 Floriano de Brito 1 Frota Pessoa ! Franco Vaz J Fortunato de Medeiros J Fernando
Soares Brandão 1 Francisco Guimarães ! Generino dos Santos 1 Gastão Bousquet j Gastão
Tibiriçá 1 Gusravo Santiago 1 Gonçalo Jácomo 1 Goulart de Andrade 1 Gusravo de Aguillar
Pantoja 1 Goulart de Oliveira 1 Gastão Rodrigues j Heznetério dos Santos j Heitor Modesto 1
Humberto Gottuzzo 1 Heitor Beltrão 1 Hermes Fontes 1 Holanda Cunha J Heitor Lima !
Hermeto Lima 1 Hélio Lobo ) Henrique Silva 1 Henri Leonardes J Homero Batista 1 Hugo Mota
1 Isaías de Oliveira j Isidro Nunes J Inácio Raposo / Isidoro de Castro 1 Jai1ne Guimarães 1 José
Vieira 1 J. Brito 1 Jacobino Freire 1 Júlio Salusse 1 João Luso \ Jaime Lessa 1 João Pereira
Barreto 1 José do Patrocínio Filho 1 Júlio Porto Carrero 1 José Mariano Filho 1 Joaquim Eulálio
1 José Oiticica 1 José Artur Boiteux 1 J. Barreiros 1 J. H. de Sá Leitão 1 Joaquim Viana 1 Jaime
Ferreira de Vasconcelos 1 Jorge Jobim 1 J. B. Macedo Guimarães 1 J. C. Delfino 1 João Neiva 1
J. J. César ! Joaquim de Sales 1 Lima Campos 1 Leal de Sousa 1 Luís Guimarães ! Luís de Castro
1 Leôncio Correia ! Luís Silva 1 Liberato Bittencourt 1 Leopoldo Brígido 1 Luís Edmundo 1
Ludovico Lins j Luís Pistarini 1 Lima Barreto 1 Luís Francisco 1 Ludgero Feital J Lafayette
Corres l 1.audeli no Freire 1 Lindolfo Xavier 1 Lindolfo Azevedo 1 Luís Loureiro 1 Leopoldino
Guimarães 1 Luís Mariano 1 Levy Autran 1 Mário Pederneiras 1 Múcio Teixeira 1 Maximiano
Maciel 1 Max Fleiuss 1 Manuel Duarte 1 Marques Pinheiro 1 Miguel Melo 1 Martins Fontes 1
Mateus de Albuquerque 1 Mário Guaraná J Morais Júnior 1 Mauro Pacheco 1 Mauro Carmo 1
Manuel Benício 1 Mário Pinto de Sousa 1 Miguel Monteiro 1 Miranda Rosa 1 Marcelo Gama 1
Mário Bhering 1 Mário Brant 1 Macedo Soares 1 Moreira Guimarães 1 Mário Bulhão 1 Mendes de
Aguiar 1 Melo Morais Filho 1 Morais Rego 1 Miguel Santos 1 Mário Hora 1 Maurício de Medeiros
1 Mário Gameiro 1 M. Monteiro 1 Mário Vilalva 1 Marcondes do Prado 1 Mário de Brito 1
Miguel Tavares 1 Nestor Vítor 1 Nogueira da Silva 1 Nazaré Meneses 1 Nuno de Andrade 1
Napoleão Reis 1 Noronha Santos 1 Norival Lemos 1 Osório Duque-Estrada 1 Oscar Guanabarino
1 Oscar Rosas 1 Oliveira Gomes 1 Oscar Lopes 1 Olegário Mariano 1 Osório Outra 1 Otaviano
Reinhelt 1 Otávio Silva 1 Óton do Amaral Henrique 1 Otávio Rodrigues 1 Otávio Tavares 1
Otaviano Nunes J Otávio Augusto J Oto Prazeres 1 Pedro do Couto ! Pereira da Silva [ Pinheiro
Viegas 1 Pena e Costa 1 Paulo Araújo 1 Pausílipo da Fonseca 1 Paula Chaves 1 Pinto da Rocha 1
Plínio Borgeco 1 Rocha Pombo 1 Raul Pederneiras 1 Rafael Pinheiro 1 Roberto Gomes 1 Ricardo
de Albuquerque 1 Rafael Holanda 1 Raul Maranhão 1 Rodolfo Machado 1 Reis Carvalho 1
Rubem Tavares 1 Raul Cintra 1 Solfieri de Albuquerque 1 Serafim França 1 Sebastião Sampaio 1
Sílvio Romero Filho 1 Tibúrcio de Freitas [ Tito de Barros 1 Teófilo de Albuquerque 1 Tomé Reis
1 Teodorico de Brito ! 'feixeira Mendes 1 Ternudo Lessa j Teixeira e Silva 1 Teotônio Torres [
Ulisses Sarmento 1 Uldarico Cavalcanti j William Schow 1 Virgílio Várzea j Vieira Fazenda 1
Vítor Viana j Vitorino de Oliveira 1 Virgílio Domingues 1 Xavier Pinheiro.
C A P Í T U L O. -Y l;;:P9 8
.. .
9
a pudéssemos ver sob todos os seus aspectos?". Não. Já estavam chegando ou
tros P?etas, outros escritores ) enriquecendo de uma seiva nova nossa literatu
ra. E apontava alguns deles numa identificação que não seria na totalidade dos
casos ratificada pelo futuro. Pois se o autor acertava ao reconhecer o talento
nascente de Marcelo Gama, de Alcides Maia, de Humberto de Campos, o con
tingente que eles vinham trazer para as letras brasileiras aludia igualmente a
Domingos Ribeiro Filho e Alfredo Sarandi Raposo, a João Pereira Barreto, no
mes de que a posteridade não romaria conhecimento.
Mas, nessa hora de efervescência intelectual, como decidir? Quem saberia
,,
dizer quais '<os legítimos representantes do momento ) talvez o mais intenso
que a literatura brasileira até então atravessara? "Pórtico da última consagra
ção das nossas letras" - concluía Patrocínio -, "a nova academia devia re
presentá-lo escrupulosamente, para que não falhasse o pensamento que a ins
,,
tituíra. Era preciso que os novos acadêmicos traduzissem de fato as várias
correntes literárias daquela hora. Mas quais seriam eles? That is the question... ,
: ! : limitava-se a conjeturar o escritor.
O pleito realizou-se na data marcada, 1 1 de agosto, presididos os trabalhos
por uma mesa eleita por aclamação, composta de Xavier Pinheiro, Carlos
; ;
Maul e do "jovem poetà' Agripino Grieco. Foram levantadas várias prelimi
'
nares, suscitando fortes discussões entre José do Patrocínio Filho, João Pereira
• !
Barreto, Alberto Nunes e outros.
A votação decorreu num ambiente agitado, sob o rigoroso controle da assem
bléia, sendo eleitos para a comissão apuradora os escritores Bueno Monteiro,
Plínio Borgeco, Antero Vasconcelos, Jacobino Freire e Da Costa e Silva. O re
sultado foi o seguinte: Bueno Monteiro - 31 votos; Emílio de Meneses -
sários não compareceriam, versão rejeitada por alguns no que se referia a Patrocínio Filho.
Jamais deixaria ele de comparecer; não era aquele seu primeiro duelo, já tivera ocasião de se
bater em Paris.
O repórter prossegue carregando nas tintas. A noite decorria tenebrosa, bem à feição dos dra
malhões. No Café Suíço aguardavam a madrugada. Entrara a chover, a inquietude aumentava.
Eis que, por volta das quatro horas, surge um automóvel amarelo, dentro do qual se distingue o
. l '
1 '
vulto de Patrocínio, em companhia das testemunhas. Salta do carro, dirige-se à redação d'A
:1 .
!! Imprensa, situada nas imediações do Café Suíço, apanha um embrulho, e retorna ao veículo, que
' !
parte a roda velocidade. Os repórteres tomam outro carro e procuram segui-lo, mas perdendo-o
' ; de vista, continuam na direção da zona sul, onde devia efetuar-se o encontro. No caminho são
abordados por uma viatura da polícia e interrogados a respeito do duelo, sobre o qual não sabem
dar informação alguma. No momento em que chegam a Ipanema também ali aparece um auto
transporte da guarda-civil, trazendo o delegado Solfieri de Albuquerque. A polícia e os jornalis
tas dão batida por vários recantos do bairro, sem conseguir localizar os contendores.
i ;
Finalmente no Leme surge a figura misteriosa de Patrocínio Filho (e aqui a reportagem con
'
tinua com ar de narrativa cada vez mais rocambolesca). Intervém o agente Lima, da polícia, e
Patrocínio acaba encaminhando-se à delegacia a fim de dar explicações ao dr. Eurico Cruz. Lá
declara apenas que fora a Ipanema para uma ceia, com um amigo recém-chegado da Europa,
não havendo cogitado de duelo algum. O delegado se satisfaz com as explicações e o pseudo
espadachim retira-se burguesmente à casa. Tudo seria motivo de riso nessa história se Américo
Facó, que vinha no automóvel de Solfieri de Albuquerque, não fosse vítima de um ligeiro aci
dente numa curva apertada em Botafogo.
A mistificação de Patrocínio Filho, porém, ia até o fim. A reportagem concluía da seguinte for
. '
' ma: os contendores não pareciam ter-se dado por satisfeitos nem resignados com a intervenção
policial "como desabafo de suas sensibilidades". Aludindo a esse duelo, no livro A vida deLima
Barreto, Francisco de Assis Barbosa empresta a Ferreira de Vasconcelos o título de cônsul.
Houve pequeno equívoco no caso. Ferreira de Vasconcelos era simplesmente jornalista, nunca
tendo andado pelos arraiais do ltamarati.
No seu livro O fabuloso Patrocínio Filho (Editora Civilização Brasileira, Rio, 1 957), Magalhães
Júnior mostra-nos que Patrocínio não desistiu de bater-se em duelo com Vasconcelos, con
seguindo o e1nprazamento de um novo duelo que foi realizado a 16 de agosto, no bairro da
Alegria, segundo uma reportagem d'A Imprensa. '!focaram tiros de pistolas, passando as balas a
silvar sem tocar nenhum dos adversários. Ficou assim satisfeito o princípio de honra, sendo
aceita a reconciliação proposta pelos padrinhos.
CAPÍTULO V � 9 3
aristocracia intelectual? (Item do art. 32.) Tornava-se necessário precisar, antes
de tudo, o que se devia entender por aristocracia intelectual no caso. E que sig
nificava o item J do art. 32: "Esforçar-se pelo estabelecimento de um processo
moral e fecundo de crítica, principalmente pela exemplificação, quando exer
cida por qualquer um dos seus membros"? Coisa vaga e confusa que não podia
traduzir-se em termos de ação prática. Vários artigos dispunham sobre os só
cios efetivos, honorários, correspondentes e beneméritos. Na categoria dos efe
tivos seriam incluídos os autores literários, dramáticos, líricos e mais - dispo
sição curiosa - "os publicisras com forma literária em livro ou jornal" cujos
trabalhos fossem profissionalmente remunerados. Havia também um artigo es
tatuindo que o sócio não poderia vender a propriedade de suas obras sem pré
vio assentimento da diretoria, importando a infração deste dispositivo na eli
' '
' minação definitiva do sócio, sem direito de regresso ao grêmio.
Na primeira reunião preparatória, realizada numa das salas da Sociedade
' : Rio-grandense do Sul, na avenida Rio Branco, Oscar Lopes declarou que a
i ; idéia já havia sido agitada alguns anos antes por Costa Rego, Goulart de
Andrade, Sebastião Sampaio, e mais remotamente ainda, em 1890, segundo
informação de 'Gastão Bousquet. Lima Barreto, que havia descoberto os esta
tutos dessa última, se dispusera, gentilmente, a oferecê-los aos fundadores da
nova agremiação, mas Oscar Lopes não tivera a ventura de recebê-los e consi
derava-os extraviados.
Francisco de Assis Barbosa3 alude a uma carta publicada no Correio da
Noite (18-6-1914) em que Patrocínio Filho informa ao redator achar-se de
posse dos estatutos da sociedade, enviados pelo "eminente beletristi' Lima
Barreto. Devia tratar-se, naturalmente, desses estatutos antigos que Oscar
Lopes julgava terem-se extraviado e que vieram servir de modelo, talvez, para
os da Sociedade dos Homens de Letras, reproduzidos no Jornal do Commercio
de 5 de julho de 1 9 1 4. Dá-nos ainda a entender Francisco de Assis Barbosa
que Lima Barreto pretendia ocupar o cargo de bibliotecário da nova entida
de, por isso se batera pela criação do mesmo durante a eleição da primeira di
retoria. Essa diretoria ficou constituída da seguinte forma: presidente efetivo
3. Francisco de Assis Barbosa, A vida de Lima Barreto, pág. 218, Livraria José Olympio Editora,
Rio, 1952.
CAPÍTULO V � 9 5
. . i '
1 ·:����������������������������
; 1 ! -
; i
. i
. '
'
. '
1 !
. :
'
. '
. '
Ü [QJ D IOJ
ll i$t C A P Í T U L O VI
CAPÍTULO VI � 9 7
A questão de uma literatura do Norte em oposição a outra, do Sul, que
Franklin Távora já havia agitado sem ter encontrado verdadeiro apoio, ressur
ge de novo em 1 89 1 , nos jornais do Rio. Mas convém notar que o termo sul
no caso não indicava precisamente a literatura dos estados sulinos, e sim a que
vicejava no Rio, sob o bafejo da metrópole, embora realizada por filhos de ou
tras regiões do Brasil, mesmo de nordestinos. Tal era o ponto de vista de
Távora quando atacara José de Alencar.
No começo do século, o desenvolvimento dos centros literários nos esta
dos continuava a pôr em foco o problema da criação de literaturas à parte.
Tanto assim que João do Rio fez disso um dos quesitos do Momento literdrio.
Quase todos os escritores interrogados negaram a possibilidade de tais litera
turas. Alguns chegaram mesmo a referir-se com uma ponta de ironia às agre
. l ''
1 miações estaduais, achando que fora do Rio continuava a não haver salvação
! 1
1 : '' literária possível no Brasil.
1 ', ; No entanto, depois da Padaria, no Ceará, e da Mina, no Pará, em 1892 e
1 894, respectivamente, as agremiações e as academias não cessavam de surgir
pelos estados, num crescente esforço de criar uma atmosfera literária e possi
bilidades de ê�Íto no mundo das letras aos que se recusavam ou não podiam
buscar a consagração na rua do Ouvidor.
O Ceará sempre foi o estado do Brasil onde mais floresceram as academias
'
\ literárias. A primeira delas, a Fênix Estudantil, fundada em 1 870, deu origem
à Academia Francesa, que sofreu os reflexos da "escola de Recife'', através de
Rocha Lima. Desde então, as associações literárias ali se multiplicaram.
De um dissídio entre os "padeiros", membros da Padaria Espiritual, resul
'
1 tou a fundação do Centro Literário, cuja existência verdadeiramente ativa vai
1
de 1895 a 1 905. "O Ceará não pára, o Ceará não cansà' - escrevia Valentim
Magalhães, referindo-se principalmente a essa agremiação, que editou livros e
'
revistas, a exemplo da Padaria. Paralela ao Centro, influiu também, poderosa
'
' mente, na vida literária do estado a Academia Cearense, cuja primeira fase vai
'
de 1 894 a 1922. E outras agremiações de menor importância podem ser assi
i
'
i ! naladas, como a Plêiade, cuja primeira reunião se deu em agosto de 1908,
'
na casa do poeta Alfredo Castro. Visitando o Ceará, no fim do século XIX,
Aderbal de Carvalho anotava: "Nesse estado a literatura j á chega a ser uma
i mania. Não há cearense que não rabisque o seu conto."
l. Pedro Calmon, História da literatura baiana, Livraria José Oly1npio Editora, Rio, 1949.
CAPÍTULO VI � 9 9
uma cor simbólica. Afrânio Peixoto era renille-saftan-passé e Juliano Moreira,
'(jaspe verdolengo".
Em maio de 1901 fundou-se a Nova Cruzada, que chegou a constituir um
dos movimentos literários mais consideráveis naquele estado. Iniciou-se com
um agrupamento de estudantes boêmios, reunindo-se no adro da Catedral.
Com o decorrer do tempo, as reuniões se foram efetuando ora numa alfaiata
ria por detrás da Catedral, ora no Liceu de Artes e Ofícios, ora na Associação
Tipográfica ou na Associação dos Empregados do Comércio. Em setembro de
1 9 1 O possuía afinal estatuto, sendo os sócios classificados em três categorias:
neocruzados, cavalheiros de honra e cavalheiros beneméritos. Da Nova Cruzada
fizeram parte muitos simbolistas como Francisco Mangabeira, Pedro Kilkerry
e Carlos Chiacchio, que no período modernista ia exercer grande influência
i ; nos "novos1) baianos da época.
i ! Em 1 906, Sílio Bocanera ] únior criava em Salvador a Ateneida Baiana,
' :
' ;
por ele considerada a primeira grande tentativa no sentido do levantamento
das artes e ressurgimento do teatro na Bahia; instituição de caráter literário,
a ela seriam anexadas duas escolas de ensino público, teórico e prático, sob a
denominação de Conservatório Dramático e Musical, com o objetivo de for
mar artistas nacionais dramáticos, musicistas e cantores. Uma organização,
como se vê, muito ambiciosa, unindo aos objetivos de uma academia de letras
empreendimentos didáticos, à semelhança do que já se dera no Ceará.
'[
A Ateneida Baiana não passou, no entanto, de um ideal sem conseqüência.
Quatro anos depois, fundava-se a Academia Baiana de Letras, de vida efême
ra, embora tivesse realizado algumas sessões públicas, uma das quais em co
memoração ao primeiro decenário da morte de Zola.
Em dezembro de 1901, um grupo de intelectuais, tendo à frente Olinto
de Oliveira, fundava a Academia Rio-grandense de Letras, com o objetivo de
incentivar o estudo da literatura gaúcha, a história, a biografia, a bibliografia.
A sessão inaugural realizou-se no dia 1 O de maio de 1 902, no Clube do
Comércio de Porto Alegre, sendo o primeiro presidente o próprio Olinto de
Oliveira. As cadeiras eram em número de vinte e cinco. Mas a agremiação du
rou menos de um ano, não chegando a realizar nada de prático. Em junho de
1 9 1 O ressurgia com o nome de Academia de Letras Rio-grandense do Sul,
constituída de quarenta cadeiras. Na instalação solene, na Associação dos
1
,1
1 OO � cA Vida Literária .no Brasil
1
Empregados no Comércio, pronunciava o discurso inaugural o escritor Pinto
da Rocha.
Em 1 90 1 surgia a Academia Pernambucana de Letras. E em 1904, em
Goiás, já se fundava também uma academia da qual encontramos ligeiras no
tícias no Almanaque Garnier do ano seguinte. Intitulava-se Academia de Goiás
e compunha-se apenas de doze cadeiras, seis das quais ocupadas por Joaquim
Bonifácio, Acrísio da Gama e Silva, Augusto Rios, Leopoldo de Sousa, Marcelo
Silva e pela senhorita Eurídice Natal. Enquanto a Academia Brasileira, fiel ao
modelo francês, fechava as portas às mulheres, a modesta congênere de Goiás
não só admitia uma mulher como a elegia, por aclamação, presidente do cená
culo, cabendo as funções de secretário perpétuo ao poeta Joaquim Bonifácio.
A instalação da Academia e a posse da diretoria efetuaram-se, cabendo à pre
sidente fazer o elogio de Bartolomeu Bueno da Silva, o Anhangüera. Finda a
sessão solene, seguiu-se um grande baile oferecido pelos acadêmicos à senho
rita Eurídice Natal.
Em novembro de 1 909, depois de uma tentativa frustrada em 1907, ins
tala-se a Academia Paulista de Letras. Sua fundação foi precedida de acirrada
polêmica entre Vicente de Carvalho, Simões Pinto e Roberto Moreira, que se
manifestavam contra a idéia, e Amadeu Amaral e ]. J. de Carvalho, que a de
fendiam. Ficou decidido que dela não poderiam fazer parte os que já perten
ciam à Academia Brasileira. Admitiram-se também mulheres, mas as poetisas
Francisca Júlia, Zalina Rolim, juntamente com Alfredo Pujo!, Franco da Rocha
e padre João Gualberto, declinaram do convite à imortalidade, enquanto
Batista Cepelos não seria convidado, sob o pretexto de que já não residia em
São Paulo e sim no Rio.
Ao contrário de todas essas agremiações, a Academia Mineira de Letras
não foi fundada na capital do estado. Por iniciativa de Machado Sobrinho, vá
rios intelectuais lançaram-lhe as bases em Juiz de Fora, onde, a 25 de dezem
bro de 1909, se celebrou a primeira sessão - sessão monstro, que se inician
do às sete horas da noite se prolongou até às onze. Discutiram-se os diferentes
artigos dos estatutos e foram rejeitados justamente os que preconizavam a
adoção da ortografia simplificada e a criação de uma escola de jornalistas -
duas realizações de nossos dias. Os acadêmicos eram a princípio em número
de trinta, e em 1910 passaram a ser quarenta. Houve logo depois uma nova
CAPÍTULO VI � l 0 I
sessão, esta definitivamente inaugural, com grande pompa e traje a rigor, efe
tuada no Teatro de Juiz de Fora.
Sílvio Romero, que então residia naquela cidade, acompanhou com muito
interesse os trabalhos da academia, assistindo a várias reuniões e dando-lhe
apoio moral, denotando ainda uma vez, com essa atitude, ser o homem que
sempre lutara contra a ditadura da metrópole em nossas letras. No prefácio pa
ra um livro de Albino Esteves, reconhecia como excelente a idéia da fundação
dessa academia, almejando que os outros estados do Brasil seguissem "tão ale
vantado exemplo". Defendia-se da acusação injusta, que por vezes lhe fàziam,
de não haver dado entrada em seus escritos a certos e determinados autores
provincianos, explicando: "Na História da literatura brasileira", nos Estudos
sobre a poesia popular no Brasil, nos Novos estudos, nos Outros estudos de lite
ratura contempori!nea, nos Ensaios de sociologia e literatura e em Provocações e
debates aparecem em profusão os escritores das províncias. Se algum mereci
' :
' : mento me pode caber como crítico e historiador literário é ter sido sempre o
defensor constante dos talentos provincianos contra a estreiteza de espírito
revelada pelos criticalhos do Rio, no menosprezo sistemático que têm por nor
ma contra todos os que não fazem parte da panelinha de elogio mútuo, em
que se dessoram a si próprios e fazem moer quantos lhes são adversos, nomea
damente os bons escritores provincianos." Era portanto uma causa muito sua,
podia acrescentar, essa cuja vitória se ia aos poucos prenunciando.
Mas a lura continuava a ser desigual. "Centros literários nos estados parece
pilhérià' - respondia Luís Edmundo a João do Rio, no "Momento literário''
-, "quando o próprio país não pode criar ainda um centro de literatura à par
te. Nós temos, é verdade, no Paraná, em Minas, em São Paulo, no Maranhão
e na Bahia, facções literárias com moços de bastante talento, mas não é crível
que eles formem núcleos característicos capazes de determinar centros de lite
ratura à parte. De resto, os olhos estão todos voltados para o Rio... "
E seria preciso ainda muito tempo para que essa hegemonia da metrópole
ficasse seriamente abalada e os estados passassem a constituir células mais ou
menos independentes, como só hoje está acontecendo em alguns deles.
,.
1
I O 2 t;A u1 Vida Literdria' no Brasil
VII
li <Z> C A P Í T U L O
Escândalos na Academia -. LA eleição de Mdrio de Alencar -.
Oswaldo Cruz e o critério dos expoentes """" Oposição a Lauro Müller -.
LA renúncia de José Veríssimo """" f2J:±ando o presidente Afonso Pena
ouviu o que não lhe agradou
C A P f T U L.P-� Y _l.I � l 0 3
grande, e Domingos Olímpio, com todo o mérito literário que lhe reconhe
ciam, nãp lhe conseguiria fazer frente.
Foi justamente o que se verificou. A eleição realizou-se no dia 3 1 de outu
bro de 1905, sendo disputada por mais um candidato: o padre Severiano de
Resende. Mário de Alencar obteve dezessete votos; Domingos Olímpio nove
e o padre Severiano de Resende apenas um. Machado de Assis foi acusado de
se haver esquecido propositadamente de apurar o voto de Oliveira Lima a fa
vor de Domingos Olímpio. Convém declinar os nomes dos votantes de cada
um dos candidatos, pois revelam de maneira muito significativa como se de
senvolveu a cabala. Em Mário de Alencar votaram: Machado de Assis,
Salvador de Mendonça, Lúcio de Mendonça, Araripe Júnior, Rodrigo Otávio,
Silva Ramos, João Ribeiro, Alberto de Oliveira, Raimundo Correia, Sousa
Bandeira, Magalhães Azeredo, Graça Aranha, Domício da Gama, Rio Branco,
Euclides da Cunha, Joaquim Nabuco e Garcia Redondo. Em Domingos
Olímpio votaram: José Veríssimo, Coelho Neto, Olavo Bilac, Guimarães
Passos, Alcindo Guanabara, Inglês de Sousa, Artur Azevedo, Filinto de
Almeida e Clóv.is Bevilaqua. O padre Severiano de Resende teve o voto de seu
coestaduano, o conde Afonso Celso.
Como se vê, toda a "panelinha" de Machado de Assis trabalhada pela
influência de Rio Branco bandeou para o lado de Mário de Alencar. Houve
apenas uma exceção: José Veríssimo; o que veio mais uma vez pôr à prova
a extraordinária independência do crítico. Embora intimamente ligado a
Machado de Assis, sendo das principais figuras de seu entourage, não recuou
ante a contingência de fazer-lhe oposição nesse caso. Quanto a Silva Ramos,
João Ribeiro, Alberto de Oliveira, Raimundo Correia, Sousa Bandeira e
Garcia Redondo, que não pertenciam à ('panelinhà', votaram, naturalmen�
te, por motivos afetivos ou por qualquer outra razão extraliterária. Não
é de crer que algum deles julgasse a obra de Mário de Alencar superior
à de Domingos Olímpio. A favor deste ficaram, com exceção de Veríssimo,
os que não tinham ligações com o grupo "machadiano", do qual sempre
viveram afastados boêmios como Guimarães Passos, Artur Azevedo e o pró
prio Olavo Bilac.
A derrota do romancista de Luzia-Homem provocou vários protestos na
imprensa. O Correio da Manhã (2-1 1-1905) foi um dos jornais que mais ata-
,1
1 I O 4 !:;:;:;9 cA Vida Literdria''tzo Brasil
caram a Academia pelo resultado da eleição, deslocando o caso algum tanto
para o terreno político e aproveitando a oportunidade para atingir o barão
do Rio Branco. Considerava a vitória de Mário de Alencar como resultado ex
clusivo da influência do chanceler, que havia posto em campo seus lugares-te
nentes José Pereira da Graça Aranha e Domício da Gama na tarefa de caba
lar votos. Tudo isso por quê? Porque - dizia o grande órgão da oposição -
Rio Branco jamais se convenceria de que Domingos Olímpio não tinha sido
o autor de uns artigos editoriais, n'A Notícia, sobre sua política na questão do
Acre. 1 E terminava a nota nos seguintes termos: julgasse o público a diferen
ça que havia entre as eleições da Academia e as do 2º Distrito da capital. Tinha
a Academia direito ao prestígio, a importância que reclamava, no momento
em que preteria o mérito legítimo de um mestre por um jovem poeta funcio
nário da Secretaria da Câmara? Era o caso de dizer-se, como no Quincas
Borba, "Ao vencedor, as batatasr'.
Na seção "O dia" d' O País (1-1 1 - 1 905), Alcindo Guanabara, que havia vo
tado em Domingos Olímpio, protestava com menos virulência, mas com
a mesma energia. Reconhecendo em Mário de Alencar "um moço de talento",
julgava-o muito longe de poder comparar-se em merecimento, instrução, ca
pacidade e serviços com o velho jornalista, o cronista fulgurante, o romancis
ta nacional que era por excelência Domingos Olímpio. A injustiça tornava-se
flagrante, clamorosa, e Alcindo Guanabara sentia-se no dever de registrá-la,
justamente por ser a primeira vez em que contra as eleições da Academia se
podia formular um protesto cujo fundamento toda a população culta do
Brasil devia apreciar. Recordava-se do caso de João Ribeiro, declarando pou
co antes da eleição: "Presume-se que a Academia é uma consagração pelos tra
balhos feitos. Aqui não é lugar dos que principiam."
Deduzindo das palavras do autor de Pdginas de estética, concluía Alcindo
Guanabara, que entre os dois candidatos não poderia haver hesitação: Domingos
Olímpio acabava "uma longa vida de publicista e romancistà', portador de um
nome que, malgrado o voto da Academia, continuaria a ser respeitado.
1 . Em carta a Frederico Abranches, datada de 7 de agosto de 1 902, Rio Branco referia-se ao au
tor de Luzia-Homem corno "o capadócio Domingos Ol., capaz de todas as perfídias e moleca
gens". Apud Álvaro Lins, Rio Branco, pág. 753, Livraria José Olympio Editora, Rio, 1945.
CAPÍTULO V I I � l 0 5
Da imprensa dos estados vieram igualmente protestos. Uma correspondên
cia de Heitor Lima para o Progressista de Minas Gerais (5 de novembro de
1905) �tribufa o resultado do pleito à "panela da rua do Ouvidor", ou, mais
precisamente, da Casa Garnier. Como Domingos Olímpio não era homem de
rodinhas literárias, fora preterido. Bastava freqüentar a Garnier para um "escri
tor implume" derrotar um "velho e acatadíssimo literato". Domingos Olímpio
não tivera maioria de votos na Academia dos Imortais, mas contava com a
unanimidade deles no país que o admirava, o consagrava, o imortalizava. Na
Tribuna de Petrópolis, João de Deus Filho também exprimia veemente repro
vação ao ato da Academia, formulando, no entanto, a esperança de que ain
da se reabilitasse, concedendo por unanimidade a Domingos Olímpio o que
agora lhe negava.
Se o autor de Luzia-Homem tivesse vivido mais tempo, talvez conseguisse
entrar para a Academia numa das próximas eleições. Mas ele morreria, repen
tinamente, logo no ano seguinte.
' :
' "'
gando a criar uma atmosfera de crise, foi a eleição de Lauro Müller em 1 9 1 2.
,, Desta vez tratava-se de alguém que não era escritor e nem possuía livro publi
cado, como exigiam os estatutos. Para atender esse último requisito, teve o can
didato de mandar editar em volume um discurso. Medeiros e Albuquerque,
que fiscalizou a impressão do trabalho em Paris, diz haver escolhido o papel
mais grosso e os tipos maiores, não conseguindo assim mesmo fazer com que
o "livro" ultrapassasse as proporções de um simples folheto. Lima Barreto, co
mentando sarcasticamente o fato, dizia que o discurso fora impresso em pape
lão e letras garrafais. Mas quanto à circunstância de não se tratar propriamen
te de um escritor, já havia precedentes na Academia. Joaquim Nabuco
invocara pela primeira vez o critério dos expoentes - a exemplo do que se da
va na Academia Francesa - ao defender a candidatura do almirante Jaceguai
em 1 907, e Jaceguai foi eleito. Depois, em 1909, pelo mesmo critério, con
seguiu eleger-se Lafaiete Rodrigues Pereira, a quem não se podia negar, no en
tanto) de maneira absoluta, a categoria de escritor. Também escritor seria o
2. Academia Brasileira de Letras, Discursos acadêmicos, vol. II, Civilização Brasileira, Rio, 1935.
C A P Í T U LQ Y, I I 6::A l O 7
. .
sem forma literária, isto é, incorporação perfeita do pensamento, não se com
preende a verdadeira ciência. Achava mesmo que a Academia devia reservar
quatro lugares para as sumidades de toda ordem, ainda que estranhas às ciên
cias e às letras. No entanto, quando lançada a candidatura de Lauro Müller,
ministro do Exterior, nesse mesmo ano de 1 9 12, Salvador de Mendonça foi um
dos primeiros a combatê-la. Apesar das precárias condições de saúde em que
se encontrava, diligenciou-se no propósito de evitar essa vitória eleitoral, que,
na sua opinião, decidiria a sorte da Academia. Escreveu a Rui Barbosa pedin
do-lhe apoio, e Rui secundou-lhe o esforço, cabalando contra Lauro Müller.3
O candidato que concorria com Lauro era o barão de Ramiz Galvão, então
diretor da Instrução Pública. José Veríssimo foi seu mais aguerrido defensor.
3. As três cartas
que abaixo reproduzimos, do Arquivo da Casa de Rui Barbosa, dão bem idéia
; ! do empenho com que Salvador de Mendonça combateu a candidatura de Lauro Müller.
' !
'
"268, rua Marquês de São Vicente.
eleição, em que se tem de prover a vaga do b. de Rio Branco, a questão se vai estabelecer entre
os nomes de Ramiz Galvão e Lauro Müller.
Este, evidentemente, não seria candidato, se não fosse ministro, contando, como tal, com as
fraquezas da época e com os votos coactos de oito ou dez diplomatas ou parentes de diplomatas
nossos, que nessa corporação têm assento. Aquele se recomenda por excelentes serviços às le
tras, e só não pertence à Academia desde a sua fundação porque não quis. Sendo assim que se
põe o litígio, a vitória da candidatura seria, a meu ver, um triste sintoma do tempo e um golpe
na reputação da Academia.
Não sei como pensará o meu eminente confrade e amigo. Mas, se me acha com razão, rogo-lhe
não parta para a Europa, sem me enviar, escrito, o seu voto, que poderá decidir o pleito.
Nesse caso, aceite desde já os agradecimentos do seu am11 e ccfl obr.o.
a) Rui Barbosa."
CAPÍTULO VII � 1 0 9
vro foi injusto com Sílvio Romero, dedicando-lhe apenas três linhas, e não
conseguimos desligar tal procedimento da mágoa que lhe teriam causado os
ataques b rurais de Sílvio. De onde nossa hesitação em repelir por completo a
afirmativa de Afrânio.
Afinal, a vitória de Lauro Müller fez com que Veríssimo renunciasse ao
cargo de secretário-geral da Academia, nunca mais ali comparecendo apesar de
reeleito e das instâncias do próprio Afdnio, de Mário de Alencar e Oliveira
Lima, que procuravam debalde trazê-lo de novo à grei. Um rompimento de
finitivo selado com uma frase candente: "Deixemos que a Academia se faça à
imagem da sociedade a que pertence."4 Mais tarde, quando morreu Lauro
Müller, em discurso proferido na Academia em 1 3 de agosto de 1926,
Medeiros e Albuquerque relembrou as reações provocadas por esse pleito.
; ;
proporcionou ensejo de prestar a V. Ex. um pequeno serviço, estivesse de acordo com o desejo de
' :
'
V Ex. e lhe dê gosro. Subscrevo�me de V. Ex. at!.l Venerador e confrade, Vicente de Carvalho."
Recebendo a comunicação de Rui Barbosa do bom êxito das démarches, Salvador de Mendonça
mais uma vez lhe �screvia:
' 1.
'
1
I I O � LÁ Vida Literária no Brasil
1
Declarou que Lauro era realmente o tipo expoente, julgando não ser isso
motivo para que não fosse eleito. Devia haver lugar na Academia para os
expoentes. Além do mais, tratava-se de um homem de espírito, admirável
causeur e que se quisesse fazer literatura tê-la-ia feito com superioridade, co
mo fizera durante muito tempo jornalismo.
Além desses dois casos criados por eleições acadêmicas, registraram-se
dois escândalos naquele "augusto sodalício'' em recepções de imortais. O
primeiro verificou-se na noite de 1 8 de dezembro de 1 906, sob o olhar aus
tero de Machado de Assis.
Era a posse de Euclides da Cunha, recebido por Sílvio Romero. Não se
esperava, naturalmente, da parte deste último um discurso puramente lite
rário. Familiar de nossos problemas e egresso da política, jamais perderia a
ocasião, ao defrontar-se com um dos grandes intérpretes da realidade brasi
leira, para tocar no cerne vivo dessa realidade. E foi justamente o que se deu;
mas Sílvio Romero, como por vezes lhe acontecia, ultrapassou certos limi
tes impostos pelas exigências sociais e protocolares da cerimônia. Achava-se
presente o presidente Afonso Pena, dando com isso honra não muito co
mum naquele tempo à Academia. O discurso de Euclides, que se encontra
reproduzido no livro Contrastes e confrontos, foi uma peça equilibrada e jus
ta. Ergue-se Sílvio Romero e começa a fazer o elogio do recipiendário, a
mostrar o que Os sertões representa em nossa literatura; e depois de longas
explanações passa a relacionar esse testemunho dramático de Euclides com
a realidade atual do país. Toca no problema do café e acusa: ''A singular ru
biáceà) - incrível fato! - "dá hoje para enriquecer com milhões as casas
importadoras do Havre, Hamburgo, Londres, Nova York e as filiais expor
tadoras que aqui montaram, além dos grandes torradores estrangeiros, e só
não chega para enriquecer quem a produz: o fazendeiro nacional reduzido à
miséria com a agravação dos impostos ... " Já era crítica direta ao governo.
E mais adiante: "Não estamos no caso de ter academias de luxo, quando o
povo não sabe ler; de ter palácios Monroe, quando a mor parte da gente
mora em estalagens e cortiços... " - "de ter cá a reunião do Congresso Pan
Americano, para dar-lhe, como ilustração, as trucidações de Mato Grosso e
o assassinato de deputados e senadores, em pleno dia, nos desregramentos
de uma política feroz!. . . " A crítica continuava nesse tom implacável, verbe-
C A P Í T U L O V I I é::="9 l l l
rando os empréstimos "loucamente avultados e ruinosos" para serem aplica
dos em obras suntuárias, o déficit, etc... "Os governos'' - exclama Sílvio -,
"os chef;� políticos, os diretórios dos partidos, os grandes, os potentados, to
dos os que formam essa classe dirigente, que nada dirige, não têm querido
cumprir o seu mais elementar dever para com as populações nacionais .. . ''5
É fácil imaginar qual seria a'perturbação dos acadêmicos diante do presi
dente Afonso Pena, no decurso de tão furiosas invectivas.
Afrânio Peixoto6 diz ter Medeiros e Albuquerque recorrido a um estrata
gema para distrair a assistência. Encontrando-se ao lado do orador, pusera-se
a subtrair tiras e mais tiras que jogava ao chão como por descuido, desvian
do a atenção do público para aquele lado. Isto porém não chegou a atenuar
o escândalo. O presidente da República, honrando com sua presença a re
; '
' cepção, teve de ouvir o que não lhe agradava. Foi indelicadeza chocante.
i ! Sílvio Romero porém não tinha papas na língua. Desde enrão, os discursos
; :
; ; de recepção na Academia passaram a ser censurados.
Outro escândalo na Academia na posse de Dantas Barreto, em janeiro
de 1 9 1 1 , teve origem em fatos já um pouco distantes.
Quando Jo�quim Nabuco aceitou o convite do governo da República
para defender os nossos direitos na questão de limites com a Guiana Inglesa,
se um Rio Branco e um Eduardo Prado - monarquistas de alta linhagem
- lhe apoiaram o gesto, o mesmo não se deu com a quase totalidade dos
que se mantinham fiéis ao regime decaído, e por este prosseguiam lutando
com esperança de êxito. Era um desertor a deixar as trincheiras, e crime tan
to mais grave quanto se tratava de figura de primeira grandeza. Nabuco viu
se atacado rudemente pelos correligionários, entre os quais sobressaía, na
sua virulência impiedosa, Carlos de Laet. Em carta a Domingos Alves
Ribeiro, ressalvando a coragem leonina de Eduardo Prado ao apoiá-lo, es
creve o autor de Minha formação: "O sentimento de partido está, porém,
com os analfabetos e os estéreis como o Laet, cujo talento é uma bolsa de
veneno e nada mais, sem uma intuição, uma idéia política."7 Desde então,
5. Academia Brasileira de Letras, Discursos acadêmicos, vol. I, Civilização Brasileira, Rio, 1 934.
6. Fernão Neves, A Academia Brasileira de Letras, Rio, 1940.
7. Joaquim Nabuco, Cartas a amigos, Instituto Progresso Editorial, S. Paulo, 1949.
CAPÍTULO VII � 1 1 3
Pois foi o que ele fez. Transfugiu do ideal;
bradou à tradição: - Vai-te embora, és um mal!
As esporas tirou de errante cavaleiro
e alistou-se de histrião nos circos do estrangeiro;
deixou na mesa santa a luz que lhe esplendia,
pra receber no escuro o pré da apostasia,
e afronta sobre afronta! a corruprora esmola
vinha daquela mão do Meroveu pachola
que o direito assaltara, e em tétrico momento
o decreto assinou do infame banimento...
E agora que te lembro o crime e o seu horror,
vai correndo, ó burguês, saudar o embaixador!"
í i
E lamenta a manifestação ter partido da classe estudantil:
'l
'
"Mas o que mais me dói é ver no lago impuro
a flor da mocidade, o germe do futuro.
Moços da minha terra! Ó nobres corações!
Não vades, por quem sois, glorificar traições!
De vosso entusiasmo excita-se a nevrose
,.
1 I I 4 � CÁ Vida Literária.)JO Brasil
1
"E agora pode vir... Sobre esta palhaçada
vinguei no meu protesto a moral ultrajada.''
CAPÍTULO VII � 1 1 5
Laet, fizera. Essa justificação política num discurso acadêmico pareceu não
somente extemporânea, como de mau gosto. Certo efeito de escândalo tor
nou-se i nevitável. Vários jornais teceram comentários desfavoráveis a Laet.
E Constâncio Alves, no seu tradicional rodapé do Jornal do Commercio,
disse que o discurso, tendo passado antes pela censura da Academia, ex
primia logicamente o pensamento desta. Fora a Academia quem fuzilara
Nabuco no tiro disparado por Laet. José Veríssimo faz estampar uma car
ta na mesma folha, no dia 1 4 de janeiro, declarando não considerar-se a
Academia absolutamente solidária com tal opinião já que a censura se
exercia em limites muito restritos.9 Constâncio Alves revida a 19 de janei
ro com o artigo "Explicação, escavações e contradições", que Afrânio
Peixoto inclui na sua antologia Humor. 1° Começa acentuando o fato de a
i ;
Academia, pela afirmação do seu vice-presidente interino, condenar a des
i � cortesia do orador. Assim, o caso se desvesria de toda a importância que
lhe atribuíram amigos de Joaquim Nabuco e da Academia, enganados por
aparências. Reduzido às suas verdadeiras proporções, aquilo não passara
de uma manifestação simplesmente individual de grande ódio pequenino.
Era a profanação de um inimigo que esguichava opiniões em terra de ce
mitério. E lembrava o que Carlos de Laet já escrevera a 29 de maio de
1 904 no Jornal do Brasil: "Os mortos estão sujeitos a tais esguichadelas . . .
Nem por outra coisa s e rodeiam d e grades as sepulturas. Coitado d e quem
.,
morre e feliz de quem esguicha." Mas achava que não devia encerrar esse
breve comentário com palavras de dorida filosofia: não lamentar o morto
que ''desaparecera na glória de um crepúsculo radioso" e, sobretudo, não
invejar o vivo. Não seria invejável quem tivesse inveja daquele desastre
,1
6 � � Vida Li terá-ria no Brasil
1
Il
acadêmico. E muito menos agora que a Academia lhe desmanchou a figu
ra, assegurando ao público: esse trabuqueiro de políticos não foi executor
de sentença minha. Seu é o rancor que lhe moveu o dedo; sua é a arma de
que partiu o tiro. E realmente corporação literária não tem a Academia,
não pode ter em seu arsenal as garruchas de que se servem os cangaceiros.
Dessa forma, aquele que envolto no prestígio acadêmico parecia gente, per
dera as proporções com que se impunha ao nosso temor. Já não estava mais
ali a sentinela fiel e terrível, apontando estrondoso mosquete: o que se via
era "um macaquito barbudo, empunhando a sua pistolinha de chumbo e a
rodos divertindo com a fraqueza dos seus estalos e com a sua jatincia joco
sa de mata-gente". O artigo continua nesse tom, mostrando Constâncio
Alves que também a Laet se podia aplicar no fundo a pecha de um "deser
tor", pois, com a cólera de um Marat, já rugira outrora contra a monarquia
em versos que passa a citar.
Laet não deixaria sem resposta esse artigo e a polêmica prosseguiu, con
cluindo no clima de ironia e malícia, em que ambos se compraziam.
C A P Í T U L O., y _�_l � l 1 ]
llis; C A P Í T U L O VIII
C A P Í T U L O.. YJ I I � 1 1 9
zer crer que se esperava mais de um espírito tão ativo e dinâmico. Será um en
gano. As legislaturas eram na época apenas de dois anos, e desses dois anos,
quatro meses Sílvio os passou na Europa em busca de melhoras para a saúde.
Em tais condições não se pode dizer que tenha tido uma atuação restrita.
Vê-se a disposição com que o depurado entrou na liça apresentando, logo na
estréia parlamentar, três projetos. Mas o desajustamento com que sempre lu
tou esse homem independente e rebelde, habituado a decidir por conta pró
pria, sem cogitar das imposições do meio, mais uma vez se manifestou. Os três
projetos provocaram forte reação na Assembléia, onde vozes se ergueram de
todos os pontos para acusá-los de inconstitucionais. Não recua ele ante os pro
testos. Se a Constituição se ressente de defeitos que nos expõem a perigos de
ordem interna, o nosso dever é corrigi-los. Então, os protestos se multiplicam
com maior vigor. "É a reforma da Constituição que V. Exª pede?", exclama
' '
um deputado, criando um clima de esdlndalo no recinto.
: ;
A repulsa encontrada por esse primeiro movimento na Assembléia parece
ter refreado algum tanto o entusiasmo do escritor. Continuando a trabalhar
1 ! em outras funções, como as de relator do Código Civil, tornou-se parcimo
nioso na ambição de legislar. Assim mesmo, voltou várias vezes à tribuna.
Sempre apegado ao cientificismo, procurava entroncar a posição política
numa base filosófica, e quando se discutiu a lei do casamento civil fez esta de
.,
claração, decerto nunca mais ouvida na Assembléia Nacional: "Meu critério é
o da filosofia evolucionista, encarnada nas grandes linhas gerais do filósofo
magno Herbert Spencer."
Terminado o mandato em 1902, Sílvio Romero não conseguiu reeleger-se.
Em 1903 faz nova tentativa para voltar à Câmara, sem êxito. Estava encerra
da, definitivamente, a carreira do político militante, mas não a do espírito polí
tico que havia no escritor, pois continua este a revelar a preocupação dos proble
mas brasileiros e, como panfletário, a investir contra os males da politicagem. E
seu último discurso, paraninfando a turma de bacharéis da Faculdade de Di
reito do Rio, em dezembro de 1 913, discurso não pronunciado, mas reprodu
zido no Jornal do Commercio com o título "O remédio", é ainda, no fundo, um
testamento político.
Medeiros e Albuquerque, que foi um dos auxiliares de Pereira Passos, como
diretor da Instrução Pública no Distrito Federal, tendo tomado parte ativa na
,.
C A P Í T U L O V I I I é;::::41 l 2 I
"Ave Pátria surge agora
Ensinando a lei sublime
Que a justiça revigora
E a fraternidade exprime."
1. Parece-nos oportuno reclamar aqui um estudo sobre Rui Barbosa, escritor, um exame minu
cioso daquilo que na sua obra pode ser considerado especificamente lireratura. Araripe Júnior
CAPÍTULO VIII � 1 2 3
Mas o caso de Rui Barbosa deve ser considerado antes o de um político
nas letras. Sob esse prisma, sua personalidade será apreciada, em parte, no ca
pítulo das polêmicas. Mostraremos então como o debate em torno do proje
to do C6digo Civil se transformou de uma questão parlamentar numa ques
tão lingüística. Resta-nos pois acrescentar que uma das maiores conquistas
políticas de Rui Barbosa - seu triunfo em Haia, onde chefiou a delegação
brasileira à Conferência da Paz - tornou-se também uma consagração literá
ria. Desde essa jornada passou a ser tido como o prot6tipo da inteligência
brasileira, o grande exemplo de nossa capacidade intelectual erguida às alturas
de um símbolo: a Águia de Haia. Vit6ria que foi, indiscutivelmente, tanto das
letras quanto da política.
anunciou esse trabalho no prefácio de Contrastes e conftontos de Euclides da Cunha, mas não
chegou a escrevê-lo. Quem o fizer terá de pesquisar, por exemplo, as influências românticas na
juventude de Rui, sua paixão por Leopardi, de quem chegou a traduzir vários poemas. E uma
incursão na biblioteca do solar da rua São Clemente poderá fornecer alguns pontos de referên
cia bem interessantes.
2. Até esta data, desde antes do princípio do século, O Comércio foi dirigido por Couto de
Magalhães Sobrinho, futuro redator - de 1906 em diante - da revista Álbum Imperial.
Arinos substitui Couto de Magalhães, e a Arinos, Laerre de Assunção, que dirige a folha até no
vembro de 1904. De novembro desse ano a fevereiro do ano seguinte, pelo menos, aparecem à
testa do jornal os noines de Arn1ando Prado e Plínio Barreto. A 17 de rnaio de I 905, O
Comércio passa às rnãos de Francisco de Andrade Coutinho, que abandona a antiga orientação
partidária, transforn1ando-o em órgão "independente e imparcial", orienração que conservará
José Maria dos Sarnas ao substituí-lo na direção em março de 1 906.
3. Jorge Americano, São Paulo naquele tempo (1895�1915), Edição Saraiva, S. Paulo, 1957.
4. Há duas versões da anedota: uma de Paulo Pires Brandão, em Vultos do meu caminho, e
outra de Osvaldo Orico, n' O tigre da Abolição. Refiro-me acima à do primeiro, a mesma que
veiculei no meu livro Machado de Assis e a política e outros estudos.
5. Manirn Francisco, Contribuindo, cap. II, ''.Afonso Arinos", Mon(eiro Lobato, S. Paulo,
1 92 1 .
CAPÍTULO V I I I � 1 2 5
tão quase sempre na Europa, em contato com elementos da família imperial,
sobretudo com o príncipe dom Luís, que freqüentemente o visitava em Paris;6
a fase qu'é dirigiu O Comércio, entre 1902 e 1903, constitui exceção.
Ligado a Eduardo Prado, sobre o qual escreveu um livro de polêmica, e
monarquista mais por espírito de revolta e inconformismo, como já sugeriu
Alberto da Costa e Silva,7 foi ·o poeta simbolista padre José Severiano de
Resende que, pelo seu temperamento romântico, ardorosamente combativo,
teve uma vida bastante agitada. Vindo de Minas para São Paulo com o intuito
de estudar direito, teve de abandonar a faculdade por haver assumido a defesa
do prof. conselheiro Justino de Andrade, quando este, devido às suas convic
ções monárquicas, foi jubilado. A atitude de Severiano de Resende incompa
tibilizou-o com os lentes e colegas que haviam imposto a Benjamim Constant
essa jubilação. Transferindo-se para Ouro Preto e desistindo afinal de ser ba
charel, recolhe-se ao Seminário de Mariana, ordenando-se em 1 897. Depois
de uma viagem à Europa, deixaria a batina, fixando mais tarde residência em
[ j
Paris, sempre fiel a seu credo político que em 1 907, pelo menos, defendia no
'
Jornal do Commercio. 8
! ! Outro poeta·simbolista que formou nas hostes restauradoras: Edgar Mata,
falecido prematuramente em conseqüência de uma irremediável dipsomania.
Era filho do conselheiro Mata Machado, político liberal de grande projeção
em Minas, que por um dia deixou de ser visconde de Diamantina e foi, de
"
pois, tenazmente perseguido por Floriano, quando presidente da primeira
Cl.mara de Deputados da República. Essas circunstâncias sentimentais teriam
concorrido para que Edgar Mata aderisse à Monarquia em 1 902, na época em
que trabalhou na redação d' O Comércio de São Paulo, assinando sua colabora-
CAPÍTULO VIII � 1 2 7
freqüentes antagonistas, e de como sabia aparar-lhe os golpes e revidá-los com
elegância e finura, podemos verificar na polêmica travada entre ambos em julho
de 1901 ·
- Laet no Correio da Manhã, Constâncio no Jornal do Commercio -
! ! bora nutrindo idéias monárquicas. Na sua obra notável, Dom joão VI no Brasil,
procurou reabilitar a figura do príncipe regente, verdadeiro fundador do
Império, até então retratado sob um aspecro ridículo e grotesco pelos hisro
riadores jacobinos. Por volra de 1 9 12, esteve indicado para chefiar a embaixa
da do Brasil em Londres. Mas nessa ocasião concedeu a O Imparcial uma en
trevista em que muita gente viu uma profissão de fé monárquica. A idéia da
restauração ainda pairava no ar. Pinheiro Machado, o poderoso da época, que
se considerava o defensor da República, manobrando a bel-prazer o Senado,
exigiu uma retratação de Oliveira Lima para que a sua indicação pudesse ser
aprovada. O hisroriador negou-se a fazê-la e com isso perdeu o cobiçado pos
to na Inglaterra. Suas simpatias pelo antigo regime levariam dom Luís a ten
tar atraí-lo para a ação militante, como procurara fazer com vários intelec
tuais. 1 1 Euclides da Cunha, por exemplo, dirigindo-se a Francisco Escobar,
julgo ambos os candidatos 'indesejáveis'; mas a ter de optar, optaria pelo Rui, cujos partidários
representam o elemento mais são e de maior prestígio no país. Parece-me mesmo que
poderíamos aproveitar o momento para um acordo com os próceres desse grupo, a fim de con
seguirmos um esforço comum pela restauração, logo após as eleições presidenciais, Que lhe
parece? Tan1bém muito estimaria conhecer o pensamento do dr. Oliveira Lima que, aposenta
do, deve ter retomado a sua liberdade de ação."
12. Francisco Venâncio Filho, Euclides da Cunha e seus amigos, págs. 207-208, Cia. Editora
Nacional, S. Paulo, 1938.
Foi divulgada, aliás, na "Página literária" de A Gazeta de São Paulo, comunicada por Alves Mota
Sobrinho, uma carta inédita de Euclides a Escobar com referências dcsairosas à República e
considerações que se presumem humorísticas à possibilidade da restauração. "Mas penso con
tigo" - escrevia Euclides-, "a nossa raça (?) está liquidada. Deu o que podia dar: a escravidão,
alguns atos de heroísmo amalucado, uma república hilariante e por fim o que aí está - a ban
dalheira sistematizada. A Monarquia só nos poderia salvar se fosse heróica. Uma Monarquia
guerreira e atrevida. Imagina um Carlos XII arremessando-nos sobre o Prata e subjugando a
Argentina... Mas onde o encontrar? E onde estão os suecos? Quer isto dizer que a resrauração
não resolve o problema. Resignemo-nos." Mais adiante, anunciando a próxima publicação d Os '
sertões, o escritor afinnava: "Serei um vingador." A verdade é que, como tantos republicanos,
Euclides estava desiludido com o novo regi1ne, encarando o Império com maior espírito de
justiça. A cana é de Lorena, 1 0 de abril de 1902, e foi publicada a 22 de rnarço de 1952, ano
do cinqüenrenário d' Os sertões.
13. O primogênito do conde D'Eu e da princesa Isabel era o príncipe dom Pedro de Alcântara,
que no ano seguinte, em virtude do seu casamento morganático com a condessa de Dobrzenski
de Dobrnicks, renunciou, para si e descendentes, a seus direitos de herdeiro do trono. Inves
tido, por esse motivo, da dignidade de príncipe imperial, dom Luís dirigiu ao Diretório
Monarquista do Brasil, de que faziam pane, entre outros, o visconde de Ouro Preto e os con
selheiros Lafaiete e João Alfredo, um manifesto político, muito comentado e discutido, em
1 9 1 3. Morrendo prematuramente sete anos depois, em março de 1 920, de moléstia contraída
na Grande Guerra (fizera esta corno oficial do exército britânico), foi o "príncipe perfeito",
corno lhe chamavam os correligionários, uma figura muito interessante e das mais característi
cas da belle époque. o príncipe culto e exilado ern Paris, sonhando uma restauração inspirada
pelas idéias contemporâneas de Maurras, a que não lhe repugnaria dar un1a tintura progressista.
meus amigos invadem o tombadilho. Enconrroado, afogado por uma multidão simpática, vejo
me arrastado para o salão de bordo. Urna autoridade policial, muito correta, intima-me a de
cisão dos poderes federais, contra a qual, vibrante de emoção, faço o meu protesto ... Acla
mações, flores, discursos ... A política conquista seus direitos; e, assim, ao menos por algumas
horas, ser-me-á poupado o experimentar todo o peso da minha desilusão. Durante toda a tarde
os visitantes desfilam sobre o Amazone: antigos amigos, perdidos de vista desde a revolução;
conhecidos da Europa, acidentalmente no Rio; velhos servidores encanecidos pelo tempo;
muitos desconhecidos, representantes das novas gerações, que a reflexão, mais ainda que o en
tusiasmo, conquistou ao nosso partido; e sem dúvida também muitos curiosos, para os quais
eu represento o assunto do dia, aquele de quem se ocupam todos os jornais da capital ... ( ... )
Na falta da alegria, que eu prelibava, de pisar o solo natal, me é grato sentir-me viver no meio
de compatriotas, ouvir falar minha língua, e poder enfim constatar que, se durante longos anos
o mundo político e a imprensa afetaram esquecer-nos, a lembrança do que os meus fizeram pelo
país subsiste profundamente gravada na alma popular." (Sob o Cruzeiro do Sul Brasil
Argentina, Chile, Bolívia, Paraguai, Uruguai. Primeira edição em vernáculo traduzida pelo au
tor com a colaboração do dr. Melo Resende. Montreux, 1 9 1 3.)
Dom Luís escreveu ainda: Dans !.es Alpes, A Travers l1ndo-Kush (traduzido em 1950 com o tt-'
tulo Onde quatro irnpérios se encontram por Lazinha Luís Carlos de Caldas Brito, Edições
O Cruzeiro) e Tour d'Afriqtte.
CAPÍTULO VIII � I 3 3
Foi por volta de 1908. Depois de haver regressado da expedição ao Purus,
em 1 90(Í, Euclides ficara adido ao Itamarati, sem passar a pertencer ao qua
dro dos funcionários. O barão do Rio Branco precisava de seus serviços e que
ria tê-lo ao lado. Eram trabalhos incessantes de cartografia, pesquisas técnicas,
série de tarefas que sobrecarregavam muitas vezes o escritor, na necessidade de
atender às múltiplas exigências do ministro, cuja operosidade se tornara pro
verbial. O ambiente do Itamarati, o convívio forçado com certos diplomatas,
não se ajustavam ao temperamento áspero de Euclides. Grande admirador do
barão, no qual via uma das maiores figuras do Brasil, não se animava, porém,
a solicitar outro emprego, além de que nutria a esperança de ser aproveitado
numa missão diplomática no exterior.
Mas os dias passavam e a vida se lhe tornava um tanto exasperante. O remo
delamento do Rio, a mentalidade arrivista que daí surgia, tudo era de molde
a irritá-lo. Não podia suportar aqueles arremedas de civilização européia. Em
carta de 12 de fevereiro de 1908 a Francisco Escobar, convidando-o para uma
visita ao Rio dizia: ''Admirarás os célebres melhoramentos. Fulminaremos, jun
tos, o pioramento dos homens. Daremos pasto à nossa velha ironia ansiosa por
enterrar-se nos cachaços gordos de alguns felizes malandros que andam por aí
fimfonando desabaladamente, de automóvel, ameaçando atropelar-nos a nós ou
tros, pobres altivos diabos que teimamos em andar nesta vida, dignamente, pe
lo nosso pé." 17 A expressão "pobres altivos diabos" é bem significativa. Euclides
não se curvava à superioridade dos burgueses enriquecidos nessa época, em que
andar de automóvel era, muito mais do que hoje, privilégio dos ricos.
É nesse momento que o velho amigo Escobar, o generoso e dedicado
Francisco Escobar, velando pelos interesses do escritor, pensa em articular-lhe
a candidatura de deputado por Minas. Mineiro, dispondo de influência e li
gações políticas no estado, julgara possível o projeto. Infelizmente, não conhe
cemos detalhes sobre as démarches de Escobar; é uma página da biografia de
Euclides que ainda está a reclamar esclarecimento e pesquisa. Em 1 O de abril
de 1908, por uma carta do escritor ao amigo, percebemos que a idéia já vinha
sendo agitada por este há algum tempo. A princípio Euclides não a devia ter
17. Francisco Venâncio Filho, op. cit., págs. 203�204. A fonte das citações subseqüentes
é a mesma.
C A P Í T U L O V I I I t;::q l 3 5
o barão do Rio Branco sobre os motivos essenciais da viagem. Com o apoio
do barão. contava Euclides nessa projetada aventura política, e sabe-se que o
ministro, como era de prever, não lho recusou.
Três dias depois, dirige-se novamente a Escobar, explicando-lhe os motivos
que o impediam de predeterminar o dia da viagem e pedindo-lhe que o escla
,
recesse a respeito os "dignos patrícios' dali. Os "dignos patrícios'' seriam os ele
mentos políticos manobrados por Escobar em favor do amigo. "Peço-te tam
bém (e isto fica entre nós)" - acrescentava Euclides - "que impeças qualquer
notícia dos jornais sobre a viagem. O artigo do Clamor, de 3, deixou-me com
os cabelos em pé. Salva-se a sinceridade e o cativante entusiasmo do articulista
- mas o tom geral é quase alarmante nestes tempos em que as intenções mais
puras estão sujeitas aos piores comentários. Mantive - e tenho nisto o máxi
mo interesse - a reserva, que desejas também, acerca da candidatura. Convém
que de tua parte faças também tudo para que ela se não revele."
Na correspondência do escritor compilada por Francisco Venâncio Filho,
no livro Euclides da Cunha e seus amigos, não existe depois desta data nenhu
ma outra carta -� Escobar. Das exatas circunstâncias em que fracassou a can
1 '
. ' didatura do autor de Os sertões não temos perfeito conhecimento. A versão
corrente é de que os próceres das Alterosas vetaram-na, pelo fato de o escri
tor não ser mineiro.
Machado de Assis, que nunca tomou parte ativa nos acontecimentos po
líticos, esteve por volta de 1905 em vias de desempenhar o papel que sempre
' dele reclamaram, os que o acusam sem fundamento de manter-se indiferente
' ! à realidade nacional.
' 1
' : No dia 20 de junho daquele ano, quando se cogitava da sucessão do pre
sidente Rodrigues Alves, dois jomai• da oposição, o Correio da Manhã e a
Gazeta de Notícias, por iniciativa de Lúcio de Mendonça, lançaram a idéia de
que a escolha do novo candidato fosse feita por um processo que viria contra
riar inteiramente as praxes em vigor. Cada estado designaria um delegado à
Convenção Nacional, que devia reunir-se na capital da República em 1° de
março de 1904, dois anos antes da eleição presidencial, para eleger os candi-
CAPÍTULO VIII � 1 3 7
senhor Olímpio de Campos e depois pelo padre Valais de Castro, deputado
por São Paulo. O do exército, o general Artur Oscar, que veio a falecer, teve
a substit�í-lo o general Henrique Valadares. O representante da filosofia,
Teixeira Mendes, declinou da indicação, por se tratar de um sistema de trans
missão de autoridade contrário aos princípios de Augusto Comte, de quem
era grande ap6stolo no Brasil.
Outras substituições foram feitas, como a dos representantes da imprensa,
do funcionalismo público, etc. O que nos interessa frisar é que até o dia 22 de
julho, quando terminava o prazo para o debate, Machado de Assis continua
va na lista. Teve quase cinco meses para pedir a substituição e não a pediu,
o que nos leva a crer que, mesmo contrariando as disposições de seu tempe
ramento, consentia em exercer o mandato. Constituída a Comissão, foi desig
nado o dia 24 para a primeira reunião de seus membros, num sobrado da rua
do Hospício, 84, às três horas da tarde. Mas dos vinte e quatro delegados apa
receram apenas seis; Machado de Assis não se achando nesse número. A im
prensa que patrocinava a iniciativa procurou justificar os faltosos. Tratava-se
de um sábado, dia tradicionalmente consagrado à rua do Ouvidor e, além dis
so, de uma tarde úmida, cortada de aguaceiros.
Em nova convocação feira a 4 de agosto ainda aparece o nome de
Machado de Assis. A reunião é, porém, sucessivamente transferida para 1 5,
1 9 , 22 e 26 de agosto, quando afinal chegou a realizar-se com o compareci
mento de treze delegados. Já nessa altura Machado de Assis era substituído
por Inglês de Sousa.
O relato que acabamos de fazer resume minuciosa pesquisa realizada por
Carlos Sussekind de Mendonça18 no propósito de averiguar o sentido de cer
ta passagem de uma carta de Machado de Assis a Lúcio de Mendonça. O ro
mancista se escusa evidentemente de aceitar o convite para uma função de ca
ráter político. Eis o trecho da carta: ''A lembrança do meu nome, honrosíssima
em si, veio de encontro a um grande obstáculo. Não quero referir-me à repre
sentação literária, que a bondade dos amigos me dá, como um prêmio de as
siduidade e tenacidade no trabalho. Refiro-me à significação política, quando
eu vou galgando os sessenta anos, para não dizer a verdade inteira. Meu que-
19. Machado de Assis, Correspondêncía, col. e anot. por Fernando Néri, pág. 323, W. M.
Jackson, São Paulo, 1 937.
CAPÍTULO VIII � 1 3 9
ll <Zt C A P Í T U L O IX
unca exerceu Paris tão forte influência sobre nossa vida literária
quanto no período do pré-guerra, em 1 9 14, quando o próprio ci
nema que seria, mais tarde, grande veículo de infiltração norte
americana em nossos costumes - vinha então em boa parte da
França. Eram os filmes da Pathé Freres e da Gaumont, com o famoso Max
Linder, cômico diferente dos de hoje, e os principais artistas do teatro francês,
como Regina Badet, Suzanne Depres e a própria Sarah Bernhardt.
Mas não seria de admirar que vivêssemos, vestíssemos e escrevêssemos pe
las receitas parisienses, se era bem poderosa igualmente a sugestão de Paris
sobre o mundo europeu e ocidental nessa época, tornando-se o centro de
atração da humanidade, o maior empório de prazer do planeta. Auferir da exis
tência tudo quanto ela nos podia dar de belo e de bom, era uma receita que en
tão só se aviava no bulevar.
Derrotada em 1 870, mutilada nos territórios da Alsácia e da Lorena,
a França, apesar da pregação nacionalista de Deroulêde, não se deixava domi
nar pela obsessão da revanche, como aconteceria com a Alemanha, depois de
1 9 1 8 . Recalcando o pesar do desastre, em lugar de empenhar todas as forças
vivas e as reservas nacionais no preparo de uma nova guerra, sentira a predes-
CAPÍTULO IX � 1 4 1
tinação de dominar, não pelas armas, mas pelo fascínio do espírito, a univer
salidade. A obra de Zola, de Maupassant, de Verlaine e de Rimbaud, dos na
turalistas," dos simbolistas, dos impressionistas, de toda uma plêiade magnífi
ca de intelectuais e artisras, projetando pelo mundo o livro francês, a moda
francesa, o gosto francês; e Paris dirando figurinos e fórmulas, seduzindo os
povos com o feitiço irresistível de uma cortesã, tudo isso constituía uma espé
cie de desforra, ou pelo menos uma inebriante compensação para o golpe de
1 870. Iam-se esquecendo os perigos, no luminoso desígnio de civilizar, de en
canrar a humanidade; enquanto a Alemanha ao lado, pesada, dura, rígida,
preparava-se para a conquista da França e da Europa, no choque inevitável.
Usando perfumes parisienses, o kaiser dizia ao jornalista Stéphane Lausanne
(Sa majesté la presse) que a França era um país esgotado, que só servia para o
prazer, e tinha como certo ir dentro em breve passar revista nas tropas impe
riais na avenue des Champs-Elysées.
1 Maurice Donnay, no livro ]'ai vécu le 1900, 1 fala-nos de uma alemã, irri
! !
tada com a intimação para tirar o chapéu num teatro parisiense, a ameaçar
em voz alta os franceses com a próxima vinda dos soldados alemães. Era o
dessous da delícíà de viver. Pressentia-se, por detrás de todo o esplendor art
nouveau, a germinação subterrânea de perigos imponderáveis. Numa tarde de
courses, Maurice Donnay confessa-se atordoado com a extravagância, a pom
pa na ostentação dos adornos, na exibição dos trajes, tudo indicando um ex
cesso d'avant la révolution. Alguma coisa estaria para acontecer pensava de
maneira profética. Na mesma ocasião, dona Flora, esposa de Oliveira Lima,
refratária a esses aspectos de civilização francesa, dizia que em Paris era só lu
xo e luxúria. Mas com esse luxo e essa luxúria Paris nos fascinava. Vivíamos
sonhando com a "rue de la Paix". Numa crônica do livro Cinematógrafo, in
titulada "Quando o brasileiro descobrirá o Brasil", João do Rio protestava
contra a nossa ignorância das coisas nativas, enquanto estávamos sempre
' 1
prontos a falar com perfeito conhecimento da realidade européia, vício que
era também, até certo ponto ) o do cronista. "É espantoso, cher confrere" -
ter-lhe-ia dito um colega estrangeiro. - "Todos seus compatriotas conhecem
Paris, como se lá tivessem estado, no entanto, ignoram o caminho mais sim-
CAPÍTULO IX � l 4 3
civilizado; para em outra carta lhe fazer perguntas assim: "Como vai essa ter
ra ignób!.l?" Acabava de conhecer Eça de Queirós na casa de Eduardo Prado,
e parecia querer imitá-lo na maneira pela qual o romancista costumava refe
rir-se a Portugal. Ao regressar dessa viagem, Bilac mostrara-se tão dépaysé no
ambiente brasileiro, que chegou a sugerir a Artur Azevedo este comentário no
Correio do Povo:3 "O nosso poeta está seriamente intoxicado" - dizia o cro
nista, noticiando�lhe o regresso -, "ingeriu pantagruélicas doses de 'parisinà,
a famosa bebida de que falava Charles Nodier, e agora não há volta a dar-lhe.
Se ficar aqui a passear, entre o beco das Canelas e a rua da Vala, morre da pior
das nostalgias, a nostalgia de Paris." E acrescentava ter o poeta vindo com bi
lhete de ida e volta da companhia Messageries, na certeza absoluta de tornar à
França. Não tornaria logo, dessa vez. Só no começo do século havia de iniciar
um ciclo de viagens anuais a Paris. Lá confessaria a Medeiros e Albuquerque
que detestava a narureza; nunca dissera isso a pessoa alguma, porque lhe fi
1
i 1 caria muito mal como poeta, no Brasil, revelar tais sentimentos, mas a ver
' i
dade era essa: só apreciava ambientes urbanos e civilizados.
João do Rio, Luís Edmundo, padre Severiano de Resende, Nestor Vítor,
Gilberto Amado, Theo Filho, rodos cumprem essa romaria indefectível. Uns
voltam logo, com a idéia fixa de uma nova viagem, outros por lá ficam meses
e até anos. Nestor Vítor, que se decidira a partir, pela circunstância muito es
tranha de se achar desempregado, consegue permanecer em Paris longos anos,
como professor de português dos filhos do barão do Rio Branco.
Também por lá se encontra, em peregrinação inteligente, um homem que
costumava alternar as longas estadas na Europa com as caminhadas através
dos sertões de Minas. Passeia pelo cais do Sena em andar pausado, a mostrar
a um jovem de olhar inquieto os aspectos típicos da cidade, discorrendo sobre
o sentido da civilização européia em face da vida brasileira. O homem já um
pouco maduro é Afonso Arinos, e o jovem, Alceu Amoroso Lima. Outro bra
sileiro, mal saído da adolescência, anda a percorrer os cabarés de Montmartre,
no anseio de penetrar em rodos os segredos e mistérios de Paris. Chama-se
Benjamim Cosrallat, e nos contos que virá a publicar mais tarde situará fre
qüentemente no Rio uma atmosfera parisiense.
4. Theo Filho, 365 dias de boulevard, Leite Ribeiro & Mautílo, Rio, 1920.
C A P Í T U L O IX � 1 4 5
dachim matando o adversário. Luís Aníbal Falcão assim o descreve: "vestindo
sempre µm terno de veludo marrom" , que dizia ser a última moda de Londres,
"levando sempre as luvas que de tão gastas lhe mostravam as pontas dos de
dos, usando bengala de falso junco, chapéu cheio de furos mal cobrindo a ca
beleira ensebadà'. Seria esse um retrato da última fase, quando o poeta já en
trava em triste decadência, com o espírito seriamente conturbado. João Ribeiro
notou-lhe ares de Musset na fina barba nazarena, nos coletes de veludo, no
monóculo que não lhe ia mal à figura. Mas achou que compondo esse tipo ro
mântico antiquado, chamando a atenção de todos, Albano recaía afinal de
contas numa grande vulgaridade. Agripino Grieco salienta-lhe a distinção
de maneiras, vendo-lhe nas atitudes a imagem dos "leões do Segundo Império
francês ou da cavalheiresca Espanha dos sombreros emplumados". Enquanto
para Tristão da Cunha, esse estranho tipo lhe dava apenas impressão de muji
que bolchevista. 5
1
i 1 Quando se via sem dinheiro em Paris, e era obrigado a recorrer à bolsa dos
1
brasileiros ricos, José Albano - dizem - lançava mão de um estratagema que,
certamente, lhe amortecia os escrúpulos de cavalheirismo. Pedia-lhes para subs
crever a publicação de suas obras completas, apesar delas nunca virem a lume;
julgava com isso, naturalmente, fugir à condição de "facadistà' vulgar. Manuel
Bandeira alude a uma psicose que teria levado o poeta a uma casa de saúde; no
entanto, depois disso, fota ainda duas vezes à Europa; a primeira em plena guer
ra; a última, em 1918, para não mais voltar. Albano embarcara então no Ceará,
em fins de 1 9 1 8, a bordo do Avaré, quando já havia sido assinado o Armistício.
E a julgar pelo que dele nos conta Theo Filho - seu companheiro de bordo
nessa ocasião - no livro Uma viagem movimentada, não estava o poeta nem
de longe restabelecido da psicose que o infelicitara. Albano cometera toda sor
te de desatinos durante a travessia: falava em duelos, espadas e punhais, che
' ' gando a causar pânico aos passageiros, embora acabassem reconhecendo que se
tratava de um inofensivo, pelo qual passaram a sentir profunda ternura.
É difícil dizer onde começa a constituir um traço de anormalidade o pendor
excessivo pela biague e a mistificação. Se as histórias mirabolantes de José Albano
resultavam das exaltações de um cérebro doentio, as de José do Patrocínio
dade com que esse homem narrava os casos mais inverossímeis, engendran
do toda sorte de romances desenrolados no ambiente parisiense, dizendo-se
amigo de príncipes, apaches, artistas famosos e celebridades mundiais? Difícil
concluir o que havia de verdade em suas crônicas tão vivas, como a verdade
nunca a souberam distinguir os que lhe escutavam as histórias prodigiosas.
Mas muito de seu espírito se encontra numa página em que procurou en
quadrar a imagem de Theo Filho, com quem aliás possuía grande afinidade,
numa espécie de prefácio ao romance Anita e Plomark, aventureiros. COmo
Londres não comportara Wilde, D'Annunzio escandalizara a Itália, a Espanha
assassinara Ferrer, o Rio não pudera ser hospitaleiro a Theo Filho - dizia
Patrocínio. Então que fizera o romancista? "Remergulhou em Paris e deixou
se estar. Viveu assim um pouco de todos os modos, quase como Shakespeare,
abrindo portinholas de carruagem à entrada dos teatros, quase como Lamartine,
para quem o luxo se tornara uma segunda natureza, quase como Dumas, a
quem as dívidas impediam o trânsito. Em certo inverno, em Londres, passou
três meses na cadeia; viajou para a América num steamer austríaco, foi detido
uma vez em Boulogne . . . "7
Estarão nesses traços menos Theo Filho do que o próprio Zeca, através de
uma imaginação que procurava fugir de toda maneira à vulgaridade, evoluin
do num mundo fictício à feição de Jean Lorrain, embora o próprio Theo Filho
6. Desde muito cedo Patrocínio Filho revelava sua vocação de mistificador, segundo concluímos
de um depoimento de Joaquim de Sales que, adolescente, o vira pela primeira vez. Zeca contava
então 17 anos. Disse chamar-se Josephus Patroc.ínio, poeta simbolista e tuberculoso em terceiro
grau, acrescentando: "- Oprime-me o coração, uma dor, uma grande dor constante. Dilacera
me a alma um profundo desespero. Sinto que a minha irmã morte se aproxima de manso e breve
um definitivo descanso me libertará do sofrimento, de todas minhas roxas angústias."
"Tais palavras caídas dos lábios de um quase menino" - escreve Joaquim de Sales - "dei
xaram-me perplexo. Pouco tempo depois, descobri que Cruz e Sousa espalhara pela cidade uma
epidemia de gravatas e coletes violáceos, simbolizando esses martírios íntimos que nos seus dis
cípulos eram conseqüência de um artifício literário": - "Se não me falha a memória." Men
sário do jornal do Commercio, tomo IV, vol. 1.
7. José do Patrocínio Filho, prefiício de Anita e Plomark, aventureiros, � ed., Ed. Sehna, Rio, s/d.
C A P Í T U L O , I,,.x � 1 4 7
também andasse por essas paragens estranhas, oxigenando os cabelos como
Baudelaire. Continuando a falar do romancista, nessa página, Patrocínio alude
a um encontro com ele em Paris, numa garçonniere, num clima puramente
baudelairiano. Aparece então o criado chinês, esse criado chinês que sempre foi
uma obsessão de Patrocínio.8 Chama-se Liú-Tsé-Shum e estava a serviço de
Theo Filho, encarregado no momento de dar injeções numa morfinômana,
que o romancista recolhera em Montmarrre. Sugestões de Les civilisés etfamée
d'opium, de Claude Farrere, da literatura cosmopolita e decadente, que recebía
mos através da filtragem parisiense. Mais tarde, em 1 9 17, em plena guerra,
Patrocínio Filho iria sofrer conseqüências imprevistas e amargas dessa mitoma
nia, de tudo quanto vivia a divulgar dos seus amores fantásticos com Mata
Hari, a famosa bailarina holandesa fuzilada em Vincennes, como espiã. A in
discrição durante uma viagem fez com que o escritor incorresse na suspeita de
i
1
espionagem e fosse preso em Londres, dando muito trabalho à diplomacia bra
i 1 sileira para obter-lhe liberdade. A odisséia dessa "Sinistra Aventurà' nos conta
1
ria ele num livro de leitura realmente palpitante, em que revela excelentes qua
'
1 ' lidades de escritor, embora nos deixando ainda uma vez na incerteza sobre
� :
onde termina a verdade e começa a fantasia.9
8. Numa entrevista para o jornal de Letras (novembro de 1952), Costa Rego aludiu a um cria
do chinês de quem Patrocínio Filho costumava contar maravilhas. Mas acabara por se abor
recer dessa preciosidade oriental. E passava a dizer, muito sério, aos amigos que encontrava:
'1- Sabe? Resolvi dar meu criado chinês de presente ao Costa Rego..."
9. Não será fácil também apurar o que houve de verdade nos famosos duelos com que
Patrocínio Filho procurava adotar no Rio uma tradição européia e particularmente da vida
literária francesa. Na entrevista ao jornal de Letras, Costa Rego declarou que o "Zecà' se batera,
i
i i
realmente várias vezes, embora seus encontros sempre terminassem de maneira cômica. "De
: 1 uma feita, convidou-me para padrinho" - informa Costa Rego. - "Procurei logo saber que
: :
' ' 1
arma deveria propor ao adversário. - O florete, declarou resoluto. - O florete, Zeca, você
sabe manejar esse instrumento, aquele negócio de dar estocada?... - Pois então? Já me bati a flo
: 1
rete em Paris com o Edmundo! - O Edmundo!. .. (fiquei espantado) o Edmundo Bittencourt?
Você se bateu em Paris com o Edmundo Bittencourt? Ele sem pestanejar respondeu: - Não,
homem, o Edmundo ... Rostand."
Segundo o depoimento de contemporâneos, num almoço, na Brahma, oferecido a Agenor de
Roure, Patrocínio discute com Rafael Pinheiro, tribuno popular dos mais conhecidos da época.
O ton1 da pendência rapidamente se azeda. Patrocínio Filho chama um automóvel e intima
Rafael Pinheiro a acompanhá-lo à Quinta da Boa Vista a fim de se barerein. Lá, saca de um
revólver enquanto Rafael Pinheiro lhe cai de guarda-chuvadas em cima, como se para o adver
sário lhe bastasse aquela arma. Zeca dispara ferindo Rafael no braço, mas no mesmo momen
to, ao procurar defender-se do guarda-chuva, vai cair num lago que existe naquele logradouro,
ficando a debater-se nas águas como um gato. Rafael parte para a cidade a fim de medicar-se,
o Zeca, retirado do lago pelos amigos que chegavam pressurosos, omite o verdadeiro motivo do
banho dizendo tratar-se de um acidente.
De outra feita, Patrocínio Filho teria sido desafiado pelo poeta Goulart de Andrade por causa
de umas cartas anônimas. O duelo realizara-se na Tijuca e o Rafael Pinheiro não já figuraria
como adversário e sim como testen1unha; n1as testemunha tão desastrada que fora atingida no
queixo pela bala destinada a uni dos antagonistas. (Deven1os essas inforrnações a Aloísio Neiva,
Jocelin Santos e Luís Ferreira Guimarães.)
C A P Í T U L O , .I � � 1 4 9
minuciosa e a sensação é substituída pela psicologia. Livro único em nossas le
tras, constituindo verdad�ira exegese de uma cidade e de um povo.
A hegemonia de Paris, no ambiente intelectual brasileiro, só iria ser abala
da depois da guerra, com o movimento modernista. No Pathé baby, de
Antônio de Alcântara Machado, publicado em 1 926, encontraremos, pela pri
meira vez, o reverso dessa literatura incrítica de panegírico, cultivada pela
maioria de nossos escritores do " 1 900". Mas a reação se daria em termos de
caricatura, e não de análise. Persistia ainda a atitude emocional: do entusias
mo excessivo íamos para o extremo oposto do ridículo e da sátira. A polêmi
ca daí resultante, entretida pelos modernistas durante uma década, acabaria
no entanto por levar-nos à linba justa da compreensão. Não se tratava de exal
tar ou desprezar Paris, França, Europa, e sim de compreendê-las.
Nessa época em que todo mundo delirava por Paris, houve um escritor
brasileiro que não manifestou absolutamente essa preocupação: Euclides da
. 1
.! 1
Cunha. Depois do êxito d' Os sertões, consagrando-se de um momento para
1
outro uma das grandes figuras das letras brasileiras, qual devia ser logo o pro
' pósito de Euclides? Cogitar das possibilidades de uma viagem à Europa.
! !
Tínhamos mÓtivos para admitir que, nas suas caminhadas de engenheiro, já
andasse sonhando com isso. Entretanto tal não se dava. Desejava viajar, sem
dúvida, mas para recantos bem distantes e diversos das margens do Sena; seu
ideal era conhecer a fundo nossa hinterlândia, penetrar em florestas virgens,
palmilhar as regiões perdidas e selvagens da Amazônia.
Em carta de 1 903 ao dr. Luís Cruls, escrevia esta coisa admirável: "Ali
mento há dias o sonho de um passeio ao Acre, mas não vejo como realizá
lo."1º Ao invés de um passeio a Paris, expressão que andava sofregamente nos
lábios de todos os confrades de letras, Euclides da Cunha queria passear no
Acre, quer dizer, em lugar de um camarote de primeira em transatlântico de
' 1 luxo e hotéis confortáveis, os perigos, as dificuldades de comunicação, as as
perezas e as hostilidades daquele recanto distante do Brasil. E no idealismo do
seu amor à terra, no seu deslumbramento de poeta, denomina singelamente
de passeio essa aventura perigosa. Não resta dúvida que lhe palpitava no ínti-
1 O. F. Venâncio Filho, Euclides da Cunha e seus arnigos, pág. 84, Cia. Editora Nacional, S. Paulo,
1938. Oo mesrno livro, as demais cicações.
' '
l '
! '
1
a terra e cavar a vida em profissões práticas, como qualquer mortal. Daí a al
guns anos surgiram as primeiras manifestações do parnasianismo entre nós, e
com isso os deuses iriam readquirir o prestígio antigo, para acabar retornando
l ao Olimpo, com maiores poderes ainda, e implantando a hegemonia da
Grécia na literatura brasileira. Machado de Assis foi, no entanto, dos poucos
que souberam subtrair-se a essa influência; envolvendo personagens gregos em
alguns contos, emprestou-lhes quase sempre um caráter satírico que os tornou
semelhantes aos comparsas de Os deuses de casaca.
! No mais, a Grécia triunfou plenamente em nossas letras até a guerra de
1 1914, pelo menos. Alguns citavam-na a cada passo, porque realmente lhe conhe
ciam a história e freqüentavam os mestres da Antigüidade clássica; outros he-
1
L
CAPÍTULO X �I 53
lenizavam de oitiva, porque ninguém podia considerar-se verdadeiramente
culto, se não falasse em Heiror, Ajax e no cerco de Tróia.
Era geralmente uma Grécia de cartolina, puramente decorativa, nada ten
do de comum com o verdadeiro espírito helênico, que dominava por toda
parte. Dela usou e abusou, como todo mundo sabe, Coelho Neto, decerto um
dos maiores responsáveis pela propagação dessa mania. Mas foram muiros os
culpados. João do Rio, cujo brilho do estilo mal disfarçava a cultura apressa
da e superficial, citava a todo momento Sófocles, Eurípides, as eumênides,
etc.; e ao descrever, por exemplo, numa emocionante evocação, a «tragédia de
Rocinha'' - um homem enterrado no fundo de um poço, morrendo aos pou
cos, sem que ninguém pudesse socorrê-lo -, não deixava de carregar em
Ésquilo e outros ingredientes gregos.1
O advento do futebol e a intensificação da prática dos esportes no Brasil,
na primeira década do século, começaram logo a ser encarados pelos escri
tores mais apegados à Grécia, pelo prisma helênico. Em crônica na Gazeta
de Notícias, em 1908, depois incluída no livro Ironia e piedade, Bilac alude
; '
ao desenvolvimento do esporte entre nós, considerando o grande espaço que
l : os jornais coni'eçam a dedicar-lhe e às quatro ou cinco revistas no gênero,
' :
; j
já existentes no Rio de Janeiro. Depois, ante a notícia dos próximos Jogos
; :
' ' Olímpicos, em Montevidéu, cai em cheio na Grécia: "É impossível escrever
ou ler essas duas palavras" - considera - "sem evocar a idade de ouro da
humanidade, no berço daquela Grécia divina, cuja misteriosa e indizível
saudade arde perpétua, por um milagre psíquico, na alma de todo o homem
que pensa. Tal é o prestígio das cousas da Hélade antiga, que cada um de
nós, fechando os olhos, vê reproduzirem-se todo o cenário, toda a gente, to
da a história, todos os costumes dessa remotíssima idade. É que cada um de
'. ! ! nós, artistas e poetas, sempre tem dentro da própria alma um pouco da al
f '! !
'
' ' 1
ma da gente do Peloponeso ... " E arremata com esta exclamação extática:
"Os Jogos Olímpicos da Velha Hélade!" Logo porém se volta desiludido,
i1
' ' compreendendo que a trivialidade do presente - a era da máquina e da téc
1
' nica - não comporta os esplendores da Antigüidade clássica. "Formosa e
ofuscante visão! Como há de ela reproduzir-se realmente, nesta triste idade
L João do Rio, No tempo de Venceslau, Ed. Vilas�Boas & Cia., Rio, 1917.
estabeleça logo a relação fatal: "Meninos! Foram músculos como esses que ga
nharam a batalha de Salamina!. .. Sobre as areias da praia de Falero, Xerxes ti
nha feito levantar o seu trono de ouro. E, mais numerosos que os grãos de
areia, os seus exércitos enchiam a terra, e, mais incontáveis do que os peixes, os
seus navios cobriam o mar. Mas a gente moça de Atenas, a ousada gente de
Tcmístocles, tinha os músculos e a coragem, que ides agora adquirindo."3
Era assim: regatas, jogos olímpicos, futebol, todos os esportes não podiam
set vistos de outra maneira, senão através da Grécia. No livro Ironia epiedade,
a que há pouco nos referimos, Bilac tem uma crônica em que caustica dura
mente a nossa mania de "literatizar'' tudo. Não lhe passaria pela cabeça que
estava incorrendo na mesma pecha, quando envolvia Salamina, Temístodes,
Atenas, numa simples exibição esportiva. É que esse Helenismo decorativo,
profundamente impregnado do espírito da época, jamais se apresentaria sob o
aspecto de "literaturà' à maioria dos escritores de então.
Até Euclides da Cunha, fazendo timbre de sua barbárie, reivindicava uma
origem helênica, julgando-se um misto de tapuio, celta e grego.
2. Olavo Bilac, Ironia e piedade, 2ª ed., Livraria Francisco Alves, Rio, 1921.
!
i C A P Í T U L O X "'9 l 5 5
t
Pela província não prevaleceu com menor intensidade semelhante tendên
cia. No Paraná, onde houve uma vida literária florescente, o poeta simbolista
Dario Veloso, com suas inclinações esotéricas, chegou a criar em Curitiba um
Instituto Neopitagórico, que como o próprio título indica, pretendia fazer res
surgir na bela capital sulina o culto de Pitágoras. Mas a sua helenofilia foi mais
adiante. Professor do Ginásio Paranaense da Escola Normal de Curitiba, onde
pontificava como mestre grego, num constante proselitismo estético-filosófi
co, chegou a imaginar e a realizar este espetáculo verdadeiramente surpreen
dente: a ressurreição das fesras helênicas da primavera em plena Curitiba.
Tasso da Silveira, no seu livro A igreja silenciosa, acentuando, de passagem, que
Curitiba presta-se admiravelmente a semelhante revivescência, recorda o espetá
culo: "Foi nesse ambiente de luz e de harmonia, tão maravilhosamente apro
priado, que Dario sonhou realizar, num quadro vivo, a ressurreição da hélade
i à medida do possível. A primeira festa da primavera efetuou-se,
pagã. E fê-lo
;1 se não me engano, no ano de 1 9 1 ] . Foi encantada surpresa para a população
i 1
; ! desprevenida. Estudantes do Ginásio e da Escola Normal e a infância das es
colas primárias formavam o cortejo helênico que, atravessando a urbe, ia em
; '
! '. demanda do mais belo parque da cidade. Rapazes e moças vestiam alvas túni
cas e levavam mantos de cores suaves, à maneira grega. À frente, as nove mu
sas, reflorindo. Marchavam as crianças em duas alas, empunhando guirlandas
que formavam, entre uma fila e outra, ensombrada abóbada de flores. À lin
da mascarada não faltaria, talvez, algo de menos lógico com o instante. Mas,
ali, casava-se tão bem a jovialidade, por assim dizer, atmosférica, à natureza
paramentada e risonha, que ninguém analisou o que nela pudesse haver de ex
,,
temporâneo e esdrúxulo." "Depois - acrescenta - "dispersou o cortejo no
' parque e começaram os jogos olímpicos, os torneios de poesia e os hinos em
'
1 mais "grego", na verdade, do que Graça Aranha, que em 1 924 acabou se in
surgindo contra a Grécia. Basta ver a carta que ele escreveu a Rio Branco, alu
11
dindo à festa oferecida a Ferrero no lramarari: "Naquela noite memorável em
que Guglielmo Ferrero foi recebido no Itamarati não lhe pude dizer todo o
meu entusiasmo pelo nobre acolhimento que V. Exª fez à inteligência e ao gê
nio estrangeiro. Tive a deliciosa ilusão de que Cícero era recebido por Péricles ...
Jantamos em Arenas. O seu discurso foi uma excelente e fina interpretação do
gênio do hóspede e a evocação de Lombroso uma delicada homenagem à Filha
11
e à Italiana. E em tudo se excedeu a sua magnífica graça; e uma grande e rara
5. Dou pelo custo o depoimento do ator Alexandre Azevedo. A versão geral, segundo Magalhães
Júnior e1n Ofabuloso Patrocínio Filho, era que o 1narechal Hermes possuía escassas letras.
6. Graça Aranha, Canaã, 9ª ed., pág. 168, F. Briguier, 1943.
l C A P I T U LO X """'1 l 5 7
harmonia foi o traço de toda aquela tarde e da noite. Ferrero jamais esquecerá
esse momento grego no Brasil, em que ele foi recebido por Péricles - Rio
Branco eonversou com Platão -, Machado de Assis, e foi iluminado pelo olhar
e pela fronte de Minerva... Ainda como os atenienses, nós poderíamos dizer ao
historiador da Antigüidade que o juramento de Rio Branco na mocidade foi o
mesmo da juventude grega no altar da deusa: 'Não deixarei diminuir minha
Pátria, mas a engrandecerei.">? É o que André Gide denominaria, como classi
ficou certa página semelhante de Maurice Barres: pura literatura de odalisca.
Depois disso, que dizer do Helenismo de Coelho Neto?
O próprio Tobias Barreto, já em 1 862, declarava: "Sou grego, pequeno
e forte." Joaquim Nabuco, em carta a José Veríssimo, protestava contra o fa
to de se chamar Machado de Assis de mulato, dizendo: "A palavra não é lite
rária, é pejorativa, basta ver-lhe a etimologia. De mais, o ser mulato em nada
• 1 ,,
: 1 afetava sua caracterização caucásica. Eu pelo menos vi nele o grego.
; 1 Quase na mesma época, Afrânio Peixoto escrevia: ''As sub-raças origina
! 1
; 1 das do contato são inferiores, na imensa maioria dos indivíduos, aos seus
. '
; '
componentes. As proclamadas exceções individuais ajudam a regra e são jul
! : gadas com benevolência. Se nos espanta e admiramos com fervor o talento
de alguns dos nossos mestiços célebres, ele não veio sem neuropatia, e é caso
para espanto e admiração .. .')8 Tese das mais falsas, inteiramente desmentida
pela ciência moderna.
Até Monteiro Lobato com seu espírito realista, em plena juventude, mos
trara-se enamorado da Grécia, chegando a forçar um paralelo entre a Hélade
e o Brasil. Em carta a Godofredo Rangel (3-2-1 908),9 comunicando-lhe que
se achava em Areias, a ler Homero, escrevia: "Que diferença de mundos!
'
' Na Grécia, a beleza; aqui a disformidade. Aquiles lá; Quasímodo aqui." E lo
1 ! go depois este trecho, em que o futuro auror do Jeca Tatu refletia diretamen
!' ''
' '
te o preconceito da época: "Estive uns dias no Rio. Que contra-Grécia é o
Rio! O mulatismo dizem que traz dessoramento do caráter. Dizem que a
i1
. ; mestiçagem liquefaz essa cristalização racial que é o caráter e dá uns produ-
1 Mas antes da obra de Gilberto Freyre procurar tirar-nos dessa ilusão com
1
que nos defendíamos, ingenuamente, de um sentimento absurdo de inferio
ridade racial, Gilberto Amado, nas páginas de Grão de areia, 10 já erguera o
seu corajoso protesto. Num ensaio em forma de carta a um amigo, por ocasião
da guerra de 1 9 14, escrevia ele: "Pois paraibano pode ser latino?"; e pouco
1
1 10. Gilberto Amado, Grão de areia, pág. 1 9 e segs., Jacinto Ribeiro Santos, Ed., Rio, 1 9 1 9.
l CAPÍTULO X .� I 5 9
adiante: "Por minha parte me desvaneceria mil vezes mais a firmeza sem ên
fàse CO!J:\. que o Brasil se reconhecesse a 'República mestiçà dos cientistas eu
ropeus, que falam a verdade, do que a facilidade vaidosa com que ele se acre
dita a 'República latinà ... 'o país irmão' ... 'os irmãos latinos da Américà ... "
Para, afinal, dizer com franqueza: "Sejamos cafuzos ou curibocas resignados,
procurando honrar o nosso sangue pela dignidade do nosso estilo de ho
mens e não pelo blasonar de hereditariedades que não são nossas."
Era uma voz poderosamente realista a reivindicar a nossa autenticidade
racial. Os "gregosn e os "latinos" que pululavam na literatura brasileira esta
vam seriamente ameaçados.
l
cia de Wilde; enquanto em A mulata de Carlos Malheiro Dias, publicado em
1896, vemos um personagem Julião, no seu amoralismo cínico, que tanto es-
CAPÍTULO XI � 1 6 1
candaliza Edmundo, o herói do romance, referir-se, de passagem, a Wilde e
ao rei da J3aviera.
Por certo, se o caso se desse com um escritor francês, não passaria tão des
percebido. Depois do domínio de Byron, no período romântico, não tínha
mos reatado a familiaridade com nenhum poeta inglês; e além disso, o reno
me de Wilde só se avultou depois do processo. Antes, sua voga estava mais
ou menos circunscrita ao ambiente londrino - onde os teatros lhe represen
tavam com êxito as peças - e a determinados círculos de escritores france
ses. Um dos primeiros artigos publicados sobre Wilde no Brasil, e talvez mes
mo o primeiro, teria sido o de João do Rio, no número de abril de 1905, na
revista Renascença, sob o título "Breviário do artificialismo". Inicialmente, o
autor narra como travou conhecimento com a obra de Wilde, naquele tom
que lhe era peculiar, despertando por vezes a desconfiança de uma mistifica
ção. Conta-nos que há cerca de dois anos estudava com Mrs. Fox os humo
ristas e os pré-rafaelitas ingleses, quando, certo dia, depois de ouvi-la recitar
o trágico poema de Austin sobre Polifemo, foi procurar na biblioteca um li
vro novo. Eis que seus dedos tocam num volume sujo, em mau papel, da
Casa Hunro, de Nova York. Eram os poemas de Wilde. Alvoroçou-se, pois
já conhecia a legenda do poeta. Abriu nervoso o volume, na iinsia de encon
trar a "ode da perdição", experimentando a irresistível tentação do fruto
proibido. "Ah! este homem não se deve ler!" - atalhou Mrs. Gladys, que
depois de lembrar o processo, muito vermelha, prosseguiu: "Conheci-o em
Londres, antes... Era um homem assombroso. A cidade toda, a Inglaterra in-
teira venerava-o ... "
Seis meses depois, a Casa Crashley mandava participar a João do Rio
a chegada dos livros de Wilde que ele havia encomendado. O livreiro logo
lhe foi explicando que as obras de Wilde tinham sido queimadas depois do pro
cesso, sendo difícil encontrá-las, e custavam muito caro, com exceção de In
tenções, de que se fizera uma edição em Paris. E, expondo-a aos olhos do jovem
escritor, ia-lhe dizendo os preços, até chegarem num folheto de quatorze pá
ginas do qual se fizera uma edição restrita de setenta e cinco exemplares, dis
tribuídos entre os amigos do poeta, por ocasião do processo. Intitulava-se
Frases e Filosofias para uso da juventude. É esse folheto que João do Rio con
sidera um "breviário de artificialisrno)), no referido arrigo, traduzindo-lhe um
1
Rio traduziu Intenções e o Retrato de Dorian Gray, trabalhos apressados, mas
nos quais se percebe a nota de brilho e colorido que o cronista punha em tu
do quanro escrevia. No enranto, a influência de Wilde, no caso, se manifestou
antes no tipo requintado, aristocrático, displicente, meio cínico, que ele com
pôs procurando, até certo pomo, irritar, chocar, escandalizar o meio carioca
1
do " 1900", assim como o autor de Dorian Gray o fizera na Londres vitoriana.
Outro grande wildiano foi Elísio de Carvalho, que traduziu Uma tragédia
florentina, para se tornar depois perito em datiloscopia e escrever um livro -
t
1
1. O nome completo de João do Rio era João Paulo Coelho Barreto. Na intimidade familiar
chamavam�no João Paulo. "Fui aluno do seu pai, o prof. Alfredo Coelho Barreto" - escreve�
nos Vivaldo Coaracy -, "que sempre por essa forma, e com muito desvanecimento, se referia
ao filho. Talvez esse 'João' que quase todos ignoravam tivesse tanta influência na escolha do
nome literário quanto o Jean de Jean Lorrain. A aproximação entre Jean Lorrain e João do Rio,
aliás, é muito bem indicada. E, a aceitar o que diz a maledicência, não se limitaria ao terreno
1
intelectual ou literário."
C A P Í T U L O X I bA l 6 3
Mais tarde, ao traçar o perfil de Pinheiro Machado, em crônica que figu
ra no livro No tempo de Venceslau, João do Rio se deixa levar, visivelmente,
pelas sug�stões de Nietzsche. O que ele admira no chefe gaúcho é sobretu
do o homem de vontade, que sabia querer. Classifica-o de alma púnica, alma
de conquista, de luta, de domínio. E em pleno terreno da ética nietzschiana
escreve: "Cheio de erros ou de bens, ele foi o exemplo mais tenaz, mais agu
do, mais esmagador do homem que quer, para além do bem e do mal." (O gri
fo é nosso.) "O homem nasceu para dominar. É feliz aquele a quem só a
Morte arranca o supremo domínio. Porque é na vida a exceção e o único
que no pó interessa e empolga e prende e domina, como se vivesse e domi
nasse e mandasse. "3
Sem visão de sociólogo, o cronista não explica o caudilho no meio e no tem
po em que viveu: transforma-o num herói de Shakespeare, numa personificação
do amoralismo nietzschiano. Aliás as influências do autor de Zaratustra se con
fundiam com as dos doutrinadores anarquistas, e por vezes com as de Ibsen e
do esoterismo, posto em moda pelos simbolistas. Caso típico dessa confusão te
ria sido o do complicadíssimo Magnus Sondahl, descrito pelos cronistas con
temporâneos como um tipo original e excêntrico. Era visto, não raro, pelos ca
fés na companhia de Múcio Teixeira: "( ...) ruivo, de barba ralà' retrata-o Luís
Edmundo - "e o olho de cocoroca, Sar Peladan das nossas letras, fazendo do
cabalismo, do esoterismo, da teosofia oriental e do ocultismo da Índia uma espé
cie de angu literário que nos era servido em graves e intermináveis discurseiras.''
No inquérito de João do Rio as explanações de Magnus Sondahl são as
mais estapafúrdias e sesquipedais. A contrafação de Nietzsche é logo revelada
'10 título do livro que o estranho filósofo diz ter em preparo: Assim falou Sinur,
e do qual lê trechos ao cronista: "Na sua mesa há seis qualidades de tintas" -
escreve João do Rio -, "desde o vermelho carmim à cor de violeta; em cada
tinteiro uma pena descansa." E Magnus, depois de limpar o pince-nez, se dis
põe a responder ao inquérito, falando em ocultismo, hermetismo, cabalismo,
Comte, Buchner, Spencer, Swedenborg, etc.
Em 1 904, o hierofante lançara um pequeno jornal na cidade de Pomba,
O Libertarista, do qual encontramos apenas um número (o de julho)
1 portanto, te virá aumentar. Se o forças a atrair o que parece bom, bonito, útil,
1 embora não seja essa a opinião do teu temperamento, ficas abarrotado, mas
1
e
não aumentado. Faça isso e não me voltarás a dizer que achas Nietzsche 'soporí
fero'. Incrível! Talvez seja o único adjetivo que nunca jamais caberá a Nietzsche.
É ao contrário - é um matador do sono, da estagnação, da lagoa verde. É
um desencrostador.''
E conta a propósito, que se encontrando em São Paulo, no Gazeau, a fo
lhear livros velhos, lia um aforismo, num volume de Nietzsche, quando ouvi
ra um padre sobre o ombro dizer-lhe que se tratava de um autor dissolvente.
A resposra lhe viera instantãnea, como se o próprio Nietzsche a desse, por seu
intermédio: "Tal qual o sabão!" O que o leva a concluir: "Nietzsche é um sa
bão, o melhor desengafeirador que encontrei na vida."4
CAPÍTULO XI � l 6 7
Em outras cartas, Lobato continua a preconizar as virtudes higiênicas desse
sabão. Se Godofredo Rangel resolveu, afinal, desengafeirar-se com Nietzsche
é o que não sabemos ao certo. Poderia ele alegar que dispensava uma filosofia
tão drástica. Não o chamara Lino Moreira em 1903, o "Anjo do Cenáculo",
descrevendo-o assim: "Muitíssimo simpático, grande pureza de linhas. Olhos
grandes e bons, meigos e de grande ternura. Bondosíssimo. Trato de moça, ca
tivante, suave, irresistível. Generoso, modesto, de uma modéstia sincerà'? Pois
para uma criatura em tais condições, qual a necessidade de "desengafeirar-se"?
Entre as obras da época que refletiram a influência do filósofo alemão, des
tacam-se dois romances falsos e medíocres dos quais podemos dizer terem si
do a conseqüência direta da moda de Nietzsche no Brasil: Assunção de Goulart
de Andrade e Exaltação de Albertina Berta.5
O primeiro, alvo de uma crítica severa de José Veríssimo, no Imparcial, re
sume-se no seguinte: um poeta de tipo d' annunziano, ardendo de anseios e de
sonhos, deixa morrer a esposa, arrastado pela sedução de uma mulher que lhe
traz os estímulos de que necessita para realizar-se artisticamente e conquistar a
glória. Mas, desaparecida a esposa, o sentimento de culpa que o acabrunha já
não lhe permite sentir-se feliz ao lado da amante, e uma barreira intransponí
vel se ergue entre ambos. O tema é de pura inspiração nietzschiana: o direito do
artista de viver acima do bem e do mal, de não hesitar no sacrifício, seja lá de
quem for, quando se trata de atingir a plenitude da arte. Marta é uma discípu
la inconsciente de Nietzsche. E não escapou esse aspecto marcante do roman
ce a Barbosa Lima Sobrinho, quando estudou a obra de Goulart de Andrade
no discurso de recepção na Academia Brasileira de Letras. Falando de Marta
diz ele: "Mulher culta, inteligentíssima, intrépida, máscula na segurança e na
força de seus sentimentos, domina e empolga o seu poeta. Não interessam as
convenções nacionais; despreza o julgamento público ou até mesmo deseja en
frentá-lo e combatê-lo. De acordo com o voto de Nietzsche, estava sua alma li
berta de toda obediência, de toda genuflexão e de todo servilismo."6
1i
aquela criatura amorosa e fiel, de cujo sofrimento se tornara a causadora,
Ladice resolve romper com o poera e suicidar-se em seguida, escrevendo-lhe
uma carta, com que finaliza o romance. Ladice teria dado assim uma réplica
a Marta, a heroína de Goulart de Andrade. O sentimento, o espírito de renún
cia ante a dor alheia desta vez superava a ética de Nietzsche.
1
o senhor é um moço ingênuo e inexperiente. Mas agora está avisado: não se
meta com eles."
1
7. Fernando de Azevedo, Ensaios, Cia. Melhoramentos, São Paulo, 1929.
8. Revista do Brasil, número 7 1 .
CAPÍTULO XI � I 7 l
Schmidt teria respondido com um "Sim, senhor" de mocinho bem com
portado, vítima de lamentável equívoco; no fundo, porém, se rejubilando
com: aquela glória que o elevava aos seus próprios olhos: ser alvo da vigilância
da polícia parisiense. Devia sentir-se em pleno romance esse jovem poeta líri
co cheio de sonhos.9
Em artigo no Almanaque Garnier ( 1907), Curvelo de Mendonça mos
trava que ao lado dos discípulos de Tolstoi, optando pela não-violência, ha
via os adeptos de Kropotkin pregando uma ação francamente revolucioná
ria e militante. Neste último grupo poder-se-iam incluir o prof. Vicente de
Sousa, José Oiticica, Mota Assunção, Joel de Oliveira, fundando pequenos
periódicos no Rio; Guedes Coutinho, J. Máz y Pí, realizando o mesmo no
Rio Grande do Sul. Os pontos de vista variavam, as convicções se tingiam
de nuanças.
i Alcindo Guanabara, que ao embarcar deportado para Fernando de Noronha,
i
; 1 em 1 897, envolvido na conspiração contra Prudente de Morais, levava debai
i 1
i xo do braço A conquista do pão, de Kropotkin, era dos que oscilavam entre con
ri. cepções vagas e incertas em busca de um sistema conciliatório. Viveiros de
-, : ':'' '';
'
.
'
Castro e Evaristo de Morais revelavam tendências libertárias em trabalhos jurí
dicos. E o mesmo se verificava de quando em quando - informa-nos Curvelo
de Mendonça - nos escritos de José Veríssimo, Medeiros e Albuquerque,
Olavo Bilac, Frota Pessoa, Manuel Bonfim. Vítor Viana se inclinava para uma
9. Em livro sob o título de Primeira viagem, recentemente acrescido às suas "Obras completas",
Afonso Schmidt, em forma romanceada, conta-nos episódios de sua aventura européia: a
chegada em Paris, em 1905, com meia dúzia de francos no bolso, a lura pela subsistência na
grande cidade, enquanto aguardava das autoridades consulares uma passagem para o Brasil
como indigente. Schmidt realizou, ainda, segunda viagem à Europa, à qual se referiu numa en
trevista a Paulo Dantas (A Gazeta, São Paulo, 1 2-12-1953). Dessa vez andou pela Itália, sem
pre na atitude de um vagabundo romântico e não-conformista. Andou por Milão e outras
cidades da Itália e quase sem dinheiro chegou à fronteira francesa. Era o Mont-Cenis. De um
lado a Itália, do outro a França. Modanne estava próximo. Sendo a primeira estação francesa
' ' fronteiriça, era para lá que a polícia deportava os tipos suspeitos. Nas condições em que se en
' i
' ' contrava, Schmidr não podia deixar de ser um tipo suspeitíssimo e cair sob as vistas das au
: l .
toridades. E a aventura termina corn urna carta do jovern brasileiro ao príncipe dom Luís de
Orléans e Bragança. Do Castelo D'Eu, o príncipe envia-lhe cínqüenta francos. Schrnidt pode
então partir para Marselha, de onde fOi pela segunda vez repatriado.
C A P Í T U L D_ X I é:A l 7 3
A literatura brasileira teve nesse período uma peça de pura inspiração
ibseniana, o Malasarte, escrita diretamente em francês por Graça Aranha e re
presentada pela primeira vez em Paris em 1 9 1 1 , sob a direção de Lugné-Poe,
encarregando-se dos papéis principais: Pierre Samson, De Max, Greta Prozor
e Gina Barbieri. Graça Aranha quis fazer do conhecido tipo do nosso folclo
re uma espécie de Peer Gynt tropical, não emprestando, entretanto, à peça um
caráter brasileiro. O enredo resume-se na aventura sentimental de Eduardo,
que atraído por Dionísia, uma ondina das águas guanabarinas, parte com ela
para a ilha da Boa Viagem, transformada em Citera, onde passam a desfrutar
os encantos do amor numa vida livre e natural. Mas como não fora feito para
o sonho, cedendo aos rogos da mãe, volta à terra firme, enquanto Dionísia e
Malasarte libram-se no oceano em demanda do palácio de coral. Eduardo re
presenta a resistência da realidade aos convites do sonho, enquanto Malasatte
surge como o gênio de uma fantasia inquieta, capaz de descobrir a face mara
vilhosa das coisas. A peça teve alguns elogios na imprensa francesa, inclusive o
de Henri de Régnier, na Révue Hebdomadaire.
Eça de Queirós não foi somente uma grande influência na literatura bra
sileira; foi também moda literária, que se iniciou por volta de 1878, quan
do se divulgou aqui O primo Basílio - implantando o que os cronistas da
época chamavam de "basilismo" -, até a guerra de 1 9 14, mais ou menos.
No começo do século XX, Eça continuava a ser uma obsessão para muitos
intelectuais brasileiros. E presenciavam-se episódios como este: numa parti
da de Olavo Bilac para a Europa, os amigos, ao acompanhá-lo a bordo, re
citavam versos com alusões aos personagens do romancista português. Bilac
ia a Portugal e era como se fosse encontrar aquela comparsaria d' Os Maias,
d' O primo Basílio, d'A relíquia, tida como criatura de carne e osso, gente de
verdade por todos os leitores e admiradores de Eça. Em meio dos adeuses
em verso, Goulart de Andrade enviava "uma beijoca bem boa no imortal
Johannes da Ega"; outro mandava recomendações ao conselheiro Acácio, e
assim por diante.
Ao chegar em Lisboa, Bilac apressa-se a telegrafar aos amigos, declarando
que beijara por todos a estátua de Eça, na praça Barão de Quintela. E depois,
no regresso do poeta, mal ele aparece a bordo, Guimarães Passos exclama:
"Viste lá o Libaninho? Gozando a vida, o pândego! ... " Bilac vai logo dando
"Conhecia a humanidade
Como ninguém conhecia
' Por cima desta verdade
í O manto da fantasia."
1
1
E no Teatro de Dona Maria teria pronunciado uma conferência sobre o
autor d'A cidade e as serras. 1 0
Na correspondência de Monteiro Lobato e Godofredo Rangel temos
ocasião de ver um grupo de jovens acadêmicos de direito, em São Paulo,
exercitando os primeiros passos na literatura, e sofrendo como os boêmios
do Rio a mesma sugestão de Eça. Basta notar o nome da agremiação que
formaram: O Cenáculo. E a idéia de chamar de Cainçalha o grupo não vi
ria, precisamente, de um conhecido episódio narrado nas Farpas? Conta
Ramalho Ortigão que, para oferecer a uma senhora um leque perdido nu
ma aposta, Eça de Queirós pedira aos amigos Antero, Ramalho, Oliveira
Martins e Junqueiro, que escrevessem na ventarola1 ornada de uma aquare
la representando um grupo de cinco cães, uma frase qualquer. A de Antero
1 10. Lourdite Cunha, Quintíno Cunha no conceito dos seus contemporâneos, Pongetti, 1955.
l
cão filósofo aboca o melhor osso"; a de Guerra Junqueiro: "Cão de letras -
cachorro!" Esses "latidos" eram seguidos do seguinte Envoi assinado por
"A Matilha":
l
tor procurou sistematizar. Na parte relativa à biografia, Miguel Melo escusou
se de não fazer trabalho mais completo, alegando escassez de dados e decla
rando que só numa viagem a Lisboa se poderiam obter subsídios necessários.
Outras falhas do livro decorreram também dessa carência de elementos infor
mativos. Onze anos após a morte do romancista, os portugueses, que tinham
1 ao alcance tais elementos, não haviam começado a vulgarizá-los. Miguel Melo
1
foi, assim, o pioneiro de um assunto cuja exploração cabia em primeiro lugar
aos portugueses, e isso diz bem do quanto Eça preocupava os intelectuais bra
sileiros na época. Detalhe curioso, que não podemos deixar de assinalar, é o
1
14. Miguel Melo, Eça de Queirós - A obra e o homem, Ran1ori & Cia., Rio, 1 9 1 1 .
CAPÍTULO XI � l 7 7
seguinte: ao referir-se a Oprimo Basílio, Miguel Melo descobre uma nítida se
melhança com a Casa de boneca, de Ibsen; aproximação sem dúvida forçada,
mas qtfe indica a influência do "ibsenismo", então em moda.
Quando o jovem Adoasto de Godói se transfere para o Rio em 1903 e, de
pois de obter emprego na Central do Brasil, se põe a escrever comentários le
ves e elegantes n'A Imprensa de Alcindo Guanabara, é com o pseudônimo
de Carlos Eduardo que os assina. 15 Em 1 9 1 6 estará, ele, com Antônio Torres
e outros escritores, a publicar na Gazeta de Noticias umas epístolas morda
zes a figurões do meio carioca. Daí resultará o livro Correspondência de joão
Episcopo, editado em 1 9 1 7, reunindo as melhores cartas de Torres e Adoasto
com as respectivas iniciais A. T. e A. G., traduzindo no título pura reminis
cência de Fradique Mendes. Mas Gastão Cruls nos informa que, já pelas co
lunas da A Notícia, Antônio Torres divulgara algumas "Opiniões de José
Eleutério", à maneira da Correspondtncia de Fradique Mendes ou de jer8me
Coignard, de Anatole France.
Ainda em 1 9 1 5 , na revista O Pirralho, publicada em São Paulo, encon
tramos uma das últimas manifestações da moda de Eça de Queirós, num in
quérito promovido por Oswald de Andrade, em que eram dirigidas aos escri
tores as seguintes perguntas: acha Fradique Mendes um tipo representativo
de vida superior? Em caso contrário, qual na sua opinião o tipo perfeito? Res
ponderam, entre outros, Amadeu Amaral, Cláudio de Sousa e Guilherme de
Almeida - que então se assinava G. de Andrade e Almeida-, todos enchen
do mais de uma página da revista.
O futuro auror de Nós, depois de assinalar os atributos do herói de Eça,
concluía negativamente: ''Parece, sim, o homem superior, mas não o é. Não o
é, porque foi titubeantemente o camaleão, 'o devoto de todas as religiões, par
tidário de todos os partidos, o discípulo de todas as filosofias', porque só an
dou egoisticamente, 'à busca de verdades que não eram para o ruído e para o
mundo', porque não deixou uma obra, pois Fradique 'nunca foi verdadeira
mente um autor'; faltou-lhe, para isso, 'a certeza do seu valor definitivo, a ar
te paciente, o querer forte para produzir aquela forma que ele concebera em
abstrato, como a única digna de encarnar suas idéias'; não o é, porque teve a
1 5. Gastão Cruls, Antônio Torres a seus amigos, Cia. Editora Nacional, S. Paulo, 1950.
CAPÍTULO X I I � l 8 l
procurou, antes de mais nada, foi reabilirar o culto da poesia, a alta condição
do poeta no mundo, que os parnasianos, numa natural reação aos român
ticos, tend"lam a banalizar. Com o parnasianismo a poesia enveredara, fre
qüentemente, por setores que lhe eram inteiramente alheios - o da ciência,
da ação social, da luta política. Nas vésperas da República, surgiram muitos
panfletos em versos. O poeta ia perdendo aquela dignidade de ser superior
que coloca a arte acima de tudo e não desvirtua nem lhe abastarda o culto.
Os parnasianos, embora muitos fossem realmente boêmios, tinham sido, na
maioria, aquilo que hoje nos habituamos a chamar de "cavadores". Lutavam
ardorosamente pela vida, prontos até a fazer sonetos de encomenda, sempre
que isso lhes rrouxesse vantagens econômicas. Bilac não hesitou em pôr a ha
bilidade de versejador, que nele prevalecia ao lado do verdadeiro poeta, a ser
viço de empresas comerciais. Havia, entre os parnasianos, bons burgueses à es
pera de oportunidade para se amesendarem na vida. E se continuavam em má
situação financeira, não seria pelo sacrifício que faziam da condição de poeta.
Uma das primeiras coisas que os simbolistas desprezaram e combateram
nos parnasianos foi a vulgaridade. Vulgaridade, já quase implícita nos câno
nes da própria escola que reduzia o culto da forma a uma simples questão de
paciência - como na atitude perante a vida e o mundo. Mas não procura
vam com isso preconizar uma volta ao desajustamento dos românticos e nem
j ulgar os poetas pelo fato de serem diferentes do comum dos mortais, como
incapazes de se articular na sociedade. Repeliriam, energicamente, a classifi
,,
cação de "marginais que mais tarde lhes atribuíram, se ela então já estivesse
em uso. Concordavam em exercer empregos públicos, desempenhar funções
no ensino, na magistratura, etc., em lutar pela existência, enfim, à seme
lhança de qualquer burguês, com uma ressalva apenas, a de não empenhar
nisso a condição de poeta. Este permaneceria intangível na sua elevada ca
tegoria espiritual, acima de todas as pequenezas do mundo. E justamente
por essa dignidade, essa aristocracia moral, muitos deles se recusavam a cer
tas competições no terreno da vida civil, vindo a arcar com dificuldades eco
nômicas, preteridos em suas justas aspirações a determinados cargos, relega
dos ao esquecimento quando se tratava de passar à frente dos outros ou
reclamar direitos. Não será mera coincidência, entre os simbolistas, o des
prendimento de um Rocha Pombo, de um Nestor Vítor, de um Colatino
1. Medeiros e Albuquerque, Minha vida, vol. II, Calvino Filho, Editora, Rio, 1934.
2. Andrade Muricy, Panorama do movimento simbolista brasileiro, vol. 1, págs. 47�48, Instituto
Nacional do Livro, Rio, 1952.
1 CAPÍTULO XII � 1 8 3
nossos simbolistas foi a ponto de exclamar diante da famosa dinamite de
Vaillant - que deu uma página a Eça de Queirós: "Que importa, se o gesto
é belo?!. .<;", mas muitos sonharam com "a bênção universal da anarquià', como
o ideal de um mundo superior, feito para os poetas. O anarquismo puramen
te utópico era o regime que convinha à "torre de marfim" dos simbolistas.
A aristocracia que os caracterizava não podia se amoldar à vulgaridade burguesa;
mas poucos se teriam lançado à ação militante que os anarquistas começatam
a desencadear na primeira década do século, entre nós, promovendo greves e
agitações. Essa aristocracia impunha até certo ponto aos poetas uma ética à
parte, diferente da dos outros mortais. Reconduziam eles a poesia para o ter
reno da iniciação de que o parnasianismo a retirara, quando admitira implici
tamente que com trabalho, paciência e buril, qualquer pessoa poderia ser mais
o u menos poeta. E o sentido de iniciação levou-os a se agruparem em círcu
los fechados. O poeta procurava readquirir a qualidade de mago, senhor de
uma arte cujos poderes só ele conhece e que consiste em penetrar no próprio
mistério da existência. De onde as relações íntimas com o ocultismo e o títu
lo de uma das principais revistas simbolistas entre nós: Rosa-Cruz. Por aí se
sentiam impelidos, igualmente, à extravagância de editarem livros com forma
to e aspecto gráfico diferentes dos outros. Não precisaremos relembrar aqui
esses pruridos de originalidade.
Afdnio Peixoto, quando se assinava Júlio Afrânio, numa crise de saram
po simbolista, manda imprimir em Leipzig o seu poema Rosa mística nas se
te cores do arco-íris, cada capírulo numa cor. Começava "no vermelho aça
frão, continuava vermelho sangue, chegava a azul, acabava violeta, sendo
o último ato de escuridão e de morte, negro. As cores iam de par com a gra
dação psicológica."3 O volume Manchas, de Antônio Austregésilo, traz a ca
pa toda manchada de negro, como se fora pelos dedos dos tipógrafos.
Outro poeta, mais original ainda, imagina um volume de forma circular,
correspondendo ao tírulo Lua cheia. E Osório Duque-Estrada, no Correio
3. O editor Brokauss, que imprimiu a obra, disse a Juliano Moreira: "Tenho nas minhas coleções
os livros mais extravagantes, grandes, mínimos, ilustrados, papéis preciosos, tenho tudo, mas tão
maluco quanto esse impresso com o arco-íris1 nenhum." Afrânio Peixoto renegou Rosa mística,
escrevendo à margem do exemplar existente na biblioteca da Acadenlia Brasileira: "Incorrigível.
Só o fogo. A.P 1 914." (Leonídio Ribeiro, Afrânio Peixoto, Edições Condé, Rio, 1950.)
11
sempre com os olhos voltados para o céu. "Pois bem" - considera Venceslau
de Queirós -, "quem lê um salmo destes acredita que o seu autor é um ce
nobita que vive na cela de um convento, tendo por leito um catre de ferro
com duro enxergão, uma bilha de água, um crucifixo, comendo uma vez por
dia pão negro e rezando sempre no seu breviário com a cabeça cheia de cinzas
e os rins de cilício. Mas que ingênuo é o leitor! B. Cepelos não é nada disso:
l
é um jovem com bom sangue a transparecer-lhe no rosto, bigodes alourados,
um perpétuo sorriso nos lábios sadios e vermelhos. Mas o interessante é no dia
em que publicou ele a tal lamúria, o encontrei à noite numa brasserie, em fren
te de um chope, com demonstrações visíveis na sua fisionomia simpática de
que o céu a que se referia no seu soneto não é o céu dos católicos - é o céu...
da boca." Também o famoso satírico, padre Correia de Almeida, não acredi
tava na religiosidade dos jovens discípulos de Alphonsus de Guimaraens, que
l
se reuniam em Belo Horizonte, na primeira década do século XX, como ve
remos mais adiante.
O romantismo tivera seu maior desenvolvimento em São Paulo por cau
1
sa da Faculdade de Direito; o naturalismo, embora produzindo seus frutos
na metrópole, deitou suas mais fortes raízes no movimento cientificista do
Recife. Com o simbolismo verificou-se um curioso fenômeno de aclimata
1 ção nas províncias sulinas: Paraná, Santa Catarina, Rio Grande do Sul.
1
l C A P Í T U L O X I I. � ! 8 7
Augusto Meyer fula num estado de cumplicidade sugestiva, "nas paisagens
outonais e em outras predisposições igualmente imponderáveis". "Porto
Alegre, ;idade roxa'' - dizia Aldo Mota.
E como se dera, havia quase cem anos, com o romantismo alemão, o sim
bolismo brasileiro caracterizou-se pela formação de grupos, em que a admira
ção mútua se identificava com uma extrema amizade. Amigos que choravam
e sofriam uns pelos outros. Muitos desses grupos já vinham do século XIX,
como, por exemplo, o que se formou no Rio em torno de Emiliano Perneta,
então redator-secretário da Folha Popular e que existiu por volta de 1 890-
1 892. Segundo Andrade Muricy, foi esse o grupo simbolista mais antigo e o
que lançou o movimento e os manifestos iniciais (sem embargo da prioridade
cronológica de Medeiros e Albuquerque). Entre seus componentes se conta
vam, além do próprio Emiliano, B. Lopes (o de mais prestígio, graças ao êxi
to nacional dos Cromos), Cruz e Sousa, Oscar Rosas, Virgílio Várzea, Gonzaga
Duque, Lima Campos, Artur de Miranda. Mais tarde, dessa turma só resta
ram Cruz e Sousa e Artur de Miranda, agora porém acompanhados de Carlos
Dom Fernandes, Tibúrcio de Freitas, Nestor Vítor e Maurício Jubim.
A morte do "Cisne Negro" provocou uma cisão nas hostes simbolistas, daí
nascendo dois grupos, o da Rosa-Cruz, que incluía entre outros a Félix
Pacheco, Saturnino de Meireles, Pereira da Silva, Artur Guaraná e Carlos
Dom Fernandes, e o comandado por Nestor Vítor, de que participavam
Gustavo Santiago, Oliveira Gomes, Colatino Barroso, Silveira Neto, Antônio
Austregésilo, Rocha Pombo, os dois Pernetas, João Itiberê da Cunha, que vie
ra da Bélgica, com o nome de Jean Itiberê, o Jic das crônicas musicais do
Correio da Manhã, portador das "sagradas escrituras simbolistas"; Santa Rita,
Sebastião Paraná, Dario Veloso e mais alguns. Maurício Jubim freqüentava as
duas rodas rivais. Tramava�se entre esses grupos uma série de pequenos me�
xericos, hostilidades, intriguinhas. Cada um negava, como é de praxe, qual
quer valor ou mérito aos membros do outro grupo. A obra de Cruz e Sousa
era retalhada entre as duas hostes. Nestor Vítor publicou os Últimos sonetos;
a Rosa-Cruz retrucou editando as Evocações.
Havia também flutuando em meio dos dois grupos uma geração mais mo
ça de escritores em perspectiva, simbolistas quase todos, nutridos de esperan
ças e ambições, que também faziam parte da "vida literária'' do tempo. Alguns
CAPÍTULO XII � l 9 l
la Sirenetta... '!'ultima, che cantá per cantare, per cantare solamente, ebbe la sor
te bel/a. Le sirene del mare la vollero per sorella'. Nenhum de nós tinha vinte
anos ... d ara Della Guardia passara pela nossa juventude, com as mãos boni
tas, a voz dolente e aquelas peças doidas ... Voltávamos transidos dos espetácu
los. A grande revelação! Desde o sonho que ela nos dera, vinda de tantas ce
nas do mundo, ficamos interinos na realidade. .. A legenda gravada na placa
colocada no saguão do Teatro São Pedro e oferecida por um discurso de
Felipe, orientava a nossa exaltação: 'Cosa bel/a mortal passa, e non d'arte. '
A província é a sensibilidade. Da província é que vêm as ilusões, o encanto
dos erros bons, os ingênuos projetos que nunca se executam ... " 11
1 1 . Esta página foi incluída em As amargas, não . , Rio, 1954. Transcrita que estava de um velho
. .
!
1
e quando data o costume de se pronunciar conferências lite
rárias? "Na época românticà' - diz André Billy (Figaro
Littéraire - 1 7 de janeiro de 1 953) - "houve grandes orado
1
francês acha que a conferência teria sido inventada por Émile Deschanel,
que refugiado na Bélgica, depois do golpe de 2 de dezembro, inaugurou
o gênero em Bruxelas. Mas, pouco antes, em 1 870, Ernest Lecouvé, Henri
Brisson, já haviam feito em sala aberta, em Paris, palestras sobre temas fi
losóficos e sociais. Logo depois, marcaram época as matinées de Ballandes
e as matinées do Odéon; enquanto na Bodiniere, na rua de Saint-Lazare,
com Jules Bois, Victor Du Bled, George Vanor, a conferência tomava um
caráter mundano. Mais tarde, a criação da Université des Annales pôs em
moda de tal maneira o gênero que as conferências se multiplicaram por to
da parte, em Paris.
E no Brasil? Sabe-se que a época das conferências, entre nós, foi por ex
celência a primeira década do século XX. Mas antes não existiria o costume?
Existia. Habituados a imitar em tudo os franceses, adotamos aqui a confe-
C A P Í T U L O X I I I 6:::9 1 9 3
rência, logo após a sua implantação em Paris.1 Na Gazeta de Notícias de 29
de agosto de 1875 encontramos um folhetim, sob a assinatura de Jorge
d'Odemfra, em que este reclama: "Não tivemos ainda conferências populares,
,,
o que tem havido são conferências literárias. Isto cinco anos após a data a que
André Billy faz remontar a inauguração do gênero. Mas por que reclama o fo
lhetinista conferências populares? Muito simples: porque eram de caráter filo
sófico e social as primeiras pronunciadas em Paris, segundo nos informa Billy.
Compreendemos perfeitamente o protesto, quando logo adiante vemos o fo
lhetinista dizer que a idéia das conferências foi a de pôr o povo a caminho de
resolver os "problemas sociais)'. Do que deviam tratar era, sem dúvida, do
"aperfeiçoamento moral do povo e da sua felicidade". E citava a França, a pro
pósito: assim é que lá se fazia.
Três anos depois, no mesmo jornal, encontramos outro folhetim, sob a
assinatura de Amenof Effendi, evidentemente pseudônimo, que num tom
humorístico, à moda das Lettres Persanes, simulando um egípcio em excur
são pelo Brasil, escreve: "Uma das enfermidades que aqui encontrei, revela
da muitas vezes por verdadeiros espasmos, é a conferenciomania. De repen
te há uma convulsão epileptiforme, os diários escrevem verdadeiras loas,
entoam hinos, hosanas, os músicos forasteiros esperam ser chamados para
robustecer o aplauso, pagando-lhes já se vê, e um conferencista aparece.''
Continua Amenof Effendi dando-nos, em resumo, o quadro caricatural de
uma dessas conferências.
Portanto, já em 1878 havia quem considerasse a proliferação do gênero,
entre nós, uma verdadeira mania. Presumo no entanto, nas entrelinhas do fo
lhetim, uma alusão satírica às famosas conferências da Escola da Glória, pro
movidas pelo imperador, mais ou menos nessa época, e que, naturalmente,
tinham contribuído para criar a moda. A verdade é que só na primeira déca
da do século XX a moda ressurgiria com muito maior intensidade.
1 . Já em 1865, Agassiz, em visita ao Rio de Janeiro, dava em francês, no Colégio Pedro II, uma
série de "lições familiares" , que outra coisa não eram senão conferências. "A principio a pre
sença de senhoras foi julgada impossível como sendo demasiada inovação nos hábitos na
cionais; mas esse preconceito logo vencido, as portas se abriram para todos à rnoda da Nova
Inglaterra." (Louis Agassiz e Elizabeth Cary Agassiz, Viagem ao Brasil (1865-1866), nad. de
Edgard Süssekind de Mendonça, Cia. Editora Nacional.)
1
floreios literários inconseqüentes, realçados pelo jogo cromático das antíteses.
Não conhecemos na literatura francesa, o nosso modelo preferido na época,
páginas como as que vários conferencistas aqui reuniram em livro. Lendo-as
hoje vemos como soam falso, como atendiam ao gosto de um auditório geral
i
mente fútil, corrompido pela ênfase, o rebuscado, a literatice. Não seria de
mais ver em muitas conferências nos moldes aludidos uma expressão inferior
1
do parnasianismo. Faziam-se elas com material semelhante ao da poesia par
nasiana, havendo até identidade de vocabulário. Basta notar alguns temas:
"A água'', '<O fogo", "O espelho", ''A tentação", "A dança'', �'A noite e o dià',
''A mulher". Não parecem títulos de sonetos parnasianos? Assim, na medida
em que o parnasianismo, atingido pela campanha dos modernistas, entrou em
franco declínio para desaparecer quase totalmente, também a conferência li
1
terária, com os caracteres que a tornavam tributária da escola, saiu de moda.
Hoje já a ninguém ocorre uma palestra sobre ((O dia e a noite" ou "A mulher",
à maneira de Oscar Lopes ou de Garcia Redondo. 2
l
1
2. Temas de conferências da época: "O que é melhor", de Carmem Dolores (a autora fazia um
paralelo entre a vida do campo e da cidade para concluir das vantagens da primeira); "Sem me
rir e sem chorar'', de Bastos Tigre; "O elogio da mentira'', de Marcelo Gama; "O rnistério dos
l
j_
CAPÍTULO XIII � 1 9 7
Medeiros e Albuquerque procura justificar a superficialidade em que
incorria a maior parte dos conferencistas, pelo público extremamente hetero
gêneo a que eles deviam satisfazer. "As salas se enchiam, sobretudo de se
nhoras e mocinhas muito gentis, muito encantadoras, mas que não possuíam
nem instrução regular, nem, por isso mesmo, preocupação literária de espécie
alguma. Tinham vindo à cidade passear ou fazer compras e aproveitavam
a ocasião para ir ouvir a conferência do dia. Mas a essas senhoras se juntavam ·
médicos, advogados, engenheiros ilustres, estudantes, homens de letras. Havia
de tudo. Se, portanto, o conferencista elevasse o nível da sua palestra, a gran
de maioria da sala não o compreenderia. Daí a necessidade de satisfazer prin
cipalmente à parte fútil, sem, entretanto, deixar de dar alguma satisfação à
outra. "3 Numa palavra: as conferências eram pagas, tornava-se necessário
agradar a freguesia.
Mas o êxito do gênero resultou, principalmente, do seu caráter munda
no. Tratava-se de uma reunião social, onde as mulheres, geralmente, iam com
o espírito com que se vai ao chá-dançante, e os homens acorriam, em parte,
para ver as mulheres. Além do que, uma circunstância importantíssima pesa
va no caso: em Paris se fazia assim, esse era o chique em Paris. O Instituto
Nacional de Música tornou-se a nossa Université des Annales. Quanto aos
escritores, inclinavam-se para o gêneroi não somente pelo lucro financeiro,
como porque nessa época, em que o sensacionalismo começava a se implan
tar em nossas letras, e ainda não se dispunha do sistema de propaganda lite
rária de hoje, pronunciar uma conferência constituía um dos melhores meios
de dar na vista, de chamar a atenção para a própria pessoa, fazer o próprio
reclame, enfim.
' Segundo Medeiros e Albuquerque, Bilac foi o mais popular dos intérpre
'
'
1 '1 tes desse curioso espetáculo mundano. "Tinha uma voz muito bem timbrada.
!'
' ' Lia e dizia de um modo perfeito." E a julgar pelo que as conferências rendiam,
1
sentidos", de Lindolfo Color; ''.Anjos da guarda", de Belisário de Sousa; "O sabá", de Teixeira
Leite Filho; "Estética das batalhas", de Gregório da Fonseca; "Os mistérios do luar", de Floriano
de Lemos. De vez em quando, um conferencista, como Coelho Nero, anunciava um tema
sibilino, "Espectros divinos", aguçando com isso a curiosidade do público que comparecia para
ver do que se tratava.
3. Medeiros e Albuquerque, Minha vida, págs. 180� 1 8 1 .
1
ferencistas em excursão pelos estados. Osório Duque-Estrada, visitando o
Nordeste, foi chamado de "estradeiro" em Fortaleza pelo Unitdrio, jornal de
lo
João Brígida. Sebastião Sampaio, que se apresentava como discípulo de João
CAPÍTULO XI I I �199
do aceitar o cartel, o ir1não, o engenheiro Máximo dos Santos, telegrafou do
Maranhão dizendo que iria a Belém substituí-lo. Mas parece que Rafael
Pinheir� , com um senso muito prático) não aceitou a substituição, porque
o duelo não se realizou.6 Eis alguns aspectos imprevistos da moda das con
ferências. E é preciso acrescentar ainda que ela se estendeu até o próprio ter
reno da oratória sagrada. Ninguém ignora o que foi o sucesso das conferên
cias do padte Júlio Maria na época, atraindo grandes auditórios, não só de
fiéis como de profanos. Certa vez, o entusiasmo dos ouvintes chegou a tal
ponto que uma salva de palmas cobriu as últimas palavras do orador, tor
nando-se necessária a intervenção das autoridades eclesiásticas para que tais
excessos não se repetissem nas igrejas.
1
1
s principais editores da década de 1900, no Rio, eram os
Laemmerts, o Garnier, Francisco Alves, o Jacinto e o Quaresma.
Na província, o movimento editorial continua a ser muito pe
queno. Em São Paulo, existe a Livraria Teixeira, que no século
XlX lançou dois best-sellers: Poesias, de Bilac, e A carne, de Júlio Ribeiro.
A Livraria Quaresma merece uma referência mais detalhada pelas inovações
que introduziu. Tendo em vista a pouca cultura do nosso povo, Pedro da Silva
Quaresma, que se instalara, desde 1 879, na rua São José, compreendeu que
o meio de levá-lo ao livro era dar-lhe leitura fácil, amena ou de interesse práti
co, mas de cunho essencialmente popular, ao alcance de qualquer um e em bro
churas de preço módico. Daí o verdadeiro gênero por ele criado entre nós, e
o rótulo de "edição Quaresmà', que passou a designar, de maneira geral, as edi
ções populares para o grande público. Alguns escritores de terceira categoria for
neciam-lhe essa subliteratura que ele espalhava, com grande êxito, por todos os
cantos do Brasil. Em qualquer velha residência lá pelos sertões da Bahia ou pe
lo norte de M inas ainda é fácil descobrir-se até hoje, num canto de gaveta, al
guma dessas "edições Quaresmà'. O leitor iletrado nelas encontrava um precio
so elen1ento, que poderia, certarnente, atraí-lo para urn nível 111enos prin1ário.
CAPÍTULO XIV � 2 0 1
Com o pseudônimo de Viriato Padilha, Aníbal Mascare11has escreveu
Os roceirJJs - qualquer coisa de semelhante ao anedotário caipira de Cornélio
Pires - e O livro dos fantasmas - recoita de casos de assombração.1 Com o
pseudônimo de Aníbal Demóstenes, Ticho Brahe de Araújo escreveu o Orador
do povo, e assinando o próprio nome, Histórias brasileiras, narrativas para crian
ças. Enquanto isso, Figueiredo Pimentel se fazia o autor anônimo do Manual
dos namorados. Mais difícil seria dizer quem se achava por detrás do Livro de
São Cipriano, cujas edições até aos nossos dias se têm multiplicado.
Muita gente decerto ignora que foi Pedro da Silva Quaresma quem lançou
Catulo da Paixão Cearense. Antes de conseguir a consagração no mundo das
letras, com o Meu sertão, Sertão em flor e tantos outros, Catulo escreveu para
o editor Quaresma vários livros de modinhas e canções, algumas originais e
�
outras selecionadas, livros que se denominaram Cancioneiro popular, Lira dos
; ! salões, Florilégio dos cantores, Lira brasileira. O autor renegou depois obras
- espécie de pré-história de sua carreira literária -, mas o certo }(J'ue elas
' i obtiveram extraordinária aceitação e continuam a ser até hoje procuradas, em
1
; •
bora completamente esgotadas, apresentando o maior interesse para os pes
; '. quisadores da nossa poesia popular e os estudiosos de folclore. De qualquer
maneira, foi desse Catulo seresteiro, de violão em riste, "edição Quaresma",
que veio a popularidade do lírico do "Marrueiro".
Ao mesmo tempo, Quaresma lançava com igual êxito os livros de modi
nhas de Eduardo das Neves, figura popularíssima quarenta anos atrás, que
costumava fazer sempre canções de oportunidade sobre acontecimentos do
dia. Quem dentre nossos avós ou nossos pais não se recorda do "Cinco de
novembro, data fatal", feito a propósito da morte do marechal Bittencourt,
'
l !
1 ,
1 . 1. A propósito, escreveu-me o escritor cearense Cruz Filho: "Chegando a Fortaleza em 1918,
encontrei Aníbal Mascarenhas que fixara residência nesta capital, vindo do Rio. Lecionava en
tão a cadeira de grego no Liceu do Ceará. Era um velho inteligente versado em Shakespeare.
Travei relações com ele e tivemos ocasião de trocar idéias a respeito de O livro dos fantasmas e
de Os roceiros, que ele disse haver escrito, a pedido do editor Quaresma, numa fazenda do es
tado do Rio, onde se refugiara para concatenar as idéias, longe do bulício da capital. Falei-lhe
do conto A pantera negra, do italiano Emanuel Carneiro, cuja tradução se acha incluída na
edição de O livro dos fantasmas, que eu havia lido. A notícia surpreendeu-o; declarou-me não
ser autor dessa tradução e nem haver autorizado o editor a introduzi-la no livro."
CAPÍTULO XIV � 2 0 3
Em dezembro do mesmo ano aparece Os sertões, de Euclides da Cunha, lan
çado por Laemmert & Cia. Nessa época, com o falecimento do último
Laemmert, a casa estava sob a gerência de Gustavo Masow - informa-nos Luís
Edmundo (O Rio de janeiro do meu tempo), especializando-se na edição de
c@
obras científicas e sérias. Tal o motivo, naturalmente, pelo qual tinham sido
aceitos os originais de Os sertões. Euclides unha era um escritor novo, mas
o livro despertaria o interesse dos editores � fato de focalizar um assunto de
palpitante atualidade. A Guerra de Canudos, acontecimento recente e ainda
discutido, continuava, sob o ponto de vista editorial, pouco explorado. Em car
ta de 10 de agosto de 1902 a Escobar, Euclides escreve: "Venho do Rio, onde
fui - celeremente, de um noturno a outro - para conversar com o Laemmert
e saber o dia que, afinal, ficará pronto o meu encaiporado livro. Felizmente, os
frios alemães receberam-me num quase entusiasmo, e, quebrado o antigo de
salento, quase prevêem um sucesso àquelas páginas despretensiosas."2
José Veríssimo, arriscando todo o seu prestígio de crítico - pois se trata
va de um autor desconhecido e o juízo podia não ser ratificado pelo públi
co -, saúda-o num artigo consagrador no Correio da Manhã. Dentro em
pouco, a primeira edição estava prestes a esgotar-se, e em carta ao pai, datada
de 19-2-1903, Euclides declara: "(... ) recebi uma carta do Laemmert, decla
rando-me que é obrigado a apressar a 2• edição, já em andamento, d'Os sertões,
para atender a pedidos que lhe chegam até de Mato Grosso".3
;l
Quanto rendeu essa primeira edição a Euclides? "Pelas contas que vi" -
diz ele ainda em carta ao pai (25-2- 1 903) -, "as despesas foram, de fato,
grandes - de sorte que, dividindo o líquido, terei um ou dois contos de réis.
É possível que seja mais feliz na 2• edição. Os homens, apesar do que dizem
(e nesta terra, são fáceis os juízos temerários), me parecem sérios. O que so
bretudo me satisfaz é o lucro de ordem moral obtido, a opinião nacional in
teira que, pelos seus melhores filhos, está inteiramente ao meu lado."4
Ah! O que seria da literatura neste país se não fosse isso que Euclides chama
de "lucro de ordem moral"?
2. Francisco Venâncio Filho, Euclides e seus amigos, Cia. Editora Nacional, São Paulo, 1938.
3. Francisco Venâncio Filho, op. cit.
4 . Idem, ibidem.
5. Antônio Torres, Pasquinadas cariocas, págs. 134� 135, Livraria Castilho, Rio, 192 I .
CAPÍTULO XIV � 2 0 5
extremada lusofobia, o autor das Pasquinadas cariocas incorrerá em suspeição
no caso. Mas parece que era essa mesma a idéia generalizada a respeito do ve
;Í
lho livr ro, enquanto ele vivera. Depois de sua morte, a versão modificou-se,
pelo menos no que concerne aos depoimentos de vários acadêmicos, como
Medeiros e Albuquerque, Afo1.nio Peixoto, Rodrigo Otávio, João Ribeiro,
Gustavo Barroso. Todos são acordes em assinalar a delicadeza de sentimentos
que havia por baixo daquelas maneiras aparentemente rudes e grosseiras.
Repeliu-se também como lenda a ignorância, a imagem de analfabeto vi
vendo entre livros. Ao contrário, Alves não só tinha cultura, interessando-se
particularmente pelo estudo de geografia e de história, como chegara a escrever
várias obras didáticas, contribuindo para o desenvolvimento desse ramo edito
rial de que fora considerado por Afrânio Peixoto o pioneiro no Brasil. Publi
cava-as modestamente com pseudônimos, guardando disso absoluto segredo.
Guilherme Prado, que assinara uns Trechos de autores cldssicos, livro para os exa
mes de preparatórios em 1887; F. de Oliveira, que adaptara para uso dos brasi
leiros o popularíssimo método de Ahn, destinado ao ensino do francês, não
' ' eram mais do que pseudônimos de Francisco Alves. Falava correntemente
!: o francês - afirma-nos José Carlos de Macedo Soares6 - e conhecia também o
inglês e o italiano, tendo-os aprendido sem mestre. Como negociante, não se li
mitava à avidez do lucro. Tinha por vezes rasgos de delicadeza com seus edita
dos. Sabia ser generoso e estimulá-los. Segundo Medeiros e Albuquerque, no
que se referia às obras literárias, a regra adotada pelo editor era a seguinte: lan
çava sem muita relutância o trabalho de um novo que lhe parecesse ter talento.
E punha-se a esperar o juízo do público. Se o primeiro livro se esgotava, deci
dia-se de bom grado a lançar os outros trabalhos do mesmo autor. Se o público
não se interessava, também não se sentia ele na obrigação de exercer o mecena
to. Procedia como bom negociante - observa Medeiros -, mas dando aquilo
que é mais difícil a um escritor inédito: a possibilidade de aparecer.7
Tratemos, particularmente, do caso de Afrânio Peixoto. Já se tornara autor
de muitas obras científicas, quando escreveu A esfinge. De literatura só havia
i Janeiro, 1943.
7. Medeiros e Albuquerque, Homens e cousas na Academia, Editora Renascença, Rio, 1 934.
i
1
2 O 6 � LÁ Vida Literdria no Brasil
produzido um livro, Rosa mística, poen1a sirnbolista, em prosa e verso, edita
do em Leipzig com as cores do arco,íris. Assinara-o Júlio Afrânio; Júlio
Afrânio ainda era ele, por volta de 1905, quando João do Rio o entrevisrou
no Momento literdrio. Resolvendo abandonar o simbolismo, resolveu mudar
rambém de nome nas !erras, e é como Afrânio Peixoto que, em 191 1 , publi
ca A esfinge. Deve-se notar que nessa ocasião o escritor já havia sido eleito pa
ra a Academia Brasileira. Elegeram-no, pode-se dizer, quase exclusivam ente
pela obra científica, pois a literária, excluindo Rosa mística, um livro fracassa
do, era praticamente nula. Mas Afrânio já havia adquirido um renome de gran
de talento, de quase gênio, um novo Rui Barbosa que a Bahia nos enviava.ª
De regresso do Oriente, na primavera de 1 9 1 0, chegara a Paris, trazendo na
bagagem o manuscrito de A esfinge, datado de Heluam (Egito), embora nos pa
reça um tanto problemático que tivesse tempo para escrever um romance de
trezentas páginas no decurso dessa viagem. Em Paris encontrava-se Francisco
Alves, que já lhe havia editado um manual de medicina legal. Afrânio foi pro
curá-lo no Hotel do Louvre e contou-lhe o que acontecera com João Ribeiro,
quando oferecera o Fabordão ao Garnier. Este respondera-lhe: "O livro didáti
co, a carne, é para o Alves; o osso, a literatura, é para mim." Não queria que
lhe sucedesse o mesmo, por isso propunha pagar-lhe a edição d'A esfinge.
Mas Alves observou irônico: "Atendo ao Garnier; se tenho o livro didático, de
vo ter também o literário." Acrescentou que não seria osso pois sempre have
ria mil médicos para esgotar uma primeira edição, curiosos de ver se o colega
1
não "escorregarà' como romancista. "E o melhor é que hão de verificar o con
1
trário .. .') - ajuntou ainda, receoso de não ter sido amável.
Assim, logo que ambos retornaram ao Rio, A esfinge foi editada, fazen
do-se a segunda edição um mês após a primeira. Desde Canaã, há oito anos
não se vira um romance tão adamado pela crítica e procurado nas livrarias.
1
N'A Imprensa (27-7-191 1), escreve Sousa Bandeira: "Está em pleno triunfo o
autor d'A esfinge. Mal chegado às livrarias do Rio de Janeiro, já o livro está
quase esgotado. Disputam-se com avidez os raros exemplares. Os críticos
mais em evidência dedicam-lhe artigos admirativos. Da primeira investida,
conseguiu ele, coisa extraordinária no Brasil: conquistar o público feminino.
i 1
!' ''
tí
:t 1
,:• j
1 CAPÍTULO XV t;:?'9 2 0 9
Manuel Cícero foi assi1n tratando de melhorar a Biblioteca, mesmo den
tro das restritas possibilidades do velho prédio. Conseguiu estender mais qui
··
nhentos metros de prateleiras nas estantes, dotou o edifício de um serviço
de extinção de incêndio; instalou uma oficina tipográfica destinada a impri
mir os Anais e o Boletim; montou uma oficina de encadernação; e adquiriu
uma máquina de escrever para ser utilizada na correspondência oficial. Foi
a Biblioteca Nacional um dos primeiros esrabelecimentos públicos do Brasil a
adotar esta última inovação.
Em outros setores, seu extraordinário espírito de iniciativa se fez igualmen
te sentir. De acordo com o Código Penal, todas as oficinas gráficas do país
eram obrigadas a enviar um exemplar dos impressos confeccionados à biblio
teca pública do respectivo município. Assim sendo, a Biblioteca Nacional só
recebia exemplares de obras publicadas no Distrito Federal. Manuel Cícero
empenhou-se na modificação desse dispositivo, de maneira a vir a Biblioteca
a receber as obras lançadas por rodas as empresas editoras do Brasil. Para isso
conseguiu, em 1 9 0 1 , fosse apresentado na Câmara dos Deputados um proje
to de lei, só transformado em decreto em dezembro de 1905 e regulado fi
nalmente por instruções baixadas em 1 º de junho de 1 907. O projeto sofre
ra forre oposição tanto na Câmara quanto no Senado, sendo tido como
inconstitucional, e Manuel Cícero o acompanhou em todos os trâmites, sem
pre alerta, mobilizando influências para obter a aprovação, ciente que estava
da importância dessa lei para os fins da Biblioteca Nacional.
Mas o grande problema era a construção do novo prédio, e no momento
em que Rodrigues Alves empreendia o plano de remodelação da cidade, tor
nava-se oportuna a medida já reconhecida como necessária pelos poderes pú
blicos há mais de trinta anos. Ergue-se a voz de Artur Azevedo, nome popu
laríssimo, a reclamar a reinstalação da Biblioteca em edifício conveniente, e
outros escritores a secundam, com veemência. O ministro da Justiça, J. J.
Seabra, compreende o prestígio que lhe poderia resultar de atender às solici
tações da intelecrualidade do país e resolve avocar para si a iniciativa. Acontece
que não via ele com muito bons olhos o diretor da Biblioteca, pois possuía ou
tro candidato para o cargo, no qual Manuel Cícero conseguira continuar. Daí
ter procurado agir sern a cooperação deste últirno, tratando logo de incumbir
do projeto do novo edifício o general Sousa Aguiar, que se encontrava nos
l
Os consultantes folheavam o Ganot, iam beber água, encostavam no Ganot
A rainha Margot ou a Nand e esrudavam regaladamente as aventuras dessas se
nhoras em péssimas traduções portuguesas até às três da tarde, à hora em que
é preciso começar a passear pela rua do Ouvidor. Desse momento em diante
a concorrência amortece, os livros vão descansar e só às seis recomeça o mo
,,
vimento. A sociedade é a mesma - estudantes em maioria.
E João do Rio se põe a descrever vários tipos de consulentes: o que deseja
ler Verlaine, mas não sabe que livro pedir; poesias, qualquer um serve; o que
CAPÍTULO XV �211
não tem preferência, entrou apenas para matar o tempo e contenta-se com
qualquer coisa; "os imorais que escrevinham, com sorrisinhos equívocos, o pe
dido de Alfredo Gallis, da Martinhada ou dos tratados de Garnier; os poliglo
tas, exigindo para meia hora um livro em alemão, outro em hebraico, outro
em sueco; Õs namoradores, aproveitando a mesa, a tinta e a caneta da casa pa
ra escrever às futuras esposas" e muitos outros igualmente pitorescos.
Evoca, também, o cronista, alguns intelectuais velhos freqüentadores da
Biblioteca. O mais conhecido é Capistrano de Abreu, que entra por ali como
em casa própria e nem vai ao salão de leitura; apanha os livros e fica a lê-los
durante muitas horas, tomando notas; acaba indo-se embora distraidamente
e se esquecendo das notas. Mas não sofre nenhum dano com isso; no dia se
guinte, os funcionários que o estimam e já estão habituados com essa distra
ção entregam-lhe as notas, que tinham tido o cuidado de recolher e de guardar.
Outros íntimos da casa: o dr. Felisbelo Freire, sempre na seção de manuscri
tos, onde, como numa espécie de consultório, atende todos os dias aos ami
gos e aos que o procuram por qualquer motivo; o dr. Manuel Barata, a extrair
documentos para uma formidável história do Pará; o sr. Caldas Brito, "a in
vestigar coisas de viticultura''; Chicharro da Gama, conhecido por algumas si
nopses de história literária; e um diplomata aposentado que o cronista indica
simplesmente como Araújo , a encher os ócios da carriere com a leitura de fo
lhetins de 1860, que ainda lhe provocam desmaios.
João do Rio não alude a Olavo Bilac, mas de uma crônica do livro Ironia e
piedade concluímos que o poeta, pelo menos de quando em quando, costu
mava ir à Biblioteca. Aliás, desde a permanência em Ouro Preto, em 1 893, na
companhia de Afonso Arinos, adquirira ele o gosto da pesquisa histórica.
A crônica é a evocação enternecida de um menino curvado sobre um livro na
sala de leitura. O que João do Rio via pelo prisma humorístico, Bilac encarava
pelo prisma lírico. "Há poucas semanas" - conta o poeta -, "indo à Biblio
teca Nacional reunir material de trabalho, fiquei sentado em frente a um mo
cinho imberbe e pálido, que devorava com os olhos e com a alma as páginas
do livro que pedira. Quando cheguei, já ele estava no fim do volume; e, a ca
da página voltada, uma vibração nova de ansiedade, de supremo gozo intelec
tual, de infinito encanto de espírito, agitava a sua face de adolescente, sob a cla
ridade crua de uma lâmpada elétrica. Os olhos, num movimento febril, iam do
1 . Olavo Bilac, Ironia e piedade, pág. 29 e segs., 2ª ed., Livraria Francisco Alves, Rio, 1 92 1 .
.Dessa experiência se beneficiou na direção da Biblioteca Nacional, que na no
va sede se tornou algo modelar no gênero para a época. Depois de promover
ali o primeiro·curso de biblioteconomia realizado na América Latina, organi
zou um programa de conferências, inaugurado em setembro de 1 9 12. Como
se sabe, as conferências tinham entrado em moda no Brasil no começo do sé
culo XX. Mas eram excessivamente literárias, quando não frívolas. Manuel
Cícero procurou prevalecer-se do estado de espírito do público seduzido por
essa moda, atraindo ouvintes para palestras do mais vivo interesse cultural.
Assim, enquanto em outros locais Oscar Lopes falava sobre "O dia e a noite''
ou Bilac sobre o ciúme, na Biblioteca Nacional José Veríssimo discorria so
bre "A nossa evolução literária"; Roberto Gomes tratava da ''.Arte e gosto
artístico no Brasil''; Juliano Moreira do "Progresso das ciências no Brasil";
Pandiá Calógeras do "Brasil e o seu desenvolvimento econômico"; Hélio Lobo
do "Brasil no conceito das nações". Tais os temas das conferências do primei
ro ciclo em 1 9 12. Houve outros ciclos em 1 9 13, 1 9 1 4 e 1 9 1 5 , todos de pa
lestras desse gênero, que tiveram repercussão em nossos meios intelectuais.
Neles tomaram parte, entre outros, Oliveira Lima, Roquerre-Pinto, Alberto
de Oliveira, Arrojado Lisboa, Leopoldo Bulhões, Afrinio Peixoto, João Ribeiro
(com o seu importante curso de folclore), Clóvis Bevilaqua, Amaro Cavalcanti.
E acontecia um escritor como Oscar Lopes, habituado a litetatejar para audi
tórios mundanos, vir falar na Biblioteca, em termos de história e crítica, do
"Teatro brasileiro, seus domínios e aspirações".
Entretanto, ainda ali, João do Rio continuaria a ter os mesmos motivos pa
ra exclamar: ''.Ah! os leitores da Biblioteca!. .. Que estranho romance, como os
de Jerome, se faria daquele remanso, onde o saber impenetrável dorme!"2
CAPÍTULO XVI � 2 l 5
Euclides da Cunha nutria utn sonho: realizar uma excursão à Amazônia, não
como mrisra;·mas como bandeirante, achando que assim poderia prestar um gran
de serviço ao Brasil; e Rio Branco soube compreendê-lo. Domício da Gama, que
intercedeu pelo escriror junto ao barão, narra-nos como foi o encontro dos dois
grandes espíritos, numa noite, no palácio de Vestfália, em Petrópolis. O ministro
e o autor d' Os sertões conversaram durante várias horas, encantado o primeiro por
encontrar "quem o entendesse e partilhasse o seu inreresse pelos assunros que lhe
eram caros, de fronreiras, de relações internacionais e da história diplomática do
Brasil, em que aquele engenheiro militar parecia bacharel, senão doutor''.
Escolhido para a chefia da expedição exploradora do Purus, Euclides pôde
retornar ao sertão, como tanto desejava, entrando em contato íntimo com a sel�
va amazônica, experiência brutal, da qual resultaram algumas páginas memorá
veis de impressões e interpretação daquele mundo bárbaro. Coloca, depois, o
barão, a Euclides como cartógrafo no ministério e intervém em favor do escri
tor, candidato por concurso a uma cadeira no Ginásio Nacional, quando o vê
envolvido numa "escandalosa cabalà'. E profonda seria a mágoa de Rio Branco
ante a tragédia da estação de Piedade. "Sei quanro de esperanças fundadas per
deu o Brasil" - escreve ele ao pai do genial repórter de Canudos.
Já no caso de Sílvio Romero, embora lhe dispensasse a proteção, não pô
de realizar-lhe o ideal. Euclides queria a "vida afanosa e triste do pioneiro",
desprezando os brilhos de uma posição social e política. Sílvio não era indife
rente a esta última; tinha um ideal político, desejava ser reeleito deputado fe
deral, retornar à Câmara, onde já exercera o mandato na legislatura de 19 00
a 1 902. Candidato pela oposição na legislatura seguinre, recorre a Rio Branco
para que este o ampare junto à comissão de reconhecimento de poderes.
Ignora-se até onde teria ido o esforço do ministro nesse sentido. Sílvio não
conseguiu reeleger-se. Logo depois, o crítico procura obter uma cadeira de de
putado, não mais por Sergipe, mas pelo Distrito Federal, e apela, novamente,
para o ministro, a quem sugere uma manobra eleitoral propiciatória. Desta
vez, ainda, nada obteve. Como facilmenre se conclui, era bem mais fácil para
Rio Branco mandar um grande escritor explorar o Purus, do que se envolver
no cipoal da politicagem para levar à Câmara outro grande escritor.
Figura então quase ignorada, mesmo depois da publicação das Recordações
do escrivão Isaías Caminha, em 1909, Lima Barreto manifestava um grande
1
.
desprezo pela maioria dos intelectuais protegidos de Rio Branco, vendo neles
os representantes de uma espécie de literatura oficial, que não podia deixar de
repugnar-lhe à índole não-conformista. E na mesma antipatia havia de envol
ver a figura olímpica do barão, a estender sobre os escritores uma tutela bené
vola, do alto da sua curul no ltamarati.
Em Vida e morte de Gonzaga de Sá, 1 o romancista desanca impiedosamen
te o poderoso ministro. Começa num diálogo entre Augusto Machado, o nar
rador da história, e Gonzaga de Sá, no qual se alude ao fato de Rio Branco ha
ver recebido pela manhã um poeta. Desdenhoso e irônico, Gonzaga exclama:
"Tenho satisfação em ver de que modo superior vai o barão influindo em nos
sas letras." E põe-se a atacar Rio Branco, considerando-o uma "mediocridade
supimpà', fora do seu tempo, sempre voltado para tolices diplomáticas e com
a inteligência desviada do presente. Nesse momento, precisamente, passa o
barão num luxuoso automóvel de capota arriada, com a imponente figura, tão
fotogênica, em que o herói de Lima Barreto só distingue o ventre abaulado.
"Este Juca Paranhos" - diz Gonzaga de Sá- "faz do Rio de Janeiro a sua chá
cara ... Não dá satisfação a ninguém... "
1. Lima Barreto, "Vida e morre de M. ]. Gonzaga de Sá", pág. 63 e segs., Revista do Brasil,
S. Paulo, 1 9 1 9.
CAPÍTULO XVI � 2 1 7
A política cultural do barão processava-se, ativamente, tanto no plano inter
no, como np externo. Com a transformação da capital, a extinção da febre ama
rela, era preciso atrair figuras ilustres ao Brasil, para que fossem lá fora transmitir
impressões favoráveis a nosso respeito. Essa época dos intelectuais no Itarnarati
foi aquela em que hospedamos alguns dos maiores vultos da cultura européia,
empenhando-se o ministro em fazê-los levar as melhores recordações do país.2
2. Rio Branco recepcionou muitos políticos e escritores como Guglielmo Ferrero, Anatole
France e Clemenceau, no Itamarati, mas excetuando o primeiro, é difícil apurar se tais visitantes
tiveram algum subsídio direto ou indireto do ministro. Anatole France e Clemenceau, como
veremos mais adiante, aqui vieram com empresários. Teria o ltamarati favorecido também pe
cuniariamente tais visitas?
3. Foi a seguinte a carta de Machado de Assis a Ferrero, enviada por intermédio de Camilo
Cresta:
- Monsieur, -
Cette lettre, que j'ai l'honneur de vous écrire au nom de l'Académie Brésilienne, vous sera
remise par M, Camillo Cresta, narre ami. L'Académie, dont vous venez d'être élu membre cor
respondanr, connair varre prochain voyage à Buenos-Aires. E!le recevrait un grand honneur et
un bien vif plaisir, si vous vouliez passer quelques jours à Rio de Janeiro. lei, Monsieur, oU vous
avez des adn1irareurs fervenrs er nornbreux vous pourriez nous donner deux ou trois con-
férences publiques. Le sujet en serait à varre choix; naturellement il sera iralien, comme vous
même, er moderne, comme varre esprit; personne ne sair dire comme vous de ce qui est matitre
anisrique et sociale.
Naus serons bien heureux si vous acceptez cette invitation. Monsieur Cresta naus dira par let
tre ou par télégramme varre réponse, er j'en donnerai la nouveile à mes arnis et nos confrtres.
Agréez, Monsieur Ferrero, mes respecrueux hommages et l'assurance de notre grande admira
tion. - Machado de Assis."'
4. Um tópico de uma carra de Capistrano de Abreu a José Veríssimo, datada de 24 de outubro
de 1907 ( Correspondência de Capistrano de Abreu, Instituto Nacional do Livro, 1954) leva-nos
a supor que ele subn1ereu a Ferrero seu livro Capítulos de história colonial. Seria curioso saber a
opinião do historiador italiano a respeito. Mas encontraria ele tempo para lê-lo em tão curta
permanência no Brasil? Eis o tópico em questão: "Peço�lhe deixe no Werneck bem embrulha
do o exemplar dos meus Capítulos, devolvido pelo Ferrero."
5. Na Fon-Fon de 5 de outubro de 1907, encontramos, sob o título "Ecos das conferências do
Ferrero", vários diálogos, com evidente propósito de satirizar o êxito mundano dessas palestras.
Num deles lemos o seguinte:
"-À noite não te posso esperar. Vou fechar o negócio mais cedo. Tenho onde ir.
-Vais ao teatro?
- Qual!. .. Recebi um convite da Academia de Letras para assistir à conferência do Ferrero. Já
mandei a esposa escovar a casaca."
Enquanto negociantes burgueses, rapazes elegantes e grandes damas se preparavam assim para
o espetáculo, dois poetas modernos travaram este diálogo:
"- Então, é hoje a conferência do Ferrero?
- Não vai?
- Não tenho casaca."
CAPÍTULO XVI � 2 2 1
e José Veríssimo. Este último, num artigo na revista Kosmos (novembro de
1 907) sob o título "Quatro dias em Minas'', diz ter visro o presidente João
Pinheiro discutir o dia inteiro com Guglielmo Ferrero e a sra. Ferrero, ambos
muito versados em questões econômicas e sociais, com idéias contrárias ao es
tadista mineiro, combatendo-lhe os princípios protecionistas, que a Veríssimo
pareciam também exagerados. 6
De volta de Minas, o historiador e a esposa embarcariam para a Europa.
Deixariam suas conferências a mesma impressão de encantamento intelectual
em rodo mundo? Numa carra de 16 de novembro de 1 907 a Domício da
Gama, Euclides escrevia: "As conferências de Ferrero desiludiram-me. Sou um
maravilhado diante de tudo (disse-o Veríssimo ultimamente), e a minha ad
miração não raro ultrapassa a realidade. Ferrero deixou-me a impressão de ser
o Fregoli da história. Desapontou-me. E na noite em que, com uma serieda
1' :' de adorável, declarou haver descoberro uma lei histórica (uma lei histórica! e
' .
"
'1 não se apagaram as luzes do Palácio Monroe! o auditório não desmaiou!! o go
1i '!
I'·
verno não decretou o estado de sítio!!), enrrei a desconfiar que ele não conhe
1; cia a significação científica desta perigosa palavra - lei. Quem fará, um dia,
1:
I a história da glorificação das mediocridades? ... "7
1·
É possível que, perante um auditório em grande parte mundano, Ferrero
não tivesse aprofundado os remas, mas Euclides procedia com leviandade jul
gando o grande historiador somente por essas conferências do Monroe. Não
teria lido ainda a Grandeza e decadência de Roma?8
6. Em visita a Petrópolis, Ferrero perguntou por que não faziam a1i uma cidade universitária,
dizendo: "Este clima, esta serenidade, tudo isto que nos circunda, predispõe à concentração e
ao estudo ... Petrópolis é uma cidade em que os sábios e os artistas devem sentir�se muito bem"
- Correio da Manhã, 26-10-1907.
'.--! 7. Francisco Venâncio Filho, Euclides da Cunha e seus amigo.s, Cia. Editora Nacional, São
H
1 Paulo, 1938.
8 Em carta anterior, de 15 de agosto de 1907, ao mesmo Domício da Gama, eis como Euclides
1
se referia ao visitante: "A breve escala de quatro horas, que aqui fez Guilherme Fertero, na sua
passagem para Buenos Aires, foi 1nagnífica. O barão recebeu-o gentilmente. No Itamarati, antes
e depois do jantar que lhe foi oferecido, o extraordinário evocador da velha Roma lendária foi
verdadeirarnente cativante. É impressionadora a sua modéstia. O gênio tern ares tímidos e per�
turbados Je mestre-escola <la roça."(Francisco Ve nâccio Filho, op. cü.)
1
Mas pouco antes já afirmara em tom categórico: o verdadeiro defeito do brasi
leiro, capaz de aterrorizar o europeu, é a indolência, que se confunde, às vezes,
t C A P Í T U L O X V I i::::::=1 2 2 3
com a covardia, a mentira, a avareza, a falta de iniciativa comercial - uma
indolência feita não tanto de inatividade quanto de passividade, e deve vir,
fatalmente.do negro.
Até onde Gina Lombroso teria concluído por conta própria? Até onde se
cingira às informações que lhe deram ou as interpretou mal? Problema de di
fícil solução. Seria curioso saber como Veríssimo considerou o livro, em que
lhe é atribuído um julgamento pouco favorável ao caráter nacional. Nada con
seguimos apurar a respeito. O que não nos escapou foram algumas reações da
imprensa, quando o livro se divulgou no Brasil. O Correio da Manhã, por
exemplo, num tópico (21 - 1 1-1908), protestou com veemência. Era o maior
desapontamento para quantos viviam apregoando os extraordinários resulta
dos da visita de eminentes personalidades ao Brasil. A autora mostrara-se le
viana, não consultara obras, não fizera uma boa colheira de informações, va
lera-se apenas dos apontamentos do seu caderninho de notas e de rápidas
i 1
impressões. Daí os erros monstruosos em que incidira. O livro menos irritava
do que fazia rir. A parte referente ao Brasil continha coisas de provocar des
manchas de hilaridade a um manequim da avenida. A inclusão do bicho-de
pé, ao lado da febre amarela, entre as pragas que nos infelicitam, alarmando o
estrangeiro, era uma dessas pilhérias, que justamente por serem ditas a sério,
se tornariam "imortais". Ferrero não podia fugir à responsabilidade desse livro
tão cheio de erros, pois certamente o lera, página por página, e concordara com
tudo. Ora, era muito duro para o nosso coração andarmos a cercar de home
nagens grandes vultos estrangeiros e vermos depois o pouco caso que de nós fa
ziam. E ainda mais duro para o bolso do contribuinte o emprego de boas so
mas para atrair tais visitantes, saindo às avessas o resultado de tão caras visitas.
Ante o livro do casal Ferrero podiam limpar as mãos à parede os que viviam
a sonhar coisas douradas com a propaganda do Brasil na Europa.
C A P Í T U L O X V I 6:;::o9 2 2 5
continuava a réplica noucra conferência, sob o tema "Má fé e incoerência de
Ferri".9 Nesse momento, Ferri já estava de viagem para o Rio, depois de um
telegrama de Graça Aranha desmentindo a notícia de que era Rio Branco, co
mo ministro do Exterior, quem o convidava a visitar a capital da República.
Dirigindo-se ao cientista em nome do Centro Acadêmico, Graça Aranha tor
nava bem claro que deste partia o convite.
No Rio, Ferri foi recebido na estação de dom Pedro II por grande massa
popular. Já em Cascadura entraram no trem Sousa Bandeira e Graça Aranha
para apresentar-lhe cumprimentos em nome da Academia Brasileira de Letras.
E formou-se um cortejo, que o acompanhou da estação ao Hotel dos Estran
geiros, onde ficou hospedado.
Suas conferências, em número de seis, real izadas no Teatro de São Pedro
de Alcântara ao preço de 5$000 (cinco mil-réis) a poltrona, versaram os se
I '
1
guintes temas: ''As maravilhas do século XlX", "Delitos e delinqüentes" (com
projeções luminosas), "Emílio Zola e o processo Dreyfus", "Do micr6bio ao
,
Homem)) (com projeções luminosas), "A mulher como é e como será' , "O ho
mem no ano 2000".
Como em São Paulo, suscitaram muiras réplicas. A 23 de novembro,
Afonso Celso respondia ao visitante, no Gabinete Português de Leitura, fazen-
9. A título de curiosidade, lembramos a visita que Enrico Ferri fez a Miguel Trad, autor do "Crime
da malà', que se tornou famoso nos anais da polícia de São Paulo e só encontrou pendant em
1928, em outro delito da mesma natureza praticado por um tal Pistone.
Ferri conversou com Trad, em francês, e se absteve de dar opinião sobre o caso, como queria o
advogado da defesa, para não influenciar no julgamento.
Com o mesmo propósito, reproduzimos estes dois patins estampados no O Comércio de São
Paulo a 5 de novembro de 1908:
"Parece�me que voltamos à época do ferro, que se nos vem apresentando numa dimin uição de
sílabas. Assim é que já fomos visitados pelo Ferramenta, depois pelo Ferrari, Ferrigno, Ferrero
e agora pelo Ferri. Só resta que o nosso Rio Branco descubra lá pela Europa Fer, para comple�
tar a plêiade dos ferros, pois que F. já temos na crítica musical."
"2 horas no mesmo diapasão de voz, sem ingerir uma só gota de água!
- Sim senhor, este Ferri é um homem de fe rro."
1
L
226 � V'Í Vida Literdrta no Brasil
do sentir ao auditório que colocara o debate no terreno cultural, termina pe#
dindo a simpatia de todos os católicos para aquele homem de talento que ti
nha a infelicidade de ser incrédulo. Logo depois o jornalista Oliveira e Silva,
no mesmo recinto, e o jovem advogado Nunes de Almeida secundavam a ré
plica. Nunes de Almeida, falando sobre as "Superstições da civilização", ataca
va Ferri do ponto de vista católico, declarando que os inimigos da Igreja é que
o tinham impelido para cá. Perguntava: "E que vem nos trazer ele? Nada de
novo. Tudo o que sai de sua boca é cediço e velho. Só as suas heresias têm tal
vez mais lavor de forma e estilo." No mesmo dia Teixeira Mendes falou no
Instituto Nacional de Música, atacando como positivista as opiniões de Ferri
sobre a condição da mulher na sociedade.
Mais outras contraditas: a de Ernesto de Oliveira, na Associação dos
Empregados do Comércio e a de Carlos de Laet. Anunciou-se ainda que à pa
lavra de todos esses oradores viria juntar-se a de Rui Barbosa, mas não encon
tramos notícia de nenhuma conferência por ele pronunciada contra Ferri.
No dia 26 realizou-se no Pavilhão Internacional uma grande manifestação
operária ao visitante, saudado por Evaristo de Morais.10 Encontrando-se nes
sa ocasião no Rio o cientista francês Charles Richet, preparou-se uma home
nagem para os dois visitantes no Palácio Monroe, com a presença do barão do
10. Registrando o fato, a Gazeta de Notícias (27- 1 1-1908) descrevia o aspecto do local: "Por
roda a volta do hal!, na altura dos camarotes, viam-se escudos com vários nomes, salientando
se um deles com o nome de Enrice Ferri. À direita, quase sobre o proscênio, no camarote des
tinado ao ilustre manifestando, ostentavam-se as bandeiras nacional, italiana e americana."
Prosseguia depois nestes termos: "O eminente professor à sua entrada no ha!l foi recebido por
uma ruidosa salva de palmas, que se prolongou durante todo o seu trajeto até o camarote. Nesse
momento a atenção da numerosa assistência foi abstraída por um incidente. Enrice Ferri mostra
va-se visivelmente contrariado, demonstrando, com significativos gestos, a sua reprovação,
primeiro ao adorno das bandeiras, que foram imediatamente retiradas, sob as aclamações da as
sistência; depois, quando se cerrou o pano de boca do palco, à presença nele de seu retrato, que
se achava sobre um pedestal coberto com o pavilhão nacional e adornado com flores naturais.
1
Cobrindo a balaustrada em que se apoiava o grande propagandista, ficou apenas, como único
ornamento, a bandeira italiana."
No dia seguinte Ferri fazia publicar pelo Correio da Manhã a seguinte explicação: "A Gazeta faz
supor que eu haja mandado desguarnecer o pavilhão de rodas as bandeiras que lá se achavam,
fe rindo assim uma questão que eu não podia suscicar no momento em que recebia uma mani�
festaçáo de apreço. O que insinua a Gazeta é positiva1nente uma perfídia. Tendo de falar de um
l CAPITULO XVI � 2 27
Rio Branco. Os jornais assinalaram a solenidade, que teve como orador Olavo
Bilac. Para �xaltar as figuras de Ferri e Richet o poeta recorreu, naturalmente,
como não podia deixar de acontecer, ao slogan do gênio latino.
No dia seguinte, 29 de novembro, Ferri embarcava de novo para São Paulo,
onde devia pronunciar mais algumas conferências. Desta vez o orador p6de fà
lar num ambiente de serenidade; tinham-se acalmado os ii.nimos. No entanto,
alguns cronistas acentuaram q·ue a maior vantagem dessa visita fora justamen
te o de agitar o meio, suscitando discussões e polêmicas. O nosso marasmo in
telectual precisava, de quando em quando, desses estímulos.
Dois anos depois, justamente em novembro de 1 9 10, voltava o crimina
lista italiano ao nosso pais. E ao chegar ao Rio declarava à reportagem da
Gazeta de Notícias: '1Como da outra vez, continuarei a minha propaganda
política. Venho agitar idéias, expor teorias. Não pode haver melhor campo
do que este da América para as idéias forres e grandes." Regozijava-se com o
fato das opiniões se dividirem a seu respeito no Brasil. Achava que se todos
o aplaudissem e ninguém o contrariasse não passaria de um perfeito imbecil.
Interrogado sobre o anticlericalismo em Portugal - assunto palpitante no
momento com a recente proclamação da República naquele pais -, decla
rou ser anticlerical, mas não intolerante. Não professando religião alguma
não admitia, no entanto, intolerância contra nenhuma delas.
Nessa segunda visita Ferri falou no Municipal sobre o s seguintes re
mas: 1(Pan-americanismon, '(A mulher européia e a mulher americana", "O
homem de gênio'', "Emigração e colonização", "Minhas reminiscências do
1;
i 1
Parlamento italiano". O preço das cadeiras era 6$000, sendo o lucro liqui
do destinado a associações de caridade. Mas já não conseguiu o sucesso da
1' primeira vez. Basta ver o comentário de Costa Rego nos seus "Traços da se
mana'' , no Correio da Manhã, de 20 de novembro de 191 O: "Este amável re-
dos camarotes daquela casa de diversões, pedi que o mesmo camarote fosse desguarnecido das
bandeiras que o enfeitavam, porque ao mesmo tempo me tolhiam os movimentos quando eu
estivesse fazendo o discurso. Não houve nisso intenção de ofender os princípios de quem quer
que lá se achasse, tanto assim que as bandeiras dos outros camarotes continuaram a guarnecê
los. Quanto ao fato de eu haver solicitado que retirassein do palco o meu retrato, ninguém de
boa fé há que veja nisso hostilidade nern indelicadeza, pois agi de acordo com os rneus senti
rnentos íntimos que não podem absolutarnente ser baixados à significação grosseira."
1 1 . Detalhe curioso: o aumento apenas de mil�réis já era considerado uma elevação sensível de
l
preços na época.
C A P Í T U L O X V I f:::::A 2 2 9
idéias e estava prisioneiro delas. Sua conferência sobre "O homem de gê
nio" tinha,, sido de uma ingenuidade inverossímil; sobre o "Pan-america
nismo" nada adiantara ao que já se conhecia pelos discursos de Nabuco, os
artigos de José Veríssimo, os livros de Artur Orlando e Oliveira Lima. Daí
a conclusão: o orador falava para o Brasil analfabeto, aquele que vem descri
to nos livros dos viajantes, o único que ao professor e sociólogo podia inte
,,
ressar. E acentuando que o Brasil "já começava a agitar-se , reconhecia tris
temente que fatos como o que acabava de chegar ao seu conhecimento -
a reação das populações do interior contra os agentes do censo - j ustifi
cavam viesse Ferri dizer-nos ter sido a América descoberta por Colombo,
diferenciando-se a do Sul da do Norte por descender uma de latinos, outra
de saxônios.
l
!
a porta. Mas reportemo-nos às suas palavras: "Já tínhamos entrado. Uma ca
beça branca moveu-se de um leito muito fofo, olhou-nos e ia-· nos perguntar
1
qualquer coisa, quando, entre um turbilhão de desculpas, pudemos dizer
quem éramos. '- Ah! - fez ele, o filósofo do Crainquebille, o poeta suave
do Lys Rouge. - Perdoai-me receber-vos assim. . . Mas uma súbita indisposi
ção. . .' e tossiu. Era uma linda cabeça branca, com uns olhos meigos e ex
pressivos. Víamos, enfim, Anatole France." Luís Edmundo acrescenta que o
escritor tinha numa das mãos o 4° volume da Grandeza e decadência de
Roma, de Ferrero. Não conseguiu, porém, arrancar-lhe nenhuma declara
ção. Anatole declarou-lhe apenas que sofria muito. E levou a mão esquerda
à testa sorrindo, num gesto de quem, com gentileza, apaga dos olhos uma
sombra de fadiga e diz: "\'á-se embora." O repórter não teve outro recurso
senão aceitar o alvitre e dar a entrevista como frustrada, retirando-se. Na
manhã seguinte, a mesma comissão da Academia, que estivera a bordo na
véspera, procurou Anarole para convidá-lo a dar um passeio pela cidade.
Desta vez foram mais felizes os "imortais)'. O escritor resolveu aparecer e
aceitar o convite. No livro ltinéraire de Paris à Buenos Aires, 12 Jean-Jacques
Brousson, secretário de Anatole, que o acompanhou nessa viagem, descreve
o encontro com os membros da Academia em termos verdadeiramente ca
ricatos: nunca vira uniformes tão dourados. Havia mais galões de que cos
turas. E espadas, penachos e botões de metal grandes como escudos. Quan
do apresentaram ao mestre o "amiral Jazagoie)) (almirante Jaceguai), "com
1 2. Jean-Jacques Brousson, ltinéraire de Paris à Buenos Aires, Crês et Cie, Paris, 1927.
CAPÍTULO XVI � 2 3l
voz marcial, os bigodes heróicos, dir-se-ia Cambronne em Waterloo, Anatole
exclamara� 'Almirante, o senhor é um herói. .. ', assoprando ao ouvido do se
cretário: 'Por definição, um almirante é um herói ... Um general também.'
As apresentações continuaram e Brousson alude a uma, feita nestes termos:
"Nosso romancista nacional: Vicente Palambo." Entusiasmo. Abraços. Anatole
exclama: "Ah! senhor. Posso enfim estreitar nos meus braços o Balzac do
Brasil!" E ainda para o secretário, à parte: "Não parece um macaco que caiu
de um coqueiro em dia de tempestade?" O Balzac do Brasil nessa época só
poderia ser Coelho Neto. Brousson declara, aliás, em nota ao pé de página
que os nomes são inventados.
Depois de u m passeio pela cidade, Anatole é conduzido ao Hotel dos
Estrangeiros, onde lhe servem um petit déjeuner. Logo em seguida, a Aca
demia o recebe em sessão solene. Saúda-o em francês o presidente, Rui
Barbosa, "esmagando-o de louros" - registra Brousson 13 -, "mas aos lou
ros e às rosas mistura algumas urtigas. Louva a pureza do estilo, verbera
a impureza do fundo. Seu discurso cheira um pouco a homilia". Anatole
responde de improviso em poucas palavras, aludindo ao fato de no Brasil
não haver, como na Inglaterra, preconceitos de raça, considerando Rui
Barbosa campeão da "possibilidade da paz universal" e concluindo por sau
dar, na Academia, uma cultura que fazia irradiar o espírito latino com al
taneria e simplicidade.
Dali, segundo Brousson, teriam ido à Biblioteca Nacional onde mostra
ram ao mestre o exemplar raríssimo da Bíblia de Guttenberg. Vendo os picos
de bichos que o danificavam, Anatole observa: "São os críticos." Miguel
Melo, funcionário da biblioteca, 14 testemunhou, apenas, o enlevo com que o
escritor, cuja paixão pelos velhos livros era bem conhecida, apalpou com res
peito o exemplar, acariciando-lhe o papel, examinando-lhe a composição, a
impressão e por fi m exclamando: "Oh! le beau livre!"
À uma hora da tarde, o barão do Rio Branco ofereceu um almoço íntimo
ao hóspede no Itamarati e Anatole regressou a bordo, continuando, no mes-
15. Eis como Lima Barreto, grande ledor de Anatole France, referia-se em carta ao amigo
Antônio Noronha Santos, então em Paris, à passagem do escritor pelo Rio: "Recebi hoje a rua
carta e o teu cartão. Vieram no mesmo paquere e chegaram aqui com Anarole France.
O Veríssimo� o Medeiros e os insuportáveis estudantes (não estava o Lacerda) consagraram-no
a valer. O barão convidou-o a almoçar no Itamarati e a Academia deu uma sessão em honra a
ele. O Rui falou, falou com aquela pretensão e aquela falta de visão que lhe são peculiares, du
rante hora e tanto, tentando fazer crítica à obra do Jerôme Coignard ou Sylvestre Bonnard,
como quiseres. Disse que era vice-presidente do Senado e se batia pela paz universal. Anatole
respondeu sobriamente e sem relevo. Sentia-se emovido (gostaste?) e apreciava muito esta ter
ra, bela, etc., em que não havia prejuízos de raça, como na Inglaterra. Quanto à paz universal
disse que devíamos guardar-nos das surpresas dos sentimentos e dos enganos do coração. Como
1
já está consagrado, o grande homem andou aqui pelas ruas, em procissão, acompanhado de
repórteres, de fotógrafos, toda essa raça vil e besta de Gasparoni e Castelares. E assim passou
ele e eu não o vi nem de longe. O paquete chegou domingo à noite e a procissão andou pelas
ruas, durante as horas do expediente." - Lima Barreto, "Obras completas", Correspondência
1
so, não chegaria a meia hora. Também atribuía a Rui Barbosa o que este não dissera: que era
vice-presidente do Senado e se batia pela paz universal.
16. Anatole France decidira-se a realizar essa excursão à América do Sul como um meio de
libertar-se, por algum tempo, da tutela de Mme. Arman Caillavet, que lhe ia parecendo cada
vez menos suportável. Mas tendo como companheiros de viagem os comediantes da troupe
Silvain que vinham realizar a temporada de inverno nas mesmas capitais onde o escritor deve
ria proferir conferências, apaixonou-se pela atriz Jeanne Brindeau. A história desses amores
Brousson nos conta em tom burlesco no livro a que já nos referimos. Anatole teria mesmo ale
gado doença, ao fazer escala no Rio, para que não fossem perturbar-lhe o idílio. E duas cartas
de Domfcio da Gama a José Veríssimo, publicadas na Revista da Academia Brasileira de Letras,
n11 136, nos niosnarn de como o romance já se tornara conhecido :aqui e a maneira pela qual o
escritor insistia em não se separar de sua deusa, no regresso do Prata. Eis a primeira, datada de
16 de julho de 1909'
1
O êxito das palestras não foi grande. Realizadas no Teatro Municipal à tar
de, teriam atraído um pequeno público, mais curioso de ver em carne e osso
o autor de Lys rouge, do que interessado em acompanhar-lhe o pensamento si
nuoso numa dissertação sem ênfase. Em crônica publicada n'O País (1 8-9-
1 9 1 O), Gilberto Amado relembraria, mais tarde, a quantidade verdadeiramen
te escandalosa de pessoas resfriadas que enchiam a sala do Municipal, quase
chegando a cobrir a voz do orador com a multiplicação, sem conta, de espir
ros e fluxões.
O Correio da Manhã, numa nota de 26-6-1909, aludia ao auditório escas
so das conferências lamentando que os brasileiros não fossem esnobes como
os argentinos. Em Buenos Aires, por esnobismo, todo mundo quisera ouvir
Anatole. Aqui, nem esse motivo prevalecera.
No dia 4 de agosto, Anatole, acompanhado por Pierre Calmette e José
Veríssimo, embarcava para São Paulo. Embora a recepção lá não se tivesse reves
tido de caráter tão popular, como acontecera dois anos antes com Guglielmo
Ferrero, São Paulo ainda uma vez manifestou invulgar entusiasmo por um vi
sitante que, afinal de contas, não era nada mais do que um escritor. Basta ver
"Meu caro Veríssimo. O Anatole France deve embarcar amanhã no Magellan para Santos e Rio.
Recebo agora uma carta do nosso ministro em Montevidéu dando-me essa notícia e exprimin
do o desejo do supradito France de alterar-se o itinerário combinado, desembarcando ele em
Santos e indo a São Paulo antes de vir ao Rio. Insinua o venerando Anacreonte que tem com
panheiros de viagem para São Paulo (a troupe Silvain, penso) que lhe amenizariam a estada
naquele sítio e receia a fadiga da viagem de ida e volta por terra. A razão verdadeira da insinua
ção v. sabe. Se eu fosse parte no assunto, proporia que lhe respondêssemos diplomaticamente
sobre o itinerário e conveniências pessoais, como o francês da comédia: 'Ohl moi; vous savez,
moije m'en fous! Mas quem sabe lá se vocês não preferem ter as primícias do mestre, ainda mes
mo arrancando-o à doce companhia de sua amada? Devo preveni-lo do mau humor seguro do
nobre velho, se tiver de separar-se em Santos da alegria de sua jornada por estes 'países impos
síveis'. Decida para que eu possa telegrafar hoje mesmo ao Lisboa."
A segunda carta, dois dias depois, informava:
"Outra mudança (femina mutantur et nos mutamus in illa): France virá diretamente ao Rio
pelo Oropesa. Ele mesmo mo telegrafou hoje de Montevidéu. Oropesa deve chegar aqui no dia
22. Será bom prevenir no Hotel dos Estrangeiros para os quartos. E a São Paulo para que não
o esperem em Santos."
Ao regressar a Paris, Anatole encontrou lvime. Caillavec em prantos, informada de tudo que se
passara na viagem. O escritor teve de renunciar aos amores com a jovem atriz, seguindo com a
sua velha companheira para Nice.
1
o fausto de que podia cercar-se um fazendeiro em São Paulo. Também seria
esse o limite máximo a que chegaria a curiosidade pelo exótico num espíri
1
to tão visceralmente francês e parisiense. Nas magníficas dependências da
fazenda do conde Prates, o autor do Petit Pierre experimentara a sensação de
17. Abner Mourão, ''Anarole France no Brasil", reportagem publicada n'O Estado a'e S. Paulo e
reproduzida no Dom Casmurro (13-5-1 944).
CAPÍTULO XVI � 2 3 5
contemplar um cenário rural, bem diferc::ute da campagne francesa, e ainda a sal
vo das mutucas e borrachudos. No dia seguinte a essa excursão, durante a qual
foram feit�s muitos brindes e discursos, Anatole, sempre acompanhado por
José Veríssimo, embarcava para o Rio de onde regressaria à Europa. Sua cur
ta permanência no Brasil marcou, certamente, um momento de efervescên
cia cultural em que se falou muito em latinidade.18
18. O sacerdote francês L. A. Gaffre, que aqui esteve em 1 9 1 0 e de quem trataremos mais
adiante, em livro publicado em 1912, sob o título Visíons du Brésil, fez referências hostis a essa
visita de Anatole France à América do Sul. Declarou ter ouvido de altas personalidades
brasileiras juízos sobre o escritor nos quais encontrava eco das impressões que este deixara na
Argentina. Não se podia, absolutamente, imaginar na França a que ponto esse cuistre raffiné des
rôtisseries intellectuelles suscitou a troça e o fastio, e muito menos supor a magnificência do fra
casso que, apesar de todos os reclames de um empresário teatral e a proteção dos poderes, con
seguiu assegurar para as suas eructações rabelaisianas (alusão à conferência sobre Rabelais, pro
nunciada na Argentina).
O erro de certos estrangeiros de renome, ao visitarem os países novos, era pensar que iam diri
gir�se a gente sem cultura e podiam apresentar suas rapsódias como maravilhas inéditas a um
público cândido de neófitos das letras e das artes. Foi o que acontecera com Anatole.
Ignorando que a classe culta da Argentina e do Brasil, pela educação, pelas leituras, pelas perp
manências repetidas na Europa, sobretudo em Paris, estava ao corrente, às vezes bem melhor
do que muitos franceses, da evolução literária e dos costumes da França, julgou suficiente para
ganhar a forte soma de um contrato ler simplesmente diante do público as páginas de seu es
tudo sobre Rabelais. Anarole France - considerava o padre Gaffre - teve de convencer�se de
que o gênio dissolvente do certos autores da moda não consumou ainda no estrangeiro a sua
obra de ceticismo e de imoralidade nas classes elevadas que se interessam pela palavra dos
oradores franceses.
19. Em carta dirigida ao Correio da Manhã (4�9� 1 9 1 0) , Guilherme da Rosa diz ter sido o pro�
motor da visita de Clemenceau ao Brasil para pronunciar conferências no Teatro Municipal.
Nesse sentido, já havia sido aberta urna assinatura.
l.
um fundo religioso para que o governo democrático não degenerasse numa
absoluta anarquia, sendo ele incompatível com o livre-pensamento.
No dia 26, Oliveira e Silva, o mesmo que já contraditara Ferri, pronuncia
va uma palestra na Associação dos Empregados do Comércio, refutando as
idéias de Clemenceau.
A 28 de setembro já o político francês se encontrava em São Paulo reali
zando uma conferência no Teatro de Sant'Ana.20 A 6 de outubro se achava
20. Nu1na nota de 25�9� 191 O, a Gazeta de Notícitls con1entava, em tom chocarreiro, o fato de
C!emenceau estar sendo aco1npanhado, desde Buenos Aires, pela Cia. Francesa de Grand
Guignol, que representava scrnpre na mesrna cidade, e às vezes no mesn10 teatro, em que o estadista
1 CAPÍTULO XVI � 2 3 9
novamente no Rio, falando na Escola Politécnica. A 1 O, logo após a procla
mação da República em Portugal, despedia-se do público brasileiro proferin
do sua última conferência no Municipal. Fez então, "como irmão mais velho1'
- na expressão de um matutino -, a crítica construtiva de várias coisas que
vira no país. Falou do problema operário, das excelentes condições de equipa
mento das nossas Forças Armadas (aludindo à Força Pública de São Paulo,
instruída por militares franceses), da questão religiosa e dos telegramas que re
cebera de Porrugal. Terminou salientando a obra de Oswaldo Cruz e Vital
Brasil, atribuindo-nos a primazia intelecrual na América. De regresso à França,
Clemenceau publicou o livro Notes de voyage dans l'Amérique du Sud, com re
ferências amáveis ao Brasil.
se fazia ouvir, uma peça em um aro por ele escrita na mocidade: Le Voile du Bonheur. Ora,
Clemenceau vinha�se irritando sensivelmente com isso. Em Buenos Aires quis mesmo impedir
a representação, não conseguindo. Qual o motivo de semelhante ojeriza? É que ele considera�
va a peça um pecado de juventude, qualquer coisa como aqueles versos "Se eu fosse o teu gati�
nho" que Carlos de Laet conletera outrora e dos quais não podia ouvir falar. Le Voi!e du
Bonheur devia ir à cena no Palace Théâtre nessa noite.
No dia seguinte, o cronista teatral da Gazeta dizia ter agradado em cheio o ato único, causan�
do a melhor impressão no público. O enredo, inspirado num conto chinês, era forte e co�
movente. Não havia, pois, motivo para Cleinenceau envergonhar�se do seu trabalho.
1
te da República e o ministro da Viação.
O marechal Hermes e J. J. Seabra, como bons políticos, cortejavam, de igual
maneira, Deus e o diabo. Deve-se levar em conta, além disso, que em 191 O os
nossos governos ainda sofriam influência das idéias positivistas, sob cuja égide se
proclamara a República. Coelho Lisboa atacou com veemência o padre Gaffre,
causticando-lhe a presunção de querer destruir toda a força da palavra eloqüen
te de Clemenceau com banalidades ditas em belo estilo e em bom francês.
1j
tos aspectos interessantes.
Chegando ao Rio a 8 de dezembro de 1910, o padre Gaffre foi testemu
nha, como já vimos, da insurreição da Marinha em prosseguimento da revol
ta de João Cindido, e o quadro que ele nos dá do bombardeio da cidade é vi
vo e animado. As páginas seguintes nos vão revelando um viajante inteligente,
sabendo surpreender os detalhes característicos do país, embora incidindo,
num ou noutro ponto, em generalizações apressadas. Os flagrantes do Rio e de
São Paulo; o encontro com Rio Branco em Petrópolis e com Rui Barbosa na
Fazenda do Rio das Pedras, nas proximidades de Campinas; as impressões da
Trapa, em Tremembé; a reprodução de um diálogo com um negro velho na
quele recanto do interior paulista, são páginas de boa reportagem, que denun
ciam no padre Gaffre um jornalista ágil, mestre no gênero choses vues.
Não deixa ele de referir-se ao movimento anticlerical, sensível no Rio e em
São Paulo, acusando nesta última cidade a ação nefasta da maçonaria italiana,
o que o leva a derivar para o tom polêmico. Pior do que a febre amarela, a va
ríola e as cobras venenosas lhe parecem os ódios religiosos. Decerto, não po
1
dia separar a sua condição de viajante estudioso, jornalista e escritor, da de
CAPÍTULO XVI � 2 4 3
sacerdote católico, e era precisamente nessa condição que viajava. Seu livro ti
nha de servir à causa a que o autor se consagrara revestindo-se em muitas pá
ginas de ;,m caráter combativo, mas será difícil negar o prisma de simpatia
através do qual desfilam essas "visões do Brasil".
Mais ainda do que Anatole France e Ferrero, Paul Adam iria dar grande
extração, entre n6s, à palavra "latinidade". Chegou ao Rio em meados de
maio de 1 9 1 1 para uma prolongada permanência no Brasil, onde dizia pre
tender estudar o aspecto do problema das raças na América Latina. Recepção
oficial, almoços, passeios, visitas a estabelecimentos públicos.
Na primeira conferência realizada no Rio, sobre o tema '<O mito de fcaro",
tratou do gênio inventivo e do espírito científico das raças latinas. Aquilo que
o poeta latino tinha imaginado, o inventor latino conseguira realizar: a avia
ção. E aqui vinha o elogio a Santos Dumont. Desse ponto de vista, esforçava
se por mostrar que todas as grandes invenções haviam partido do gênio lati
no. O ciclo das descobertas fora obra dessa raça privilegiada. Entre os povos
latinos existe, pois, um parentesco, resultante das mesmas concepções de qua
lidades comuns e de um único gênio. E não poderiam esses laços do espírito
transformar-se em relações materiais? Sim, um tratado de aliança entre a
França e o Brasil era coisa que se impunha.
Na segunda conferência, a 3 de junho, no Clube dos Diários, com a pre
sença do presidente da República, o marechal Hermes da Fonseca, Paul Adam
falou sobre o "Mito de Vênus", para exaltar a superioridade da mulher latina
sobre as demais e concluir, por aí, das virtudes da mulher brasileira.
Mas na sessão solene com que a Academia Brasileira o recebeu, em 20 de
maio, José Veríssimo, ao saudá-lo num pequeno discurso em francês, acentuou,
com espírito realista e a sinceridade brusca que lhe era comum: "Não sei su
ficientemente, permita-me dizer-vos, o que poderá haver de verdadeiro na con
cepção que vos é cara de raça latina e latinidade. Quanto a mim, duvido muito
da propriedade dessa designação de raça latina. Não obstante, creio no espíri
to latino como resultado da cultura que a Itália, a França e a Ibéria receberam
de Roma, aumentando e transmitindo a outros povos. Apesar das influências
l
Paul Adam suscitou ressentimentos por não ter esquecido os mulatos e as mu
latas que andam pelas ruas do Rio: ''Ses yeux afticains, sa figure portugaise, son
allure indienne reparurent en mille damés entravées, empanachées, couvertes de
kermines royales. " Esta e outras referências semelhantes os leitores brasileiros
l
não lhe perdoariam.
•
Em 1 9 12, Darío já se encontrava afastado da diplomacia, dirigindo duas
grandes revistas ilustradas, uma delas, Mundial, circulando em Paris. A servi
ço desta última vinha ele ao Brasil fazer conferências. Seu nome já se havia
tornado célebre em rodo o continente; era o grande poeta que encabeçara um
verdadeiro movimento modernista na literatura hispano-americana: No en
tanto, ao saudá-lo na Academia Brasileira de Letras, José Veríssimo acentua
va: "(...) filhos do mesmo continente, quase da mesma terra, oriundos de po
vos em suma da mesma raça ou pelo menos da mesma formação cultural, com
l
l
grandes interesses comuns, vivemos nós, latino�americanos, pouco mais que
alheios e indiferentes uns aos outros, e nos ignorando quase por completo."
O interessante é que nesse próprio discurso Veríssimo parecia dar uma prova
C A P Í T U L O X V I .:::--9 247
nem mesmo - o que seria particularmente interessante - as impressões dos
contatos pessoais do poeta com o grande brasileiro. É uma página de prosa
límpida e ;onora, mais propriamente de divagações em torno dessa figura,
que pelo seu caráter olímpico não podia deixar de seduzir o espírito artístico
de Rubén Dario. Apenas, em dada altura, já temos a indefectível menção de
Nietzsche, as alusões ao Assimfalava Zaratustra - citação inevitável na época.
E quanto ao resfriado do poeta, conseqüente da chuva do dia anterior, não
foi mais do que um dos excessos de libação alcoólica a que esse temperamen
to boêmio e amargurado com freqüência se entregava, sem atender às exigên
cias do momento. 24
Do Rio, Rubén Dario foi a São Paulo, onde, a julgar-se por um curiosís
simo depoimento de René Thiollier, seu velho conhecido, que o acompanhou
durante a permanência ali, caiu numa situação deplorável.25 Dir-se-ia qual
quer coisa de semelhante à tragicômica dipsomania de William Faulkner,
quando em 1952 visitou a Paulicéia. Desde que chegou, o poeta não soube di
zer outra coisa senão isto: "Tengo sed! Tengo sed!"
A mesma frase ansiosa que René Thiollier dele ouvira outrora na terrasse
do Café de La Paix, em Paris. E como lá, seu desejo em São Paulo concentra
va-se no seguinte: um copo de whisky and soda. Nenhum interesse pela cida
de, completa indiferença por tudo o que via. Sua opinião sobre o Brasil resu
mia-se no seguinte: ''Es el mismo que mi pais, pero mds grande!" Impossível
tirar-lhe mais uma palavra a respeito. Em traços animados, René Thiollier
mostra-o desolado diante do Grande Hotel, negando-se a "subir a pié una es
calera en un siglo de fuces"; depois, entusiasmando-se com a esposa de Paul
Adam, o escritor francês que nessa mesma ocasião visitava São Paulo (Es una
princesa de gloria!), para acabar atirando-se na carna, vencido pelo álcool.
No dia seguinte, na audiência concedida gentilmente pelo presidente do esta
do, o conselheiro Rodrigues Alves, que desconchavo! Fora necessário antes
não atender absolutamente as suas constantes súplicas: "Tengo sed!" Mesmo as
sim, no palácio, enquanto espera o presidente, o poeta não mantém a linha,
dobra o corpo sobre os joelhos, finca neles os cotovelos, esconde a testa entre
l
Muitos outros escritores, políticos e cientistas estrangeiros visitaram o Brasil
no período que estudamos. O desenvolvimento do nosso país e da Argentina
l
despertava a curiosidade dos europeus pela América do Sul. E era um mercado
que se abria também ao interesse financeiro de certos viajantes. A frase faire
FAmérique tornou-se um slogan da época. Aqui estiveram Jean Jaures, Paul
Doumer (que viria a tornar-se mais tarde presidente da França, posto em que
seria assassinado) , o cientista francês Georges Dumas (iniciando uma série de
visitas que se repetiriam com alguns intervalos até por volta de 1930); Jane
Catulle Mendes, que escreveu depois um livro de poemas sobre o Rio, La vil/e
merveilleuse, e foi, segundo Onestaldo de Pennafort, quem batizou a nossa ca
pital de Cidade Maravilhosa; a escritora italiana Bianca Papacena (a quem se
refere Gilberto Amado em Chave de Salomão [l' ed.], recordando-lhe uma
conferência sobre a melomania dos napolitanos) ; a anarquista espanhola Belém
1
! 1
1;
1
l
l
� lgumas expressivas amizades marcaram as relações literárias no
l� começo do século XX. Quadro verdadeiramente edificante foi
1i
por exemplo o de Machado de Assis, no seu ocaso sereno, cerca
-- do pela admiração e a estima de amigos ilustres.
E caso bem curioso: tido como retraído, acusado injustamente de pos
suir um coração frio , sua vida nos oferece, entretanto, um belo espetáculo
humano do culto da amizade. '1Pouco íntimo com os íntímos1'; ((Recebia
mais do que davà' são, entre outras, as acusações que lhe fazem. Mas é
preciso considerar o elastério que a nossa exuberância tropical pode empres
tar a esse termo íntimo. Pouco íntimo seria talvez Machado de Assis, no
conceito de muita gente, porque não costumava dar piparotes na barriga dos
amigos, nem permitia certas franquias de trato, que refletem antes uma vis
ceral tendência para o plebeísmo, do que a aproximação estreita de dois
espíritos. Não fazia confidências, guardava sempre irrepreensível discrição
no que se referia à vida particular; mas suas cartas aí estão para mostrar que
l
Machado ter sido um homem extremamente polido num país de derrama-
CAPÍTULO XVII � 2 51
dos como o nosso. Tomava-se por indiferença e secura de alma o que não
era senão medida, equilíbrio, a atitude de quem possuía os sentimentos
rigorosamente policiados.
À primeira vista, por exemplo, parece estranho que o autor de Dom
Casmurro se entendesse tão bem com um espírito da natureza de Joaquim
Nabuco. Temos a impressão de que grande distància os separava, e sob cer
tos aspectos, constituía mesmo um antítese do outro. Já houve quem preten
desse oferecer explicação para esse afeto no sentimento de piedade: Nabuco
teria pena de Machado e por isso o cercava de solicitudes e atenções. Mas se
examinarmos bem o caso veremos que havia um forte traço comum de tem
peramento a aproximá-los: aquela polidez a que aludimos acima. Embora se
tivesse apaixonado por uma grande causa social como a escravidão, entregan
do-se de corpo e alma à campanha, feita não s6 na imprensa e no Parlamen
to como na praça pública; embora sua índole fosse a de um político militan
,
1 te, de homem de luta, que não experimentava o "tédio da controvérsià -
!
' 1
aspectos pelos quais se distanciava de Machado -, Nabuco possuía a mesma
discrição, o mesmo senso da medida nas expansões íntimas, o mesmo pudor
que parecia frieza em Machado de Assis. Se não hesitava em fazer confidên
cias - coisa incompatível com o temperamento do amigo -, soube, enrre
tan to, guardar uma linha impecável de recato em Minha formação, que, ape
sar do narcisismo de certas páginas, está longe de apresentar o caráter aberto
e instintivo das "confissões" à Rousseau. Mesmo no capítulo "Massanganâ',
a nota de ternura e emoção é toda ela contida. Nabuco controlava rigorosa
mente os sentimentos, não suportando a idéia de que pudessem descobrir
lhe algumas lágrimas nos olhos. E marca muito bem a atitude assumida por
ele nas amizades mais íntimas, a resposta que deu a Oliveira Lima quando es
te se declarava disposro a lhe dizer "verdades", isto é, coisas desagradáveis, ao
outro. Resposta idêntica daria, certamente, Machado de Assis. Também ele
não suportaria a idéia de dizer coisas desagradáveis a um amigo pela necessi
dade de ser franco. E s6 isto basta para acentuar a afinidade entre ambos.
Nas cartas que trocaram não há uma palavra menos amável, a menor referên
cia capaz de ferir a suscetibilidade de um ou de outro; nenhum desses gestos
bruscos que se escudam no pretexto da franqueza. O entendimento, dentro
das conveniências afetivas, era perfeito.
1
ra, não se cansa de enviar-lhe palavras de estimulo, encorajando-o, consolan
do-o, com dedicação exemplar. Não faltou quem descobrisse uma ponta de
ridículo, ou pelo menos de trivialidade, nessas cartas de dois doentes, um
procurando animar o outro; mas, na verdade, o que distinguimos nelas é a
revelação de um Machado humano, estóico, caminhando sem um lamento
para a morte, sempre mais preocupado com os males do amigo do que com
os próprios, como acontece aos pais com relação aos filhos. As amizades do
cético de Brds Cubas foram, assim, na vida literária do Brasil, um elemenro
construtivo e, principalmente, uma tocante página de humanidade.
L Joaquim Nabuco, Cartas a amigos, col. e anot. por Carolina Nabuco, vol. II, pág. 201.
Instituto Progresso Editorial, São Paulo, 1949.
CAPÍTULO XVII � 2 5 5
Foi também a amizade de Nabuco que levou Graça Aranha à Academia
Brasileira, em circunstâncias verdadeiramente excepcionais. Graça Aranha
havia pubÍ icado na Revista Brasileira um capítulo do romance que tinha em
esboço e se intitularia Canaã. Fizera-o sob o pseudônimo feminino de Flávia
do Amaral e obtivera muitos elogios, inclusive do visconde de Taunay. Fun
dada a Academia em 1 896, estabelecera-se, como requisito essencial pata se
fazer parte dela, possuir um livro publicado. Graça Aranha não publicara ain
da nenhum livro, mas Nabuco, já havendo lido muitas páginas de Canaã, em
preparo, propôs a inclusão do amigo no número dos sócios fundadores. Con
vidado por Lúcio de Mendonça, Graça Aranha escusou-se da honra, permi
tindo-se divergir da própria fundação da Academia.
Com suas "tendências francamente libertárias'' mostrava-se contrário a tu
do que traduzisse proteção oficial às letras, e considerava a Academia nesse rol.
Referia-se depois às condições de nossa literatura, "pequenino ribeiro, cujas
águas se quer agora captar para levá-las a uma piscina limpá', terminando:
"Deixemos o filho da floresta entregue à sua braveza habitual. Deixemo-lo en
grandecer-se livremente." A Academia não aceitou a recusa, apesar da crítica
um tanto impertinente de Graça Aranha, e este acabou concordando ) em car�
ta a Machado de Assis: "Rendo-me à discrição; sou um forçado da Academia.
Agora deixe-me a consolação de que a amizade como fundamento da solida
riedade humana também é um princípio libertário. E assim, posso exclamar
tranqüilo: como é doce a incoerência."
Trinta anos depois, já na velhice, como num esforço de rejuvenescimento
- segundo observou maliciosamente Medeiros e Albuquerque-, o autor de
Canaã daria, afinal, expansão àquele ímpeto libertário de outrora, colocando
se ao lado dos jovens modernistas e rompendo com a Academia, na tumultuo
sa sessão de junho de 1924.
i
.,
25 6 é::A l/Í Vida Literdria no Brasil
gesto que muito comoveu este último. Mais tarde se encontraram em Lisboa,
. estreitando as relações de cordialidade. Desde então, vivendo sempre um lon
ge do outro, passaram a corresponder-se.
Não podemos acompanhar pelas cartas, hoje publicadas - pois figuram
em pequeno número as dirigidas a Oliveira Lima -, a evolução dessa ami
zade. Percebe-se que o autor de Dom joão VI no Brasil mantinha-se mais
assíduo na correspondência. Até a missiva de 1 º de março de 1906, em que
Nabuco expõe, com relativa franqueza, suas queixas ) o tom deste era, porém)
de perfeita afetuosidade, embora as barreiras entre ambos já se viessem acen
tuando de maneira muito sensível. Foi a política pan-americana de Nabuco
que acabou por separá-los. Encarregado da nossa representação diplomática
na Venezuela, Oliveira Lima passara a encarar os Estados Unidos com pouca
simpatia. Não se pode negar, no caso, certa influência do governo Castro -
hostil aos americanos do norte -, junto ao qual o ministro brasileiro servia.
Lima acusava Nabuco de haver-se identificado demasiado com os Estados
Unidos ) como se identificara com outros países, onde tinha exercido comis
sões diplomáticas. Na Inglaterra, tornara-se inglês; na França, francês; na
Itália, italiano. Talvez Oliveira Lima se esquecesse de que, na Venezuela, ele
também se ia tornando venezuelano.
Em carta a Graça Aranha, em fevereiro de 1906, dois meses antes do rom
pimento, Nabuco declara haver guardado seu drama trinta anos na gaveta,
sem se apressar em publicá-lo, dizendo: "Como vê, não tenho a doença do
Oliveira Lirna, a incontinência da pena." Pedia-lhe para vigiar o que estava es
crevendo ou ia escrever nos jornais sobre a ida de Mr. Root ao Brasil - uma
conquista diplomática de Nabuco -, acrescentando: "Está mais admirador
do Castro do que do Roosevelt. Eu sinto ver o Oliveira Lima afastar-se assim
diplomaticamente de mim, porque pensava ser ele um monroísta firme. Não
sei o que ele dirá. Pelo tom em que me escreve vejo, porém, que esramos mui
to afastados em tudo que é critério nacional, um do outro. Será ele o minis
tro das Relações Exteriores? Eu perdia na troca por certo."3
Em 1 5 de fevereiro, ao mesmo Graça, Nabuco mostra-se alarmado com
as cartas de Oliveira Lima: "Está tomado de admiração pelo Castro, por
CAPÍTULO XVII � 2 5 7
Venezuela, e acredita em tudo que lhe dizem contra os americanos. É mui
to perigosa.. a propaganda que ele me diz estar fazendo e eu recomendo ao sr.,
que a pode acompanhar aí com a réplica, que o não deixe de fazer."
Daí a quinze dias, escrevendo a Oliveira Lima, já não mais se contém.
Sua censura é, entretanto, serena, discreta e elegante. Alega que não se mos
tra assíduo na correspondência, como outrora, porque a compreende, sem
pre, como um prazer, escreve somente para ser agradável aos amigos. Não
é justo que eles em troca lhe enviem cartas com o propósito de lhe fazer
passar un mauvais quart d'heure. "Estas palavras" - observa Nabuco -
"bastam para lhe dizer a impressão que me deixa a leitura de suas cartas
de certo tempo a esta parte. O senhor parece interessado em que a Con
ferência naufrague (tratava-se da Conferência Pan-americana a realizar-se no
Rio de Janeiro em 1 906), toma o partido da Venezuela, condena os que me
auxiliam aqui, tudo isso é seu direito, mas eu não compreendo porque o
exercita dirigindo-se a mim mesmo, que nunca lhe falei nem escrevi senão
para lhe ser agradável."4 E externada a queixa, explicado o motivo do silên
cio, Nabuco confessa em nada terem variado seus sentimentos para com
o destinatário.
O autor de Minha formação colocava a questão no terreno da polidez,
da delicadeza. Não se escreve a um amigo senão com o objetivo de agradá-lo,
e nunca de lhe dizer coisas aborrecidas, mesmo se estas forem justas.
Não possuímos a resposta de Oliveira Lima. Imaginamos, entretanto, os
rermos em que foi redigida, pela carta de Nabuco de 30 de março de 1906.
Lima estabelecia como condição para continuarem a amizade ouvir Nabuco
as "verdades" (isto é, as coisas desagradáveis) que aquele lhe quisesse dizer.
Nabuco repele prontamente a condição, pois nunca haveria reciprocidade no
caso: jamais diria "verdades", coisas aborrecidas aos amigos. E conta a propó
sito o seguinte: "Há tempos um patrício nosso surpreendia-se de me achar
com o cabelo todo branco, tendo eu sido seu colega de Academia. O dele es
tava muito mal pintado, mas eu nada lhe disse. Era somente uma questão de
vaidade, mas rnesrno nessa me doeria tocar.'' Todo homem se encontra aqui
neste episódio. "O gosto de dizer 'verdades' aos que nos mostram afeição" -
1
5. J. Nabuco, op. cit., pág. 250.
6. Francisco Ven âncio Filho, A glória de EUc!ides da Cunha, pág. 27, Cia. Editora Nacional,
1940.
11
sinteressada, que nada pedia para si, contentando-se em mirar-se no êxito e na
glória do amigo. E se não se sabe, precisamente, até onde teria ido a assistên
cia erudita de Escobar na elaboração da obra - Euclides supria muitas falhas
de cultura com os recursos de um extraordinário poder verbal -, sabe-se que
livros, documentação, nenhum elemento de consulta lhe faltou graças à soli
f citude e à competência do amigo. Foi Escobar, por exemplo, quem lhe tradu
ziu o latim da Flora, de Martins, socorrendo o escritor num dos pontos prin
cipais d'Os sertões, e concluído o trabalho, o mesmo Escobar, pródigo também
no amparo material, fê-lo copiar por um sargento de polícia. Mais tarde, pu
blicado o livro, é ainda o companheiro vigilante quem adverte o autor sobre
os erros de português que haviam escapado e podiam açular a férula dos gra
máticos. Tal a extensão e a perseverança dessa fecunda amizade. É justo, por
tanto, que à glória intangível de Euclides se ligue a lembrança do coração ge
neroso que por detrás dela se apagou.
CAPÍTULO XVII � 2 6 !
traordinário. Francisco Escobar era presidente da Câmara Municipal da ci
dade. Mqito esquisito, Euclides tinha qualquer coisa de bicho-do-mato nas
maneiras. Em certos casos, como se dera no primeiro encontro com Coelho
Neto, mostrava-se de uma casmurrice hostil e desconcertante. Mas logo que
se afinava com o interlocutor desapareciam as barreiras, era o amigo franco,
expansivo e afetuoso. Entre ele e Francisco Escobar parece que a intimida
de se estabeleceu rapidamente. Euclides teria sentido bem depressa a sinto
nia do seu espírito com o desse homem modesto, cuja atitude discreta disfar
çava a poderosa personalidade de um sábio. Assim no-la descreve Venâncio
Filho, n'A glória de Euclides da Cunha: "Estatura mediana, magro e peque
nino, esquivo e desprendido, com o olhar manso e profundo, a voz tímida
e sem entono.>'6
Os testemunhos sobre a vasta cultura de Escobar são expressivos e deles
não é licito duvidar. Rui Barbosa chamou-o de "eruditíssimo e doutíssimo".
Autodidata, era um desses homens dos quais se pode dizer que sabia tudo e
tudo aprendera, sem visar nenhum interesse material e imediato, nenhuma
ambição a não ser a da cultura, volúpia na qual reside o verdadeiro prazer do
sábio. Prazer nada egoístico, ao contrário, pródigo e generoso, caracterizando
se justamente pela possibilidade de "dar", de repartir com os outros todos os
bens que entesourou. Será inútil acrescentar que essa família de espíritos se vai
tornando cada vez mais rara em nossos dias, quando as circunstâncias da vida
moderna já quase não permitem a cultura desinteressada, ante a escassez
de tempo e o alargamento progressivo do campo dos conhecimentos.
Acumulando tão vasto saber, tão largas aptidões, Francisco Escobar de
certo adquirira uma noção suficientemente profunda da responsabilidade in
telectual para não se animar a escrever obra alguma. Como alguém o censu
rasse por isso, respondeu: "Haverá alguma coisa que já não tenha sido dita?"
Sim, é sempre essa a interrogação que entibia a capacidade criadora e realiza
dora dos que muito leram e muito estudaram. Valerá a pena acrescentar mais
um livro aos montões existentes pelo mundo, sem trazer com isso qualquer
contribuição nova e fundamental? Infelizmente, nunca formularam tal per-
6. Francisco Venâncio Filho, A glória de E'uc!ides da Cunha, pág. 27, Cia. Editora Nacional,
1 940.
7. lvfonteiro Lobato, A barca de Gleyre, pág. 13, Cia. Editora Nacional, S. Paulo, 1944.
Até que em 1941 vamos encontrar esta conclusão bem significativa: "Mas o
nosso tédio, Rangel" - escreveu Lobato -, ''chama-se 'velhice'. Somos uma
porcaria. Somos uns cacos de pote. Nada mais nos sabe ao paladar porque já
perdemos o paladar."
A última fase dessa amizade ultrapassa de muito o período da vida literária
brasileira que nos propusemos historiar aqui. Mas a verdade é que a etapa ge
nuinamente "literárià' da correspondência não vai além de 1916 ou 1917, quan
do os dois amigos terminavam de escrever as obras que iriam consagrá-los.
O que se teria dado, daí em diante, fora um esgotamento progressivo da capa
cidade criadora de ambos ou um desgaste igualmente progressivo da crença na
literatura, porque nunca mais chegariam eles ao nível ali atingido. O paladar,
j á haviam, pois, começado a perdê-lo nessa época, bem antes de 1941. Lobato
acaba por encontrar um derivativo na literatura infantil; Godofredo Rangel en
trega-se, quase por completo, ao inglório mister de traduzir. Compreende-se
que já tivessem bem pouco que dizer um ao outro. Na realidade, Lobato não
possui mais nenhuma mensagem literária a transmitir aos homens. E justificar
se-á nestes termos, em carta de 7-5-1926: "De escrever para marmanjos já me
enjoei." Só lhe resta a compensação de contar histórias aos pequenos, ainda um
meio de manter certo compromisso com a "crença" perdida.
E Godofredo Rangel? Sem o estímulo e a atmosfera de excitação intelec
tual propiciada pelas cartas "literárias" de Lobato, o auror de Vida ociosa vai
se encolher ainda mais no retraimento em que sempre viveu. Escreverá, sim,
para guardar os originais na gaveta. Limitar-se-á a traduzir esterilmente os vo
lumes, sempre enviados pelo velho amigo, relembrando os Maupassant,
os Daudet e os Nietzsche do período heróico da mocidade ...
l
do que no das idéias, em termos rudes e brutais, com um requinte de plebeís
mo a que nunca chegara Camilo e nem mesmo Laet.
1
Sílvio Romero e José Veríssimo já haviam sido outrora amigos; mas
possuíam diferenças de temperamento muito sensíveis pata poderem enten
der-se por muito tempo. O primeiro era um emocional, deixando-se fa
cilmente dominar pelas paixões; de uma largueza de vista extraordinária
quando generalizava, cedia, por vezes, às influências sentimentais nos
momentos em que individualizava. Nutria admirações fanáticas e ojerizas
também extremadas. 1
1. O bilhete que a seguir transcrevemos e que nos foi comunicado por Antônio Simões dos
1
Reis, com quem se encontra a correspondência inédita de José Veríssirno, mostra�nos que pelo
menos até 1901 as relações entre os dois críticos eram as mais cordiais.
O segundo, ao contrário, não possuindo a mesma erudição, o mesmo ca
bedal de cultura filosófica e científica, tinha uma noção mais nítida do fenô
meno literário, resistindo às simpatias o u às antipatias pessoais, sabendo jul
gar com equilíbrio e objetividade exemplares. Além disso, Veríssimo exercia
essa crítica chamada militante, a apreciação regular dos livros do dia, na qual,
embora com imparcialidade, mostrava-se um tanto dogmático, assumindo
ares professorais, que não podiam deixar de suscitar o espírito de pirraça com
que Sílvio Romero costumava se opor à rigidez dos mestres. E o choque tor
nou-se inevitável, sobretudo no momento em que se ergueu entre ambos a
figura de Tobias Barreto.
Sílvio Romero fizera-se o defensor, o apóstolo do talento de Tobias, e fa
nático como quase todos os ap6stolos, cometia erros de julgamento quando
entrava em jogo a figura do amigo querido. Não podendo conformar-se com
o esquecimento, realmente injusto, em que figurava Tobias, excedia-se ao rei
vindicar-lhe os direitos. Estaria sempre mal com Sílvio Romero quem tocasse
na glória de Tobias. Foi um dos crimes cometidos por José Veríssimo: procurar
reduzir as proporções do filósofo de Escada e negar a importância e mesmo a
existência dessa "Escola de Recife", que seria o grande apanágio de Tobias e a
que Sílvio Romero se filiava, como sucessor direto do mestre e amigo.
A arremetida furiosa de Sílvio, nas páginas das Zeverissimações ineptas da crí
tica,' lembra de perto os excessos e destemperos camilianos. Basta vet o seguiu-
Saúde
Venho pedir-lhe, com todo empenho, que tome sob sua proteção, na Escola Normal, a meni
na Eugênia Courtois, minha tutelada, a qual vai prestar exames em banca que V. figura com
todo o seu valor e prestígio. Será mais um favor que terei a juntar às muitas finezas que devo à
sua bondade, nunca desmentida para comigo, o que gostosamente reconheço. De seu velho
amigo sempre ao seu dispor,
Sílvio Romero.
Fevereiro, 1 6 de 1901."
I
palhado, em seguida, passa a tratá-lo por Zé Bríssimo, Quasímodo- alusão ao
físico pouco esbelto do crítico -, dando-lhe, por vezes, em tom galhofeiro, o
tratamento familiar de Zezé.
Logo no primeiro capítulo, manda o "Sainte-Beuve peixe-boi" pescar tar
tarugas nas margens do Amazonas e deixar de dizer "asnidades"; mais adian
te, adverte-o nestes termos: ''Se continuares a disparatar, atiro-te em cima
o Pedro do Couto e verás"; em outro ponto diz: ''Anda, Zezé: pede auxílio
ao Capistrano, o famigerado Bumba, a todo o agulheiro, e vem; quero esma
gar-te de vez, patureba." E insistindo sempre nos apelidos: José dos Crichanás
- pratica maldades desre gênero: "O sr. Zé Bríssimo, como lhe chamam
os minhotos e os transmontanos." Não poupa igualmente os adjetivos:
1
José Veríssimo é , entre outras coisas nada amáveis, um ('espírito malévolo e
indeciso, pretensioso e precavido, insolente e cheio de cautelas e receios)'.
1
Todo esse arsenal de classificações pejorativas é mobilizado na argumenta
ção com que Sílvio Romero procura refutar, entre outros, dois pontos princi
l
pais: as insinuações de José Veríssimo de que ele, Sílvio, vivendo a defender a
cultura alemã, não sabia alemão e quer surrupiar a idéia de Martins com rela
l
ele aplicou à obra de Valentim Magalhães, Sílvio acusa-o de ter feito, mais do
que ninguém no Brasil, "literatura apressada'', e excetua dessa classificação pre
cisa1nente os livros de 1nenor importância, e que ficaram esquecidos: Educação
3. "Os rapazes do meu tempo ouviram anunciar com a insolência das convicções mais de sen�
cimento que de razão, a morte da metafisica. Foi então muito celebrado um deles que, com a
petulância da idade e do meio saber, da sua banca de examinando, afirmara seguro aos lentes
pasmados que 'a metafísica morreu!'
Na véspera havia aparecido aqui a filosofia de Comte. E nos moços, que dela tinham ouvido falar,
não faltaram apodos ao velho professor carrança que, com benigna e superior ironia, perguntara,
entre risonho e escarninho, ao jovem futuro doutor: 'Quem foi que a matou, foi o senhor?'
Pois quem tinha razão não eram os que anunciavam a morre da sedutora afilhada, se não filha,
de Aristóteles, nem os rapazes que ingenuamente o acreditavam, nem o moço que o repetiu
com a certeza de quem lhe houvesse assistido ao trespasse ou verificado o óbito. Quem tinha
razão era o enfezado velho, o mestre atrasado e caturra, malsinado de tal forma por aquela mo
cidade por não ter logo crido no que ela, confiadamente, sem maior estudo, repetia.
Não só a metafísica não morreu, mas, depois de um rápido sumiço, e decadência, talvez para se
refazer em melhores climas da anemia de que, em verdade, enfermara, voltou mais forte, mais
louçã, e o que mais é, com os velhos ares da antiga dama e senhora do pensamento humano. E em
vez de modesta, humilde, vexada, como partira, altaneira, soberba, falando grosso.
E ainda quando aquela rapaziada, como gatos pingados que lhe houvessem acompanhado o
féretro, a dava por de uma vez enterrada, já ela reflorescia com uma porção de cousas em ismo,
na França, na Alemanha, na Inglaterra, na Itália e em roda a parte onde se filosofava. Por que,
se excetuarmos o comtismo ortodoxo ou a síntese spenceriana, e ainda assim, que são as lu
cubrações do neokantismo ou do neocriticismo, os diversos sistemas oriundos do evolucionis
mo, as filosofias de Hartmann, de Schopenhauer e do próprio Haecke!, tanto quanto ele é um
filósofo, se não metafísica?
Em vez da Ciência, da Ciência com maióscula, da ciência unificada, experimental, positiva, de
sembaraçada de todas as preocupações das causas finais ou primeiras, restrita ao fato, ao relati
vo e refugando absolutamente o absoluto, como um momento se esperou, e se teve o direito de
esperar, tomar a si fazer a filosofia nova e definitiva, e substituir-se pelos seus resultados gerais
à antiga, como a última e assente explicação do universo e da vida, o que se viu foi, sob a in
fluência de causas complexas e múltiplas, toda a especulação filosófica invadida por novos idea
lismos, novos materialismos, novos fenomenismos, novos espiritualismos e por todas as aber
rações e extravagâncias das ontologias mais disparatadas, de que algumas abstratas chegaram a
ir buscar, confessadamente ou não, às obsoletas metafísicas asiáticas os seus critérios e con
cepções, e outras resvalaram às insanidades do ocultismo e à abusão do espiritismo disfarçados
sob o presunçoso nome de ciência psíquica.
E estava morta a metafísica! Como se pudesse morrer de repente uma maneira de pensar que,
sobre ser talvez a mais acomodada à nossa miserável constituição cerebral, não exige outro es
forço que o de pôr em movimento os órgãos correspondentes a essa fi.1 nção!"
José Veríssimo, Homens e cousas estrangeiras (3ª série, 1905-1908), I�I. Carnier, Rio, 1 9 1 O.
j
4. Era como se assinava então Assis Chateaubriand.
consistência do doesto chulo, da pacholice pulha, da linguagem mascavada e
da probidade defeituosa os seus processos de crítica; e, muito de indústria,
postergando os meios de defesa dos sujeitos educados, elege a grosseria e o de
saforo armas de combate entre homens de letras, vem a pêlo saber se estamos
diante de um cérebro equilibrado, de uma consciência ponderada e justa, ou
o que é melhor, e muito mais acertado, se diante de uma mentalidade em de
cadência, de uma inteligência enferma, combalida, impotente para dominar
as suas paixões, para julgar a bête humaine, cuja posse da alma s6 inspira o de
sejo de injuriar e de malsinar. "5
E por aí segue Bandeira de Melo, exprobrando a atitude de Sílvio e fazendo,
em seguida, a defesa de José Veríssimo. Repele como absurda a acusação contra
este último de escrever por empreitada, de ser um penny a liner, quando fato
li
idêntico se dera com um Macaulay, um Vogt, um Faguet, um Roosevelt, um
Ferri, sem nenhum desdoiro para os mesmos. Nega o conhecimento da língua
alemã a Sílvio, alegando que na História da literatura brasileira, ao citar os auto
1:
res alemães, não aludia à página, como fazia com os livros franceses. E procura
revidar, assim, todos os argumentos do sergipano, a começar pelo título do li
,
vro, ao qual opõe a fórmula "Romerizações ineptas da críticà .
Os artigos de A. Bandeira de Melo constituem a parte principal do volu
me; os outros são de menor importância, inclusive um pequeno estudo de
Oliveira Lima sobre Veríssimo que não se refere à polêmica, e uma "carta ao
cidadão Liberato Bittencourt" sobre assunto apenas correlato.
Sílvio Romero prometia ainda uma segunda série das Zeverissimações, não
tendo, porém, chegado a publicá-la. É possível que num desses movimentos
comuns à sua sensibilidade, bem depressa se houvesse arrependido da violên
cia desmedida do ataque.
Mas Veríssimo desta vez não deu provas da imparcialidade exemplar nele
sempre louvada. Alguns anos depois, quando apareceu, em publicação p6stu
ma, sua História da literatura brasileira, vemo-lo dedicar a Sílvio Romero ape-
5. A. Bandeira de Melo, A morte da polidez (a propósito das Zeverissimações ineptas do sr. Sílvio
Rotnero), edição de alguns arnigos (sern data).
(Os artigos foratn, antes, esrnmpados no jornal Pequeno, do Recife, em dezembro de 1910 e
janeiro de 1 9 1 !.)
1
Em 1 902, quando no caso da Réplica, Rui Barbosa provocava a mais
séria disputa gramatical entre nós verificada, pode-se dizer que se filiava a
uma linha tradicional das polêmicas na literatura brasileira, embora se afas
tando de outra: a das expressões grosseiras e contundentes, do ataque pessoal.
Com lampejos de sarcasmo e numa absoluta firmeza de tom, o debate se
manteve sempre num certo nível que não seria evidentemente aquele em que
costumavam colocar-se um Laet e um Júlio Ribeiro, quando discutiam.
Recordemos os fatos, acentuando, antes de tudo, a singularidade quase
única de se tratar de um caso político que veio a derivar num caso literário,
ou, mais particularmente, gramatical. 6
Ministro da Justiça no governo de Campos Sales, Epitácio Pessoa, em 1899,
incumbira Clóvis Bevilaqua, jurista de nomeada e professor da Faculdade de
1 6. Na conferência "Rui Barbosa e o Código Civil" (Dois momentos de Rui Barbosa, Casa de Rui
1
Barbosa, 1949), San Tiago Dantas procura mostrar que os objetivos de Rui ao fazer da Réplica
um caso gramatical eram essencialmente políricos, o de retardar a votação do projeto.
CA P Í T U L O X V I I I � 2 7 1
Direiro do Recife, de redigir o projeto do nosso Código Civil. Já então Rui
Barbosa, no-seu jornal A Imprensa, criticava a idéia. Percebia-se o propósito de
conseguir com brevidade o texto jurídico para que a sua aprovação fosse ob
tida ainda no quatriênio de Campos Sales, que devia deixar o governo em
1902. Um trabalho desse vulto não podia, entretanto, ser feito com pressa e,
principalmente, por uma única pessoa - dizia Rui Barbosa -, ainda mais
se tratando de um "noviço", ao qual faltava o "requisito primário, essencial,
soberano para tais obras: a ciência de sua língua, a vernaculidade, a casta cor
reção do escrever". A escolha fora determinada, assim, mais por um rasgo do
coração do que da cabeça.
Dentro de seis meses, Clóvis Bevilaqua dava por terminado o projeto;
Epitácio Pessoa passava-o pelo crivo de uma comissão de juristas e entregava
º a Campos Sales, que o remetia à Câmara Federal. Aqui começaria o esforço
para apressar o debate e a votação. Publicado a 13 de maio de 1900 no Didrio
Oficial, o projeto só em 1901 entraria em discussão. Multiplicar-se-iam as
emendas, modificando consideravelmente o texto original, e dada a pressa
com que era feito o trabalho, não se cogitava de recompor os artigos, na or
dem de uma linguagem clara, correta e precisa. Fáceis de ser atendidos pare
ceram estes requisitos ao sr. J. J. Seabra, presidente da Comissão Parlamentar
"dos vinte e um", o qual, tomando os originais, embarcou para a Bahia, e lá
os confiou ao conhecido filólogo professor Ernesto Carneiro Ribeiro, pedindo
lhe para revê-los gramatical e literariamente. O velho mestre teria hesitado a
princípio, compreendendo naturalmente a impossibilidade de realizar obra
perfeita no exíguo prazo que lhe impunham, mas, num verdadeiro tour deforce,
ao cabo de "quatro dias e algumas horas", deu conta do trabalho, fazendo
setenta e sete emendas no texto.
Volta Seabra com o projeto que, depois de sofrer, ainda, novas emendas de
forma na Câmara, é aprovado, subindo imediatamente ao Senado. Tudo isso
num ritmo de atropelo que a extensão e a gravidade da empresa não compor
tavam. No Senado esperava o projeto uma Comissão Especial, já constituída
sob a presidência do Rui Barbosa. Segundo Medeiros e Albuquerque, Rui ex
perimentava um profundo ressentimento por não ter sido encarregado da ela
boração do Código, nem consultado a respeito. De qualquer maneira, já havia
denunciado em 1 899, como vimos, o erro básico do gran<le en1preen<lirnento
1
forma, Rui Barbosa passaria a sofrer a hostilidade dos escritores. A repercus
são do parecer foi extraordinária. Sobre ele se manifestaram vários críticos
literários como José Veríssimo e Medeiros e Albuquerque?
Veríssimo, cuja férula não iria mal com as preocupações gramaticais, apre
l
ciou em longo artigo o "trabalho de Hércules" de Rui Barbosa, inquirindo, no
entanto, se não fora este demasiado meticuloso excedendo a justa medida na
,,
censura. "Não ouso dizê-lo - declara o crítico -, "tanto mais que sua reda
ção é sempre, no meu fraco parecer, melhor, isto é , mais correta, mais verná
cula, mais precisa, mais clara e ainda em cima - o que para um homem de
letras é importante - mais elegante que a do projeto e as inúmeras partes em
1
7. Autores e livros, volume XI, n° 7.
1 CAPÍTULO XV I I I � 275
preocupado com regrinhas> defendendo um vernáculo inumano, retórico e con
vencional. Mesmo depois da consagração de Haia, em 1907, assim continuaria
a vê-lo certa ::amada intelectual, insistindo em colocá-lo fora da literatura viva.
No movimento modernista seria ele considerado a personificação de tudo que
se devia destruir para se criar algo de novo e original em nossas letras.
Com a publicação da Réplica, a polêmica atingiu o clímax. Essas páginas
maciças iriam desencadear na Bahia um verdadeiro drama no espírito do ve
lho professor Carneiro Ribeiro. Dizem que depois de as ter lido, exclamou
transfigurado: "Vou responder a Rui, embora isto me custe a vida!..."
No entanto, na conferência "Rui e a réplicà',8 Américo de Moura mostra
nos que o Parecer não continha "nenhum agravo ao revisor extraparlamentar
do 'projeto'». Ao contrário, evidenciava-se o propósito do antigo discípulo de
homenagear o mestre. Eis que surgem as "Ligeiras observações", e aqui se per
cebia o gramático baiano, agindo, não em defesa própria, mas defendendo an
tes a Comissão de Redação do projeto e procurando acusar Rui no que este
escrevera "fora do substitutivo", numa atitude gratuita de adversário pessoal.
O revide do professor Carneiro Ribeiro só veio à luz em 1905, num vo
lume de mais de novecentas páginas, intitulado Redação do projeto do Código
Civil e a réplica do dr. Rui Barbosa. Seria a "Tréplica'', com a qual praticamen
te se encerrou o debate.
Quando recebeu o volume, Rui pôs-se a lê-lo diariamente, de lápis em pu
nho, segundo seu costume, fazendo anotações. Não podia desprender-se do li
vro. Era uma espécie de obsessão. Volta e meia lá se achava curvado sobre ele,
na tarefa minuciosa e paciente. Certo dia, num gesto rompante, resolveu pôr
um paradeiro naquilo: chamou o desembargador Palma, seu amigo, pedindo
lhe que levasse o livro dali. E explicou: precisava trabalhar, ganhar dinheiro,
advogar, e o diabo do volume a tomar-lhe o tempo, a persegui-lo, como uma
tentação verrumante. Não mais queria vê-lo pela frente, levasse dali, por fa
vor... Assim conseguiu libertar-se do desejo de dar "uma tunda no Carneiro",
segundo suas próprias palavras.
Alguns anos depois, na campanha eleitoral de 1 9 19, indo à Bahia, aclama
do pelo povo, numa hora de emoções, Rui confraternizou-se com o antigo
mestre. Foi comovente o encontro: Carneiro, alto; Rui, muito baixo, estreita
ram-se num forte abraço, entre lágrimas. "Meu caro Rui!" - dizia o primeiro.
l "Meu velho mestre!" - exclamava o segundo.
! duvidar de ter sido Vítor Silva seu autor. Eis agora a acusação de Picorelli a
João Neves da Fontoura: de haver composto o primeiro folhetim calcado em
apontamentos, que como ele pr6prio confessara, lhe foram fornecidos por ou
trem, e, ante o revide, de se haver defendido por intermédio de Vítor Silva.
Entre os artigos sobre a peça, reunidos em livro por Pinto da Rocha, pelos
quais nos guiamos para fazer este resumo da polêmica, não encontramos, in
felizmente, os de João Neves da Fontoura, o que nos impede de configurar de
l
maneira mais exara a extensão do debate. Enquanto se formava o sarilho em
torno da peça em Porto Alegre, a companhia Eduardo Vitorino seguia para
1
Pelaras, representando-a ali na primeira quinzena de agosto. As folhas locais
Opinião Pública e Reforma não pouparam elogios, mas no Diário Popular
(12-8-1907) aparece uma crítica feroz assinada com as iniciais G. S. Na cidade
1 de Rio Grande, segundo depreendemos de um artigo do Bisturi (1-9-1907),
correram até boatos de perturbação da ordem no préstito popular com que se
j pretendia homenagear Pinto da Rocha. "As famílias embora sobressaltadas" -
l
l
diz o jornal - "não desistiram de assistir à representação de Talita, em vez de
caudais de sangue, correram torrentes de aplausos ao dr. Pinto da Rocha."
Em quarenta e tantas páginas no livro a que nos referimos, o autor pro
curou rebater os principais argumentos da crítica contra a peça. Era fútil a cen
sura de um brasileiro e rio-grandense ter ido buscar em Portugal o assunto de
um drama. Não é o assunto que imprime o caráter de nacionalidade à obra li
terária. Fácil lhe seria argumentar com exemplos: Vigny, Byron, Victor Hugo
e até nosso Gonçalves de Magalhães serviram-se de temas estrangeiros, sem
por isso incorrerem naquela rola censura. Depois, tendo passado a infância e
a adolescência em Portugal, nada mais natural que ali encontrasse inspiração
9 . "Pinto da Rocha, na Gazeta do Comércio de que era diretor, fazia uma oposição acérrima ao
governo de Borges de Medeiros. Em represália, os escritores do Partido Republicano procura
ram ferir o autor de Talita na sua vaidade de poeta e dramaturgo, com uma flagrante e cruel in
justiça. No Rio Grande daquele ternpo, a política imperava sobre tudo e determinava rodos os
julgamentos." - Informação de Vivaldo Coaracy ern carta ao autor.
CAPÍTULO XVI I I � 2 8 !
que "pálidas aguareladas", ao contrário do que se dera com Macedo, Bernardo
Guimarães, Gonçalves Dias, Manuel Antônio de Almeida, Agrário de Meneses,
Trajano GJvão, Artur e Aluísio Azevedo, Nabuco, Sílvio Romero, Rui Barbosa.
Aqui já é impossível não denunciar o exagero de Hemetério dos Santos. Onde
encontrar o "problema do negro" na obra de Manuel Antônio de Almeida e
principalmente em Sílvio Romero, este último até acusado de escravocrata?
Sim, é verdade que Machado, pelo desejo de subir na escala social, exi
mira-se de lutar pela sorte do negro, mas o mesmo acontecera com outros
mestiços, principalmente com Tobias Barreto, sem que se procure evocar es
te exemplo como uma possível atenuação para a propalada indiferença de
Machado. Acusa-o Hemetério até de não haver se casado com uma mulata,
de não "amparar com seu nome uma que fosse do mesmo ciclo da sua cor".
Machado seria um "Calabar" que desertara dos seus "pela porta da traição e
do suborno".
Depois vem a história já hoje tão velha do escritor alheio à realidade bra
sileira, "às nossas guerras e às nossas questões externasn, ponto de vista errô
neo e absurdo que não nos daremos ao trabalho de discutir aqui. "É uma
arte doentia" - diz Hemetério -, "de uma perversidade fria, não sentida di
retamente do meio, mas copiada de leituras, pacientemente ruminadas de ro
mances franceses e ingleses." Aliás, logo no início do artigo declarava o gra
mático: "Tive sempre pela obra de Machado de Assis o sentimento que
desperta o trabalho chinês de acurada paciência em papelão, lata ou chumbo
derretido; efêmero, porque a ausência do fundo que se lhe nota não tem for
ça de eternizar a forma; passageiro, porque essa mesma forma não se estitna
e não se valoriza pela excelência da construção e pela variedade dos materiais.
Machado de Assis não foi um observador fiel do nosso modo de ser, um psi
cólogo mesmo no sentido corrente dessa palavra, durante sua vida muito
alongada e sempre bafejada pelo carinho dos seus e pelo aconchego que sem
pre teve de estranhos e que o elevou a posições culminantes."
Basta, sem dúvida ... No decorrer desse artigo tão maldoso, através das assa
cadilhas à memória do morto, percebe-se logo para onde o professor de portu
guês, o gramático de bitola estreita, quer levar a questão. "O segredo da arte de
Machado de Assis é primário e rudimentar" - afirma Hemetério -: "está
num vocabulário rninguado e pobre, repetido tão amiúde, indo e tornando,
.1
(1906), pretendia fazer uma revisão do autor de Dom Casmurro, para concluir
que seu único mérito era o de escrever bem. Não tinha filosofia nem psicolo
gia, nenhum traço forte das paixões individuais ou coletivas se lhe descobria
1 muita gente continua a utilizar-se para classificar certos escritores. Nem isto,
no entanto, concederia a Machado o professor Hemetério na sua atitude pú
nica de vingador.
1
l\ lZ> C A P Í T U L O XIX
l
e a Revista Americana � O Pirralho anuncia o Modernismo
CAPITULO XIX � 28 5
Mas não se pode negar que os jornais, proporcionando trabalho aos inte
lectuais, mesmo quando se tratava de simples rotina de redação, sem nenhum
J
cunho liter rio, facilitava a vida de muitos deles, dando-lhes um second mé
tier condigno, no qual podiam, certamente, criar ambiente para as atividades
do escritor. Lembremo-nos de que a imprensa propiciara, como continua
a propiciar, a mudança para a metrópole de grande número de intelectuais,
que não conseguiriam realizar-se literariamente se permanecessem no recan
to nativo da província.
Em 1906, ao fundar A Gazeta em São Paulo, Adolfo Araújo mandou con
vidar o poeta Alphonsus de Guimaraens, seu amigo, que acabava de perder
o lugar de juiz municipal de Mariana, para trabalhar na redação, com o orde
nado de quatrocentos mil-réis mensais (soma avultada na época). O poeta não
aceitou por motivo que devia ser ponderável, uma vez que o ordenado era bas
tante convidativo. Se viesse para São Paulo, muito mais fácil lhe seria conse
guir repercussão no Rio, e sua obra não ficaria tão pouco conhecida, como
ficou, aré os dias atuais, quando a crítica resolveu afinal redescobri-la.
Ouçamos a opinião do próprio Bilac, que fez da imprensa o principal meio
de vida. No prefácio de Ironia e piedade, em 1916, escrevia ele: "Hoje não há
jornal que não esreja aberto à atividade dos moços. O talento já não fica à por
ta de chapéu na mão, trisre e encolhido, vexado e em farrapos, como mendigo
tímido que nem sabe como haverá de pedir a esmola. A minha geração se não
teve outro mérito, teve este que não foi pequeno: desbravou o caminho, fez da
imprensa literária uma profissão remunerada, impôs o trabalho. Antes de nós,
Alencar, Macedo e todos os que traziam a literatura para o jornalismo eram
apenas tolerados: só o comércio e a política tinham consideração e virtude."
No seu inquérito Momento Literdrio, em 1905, João do Rio propunha aos
escritores brasileiros, entre outras perguntas, a seguinte: "O jornalismo, espe
cialmente no Brasil, é um fator bom ou mau para a arte literária?" Na verda
de, os termos da pergunta não estavam definidos com muita precisão. Qual o
sentido exato de jornalismo no caso? O da literatura feita para servir os jor
nais, a dos escritores que colaboram, ou a chamada tarimba de redação, exer
cida também, freqüentemente, por escritores?
Nem todos os entrevistados interpretaram da mesma maneira a questão.
Mas uma grande parte concordou em ver no jornalismo pelo menos uma
l
çava a tomar corpo entre nós. "Não se quer conhecer as obras, prefere-se inda
gar a vida dos autores" - escrevia Paulo Barreto no Momento Literdrio, justifi
cando o inquérito que acabava de realizar. Atravessávamos precisamente uma
l
época em que a vida dos autores se tornava mais interessante do que as obras.
Mas ter-se-ia processado essa evolução da imprensa no sentido também de
dar maior lugar à literatura? Em relação às duas últimas décadas do século
!
XIX, acreditamos que não. Já em 1 875, com o aparecimento da Gazeta de
Noticias, a literatura conquistara bom terreno em nossa imprensa, conquista
que o Didrio Mercantil, de Gaspar da Silva, em São Paulo, não viera senão en
riquecer. E seguiram de perto outros jornais do Rio como O País ( 1884),
f
Novidades (1 887-1892), o Correio do Povo (189 1 ), A Notícia, A Imprensa, nos
CAPÍTULO XIX � 2 8 9
últimos tempos do Império e nos primórdios da República, todos abrindo
espaço relativamente apreciável às letras, apesar das perturbações políticas
d
desses dois ecênios. Depois de 1900, os jornais que vinham do século ante
rior não teriam feito mais do que continuar o que já se tornara rotina quanto
à literatura. Como alguns desses jornais se desenvolveram, tomando novas
dimensões e aumentando o número de páginas, a parte literária foi muitas
vezes favorecida por essa expansão. Não seriam, no entanto, as concessões à
literatura que dariam maiores possibilidades de trabalho aos escritores na
imprensa, e sim o desdobramento e a ampliação de seções puramente jorna
lísticas. Começamos a ver muitos escritores a fazer reportagem policial e a
alinhavar "sueltos", anonimamente, ao lado dos artigos assinados que publi
cavarn, 1nuitas vezes, na primeira página.
Procuremos assinalar, por alto, a contribuição da literatura em nosso jorna
lismo no período em questão. Principiando pelo Jornal do Commercio, diremos
que foi quase o único que se manteve fiel ao folhetim. Ali ainda se podia ler
o rodapé parisiense "Ver, ouvir e contar'', de Jaime Séguier, que substituíra o
barão Sant'Ana Néri, depois da proclamação da República. João Luso instala
ra-se nas suas "Dominicais", em que arquitetava geralmente uma história sobre
a epígrafe de um Jàit-divers, quando não recordava alguma figura recém-faleci
da. Constâncio Alves, às quintas-feiras, no c'Dia a dià', colocava-se mais ou me
nos na linha de Machado de Assis, que desde os fins do século XJX deixara de
finitivamente de colaborar em jornais. Era o folhetim característico de outrora,
entrelaçando os assuntos mais diversos com certos arremates de espírito vieux
jeu, que lembrava também o do cronista da "Semanà'. Félix Pacheco, poeta
simbolista e bibliógrafo, que segundo Luís Edmundo começou como repórter
de polícia em 1901, tornar-se-ia o grande homem do jornal do Commercio.
Entrando para a Academia Brasileira em 1913, iniciaria uma tradição: a de
possuir sempre o velho órgão um representante entre os "imortais". 1'Da vos�
sa capacidade jornalística damos pleno testemunho" - proclamava Sousa
Bandeira ao recebê-lo na Academia. "Do sisudo artigo de fundo sobre coisas
financeiras e militares, passais insensivelmente a uma acirrada discussão polí
tica; um belo artigo literário sucede a uma vária maliciosa e por vezes perver�
sa; um elegante t6pico do dia fala com graça comedida de um acontecimento
mundano; as discussões que tendes travado com os vossos colegas de imprensa
CAPÍTULO XIX � 2 9 1
o barão <lo Rio Branco, que tirando o paletó e alisando a ponta do charuto se
põe a escrever uma nota política. Todo mundo sabe que o grande ministro,
fiel à vocação jornalística, ainda encontra tempo para colaborar, de quando
em quando, na respeitável folha de José Carlos Rodrigues.
A Gazeta de Notícias continua a ter a colaboração de Bilac, que vinha do
século XIX. Como substituto de Machado de Assis, desprezara, no entanto, 0
folhetim para tornar-se o que hoje chamamos um colunista. Por volta de
J 900, ainda ali escrevem Pedro Rabelo e Guimarães Passos. De 1907 em dian
te, o feitio um tanto pesado do jornal começa a aligeirar-se. O desenvolvimento
das artes gráficas permite-lhe publicar lindas páginas coloridas. Aos domingos,
remos então qualquer coisa de semelhante a um suplemento literário, ilustra
ções coloridas e forografias ilustrando um texto em que figura sempre o
"Cinematógrafo'', de Joe, comentários dos dias da semana, algumas poesias,
um conto e artigos nem sempre de escritores brasileiros, quando não são pu
ros comentários de vulgarização literária e científica. Já falamos da grande im
portância literária que teve o "Binóculo", de Figueiredo de PimenteL como re
gistro da vida mundana carioca. A seção continuou por alguns anos, mesmo
depois da morte daquele que a lançou e a ocupou durante muito tempo. Com
esses comentários diários de abertura às notas sociais, Figueiredo de Pimentel
não chegou propriamente a criar um gênero literário, mas um tipo de seção
jornalística. Desde então os jornais nunca mais dispensaram o que se chamou
a "cabeçà' das "sociais", uma croniqueta leve, fútil ou lírica, como introdução
risonha às notícias de aniversários, noivados, casamentos. Muitos escritores
haviam de fazer um estágio nessa seção que se amoldaria a outros feitios, quase
sempre nos limites da subliteratura.
Grande sucesso literário da Gazeta de Notícias foi a publicação das cartas
de Max Nordau, que, segundo se dizia, eram traduzidas por Capistrano de
Abreu. Max Nordau tornara-se conhecidíssimo como autor das Mentiras
convencionais da civilização e pelo terrível processo que fizera dos simbolis
tas decadentes e místicos, no livro A degenerescência. As cartas giravam qua
se sempre em torno de problemas sociais e tinham grande repercussão, sen
do largamente discutidas nos ambientes intelectuais. Ramalho Ortigão, que
colaborara muitos anos na Gazeta de Notícias e dela se afastara depois do
1 5 de Novembro, reataria a colaboração interrompida em data que não pu-
4. "Ra111a!ho Ortigão, Epistológrafo'', artigo de Joaquim Leitão en1 Vamos ler, 25-3-1 937.
CAPÍTULO XIX � 2 9 3
de Laet, a colaboração do padre Severiano de Resende, não raro com sentido
polêmico, ':5 assinaturas de Afonso Celso e de Barista Júnior Qoão Phoca).
N'A Imprensa, onde o diretor Alcindo Guanabara escreve diariamenre seu
arrigo político ou sobre questões gerais, podemos assinalar a colaboração de
Sousa Bandeira, Afonso Lopes de Almeida, Afonso Costa, José do Patrocínio
Filho, por volta de 1911, sob o pseudônimo de Antônio Simples, e Oliveira
Viana já revelando nessa mesma época, quando ainda não havia publicado li
vros, sua envergadura de sociólogo e prosador, ocupando-se de problemas bra
sileiros com o mesmo desembaraço com que abordava motivos literários.
Na Tribuna aparecia o nome de Gastão Bousquet, enrão muito conhecido
como cronista e teatrólogo, figura viva na memória dos contemporâneos,
embora não houvesse deixado qualquer obra. E pela redação era visto o poe
ta Luís Pistarini, também hoje quase esquecido, com chapéu largo, gravata de
,,
laço frouxo e imenso à moda dos pintores, '�meio revisor e meio repórter , em
busca dos vales, cujo produto consumia nas mesas dos cafés. Podemos acres
cenrar os nomes de Xavier Pinheiro e de Fábio Luz, que praticou a crítica
literária durante algum tempo.
O aparecimento do Correio da Manhã em 1901, fundado por Edmundo
Bittencourr com o propósito de combater o governo Campos Sales, veio agirar
não somenre os arraiais políticos como também literários. Tornara-se o grande
jornal do dia, de orientação essencialmenre polêmica, onde se fazia o proces
so dos figurões da época. Tudo pois que ali aparecia no terreno das letras
obtinha, pela projeção da folha, a maior repercussão. A crítica literária foi fei
ta inicialmente por José Veríssimo, mais tarde por Osório Duque-Estrada.
Como uma contrapartida dos folhetins de Vieira Fazenda, n'A Notícia, Melo
Morais Filho escrevia sobre aspectos do Rio antigo as crônicas que seriam
reunidas no livro Fatos e mem6rias; aos domingos, Artur Azevedo publicava
um dos seus conros brejeiros, que pela leveza e graça atraíam numerosos lei
tores. 5 Cândido Lago tornou-se famoso com a sua seção "O que é correto",
discutindo questões de gramática e problemas lingüísticos. Heráclito Graça,
5. No livro Artur Azevedo e sua época, Raimundo Magalhães Jr., às págs. 210 e segs., refere-se de
talhadamente ao episódio pitoresco a que já aludira Antônio Sales na Revista da Acadernia
Brasileira de Letras (março de 1 930). Recla.inava-se contra o fato de o C'orreio da Manhã só publi
car contos de Artur Azevedo, dando�lhes destaque na p rimei ra página, quando havia muitos
valores novos no gênero à espera de oportunidade para aparecerem. A campanha era feita não só
fora como dentro do próprio jornal, onde o espírito grivois do autor de O badejo parecia algo
destoante, e acabou levando Edmundo Bíttencourt a suprimir o conto dominical, embora con
servando a colaboração de Artur Azevedo em outros gêneros. Ao mesmo tempo que assim pro
cedia, criava a grande oportunidade reclamada pelos novos, lançando um concurso de contos
originais e traduzidos. Para os primeiros, se classificados, a remuneração seria de cinqüenta mil
réis; para os traduzidos, din mil-réis, devendo os autores assinar com pseudônimo.
Rapidamente se avultou a massa dos manuscritos recebidos, e como o público já estivesse
sentindo a falta dos contos de Artur Azevedo, a direção do jornal resolveu antecipar o julga
mento da parte recebida. As preferências do júri recaíram logo no conto j'A viúvà', de Tibúrcio
Gama. Foi estampado na primeira página, no lugar onde figuravam os contos de Artur
Azevedo. Mas qual a verdadeira identidade do autor? Daí a dias o Correio da Manhã recebe uma
carta que assim terminava: "Pedindo aos meus ilustres colegas que relevem um movimento,
aliás inofensivo, da minha curiosidade, ou se quiserem, do meu amor-próprio, declaro-lhes que
desejando verificar à puridade se poderia ombrear com os escritores novos n a produção de con
tos dignos do Correio da Manhã, escrevi e enviei-lhe, copiado com letra estranha e assinado com
o pseudônimo de Tibúrcio Gama, o conto 'A viúva', que, apesar de simples e ligeiro, foi o es
colhido para ser publicado. Confesso que a escolha não me contrariou, mas como não posso
nem devo receber o prêmio de um torneio oferecido aos moços, rogo aos meus ilusrres colegas
que destinem os 50$000 de Tibúrcio Gama a um conto suplementar que seja efetivamente es
crito por urn moço. - Rio de Janeiro, 18 de março de 1906 - Artur Azevedo."
CAPÍTULO XIX � 2 9 5
situação crítica no seu país, sem ter jornal onde escrever, é convidado por
Edmundo Bittencourt para colaborar no Correio e aí publica o primeiro ar
tigo político' sob a rubrica "Saibam quantos. . . " a 9 de dezembro de 1910.
Dentro de algum tempo, porém, é obrigado a silenciar pois o governo por
tuguês lhe faz sentir que se continuar a colaboração será exilado. O escritor,
que não se conformava em deixar Portugal, curva-se à imposição. Entre ou
tros colaboradores de além-mar destacavam-se Paulo Osório, dom João da
Câmara e Manuel de Sousa Pinto (este, aliás, brasileiro de nascimento). Fazia
parte do corpo redatorial uma curiosa figura: o italiano Mário Cataruzza, fale
cido precocemente por volta de 1908. Vindo para o Brasil, aprendera o portu
guês com extraordinária facilidade e rapidez, adquirindo logo os mais amplos
conhecimentos dos nossos problemas políticos. Fazendo a crônica parlamen
tar e os comentários internacionais mostrava-se sempre bem-informado, ver
sando elegantemente os assuntos. Louro, rosto cheio e corado, onde brilhavam
uns óculos de aro de ouro, com a expansividade natural da raça, deixou uma
viva lembrança na memória dos contemporâneos.
Na província, desde a Monarquia muitos jornais sempre deram destaque à
literatura, mas em poucos deles poderemos assinalar seções ou colaborações de
importância, pois os olhos dos que pretendiam realizar-se na vida literária esta
vam sempre voltados para a metrópole. Era principalmente aqui que todos de
sejavam aparecer em letra de fôrma. Não obstante, alguns jornais de São Paulo
conseguiram levar para suas colunas muitos nomes consagrados. José Veríssimo,
Olavo Bilac, Coelho Neto, Medeiros e Albuquerque, Artur Azevedo e outros,
que ali já vinham colaborando com relativa assiduidade no século XIX, conti
nuaram a fazê-lo no seguinte. De excepcional importância foi a colaboração de
Oliveira Lima e Euclides da Cunha n' O Estado de S. Paulo, jornal onde apare
ciam as assinaturas de Valdomiro Silveira, Amadeu Amaral, etc. e que lançou
Monteiro Lobato. O Correio Paulistano, à semelhança do O País, estampava no
canto esquerdo da primeira página um artigo freqüentemente literário.
Adolfo Araújo, jornalista e homem de letras, velho companheiro de Afonso
Arinos no Comércio de São Paulo, ao fundar A Gazeta em 1906, não conseguin
do trazer para o corpo redatorial o poeta Alphonsus de Guimaraens, que havia
perdido o emprego em Minas, teve no entanto a colaboração deste nas colunas
do novo jornal leve e combativo. Várias poesias Alphonsus de Guimaraens ali
1
e 1888, quando nas colunas desse jornal se formou urna verdadeira elite in
telectual. No século XX aparecem os nomes de Gilberto Amado - nos seus
famosos "Golpes de vista'', sob a assinatura de Áureo -, Artur Orlando,
Aníbal Fernandes, erc.
1
!
No terreno das revistas e dos periódicos devemos distinguir os de caráter
essencialmente literário dos que, possuindo mais interesse geral e cunho mun
)
6. Alcides Gonzaga, flornens e coisas de jornal, Livraria do Globo, Porco Alegre, s/d.
CAPÍTULO XIX � 2 9 7
do século XX, com o desenvolvin1ento da arte gráfica e da reportagem, o lá
pis do caricaturista não bastará para dar todo interesse ilustrativo a um perió
,
dico; surgi�á então um elemento novo na imprensa: o fotógrafo.
Um dos primeiros exemplos dessa articulação da caricatura com a re
portagem fotográfica vamos encontrar na Revista da Semana, que começou
a circular em 20 de maio de 1901. Fundou-a Álvaro Teffé, auxiliado por
Medeiros e Albuquerque e Raul, que ali iniciou por assim dizer a carreira ar
tística. Intitulava-se "órgão de informação ilustrado e popular'', e como pro
curava manter ainda certo compromisso com a tradição do século XIX, subs
tituía, por vezes, a fotografia pela gravura decalcada naquela. Que parte teve a
literatura, a princípio, na Revista da Semana? O artigo de apresentação expli
cava: publicaria contos e romances pelo critério do interesse que a ação pudesw
se despertar, uma vez que a linguagem fosse clara, acessível a todos e o entrecho
nada tivesse de censurável. Acusaria o recebimento de livros, registrando-os
sem criticá-los, e não faria política literária, nada de escolas ou de capelinhas.
Nota curiosa: já se cogitava então de literatura infantil, haveria sempre um
conto da carochinha para crianças. A Revista da Semana tornou-se logo de
pois propriedade do jornal do Brasil, e em 1915 passaria para as mãos de
Carlos Malheiro Dias, Aureliano Machado e Artur Brandão, encetando uma
fase em que se acentuaria o cunho mundano com a primazia de uma litera
tura por ele moldada.
No mesmo ano de 190 l, surgia em Paris, nos moldes de L1llustration
Française, a !lustração Brasileira, já com a predomináncia da fotografia sobre o
desenho. Trazia o propósito de tornar-se instrumento de comunicação mais ín
tima entre o Brasil e a Europa; por isso mesmo, a parte literária, bem desenvol
vida, ficava a cargo de colaboradores brasileiros e portugueses. Como Paris era
o maior centro de elegância do mundo, encarregava-se a revista de oferecer, em
primeira mão, as últimas novidades em matéria de modas femininas e infantis.
Não encontramos indicação alguma sobre o diretor e os redatores no cabeçalho,
mas somos levados a atribuir a participação do barão do Rio Branco na inicia
tiva, sobretudo pelo fato da revista ter deixado de circular em 1902, quando re
gressava ele ao Brasil para assumir a pasta do Exterior no governo Rodrigues
Alves. Em janeiro de 1909, porém, tínhamos no Rio a Ilustração Brasileira apa
recendo quinzenalmente. Apresentava um bom elenco de colaboradores esttan-
1
mal aparelhado para semelhante empresà', a necessidade de reunir em suas ofi
cinas os mais variados ramos das artes gráficas, que nos mais adiantados cen
tros constituíam verdadeira especialidade. Vencendo tais obstáculos, Kosmos
pretendia ser um álbum de "nossas belezas naturais, dos primores dos nossos
1
desenho separava-se completamente da fotografia. Embora dando margem à
nota mundana e social, Kosmos seria uma revista de cultura com o predomí
nio da parte literária e artística - a revista mais típica talvez de nosso "1900",
coincidindo seu aparecimento com a abertura da avenida. Um álbum em que
a literatura se enquadrava numa larga moldura artística de ilustrações e foto
grafias. Quanto à política, alheava-se completamente das lutas partidárias.
Registraria apenas os fatos sem ultrapassar os limites da crônica. O elenco de
colaboradores reunia nomes consagrados ou pelo menos já bastante conheci
dos. Dos novos, quase somente João do Rio, que começava a aparecer com as
primeiras reportagens na Gazeta de Notícias. Lima Barreto, muito moço,
não tendo ainda publicado livro, não conseguiria impor-se como escritor aos
1
diretores da 'ilindíssima revista)'.7
7. Francisco de Assis Barbosa, A vida de Lima Barreto, pág. 156, José Olyinpio, Rio, 1952.
C A P Í T U L O X I X 6::='9 2 99
A crônica de abertura, nos primeiros nún1eros, vinha assinada com as ini
ciais O. B., ,de Olavo Bilac, que a deixou de fuzer, logo depois, por ter de partir
para a Europa, retomando-a mais tarde ao regressar. Da rubrica teatral encar
regara-se a princípio Artur Azevedo, que seria substituído por João do Rio.
A crítica literária, sem rigorosa assiduidade, foi exercida por José Veríssimo.
Gonzaga Duque, além da crítica de arte, publicou páginas muito curiosas de
memórias. Outros colaboradores freqüentes foram: João Ribeiro, Vieira
Fazenda, Lima Campos, Raul Pederneiras, Félix Pacheco, Coelho Neto,
Capistrano de Abreu, Medeiros e Albuquerque e Euclides da Cunha, que ali
deixou duas páginas admiráveis, ainda não reunidas em livro. Tinha a revis
ta como diretor Mário Behring, e circulou de 1904 a 1906. Dois meses de
pois do aparecimento de Kosmos, seria lançada outra revista mensal do mes
mo gênero, ao que tudo indica destinada a fazer concorrência àquela que
surgira como qualquer coisa de novo e excepcional em nosso ambiente.
Intitulava-se Renascença, era dirigida pela parceria Rodrigo Otávio-Henrique
Bernardelli. O artigo de apresentação dizia ser idéia antiga dos editores lan
çar um magazine desse tipo, que estava fazendo falta ao meio literário brasi
leiro, lançamento que, então, se impunha ante o desenvolvimento das artes
gráficas no Brasil. Aludia ao fato da Kosmos tê-los precedido na arena, e lou
vava-a como "atestado eloqüente do que se é capaz de fazer entre nós". O
momento assinalava, sem dúvida, uma tendência de franco renascimento es
tético, sendo sintoma animador o aplauso geral às várias obras de remodela
ção do Rio. 8 Registrando essa tendência, Renascença surgia como expressão
de um surto de progresso, "oferecendo ao mesmo tempo à literatura pátria
ensejo e oportunidade de tornar conhecidas as produções do variado enge
nho de seus beneméritos servidores". Os colaboradores haviam sido recruta
dos, em grande parte, entre os que figuravam nas páginas de Kosmos: José
Veríssimo escrevia artigos de crítica; Coelho Neto publicava conferências,
fantasias; Bilac e Guimarães Passos assinavam contos, gênero em que ambos
não foram além da mediocridade; Sílvio Romero dava em primeira mão ca
pítulos do livro Brasil social. Não faltariam as cr6nicas de João do Rio nem
os artigos de Elísio de Carvalho. Sob o pseud6nimo de Cosme Velho, Araripe
8. Isco não era perfeicamente exato: as obras sofreram onda de oposição da irnprensa e do povo.
1
Revista bem típica do espírito mundano que dominou a literatura no iní
cio do século XX foi A Rua do Ouvidor, título já bastante significativo. A Rua
da Ouvidor, fundada em 1889, circulou até 1913, e refletia a ditadura do fa
1 moso "beco" na vida social do Rio - ditadura fortemente abalada de 1904
1 em diante com a abertura da avenida. Serpa Júnior - mais gerente de jornal
do que propriamente jornalista - julgava ir ao encontro do gosto do público
oferecendo-lhe um magazine capaz de refletir o mundanismo que marcava de
maneira tão expressiva a fisionomia da cidade. Mas a aceitação não correspon
deu à expectativa. E como Serpa Júnior, embora doente, fosse homem de von
tade, resolveu a todo o custo manter a revista. A Rua do Ouvidor passou, desde
certa época, a trazer sempre na primeira página o retrato de um figurão com
uma notícia biográfica muito elogiosa, carregada de adjetivos laudatórios.
Por esses panegíricos Serpa Júnior cobrava bom preço dos figurões, conseguin
do assim, graças ao grão de incenso na vaidadezinha alheia, manter durante
bastante tempo um magazine que prestou bons serviços à literatura. Crônicas,
versos - principalmente versos - vinham ao lado dos patins e dos comentá
rios mundanos. Serpa estimulava os talentos novos afirma-nos Vivaldo
Coaracy9 -, acrescentando terem estreado n'A Rua do Ouvidor muitos escri
tores que mais tarde conquistaram renome nas letras.
Em agosto de 1903, antes mesmo de se iniciarem as obras de abertura da
avenida Central, surgia o semanário A Avenida, de Domingos Ribeiro Filho,
com tendência humorística, em que faria toda sorte de perversidades o lápis
de Gil. O artigo de apresentação abria logo com trocadilhos: devendo A
Avenida ser larga e ampla, não haveria jamais "a estreiteza de vistas, a nota pes�
,
soal irritante, o conceito insultuoso, as opiniões parciais' , etc. Seu sonho era
no entanto ambicioso: dar ao Rio de Janeiro um periódico que, pelo feitio e
barateza, colocasse o público "a par do mais perfeito e moderno jornalismo do
mundo". Segundo depreendemos de um artigo de Domingos Ribeiro Filho
CAPÍTULO XIX � 3 0 1
em Renascença, 10 a revista teve seu período de apogeu, em que chegou a ven
der quinze mil exemplares. Foi nessa época que Gil e Bastos Tigre em
preenderam a série dos "Prontos" - um soneto sobre qualquer nome do dia,
ilustrado por uma charge
cujo êxito foi grande. O mesmo Domingos
-
Ribeiro alude à decadência da revista, que deixaria de circular em 1905. ''A pi
careta do dr. Frontin'' - escreve ele no artigo citado - "demolia o nosso pré
dio à rua dos Ourives, 33, e a imbecilidade nacional economizava, de sábado
em sábado, mais vinte ou trinta mil-réis." O periódico teria sofrido assim as
conseqüências da própria abertura da avenida cujo advento anunciava.
E o fim seria o triste desfecho tão freqüente na boêmia da época. ''Acabamos
no fundo de um barbeiro, e de tudo quanto nos era caro só o Gil ficou com
o seu lápis imaculado e adorado" - informa-nos Domingos Ribeiro Pilho.
Explorando o mundanismo, nenhuma dessas revistas, como acabamos de
ver, conseguira uma grande penetração popular e teria vida longa. Somente a
Fon-Fon, fundado em 1907, e a Careta, em 1908, lograriam sobreviver e che
gar até nossos dias. Ambas fariam também da nota humorística, dos potins, in
tercalados entre duas fotografias de casamento ou piquenique, um de seus
principais instrumentos de sucesso. São bem significativas as palavras do
artigo de apresentação da Careta: "Lançandoà publicidade este semanário,
é preciso confessar, e contritamente o fazemos, que a Careta é feita para o
Público, o grande e respeitável Público com P grande. Se tomamos essa li
berdade foi porque sabíamos perfeitamente que ele não morre de caretas.
Longe vai o tempo em que isso acontecia. Todavia a nossa esperança é justa
mente que o público morra pela Careta a fim de que ela viva."
A Fon-Fon teve grande importância como órgão da última fase do simbolis
mo. Ali se reuniam Mário Pederneiras, Gonzaga Duque, Hermes Fontes, Álvaro
Moreyra, enquanto os parnasianos, irredutíveis às libertinagens dos discípulos
de Verlaine, procuravam abrigo nas páginas da Careta. Quanto ao Malho, fun
dado em 1902, e que obteve grande popularidade, dedicou-se de preferência
à crítica, nele não desempenhando a literatura qualquer papel digno de nota.
Vejamos agora as revistas que não cortejavam o grande público. A 8 de ou
tubro de 1904, quase um ano após o aparecimento de Kosmos, seria lançada
CAPÍTULO XIX � 3 0 3
" Nunes Vidal. Em 1 905, João do Rio, que já colaborava na revista, passou a
ocupar-se da."crônica teatral, reservando-se, porém, o direito de não escrevê-la
toda semana, já que nosso movimento nesse setor nem sempre oferecia motivos
dignos de comentários. Entre os colaboradores figuravam padre Severiano de
1
Resende, Gonzaga Duque, Evaristo de Morais, Virgfüo Várzea, José Veríssimo,
Coelho Neto, Eunápio Deiró, Rocha Pombo, este escrevendo vários artigos
em continuação sobre Farias Brito; Sílvio Romero, refutando, no decorrer de
1
vários números, as teorias expostas por Manuel Bonfim, na América Latina,
páginas vivas de polêmica, mais tarde englobadas em volume; Araripe Júnior
publicando, entre outros artigos, a introdução do ensaio sobre Ibsen. No dia
l
em que Domingos Olímpio morria de congestão cerebral, a revista com isso
deixava de circular.
Na mesma linha de Os Anais, podemos colocar a Revista Americana, que
teve relativamente vida longa, durando de 1 909 a 1 9 1 9.
Num estudo sob o título "Um americano e a literatura americanà', incluí
do na I' série de Homens e cousas estrangeiras (Garnier, 1 902), José Veríssimo
afirmava: "Pouquíssimo sabemos nós brasileiros das literaturas americanas, e
não sei se eu poderei, generalizando, afirmar que pouquíssimo sabemos nós
americanos da literatura uns dos outros. Nesta nossa comum e recíproca ig
norância, os Estados Unidos, não obstante sua supremacia no continente, não
tem quinhão consideravelmente menor que o México ou a Venezuela, por
exemplo. Ignoramo-los intelectualmente quase tanto corno ao Chile ou à
Argentina." Pois para combater essa ignorância lançava-se em outubro de
1909, no Rio, a &vista Americana, mais ou menos nos moldes da Revista
Brasileira do século XIX, tendo como redatores: A. G. Araújo Jorge, Joaquim
Viana e Delgado de Carvalho, gente do ltamarati, com o apoio de Rio Branco,
a iniciativa do grande ministro. O artigo de apresentação ressaltava o desconhe
cimento recíproco em que viviam, sob o ponto de vista cultural, os países do no
vo continente. O telégrafo nos trazia, em fragmentos, o que se passava no pla
no político e econômico entre as nações vizinhas, mas quanto ao aspecto
"estritamente intelectual" nada sabíamos. E no intuito de divulgar as diversas
manifestações espirituais da América e "seguir do mesmo passo, paralelamen
te, o traçado superior de sua evolução político-econômica)', a Revista se propu
nha tornar-se um elo entre as figuras representativas da intelectualidade desta
1 1 . Francisco de Assis Barbosa, op. cit., pág. 1 56. O biógrafo não pôde averiguar se essa carta
chegou a ser enviada. Mas pelo menos foi rascunhado esse desabafo.
CAPÍTULO XIX � 3 0 5
livre, sem injunções de escolas ou de ('malocas literárias". Contra a sofistica
ção dos mei:lalhões da época, preconizava absoluta autenticidade. Era preciso
que, burro ou inteligente, o escritor fosse ao fim de si mesmo dizendo o que
tinha a dizer com a mais ampla liberdade de fazê-lo - tais as palavras de Lima
Barreto no artigo de abertura.
Os redatores deviam contribuir com uma quota para cada número.
Obtiveram uma sala por trás da oficina de um alfaiate na rua Sete de Setem
bro, onde instalaram a redação, animados das melhores intenções. Mas a im
prensa não deu muita ressonância ao aparecimento da revista. Apenas algumas
notas discretas, com exceção de um artigo de Gonzaga Duque. Do primeiro
número venderam-se trinta e oito exemplares. Feita pequena concessão ao
gosto do público, do segundo chegaram a sair oitenta e dois exemplares. No
terceiro obteve-se uma grande vitória moral: as referências amáveis de José
Veríssimo na coluna crítica do jornal do Commercio. Isto não bastou para
prolongar a vida de Floreal, que se extinguiu depois do quarto número. Era
lógico. Dificilmente se poderia admitir um periódico literário nessa época
sem um forte lastro de mundanismo. Além do mais, esses jovens escritores
com hábitos boêmios não estavam suficientemente organizados para levar
avante uma iniciativa tão árdua. Lima Barreto perdia o instrumento de divul
gação com que sonhava. Não teria sua revista, mas havia de conservar sem
pre a combatividade que o caracterizava, escrevendo sem cessar nas revistas e
nos jornais alheios.
A maioria das revistas simbolistas foi publicada no século XIX, principal
mente na província. Em Curitiba, onde já haviam aparecido umas dez, conti
nuaram no começo do século seguinte a surgir outras como Brevidrio de
Romário Martins e Alfredo Carvalho; Turris Eburnea, de Aluísio França;
Acacia, de Dario Veloso; Victrix, de Emiliano Perneta. Em Belo Horizonte,
Álvaro Viana publicou Horus, em 1902. Na Bahia, a Nova Cruzada, agremia
ção de caráter simbolista, publicou sua revista com o mesmo título de 1901 a
1 9 1 1 . Neste ano a Nova Cruzada é substituída por Os Anais, sob a direção
de Álvaro Reis.
No Rio as revistas simbolistas mais características foram Rosa-Cruz e
Revista Contemporânea. A Fon-Fon, embora tivesse agrupado algumas figuras
principais da úlrin1a fase do movimento e exercido n1uita influência, possuía
14. Afonso A. de Freitas, A imprensa periódica de São Paulo, desde seus primórdios em 1823 até
1914, pág. 547, Tip. do Diário Oficial, S. Paulo, 1 9 1 5.
CAPÍTULO XIX � 3 0 9
·· direito em São Paulo, colaborava ativamente na pequena folha, chegando
muitas vezes a escrever todo um número com diversos pseudônimos. Assi
nava-se: Lob�toyewski, Pascalon o Engraçado, Hélio Bruma, Mem Bugalho,
etc., e muito do material que reuniu depois em livro sob o título Cidades
mortas proveio dessas colaborações n' O Minarete. Godofredo Rangel que
adotara o pseudônimo de Bezuquet, herói do Tartarin, de Daudet, deixara
enterrado nas colunas desse jornalzinho um livro que - segundo a expres
são de Lobato - faz falta à nossa literatura. Lobato ali publicou, primeira
mente, um romance ''Lambeferas'', em "capítulos curtinhos e esquizofrêni
cos", que parece anteceder certas extravagâncias modernistas; e outro, "O
queijo de Minas ou História de um nó cego", de colaboração com Godofredo
Rangel: rornance joco-sério em português de lei, com duas mortes trdgicas e outras
coisas interessantíssimas no qual os autores deixam de escrever os pedaços que os
leitores naturalmente pulam. A obra não foi por diante porque Lobato diz ter
implicado com um personagem de Rangel, matando-o; este último, em revi
de, matou um personagem de Lobato, e dessa forma continuaram até fica
rem apenas os autores em campo.
Entre as páginas de Godofredo Rangel publicadas n' O Minarete, Lobato
cita o conto "Simbólico vagido" e o itinerário de viagem "De São Paulo ao
Guarujá", "um primor de descritivo" em que já se revelavam as qualidades do
escritor mineiro. O Minarete agitou o ambiente em Pindamonhangaba, a
"Princesa do Norte", então despojada da antiga majestade com a crise do ca
fé, que depois da abolição dominou todo o vale do Paraíba. Foi "um perpétuo
escândalo" na modorra da velha cidade.
A Vida Moderna, aparecendo em 1907 em São Paulo, traria certamente
a ambição de se tornar uma revista ilustrada e literária da importância da
Kosmos no Rio. Mas esse papel só viria a desempenhá-lo O Pirralho, cujo pri
meiro número surgiu a 12 de agosto de 1911 prolongando-se a publicação até
1917. Sendo a revista mais típica e importante do " 1900" paulistano, seria
também a mais representativa do nosso pré-modernismo. Foram seus direto
res Dolor de Brito e Oswald de Andrade - embora não figurassem os nomes
no cabeçalho -, que contaram desde o início com a parceria de Voltolino
(Lemmo Lemmi), um dos caricaturistas mais típicos da vida paulistana, então
lançado pelo O Pirralho. Como a Fon-Fon, a Careta e outras revistas ilustradas
1 5 . Esse gênero epistolar tornava-se comum e, como tudo em nossas letras, teria vindo da lite
ratura francesa, onde esrava então em voga, cultivado porém num plano elevado. As Lettres à
l'Amazone de Retny de Gourmont foram muito lidas, e Salomon Reinach chego:.i a amenizar a
história da filosofia minisuando-a "sem lágrirr1as" , em forma de cartas, nas Lettres à Zoé.
Lembraremos ainda as Lettres à Ang?:le, de André Gide. Entre as crônicas epistolares que se multi
plicaram em nossas revistas, basta citar as "Canas de mulher'', de Jracerna, na Revúta da Semana,
CAPÍTULO XIX � 3 l 1
�
para o modernismo, ridicularizando muitos valores formais e m que repou
sava então a nossa literatura. Mais tarde, em 1916, Juó Bananére seria substi
tuído na seção "Cartas d'abaixo piques" por Juó Larangére, pseudônimo de
Geswaldo Castiglione, que nas crônicas do "Pirralho macarrônico" jamais
atingiria o mesmo grau de humor de seu antecessor, esse que na vida civil foi
o pacato cidadão Alexandre Marcondes Machado.
O Pirralho realizou grande programa de inquéritos literários, em que
eram ouvidos tanto escritores do Rio como de São Paulo. Ao lado de perguntas
bem à moda do "1900" sobre a elegância de Fradique Mendes ou a possibi
lidade de "um suicídio verdadeiramente original e belo em nossos dias",
interrogava os intelectuais cariocas sobre o estado atual das letras na capital
da República, e - como estava em foco a questão do presumido tesouro da
ilha da Trindade - quais os livros que levariam se tivessem de ficar ali isolados
durame algum tempo.
O grande animador da revista era Oswald de Andrade, um Oswald pré
modernista, de cavanhaque alourado, lembrando um oficial da guarda imperial
russa, escrevendo de colaboração com Guilherme de Almeida peças em francês
(Mon coeur balance) e saudando Emílio de Meneses em vesperais parnasianas.
Apesar disso, já revelava o futuro autor de Serafim Ponte Grande os pruridos
iconoclastas que iriam caracterizá-lo. Mantinha a seção '(Lanterna mágica'',
onde em meio a muitas crônicas anódinas se mostrava não raro combativo.
E em O Pirralho publicara alguns capítulos das Memórias sentimentais de joão
Miramar, romance cuja forma submetida a completo desmonte iria produzir
a versão modernista do romance lançado em 1924.
Em 1915, O Pirralho lamentava a ausência dos colaboradores franceses
Léon Werth, Gabriel Renillard, Max Goth, Marcel Milliet, René Morand,
"talvez caídos na defesa da pátria invadidà' . Seria ainda um vestígio do sim
bolismo essa colaboração francesa? O certo é que em 23 de janeiro do mesmo
ano surpreendemos, num potin, uma referência à "literatura futuristà', entre
aspas, donde concluímos que, pelo menos com a reserva prudente das aspas,
já se começava a falar em futurismo no Brasil.
Em 191 3, dirigida por Gelásio Pimenta, aparece A Cigarra que, como
a Vida Moderna, concedendo largo espaço ao mundanismo, vinha também
con1 propósitos literários já de si revelados pelo título. "A grande ambição
CAPÍTULO XIX � 3 1 3
li <$> C AP ÍTU Lo XX
CAPÍTULO XX � 3 1 5
André Billy a Paul Souday, de procurar ter sempre razão contra o autor. t
Comunicando-lhe João Luso esse juízo de Euclides da Cunha, Veríssimo res
pondera: "Quanto ao saber e à competência, estou bem longe do que deseja
ria; quanto ao resto, trato de dar a cada um o que, pela balança de meu crité
,
rio, ele pagou e mereceu,,
Sua probidade crítica parece não sofrer dúvida, pelo menos dentro do re
lativismo da imperfeição humana. Não se lhe conhecem os "ódios" de que fo
ram passíveis os maiores críticos, embora injusto com Sílvio Romero, quando
lhe dedicou apenas três linhas na Hist6ria da literatura brasileira. E "afeto", no
sentido em que aqui empregamos a palavra, não possuiu também, pois é im
possível distinguir na admiração por Machado de Assis mais do que o resul
tado de um rigoroso julgamento crítico.
; 1 Várias vezes mostrou como desconhecia as razões do coração no exercí
; :
cio da crítica. Foi severo com Joaquim Nabuco, quando este formava na pa
nelinha da Revista Brasileira. N' O Imparcial, atacou rudemente o romance
' '
Assunção, de Goulart de Andrade, redator dessa folha, embora assim o fizesse
:i
depois de consultá-lo sobre o que preferia: a crítica desfavorável ou o silêncio.
i Goulart de Andrade naturalmente preferiu a crítica, mesmo desfavorável;
e Veríssimo não lhe poupou os mais duros golpes. Faro idêntico se deu quan
do Miguel Melo, secretário do referido jornal, publicou o romance A visão da
estrada. Segundo Humberto de Campos, o autor de Estudos brasileiros entrara
em O Imparcial pelas mãos de Miguel Melo, que o defendia com devotamen
to sem limites, na rua, na redação, em toda parte, sempre que o crítico era ata
cado. Isso não impediu Veríssimo de, obtida a licença do amigo, desancar sem
contemplação o romance. Também os ídolos do dia esbarravam com freqüên
cia no juízo independente e corajoso de Veríssimo. Sua crítica ao romance
Rei negro, de Coelho Neto, se pode parecer errada em muitos pontos, era um
exemplo de coragem na primeira década do século XX, em que Coelho Neto
se via quase unanimemente elogiado em todo o país.
"Zé Veríssimo" chamavam-no, transformando o sobrenome em adjetivo pelo
seu amor à verdade. Outros não lhe poupavam o trocadilho fatal: "Severíssimo."
Contudo, é possível que o homem tivesse suas fraquezas. Corre a versão de que
2. Francisco Prisco, josé Veríssimo, sua vida e sua.1 obras, Redeschi, Rio, 1 937.
C A P Í T U L O XX � 3 l 7
Mas Veríssimo ainda se empolgaria por uma grande causa: a dos aliado s
contra os impérios centrais, na guerra de 1914. Sua campanha na imprensa ,
principalmente a favor da França, foi enérgica e infatigável. Fez uma viagem
ao sul do Brasil para estudar in loco as proporções da infiltração alemã em nos
so país, e seu último artigo, dois ou três dias antes de morrer, seria contra o
militarismo prussiano. Manuseava as provas da História da literatura brasileira
quando faleceu, em fevereiro de 19 16.
Sílvio Romero nunca fez propriamente crítica militante em jornal ou
revista. E por isso mesmo se irritava com a atividade excessiva desenvolvida
por Veríssimo nesse sentido. Esporadicamente escrevia, sobre alguns livros do
momento, como Os sertões, de Euclides da Cunha, e o Paris, de Nestor Vítor,
artigos incorporados à edição da História da literatura brasileira, de Nélson
Romero. Causa estranheza, no entanto, o prefácio que fez para o romance
; :
Dona Dolorosa, de Theo-Filho, obra, pelo assunto e pela forma, das menos
indicadas para comunicar-se com um espírito como o de Sílvio Romero.
) i
Araripe Júnior somente no século XIX teve atuação de crítico militante, na
Atualidade e principalmente na Semana, onde publicou uma série de artigos,
: i
depois reunidos em livro, sob o título de O movimento de 1893. No começo
do século XX, deixou de escrever regularmente em qualquer jornal. Seus ar
tigos de crítica, mais com o caráter de ensaio, pelo que se diferençavam dos
de Veríssimo, aparecem de quando em quando no Almanaque Garnier, na
Revista Americana e principalmente no Jornal do Commercio, onde estampa
Os didlogos das novas grandezas do Brasil, editado em 1909. Também no Jornal
do Commercio concorrera para a consagração de Euclides da Cunha, num ar
tigo de fevereiro de 1903.
Se não foi propriamente o "descobridor" de Agripino Grieco, como já se
disse , pois só se manifestou favoravelmente sobre o livro de versos deste últi
mo, Ânforas, em 1910, depois de artigos elogiosos de Medeiros e Albuquerque
e João do Rio, consolidou, sem dúvida, o êxito do estreante com a autoridade
de sua crítica. Mas foi, certamente, quem lançou Albertina Berta, enviando ca
pítulos do romance Exaltação para serem publicados no jornal do Commercio
acompanhados de uma carta a Félix Pacheco, na qual louvava entusiastica
mente os méritos da obra: "O Jornal publicando esses fragmentos" - escre
via ele - "não fará senão concorrer para que no horizonte das nossas letras
3. Osório Duque-Estrada, Critica e polêmica, pág. l, Henrique Velho & Cia., Rio, 1924.
4. Medeiros e Albuquerque diz que foi graças à seção de crítica do Correio da Afanhã que
Osório Duque-Estrada, "agressivo e brutal", amedrontando alguns acadêmicos, conseguiu ser
eleito para a Academia Brasileira. (Afinha vida, 211 vol.)
5. Hermes Fontes q uem lhe deu esse título, segundo informação de Jain1e Adour da Cârnara.
·dessa "função meramente policial, para náo dizer profildtica, bastara-lhe uma
única habilidade: a de converter a pena de escritor em apito de vigilante".
O "Registro literário", no Correio da Manhã, prolongou-se de 1908 a 19 14.
Em 19l5, Osório Duque-Estrada passou para O Imparcial. E reria ainda uma
fase final no Jornal do Brasil, iniciada em 1921. Apesar de toda a rabugice, é
preciso lembrar que Osório Duque-Estrada lançou um poeta novo: Raul
Machado. Foi a sua grande "descoberta", feita durante uma excursão pelo
norte. Osório enviou para o Correio da Manhã dois sonetos do jovem, que,
elogiado pelo critico, se tornou imediatamente conhecido no Rio.6
A classificação de book-reviewer, que não poderia ser aplicada a José
Veríssimo, ajustava-se perfeitamente a Medeiros e Albuquerque, na "Crônica
literária" que manteve durante muitos anos n'A Noticia, sob o pseudônimo de
;1
J. Santos. Ali passava em revista todos os livros do dia, não somente de lite
ratura como de outros gêneros, numa crítica ligeira, informativa e impressio
; '
6. Mas quando Raul Machado publicou seu primeiro livro, Versos, Osório Duque-Estrada as
sim se manifestou: "É o livro de estréia de u1n poeta de dezenove anos, que já foi por mim reve
lado por estas mesmas colunas do Correio. A meu ver o autor teve pressa e1n dar à publicidade
os belos e pron1ctedores frutos <lo seu brilhante ralenro. Há várias incorreções ainda nesses ver�
sos e nem urna das novas produções consegue ultrapassar os dois sonetos que apresentei ao
leitor." (Correio da Jvlanhã, 21-6-1909.)
CAPÍTULO XX � 3 2 3
brasileiro. A lusofilia de que sempre deu provas lhe valeu, principalmente, de
sabridas agressões. Antônio Torres, que jamais o poupou, chegou a conside
rar-lhe a memória "abjetà'. Admirando e exaltando Pinheiro Machado, era
natural que o cronista de No tempo de Venceslau se visse fustigado pelos dois
jornais que se tornaram o mais forte reduto do antipinheirismo: o Correio da
Manhã e O Imparcial. Este último deu-lhe até um apelido ridículo. Mas João
do Rio parecia comprazer-se com a animosidade que provocava e encará-la
com um fundo de humor. Chegava a suscitar a onda de maledicência em tor
no de sua pessoa, bem à semelhança do modelo francês Jean Lorrain,8 vendo
no próprio escândalo um elemento de êxito.
8. O nome de Jean Lorrain, que tem figurado tantas vezes nas páginas deste livro, parecerá es�
tranho à maioria dos leitores. É um escritor inteiramente esquecido, mesmo na França. Cremos
"
que nenhum dos seus livros foi reeditado nos últimos quarenta anos e com dificuldade se des
cobrirá um exeinp!ar de algum deles nos buquinistas do cais do Sena em Paris. Seu nome tem
l :
aparecido apenas en1 memórias e diários íntimos de escritores do " 1 900" francês, como
l : Maurice Donnay e Alberr Keim (Le demi-sitcle).
Pergunte-se a nossos escritores que já dobraram a casa dos cinqüenta quem foi Jean Lorrain e
rodos se lembrarão, encontrando-se nesse número, naturalmente, um Agripino Grieco. Foi
João do Rio quem mais contribuiu para a vulgarização do autor de Monsieur de Phocas no
Brasil, deixando-se influenciar por ele não somente nas crônicas e nos contos, como nas
próprias atitudes, no tipo que posava com a intenção preconcebida de chocar, de irritar o am
biente. Para compreensão do próprio João do Rio e do nosso "1900" literário, parece-nos in
dispensável recordar em poucas linhas a figura e a obra de Lorrain.
Chamava-se Paul Duval e nascera em Fecamp; descendia, pela linha paterna, de uma família de
armadores e marujos. Menino nervoso, inquieto, de sensibilidade precoce e fantasia exaltada,
vivera cercado pelo carinho materno. Depois do voluntariado, recusando-se a seguir a carreira
marítima, partiu para Paris, pensando na glória literária. Foi quando a mãe o aconselhou a ado
tar um pseudônimo, explicando-lhe o motivo: se não obtivesse êxito, ninguém ficaria saben
do do fracasso. Precaução de provinciano procurando acautelar-se contra as opiniões desfa
voráveis dos vizinhos. Ela própria sugeriu o pseudônimo: Jean Lorrain. Em Paris, enquanto
foisait son droit, Paul Duval começou a penetrar nos salões, nas rodas literárias, ao mesmo tem
po que percorria as barracas de feira nos subúrbios, as tavernas, bebendo com gente do povo e
com voyous. Fez-se logo freqüentador do Chat Noir, colaborando no jornal que Salis mantinha
nesse famoso cabaré.
Aos poucos, a assinatura de Jean Lorrain vai aparecendo em jornais e revistas, em crônicas
que seduzem por tudo quanto reflere1n dos vícios, do frisson, das neuroses de Paris fin de sià:Íe.
Lírico, de um colorido por vezes gritante, alterna visões fugitivas e Ítnpressionisras com per�
fis satíricos de grandes figuras do mundanisino bou!evardier. Cáustico, irreverente, tendo a
arte como uma razão soberana, desdenhoso de tudo quanto traduz vulgaridade, evidencia
sempre o desejo de escandalizar. Com as crônicas, os versos, os primei ros romances e contos
que publica em livro, também o seu tipo se torna conhecido nas rodas parisienses. l'raz as
mãos pesadas de anéis, toma éter, ostenta propósitos cínicos, procurando mistificar freqüen
temente os interlocutores.
Além do pseudônimo de Jean Lorrain, utiliza-se de muitos outros, como o de Restif de la
Bretonne, cujo primeiro nome foi obrigado a mudar para Ratif, por causa do protesto de um
descendente do autor de Nicolas. lviais tarde, chegará mesmo a publicar muitas páginas sob a
assinatura macabra de "Le Cadavre". Percorre os bas-fands de Paris, nessa época em que ainda
existem apaches, e se envolve no meio deles em sortidas perigosas. Compraz-se em ser visto
na companhia de efebos equívocos, de rufiões, de gente com ficha na polícia. Oscar Méténier,
filho do comissário do distrito da Sorbonne, livra-o amiúde de conseqüências desagradáveis.
Nessa época, em que os duclos estavam em rnoda, também se bate várias vezes; de uma feita
com René Maizeroy, de outra com Marcel Proust.
Atraem-no igualmente as viagens, o gosto exótico. Como Gide, embriaga�se com o sol da
Argélia, o clima de volúpia e esquecimento que se respira naquelas planícies à beira do deserto.
Heures d'Aftique, um dos seus mais belos livros, faz lembrar o Amyntas de Gide. Aparecem ali
muitos acidentes da geografia gidiana: Consrantine, Biskra, El-Kantara. Esse homem que tan
to escandalizava Paris com sua arrogância, e queria que lhe atribuíssem um fundo de monstruo
sidade, era, em última análise, alma ingênua e pura, segundo o teste1nunho dos amigos.
Rachilde deixou dele um retrato enternecedor em Portraits d'hommes, onde nos conta os apuros
de que o tirou um dia, em que o pobre Lorrain se viu despojado do dinheiro e da roupa, num
hotel suspeito. Filho amoroso, co1no Marcel Proust, tinha pela mãe verdadeira adoração , e es
crevia-lhe também lindas cartas. Os últimos anos de vida - morreu relativamente moço em
1906 - passou-os na Cóte d'Azur, em busca de urn sol consolador que o libertasse dos mias
mas de Paris, la vil/e empoisonnée.
Deixou grande nümero de obras, das quais po<lerernos citar: Monsieur de Phocas, cerrarnente
a mais conhecida; Histoire de niasques, Propos d'mes sin1p!es, Le vice errant, Princesse d'Jvoire
C A P Í T U L O XX � 3 2 5
grande relevo, capacidade de tirar sempre conclusões gerais de um fato parti
cular, num� filosofia que, se não abusa do paradoxo, não se abalança em aven
turas arriscadas. Muito da vida do Rio de Janeiro também se reflete em suas
páginas, embora como já assinalamos lhe faltasse a vocação de repórter. Mas,
excetuando-se os méritos do poeta, o aspecto da personalidade de Bilac qne
dominou nessa época não foi a do cronista e sim a do orador. Os contempo
râneos são unânimes em reconhecer-lhe a superioridade neste terreno: o
encanto pessoal, o belo timbre de voz, a gesticulação sóbria, um conjunto de
atributos excepcionais com que sabia seduzir os auditórios.
Quando Júlia Lopes de Almeida entrou a escrever nos jornais, por volta de
1885, encontrou ainda forte barreira de preconceitos contra as mulheres es
critoras que tinham tido como pioneiras, no século pas s ado , Corina Coaracy.
O surto de literatura feminina que se verificou na França na última década do
' '
século XX havia de ter influído, no entanto, para o descrédito desse precon
' '
ceito no ambiente brasileiro. Por outro lado, com o desenvolvimento da lite
: :
) : ratura nos jornais, as colaborações pagas, as escritoras também se julgavam
com direito a retirar proventos econômicos do trabalho intelectual. No come
ço do século XX, Júlia Lopes de Almeida prossegue a sua colaboração em crô
nicas assíduas em mais de um jornal, e, fazendo pendant a essa extraordinária
atividade, surge outra cronisra do mesmo gênero: Cármen Dolores.
Chamava-se na vida civil Emília Moncorvo Bandeira de Melo e iniciara
et d'!vresse, Mon.rieur de Bougrelon, Quelques hommes, Fards et poisons. Jean Lorrain é um repre
sentante típico do decadentismo fin de siecf.e, que teve no A Rebours e no Là-Bas, de Huysmans,
sua expressão mais elevada, e recaiu na subliteratura com Félicien Champsaur, cujos romances
repletos de ilustrações foram também muito lidos no Brasil até 1 922. Reagindo contra o natu
ralismo, essa arte procura fugir da realidade sob todos os aspectos. Indica um estágio de cansaço
da civilização em que o homem toma horror à própria humanidade, passando a repelir tudo
quanto é natural, num anseio de reconstruir o mundo com dados inteiramente artificiais. O
personagem mais típico de Lorrain, o Mr. de Phocas, foi inspirado, certamente, pelo Des
Esseints de Huysmans. É um ser absurdo, fantástico, que anda em busca do raro, de emoções
inteiramente novas, de uma cor estranha por ele imaginada e que será a chave de todos os valo
res estéricos. Perversão, crueldade, degenerescência, monstruosidade - tais os caracteres fre
qüentes dos personagens de Jean Lorrain, uma comparsaria delirante que hoje já não impres
siona pessoa alguma, embora nela encontremos traços de uma autêntica inventiva artística, Se
no Brasil seu discípulo foi Paulo Barreto, em Ponugal, não podemos negar�lhe a influência em
cenas páginas de Fialho.
9. Antônio de Godói, G'rônicas de Egas Muniz, Rochsdtil<l & Cia., Sue., São Paulo, l 906.
l O. Francisco de Assis Barbosa, A vida de Lima Barreto, pág. 276, José Olympio, Rio, 1952.
li � C A P Í T U L O XXI
C A P Í T U L O X X I '-"""' 3 3 3
·o próprio autor, a tragédia que se passa na alma do povo quando ele sente que
se desdobrará �té ao infinito, pois na hora em que a nacionalidade brasileira to
ma conhecimento de si mesma, sente a dor de se ver condenada a desaparecer."
Interessante o crítico dividir a história do romance brasileiro em duas fases: an
tes e depois de Canaã. Teria feito essa classificação com perfeito conhecimento
de causa ou por informações de outrem? Neste caso, não se lembraram de di
zer-lhe qual o lugar de Machado de Assis em nossa novelística?
As conclusões de Graça Aranha eram, como se sabe, falsas, e o romance,
podendo dar ao estrangeiro uma idéia lisonjeira da capacidade criadora de
nossa literatura, apresentava o problema social brasileiro sob o aspecto de um
derrotismo etnográfico que não correspondia à realidade.
Isso veio a suscitar uma denúncia de Gilberto Amado, em artigo r1 O Pais
(1 1-12-1910). Aludindo ao fato do barão do Rio Branco, ante um protesto do
embaixador italiano, ter intimado Aluísio Azevedo a retratar-se de declarações
feitas à imprensa do Rio, considerava que por essa pauta rigorosa cabia à nos
sa diplomacia castigar Graça Aranha, porque Canafí era o mais vigoroso libelo
contra o Brasil e a mais definitiva condenação que já se escrevera sobre o cará
ter de um povo. Traduzido e divulgado na Europa, concorria para anular entre
os sábios, os literatos e o público rodos os esforços da, em boa hora, suspensa
comissão de propaganda. Graça Aranha dizia talvez verdades - concordava
Gilberto Amado -, mas são as que mais nos humilham e corroboram a idéia
que o europeu tem de nossa incapacidade org&nica para fundar uma civilização.
Acentua o fato de Ferrero no artigo que escreveu sobre o livro, "numa lu
cidez crítica de espantar", ter declarado que este representava o pensamento
de Rio Branco. Canafí diria assim no centro do mundo, em Paris, no francês
puro de Mr. Prozor, as verdades cruas que provavam os nossos defeitos sob
ili
o prestígio de um alto nome diplomático.
Não obstante, pouco depois o romance de Graça Aranha aparecia nos
Estados Unidos, em tradução inglesa, com prefácio de Ferrero e recomenda
j'
.
' .
' ' do por uma frase consagradora de Anatole France: The great american novel
;.·' i
Não é de estranhar que o livro provocasse tantos louvores. Graça Aranha
·
3. Em artigo n'O País (23-1 1 -1910) Carlos de Laet criticou severamente a obra, aludindo ao
grande espaço que o autor nela concedera a Oliveira Lima, vinte páginas, enquanto a Alencar
só dera sete.
CAPÍTULO XXI � 3 3 5
.. Essa apresentação de conjunto constituía qualquer coisa de inédito. Os tre
chos antológicos eram precedidos de pequenas notícias sobre os autores, e as
poesias traduzidas em prosa. Mais tarde, em 1921, Victor Orban lançaria uma
antologia unicamente poética, sob o título La poésie brésilienne.
Em 1918, o diplomata e escritor brasileiro Benedito Costa publicou em
francês um panorama crítico-histórico de nosso romance: Le roman au Brésil. E
explicava que, sendo um hábito entre intelectuais brasileiros que vão à Europa
escrever sobre o Velho Mundo no Brasil, preferira falar do Brasil na Europa, com
o fim de concorrer para destruir a idéia absurda e inconcebível que guardavam
os europeus acerca de nosso país.
Oliveira Lima, quando servia em Bruxelas, fez na Universidade de Louvain
uma série de conferências sobre a língua portuguesa e a poesia brasileira.
Depois, no Théâtre de La Monnaie, a convite da Sociedade de Geografia de
Bruxelas, na presença do rei, falou em francês sobre o Brasil e a sua história.
Iniciou na mesma época na Revue de Paris, sobre os mais ilustres escritores
e oradores brasileiros, artigos que Jean Finot ficou de editar em volume, o que
parece não se realizou.4
Medeiros e Albuquerque também pronunciou na Sorbonne, em 14 de ju
nho de 1912, uma conferência em francês sobre a formação da nacionalidade
brasileira, conferência essa de que se ocupou Gastou Deschamps, com elogios,
na primeira página de Le Temps e que foi publicada em La Revue, então dirigi
da por Jean Finot, membro correspondente da Academia Brasileira de Letras,
eleito em setembro de 1910.5
Esporadicamente, algum francês ou brasileiro escrevia sobre a nossa litera
tura em jornais parisienses. Lembraremos o artigo de Xavier Marques "Le
Brésil littéraire", publicado em La Vie Littéraire e reproduzido em vários jor
nais da Itália; o artigo de Ferrero, "Une académie américainen, em Le Fígaro
(21-4-1908); o conde Prozor, na Revue Hebdomadaire (20-6-912), discorren
do sobte joaquim Nabuco et la culture brésilienne; os louvores de Émile Faguet,
anteriormente às Pensées détachées de Joaquim Nabuco em Les Annales (29-9-
1907). Faguet, como se sabe, julgou tratar-se de um pseudônimo e imaginou
' 1
'! 4 . Correio da Manhã, 19-9- 1 9 1 0.
5. Medeiros e Albuquerque e Oliveira Lima", artigo no jornal do Brasil (21-1-1924).
"
C A P Í T U L O X X I """°' 3 3 7
Em 1902, as Memórias póstumas de Brás Cubas, numa versão de Júlio
Piquet, eram editadas em Montevidéu pela lmprenta de La Razón. Na corres
pondência de Machado de Assis encontramos uma carta a Luís Guimarães
Filho em que o romancista, acusando o recebimento do exemplar da tradu
ção, agradece-lhe muito a diligência e a lembrança. Teria o poeta, como diplo
mata, concorrido para esse empreendimento? Os termos da carta nos levam a
supor que sim. ''A tradução só agora a pude ler completamente" - escreve-lhe
Machado - "e digo-lhe que a achei tão fiel como elegante, merecendo Júlio
Piquer ainda mais por isso os meus agradecimentos."
No ano seguinte, o romance de Joaquim Felício dos Santos, Acaiaca, apa
recia no Chile ainda em tradução de Clemente Barahona Vega (membro cor
respondente do Grêmio Literário Santa Rita Durão, de Belo Horizonte) , numa
edição congratulatória da visita do cruzador Almirante Barroso, em maio de
1903. Não deixa de ser curioso que dois livros como Rosais e Acaiaca, hoje
completamente esquecidos, figurem entre os vanguardeiros de nossas obras
traduzidas na América espanhola. Também em homenagem aos oficiais do
Almirante Barroso fez-se em Valparaíso uma edição de Los cantos de! sabid, an
tologia de artigos e poesias de escritores brasileiros traduzidos por Clemente
Barahona e Leonardo Eliz.
Poucos anos depois, por volta de 1905, Aluísio Azevedo conseguira ter
seu romance O mulato editado em castelhano em Buenos Aires, traduzido
pelo seu amigo Costa Alvarez, e lançado anteriormente em folhetim em
La Nación. Pela correspondência do romancista, publicada em O touro negro,
tomamos conhecimento do incidente provocado por uma carta de Aluísio,
da Inglaterra, onde se encontrava, com o tradutor de O mulato. Essa carta
suscitaria um artigo de Homero Batista, no Correio do Povo de Porto Alegre,
acusando o romancista de haver desprestigiado o Brasil, deprimindo-lhe o
idioma e o meio literário. Aluísio responde numa outra missiva, muito lonw
ga, dirigida a Batista Xavier, diretor do Petit Journal ("Bato às portas do seu
jornal"), na qual repele como absurdas e falsas as acusações do sr. Homero,
que confessa nunca ter visto mais gordo. Reafirma, no entanto, aquilo que
realmente afirmara: a infelicidade do escritor brasileiro é escrever em portu
guês) "língua mais rica, mais harmoniosa, mais literária e enfim mais com··
plera" do que qualquer outra, circunstância que não a impede de ser "pouco
CAPÍTULO XXI � 3 3 9
O autor exercera durante muitos anos, no século XIX, as funções de minis
tro plenipote!'ciário da nação vizinha no Rio de Janeiro. Já possuía vasta ba
gagem de 1 1 volumes nos mais diversos gêneros quando aqui se instalara. Não
tardou que se relacionasse com alguns escritores, como Araripe Júnior e Taunay,
e se interessasse pela nossa literatura, passando a estudá-la. Segundo nos infor
ma Veríssimo, no momento em que escrevia El Brasil intelectual Merou não co
nhecia na Argentina outros trabalhos sobre as letras brasileiras senão uma análi
se da Confederação dos Tamoios de Magalhães, por João María Gutiérrez, alguns
juízos literários de Ernesto Quesada (que aqui também foi ministro da Argen
tina no século XIX), "a soberba descrição de um trecho da natureza fluminense
que enquadra uma das belas cenas do Fruto proibido", de Groussac, e "as pági
nas ligeiras que nos dedicou Sarmiento nas suas Viagens". Com esse livro ofere
ceu pela primeira vez ao leitor argentino uma visão panorâmica de nossas letras
já com certo sentido orgii.nico. É verdade que não fez propriamente uma histó
ria da literatura brasileira. Como assinala Verísssimo, interessou-se mais pelo
nosso pensamento social, dando maior atenção aos ensaístas, aos críticos políti
cos do que aos romancistas e aos poetas. Daí o grande lugar que ocupa no livro
o estudo das idéias, do roteiro intelectual de um Sílvio Romero e de um Tobias
Barreto. Mas a obra encerra uma vasta soma de informação crítica sobre nossas
letras até os fins do século XIX, e Garcia Merou prestou à literatura brasileira na
América espanhola um serviço idêntico ao que Ferdinand Wolf e Ferdinand
Denis prestaram na Europa, estes, naturalmente, contemplados com polpudas
recompensas de dom Pedro II.
Quanto à penetração de nossa literatura em Portugal, é preciso que se
diga que, nas duas primeiras décadas do século XX, embora muitos dos me
lhores escritores lusos continuassem a colaborar nos jornais brasileiros, e a ter
aqui o melhor mercado para os seus livros, pouco se interessavam pelo que
produzíamos. "Só Junqueiro apanhava e apanha o Brasil" - julgava João do
Rio, testemunha insuspeita no caso -, "não porque o tenha estudado em de
talhe, mas porque é gênio e gênio possuidor de um espírito de síntese extraor
dinário."1º Se muitos dos escritores brasileiros eram editados em Portugal,
; j
( 1 seus livros, na maioria dos casos, só aqui praticamente circulavam. João do
:!
10. João do Rio, Portt;gaí d'agora, Livraria Garnier, Rio, 1 9 1 1 .
1 1 . Idem, ibidem.
CAPÍTULO XXI � 3 4 1
' '![����
, 'ru!:l:-�..e...:1.e..a..t"""w....
· ··--------:--
li <Z, C A P i T u L o XXI I
1 "Não só nós latinos" - escrevia João do Rio, no referido artigo -, "nós fi
1
lhos do Medirerrãneo, a pia batismal da civilização perfeita, que sentimos o hor
ror do grande mal. Todas as raças, todos os povos hão de sofrer-lhe as conseqüên
cias. Os escombros do esforço universal clamarão contra o frenesi do Imperador
Louco que incendeia a terra e a encharca do sangue de milhões de homens."
A essas expressões passionais de João do Rio sucederiam n' O Imparcial os
artigos mais refletidos, nem por isso menos enérgicos, de José Veríssimo, que
desde logo saía a campo, também em defesa da França. Em 24 de agosto, nu
ma página sob o título "Nós americanos e a guerrà', explicava o crítico:
"O universal movimento de simpatia pela França é menos amor desta que re
provação da Alemanha, do regime político-militar que ela se deu e da arro
gância que lhe insuflou uma quem sabe se não exagerada confiança na sua
força." Pacifista, Veríssimo alimentava, como muita gente na época, a espe
rança de que essa primeira grande guerra fosse a "últimà'. E argumentava da
seguinte forma: "A presente guerra, longe de ser um desmentido aos pacifis
tas, é uma comprovação de suas doutrinas e um acoroçoamento à sua fé e à
sua propaganda. Desta vez a lição será por tal forma tremenda que o mundo
inteiro a ouvirá. Ouçamo-la desde já nós americanos." Louvando-se em Júlio
Rocca, ei-lo a tirar da tragédia as premissas de uma política pan-americana a
ser adotada na situação. "Consoante o conselho do provérbio, aprendamos
na desgraça alheia. Um ilustre estadista e glorioso general argentino, dom
Júlio Rocca, segundo telegrama aqui publicado, com autoridade que está
bem longe de ter o humilde subscritor destas linhas, já aconselhou tirásse
mos desta memorável lição os ensinamentos que ela comporta. Estes são cla
li ros: que acabemos de uma vez por todas com as nossas macaqueações da po
I ,'
lítica européia, pretensões de hegemonia, disputas de preeminência, ciúmes
internacionais, obsoletas ojerizas de raças, rivalidades nacionais, tudo sem
razão de ser aqui, tudo produto de imitação do que se passa na Europa, e es
forcemo-nos do mesmo passo, com sinceridade e um alro sentimento de
amor de nossas pátrias e benquerença ao nosso continente, por acabar com
quaisquer motivos de suspeita e divisão recíproca, ou arredar resolutamente
os que possam surgir."
CAPÍTULO XXI1 � 3 4 5
·· abusem da sua vitória, como já está fazendo, com revoltante brutalidade, um
dos beligeran5es." Sobre a maneira eficiente de levantar esse quos ego não nos
informava, porém, o crítico. E a 30 de novembro é que o vemos distrair-se
um pouco da guerra para retornar à crítica literária, publicando um longo
artigo n' O Imparcial sobre o romance Maria Bonita, de Afrânio Peixoto.
Dentro de seu setor continuaria, no entanto, a agir sem cessar, escrevendo
artigos sobre artigos, muitos dos quais transcritos em Le Temps e na Revue
Univmitaire, a fuzer conferências, a promover festas em benefício das vítimas,
vindo a assumir a presidência da Liga pelos Aliados, que nessa ocasião se fun
dou. Na liga seriam os principais colaboradores Nestor Vítor e Graça Aranha,
este já esquecido do germanismo "tobiático" que impregnara as páginas de
Canaã e transformado em apologista barrésiano da França Eterna. Só não te
ria o criador de Milkau e Lentz a secundar-lhe a ação na imprensa, uma vez
que Graça Aranha era de temperamento agrálico.
O último artigo de Veríssimo, publicado em 27 de janeiro de 1916,
n' O Imparcial, ainda seria uma furiosa catilinária contra a Alemanha. Intitula
se "No aniversário do kaiser", e nela o crítico atribuía ainda a Guilherme II
toda a responsabilidade da guerra, dizendo: "O principal agente, com larga
premeditação e longo e acurado preparo desse crime é, porém, sem dúvida
possível, o ilustre aniversariante de hoje." Para terminar em tom irônico:
"Faço votos sinceros pela sua preciosa existência, para que assista ao fim da
catástrofe que perversamente promoveu."
Quem não viria a assistir ao fim da catástrofe seria infelizmente o críticot
falecendo daí a seis dias, a 2 de fevereiro, com grande pesar de todo o país.
Mas no mesmo O Imparcial onde Veríssimo desenvolvia intensa campanha
a favor da França, assinalamos logo no início da guerra (13 de outubro de
19 14) um artigo de João Ribeiro que encarava um dos episódios cruéis da
luta, a violação da neutralidade da Bélgica, por um prisma completamente
diverso daquele pelo qual vinha sendo considerado no momento. Embora se
possa atribuir a João Ribeiro certa simpatia pela Alemanha, onde estivera du
rante muito tempo, cuja língua e literatura versava como poucos no Brasil, de
ve-se reconhecer o acerto com que raciocinava. ''A neutralidade dos fracos e dos
pequenos)) - escrevia ele - "era um princípio entretido , assegurado e susten�
rado pelos grandes povos. Mas se os grandes povos, os três maiores da Europa,
1. Em carta a Mário de Alencar (9-9-1 9 1 5) escrevia Capistrano, cujo espírito realista devia re
pelir o que há geralmente de convencional e inumano na literatura de guerra: "Digo eu: arti
gos defendendo ou atacando os beligerantes são exercícios de estilo, árias de bravura, logo
maquias; a realidade são os milhões de turcos, sérvios, russos, alemães, franceses, ingleses, belgas
que diariamente tombam aos milheiros certos da justiça de sua causa." (Correpondência de
Capistrano de Abreu.) Múcio Teixeira andou pelo Sul em contato com a colônia alemã, es
crevendo uma "Ode ao kaiser", que se tornou famosa.
2. Ver crônica de Brito Broca sobre a biblioteca de Antônio Torres, n A Gazeta de São Paulo
'
(agosto de 1942).
CAPÍTULO XXII � 3 4 7
Entre os aliadófilos mais rubros, além dos já citados, se achavam Bilac,
Coelho Neto �' principalmente, Medeiros e Albuquerque, que muito lutou
pela entrada do Brasil na guerra. No livro Minha vida contaria ele, mais tar
de detalhadamente, num delicioso tom anedótico, as circunstâncias em que
partira para Paris, e envergando a farda de coronel da Guarda Nacional, nos
dias cheios que lá viveu, enquanto o canhão troava nas linhas de frente.
Não encontramos na literatura brasileira da época sinais acentuados
de uma transformação de mentalidade. Passado o susto do avanço fulminan
te dos alemães sobre Paris, derivada a contra-ofunsiva dos aliados na chama
da guerre des toupies, não nos vimos - como se daria em 1940 - na dura
contingência de nos afastarmos da França e buscarmos outras zonas de in
fluência literária.
Basta percorrer as páginas da Revista da Semana, da Fon-Fon, ou do Pall
Mall-Rio, de José Antônio José, para comprovar que, pelo menos até 1916,
a guerra não cavara vincos profundos em nossos rostos. Uma onda de futili
dade, de prazeres, de inebriamento continuava a envolver o ambiente carioca,
permitindo a livre expansão de uma literatura que refletia em todo rigor da
palavra o ''sorriso da sociedade". Trecho bem expressivo é o de certa crônica
do Pall-Mall-Rio, em que Paulo Barreto, ao retornar de uma das tantas festas
por ele descritas com muita ênfase, recebe de repente, na claridade ofuscante da
avenida, a notícia do torpedeamento do "Lord Kitchner", o aço disciplinador
do Egito. E súbita mágoa o alanceia a trazer-lhe a consciência de uma realidade
de que não teria ainda tomado exato conhecimento.
Como malgré tout, Paris continuava e as temporadas francesas não se ha
viam interrompido no Municipal (Brulé, Huguennet, Guitry constituíram as
principais atrações da nossa aristocrática platéia, durante a guerra) ; acontecia
vir uma atriz encantadora, a exemplo de Juanita de Gresia, ler aqui algumas
conferências de escritores franceses, em favor dos aliados. E a luta cruenta lá
na Europa oferecia, sob determinados aspectos, um pretexto ao mundanismo
intenso que o Rio então vivia.
As conferências pagas, ainda em voga, foram mesmo tidas pelos escrito
res aliadófilos como excelente meio de propaganda. Dizemos apenas aliadó
! filos, porque quase não encontramos notícias de conferências favoráveis aos
l
Impérios Centrais.
À guisa de conclusão
l Eduardo Frieiro, "A vida literária no Brasil", artigo in Kriterion, janeiro a junho de 1 9 57.
A P ft N D I C E ] bA 35l
No início desta obra, falamos também do "1900" como um período de eu
foria. Não precisaremos repetir ainda uma Vf:l o rótulo tão citado na França:
la bel/e époq��. No artigo a que há pouco nos referimos, Eduardo Frieira, com
o seu visceral ceticismo, alude também a este ponto dizendo: "Na realidade,
nem lá (na França} nem cá houve bel/e époque nem douceur de vivre. Simples
etiquetas sem maior expressão. A vida é como é, para cada um." Poder-se-á le
var isso à conta do gosto excessivo de desencantador de mitos que caracteriza
o escritor mineiro. Mas no livro de memórias do conhecido jornalista francês
Edouard Hersey, Envoyé spécial,2 leio esta declaração peremptória: "Ignoro
quem imaginou pela primeira Vf:l batizar de bel/e époque o período de alguns
anos que circundam o milésimo de 1900. Suponho tenha entrado nas suas in
tenções uma parte de ironia. É pouco provável que tal criatura chegasse a me-
dir a crueldade da expressão. A gente de hoje não conseguirá fazer idéia dos
abismos de miséria que se escondiam na Paris brilhante daquele tempo."
Talvf:l Frieira esteja com a razão. A euforia do nosso "1900" podia esconder
também muitos abismos. Assim, ficamos a hesitar; qual seria o livro típico dessa
época no Brasil: o Porque me ufano de meu país, de Afonso Celso, cujo otimismo
tem sido tão satirizado, o Canaã, de Graça Aranha, com o seu pessimismo étni-
! ,'< '
co, ou � libelo de Os sertões, de Euclides da Cunha?3 Precisamos nos acautelar
contra o perigo das generalizações. Uma geração reliz essa que se ff:l sob o signo
do "bota-abaixo", da "parisinà' bilaquiana, dos saraus de Santa Teresa e da rua do
Row? ''A vida é como é, para cada um." Na verdade, nunca vimos escritor que
não reivindicasse para a sua geração o privilégio de ter sido mais ou menos infe
liz. Acrescentaremos ainda, para terminar, que se o nosso "1900" se prolongou
através de certos aspectos típicos, até o fim da Primeira Guerra Mundial e mes
mo até 1 930, como querem alguns, o certo é que de 1915 em diante começa
riam a manifestar-se sinais acentuados de transformação na paisagem da nossa vi
da literária. Daí, por exemplo, não havermos tratado neste volume da campanha
cívica de Bilac, que se filia ao movimento nacionalista, já de caráter nitidamente
pré-modernista. Não se pode estabelecer uma delimitação muito rigorosa para as
épocas históricas em qualquer plano, quer literário, quer social ou político.
Nota nQ 1
' "
O "bota-abazxo
O "1 900" só foi uma época de calma e prosperidade com relação ao primei
ro decênio da República. No desempenho do seu programa de reforma urba
na do Rio de Janeiro, o presidenre Rodrigues Alves, teve de vencer uma séria
e tenaz oposição. E dessa atmosfera hostil, que acabou deflagrando a revolta
contra a vacina obrigatória, nos dá um quadro expressivo o rornancisra José
Vieira, num dos capítulos do livro O bota-abaixo (Crônica de 1904), de que
reproduzimos aqui os seguintes trechos:
"Os serviços de remodelação e profilaxia da cidade progrediam. Para que
o prefeito Passos agisse livremente, concedera-lhe o Conselho Municipal a di
tadttrafinanceira. Munido assim do cofre da Prefeitura, procurava ele abafar o
clamor dos proprietários portugueses, aos quais as reformas materiais em an
damento irritavam. Um deles propôs à Associação Comercial que pedisse in
tervenção diplomática para sustar os trabalhos. A maioria da imprensa, ligada
por dependência a esse espírito rotineiro, protestou em nome da população,
que - assegurava - seria, nas classes pobres, prejudicada para sempre. As de
molições efetuavam-se, entretanto, testemunhava-se ... Porém, as construções?
As construções, se, porventura, se realizassem, seriam construções para ricos,
porque a pobreza - ninguém se enganasse- não teria com que pagar o alu
guel dos palácios imaginados... Como se fosse obrigada a pobreza a habitar os
palácios... No dia em que se assinou o contrato da construção do cais do por
to, um jornal publicou que, daí a trinta anos, a futura geração, contemplan
do o sulco aberto nas ruas principais, amaldiçoaria os destruidores de 1904...
E o 'bota-abaixo' prosseguia, atacado, para alongar-se, de mar a mar, da praia
'
do Boqueirão ao ponto das barcas de Petrópolis."
"A imprensa sensibiliza parte da população, aquela que não teria com que
pagar 'o aluguel dos palácios', quando o decreto da vacinação obrigatória,
combatido pela Igreja Positivista, p rovo co u a oposição ao governo dos 'simpá-
A P ft N D I C E I I b"'9 3 5 3
ticos' e 'ortodoxos' do Congresso. Deputados populares - Barbosa Lima,
Alfredo Varela - agitavam as sessões da Câmara. Lauro Sodré, considerado
um santo da República, pelejava no Senado. O proletariado arregimentou-se.
Improvisaram-se oradores populares. Do Largo de S. Francisco a Cascadura,
faziam-se meetings subversivos. Largada a faina, operários jantavam apressados,
corriam aos seus grêmios e embebiam-se de discursos truculentos. Homens
probos e ilustres, como Vicente de Sousa, excitavam a multidão dos trabalha
dores, prometendo-lhes armas e dinheiro. E, nas forças de terra, particular
mente entre os estudantes da Escola Militar, oficiais filiados ao positivismo,
ajudados pela espontaneidade com que o exército vinha intervindo na políti
ca interna desde a Guerra do Paraguai, aconselhavam a revolução."
"Oswaldo Cruz e Pereira Passos recebiam, diariamente, acusações ferocíssi
mas. Mas, como quem os nomeara para debelar a febre amarela e acabar com a
sordidez do bairro comercial fora o governo, as agressões dirigiam-se, pessoal
mente, ao presidente da República; a revolta organizava-se contra ele. Con
denava-se a vacinação obrigatória para manter a rebeldia dos operários, dos que
viriam a brigar. Condenavam-na, mas a guerra à vacina perdia o caráter primi
tivo para reduzir-se a simples pretexto de campanha partidária, contendo da in
dignação positivista, pregada sinceramente pelo apóstolo Teixeira Mendes, ape
nas fórmulas, palavras. E pelo que, na verdade, propugnavam, era a deposição
do presidente. Todas as manhãs, em coluna entrelinhada, descarregavam-se iras
no Congresso, que votara a vacina, as desapropriações, e no governo, que tudo
sancionara. 'Não se devia sustentar que a lei da vacina permanecesse ameaçado
ra pela sua própria contextura.' 'Não: o Congresso, que a votara, modificara-a
depois, e isso equivalia a renegá-la; porém o Executivo decretara, a seguir, me
didas profiláticas da varíola, e isso representava a subsistência da vacinação obri
gatória - esse crime do poder!' 'Tal governo criava o direito a seu talante. Logo,
,
era um governo fora da lei. 'Nem constituía mais governo; a administração do
conselheiro Rodrigues Alves fizera-se uma tirania ferrenha.' 'Sim, porque os do
minadores do país obrigavam-no a passar pelas amarguras que acarretam as jus
tas rebeliões dos povos contra os seus verdugos.' 'Aos habitantes do Rio de
Janeiro, cumpria-lhes rebelar-se.' 'Como não, se com o Código de Torturas o
governo se propunha martirizá-los, vilipendiá-los?' 'Em tais condições, nada
mais legal que opor barreiras à monstruosida<l�, <..1ue reagie ... E reagia-se."
APtNDICE I I � 3 5 5
É uma alucinação sem tréguas. A cidade sentia-se deveras asfixiada nas suas
vielas estreitas e, com o desespero de um sufocado, reage desvairada, investe sô
frega, irrompe colérica contra todas as velhas zonas de vedação. Desta admirá
vel azáfama, nasce um terrível inconveniente inevitável: a poeira. Tu, ainda que
te ponhas a despejar caixotes sobre caixotes de cal, não avalias, não imaginarás
nunca, a espessura, a riqueza, a impetuosidade da poeirada que por aqui reina.
É assustador. Não há banhos, não há escovas, não há sabão, não há água,
que a vençam o u a comovam, como não há olhos que lhe resistam, nem gar
gantas. Não estou em Sebastianópolis, estou em Pópolis. . .
De modo que, dado mesmo o caso da cidade estar pronta, de existir a no
va Rio de Janeiro, eu, igualmente, não poderia descrever-ta, porque, com to
do este poeirama, não a enxergaria nitidamente.
Mas não existe: prepara-se. E é tudo absolutamente provisório agora aqui.
A planta da cidade, que pensarias ingenuamente ter fixado nos primeiros pas
seios, é uma ficção do teu espírito ligeiro; onde ontem havia uma rua, há hoje
uma praça em ruínas; a esquina que dobraste à tarde, desapareceu na manhã
seguinte. Daquela casa misteriosa que tu rondaste, por ter para lá entrado aque
le vulro claro de chapéu de flores roxas, restam, quando voltas à conquista, três
carroçadas de entulho que vão para o mar.
Quem sabe? Talvez da tua bela desponte, como ela tentadora, da cor das
suas flores, uma azálea roxa ali no cais nascente.
Há dias, tendo comprado não sei quê numa loja qualquer, voltei lá para re
petir a mercadoria, e encontrei, em lugar do estabelecimento, uma parede es
buracada, e em vez do caixeiro, um polícia cortês, que me mandou afastar por
causa da caliça que caía, em bátega. É assim por todos os lados. A maioria das
casas de negócio anuncia, com grandes letras e prometedores descontos, que se
mudam ou liquidam para demolição do prédio ou por motivo de obras.
Entrei ontem numa livraria, que só tinha a vidraça guarnecida, e lá den
tro, da nudez horrorosa de um casarão velhíssimo, os carregadores retiravam
com pressa os últimos caixotes - caixões, diz-se cá. A estas horas, de tal livra
ria só restará lembrança. "
A P ft N D I C E ] ] � 3 5 7
Nota nQ 2 eleição de Afrânio Peixoto
Nas suas "Memórias'' ,4 Afrânio Peixoto declara que, ausente na Europa, Mário
de Alencar, sem consultá-lo, lançou-lhe a candidatura para a vaga de Euclides da
Cunha, articulando-a entre os amigos.
"Por mim" - diz Afrânio - '<fez ele imprimir cartões, com o meu nome,
e neles sua letrinha fina pediu votos, como mandava o regulamento, por m im.
A própria carta de candidatura ele a escreveu, só mais tarde substituída por
outra de meu punho. Sua cabala foi tão bem feita que os votos que lograram
meus contendores foram distraídos por ele e dispensáveis ao meu triunfo."
Acrescenta Afrânio que, tendo recebido no Egito a notícia de sua candidatu
ra à Academia, compreendera a necessidade de justificar a escolha e fazer uma
obra literária. "Não quis reproduzir a aventura de Graça Aranha" - declara
ele -, "que foi acadêmico apenas com o prefácio de um livro de Fausto
Cardoso. Também eu havia prefaciado um livro de Araripe Júnior, o roman
ce Miss Kate, mas não julgava isto bastante para a honra que me conferiram."
E aqui nos informa sobre a origem d'A esfinge: "Tinha eu, na Grécia, percor
rido o caminho que vai de Queronéia a Tebas e de Tebas, pelo Parnaso acima,
até Delfos. Vira no aclive a encruzilhada no flanco do Parnaso, no caminho
;· de Tebas, onde Édipo matara o pai. E o mito da esfinge grega que as esfinges
'·
!
egípcias e a Tebas Luxor me recordavam aí foram sugestão bastante para um
li livro em que eu podia transpor a realidade de todo dia, num símbolo para
mim melhor representa-rivo do que o do enigma proposto a É dipo pela esfin
I,· ge, no caminho de Tebas. A esfinge seria a mulher que decifrada ou não deci
frada, pelo desencanto ou pela incompletação do sonho, daria a todos os ho
mens a miséria. Pus�me, então, a imaginar o meu romance, que foi escrito em
três meses de paz em Eloan, perto do Cairo.''
APtND!CE l i b"9 3 5 9
-
Euclides da Cunha, na Academia Brasileira de Letras. E assim procedo, para
chamar a atenção preciosa do maior brasileiro sobre os seguintes trechos de
carta do sr. José Veríssimo:
'O Afrinio, como talvez já saiba, apresentou-se. A sua carta de apresenta
ção não foi aliás presente à sessão à qual o Rui não compareceu. Eu dei-o en
tretanto como apresentado.'
Não suponho que tenha chegado às suas mãos a carta de Afrinio, e que
por uma negligência sua - conforme a intriga do sr. José Veríssimo - não
tenha sido presente à sessão. Estou firmemente informado de que Afrinio
Peixoto nunca escreveu a carta de apresentação aludida.
Sabe o sr. que não é candidato, no entanto, quem não escreve, dentro do
prazo fixo e certo da inscrição, que, no caso, fui findo a 30 de outubro do ano
p.p., uma carta, manifestando dara e precisamente a sua vontade de ser acadê
mico. Ora, se Afrinio Peixoto não escreveu, como de fato, a carta aludida, não
foi candidato. Logo, tendo eu escrito, a tempo e a hora a minha carta de apre
sentação, única aliás que foi presente à sessão de 4 de novembro do ano p.p., sou
eu o único candidato. Não é isso propriamente o que eu quero tratar. Quero a
sua valiosíssima atenção, de caráter pujante e inquebrantável, heróico diante de
todas as heroicidades - não é lisonja porque não a sei tecer -, para o escân
dalo que cometeria a Academia se sufragasse, em maio próximo, o nome de
quem não foi candidato dentro dos termos do regimento da Academia. A sua
intervenção livrará a belíssima instituição de uma derrocada moral lastimável.
Creio na sua ação em benefício do renome da Academia. E subscrevo-me seu
conterrâneo e admirador desinteressado. -Almdquio Dinis."
Logo depois, a 28 de março de 1910, Almáquio Dinis escrevia a José
Veríssimo a seguinte carta que nos foi comunicada por Antônio Simões dos Reis:
Não pudemos apurar qual foi o incidente entre o escritor baiano e José
Veríssimo que deu motivo a essa carta. Mas o estranho é que a 21 de abril,
menos de um mês depois, encontramos outra carta de Almáquio Dinis em
termos completamente diversos da primeira. Ei-la aqui, ainda por gentileza de
Antônio Simões dos Reis:
A P � N D I C E I I '-""' 3 6 1
"Bahia, 21 de abril de 1 9 1 0.
A P ft N D I C E I I � 3 65
Origens literdrias do cinema brasileiro
ses, como reproduz numa tela branca a figura do orador, sua fisionomia, seus ges
tos, a expressão de sua fuce, dos seus olhos,. dos seus lábios. Talvez o jornal futuro
seja uma aplicação dessa descoberta... " E mais adiante: "Talvez o jornal futuro, pa
ra atender à pressa, à ansiedade, à exigência furiosa de informações completas,
instantâneas e multiplicadas, seja um jornal falado e ilustrado com projeções ani
matográficas dando a um só tempo a impressão auditiva e visual dos aconteci
mentos, dos desastres, das catástrofes, das festas, etc." Era, sem tirar nem pôr, a
televisão que Bilac prognosticava ante o invento dos flsicos franceses. Mas o cro
nofone parece que fracassou como fracassara alguns anos antes o teatrofone.
Em Artur Azevedo e sua época, Magalhães Júnior alude à curiosidade e ao in
teresse que o cinema despertou nesse teatrólogo. E acha espantoso que em 1906
o autor de O date, num artigo, tivesse encarado o cinema por prisma inteiramen
te novo: 1'Por meio de um cinemat6grafo" - escrevia Artur - «os nossos netos
poderão fuzer idéia de quem foi, por exemplo, Sara Bernhardt - principalmente
se o fonógrafo for aperfeiçoado de forma que os dois aparelhos se completem um
ao outro." Magalhães Júnior grifa as últimas palavras dizendo: "Frisamos esse tre
cho para deixar bem patente o acerto dessa anrevisão de jornalista que num golpe
de vista magistral alcançou rodo o futuro da cinematografia. Via não apenas o ci
nema tal como era no seu tempo, mas tal como se apresentaria no futuro, conju
,
gando imagem e som.� 1 Ora, como acabamos de verificar, não se pode acrescen
tar aos méritos de Artur Azevedo - que não foram poucos e foram muito
justamente realçados por Magalhães ] únior - a previsão do cinema falado. Isso
já era velho motivo de cogitações na época; e quando o teatrólogo alude ao aper
feiçoamento dos dois aparelhos, de modo a se completarem um ao outro, repor
ta-se, naturalmente, às experiências que vinham sendo feitas havia mais de três
anos nesse sentido. E é indiscutível que comentando os engenhos de Gaumont e
Decaux em 1 904, Bilac adiantou-se na profecia. Apenas pelo que o poeta imagi
nara, somos levados a pensar antes na televisão do que no movietone, o que será
1 . R. Magalhães Jün ior, Artur Azevedo e sua época, pág. 2 1 6, Edição Saraíva, S. Paulo, 1953.
Indice Onomdffico
,,,
li $� fNDICE ONOMÁSTICO
A . A., 277 232, 256, 272, 274, 285, 287, 293, 295,
Abranches, Dunshee de, 88 296, 297, 298, 299, 300, 315, 318, 319,
Agassiz, Elizabeth Cary, 194 Alencar, Mário de, 65, 81, 103, 104, 105,
Agassiz, Louis, 194 I09, IIO, 253
Alvim, Emílio, 88 203, 208, 215, 222, 223, 227, 251, 253,
Amado, Gilberto, 58, 144, 152, 159, 168, 255, 256, 257, 291, 333, 335, 346, 351,
197, 205, 229, 234 > 249, 293, 297, 315, 352, 358
322, 327, 334, 335, 351 Alantes, Alrino, 67, 237, 249
Amaral, Amadeu, 101, 178, 296, 307 Araripe Júnior, 104, 123, 165, 173, 219,
Amaral, Crispim do, 74 29J, 300, 305, 315, 319, 340, 358
Andrade, Oswald de, 67, 178, 3ro, 312 153, 158, 197, 2031 208, 213, 215, 217,
Andrade, Rodrigo M. F. de, 126 219, 230, 251, 254, 265, 281, 282, 283,
Andrade, Teófilo, 169 287, 290, 291, 292, 316, 323, 334, 335,
Azevedo, Aluísio, 39, 47, 49, 51, 52, 60, Barres, Maurice, 142, 158, 174, 187, 334
99, 215, 282, 331, 3)4, 338, 339 Barreto, Alfredo Coelho, 163
Azevedo, Artur, 78, 99, 104, 144, 210, Barreto, Dantas, l07, 112, 115, 116
282, 293, 294, 295, 296, 300, 367 Barreto, Edmundo Muniz, 137
Azevedo, Carlos, 191 Barreto, Fausto, 83, 88
Azevedo, Fernando de, 171 Barreto, Francisco, 191
Azevedo, Lindolfo, 89 Barreto, João Paulo Coelho, 163
Barreto, João Pereira, 88, 89, 90
Barreto, Lima, 38, 41, 43, 73, 89, 90, 94,
95, 107, 129, 170, 202, 208, 217, 232,
Bandeira, Euclides, 183 211, 212, 213, 255, 289, 293, 299, 300,
Bandeira Filho, 88 304, 315, 320, 321, 322, 323, 324, 325,
i N D I C E O N O M ÁSTICO � 3 7 3
Barroso, Gustavo, 63, 73, 199, 206 197, 198, 201, 205, 209, 212, 213, 214,
Bastos, Bolívar, 88 215, 220, 221, 228, 232, 241, 285, 287,
Bastos, Cassiáno Tavares, 88, 189, 307 292, 293, 296, 297, 298, 300, 301, 309,
Brulé, André, 61, 348 Campos Lima, 88, 183, 188, 189, 300
Brummell, Lorde, 186 Campos, monsenhor Olímpio de, 138
Brusot, Martin, 337 Campos, Virgílio da Silva, 137
Bruzzi, Nilo, 56 Câncio, Henrique, 46
Büchner, 166 Cândido, João, 243
Bueno, ]avier, 247 Capelaro, Vitória, 368
Bulhão, Mário, 89 Cardia, capitão, 37
Bulhóes, Leopoldo, 214 Cardoni, A. G., 88
Byron, 49, 161, 279 Cardoso, Fausto, 358
Cardoso, Maurício, 191
165, 173, 186, 246, 247, 287, 300 Cepelos, Batista, 88, 101, 187, 309
Carvalho, J. ]., rn1 Cerqueira, Eduardo, 190
Carvalho, Maria Amália Vaz de, 341 Cervantes, 51
Carvalho, Reis, 89 César, 239
Carvalho, Vicente de, 101, 108, 109, César, J. J ., 88
IIO, 351 César, Osório, 67
Carvalho, Xavier de, 293, 331 Chacon, Trajano, 308
Carvoliva, Agenor, 88 Champsaur, Félicien, 326
Casanova, Ricardo, 74 Chateaubriand, Assis, 265, 269, 337
Casimiro, grao-duque, 366 Chaves, Elói, 67
Castelares, 233 Chaves, Henrique, 59
Castelo Branco , Camilo, 265, 269, Chaves, Paula, 89
271, 303 Chiacchio, Carlos, roo
Castelo, Viana do, 190 Cícero, 157
Casterá, Susana, 58 Cícero, Manuel, 209, 210, 211, 213
Casriglione, Geswaldo, 312 Cinrra, Raul, 89
Castilho, José Feliciano de, 84 Claude, 322
Castilhos, Júlio de, lJ9 Claudel, 259
Correia, Le6ncio, 89, 189 141, 150, 151, 155, 201, 204, 215, 222,
Correia, Raimundo, 99, 104, 185, 364 259, 261, 262, 291, 296, 300, 305, 315,
ÍNDICE ONOMÁSTICO � 3 7 7
Cunha, Fausto, 30 Dinis, Almáquio, 164, 359, 360, 361
Cunha, Holanda, 88 Dinis Júnior, 325
Cunha, João Itibeiê da, 183, 186, 188 Diógenes, 179
Cunha, Lourdite, 175 Dobrnicks, condessa de Dobr2enski de,
Cunha, Quintino, 175 130
Cunha, Tristão da, 146, 183, 333 Dolores, Carmem, 197, 293, 327
Dom Alphonsus, v. Guimaraens,
Alphonsus de
Domingues, Virgílio, 89
Donnay, Maurice, 78, 142, 324
Daisson, Augusto, 278 Dória, Escragnolle, 291
Dantas, Paulo, 172 Dória, Rodrigues, 309
Dantas, San Tiago, 271 Doumer, Pauli 249
Dante, 65 Dreyfus, 225
Darío, Rubén, 215, 245, 247, 248, 249 Duarte, Manuel, 89
Daudet, Léon, 128, 176, 264, 310 Duarte, Urbano, 291
Decaux, 366, 367 Dumas, 211
Deiró, Eunápio, 304 Dumas, George, 151, 249
Delfino, J. C., 89 Dumas, J. B., 107
Delfina, Luís, 123, 280, 307 Dumont, Santos, 203, 244
Demóstenes, Aníbal, 202 Duncan, Isadora, 60
Denis, Ferdinand, 340 Duque, Gonzaga, 57, 78, 183, 188, 189,
Deroulede, 141 300, 302, 304, 307
ÍNDICE ONOMÁSTICO � 3 7 9
.Fonseca, Gregório da, 63, 198, 199 Freitas, Tibúrcio de, 89, i88
Fonseca, marechal Hermes da, 157, 240, Freud, 320
241, 245, 317 Freyre, Gilberto, 159
Fonseca, Manuel José da, 4 5 Frieira, Eduardo, 190, 351, 352
Fonseca, Pausílipo da, 89, i70, 189 Fróis, Leopoldo, 65, 368
Fontes, Alvaro, 88 Frontin, Paulo de, 137, 302
Fontes, Hermes, 88, 170, 302, 319, 349 Furtado, Alcebíades, 88
Fontes, Martins, 62, 63, 72, 76, 89, 171,
186, 220
Guanabara, Alfredo, 88
Guanabarino, Oscar, 89
Guaraná, Artur, i88
Í N D I C E O N OM Á S TI C O � 3 8 1
Haeckel, 269, 271 Jaceguai, almirante, 106, 108, 115,
Hafiz, 69 133, 231
1
Leal, Arlindo, 88 Lima, Heitor, 88, 106
�V.
L
'Lima, Herman, 30 Lopes, Renato, 65
Lima, Hermeto, 88 Lopes Neto, Simões, 297
Lima Júnior, Augusto de, 88, 91 Lopes, Thomás, 142, 149
Lima, Oliveira, 40, 90, llO, 128, 214, Loretti, Jarbas, 83
230, 251, 252, 256, 257, 258. 259, 270, Lorrain, Jean, 57, 69, 78, 149, 163,
291, 296, 305, 335, 343, 347, 351 323, 326
Lisboa, Coelho, 241, 339 Luz, Fábio, 82, 89, 170, 173, 281, 294
Lisboa, Rosalina Coelho, 63
Lirtré, 107
Liú-Tsé-Shum, 148
Lobão, Ramos, 74
Lobato, Monteiro, 41, 127, 153, 158, 159, Macaulay, 270
164, 167, 168, 176, 251, 262, 264, 296, Macedo, Joaquim Manuel de, 282, 286
309, 350 Machado, Alexandre Marcondes, 179,
Lobo, Anrônio, 99 312
Maia, Alcides, 63, 74, 88, 90, 121 Masow, Gustavo, 204
Maria Pia, princesa dona, 127 Melo Filho, Manuel Custódio de, 171
Mário Corvo, v. Mata, Edgar Melo, Miguel, 89, 177, 178, 307
Nabuco, Joaquim, 81, 82, 103, 107, 113, Nunes, Alberto, 88, 91
115, 116; 127, 158, 203, 215, 230, 238, Nunes, Isidro, 88
246, 247, 248, 251, 252, 253, 254, 255, Nunes, Otaviano, 89
256, 257, 258, 259, 261, 282, 291, 305,
ÍNDICE O NOMÁSTICO � 3 8 7
ürleans e Bragança, v. Luís de Orleans Paranaguá, Luls, 67
e Bragança e Pedro de Alcântara Paranapiacaba, barão de, 88
de Orleans e Bragança Paranhos, Juca, v.
Ornelas, Amaral, 88 Rio Branco, barão do
Orsay, d', 56 Parreiras, Antônio, 63
Ortigão, Ramalho, 175, 218, 292, 293 Passos, Guimarães, 55, 60, 72, 104, 287,
Oscar, general Artur, 137 292, 295, 300
Osório, Paulo, 296 Passos, Pereira, 35, 36, 37, 120, 144, 353,
Otávio, Rodrigo, 41, 42, 50, 51, 65, Sr, 354, 355
104, 206, 300 Patrocínio Filho, José do, 47, 88, 90, 9J,
Ottoni, Pio Benedito, 236 92, 94, 141, 147, 148, 149, 189, 294
Ouro Preto, Carlos de, 65 Patrocínio, José do, 37, 39, 43, 45, 46,
Ouro Preto, Vicente de Toledo, 132 47, 72, 89, 125, 147, 148, 149, 287, 322
Ouro Preto, visconde de, 130 Patureau, irmãs, 235
Paulo de Gardênia, v.
Cosra, Benedito
Peçanha, Nilo, 47
Pederneiras, Mário, 89, 186, 189, 302,
Pacheco, Constantino, 75 305, 323
Pacheco, Félix, 88, 90, 123, 183, I88, 287, Pederneiras, Raul, 74, 89, 176, 186, 298
290, 300, 318 Pedro de Alcântara de Orleans e
Pacheco, Fran, 99 Bragança, príncipe D., 130
Pacheco, lvíauro, 89 Pedro II, imperador, 61, 123, 127, 215,
Padilha, Viriato, 202 217, 340
Pagliuchi, Carlos, 67 Peixoto, Afrânio, 35, 50, 51, 52, 62, 82,
Pairo, Firmino, 191 100, 107, 109, IIO, 112, II6, 143, 158,
Pais, Alvaro, 88 184, 201, 205, 206, 207, 208, 214, 286,
Paiva, Ataulfo de, 60 317, 346, 358, 359, 360
Palambo, Vicente, 232 Peixoto, Floriano, 44, 126, 130
Palma, desembargador, 276 Peixoto, Tiago, 183
Palmieri, Antônio, 67 Pena, Afonso, 44, 84, ro3, rrr, 112, 131, 219
Pantoja, Gustavo de Aguillar, 88 Pennafort, Onestaldo de, 249
Papacena, Bianca, 249 Peregrino Júnior, 5
Paraná, Sebastião, 188 Peregrino, Manuel Cícero, 197
Í N D I C E O N O M Á S T I C O _,, 3 8 9
Rego, Costa, 59, 88, 91, 94, 148,
229, 295
Rego, Edmundo, 88
Quaresma, Pedro da Silva, 201, Rego, Morais, 89
202 Reinach, Salomon, 311
Queirós, Eça de, 48, 63, 144, 161, Reinhelt, Otaviano, 89
174, 175, 176, 177, 178, 184, 275, Reis, Álvaro, 306
303, 328, 366 Reis, Antônio Simões dos, 265,
Queirós, Venceslau de, 183, 187 360, 361
175, 176, 251, 262, 263, 264, 3!0 Ribeiro Filho, Domingos, 73, 88, 90,
Rangel, João, 73 170, 301, 302
Régnier, Henri de, 149, 174 Ribeiro, Júlio, 2or, 241, 271, 310
-
r
269, 270, 280, 281, 287, 301, 305, 315, Santos, Antônio Felício dos, 128
318, 341 Santos, Antônio Noronha, 88, 202,
Romeu, Adernar Barbosa, 88 232, 305
ÍNDICE ONOMÁSTICO � 3 9 3
Varela, Alfredo, 354 Viegas, Pinheiro, 89
Vargas, Ângela, 63 Vieira, padre Anrônio, 275
Vargas, Getúlio, 19�� Vieira, Celso, 88
Várzea, Virgílio, 89, 188, 304 Vieira, José, 89, 353
Vasconcelos, Antero de, 88, 90 Vigny, Alfred de, 279
Vasconcelos, Jaime Ferreira de, 88, Vilalva Júnior, 309
91, 92 Vilalva, Mário, 89
Vasconcelos, Max de, 171, 183 Vilar, Pethion de, 164, 183
Vaz, Franco, 88 Villiers de l'Isle Adam, 78
Vedia, Augustín, 305 Vivaqua, Atílio, 190
Vega, Clemente Barahona, 337, 338 Vitorino, Eduardo, 279
Veloso, Dario, 156, 183, 188, 189, 306 Vítor, Nestor, 83, 89, 149, 172, 173, 183,
Veloso Filho, Leão, 59, 295 188, 189, 315, 318
230, 233, 234, 236, 247, 253, 265, 266, Wagner, 191
267, 268, 269, 270, 273, 291, 294, Walfrido, 303
296, 300, 304, 306, 315, 316, 317, 318, Wells, 299, 366
320, 323, 328, 339, 340, 343, 344, Wendling, Jacob, 77
345, 346, 360, 361, 362 Werth, Léon, 312
Verlaine, Paul, 43, 76, 78, 141, 187, 189, Wilde, Oscar, 56, 147, 161, 162,
211, 302 163, 246
Como esta edição reproduz o texto da anterior, não f1gura1n neste índice onornástico os nornes
citados por Francisco de Assis Barbosa na sua excelente irnrodução. (N. da E.)
f N D I C E O N O M Á S T I C O _,, 3 9 5
Cronologia
de Brito Broca
li !S! C R O N O L O G I A D E B R I T_ O BROCA