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Foi nesse momento que percebi que já estava na hora de parar de ler
interpretações da obra de Dostoiévski e copiosas histórias da Rússia e
fazer, por obrigação, aquilo de que mais gosto: enfrentar os romances,
agora desde um ponto de vista abalizado. Alguns deles eu já relera e
treslera, mas curiosamente Crime e Castigo ficara relegado àquela
primeira leitura pueril, talvez por ser muito comentado pela crítica, o
que cria a ilusão de que você conhece bem o romance só de ouvir falar
tanto nele.
Portanto, a tão temida (ou venerada) frase “ele não se arrependia de seu
crime” está longe de ser a palavra final de Crime e Castigo. O Epílogo
continua e nos mostra a lenta progressão espiritual de Raskólnikov. Sua
transformação é precipitada pela figura de Sônia. Habituado a de-
sprezá-la e a receber com desdém o amor e os cuidados abnegados dela,
ele se surpreende com saudades quando por vários dias ela não o visita,
pois ficara doente. Quando os dois se reencontram, dá-se a cena de seu
verdadeiro encontro – Raskólnikov percebe que a ama e enfim consegue
receber o amor dela. Porém tenhamos em mente que Sônia, no âmbito
do romance, não é qualquer mulher – é o puro amor cristão. A partir
do momento em que se une a ela, Raskólnikov retorna a suas “origens”,
ao contato com o solo russo, com o Cristo russo. (Seria complicado
explicar aqui a parte da filosofia de Dostoiévski que diz respeito ao
povo e ao solo russo; contentemo-nos com a “infecção” de Raskólnikov
pelo amor cristão.) Tanto é assim que, no mesmo dia em que se entrega
espiritualmente a Sônia, sua relação com os colegas de prisão transfor-
ma-se:
Na noite do mesmo dia, quando o quartel já estava fechado,
Raskólnikov, deitado na tarimba, pensava nela [Sônia]. Nesse
dia até lhe pareceu que todos os galés, antes seus inimigos, já o
olhavam de modo diferente. Ele mesmo começou a conversar
com eles, e lhe respondiam de modo carinhoso. Agora ele se
lembrava disso com esforço, mas era assim que devia ser: acaso
tudo não devia mudar agora? (p. 559)
Por fim, o crime. O que pensa Raskólnikov sobre seu crime, agora que
foi transformado?