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SEXTA-FEIRA, 26 DE ABRIL DE 2013

Enfrentando o Epílogo de Crime e


Castigo
Postado por L.M.

Agora que meu mestrado entrou na fase ou vai ou racha, em que um


ano e meio de leituras tem de começar a transformar-se em texto, achei
que era também a hora certa para reler a obra literária de Dostoiévski.
É claro que estou continuamente consultando seus romances e contos,
mas uma leitura integral e minuciosa da literatura dostoievskiana como
sistema é algo que demanda um esforço paralelo à minha pesquisa em
si, que é mais sobre história cultural da Rússia.

Pois bem, tenho empreendido essa integral e minuciosa leitura.  Con-


fesso que às vezes, por mera curiosidade dir-se-ia psicológica, gostaria
de voltar ao ponto em que me era possível defrontar ingenuamente um
romance de Dostoiévski. Por exemplo, voltar à percepção que tinha
quando li pela primeira vez Crime e Castigo e fiquei confusa quando,
no fim do livro, Raskólnikov não se arrepende explicitamente de seu crime.
Lembro de almoçar com a Day Teixeira no bandejão da USP e discutir
– quase brigar – por causa disso. Era estranho, não fazia muito sentido,
mas estava escrito lá: entre um êxtase religioso e outro, o protagonista
do livro declarava não se arrepender de seu crime.

Para completar, recentemente tive o privilégio mórbido de assistir a


uma palestra do tradutor Paulo Bezerra em que ele, peito estufado de
orgulho, declarava: Raskólnikov não se arrepende! O crime foi um ex-
perimento social. Dostoiévski foi, até o fim da vida, um homem de
cosmovisão socialista, se bem que perto da morte tenha deixado seu
socialismo tingir-se de um certo matiz cristão.
Ao ouvir tal fala especializada, pude distinguir nitidamente onde e
como o tradutor distorcia as ideias e a biografia de Dostoiévski, mas ao
mesmo tempo havia em minha memória a impressão daquela primeira
e já longínqua leitura de Crime e Castigo: de fato, parece que Raskól-
nikov não se arrepende...

Foi nesse momento que percebi que já estava na hora de parar de ler
interpretações da obra de Dostoiévski e copiosas histórias da Rússia e
fazer, por obrigação, aquilo de que mais gosto: enfrentar os romances,
agora desde um ponto de vista abalizado. Alguns deles eu já relera e
treslera, mas curiosamente Crime e Castigo ficara relegado àquela
primeira leitura pueril, talvez por ser muito comentado pela crítica, o
que cria a ilusão de que você conhece bem o romance só de ouvir falar
tanto nele.

Durante a releitura, fui pensando numa possível justificativa para a


frase que encontraria forçosamente no Epílogo – ele não se arrependia
de seu crime. Pus-me a pensar sobre o pessimismo (ou “realismo superi-
or”) de Dostoiévski, em como ele mostra as consequências funestas de
certas ideias, elevando-as a sua máxima força e sugerindo, em geral sutil
e prolixamente, que o leitor dê a seu destino um rumo diverso daquele
representado em seus romances. O príncipe Míchkin é esmagado pelo
mundo em O Idiota, Piotr Vierkhoviênski escapa no fim de Os
Demônios... Ora, não seria tão absurdo assim Raskólnikov terminar
Crime e Castigo ainda infectado pelo “drama da razão”. O que importa
– pensava eu – é o leitor compreender que ele deveria arrepender-se, e
nesse sentido a figura de Sônia se impõe majestosamente ao longo de
todo o romance.
Seguindo essa linha de raciocínio, cheguei ao Epílogo do livro. E qual
não foi minha surpresa ao descobrir que Dostoiévski não é nem tão
críptico, nem tão enviesado quanto sonha nossa vã leitura ingênua! Eis
o que nos diz, leitor, o Epílogo de Crime e Castigo (considerarei que
meu interlocutor conhece o enredo e as personagens, pois explicá-lo
complicaria o meio de campo aqui):

Após muito agastar-se e adoecer, às voltas com a consciência de seu


crime, Raskólnikov entrega-se à polícia, é condenado e mandado aos
trabalhos forçados na Sibéria. Sônia (a personagem positiva do livro; o
puro espírito cristão) o acompanha. Podemos dividir o Epílogo em dois
momentos diversos e antagônicos: o primeiro é mera continuação da
porção precedente do livro e nele Raskólnikov mantém a mesma ati-
tude soberba e altiva de antes; não reconhece seu crime; despreza Sônia;
não consegue relacionar-se com os colegas de prisão (em outras
palavras, com o povo russo). Esses são os elementos para os quais deve-
mos olhar se quisermos entender a visão de Dostoiévski sobre seus per-
sonagens. Quando ele quiser nos comunicar a transformação espiritual
de seu protagonista, usará essas mesmas senhas. Todos esses elementos
(a relação com o que Sônia representa e com o povo russo) são passíveis
de análise a partir do Epílogo, mas por questão de foco nos deten-
hamos apenas no problema do crime.

No primeiro momento, nos diz o narrador:

Sofrimentos e lágrimas – ora, isso também é vida. Mas ele não


se arrependia de seu crime. Ele poderia ao menos enfurecer-se
com sua tolice, como antes se enfurecera com os seus atos vis e
mais tolos, que o levaram à prisão. Mas agora, já na prisão, em
liberdade, mais uma vez analisou e ponderou todos os seus atos
pregressos e de maneira alguma os achou tão tolos e vis como
lhe pareciam antes, naquele período fatal.
“E por que meu ato lhes parece tão vil? – dizia de si para si. – Por
ter sido uma perversidade? O que quer dizer a palavra ‘perversi-
dade’? Minha consciência está tranquila. É claro que foi cometi-
do um crime comum; é claro que foi violada a letra da lei e der-
ramado sangue, mas tome a minha cabeça por letra da lei... e
basta! Claro, neste caso até muitos benfeitores da humanidade,
que não herdaram mas tomaram o poder, deveriam ser executa-
dos ao darem os seus primeiros passos. No entanto, aqueles
homens aguentaram os seus passos e por isso estavam certos, mas
eu não aguentei e, portanto, não tinha o direito de me permitir
esse passo.”
Eis em que ele não reconhecia o seu crime: apenas no fato de não
o ter aguentado e ter confessado a culpa. (p. 554, ed. 34, 2008.
Grifos do autor.)

Aparentemente, o tradutor Paulo Bezerra só leu Crime e Castigo até


aqui. É muito curioso pensar no peso que têm essas palavras sobre a
percepção do leitor. Já disse que eu também me deixei enredar por elas
anos atrás. São palavras claras demais e talvez ganhem realce diante da
sutileza do que vem depois. É um efeito análogo ao que acontece em
Os Irmãos Karamázov: os capítulos que se ocupam da revolta metafísica
de Ivan Karamázov eclipsam os que vêm depois, os quais, segundo de-
sejava Dostoiévski, deveriam ser “uma refutação triunfal” dos
raciocínios de Ivan. Digo eclipsam aos olhos da crítica: basta comparar
a quantidade de análises sobre “O Grande Inquisidor” com o quão
pouco se escreveu sobre o Livro VI dos Karamázov, que contém a
filosofia do stárietz Zossima, a qual coincide com a do próprio Dos-
toiévski. De fato, não é injusto dizer que o gênio do romancista produz
seus mais instigantes frutos quando representa sua – por assim dizer –
filosofia negativa; a expressão de suas ideias positivas costuma resultar
utópica e um tanto piegas (notem que me refiro à expressão).

Mas voltemos a Crime e Castigo. Imediatamente após o trecho citado


acima, o narrador descreve a reflexão de Raskólnikov sobre o ímpeto
suicida que teve antes de entregar-se à polícia, enquanto sofria esmaga-
do entre o sentimento de culpa e a convicção da plausibilidade de seu
crime:

Ele sofria também ao pensar: por que não se matara naquele


momento? Por que ficou parado acima do rio e preferiu confes-
sar a culpa? Será que existe tamanha força nesse desejo de viver e
é tão difícil superá-lo? (Idem.)

E então se segue o turning point, o parágrafo no qual o narrador nos


indica que o presente estado mental e espiritual de Raskólnikov não é
definitivo, não representa o estado do herói com que o romancista con-
clui a narrativa:

Ele se fazia essa pergunta atormentado, e não conseguia enten-


der que, naquele momento em que estava sobre o rio, talvez
pressentisse uma profunda mentira no seu íntimo e em suas con-
vicções. Não compreendia que aquele pressentimento pudesse ser
o prenúncio da futura transformação em sua vida, de sua futura
ressurreição, da sua futura concepção nova de vida. (Idem. Grifo
meu.)

Assim em destaque esse parágrafo é claro demais, mas é impressionante


como certas leituras (como a de Paulo Bezerra e tantos outros; pro-
curem o livro Crime and Punishment and the Critics) conseguem fazê-lo
passar despercebido. O que esse parágrafo diz? Que Raskólnikov não se
matou porque, no fundo, reconhecia o valor da vida e, mais ainda, no
contexto geral do livro, indica que ele sabia que a condição de assassino
o aferrava à existência, pois era preciso expiar o sangue derramado. Tra-
ta-se do mesmo instinto que o faz entrar na delegacia e confessar o
crime, mesmo que ao longo de todo o caminho ele se perguntasse por
que deveria confessar e não conseguisse chegar, racionalmente, a uma
conclusão. Aqui é preciso repetir aquilo que vem dito na orelha de
qualquer edição de Crime e Castigo: Raskólnikov é um nome derivado
de raskól, palavra russa que significa “cisma”; é o indivíduo cindido en-
tre convicções intelectuais e instinto moral – desenvolvimento de
Bazárov, protagonista de Pais e Filhos, de Turguêniev.

Portanto, a tão temida (ou venerada) frase “ele não se arrependia de seu
crime” está longe de ser a palavra final de Crime e Castigo. O Epílogo
continua e nos mostra a lenta progressão espiritual de Raskólnikov. Sua
transformação é precipitada pela figura de Sônia. Habituado a de-
sprezá-la e a receber com desdém o amor e os cuidados abnegados dela,
ele se surpreende com saudades quando por vários dias ela não o visita,
pois ficara doente. Quando os dois se reencontram, dá-se a cena de seu
verdadeiro encontro – Raskólnikov percebe que a ama e enfim consegue
receber o amor dela. Porém tenhamos em mente que Sônia, no âmbito
do romance, não é qualquer mulher – é o puro amor cristão. A partir
do momento em que se une a ela, Raskólnikov retorna a suas “origens”,
ao contato com o solo russo, com o Cristo russo. (Seria complicado
explicar aqui a parte da filosofia de Dostoiévski que diz respeito ao
povo e ao solo russo; contentemo-nos com a “infecção” de Raskólnikov
pelo amor cristão.) Tanto é assim que, no mesmo dia em que se entrega
espiritualmente a Sônia, sua relação com os colegas de prisão transfor-
ma-se:
Na noite do mesmo dia, quando o quartel já estava fechado,
Raskólnikov, deitado na tarimba, pensava nela [Sônia]. Nesse
dia até lhe pareceu que todos os galés, antes seus inimigos, já o
olhavam de modo diferente. Ele mesmo começou a conversar
com eles, e lhe respondiam de modo carinhoso. Agora ele se
lembrava disso com esforço, mas era assim que devia ser: acaso
tudo não devia mudar agora? (p. 559)

Por fim, o crime. O que pensa Raskólnikov sobre seu crime, agora que
foi transformado?

Tudo, até o crime dele, até a condenação e o exílio, agora, no


primeiro impulso, pareciam-lhe algum fato externo, estranho,
até como se não tivesse acontecido com ele. Aliás, nessa noite ele
não conseguia pensar de forma demorada e constante em nada,
concentrar o pensamento em nada; demais, agora ele não resolve-
ria nada de modo consciente; apenas sentia. A dialética dera lugar
à vida, e na consciência devia elaborar-se algo inteiramente
diferente. (Idem. Grifo meu.)

Raskólnikov já não é o indivíduo cindido. Ele abandona o racionalismo


– a racionalidade alijada da vida, da experiência concreta. Uma vez que
já entregou-se ao castigo e aceitou a cruz, está livre da obsessão pelo
crime que cometeu.

O romance não poderia terminar de modo mais significativo: Raskól-


nikov abre o Evangelho, de que até então apenas escarnecera. Mas,
pensando em Sônia, para quem aquele era o único livro sobre a terra,
ele pergunta-se: “Será que agora as convicções dela podem não ser
também as minhas convicções? Os seus sentimentos, as suas aspirações,
ao menos...”(p. 561; última página do romance) Lembremos que Sônia
é o indivíduo que, diante da confissão de assassino de Raskólnikov, dis-
sera-lhe: “Vai agora, neste instante, pára em um cruzamento, inclina-te,
beija a terra, que tu profanaste, e depois faz uma reverência a todo este
mundo, em todas as direções que quiseres, e diz a todos, em voz alta:
‘Eu matei!’” (p. 428)

As convicções de Sônia agora são também as de Raskólnikov. Este é o


livro que Dostoiévski escreveu, a despeito do wishful thinking do tradu-
tor Paulo Bezerra.

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