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COSMOVISÃO CRISTÃ

Vendo e Vivendo no Mundo de Deus pelos Olhos da Palavra

O
CONCEITO DE
COSMOVISÃO (PARTE 2)

Aula 4

“Pois as armas da nossa guerra não são humanas, mas


poderosas em Deus para destruir fortalezas. Destruí-
mos raciocínios e toda arrogância que se ergue contra
o conhecimento de Deus, levando cativo todo pensa-
mento para que obedeça a Cristo.” (2 Co 10.4,5)

N os últimos 150 anos o conceito de cosmovisão entre os cris-


tãos se popularizou e alcançou notável proeminência como
meio de explicar, de forma abrangente e com enraizamento na
Palavra de Deus, a realidade à nossa volta. Isso quer dizer que
esse conceito pode ser abraçado tanto como uma narrativa ger-
al (criação, queda e redenção) como uma compreensão teológica
de “um sistema teísta que exibe a coerência racional da revelação
bíblica”, como afirma o autor David K. Naugle em “Cosmovisão a
História de um Conceito”.
A cosmovisão cristã oferece à igreja uma nova perspectiva sobre a
natureza holística, as dimensões cósmicas e as aplicações universais
da fé. Portanto, esse conceito de cosmovisão vem para ajudar o
cristão a entender o escopo da sua fé e aplicar de forma prática
aquilo que ele crê pessoalmente e no engajamento cultural.
As Escrituras são o fundamento da cosmovisão cristã, ou seja, o pon-

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to de vista de Deus da própria realidade, o qual inspirou os autores


da Bíblia e fornece as bases doutrinárias da fé cristã. Mas temos
também o desenvolvimento desta cosmovisão através dos pais da
Igreja, dos teólogos e filósofos medievais. Como exemplo, citamos
Agostinho e Tomás de Aquino, e com maior profundidade os refor-
madores Lutero, Calvino e seus sucessores ingleses (os puritanos) e
norte americanos.

COMPILADORES DA COSMOVISÃO CRISTÃ

1. James Orr (1844-1920) – Teólogo, educador e ministro es-


cocês.
A visão cristã de Deus e do mundo estabeleceu uma visão do cris-
tianismo como uma cosmovisão. A Bíblia nos dá uma visão a res-
peito da realidade que é confiável, e nos permite viver de forma
correta. Ela traz a verdade, a qual é uma declaração correta a res-
peito da realidade. Quando assimilamos e nos conformamos à ver-
dade bíblica, nos encaixamos de forma correta à realidade. James
Orr foi quem apresentou esse conceito de cosmovisão cristã a partir
da verdade da Bíblia. Ele colocava o foco da visão cristã em Jesus:

“Aquele que de todo o coração crê em Jesus como o


Filho de Deus está, ato contínuo, comprometido com
muitas outras coisas também. Está comprometido
com uma visão de Deus, uma visão do homem, uma
visão do pecado, uma visão da redenção e uma visão
do destino humano que só são encontradas no cris-
tianismo. Isso forma uma “Weltanschauung” ou ‘visão
cristã de mundo’ que está em nítido contraste com
as teorias desenvolvidas sob um ponto de vista pura-
mente filosófico ou científico.”

2. Abraham Kuyper (1837-1920) – Político, jornalista, estadista e


teólogo holandês.
Kuyper foi para o seminário se preparar como pastor e teve conta-
to com uma teologia liberal. Esse liberalismo teológico relativiza a
verdade e autoridade bíblica. Kuyper saiu do seminário com uma
mente bastante secularizada e, por causa disso, quando começou
a pastorear uma igreja pequena no interior da Holanda foi confron-

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tado com o fato dela ser constituída por pessoas com uma espir-
itualidade profunda e uma formação (embora simples, mas com
embasamento e ponto de vista sobre tudo) que expressava um
cristianismo genuíno. Kuyper constatou essa conduta ao notar que
aquele cristianismo era fruto da obra do legado de Calvino, e que
esse trabalho havia penetrado e desenvolvido a espiritualidade dos
irmãos holandeses de forma prática e com bastante êxito.
Abraham Kuyper foi convidado para palestrar em Princeton nos
EUA. Na viagem de navio lê o livro de James Orr e se depara com
a necessidade de se falar do cristianismo como uma cosmovisão
ou lente pela qual podemos olhar o mundo; afinal de contas o
moernismo e o secularismo haviam crescido e se disseminado por
toda parte. Kuyper, então, chega à conclusão de que precisa se
comunicar com o tempo no qual vivia, repensando o cristianismo,
traduzindo a teologia e visão de mundo dos reformadores para, en-
tão, alcançar os diversos campos da vida humana de forma prática.
O livro mais famoso de Kuyper é Calvinismo, que trata do tema cos-
movisão cristã (de tradição calvinista) resultado de suas palestras
nos Estados Unidos.
Preocupado com o secularismo e relativismo modernos que cresci-
am na Europa, Kuyper entendeu que o cristianismo precisava ofere-
cer uma resposta não somente para os anseios do cristão na esfera
religiosa, mas para a visão a respeito do todo da vida humana.
Foi ele quem mostrou que os pensamentos teóricos ateístas e
secularistas têm também pressupostos religiosos, assim como a
Bíblia deixa claro que o coração é a fonte da cosmovisão, pois a
forma de enxergar a realidade e relacionar-se com ela está intima-
mente ligada àquilo que o coração se apega.

“Dois sistemas de vida estão em luta um contra o out-


ro num combate mortal. O modernismo está limitado
a construir seu próprio mundo a partir dos dados do
homem natural, e construir o próprio homem a partir
dos dados da natureza; enquanto que, por outro lado,
todos aqueles que reverentemente dobram o joelho
perante Cristo e o adoram como o Filho do Deus vivo,
como o próprio Deus, estão inclinados a salvar a ‘her-
ança cristã’. Essa é a luta na Europa, essa é a luta na
América do Norte.”

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Abraham Kuyper era conhecido por seus adversários como


“um oponente de dez cabeças e centenas de mãos” devido a
sua grande influência intelectual e notória ação na sociedade.
Deixou um vasto legado aos holandeses que também o chamavam
de “uma dádiva de Deus para a nossa era”. Fundou a Universidade
Livre de Amsterdam e também foi primeiro ministro da Holanda
entre 1901 e 1905.

3. Herman Bavinck (1854-1921) – Teólogo holandês


Pensador e teólogo reformado holandês importante para o neo-cal-
vinismo por causa da sua obra A Dogmática Reformada. Bavinck
tenta responder com o calvinismo aquilo que a estrutura de pens-
amento moderna havia levantado em oposição ao cristianismo,
como, por exemplo, as ideias evolucionistas de Charles Darwin.
Bavinck tinha uma cosmovisão essencialmente calvinista de inter-
pretação bíblica para confrontar as premissas modernas.

“Todo o mundo com tudo o que há e ocorre nele, está


sujeito ao governo divino. O verão e o inverno, o dia
e a noite, os anos frutíferos e os não frutíferos, a luz
e as trevas – tudo é Sua obra e tudo é formado por
Ele (Gênesis 8.22; 9.14; Levítico 26.3ss; Deuteronômio
11.12ss; Jó 38; Salmo 8, 29, 65, 104, 107, 147; Jer-
emias 3.3; 5.24; Mateus 5.45, etc.). A Escritura nada
conhece de criaturas independentes; isso seria uma
incongruência.”

4. Herman Doyweerd (1894-1977) – Filósofo e jurista holandês


Um dos maiores filósofos já produzidos pela Holanda; teve mais de
200 livros e artigos publicados nas áreas do direito, da teoria política
e da filosofia. Foi quem desenvolveu o conceito de cosmovisão de
forma mais ampla. Como as raízes do pensamento teórico são reli-
giosas (fluem do coração do homem, como dizia Kuyper), ele tratou
também das diferentes esferas de soberania dentro da sociedade.
Doyweerd afirmava que havia apenas dois motivos-base (força mo-
tivadora) que compunham toda, e qualquer cosmovisão. Estes são
de teor religioso (a partir do coração) e estão sempre em oposição
antitética. Essa precondição da filosofia e da teoria são os com-
promissos últimos do coração humano, que caiu no pecado. Toda
cosmovisão parte do coração de um homem que ainda está nessa

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condição caída ou de alguém que já foi renascido e restaurado


pelo Espírito de Deus. Homem convertido a Deus ver-sus homem
desviado de Deus, logo a direção do coração do homem molda a
sua compreensão da realidade.

5. Francis Schaeffer (1912-1984) – Filósofo, teólogo, evangelista


e pastor.
Schaeffer ficou bastante conhecido por causa dos seus escritos, e
por ter criado a comunidade L’Abri (Centro Internacional Cristão de
Acolhimento, Hospitalidade e Reflexão).
Não foi o autor mais profundo, filosoficamente falando, nem o que
mais escreveu sobre o assunto, mas, com certeza, é um nome que
mais popularizou a ideia de cosmovisão e que impactou profunda-
mente a sua geração.
Os escritos de Schaeffer são fruto das conclusões que chegou de-
pois de ter passado por uma fase de crise intelectual. Ele, então,
passa a dialogar e ajudar jovens intelectuais que eram céticos ou
que enfrentavam dúvidas em relação ao cristianismo. Influenciou
muitas pessoas através de suas palestras e livros que tratavam das
grandes crises que o relativismo e secularismo produziram na mod-
ernidade.
Schaeffer e sua esposa Edith falavam da cosmovisão cristã e, es-
pecialmente do cristianismo histórico, como a única resposta crível
para os profundos dilemas da vida secular moderna.

O GRANDE CONFLITO NA COSMOVISÃO:


DUALISMOS
Um dos objetivos de se ter uma cosmovisão coerente e bem es-
tabelecida é poder aplicar esse conjunto de crenças em sua vida
prática, em oposição a uma visão de mundo distorcida e equivoca-
da da realidade, a visão dualista, que foi sempre muito comum na
história. O dualismo impede as pessoas de terem uma visão corre-
ta a respeito da realidade, pois separa a realidade em esferas ou
dimensões distintas. Todos os autores, citados acima, trataram desta
forma errada de como o mundo vê a si mesmo.

1. Dualismo grego (Matéria versus Forma)


Filósofos propunham que a soma total da realidade (metafísica) era

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constituída de dois elementos básicos: matéria e forma. A matéria


é essencialmente má (negativa e prejudicial), é aquilo que é físico
e sólido. Já a forma é o ideal ou o conceito que existe no mundo
das ideias, tratado como o mundo das formas eternas, um lugar
transcendente e perfeito e que trazia a definição correta do que
cada coisa deveria realmente ser. A busca da filosofia era se libertar
do mundo da matéria e viver plenamente no mundo das formas.
O dualismo divide a realidade e coloca suas partes em oposição,
produzindo uma cisão na vida e impedindo de vivermos de for-
ma plena (integral). Ele também é manifesto em um “dualis-
mo evangélico”, que nos faz separar as coisas materiais ou co-
muns da vida daquelas que são “espirituais”, criando assim uma
fuga para aquilo que aparentemente é superior e mais impor-
tante. Esse pensamento tem origem no dualismo grego filosófico.
No gráfico abaixo vemos como o dualismo grego funcionava.

Gráfico extraído do livro “Gospel of Christ Crucified“, de John Harrigan

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Platão foi o pai desse tipo de pensamento, o qual possuía as se-


guintes características:

a) A verdade há de ser encontrada em um mundo


transcendente de ideias.

b) O mundo é constituído de duas esferas: visível (ma-


terial) e invisível (espiritual).

c) A visão dualista do homem faz distinção entre: cor-


po material e alma racional.

d) A única maneira de estar em contato com a esfera


espiritual é por meio da razão.

2. Dualismo escolástico (Natureza versus Graça)


Tem seu fundamento em Tomás de Aquino, teólogo da idade média
que foi muito influenciado pelo filósofo Aristóteles. Tomás propagou
a forma de pensamento que separa a realidade entre natureza e
graça.
A natureza é tudo o que vemos no mundo e funciona por meio de
princípios que estão embutidos na própria natureza. Já na graça ou
no âmbito religioso, temos princípios espirituais que a regem e uma
abordagem diferente do âmbito natural.
Natureza era, portanto, a explicação de como as coisas funciona-
vam no mundo ou “a estrutura das coisas” - a ênfase aqui estão nos
particulares (como apontado por Aristóteles). Graça apontaria para
a revelação, a explicação religiosa das coisas - a ênfase aqui estão
nos universais (como apontado por Platão).
Ao dizer que o pecado não afetou o homem completamente,
Tomás de Aquino causou um impacto na teologia e filosofia da
época onde a ênfase passou a ser muito mais na natureza do que
na graça. Se após a queda o homem ainda pode usar a sua razão,
que não foi completamente afetada, para chegar a verdade, logo
o homem e em sua natureza passou a ser foco dos filósofos. Aos
poucos veremos a divisão entre natureza e graça, e uma ênfase
maior na natureza, eliminando aos poucos o aspecto da graça (da
revelação e da religião).

3. Dualismo humanista (Natureza versus Liberdade)

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Após Tomás de Aquino vemos uma mudança na história onde a rev-


elação e a religião vão sendo, aos poucos, eliminadas e substituídas
pelo ideal de liberdade.
Fruto do pensamento iluminista que rejeitava o passado (especial-
mente o período da idade média), a autoridade, a igreja e o cristian-
ismo como um todo, o ideal de liberdade pode ser claramente visto
na filosofia de Jean Jacques Rousseau. Assim como Tomás de Aqui-
no disse que a razão do homem não foi afetada totalmente pelo
pecado, Rousseau foi além e afirmava que o homem era bom, a
sociedade e as instiuições que o corrompia (afirmações totalmente
contrárias às Escrituras).
No dualismo “natureza X liberdade” a graça, Deus, religião e
metafísica são eliminados. Agora o homem passa a buscar liberda-
dade, fraternidade e sentido sem a religião. A natureza é um mero
acaso, fruto de um acidente cósmico, que segundo as condições
apropriadas permitiu a evolução das espécies até surgir o homem
na história, que está cercado dessa natureza sem sentido e sem
propósito.
A mundo é regido por leis naturais como um grande e complexo
mecanismo do qual o homem faz parte e funciona como nada mais
do que uma peça do todo. Mas ao mesmo tempo esse homem
deve buscar a liberdade em sua vida, através de se desenvolver e
dominar essa natureza ou se integrar à natureza ao seu redor.

Influenciados por esses dualismos,


muitos cristãos também vivem suas
vidas de forma dividida, desintegrada
e em constante conflito.

4. Dualismo evangélico (fé versus razão/ espiritual versus secu-


lar)
Influenciados por esses dualismos, muitos cristãos também vivem
suas vidas de forma dividida, desintegrada e em constante confli-
to. Assim como os filósofos não conseguiam promover uma união
entre os dois mundos (invisível/visível; natureza/graça; etc), muitos
cristãos vivem essa divisão. É o que podemos chamar de “dualismo
evangélico”, como podemos observar no gráfico abaixo:

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CONCLUSÃO
Todos os dualismos que vimos até agora dizem respeito à tentativa
do homem de explicar a realidade na qual ele vivemos - é a busca
por sentido. Porém, nenhum tipo de dualismo concilia as esferas
do mundo perceptível (aquilo que vemos) e aquilo que não é per-
ceptível (as coisas invisíveis mas reais).
Diferente de todos os dualismos filosóficos, a Bíblia explica a reali-
dade e não faz isso a partir de uma dicotomia. A visão da realidade
apresenta nas Escrituras une o invisível com o visível. Através de
uma narrativa única que engloba a criação (boa e perfeita), a que-
da (que mancha e distorce o estado original) e a redenção (recu-
peração e restauração em Cristo de toda a realidade) recebemos
explicação para as grandes perguntas da vida.
Os autores e pensadores do conceito de cosmovisão foram aqueles
que traduziram os princípios dessa narrativa para explicar os dilemas
que vivemos hoje e aplicar uma práxis bíblica e cristã para as diver-
sas áreas da vida humana, da cultura e da sociedade. O objetivo do
estudo de cosmovisão é buscar entender o sentido da vida e vivê-
la de forma a abandonar o conflito interno do dualismo, glorificando
a Deus e exaltando o seu nome – esse é o seu propósito e vontade.

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