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A literatura como máquina do tempo: considerações sobre

literatura, memória e território


Prof. Dr. Altair Martins (PUCRS)

Resumo
O presente trabalho, desenvolvido no II SINEL (Seminário Internacional de Estudos Literários) da URI
(Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões) em Frederico Westphalen, RS,
desenvolve questões acerca de memória, tempo e literatura. Busca ilustrar relações entre o fenômeno
do esquecimento e da lembrança através de incursões narrativas nas obras de Borges e García
Márquez, entre outros. Sugere ainda considerar a memória como território móvel, responsável, também,
por arraigamento e deslocamento do indivíduo.

Palavras-Chave: Narrativa. Tempo. Memória. Territorialidade

Resumen
Este trabajo se desarrolló en el SINEL II (Seminario Internacional de Estudios Literarios) de la URI
(Universidad Regional Integrada del Alto Uruguay y Misiones) en Frederico Westphalen, Brasil,
desarrolla las preguntas acerca de la memoria, el tiempo y la literatura. Pretende ilustrar las relaciones
entre el fenómeno del olvido y el recuerdo a través de relatos de incursiones en la obra de Borges y
García Márquez, entre otros. Sugiere además considerar el territorio como memoria móvil y responsable
por arraigo y desplazamiento de la persona.

Palabras Clave: Narrativa. Tiempo. Memoria. Territorialidad

1. Que a memória é um naufrágio. Recordo Borges e suas extensas


manifestações acerca do recordar, da detenção da memória, como ele mesmo gostava
de elucidar, declamando enormes poemas em diversas línguas. Mas também ele
reconhecia o despropósito de quaisquer pretensões a uma memória perfeita. A
perfeição, por sinal, lhe era como o mapa perfeito e inútil do famoso relato de História
Universal da Infâmia1 - um mapa do tamanho da cidade. Já o naufrágio da memória
fica bem exposto no conto Funes, el memorioso2. Caído de um cavalo, Ireneo Funes
desenvolve uma memória tão colossal que seria necessária uma linguagem
matemática para abarcar todas as possibilidades de vocabulário que suas recordações

1
BORGES, Jorge Luis. Obras Completas. São Paulo: Globo, 1999.
2
________, Jorge Luis. Narraciones. 12ª edición. Madrid: Ediciones Cátedra, 1998.

1
demandariam. E o pior: Funes se vê capaz de evocar um dia inteiro com tamanha
perfeição que um outro dia inteiro parece necessário só para recordar o anterior.
Nos estudos de Ivan Izquierdo3, hoje um dos mais respeitados cientistas em
atividade no Brasil e cujas pesquisas sobre os mecanismos da memória são referência
obrigatória em todo o mundo para estudos de ponta sobre as funções cerebrais,
esquecer é uma capacidade humana tão primordialmente importante quanto lembrar.
Em lembrar, adquirimos, inchamos – mas perdemos a competência de cogitar.
Armazenar torna-se inútil quando nada do que guardamos pode ser movido. A
memória, sem o esquecimento, seria um armário emperrado, um Funes naufragado
em sua própria inesgotável lembrança. Nesse campo de sucatas, tropeçaríamos em
recordações inúteis, âncoras de um passado que nos arrastaria, como destroços de
um navio afundado:

Nossa vida social, de fato, seria impossível se nos lembrássemos de todos


os detalhes de nossa interação com todas as pessoas, e de todas as
impressões que tivemos de cada uma dessas interações. Não poderíamos
sequer dialogar com seres queridos se, cada vez que os víssemos, viesse à
nossa lembrança algum mal-estar ou briga ou humilhação, por pequenos
que fossem.4

Eis porque esquecer é necessidade vital: é preciso esquecer para adquirir;


perder para ganhar. Esquecer é uma arte, porque corresponde à natureza vital de
reduzir, otimizar. Ocorre que, tanto na memória como na arte, diminuir é a essência.
Memória e atividade artística teriam, por assim dizer, parentesco com a natureza da
maquete: sem suprimir, mergulhamos no labirinto da ausência dos referentes, cuja
totalidade é inútil. Sem a maquete, perdemos a perspectiva: nem alcançamos a
maleabilidade nem detemos a noção (apenas a noção) de totalidade. Como na
cartografia, em arte – em nosso caso, na arte da palavra –, reduzir é o desafio. A
literatura deve ser pensada como corte: é o excesso pessoal que suprimimos para

3
IZQUIERDO, Iván. Memória. 1ª edição. Porto Alegre: Artmed, 2002.

4
IZQUIERDO, Iván. Memória. 1ª edição. Porto Alegre: Artmed, 2002.p. 30

2
atingir o universal. Buscamos, de fato, a apara das franjas, dos babados, das linhas
de sobra e dos volumes em excesso. Diminuímos para ganhar – o que, junto ao leitor,
torna-se diálogo. Do contrário, produziríamos livros infinitos, naufragados em detalhes
inúteis que levariam ao colapso do leitor – assim: ele fecharia o livro. Em reduzindo,
alcançamos um efeito que, se eficaz, apaga os rascunhos que escapam de quaisquer
recordações. É assim que reduzimos um universo que caiba na lógica coletiva dos
homens. Produzimos evidentemente um exílio, pois que abandonamos nosso círculo e
o ampliamos para um espaço onde caiba o leitor. Daí que, na memória, suprimimos o
que esquecemos; na arte, tendemos a esquecer o que suprimimos.

2. Para Izquierdo, a memória estável é adquirida num certo estado emocional,


podendo, por isso, misturar-se a ele. Ainda assim, as recordações “pessoais” serão
plenas de vácuos, imperfeições típicas:

As pessoas costumam lembrar melhor e em mais detalhe os episódios ou


eventos carregados de emoção, como onde estavam quando mataram o
presidente Kennedy, ou quando seu país ganhou uma copa do mundo.
Porém, como vimos no capitulo anterior, nem mesmo assim a recordação
desses eventos chega a ser perfeita: nas melhores memórias sempre há um
grau de extinção.5

Nada mais justo se simplesmente lembrarmos o quão emotivas são nossas


memórias mais sólidas – o nascimento de um filho, um título de campeonato, aquele
beijo, a morte de alguém querido e as sensações da ausência. A memória constrói
nossa individualidade tanto como sujeitos quanto como povo: ao recordar-me,
construo diariamente quem sou, me altero e me solidifico. Sentimos, gravamos,
lembramos. Produzimos linguagem, esse território onde as bases do humano se
solidificam. Não é à toa que a memória tenha uma ação reguladora e gramatical em

5
IZQUIERDO, Iván. Memória. 1ª edição. Porto Alegre: Artmed, 2002.p. 66

3
todas as nossas atitudes e interpretações. A exceção parece ser o sonho, quando tudo
se desgarra.
Em García Márquez há um episódio exemplar da falta de memória ligada ao
sono, mais especificamente à falta dele: ocorre quando os habitantes de Macondo,
inicialmente Aureliano (o primeiro deles), percebe que a insônia lhes trouxe o
esquecimento de toda a linguagem, e era preciso registrar por escrito os elementos da
realidade, embora logo se desse conta de que em nada adiantaria, pois estariam
condenados também a esquecer o sistema ao qual estariam ligados aqueles códigos:

No se lo ocurrió que fuera aquella la primera manifestación del olvido,


porque el objeto tenía un nombre difícil de recordar. Pero pocos días
después descubrió que tenía deficuldades para recordar casi todas las
cosas del laboratorio. Entonces lo marcó con el nombre respectivo, de
modo que le bastaba con leer la inscripción para identificarlas. (...) Poco a
poco, estudiando las infinitas posibilidades del olvido, se dio cuenta de que
podía llegar un día en que se reconocieron las cosas por sus inscripciones,
pero no recordara su utilidad. Entonces fue más explícito. El letrero que
colgó en la cerviz de la vaca era una muestra ejemplar de la forma en que
los habitantes de Macondo estaban dispuestos a luchar contra el olvido:
Esta es la vaca, hay que ordeñarla todas las mañanas para que produzca
leche y a la leche hay que hervirla para mezclarla con el café y hacer café
con leche. 6

Izquierdo manifesta que no sono o esquecimento se processa. Se ampliarmos


de sono para o sonho, momento freudiano no qual os elementos estão livres da
repressão da consciência, forçaríamos uma analogia entre sonho e literatura como
campos onde se dá a liberdade das recordações no espaço e no tempo. Sem sonho e
literatura, a linguagem se acaba – torna-se mera reprodução de algo sistêmico,
carente de organicidade, como no episódio das “funções” da vaca dos Buendía. É
assim que a literatura movimenta os signos, fazendo a linguagem respirar e se
potencializar. A literatura não permite o esquecimento e a estagnação.
Porém, como todo estado emocional, por mais que o incitemos ao diálogo, é
particular, incorremos num perigo enquanto artistas, o assunto, este, que vem sendo
lembrado: é que tanto a memória como o sonho só servem para a arte se se
6
GARCÍA MÁRQUEZ, Gabriel. Cien años de soledad. 8ª edición. Madrid: Ediciones Cátedra, 1997. p. 137-
138.

4
manifestarem universalmente. Por isso, nossas memórias e nossos sonhos são
territórios particulares que, para atingirem o universal, devem, sim, abrirem-se ao
território coletivo da leitura. Escrever sobre uma memória individual requer
distanciamento, visão panorâmica e uma dose razoável de esquecimento. Podar a
memória emotiva é saída para que possamos moldá-la em memória artística plausível.
Para que nossa recordação, exatamente como nossos sonhos, estabeleça laços com o
leitor, deverá migrar da nossa memória e solidificar-se enquanto memória de outro.

3. Em diversas entrevistas espalhadas pela rede, Izquierdo foi perguntado


sobre os efeitos sociais da falta de memória, sobretudo se um homem sem memória
perderia também seus conceitos de ética?7 Respondeu que certamente os perderia. As
fidelidades aos valores de tradição se dissolveriam, uma vez que ética deve a história,
e história é memória documentada. Puxando a brasa pra o assado da literatura,
poderíamos também perguntar: e um homem sem memória, perderia seus conceitos
de estética? Provavelmente sim. Estética também é questão de memória coletiva e
individual. Os cânones, as escolas, os mitos sobrevivem na memória estética que
transborda o indivíduo. Falo aqui abrindo a Poética no capítulo IV e reconhecendo
memória no conceito inaugural de mímese. O conceito de imitar, tão caro em
Aristóteles, é natural, segundo ele, desde a infância, e confunde-se com o de
memória:

Parece, de modo geral, darem origem à poesia duas causas, ambas


naturais. Imitar é natural ao homem desde a infância – e nisso difere dos
outros animais, em ser o mais capaz de imitar e de adquirir os primeiros
conhecimentos por meio da imitação (...)8

7
_________, Iván. Questões sobre memória. São Leopoldo: Unisinos, 2004.
8
ARISTÓTELES, HORÁCIO, LONGINO. A poética clássica. Tradução direta do grego e do latim por
Jaime Bruna. 7ª edição. São Paulo: Cultrix, 1997. p. 21-22

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Considere-se também que, em Aristóteles, o conceito de imitação, tão mesclado
ao de memória, forma o de estética – e é, então, um conceito ligado ao prazer.
Contemplar arte e compará-la ao original torna-se catarse, à medida que da memória
emana o fio que nos devolve a nós mesmos e daí de volta ao mundo. E, ainda que
não estejamos certos do que recordamos, nossos conceitos estéticos mínimos – de
cor, de linha e de forma – são partes constituintes de nosso modo ora particular ora
coletivo de ver o mundo e de armazená-lo:

Outra razão é que aprender é sumamente agradável não só aos filósofos,


mas igualmente aos demais homens, com a diferença de que a estes em
parte pequenina. Se a vista das imagens proporciona prazer é porque
acontece a quem as contempla aprender e identificar cada original; por
exemplo, "esse é Fulano"; aliás, se, por acaso, a gente não o viu antes, não
será como representação que dará prazer, senão pela execução, ou pelo
colorido, ou por alguma outra causa semelhante.9

Demandam daí, também, nossas querelas de leitura e gosto. Agimos


esteticamente moldados pelos autores que lemos. Nossas leituras são nosso território
estético; a cada leitura, e de acordo com o grau de novidade que o texto nos
proporcione, estamos pisando um terreno novo. Daí que a leitura é também uma
espécie visceral de desterritorialização, sobretudo estética.
Nossa crítica é simples culto de memória, reprodução e comparação de nossa
“biblioteca pessoal”, dos conceitos imanentes desse conjunto, com o texto
relativamente novo que se nos apresenta. E, embora isso seja evidente, raramente
evocamos o termo “memória de leitura”. Preferimos usar a palavra “gosto”, espécie de
armadura sem rosto. Ética e estética devem e podem ser entendidos como territórios
de coletividade, de cruzamentos, e não como elemento de interdição e repressão. É
que uma memória não pode fazer julgamento do que suprime, não lembra ou desvia.
O que escapa à memória não se constitui referente. E tal conflito pode traduzir uma
questão de toda a modernidade: a velocidade esmagadora do efêmero contemporâneo

9
ARISTÓTELES, HORÁCIO, LONGINO. A poética clássica. Tradução direta do grego e do latim por
Jaime Bruna. 7ª edição. São Paulo: Cultrix, 1997. p. 22

6
estaria a condenar a história, açulando para o fim da linearidade e para uma era de
simultaneidades. Diante dessa ausência do referente, da falência da memória e da
filiação, não estaríamos esvaziando os conceitos de estética?

4. Assistindo a um programa de ciência na televisão, chamado O Universo


(National Geographic Channel), fico espantado com as idéias mais atuais sobre o
tempo e o espaço e, mais ainda, sobre a tão fantástica quanto literária máquina do
tempo. No filme De volta para o futuro, de 1985, Robert Zemeckis e Steven Spielberg
propõem que, se pudéssemos retornar ao passado, correríamos o risco de alterar fatos
do futuro. Cena célebre mostra o perigo de o protagonista, Marty McFly, envolver-se
com sua mãe e, desse modo, não permitir que ela conheça seu pai – caso em que o
protagonista, filho, nunca viria a existir. Ocorre que, para os físicos – que denominam
o fenômeno como “paradoxo do avô” –, desde as descobertas de Einstein acerca da
relatividade e das noções de espaço-tempo, voltar ao passado é tão improvável
quanto, desde lá, alterar o futuro. A primeira hipótese se ampara no fluxo natural do
universo: como só há um caminho, se o retorno ao passado se desse, a natureza se
encarregaria do eflúvio no qual as mesmas coisas acabariam acontecendo. A segunda
hipótese diz que passado, presente e futuro, embora façam parte da mesma malha,
são universos paralelos. Como, me perguntei? Assim: se voltássemos ao passado, não
alteraríamos o presente, mas criaríamos um outro rio no desaguar do tempo. Em
termos mais simples, um retorno ao passado representaria, como nas narrativas RPG,
como nos cybertextos, uma outra história, independente daquela da qual, do futuro,
partimos. Para o personagem do filme, valeria dizer que ele teria sido namorado de
sua mãe – história passada – e filho – história presente –, sem que isso representasse
qualquer complexo. Ora, pensemos em Édipo dessa forma e condenamos o oráculo:
Édipo não precisa mais furar os olhos.
Trazendo para o jogo da memória, e da memória enquanto narrativa,
podemos pensar que recordar é, sim, uma máquina do tempo: resgata e recria

7
universos paralelos. Não haveria histeria, portanto, quanto ao sentido de fidelidade de
memória, pois o que recordamos está – digamos fisicamente – divorciado do que foi
vivido. Assim, trago para as narrativas e percebo que a arte, muito antes da física,
tinha sua razão: afinal, não é o modo como contamos que estabelece nossa noção de
verdade e fidelidade? Cada leitura recomeça um livro novo pelo simples motivo de que
é impossível relê-lo. Toda leitura é hipertextual, e nosso modo narrativo, portanto, é
construção, mais que de memória, de verdade, senão neste universo, num paralelo –
a memória do leitor. Enquanto leitura, tanto memória e texto, texto e palimpsesto,
como universos paralelos, jamais se encontrarão. Daí que a memória literária não
pode ser entendida como linha, mas como rede, e uma rede irregular: parte de lados
indeterminados e nunca chega.

5. Todo escritor é um profissional de memórias. Eu, por exemplo, sou um


coletor de sucatas. Roubo memórias, misturo, mascaro. A memória roubada ou
emprestada existe, e é fascinante. Penso assim: falei com o Tabajara Ruas que uma
cena de Netto perde sua alma me incomodava. Tratava-se do momento em que o
general cravava sua espada no coração de um jovem soldado do Império e sentia,
subindo pelo metal da arma, o último batimento do coração do rapaz antes da morte.
Tabajara me disse que nunca havia escrito tal cena. Nada de estranho senti, porque,
como leitor, inúmeras vezes preenchi memórias que não eram minhas, que roubei ou
pedi emprestado. Ademais, cogitei, também, que o Tabajara não se lembrasse de
todas as cenas que ele mesmo tivesse escrito. Não dominamos nossa memória,
demandando o que deve e o que não deve ser lembrado, e, ao escrever, não estamos
livres de que o leitor se lembre de algo talvez seu, talvez nosso. Ou de nenhum dos
dois. Porque a leitura é uma forma estranha de memória – evoca sem muitas vezes
referir caminhos. Recordo, portanto, de uma cena que Tabajara Ruas ainda não
escreveu ou escreverá. Ler é, assim, também interferência de memória, fenômeno que
nos preenche e amplia.

8
Outro exemplo foi um conto que escrevi sobre contrabando de rádios numa
travessia pelo Rio Uruguai – o Uruguai que não conheci, mas recordo. Trata-se,
reconheço, de mais um exemplo de memória manipulada, certamente recordada de
uma cena que, embora nunca tenha existido, evoco de Sérgio Faraco. Sim, esta é uma
função nova da literatura que devemos estudar: a literatura empresta memória.
Quando não, cabe ao bom leitor saber roubar – e essa é uma segunda hipótese
igualmente interessante.

6. Ao discutirmos espaços de desterritorialização, não podemos nos ater


apenas ao desarraigamento espacial. O Brasil, pela extensão territorial que ainda
carece do verdadeiro sentido de unidade, exila pra dentro. O sentido de nação é
esmaecido se pensarmos no usufruto que enorme parcela de brasileiros faz dele. Em
várias partes do país, o Brasil não existe, senão como memória vivida: Brasil é uma
telenovela, uma certidão, uma cédula de dinheiro ou camiseta de futebol. Dentro é um
grande país.
Preenchendo meu espaço autobiográfico, mesmo vivendo numa capital
brasileira, afirmo que ainda busco encontrar o Brasil. Essa errância intenstina, tal uma
deriva em meio a um deslocamento colossal, deve-se, a meu ver, a um imaginário de
país que não corresponde nem ao Brasil sensível nem à memória que guardamos da
nação. Talvez que o território da memória, a sensação empírica de Brasil, não
encontre respaldo senão na literatura. É a literatura brasileira, sobretudo, que nos tem
devolvido o Brasil. Ela nos tem provado que nosso país existe. É um país subterrâneo,
menor que o símbolo, mas mais efetivo na subjetividade. Por isso, se nos
encontramos deslocados, a literatura é um esforço, no espaço-tempo da leitura, que
nos tem dado asilo, identidade e também memória.

9
7. A literatura têm sido a máquina do tempo: uma tentativa de tornar o
tempo portátil. Desse modo não seria exagero imaginá-la como nossa primeira
tecnologia, anterior ao uso da pedra e contemporânea à primeira ferramenta: a mão.
Com a mão, o homem tem registrado sua memória, numa tentativa vã de ordená-la.
Porém, como o tempo, a memória segue sua flecha – do ordenado para o
desordenado –, e qualquer tentativa de ordem produziria tão somente mais desordem.
Também a leitura enquanto literatura prefere o mecanismo que aspira à desordem, daí
porque cada releitura amplia o caos de que viemos.
Como desordem é arte, ficamos satisfeitos.

Referências
ARISTÓTELES, HORÁCIO, LONGINO. A poética clássica. Tradução direta do grego e
do latim por Jaime Bruna. 7ª edição. São Paulo: Cultrix, 1997.
BORGES, Jorge Luis. Narraciones. 12ª edición. Madrid: Ediciones Cátedra, 1998.
________, Jorge Luis. Obras Completas. São Paulo: Globo, 1999.
GARCÍA MÁRQUEZ, Gabriel. Cien años de soledad. 8ª edición. Madrid: Ediciones
Cátedra, 1997.
IZQUIERDO, Iván. A arte de esquecer: Cérebro, Memória e Esquecimento. 4ª edição.
Rio de Janeiro: Vieira & Lent, 2007.
_________, Iván. Memória. 1ª edição. Porto Alegre: Artmed, 2002.
_________, Iván. Questões sobre memória. São Leopoldo: Unisinos, 2004.

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