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AUGUSTO BOAL
A TEMPESTADE
DE AUGUSTO BOAL
BUENOS AIRES,1974
(Versão em Português)
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A TEMPESTADE
De Augusto Boal, música de Manduka
1. EM UM NAVIO.TEMPESTADE.MÚSICA.
1Todos os conteúdos em vermelho e/ou parênteses foram anotações adicionadas à caneta por Augusto Boal
no original datilografado
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os raios e as trovoadas
( ou- nem a esta tempestade
nada a poderá deter)
não conhecem autoridade.
MIRANDA ─ Papaiê, ah, papaie! Eu sei que foi você, foi você, mau, foi você
o culpado! Com as tuas artes mágicas, você fez rugir as ondas selvagens. Ah, papai,
papai querido do meu coração, como você me faz sofrer!
PRÓSPERO ─ Calma, calminha.
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assim foi que pudestes crescer sem pecados e cheia de virtudes. Agora finalmente,
quis o destino – e quis também a necessidade comercial de conquistar novos
mercados – conduzir meus inimigos as minhas praias. Estão dentro desse navio que
naufragou: o Rei de Nápoles, Alonso; Antônio, meu cruel irmão; Gonçalo, que me
salvou a vida, velho e dedicado Gonçalo que me encheu as malas com meus livros
de artes mágicas e ciência ficção, livros que estimo mais que ao meu ducado, e
Fernando ..., ah, já te direi meus planos sobre esse jovem filho do rei. (ELA
DORME). Miranda. Outra vez dormindo? Raios! Creio que a eduquei demasiado
bem! (GRITA PARA FORA). Vem cá, lacaio! Não tenho tempo a perder! Apareça
meu fiel servidor! Vem, doce e podre lacaio meu! (ENTRA ARIEL QUASE SEM
FÔLEGO).
ARIEL ─ Ai, ai,ai,ai,ai,ai! Salve, mestre! Aqui estoy para cumprir todos
os teus desejos, todos! Ordena e assim será feito! Se quiseres voarei pelos ares,
mergulharei no fogo, cavalgarei nas nuvens de cachinhos brancos, ou me perderei
no fundo do mar azul. Ordena, mestre, ordena, e assim será!
PRÓSPERO ─ Por enquanto, ordeno calma! Nada de excessos! Conta como
fizestes a tempestade que eu te ordenei.
ARIEL (COM A VOZ ROUCA DE SATISFAÇÃO) ─ Barbara, mestre,
verdadeiramente tártara! Eu realizei maravilhas! Ai, como fiquei nervoso! Voando
pelos ares em cima do navio real, me dividindo em dois para botar fogo a proa e
popa ao mesmo tempo, as velas e a casa de máquinas, um verdadeiro piromaníaco,
eu! Mestre, que fogo que eu fiz, que fogo! (RISO HISTÉRICO). Os estampidos das
detonações sulfúreas assustaram tanto a esses pobres, oh, que todos começaram a
fazer coisas absolutamente desesperadas. Que excitante, mestre, que maravilhoso!
Foi tártaro! Fernando, o delicado filho do rei, foi o primeiro que saltou em terra firme,
assim que o navio incendiado se aproximou da praia! O pobre menino real gritava
assim: “Meu Deus, socorro, me acudam! O inferno ficou vazio e todos os diabos
estão aqui comigo! Socorro! Socorro!” Pobrezinho.
PRÓSPERO ─ Muito bem, Ariel, você é um gênio. E agora, aonde estão
todos?
ARIEL ─ Todos estão ótimos, não perderam nem um fio de cabelo, nem
o brilho das suas joias e dos seus vestidos ..., tudo europeu, modelos chiquérrimos,
uma formosura patrãozinho ... Mas você não entende disso. Seguindo tuas ordens,
eu fiz que todos dormissem espalhados pela ilha.
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você cantaria junto comigo: “Que Todas as Pestes do Mundo Caiam sobre os
Invasores!”
“QUE TODAS AS PESTES DO MUNDO CAIAM SOBRE OS INVASORES!”
Que todas as pestes do mundo caiam sobre os invasores
os invasores
os invasores!!
Que sejam suas cidades destruídas
por ciclones, ventos e furacões;
que se infestem suas praias
de piranhas e tubarões.
Que todos os males açoeitem aos invasores
aos invasores
aos invasores!
Que a água dos seus rios se infectem
com os corpos apodrecidos de todo gado,
que com as bombas que fez explodir
se engasguem todos soldados!
Que em suas montanhas explodam os vulcões
cuspindo lava bem quente,
onde se afoguem os ricos
e todos os seus parentes!
(FALANDO ENQUANTO SEGUE O RITMO E O CORO CANTA) ─ Porque te
assustas, Próspero? Não peço nada contra eles que já não tenham feito contra nós!
E ainda não pedi a Deus que arrebente seus diques para inundar suas cidades!
CORO (CANTA) ─ Que Deus os afogue
Que rompa seus diques;
Que só morte e violência
Nosso Deus lhe dedique
(FALANDO) ─ Ainda não pedi a Deus que lhes devolva todos os males que
causaram aos meus irmãos e as minhas irmãs. Por que te assustas Próspero, se eu
ainda nem comecei.
CORO ─ Back on you, back on you!
Back on you, back on you!
All you bones, you pale face, back on you!
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MIRANDA ─ Papai, por que você fala assim tão duramente com ele? Papai,
papai querido do meu coração. Este é o terceiro homem que eu vejo e o primeiro por
quem suspiro!
PRÓSPERO ─ E você o que entende de homens? Um dia sim, você vai
descobrir um mundo novo, admirável, maravilhoso, mas não agora. E você, meu
caro senhor, miserável, espião, traidor: em guarda. (TIRA A ESPADA).
FERNANDO ─ Socorro! Au secours! Que venham meus criados! Help! Aiuto!!
PRÓSPERO ─ Vou te amarrar os pés e as mãos, beberás água salgada e os
teus alimentos serão os moluscos, raízes secas e pedras das rochas, e eu te
obrigarei a trabalhar como um negro, de sol a sol, até que morras de cansaço e de
fome!
MIRANDA ─ Aguenta, meu amor, por meu amor aguenta tudo isso e um
pouco mais.
FERNANDO ─ Claro, claro que sim, meu amor, e se ele me mete uma
vassoura no cu eu posso aproveitar e dar uma varridinha na ilha ...
MIRANDA ─ Se você conseguir passar por essa prova tão dura, meu pai
enfim de concederá minha mão. Adeus. (SAI COMO UMA BAILARINA).
PRÓSPERO ─ Vai trabalhar, estúpido. (SAI FERNANDO). Tudo saiu como eu
queria.
ARIEL ─ Obrigado, mestre. (SAEM OS DOIS).
CANÇÃO ANARQUISTA
seus sapatos. Que morra esse infecto miserável e carcomido. (SEGUE COM SUA
CARGA DE LENHA. SEUS GRITOS DESPERTAM GONÇALO).
GONÇALO ─ Socorro, socorro!
REI ─ Que foi? Um complô contra a minha real majestade? Porque
essas espadas desembainhadas?
ANTÔNIO ─ Como? Vocês não escutaram? Uma manada de elefantes e
gorilas tropicais passou por aqui agorinha mesmo. Tiramos as nossas espadas para
defende-los.
REI ─ Que defendam também o meu filho perdido nessa floresta.
Vamos busca-lo. (SAEM. VOLTA CALIBAN E ATRÁS DELE TRÍNCULO ARMADO).
CALIBAN ─ Você é um vendido que se entrega de corpo e alma para
defender o invasor.
TRÍNCULO ─ (GRITA DE FORMA CASTRENSE) A-tem-ção! Le-var le-nha
ao fo-go! Hoje meu senhor prepara uma grande festa. (DÁ UMA CHICOTADA).
CALIBAN ─ Escuta, desgraçado: porque é que você serve ao teu senhor?
TRÍNCULO ─ E a que senhor teria que servir se não ao meu?
CALIBAN ─ A ti mesmo.
TRÍNCULO ─ Meu senhor é muito poderoso, é melhor obedecê-lo.
CALIBAN ─ Você não percebe, traidor miserável, que ele só é forte
porque usa o teu braço? Sua força é a tua força. Você tem medo do chicote que
você mesmo empunha?
TRÍNCULO ─ Assim são os costumes. Eu estou acostumado a obedecer,
obedeço.
CALIBAN ─ E porque não obedece a mim? Você não percebe que você é
meu irmão? Porque não me obedece a mim e juntos estrangulamos o tirano?
TRÍNCULO ─ Não. Esse é o costume: eu necessito um senhor. A-ten-ção!
CALIBAN ─ (GRITA) Eu sou o teu senhor! Ordeno que você mate o
invasor Próspero!!!!
TRÍNCULO ─ Não posso. Eu deveria estar acostumado a obedecer ao meu
irmão e não estou. Teria que estar acostumado a estas transformações.
CALIBAN ─ Puta merda, que você disse a verdade. As pessoas precisam
se acostumar as transformações. Você tem toda a razão. Mas, caramba, é preciso
começar.
TRÍNCULO ─ Vamos ver, comecemos.
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Era eu um cozinheiro
me faz mal tanto calor;
com pontapés na minha bunda
me despediram, aí que dor.
CANÇÃO DA IDENTIDADE
E eu quem sou?
Quero me ver.
E eu quem sou?
quem devo ser?
E eu quem sou?
Quero me ver.
E eu quem sou?
Quem quero ser?
FERNANDO ─ Me parece justo que o pai dela submeta meu amor a duras
provas. Eu devo demonstrar merecer minha amada Miranda. Me parece justo que
sejam provas árduas e cansativas. Galhardamente eu as cumpriria todas. Assim, por
exemplo, cavalgar através de sete montanhas, duelar com setenta inimigos, com
espada, florete e canivete, cruzar a nado de costas o terrível riacho, estas sim são
nobres provas que eu estarei disposto a afrontar. Mas me fazer lavar os pratos e, o
que é pior, as roupas íntimas de minha amada... Ah, meu Deus, e faz uma semana
que a coitada está num daqueles dias, que horror! Minha amada chora quando me
vê trabalhar, mas diz que o seu pai quer deixar bem claro quem é o galo do
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MIRANDA ─ O amor.
FERNANDO ─ Eu não tenho a menor ideia
MIRANDA ─ Pensemos.
FERNANDO ─ Imaginemos.
MIRANDA ─ Eu acho que...
FERNANDO ─ Sim, pode ser...
MIRANDA ─ Você acha?
FERNANDO ─ Podemos experimentar.
MIRANDA ─ (CONTENTE) É verdade, agora eu me lembro. Alguém me
contou. Ou será que eu escutei alguém dizer? Pode ser que tenha sido o Caliban.
Sim, foi ele, e pior que dizer, ele quis fazer comigo (ORGULHOSA) Eu sou virgem
mas mesmo assim vou te ensinar.
FERNANDO ─Como é que se faz?
MIRANDA ─ (VITORIOSA) É preciso cruzar.
FERNANDO ─ (PERPELXO) Cruzar o que?
MIRANDA ─ E eu sei lá? Tudo o que puder
FERNANDO ─ E o que nós podemos cruzar? Ah, já sei: as mãos.
MIRANDA ─ Já estão cruzadas.
FERNANDO ─ As pernas.
MIRANDA ─ Assim? (TENTAM)
FERNANDO ─ Ah, que difícil é fazer amor. (MIRANDA CHORA) Pelo papai?
MIRANDA ─ Não: de felicidade.
FERNANDO ─ E é só isso?
MIRANDA ─ Acho que falta alguma coisa que eu me esqueci... Não me
lembro o que era.
FERNANDO ─ As mãos e as pernas... E o que mais podemos cruzar?
MIRANDA ─ Eu sei.
FERNANDO ─ O que?
MIRANDA ─ As línguas.
FERNANDO ─ Será que pode?
MIRANDA ─ Vamos tentar.
FERANDO ─ Vamos lá. Você primeiro. (TENTAM.MIRANDA CHORA) De
felicidade?
MIRANDA (TEM UM ATAQUE) ─ Não, não e não.
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PRÓSPERO ─ Perdão, Fernando meu amigo, todas essas provas que você
sofreu. Mas hoje me dia, ninguém sabe o que é que pode acontecer, e é melhor
estar preparado para qualquer coisa. Eu mesmo, sou o senhor desta ilha. Mas
Calibán preparou contra mim um terrível complô!! Até quando serei senhor?
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Nenhum homem pode dizer que é feliz antes de descer à sepultura, com toda a sua
felicidade como mortalha. De um lado Calibán, de outro o Rei, teu pai! Tenho de ser
rápido! (ENTRA MIRANDA VESTIDA DE NOIVA). Aí está: eu te darei de presente o
que você conquistou como teu esforço. É urgente que se faça já o casamento. Este
feliz happy-ending me resolverá todos os problemas: depois da cerimônia vocês
devem ir correndo ao meu quarto e dar livre trânsito aos seus apetites.
FERNANDO E MIRANDA ─ Assim faremos, papi querido do nosso coração!
PRÓSPERO ─ De joelhos e ouçam minha benção. (ARIEL E OS DEMIAS
FAZEM O PAPEL DE PADRINHOS E DEMAIS PARTICIPANTES DA CERIMÔNIA
DE CASAMENTO – DEVE ESTAR SEMPRE PRESENTE, EM TODA CERIMÔNIA O
CARÁTER BURGUÊS MERCANTILISTA DESTE CASAMENTO. OS VERSOS SÃO
DISTRIBUÍDOS POR TODOS OS PARTICIPANTES)
CANÇÃO DA BODA BURGUESA
DECLAMANDO ─ Com estes três filhos terão três poderes, terão a força do ouro,
da fé e do trabuco.
Muitos frutos, muitas flores
escravos e todas as bênçãos
terão de tudo meus filhos
aprendendo estas lições:
Não queiram nunca lutar
com os mais fortes: concórdia
aos pobres que estão embaixo,
duros, sem misericórdia.
O destino aos fortes mima/ terão riqueza e longa vida;
esta é a lei bem conhecida : / se trepa pisando em cima.
(DECLAMAM ENQUANTO DESFILAM DIANTE DO CASAL E AFOGAM OS
NOIVOS EM UMA MONTANHA DE EMBRULHOS DE PRESENTES, COLORIDOS)
─ que sempre fiquei cheia suas dispensas de centeio ,cevada e
aveia;
─ que nunca lhes falte o trigo, o vinho e o azeite;
─ que sobrem azeitonas, o gado e o pescado;
─ e garbanzos, cebolas e viados?
─ que sejam severos, violentos e agressivos;
─ intransigentes e duros!
─ que nunca lhes faltem criados, amém!.
─ e mordomos, amém;
─ cozinheiros, padeiros e forneiros, amém.
─ amém, amém, amém !!!
PRÓSPERO ─ Ita boda est, À cama, ao ataque !!!!
FERNANDO ─ Papi, papaizinho querido do meu coração, vem com a gente
para ensinar como é que se faz.
PRÓSPERO ─ Tem livro pra tudo. Leva este que é um tesouro dinamarquês.
(SAEM OS DOIS, CONTENTÍSSIMOS E DANDO GRITINHOPS FELIZES). Quase
me esquecia da criminosa conspiração de Calibán e seus sequazes! Tenho que me
preparar para a batalha!!
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FERNANDO ─ Papai... então você não morreu? Eu ainda não sou o Rei de
Nápoles? Que decepção...
PRÓSPERO ─ Um filho digno de seu pai...
REI ─ Ainda não.. e eu não espero ver esse dia...
FERNANDO ─ Ah, estou muito cansado, já não aguento mais...
MIRANDA ─ Quer dizer que eu então ainda não sou Rainha? Ora veja...
PRÓSPERO ─ Calma, calma, minha filha, já está tudo preparado! Uma
grande sociedade mercantil!
MIRANDA ─ Ah, admirável mundo novo...
GONÇALO ─ Sim, mas nos falta ainda...
PRÓSPERO ─ Que?
GONÇALO ─ Antônio e Sebastião ficarão aqui na ilha, mas como iremos
nós regressar à Itália? Em que navio?
PRÓSPERO ─ Não se esqueçam das minhas mágicas artes. Com muitas
chicotadas fiz o milagre de obrigar os marinheiros a consertarem os cascos
destroçados... Aí vem o Capitão.
GONÇALO ─ O homem que não tinha cara de afogado? Responde agora,
blasfemo, você que amaldiçoava a bordo por qualquer coisa, não te sobrou um
palavrão agora pra praia? (CRUEL, BATE NELE)
CAPITÃO ─ Perdoem Vossas Mercês, mas os navios já estão prontos para
partir.
MIRANDA ─ E as minhas malas? As minhas malas, papai, paizinho querido
do meu coração, aonde estão minhas oitenta malas que estavam aqui? E os
presentes do casamento? E os meus vestidos? E a camisola d noite de núpcias? E
os meus anéis, meus colares e minhas joias? E as minhas malas, aonde estão
minhas oitenta malas?
PRÓSPERO ─ Calma, calminha, Miranda. (ENTRA ANTÔNIO COM
REVOLVER E CHICOTE DANDO CHICOTADAS EM CALIBÁN, TRÍNCULO E
ESTEVÃO QUE ENTRAM CARREGANDO AS MALAS DE MIRANDA).
ANTÔNIO ─ Adiante, bestas! Depressa, canalhas! Mais rápido, animais! Eu
vou matar a chicotadas aquele que for mais preguiçoso!!
TRÍNCULO ─ Temos que amar nossos senhores em cima de todas as
coisas!!
CALIBÁN ─ Temos que aprender boas palavras e bons costumes.
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Roda o mundo,
roda, roda,
passa o tempo,
passa, passa,
ganha o rico,
sempre ganha,
perde o pobre,
sofre, sofre,
sempre espera,
nunca alcança,
vive sempre,
a trabalhar,
já perdeu a esperança,
já não pode confiar.
Roda o mundo,
roda, roda,
passa o tempo,
passa, passa.
Fim de
A TEMPESTADE.
Augusto Boal/ Junho 1974.
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