Você está na página 1de 54

1

AUGUSTO BOAL

A TEMPESTADE
DE AUGUSTO BOAL
BUENOS AIRES,1974

(Versão em Português)
2

A TEMPESTADE
De Augusto Boal, música de Manduka

1. EM UM NAVIO.TEMPESTADE.MÚSICA.

MARINHEIROS ─ Cuidado! Cuidado!


─ Vamos encalhar!
─ Soltem as velas!
─ Rema, rema!
─ Serenidade!
─ Ciclones! Furacões!
─ Tempestade! Tempestade!

CAPITÃO ─ Voltem vossas mercês aos vossos camarotes!


ANTÔNIO ─ Senhor: Somos fidalgos!
CAPITÃO ─ Mais vale um plebeu que me ajude a cem nobres que me encham o saco!
ANTÔNIO ─ Animal! Sabes que é este?
FERNANDO ─ Sou o filho do Rei!
CAPITÃO ─ Está de parabéns!
ANTÔNIO ─ E este, sabes quem é?
SEBASTIÃO ─ Sabem quem sou? ... ainda que não o pareça?
CAPITÃO ─ Sabemos de sobra
ANTÔNIO ─ É o irmão do Rei!
CAPITÃO ─ Que sorte!
REI ALONSO ─ E eu? Sabes quem é a minha real pessoa?
CAPITÃO ─ Eu vos conheço, senhor, mas se não forem todos embora, melhor vão
vos conhecer os tubarões!
3

ANTÔNIO ─ É nada menos que o próprio Rei em pessoa!


REI ─ Ordeno pois que retorne a razão aos espíritos, que retorne o amor aos
corações, e que retorne enfim a calma a estes mares!
Sendo quem sou, ordeno que cesse a Tormenta! Que as apaziguem as ondas e
serenem os ventos!
CAPITÃO ─ Senhor, eu ordeno que retornem Vossas Mercês aos vossos camarotes!
Nós sabemos quem sois, mas a tempestade não! E o furacão não conhece realeza!
REI ─ Se assim é, gravemente se terá enganado a tempestade!

CANÇÃO DA TEMPESTADE EQUIVOCADA1

CAPITÃO E MARINHEIROS ─ Rema, rema, solta a vela


cruzam raios, sobem ondas,
rema, rema, solta a vela,
sopra o vento, cai a chuva,
rema, rema solta a vela
ondas livres do mar,
nada pode acalmá-las (ou por nada vão se calar!)
Algo anda errado com o Furacão,
anda equivocada essa tempestade! (ou – estará
equivocada essa tempestade)

NOBRE ─ O soldado que batalha


obedece ao general:
sua vida inteira oferece,
coisa que é bem natural.
Morrer pelo seu Senhor
em sua vida é normal. (CORO:BIS)

CAPITÃO ─ Mas ao vento e furacão


nada o poderá parar

1Todos os conteúdos em vermelho e/ou parênteses foram anotações adicionadas à caneta por Augusto Boal
no original datilografado
4

os raios e as trovoadas
( ou- nem a esta tempestade
nada a poderá deter)
não conhecem autoridade.

CORO DE MARINHEIROS ─ Algo anda errado com a autoridade


Anda equivocada essa tempestade

NOBRE ─ Operário e camponês


e todos se Sua grei
trabalham por toda vida,
trabalham para o seu rei.
Boa gente que aprende
a respeitar a nossa lei. ( Coro – Bis)

CORO DE MARINHEIROS ─ Mas ao vento e furacão


nada pode parar:
os raios e a trovoada
não conhecem a autoridade!
Algo anda errado com o furacão,
anda equivocada essa tempestade;
anda equivocada a autoridade,
aqui já não manda a autoridade!

Rema, Rema, etc. (A MÚSICA SEGUE EM BG.)

GONÇALO ─ (AO REI) ─ Este capitão me tranquiliza muito: não tem a


fisionomia de um afogado. Antes parece ter o corpo e a postura perfeitos para a
forca. Se o seu destino é morrer pendurado de uma corda estamos salvos! Caso
contrário, nossa situação é bem miserável.
ANTONIO ─ Temos que matar esse capitão.
REI ─ Durante as tempestades o coração do Rei se torna
magnânimo! Eu perdoo de todo o coração. (RUÍDOS).
FERNANDO (ASSUSTADO) ─ E agora que acontece???
5

CAPITÃO ─Estourou uma greve entre os marinheiros: como os seus filhos


em terra morrem de fome, eles preferem morrer afogados a voltar para casa...
REI ─ Agora nada de greves! Isso vai contra os meus princípios, mas
como não há mais remédio, é melhor dar alguma coisa de comer a esses
marinheiros, até que cheguemos a porto seguro. Que comam, pelos menos durante
a tempestade!

MARINHEIROS ─ Tudo está perdido.


─ Vamos rezar!
GONÇALO ─ Por que? Há esperança?
MARINHEIROS ─ Não, rezem por suas almas!
─ Adeus, minha mãe.
─ Adeus, minha irmã.
─ Que lindo morrer com um rei a bordo.
─ E que triste não poder conta-lo aos netinhos ...
─ Adeus minha tia, que me ensinaste o amor ...
FERNANDO ─ Morro com o coração cheio de esperanças ...
REI ─ E eu com as arcas cheias de mercadorias que não cheguei a
vender.
FERNANDO ─ Morro virgem sem conhecer donzela ...
REI ─ E eu sem concretar os meus negócios ...
GONÇALO ─ Que se faça mais uma vez a vontade do Altíssimo. Mas eu
teria preferido morrer de morte seca ...

CORO TORNA A CANTAR O REFRÃO

2. CASA DE PRÓSPERO, EM UMA ILHA DESOLADA.

MIRANDA ─ Papaiê, ah, papaie! Eu sei que foi você, foi você, mau, foi você
o culpado! Com as tuas artes mágicas, você fez rugir as ondas selvagens. Ah, papai,
papai querido do meu coração, como você me faz sofrer!
PRÓSPERO ─ Calma, calminha.
6

MIRANDA ─ Que terríveis visões viram meus olhos virginais! Um bravo


navio, sem dúvidas com nobres criaturas dentro, se partiu em mil pedaços. Ah,
papai, papai querido do meu coração, salva esse nobre carregamento de almas!
PRÓSPERO ─ Diz ao teu coraçãozinho que nada de mal aconteceu!
MIRANDA ─ Dia aziago!
PRÓSPERO ─ Tudo está controlado. E tudo se faz em teu benefício. Eu,
Próspero, teu pai, com minhas artes mágicas e um pouco de sorte, já que esta é a
estação dos ciclones e tempestades, eu fiz tudo isto! Eu! E tu nem sequer sabes
quem sou! Próspero, o dono desta ilha quem é? Quem sou?
MIRANDA ─ Ah, papai querido, deixa de bobagem: você é o meu pai e isso
me basta. Que bom!
PRÓSPERO ─ Não, não basta: é necessário saber tudo: vou te contar a
história de minha vida! Prepara-te!
MIRANDA ─ Sim, papai querido, espera um pouco. (PREPARA UMA
CAMINHA PARA DORMIR.) Pode começar.
PRÓSPERO ─ Que sabes tu da sua infância? De que te lembras?
MIRANDA ─ Quando eu era pequenininha tinha 4 ou 5 mulheres que
tomavam conta de mim. Papaizinho, era tão bom. Eu não fazia nada, nem sequer
me lavava as partes mais íntimas. Papai queridíssimo!
PRÓSPERO ─ E de que mais te lembras?
MIRANDA ─ Quem que me lavava eram as 4 ou 5 mulheres. Uma era a
minha preferida.
PRÓSPERA ─ Inocente criatura: claro que sim. Eu era o Duque! Tua mãe era
um modelo de virtude, e além disso muito feia e nada apetecível. Sim, sou teu pai.
Vou cantar a tragédia da minha vida. “Canção da traição Fraterna!” (CANTA)
CANÇÃO DA TRAIÇÃO FRATERNA.

Fui príncipe poderoso,


de linhagem sem igual;
estudava as Ciências
e isso me foi mortal!
Tinha eu cruel irmão,
Cruel coração venial –
Esse mau irmão Antônio
7

Me roubou o poder temporal.


Me expulsou de Milão,
depois de uma luta campal.
Rei Alonso, Rei de Nápoles,
senhor do poder nacional,
confirmou a esse traidor
que nos fez tanto mal ...
Pude eu fugir de pressa
com o meu anjo celestial (TOMA-A NOS BRAÇOS)
e chegamos a esta ilha,
do caribe tropical,
tão selvagem e primitiva
triste, sozinha, abismal!
Aqui reinava Sicorax,
velha bruxa bestial,
a quem venci a patadas
com elegância mortal:
destruí o seu reinado,
a sua horda infernal:
a negra feitiçaria
minha branca magia real
assestou civilizado
e belo golpe final

MIRANDA ─ Bravo, papaié, papaiê. Bis, bis, bis !!!


PRÓSPERO ─ Assim foi, minha filha. Na Europa, todos os nobres se
entrematavam. Hecatombes, incêndios, estupros! Violações, destruições, explosões,
enfim a civilização. E a mim, bom perdedor, a mim me coube civilizar esta ilha
barbara!
MIRANDA ─ Você foi muito heroico, papai, não resta dúvida! Estou muito
interessada nas tuas histórias. Conta mais, conta mais ... (DORME).
PRÓSPERO ─ Quando aqui chegamos, perdoei a vida a alguns escravos, ao
bom Ariel e ao diabólico Calibán! Todo o meu cuidado foi com a tua educação, e
8

assim foi que pudestes crescer sem pecados e cheia de virtudes. Agora finalmente,
quis o destino – e quis também a necessidade comercial de conquistar novos
mercados – conduzir meus inimigos as minhas praias. Estão dentro desse navio que
naufragou: o Rei de Nápoles, Alonso; Antônio, meu cruel irmão; Gonçalo, que me
salvou a vida, velho e dedicado Gonçalo que me encheu as malas com meus livros
de artes mágicas e ciência ficção, livros que estimo mais que ao meu ducado, e
Fernando ..., ah, já te direi meus planos sobre esse jovem filho do rei. (ELA
DORME). Miranda. Outra vez dormindo? Raios! Creio que a eduquei demasiado
bem! (GRITA PARA FORA). Vem cá, lacaio! Não tenho tempo a perder! Apareça
meu fiel servidor! Vem, doce e podre lacaio meu! (ENTRA ARIEL QUASE SEM
FÔLEGO).
ARIEL ─ Ai, ai,ai,ai,ai,ai! Salve, mestre! Aqui estoy para cumprir todos
os teus desejos, todos! Ordena e assim será feito! Se quiseres voarei pelos ares,
mergulharei no fogo, cavalgarei nas nuvens de cachinhos brancos, ou me perderei
no fundo do mar azul. Ordena, mestre, ordena, e assim será!
PRÓSPERO ─ Por enquanto, ordeno calma! Nada de excessos! Conta como
fizestes a tempestade que eu te ordenei.
ARIEL (COM A VOZ ROUCA DE SATISFAÇÃO) ─ Barbara, mestre,
verdadeiramente tártara! Eu realizei maravilhas! Ai, como fiquei nervoso! Voando
pelos ares em cima do navio real, me dividindo em dois para botar fogo a proa e
popa ao mesmo tempo, as velas e a casa de máquinas, um verdadeiro piromaníaco,
eu! Mestre, que fogo que eu fiz, que fogo! (RISO HISTÉRICO). Os estampidos das
detonações sulfúreas assustaram tanto a esses pobres, oh, que todos começaram a
fazer coisas absolutamente desesperadas. Que excitante, mestre, que maravilhoso!
Foi tártaro! Fernando, o delicado filho do rei, foi o primeiro que saltou em terra firme,
assim que o navio incendiado se aproximou da praia! O pobre menino real gritava
assim: “Meu Deus, socorro, me acudam! O inferno ficou vazio e todos os diabos
estão aqui comigo! Socorro! Socorro!” Pobrezinho.
PRÓSPERO ─ Muito bem, Ariel, você é um gênio. E agora, aonde estão
todos?
ARIEL ─ Todos estão ótimos, não perderam nem um fio de cabelo, nem
o brilho das suas joias e dos seus vestidos ..., tudo europeu, modelos chiquérrimos,
uma formosura patrãozinho ... Mas você não entende disso. Seguindo tuas ordens,
eu fiz que todos dormissem espalhados pela ilha.
9

PRÓSPERO ─ Tenho um novo trabalho pra ti.


ARIEL ─ Ai, mestre, você não pode fazer isso comigo. Não, não e não!
Decididamente não, nunca, nunca mais! Você me prometeu, mestre, ou já não se
lembra mais? Já não se lembra, gracioso senhor? Vamos ver: que foi que eu te pedi,
que foi? Que foi que eu te pedi?
PRÓSPERO ─ Fala, mal-humorado, mas devagar, calma, devagar...
ARIEL ─ Minha liberdade! Nada mais, nada menos: minha li-ber-da-de!
Mais devagar é impossível.
PRÓSPERO ─ E eu vou te conceder a liberdade, mas não antes que se
cumpra teu tempo de escravidão.
ARIEL ─ Já passou mais de um ano ...
PRÓSPERO ─ Você já se esqueceu dos terríveis de que eu te salvei?
ARIEL ─ Não, não, não. Mas isso não tem nada que ver, nada!
PRÓSPERO ─ Já te esquecestes de Sicorax?
ARIEL (DESESPERADO GRITA). ─ Ááááááááááááááiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii ! Aquela
bruxa?! Oh, claro que não! Como poderia me esquecer? Nunca! A malvada, como
me torturava, como me fazia padecer dores atrozes!
PRÓSPERO ─ Eu vou te refrescar a memória: vou te contar as torturas que
sofrias. Os teus gemidos faziam ladrar as serpentes, e enfureciam os bichos
preguiça.
ARIEL ─ Basta! Basta! Anahahananah! Basta!
PRÓSPERO ─ A negra Sicorax te obrigava a trabalhar no campo, arar a terra,
semear a cana nos canaviais, ... a ti, um homem tão delicado, tão sensível ...
lavrando a terra como um qualquer ... semeando, colhendo ...
ARIEL ─ Aiaiaiaiaiaiaiaia! (PRÓSPERO PRESEGUE-O COM A
LEMBRANÇA ATROZ).
PRÓSPERO ─ Moer o açúcar, construir a tua própria casa, estudar todas as
noites, enfim, eram essas as terríveis torturas que sofrias. Ela te fazia trabalhar para
comer: imperdoável!
ARIEL (DESMAIADO) ─ Ai, mestre, não digas mais. Serei teu escravo toda vida.
(CANTA).
CANÇÃO DE HORROR AO TRABALHO
Por toda vida serei o teu lacaio,
meu amor inteiro tu terás;
10

mas que nunca tenham minhas mãos


que trabalhar; meu guardião serás.

Serie teu lacaio por toda vida,


ai, meu mestre, que horror ao trabalho;
ai, meu mestre, me darás guarida
e o trabalho que vá pro caralho.
(FALANDO). Ai que horror: cala-te boca, e não digas mais.
PRÓSPERO ─ Como você é diferente de Calibán, o filho da bruxa, o monstro,
selvagem, indigna criatura, macaco, escorpião!
ARIEL ─ Não me fala dessa pessoa. E diz logo de uma vez o que é que
você quer que eu faça.
PRÓSPERO ─ Uma coisa que vai te dar muita alegria. Você vai se fantasiar
de ninfa do mar.
ARIEL ─ Eu, uma ninfa??? Que ideia ...
PRÓSPERO ─ Visível apenas para mim, invisível para todos os outros
demais.
ARIEL ─ Ai patrãozinho, como é divertido trabalhar para você. Vou e
volto com a rapidez de um raio que me parta! Adeus. (SAI COMO UM BALHARINO).
PRÓSPERO ─ Acorda, Miranda, vamos já falar com Calibán.
MIRANDA ─ Ah, papai, eu não gosto desse homem.
PRÓSPERO ─ Nem eu, mas ele nos presta serviços, traz a lenha e faz outros
trabalhos pesados. Vem, Calibán.
CALIBÁN (DE DENTRO) ─ Tem muita lenha aí dentro. Basta explorador miserável.
PRÓSPERO ─ Vem assim mesmo, sapo repugnante! Tem mais trabalho pra
fazer! Tem mais trabalho para fazer! (ENTRA ARIEL VESTIDO DE NINFA DO MAR,
ETÉREO, BAILANDO COM MÚSICA). Que sublime aparição. Desde que eu quero
te dizer uma coisa no ouvido. (ARIEL SE APROXIMA). Bzbzbzbzbzbzbzbbzbzbzbz.
ARIEL ─ Assim será, meu Senhor. Ho, ho, ho! (SAI BAILANDO).
PRÓSPERO ─ E agora você, escravo venenoso, engendrado pelo próprio
diabo no ventre de tua horrível mãe, vem que eu estou te chamando! (ENTRA
CALIBÁN).
11

CALIBÁN ─ Que o ar pestilento e apodrecido de minha mãe varria com


pluma de corvo no infecto pantanal caia sobre vocês dois. Que um vento de
marimbondo sopre sobre vocês cobrindo suas peles de úlcera.
MIRANDA ─ Bzbzbzbzbzbzbz.
PRÓSPERO ─ Por isso que estás dizendo, os ouriços vão se alimentar da tua
carne imunda. Tua pele vai ser metralhada por tantas picaduras como um favo de
mel. E cada buraco vai te doer mais do que se fossem feitas pelas abelhas!
CALIBÁN ─ Esta ilha me pertence, e você me roubou! Quando você veio
pela primeira vez, eu acreditei em você, e você me corrompeu” Me deu o supérfluo,
e eu te dei minha terras. Me deu colares, espelhos e anéis, e eu te ofereci meus rios,
minhas praias e meus campos. Que sobre ti caiam todas as maldições da terra! Que
te matem os escorpiões, sapos e os morcegos. Você reina em minha terra e eu sou
escravo em meu país!
PRÓSPERO ─ Mentiroso! A ti te podem comover as chicotadas, nunca a
bondade! Você é esterco, e eu te tratei humanamente; até em minha casa te recebi,
até que tentou violar a honra de minha filha.
CALIBÁN ─ E se não fosse porque você chegou de repente, eu teria
povoado a ilha com multidões de calibanzinhos ...
MIRANDA ─ Arararararararrrrrrrrrrrr !
PRÓSPERO ─ Malagradecido. Eu te ensinei tudo, tudo! Até a língua que você
fala, fui eu que ensinei!
CALIBÁN ─ Você me ensinou a tua língua e eu te agradeço: assim posso
te amaldiçoar certo de que você vai me compreender. (MÚSICA DE INSPIRAÇÃO
NORTEAMERICANA, GRITOS, SONS, DESEPERO, GUITARRA ELÉTRICA,
MUDANÇAS FEROZES DE LUZ, CALIBÁN AGARRA O MICROFONE E COMEÇA
A FALAR DENTRO DO RITMO – AMBIENTE DE SHOW DE MÚSICA BEAT). Você
me ensinou a tua música; obrigado – canta e dança comigo! Eu quero te amaldiçoar
mas você diz que você é bom. Supondo que Próspero não fosse Próspero, que
fosse outra! E supondo que esse outro, que não é Próspero, me odiasse porque sou
o dono do meu país, e viesse com seus navios e bloqueasse minhas terras, e
lançasse bombas de fósforo vivo para queimar as carnes dos meu irmãos e minhas
irmãs, e bombas e canhões que destruíssem as casa de meu pai e minha mãe, -- se
isto fosse verdade, e é verdade que pode ser – se isto fosse verdade, é certo que
12

você cantaria junto comigo: “Que Todas as Pestes do Mundo Caiam sobre os
Invasores!”
“QUE TODAS AS PESTES DO MUNDO CAIAM SOBRE OS INVASORES!”
Que todas as pestes do mundo caiam sobre os invasores
os invasores
os invasores!!
Que sejam suas cidades destruídas
por ciclones, ventos e furacões;
que se infestem suas praias
de piranhas e tubarões.
Que todos os males açoeitem aos invasores
aos invasores
aos invasores!
Que a água dos seus rios se infectem
com os corpos apodrecidos de todo gado,
que com as bombas que fez explodir
se engasguem todos soldados!
Que em suas montanhas explodam os vulcões
cuspindo lava bem quente,
onde se afoguem os ricos
e todos os seus parentes!
(FALANDO ENQUANTO SEGUE O RITMO E O CORO CANTA) ─ Porque te
assustas, Próspero? Não peço nada contra eles que já não tenham feito contra nós!
E ainda não pedi a Deus que arrebente seus diques para inundar suas cidades!
CORO (CANTA) ─ Que Deus os afogue
Que rompa seus diques;
Que só morte e violência
Nosso Deus lhe dedique
(FALANDO) ─ Ainda não pedi a Deus que lhes devolva todos os males que
causaram aos meus irmãos e as minhas irmãs. Por que te assustas Próspero, se eu
ainda nem comecei.
CORO ─ Back on you, back on you!
Back on you, back on you!
All you bones, you pale face, back on you!
13

You lazy dogs, back on you,


You pale face, your deadly dogs
You sicky brains, your bloody dogs,
All your bombs, you dogs, you
back on you, back on you!
You’ll get your pay, one day
CALIBÁN (FALANDO) ─ E para seus juíces?
CORO ─ Para as juíces do seu tribunal
Pequenos cérebros perversos,
Cheios de aleivosia,
Que ditam presença fatal
Contra o pobre, o que trabalha,
Mais ao que tem o seu caudal
A esse absolve fagueiro:
Que se encham suas cabeças
De todo o câncer mortal.
CALIBÁN (FALANDO) ─ E a os seus ministros que mal, que mal?
CORO ─ Que sequem suas mãos
E se seguem seus olhos
Que cuspam suas línguas
Que caguem as tripas
Que cortem as pernas
e corcundas nas costas
Isso tudo e pior lhes passe
Esta é nossa vontade!
CALIBAN (FALANDO) ─ E para a gendarmaria, que mal podemos lhe desejar,
que mal?
CORO ─ Que nunca recobrem
a inteligência.
Só as bestas são capazes
Da sua agência
Que nunca recobrem
A inteligência.
CALIBAN (FALANDO) ─ E para o seu chefe?
14

CORO ─ Que mal lhe podemos desejar,


que sofra todos os povos
que cruel manda matar?
CALIBAN ─ E agora ao presidente
um criminoso indecente
quero que tenga uma úlcera
que lhe coma o duodeno
hemorroidas em bunda e boca
Que não o deixem sereno
Que se transforme a língua
em uma cobra venenosa
que fure seus olhos
com força espantosa
que grite se urine e se cague
que sofra bastante
que de todas as doenças
tenha dose de elefante:
hepatite, laringite, furunculose,
verminose, tuberculose, apendicite,
amidalite, nefrite , e cirrose,
e trombose, esclerose, e meningite.
Quero que lhe caía o nariz, o pênis e a orelha
E não se escape por um triz.
CORO ─ Let it blow, Up, up, up
It must be so, go up and blow
let him blow, Up, up ,up,
let him blow! Go up and blow!
CALIBÁN ─ Que vivo vá para o inferno
que sofra toda a dor
que pague por todas as mortes
de que foi causador.
A todos os meus agentes
e ao seu brutal imperialismo (ou colonialismo)
que sejam já destruídos
15

por colossal cataclismo!


(BUSCAMENTE SE APAGA A LUZ DE SHOW MUSICAL, LONGO SILÊNCIO)

CALIBÁN ─ Senhor esta é sua língua, você me ensinou eu aprendi.


E te agradeço.
PRÓSPERO ─ Fora daqui maldita semente de bruxa! (LEMBRANDO-SE) ─ E
volte com a lenha!
CALIBÁN ─ Maldito! (SAE)
PRÓSPERO ─ Miranda, filha querida: em minha língua também se pode
cantar cantos mais suaves. Vem Ariel, e canta uma canção que seja doce. (ENTRA
ARIEL. FERNANDO O SEGUE DESDE LONGE)
ARIEL (CANTA ─ CANÇÃO DA LIBERDADE BURGUESA)
Antes eu era escravo,
homem livre só agora
não trabalho e nada faço
nada mais minh’alma implora.
Livre como vento livre
trepando , colhendo flores
trepando em montes floridos.
Longe ficaram as dores
Trepando, vida trepando
Trabalhem outros por mim:
Eu gosto da vida assim.
PRÓSPERO ─ É verdade, muitas coisas diferentes podem ser ditas com a
mesma língua
FERNANDO ─ (DE LONGE COMO HIPNOTIZADO) ─ De onde virá essa
música celestial? Ah! que doce melodia ... em que plantas, em que montes, estarão
trepando? Em que flores? Ah, minha vida, e eu aqui tão solitário....
ARIEL ─ (ESCONDIDO DE FERNANDO) ─ Sou uma ninfa do mar.
Ninguém pode me ver, mas eu a todos vejo. Daqui vejo o teu pai, perdão, seu
esqueleto ... seus olhos agora são pérolas, seus cabelos algas marinhas ...
Teu papai morreu.
FERNANDO ─ Não é verdade, não pode ser ...
PRÓSPERO ─ ( A MIRANDA) ─ Me conta o que você está vendo?
16

MIRANDA ─ (COMO QUE HIPNOTIZADA) ─ Um espírito, algo divino,


porque na natureza jamais se viu uma figura tão formosa.
PRÓSPERO ─ Tudo caminha como desejava meu coração.
FERNANDO ─ (VENDO MIRANDA) ─ Ah, esta é com certeza a Deusa a
quem cantavam antes. Cantarei eu também.

DUETO DO PREÇO DA VIRGINDADE

FERNANDO─ Bella Tempestade me fez


conhecer mulher formosa
e a branca luz no céu
triste suspira invejosa
Diz-me bela, si tu és virgem
Casamos, serás formosa.
MIRANDA─ Miranda me chamo, senhor.
FERNANDO─ Fernando teu servidor
MIRANDA: Respondo vossa pergunta:
virgem sou por todas as partes
se homens aqui não há
que fazer? Com que arte
pudera me fazer florir
a boca, a bunda e os peitos?
Leva-me e já está feito.
FERNANDO─ Por isso venho criatura
que meu desejo me apura.
MIRANDA─ Não, não, não querido não.
antes tenho que saber
que vantagens que eu vou ter
se a ti me dou por mulher.
FERNANDO─ Serás deusa, amada amante
terás meu amor constante .
MIRANDA─ Quero algo mais pujante,
amor se desfaz num instante.
FERNANDO─ Sou príncipe e tu princesa
17

tua será a realeza


e se morre meu papá
rainha logo serás.
MIRANDA─ Se isso é verdade
tua será minha virgindade, --
se isso for verdade.
FERNANDO─ Que morra papá
Que morra papá
MIRANDA─ Que morra, que morra
que lindo será.
FERNANDO─ Que morra mamãe
e toda família
MIRANDA─ Que morra, que morra
que lindo será.
FERNANDO─ Tu serás rainha.
MIRANDA─ Tu serás meu rei. (ELE AVANÇA, ELA SE DEFENDE).
Mas antes, meu tesouro,
vamos cumprir com a lei. (MOSTRA O ANEL DE NOIVADO).
ARIEL (QUE ENTRA BAILANDO) ─ Teu papai está bem morto, um passarinho me
contou.
FERNANDO─ Que lindo morreu papai.
papá, papá, papá.
O trono de Nápoles,
vacante está.
Papá, papá, papá. (VÃO SE BEIJAR DURANTE O DUETO
QUANDO ENTRA BRUTALMENTE PRÓSPERO E INTERROMPE A FESTA).
PRÓSPERO ─ Para , para com isso, estúpido! Está pensando que vai levar
minha filha assim sem mais nem menos? Tira a pata de cima! Que é que você está
pensando? Se te ouvisse o Rei de Nápoles?!!
FERNANDO ─ Le Roi est Mort! Vive le Roi: moi même, Fernandô! Roi de
toute l’Italie!
PRÓSPERO ─ Cala a boca, boçal! Você não sabe o que diz.
18

MIRANDA ─ Papai, por que você fala assim tão duramente com ele? Papai,
papai querido do meu coração. Este é o terceiro homem que eu vejo e o primeiro por
quem suspiro!
PRÓSPERO ─ E você o que entende de homens? Um dia sim, você vai
descobrir um mundo novo, admirável, maravilhoso, mas não agora. E você, meu
caro senhor, miserável, espião, traidor: em guarda. (TIRA A ESPADA).
FERNANDO ─ Socorro! Au secours! Que venham meus criados! Help! Aiuto!!
PRÓSPERO ─ Vou te amarrar os pés e as mãos, beberás água salgada e os
teus alimentos serão os moluscos, raízes secas e pedras das rochas, e eu te
obrigarei a trabalhar como um negro, de sol a sol, até que morras de cansaço e de
fome!
MIRANDA ─ Aguenta, meu amor, por meu amor aguenta tudo isso e um
pouco mais.
FERNANDO ─ Claro, claro que sim, meu amor, e se ele me mete uma
vassoura no cu eu posso aproveitar e dar uma varridinha na ilha ...
MIRANDA ─ Se você conseguir passar por essa prova tão dura, meu pai
enfim de concederá minha mão. Adeus. (SAI COMO UMA BAILARINA).
PRÓSPERO ─ Vai trabalhar, estúpido. (SAI FERNANDO). Tudo saiu como eu
queria.
ARIEL ─ Obrigado, mestre. (SAEM OS DOIS).

3. FLORESTA. ESTA TODA CORTE REUNODA EMBAIXO DE UMA


ÁRVORE. ENTRAM CANSADOS E SE JOGAM NO CHÃO.

GONÇALO ─ (CANTANDO) Eu tenho a minha opinião,


Cheguei a essa conclusão:
quando alguém é desgraçado
tem gente em pior estado.
ANTÔNIO ─ Não, não e não! A verdade é que o rei tem toda a razão do
mundo pra estar deprimido! Deixem que ele sofra! Que sofra tudo o que quiser
sofrer! Que sofra!
ALONSO ─ Isso é verdade, eu devo sofrer.
ANTÔNIO ─ Até arrebentar. Com o vosso perdão meu rei.
19

GONÇALO ─ Não, não e não! Lembrem-se da minha opinião: quando


alguém é desgraçado, sempre existe alguém em pior estado. E a vós Senhor, o que
foi que te aconteceu de tão mau?
REI ─ Morreu meu filho.
GONÇALO ─ Mas uma razão para ficar feliz e contente.
REI ─ Porquê?
GONÇALO ─ Por que tinhas um filho pra perder. E quanta gente passa a
vida inteira ser conseguir um herdeiro? E preciso sorrir...
ANTÔNIO ─ Sim, mas ele também perdeu o seu reino, perdeu seus
negócios, seus navios, suas mercadorias ...
REI ─ Perdi tudo o que tinha...
GONÇALO ─ Muito bem: e quantas pessoas serão tão felizes a ponte de ter
tudo isso pra perder?
REI ─ E pior, nessa ilha inóspita, sem a minha criadagem, sem
alimentos, qual pode ser minha sorte? A morte!
GONÇALO ─ Sorri feliz e contente. Lembra-te de todos os que já estão no
cemitério.
REI ─ eu não faço outra coisa: penso em todos os que já estão
mortos, penso no meu filho e por isso choro...
GONÇALO ─ (CANTA).
CANÇÃO DO SOFRER DE MAIS
Ouçam minha opinião –
cheguei a esta conclusão
quando alguém é desgraçado
tem gente em pior estado.

Muito feliz, sorridente,


o conde perdeu o condado;
exultante e contente, cantou:
tem gente em pior estado.

De suas vacas e bois


foi o fazendeiro roubado.
Tem gente em pior estado
20

Disse o homem iluminado.

Perdeu o pobre o futuro


E a colheita o campesino;
tudo muda, isso é seguro,
ninguém vence o seu destino.

ANTÔNIO ─ Este, quanto menos tem, mais quer perder...


REI ─ Ele tem a filosofia do pobre. Vou nomeá-lo Grande Predicador
do Povo. Todas as escolas terão uma matéria nova: Civismo e Sacrifício. Ele será o
catedrático. As massas bem que precisam de alguém que saiba explicar
filosoficamente a necessidade do sofrimento.
ANTÔNIO ─ Como seria pra ti a sociedade perfeita? Todos pobres,
miseráveis, e sofredores? Todos cheios de feridas e chagas? Como seria o teu
reino?
GONÇALO ─ Meu reino seria uma república. Seria tudo ao contrário do que
estamos acostumados. Não haveria nada: nem comércio, nem magistrados, nem
ricos nem pobres, nem contratos nem propriedades, nem trigo nem vinha, nem
trabalho nem lei, - só seria proibido proibir.

CANÇÃO ANARQUISTA

CORO ─ Como será a cidade – Ah, ah –


feita a felicidade – ah, ah.
GONÇALO ─ Será tudo ao contrário
do que agora existe:
nenhum costume nosso
ao bom senso resiste.

Nem letras nem letrados


não haverá, não haverá.
Nem tampouco magistrados
assim será, assim será.
Nenhuma indústria ou comercio
21

nem vassalos nem senhores –


todos soltos pelo mundo
nem mestres e nem doutores.
Sem pena ,sem lei,
não haverá nenhum rei.
Nenhum crime nem castigo.
Todos se vão divertir.
A única lei será:
Proibido proibir.

CORO ─ Que mais haberá por lá,


terra de felicidade?

GONÇALO ─ Isso sim, muitas mulheres,


por isso ninguém porfia.
Muita amor, e muita festa.
haverá muita alegria.

CORO ─ Quando virá esse dia?


Ah, quando virá?
Um dia assim, tão assim,
ah, quando será, quando virá?

(NO FINAL DA CANÇÃO ENTRAM ESTEVÃO E UM AMIGO E ESCUTAM)


ESTEVÃO ─ É nisso que dá quando as classes dominantes pensam em
felicidade para todos: viram todos anarquistas...
AMIGO BÊBADO ─ Grande verdade: ...
ESTEVÃO ─ Vamos embora que estes senhores, com uma ânsia de
felicidade para todos, são capazes de nos roubar o pouco vinho ainda temos.
AMIGO ─ Corre, corre, vamos fugir. (SAEM)
REI ─ Querido vassalo: não sei se foi o clima tropical ou se foi a tua
canção, massa verdade é que eu tenho vontade de dormir a sesta.
GONÇALO ─ Prefiro que tenha sido o clima.
ANTÔNIO ─ Velaremos vosso sono.
22

SEBASTIÃO ─Sim, sim, a canção, um pouco soporífera...


ANTÔNIO ─ Dormiram. Agora, Sebastião, vamos falar sério de coisas
práticas. Porque é rei esse bruto?
SEBASTIÃO ─ Meu irmão? Porque sim...
ANTÔNIO ─ Existem em Nápoles centenas de imbecis mais inteligentes
que este animal. Porque não reinam em seu lugar?
SEBASTIÃO ─ Por que não tem o direito.
ANTÔNIO ─ Mas você sim.
SEBASTIÃO ─ Mas eu... eu não sirvo pra nada...
ANTÔNIO ─ Eu te ajudo.
SEBASTIÃO ─ Eu conheço as minhas limitações. Eu não tenho cara de nada,
nem de idiota. E não é só a cara, é igual por dentro: eu sou capaz de todas as
incapacidades, tenho excesso de carências.
ANTÔNIO ─ Eu serei teu Ministro Plenipotenciário.
SEBASTIÃO ─ Mas o rei está vivo.
ANTÔNIO ─ Podemos matá-lo.
SEBASTIÃO ─ Como tu fizeste com o seu irmão? Próspero era duque de
Milão e agora estás em seu lugar.
ANTÔNIO ─ Alonso é o rei de Nápoles, mas não o será para sempre.
SEBASTIÃO ─ E a tua consciência?
ANTÔNIO ─ Vinte mil consciências estivessem em Milão e eu, nem um
segundo hesitaria. A mim me pode parar uma espada ou o menor punhal: nunca um
tratado de moral. E aí está o teu irmão; a terra sobre o qual repousa, bem poderia
repousar sobre ele.
SEBASTIÃO ─ Como conquistastes Milão, eu conquistarei Nápoles.
Desembainha a tua espada e eu a minha. Bastará um golpe e tu serás ministro do
rei que serei eu. (TIRAM AS ESPADAS).
ANTÔNIO ─ Matemos os dois.
(APARECE CALIBAN AO LONGE)
CALIBAN ─ Quero que todos os miasmas pestilentos que o sol absorve
dos pântanos e das podres águas estancadas, caiam sobre Próspero até asfixiá-lo.
Esse miserável, porco, múmia, gorilão, me faz trabalhar de manhã até a noite
carregando lenha e fazendo a sua cama, preparando a sua comida e limpando os
23

seus sapatos. Que morra esse infecto miserável e carcomido. (SEGUE COM SUA
CARGA DE LENHA. SEUS GRITOS DESPERTAM GONÇALO).
GONÇALO ─ Socorro, socorro!
REI ─ Que foi? Um complô contra a minha real majestade? Porque
essas espadas desembainhadas?
ANTÔNIO ─ Como? Vocês não escutaram? Uma manada de elefantes e
gorilas tropicais passou por aqui agorinha mesmo. Tiramos as nossas espadas para
defende-los.
REI ─ Que defendam também o meu filho perdido nessa floresta.
Vamos busca-lo. (SAEM. VOLTA CALIBAN E ATRÁS DELE TRÍNCULO ARMADO).
CALIBAN ─ Você é um vendido que se entrega de corpo e alma para
defender o invasor.
TRÍNCULO ─ (GRITA DE FORMA CASTRENSE) A-tem-ção! Le-var le-nha
ao fo-go! Hoje meu senhor prepara uma grande festa. (DÁ UMA CHICOTADA).
CALIBAN ─ Escuta, desgraçado: porque é que você serve ao teu senhor?
TRÍNCULO ─ E a que senhor teria que servir se não ao meu?
CALIBAN ─ A ti mesmo.
TRÍNCULO ─ Meu senhor é muito poderoso, é melhor obedecê-lo.
CALIBAN ─ Você não percebe, traidor miserável, que ele só é forte
porque usa o teu braço? Sua força é a tua força. Você tem medo do chicote que
você mesmo empunha?
TRÍNCULO ─ Assim são os costumes. Eu estou acostumado a obedecer,
obedeço.
CALIBAN ─ E porque não obedece a mim? Você não percebe que você é
meu irmão? Porque não me obedece a mim e juntos estrangulamos o tirano?
TRÍNCULO ─ Não. Esse é o costume: eu necessito um senhor. A-ten-ção!
CALIBAN ─ (GRITA) Eu sou o teu senhor! Ordeno que você mate o
invasor Próspero!!!!
TRÍNCULO ─ Não posso. Eu deveria estar acostumado a obedecer ao meu
irmão e não estou. Teria que estar acostumado a estas transformações.
CALIBAN ─ Puta merda, que você disse a verdade. As pessoas precisam
se acostumar as transformações. Você tem toda a razão. Mas, caramba, é preciso
começar.
TRÍNCULO ─ Vamos ver, comecemos.
24

CALIBAN ─ Responde minha pergunta: que diferença existe entre mim e o


teu senhor?
TRÍNCULO ─ Existem muitas. Ele tem mais autoridade.
CALIBAN ─ Assim? (IMITA A PRÓSPERO).
TRÍNCULO ─ Um pouco mais.
CALIBAN ─ Assim?
TRÍNCULO ─ Na verdade, parece que sim.
CALIBAN ─ Então, começa a transformação. Eu ordeno morte ao invasor!
TRÍNCULO ─ (ASSUTADO) Cuidado que vem gente. Tira essa pose de
senhor e põe outra vez a pose de criado, porque senão eu vou ter que dar uma
chicotada na sua impertinências. A-ten-cão!!!
(ENTRA ESTEVÃO SEMPRE BÊBADO, CANTANDO)
ESTEVÃO CANÇÃO DO FIM DE LINHA
─ Era eu um marinheiro
nunca mais irei ao mar;
agora estou muito velho
já não posso navegar.

Era eu um cozinheiro
me faz mal tanto calor;
com pontapés na minha bunda
me despediram, aí que dor.

Sempre tive bom trabalho,


fui toda vida operário.
Um bêbado desempregado
sou agora assim tratado.

Porque o senhor meu patrão


tem muito bom coração.
Assim tem o coração
este senhor meu patrão.
25

Como é lindo saber cantar e desafogar suas penas através da


arte.
CALIBAN ─ É assim que você vai acabar, e eu todos nós. Por enquanto
você tem uma arma na mão e me obriga a trabalhar pra ele, que nos explora. Mas
no fim vamos cantar nós três o mesmo canto, bêbados do mesmo vinho.
ESTEVÃO ─ E este senhor, o que é que deu nele? Um ataque? Toma, que
não tem outro remédio melhor em toda a ilha. (LHE OFERECE A GARRAFA DE
VINHO).
CALIBAN ─ Eu não quero beber.
ESTEVÃO ─ Bebe, que não faz mal. Abre a boca... eu te ensino... não
dói... não vai doer...
CALIBAN ─ Você é um bêbado desempregado e assim vamos acabar os
três, mas por enquanto eu ainda tenho que trabalhar. (SE AGACHA PRA
LEVANTAR A LENHA. ESTEVÃO LHE ENFIA A GARRAFA NO RABO).
ESTEVÃO ─ Bebe então por esta tua outra boca. Melhor dito pelo rabo, que
você não fica tonto. E você pode seguir trabalhando. Mas, ai meu Deus, que grande
verdade: pelo rabo não tem o mesmo sabor.
CALIBAN ─ Eu só vou beber quando for pra celebrar a morte do invasor.
TRÍNCULO ─ Cala a boca, pelo amor de Deus, eu tenho ordens terminantes
de lutar contra toda subversão.
CALIBAN ─ (OFERENCENDO A GARRAFA A TRINCULO) Toma. Bebe
pela morte de nosso opressor.
TRÍNCULO ─ Um gole, nada mais. Mas bebe você primeiro. (CALIBAN
BEBE).
CALIBAN ─ Se com plena consciência você é tão estupido, que te ilumine
o álcool. ( TRÍNCULO BEBE).
TRÍNCULO ─ Mais luz...
ESTEVÃO ─ Eu também quero pra mim um pouco de luz. Não bebam ela
toda.
TRÍNCULO ─ Lá dentro tem mais garrafas.
CALIBAN ─ Vai buscar.
TRÍNCULO ─ São do meu patrão: eu tenho o dever sagrado de guarda-las.
ESTEVÃO ─ E eu o sagrado dever de bebê-las.
CALIBAN ─ E porque são do teu patrão e não nossas?
26

TRÍNCULO ─ Por que assim são os costumes , assim são.


CALIBAN ─ Começa então a transformação. (SAI ESTEVÃO EM BUSCA
DAS GARRAFAS). Responde, minha besta: como podem ser do teu patrão, se as
uvas nós as cultivamos com as nossas mãos; se o vinho nós fermentamos com a
nossa ciência; se as bodegas nós as construímos com a nossa madeira?
TRÍNCULO ─ São os costumes, assim é, e não digo mais. É a tradição.
CALIBAN ─ E se a tradição te mandar morrer de fome como a essa besta
quadrada?
ESTEVÃO ─ (REGRESSANDO) . Obrigado pela besta.
CALIBAN ─ O que se deve fazer, morrer de fome ou romper a tradição?

TRÍNCULO ─ (EXCITADO) Você tem razão. Vamos roubar as bodegas. O


monstro Próspero me roubou toda a minha vida (BEBE) Sangue! Morte ao invasor!
Abaixo o colonialismo! Sangue! Sangue! Vamos roubar as garrafas!
CALIBAN ─ Não, roubar não, vamos recuperar o que é nosso.
ESTEVÃO ─ Mais luz! (DÁ DE BEBER A TRÍNCULO)
CALIBAN ─ Preparem-se! Todos dispostos? Ao ataque!!
TRÍNCULO ─ (BÊBADO) A-ta-car!!
ESTEVÃO ─ Vamos nós... Às garrafas!
CALIBAN ─ Morte ao invasor!
(APARECE PRÓSPERO)
OS OUTROS DOIS ─ Morte !!
PRÓSPERO ─ Demônio repulsivo, canalha subversivo, cão raivoso, outra vez
com a tua demagogia? Trínculo, eu te ordeno: corta o pescoço dele, mas devagar
para que ele sofra mais. Corta todo o seu corpo com a tua espada e enche as
feridas de mel e joga o teu corpo imundo no chão para que as formigas devorem.
Mas devagar, devagarinho para que ele sofra. Abra seu estomago e enche de
cobras e marimbondos e torna a fechá-lo. Arranca seus olhos e enche os buracos
com sal e vinagre, Corta o seu pênis ...
TRÍNCULO ─ E com todo o respeito , vou enfiá-lo em vosso rabo,
senhor.Com todo o respeito...
PRÓSPERO ─ Que foi? Que abominação! Que horror! Que danação!
CALIBAN ─ (FELIZ) Revolução!!
27

PRÓSPERO ─ ( COM MEDO) Trínculo, meu guardião, que foi que


aconteceu?
TRÍNCULO ─ Acontece que meu companheiro tem muito boa dialética e
além do mais algumas boas razões. Por isso nós agora vamos ter uma breve
explicação.
PRÓSPERO ─ Meu guarda de honra, meu guarda pessoal! Claro que si,.
Claro que vamos ter uma breve explicação. Ou comprida... tudo tem que ser
explicado, mas com o tempo. Quer dizer que esse imundo asqueroso é teu
companheiro? Bem, em tua homenagem eu o convido para que ele também se
sente conosco. Exatamente como se fosse um de nós. Vamos celebrar este
encontro.
CALIBAN ─ Não brindo com inimigos.
PRÓSPERO ─ Sim, mas deste vinho não. Nem eu. Estevão, você já está
bêbado e traz qualquer marca de vinho. Não pode ser assim. Vai buscar mias
garrafas, mas traz só dos vinhos mais finos e das colheitas mais velhas. Vamos
todos dar todas as explicações e tudo se vai explicar. Traz mais vinho. Sem dúvida
chegou a época das grandes transformações sociais. Estou preparado para
prometer qualquer coisa. Tudo prometo. Prometo. Prometo.
TRÍNCULO ─ Dizia aqui meu companheiro que ninguém é patrão e ninguém
é criado, e são todos operário e são todos iguais. Visto isto, daqui para frente não se
pode mais falar em ordens... Só em assembleias !
Morte ao invasor! ( BEBE)
PRÓSPERO ─ Muito bem. Mas ... e as diferenças? Onde ficam as
diferenças?
CALIBAN ─ Morte ao invasor... e todos serão iguais.
(ESTEVÃO TRAZ MAIS VINHO)
TRÍNCULO ─ Que diferenças ?
PRÓSPERO ─ Lógico: nós não somos todos iguais. Até nossos corpos são
diferentes. Olha minhas mãos! Suaves e perfumadas, são mãos de quem pensa.
Olha agora as mãos dele cheia de calos: ele não precisa pensar – tem mãos de
quem trabalha. E você agora?
TRÍNCULO ─ Tenho um calo só: o dedo do gatilho.
PRÓSPERO ─ Assim é: tudo uma questão de identidade. Qual é a minha
identidade? Eu sou o mais alto, o que mais macias tem as mãos.
28

CALIBAN ─ E o mais duro coração.


PRÓSPERO ─ E ele, o que mais dura tem as mãos.
ESTEVÃO ─ (BEIJANDO CALIBAN) Que doce coração, Caliban, meu
irmão.
PRÓSPERO ─ No meio do caminho, Trínculo, meu guarda de honra...
Destinado às mais altas hierarquias e mais, muito mais e mais... Tudo é uma
questão de identidade: cada um de nós tem de se identificar, e então, nunca mais
podemos dizer que somos todos iguais.
TRÍNCULO ─ E eu, quem sou? (EM ÊXTASE) Qual a minha identidade? Eu
sou Trínculo, o guarda de honra... e mais, e muito mais... capitão e talvez general...
e mais, e muito mais, muito mais...
PRÓSPERO ─ (REASSUME A SUA SEGURANÇA) E eu sou Próspero,
senhor desta ilha, senhor de tudo que aqui existe, de todos os homens, senhor!
TRÍNCULO ─ (FEROZ A CALIBAN) E você, imundo , quem é?
CALIBAN ─ (TRISTE) Sou Caliban..
PRÓSPERO ─ E quem é Caliban?
CALIBAN ─ (CANTA DOCEMENTE)

CANÇÃO DA IDENTIDADE

E eu quem sou?
Quero me ver.
E eu quem sou?
quem devo ser?

Foste tu que me ensinaste


qual a mais linda cor.
Azuis são seus olhos,
branco e alvo é meu senhor.

Quero ser branco,


porque sofro tanto?
Sou negro, sou feio
sou negro, que espanto.
29

Conheço todos os brancos


e tudo que os brancos buscam.
Tu queres que eu ame o branco,
mas os brancos me assustam.

Com os brancos eu aprendi


pela força a conquistar,
todas as coisas do mundo
pode o dinheiro comprar.
Todos os negros do mundo
podem os brancos matar.

Quero ser branco?


Porque sofro tanto?
Sou negro ,sou feio
sou negro, que espanto!
( A MÚSICA SE TRANSFORMA E O RITMO DISPARA VIOLENTO E AGRESSIVO)

Eu sou negro, todo negro


Eu sou negro como um negro! (bis)

Venho da negra matriz


grossos tenho meus lábios
tenho largo o meu nariz (refrão)
Meu cabelo é carapinha
É carapinha meu cabelo.
Tenho uma negra mulher
é carapinha meu zelo.
Tenho terra a cultivar
com carapinha desvelo.
Meu coração carapinha,
carapinha como pêlo,
negro me quer meu amor
30

Nesta terra eu sou senhor. (refrão).

Diz o branco mentiroso


que sou feio e salafrário;
mas só isto é verdadeiro
sou negro como operário.
Da Ásia e da África venho
meu povo é um torvelinho. (refrão)
Todos os pobres da América
conquistarão seu destino.
Eu também sou amarelo,
sou terra, sou campesino.
Um dia nos vingaremos
de todo branco assassino.

E eu quem sou?
Quero me ver.
E eu quem sou?
Quem quero ser?

Eu sou negro, eu sou pobre,


eu sou pena e eu sou pranto.
Sou índio, sou amarelo,
sou triste, mas assim canto.
Eu sofro e quero vingança
Não sou diabo nem santo;
vivo em choça e pouco como,
sou triste mas também canto.
Com armas em negras mãos,
eu canto, branco, eu canto!
Eu canto porque sou homem,
sou homem, sou mais que santo,
que negro, que amarelo ou branco.
31

Por isso eu canto, canto,


com foices na mão,
eu canto, branco, eu canto. (refrão)

PRÓSPERO ─ Agora que já nos identificamos todos, voltaremos aos nossos


afazeres habituais. Primeiro o senhor, meu general.
TRÍNCULO ─ (BÊBADO, TENTANDO MANTER A DIGNIDADE
CASTRENSE) O general-em-chefe se apresenta. Às suas ordens, senhor de todos
os homens! O general muito em chefe vos saúda. Às vossas ordens, senhor!
PRÓSPERO ─ Ordem. Assim é e assim será: ordem. Que voltem todos ao
trabalho. Que voltem já.
TRÍNCULO ─ (APONTANDO CONTRA CALIBAN COM REVOLVER E
CHICOTE) Já! Vai trabalhar, imundo! Inseto! Monstro! Canalha e vil ! Volta o
trabalho, Caliban ! (EM BUSCA DE ESTEVÃO, APENAS AUDÍVEL,
INSTRUMENTAL)
CALIBAN ─ (COM LENHA NO LOMBO) Moral da história: ninguém deve
beber com seus inimigos.
FIM DO PRIMEIRO ATO.

A TEMPESTADE -- SEGUNDO ATO .

4. CASA DE PRÓSPERO, ESTÁ FERNANDO SOZINHO VESTIDO DE


CRIADA, FAZENDO OS TRABALHOS DA CASA.

FERNANDO ─ Me parece justo que o pai dela submeta meu amor a duras
provas. Eu devo demonstrar merecer minha amada Miranda. Me parece justo que
sejam provas árduas e cansativas. Galhardamente eu as cumpriria todas. Assim, por
exemplo, cavalgar através de sete montanhas, duelar com setenta inimigos, com
espada, florete e canivete, cruzar a nado de costas o terrível riacho, estas sim são
nobres provas que eu estarei disposto a afrontar. Mas me fazer lavar os pratos e, o
que é pior, as roupas íntimas de minha amada... Ah, meu Deus, e faz uma semana
que a coitada está num daqueles dias, que horror! Minha amada chora quando me
vê trabalhar, mas diz que o seu pai quer deixar bem claro quem é o galo do
32

galinheiro. Ah, que terríveis humilhações! As de ordem moral, eu as suporto com


galhardia. Mas varrer o chão, lavar a privada, ah, pai ingrato...
(ENTRA MIRANDA)
MIRANDA ─ Adoradíssimo meu, não trabalhes com tanto afinco. Deixa que
a privada Caliban limpa depois, que pra isso ele tem habilidade.
FERNANDO ─ Não, porque se teu pai me vê descansando...
MIRANDA ─ Não virá antes das três horas, e faz pouco tempo que se foi.
FERNANDO ─ Então vamos conversar.
(MIRANDA CHORA).
FERNANDO ─ Porque você está chorando? De felicidade?
MIRANDA ─ Não, meu amor: choro porque, falando contigo, desobedeço
ao meu pai.
FERNANDO ─ Ele te proibiu de falar comigo?
MIRANDA ─ Falar ,ver e tocar.
FERNANDO ─ Encosta na minha mão. (ELE LHE DÁ A MÃO). Não chora que
não é pra tanto. Teu pai nunca vai ficar sabendo.
MIRANDA ─ Não, agora estou chorando de felicidade.
FERNANDO ─ Então está bem.
MIRANDA ─ Eu nunca senti uma sensação assim tão estranha. É uma mão
como qualquer mão, cinco dedos, mas ai que mão, ai ,que alguma coisa me sobe
pela coluna... Será que me faz mal tocar na sua mão. (CHORA).
FERNANDO ─ De felicidade?
MIRANDA ─ Não, pelo papai.
FERNANDO ─ Porque?
MIRANDA ─ Porque ele proibiu encostar sequer na tua mão e eu quero
agarrar alguma coisa a mais.
FERNANDO ─ O que é que você quer me agarrar?
MIRANDA ─ E eu sei lá. Eu não tenho experiência dessas coisas. O que é
que se agarra, o que é que não se agarra, eu não sei.
FERNANDO ─ Miranda, eu te anuncio que eu sou virgem.
MIRANDA ─ Você também? E como é que nós vamos fazer?
FERNANDO ─ Fazer o que?
MIRANDA ─ O que se diz que se faz.
FERNANDO ─ O que é que se diz que se faz?
33

MIRANDA ─ O amor.
FERNANDO ─ Eu não tenho a menor ideia
MIRANDA ─ Pensemos.
FERNANDO ─ Imaginemos.
MIRANDA ─ Eu acho que...
FERNANDO ─ Sim, pode ser...
MIRANDA ─ Você acha?
FERNANDO ─ Podemos experimentar.
MIRANDA ─ (CONTENTE) É verdade, agora eu me lembro. Alguém me
contou. Ou será que eu escutei alguém dizer? Pode ser que tenha sido o Caliban.
Sim, foi ele, e pior que dizer, ele quis fazer comigo (ORGULHOSA) Eu sou virgem
mas mesmo assim vou te ensinar.
FERNANDO ─Como é que se faz?
MIRANDA ─ (VITORIOSA) É preciso cruzar.
FERNANDO ─ (PERPELXO) Cruzar o que?
MIRANDA ─ E eu sei lá? Tudo o que puder
FERNANDO ─ E o que nós podemos cruzar? Ah, já sei: as mãos.
MIRANDA ─ Já estão cruzadas.
FERNANDO ─ As pernas.
MIRANDA ─ Assim? (TENTAM)
FERNANDO ─ Ah, que difícil é fazer amor. (MIRANDA CHORA) Pelo papai?
MIRANDA ─ Não: de felicidade.
FERNANDO ─ E é só isso?
MIRANDA ─ Acho que falta alguma coisa que eu me esqueci... Não me
lembro o que era.
FERNANDO ─ As mãos e as pernas... E o que mais podemos cruzar?
MIRANDA ─ Eu sei.
FERNANDO ─ O que?
MIRANDA ─ As línguas.
FERNANDO ─ Será que pode?
MIRANDA ─ Vamos tentar.
FERANDO ─ Vamos lá. Você primeiro. (TENTAM.MIRANDA CHORA) De
felicidade?
MIRANDA (TEM UM ATAQUE) ─ Não, não e não.
34

FERNANDO ─ (ASSUTADO) Pelo teu pai?


MIRANDA ─ (QUASE HISTÉRICA) Não, não e não.
FERNANDO ─ Porque então?
MIRANDA ─ Porque falta alguma coisa. Alguma coisa está faltando. É
preciso cruzar tudo o que se puder cruzar. Vamos cruzar. Vamos cruzar.
FERNANDO ─ Mas o que mais a gente pode cruzar? Diz meu amor, e eu
cruzo. Eu juro que eu cruzo. Cruzo tudo que você quiser.
MIRANDA ─ Não sei, eu não sei. Você é homem e os homens é que tem a
obrigação de fazer. A gente deixa. E só isso que a gente faz.
FERNANDO ─ (ILUMINADO) É verdade, eu sou homem. Agora eu sei , eu
descobri tudo. Eu sei, eu descobri.
MIRANDA ─ Conta, conta o que é.
FERNANDO ─ Agora você pode chorar de emoção, de felicidade, você pode
chorar e dançar que eu já descobri.
MIRANDA ─ O que é que nos falta cruzar que a gente ainda não cruzou?
FERNANDO ─ Os pintos.
(PAUSA)
FERNANDO ─ Isso sim é amor! Sexo! (PAUSA.ELA CHORA) De felicidade
ou pelo papai?
MIRANDA ─ Eu não tenho pinto, como é que eu vou cruzar?
FERNANDO ─ Que azar!. Se você tivesse ia ser tão bonito o nosso amor...
CANÇÃO DO AMOR IMPOSSÍVEL
OS DOIS ─ Nós seríamos tão felizes
se pudéssemos ser iguais.
Jamais poderemos gozar
nossos corpos sensuais.
Porque somo diferentes
é impossível o prazer.
ELE Porque eu nasci um homem
ELA Triste sorte ser mulher.
(SAEM OS DOIS BAILANDO)
5. PERTO DA CASA DE PRÓSPERO, ENTRAM CALIBAM E ESTEVÃO.
ESTEVÃO (SEMPRE BÊBADO DE CAIR) ─ Primeiro é necessário examinar a
verdadeira correlação de forças. Por isso, as alianças são necessárias. Certas
35

alianças oportunas. E depois nos desfazemos delas. Mas no do seu devido


momento, as alianças são oportunas...
CALIBÁN ─ O nosso erro foi fazer alianças como o nosso inimigo. Como é
que a gente pode fazer isso: convidar a uma assembleia contra o nosso tirano,
justamente com o nosso tirano? Ou aos seus lacaios!!!
ESTEVÃO ─ Em parte você tem razão: Próspero não deve mais ser
convidado. Mas Trínculo sim. Ele não pode estar totalmente ao lado do nosso
principal inimigo. É imprescindível que ele venha conosco.
CALIBÁN ─ Talvez você tenha razão. Pode chamar. ( ESTEVÃO SE
PREPARA E CHAMA).
ESTEVÃO ─ Venha, senhor General! Senhor General. Hei! Pode vir !
Venha conversar conosco! General?! Senhor! General! (APARECE TRÍNCULO
MUITO SÉRIO, SEMPRE ARMADO COM REVÓLVER E CHICOTE).
TRÍNCULO ─ (PAUSADAMENTE) Eu não sou general. (ESTEVÃO OLHA
CALIBÁN, E DE NOVO SE PREPARA PARA CHAMÁ-LO)
ESTEVÃO ─ Venha senhor Capitão.
TRÍNCULO (MUITO SÉRIO) ─ Eu Não sou capitão. (MESMO JOGO DE
ESTEVÃO).
ESTEVÃO ─ Venha Senhor Guarda de Honra.
TRÍNCULO ─ Eu simplesmente sou guarda e nada mais.
ESTEVÃO (COM ENORME ADMIRAÇÃO FINGIDA) ─ Mas o nosso senhor
soberano maior não promoveu você de posto como tinha prometido?
TRÍNCULO ─ Não, passou a tempestade e ele se esqueceu. Por mais que
eu lembre ele torna a se esquecer.
ESTEVÃO ─ Quer dizer que o salário continua o mesmo?
TRÍNCULO ─ E eu já estou quase na idade de me aposentar.
ESTEVÃO ─ Não fique triste, senhor ex-futuro general. Fique com a gente.
Tome. (LHE DÁ DE BEBER). O nosso Calibán fraterno tem uma proposta que eu
considero muito interessante. Queira Deus que a gente possa concretizá-la. Fala ,
Calibán, meu irmão...
TRÍNCULO ─ A-ten-ção! Se este senhor deseja falar seriamente comigo de
coisas sérias com toda a seriedade, atenção: é preciso respeitar a pouca autoridade
que me resta. Não sou general, nem capitão, nem guarda de honra, mais ainda
assim com autoridade. Compreendido?
36

ESTEVÃO ─ Certo: Vossa Mercê é uma verdadeira autoridade. Completa.


Continue senhor dom ex-futuro capitão.
TRÍNCULO ─ Por conseguinte, é preciso prestar atenção à linguagem! Nada
de palavras feias. É necessário cultivar os bons costumes.
ESTEVÃO ─ Certo, muito certo, senhor dom ex-futuro Guarda de Honra.
Nada de xingar a mãe!
TRÍNCULO ─ Nada.
ESTEVÃO ─ Eu, pela parte que me toca, sou muito respeitador.
Especialmente quando estão presentes as damas. Diante de uma senhora
respeitável, o máximo que me permito, vejam bem, eu digo o máximo, é dar um
peido. Nada mais! Mas eu me guardo de falar palavras feias. É uma questão de
educação, de berço. Perdão se eu o interrompi, mas agora pode prosseguir, senhor
dom cocô de cabra como todos nós, que somos merda fina e nada mais. Prossiga!
Adiante!
TRINCULO ─Os costumes sadios, as boas maneiras, condizentes com os
nossos melhores antepassados e as tradições... Agora sim, pode falar, porque eu
não sou inacessível. Fale.
CALIBÁN ─ Como eu estava dizendo, todos nós estamos submetidos ao
mais vil, cruel, sangrento, facínora agressor, que nos roubou nossa ilha, nossa
pátria, que nos escraviza, que prostitui nossas mulheres e nossas filhas, que nos
mata fazendo-nos trabalhar de sol a sol, e não comer de domingo a domingo, e não
descansar de verão a verão. ( ARIEL ENTROU E FALA, ESCONDIDO).
ARIEL ─ Mentira.
CALIBÁN ─ (ENFURECIDO) Mentiroso é você, macaco bêbado, animal!
ESTEVÃO ─ (SURPREENDIDO) ─ Mas eu não disse nada. Trínculo, a-tem-
ção! Agora é Calibán que tem a palavra. Se você o interrompe outra vez, eu ,como
digníssimo presidente dessa assembleia, te dou uma porrada na cara que te arranco
a metade da dentadura! Boas maneiras...
TRÍNCULO ─Mas como? Eu não disse nada, estou calado!
ESTEVÃO ─ Então cala a boca ainda um pouco mais completamente. Pode
prosseguir.
CALIBÁN ─ Por isso eu proponho que nós temos que despojá-lo de tudo
que nos despejou!
ARIEL ─ (ESCONDIDO) Isso não conseguirão nunca!!
37

CALIBÁN ─ E porque não? (A ESTEVÃO)


ESTEVÃO ─ E vai perguntar logo a mim? Pergunte ao Trínculo. (SEVERO).
E por que não?
TRÍNCULO ─ (ASSUSTADO) Eu creio que sim, que se pode... e uma
questão puramente militar.
ESTEVÃO ─ Então não digas nunca mais que não se pode fazer uma cois
que evidentemente se pode fazer (BEBE).
TRÍNCULO ─ Mas eu não disse nada.
ESTEVÃO ─ Então é melhor que não repitas!
CALIBÁN ─ Na verdade, o plano é mais simples e fácil! Todos os dias ele
costuma dormir a sesta, e ficar sozinho no seu quarto. Acho que poderíamos...
ARIEL ─ (ESCONDIDO) Podiam coisa nenhuma... jamais!
CALIBÁN ─ (A ESTEVÃO) Mas eu ainda não terminei de falar! Cala a
boca, bêbado de merda!
ESTEVÃO ─ (FURIOSO E BÊBADO A TRÍNCULO) Cala a boca, merda,
que ele ainda não terminou de falar!
TRÍNCULO ─ Mas eu não posso me calar mais calado do que já estou
calado! É a caladez mais total e absoluta. Estou mais calado que um surdo-mudo!
ESTEVÃO ─ (CURIOSO) Por que surdo???
CALIBÁN ─ Cala a boca! (GRITA).
ESTEVÃO ─ (SALTA E GRITA) Cala a boca!
TRÍNCULO ─ (ASSUTADO, GRITA) Calemos a boca!!
ESTEVÃO ─ ( BEBADAMENTE AMEAÇADOR) E se você não se cala, eu
te dou outra porretada na cara e te arranco a metade dos dentes ! (BATE). Pronto:
agora você vai ter que comprar uma dentadura completa, porque não fica bem a um
ex-futuro general andar de bengala...
CALIBÁN ─ Por isso, enquanto ele estiver dormindo, nós podemos entrar
no seu quarto, e romper os miolos dele! Mas antes, é preciso agarrar todos os livros.
Aí está o seu poder: ele tem livros e nós não. Sem os livros ele será mais débil que o
mais débil de todos nós. E então nós vamos arrebentar o crânio dele, e pendurar os
seus miolos numa estaca bem alta para servir de pasto aos urubus, e com uma faca
bem afiada vamos cortar o seu coração, e dar de comer aos cães! Mas primeiro vai
ser preciso conquistar os livros.
ESTEVÃO ─ Assim faremos todos !
38

ARIEL ─ (ESCONDIDO) Todos?


TRÍNCULO ─ (RAPIDAMENTE) Todos! Agora sim, eu falei! Eu também falei!
ARIEL ─ ( PARA SI MESMO) É preciso que eu vá denunciar este
complot ao meu senhor. Que lindos presentes ele vai me dar depois... (SAI)
CALIBÁN ─ A gente tem que se preparar! Dentro de meia hora o tirano vai
dormir! Vamos! Vamos buscar os nossos machados! Adiante! (SAEM OS TRÊS,
CANTANDO “ QUE TODAS AS PESTES DO MUNDO, ETC)

6. FLORESTA. A CORTE VEM CAMINHANDO.CAEM NO CHÃO.

GONÇALO ─ Senhor, por Deus do céu, eu já não posso caminhar. Muito


amo ao vosso filho, mas tenho as pernas cansadas...
REI ─ Você tem razão. Tenho o dever de buscar o meu filho, porque
é o herdeiro da Coroa, mas dever maior tenho de cuidar-me a mim, que sou o Rei.
Renuncio a toda esperança e decreto que meu filho morreu!
SEBASTIÃO ─ ( A ANTÔNIO) Vamos aproveitar que eles estão cansados!
ANTÔNIO ─ ( A SEBASTIÃO) Vamos aproveitar de noite que estarão
dormindo...
REI ─ Tenho fome...
GONÇALO ─ Quem irá na mata buscar uma banana ou qualquer coisa
assim?
SEBASTIÃO ─ É mesmo, quem irá...?
ANTÔNIO ─ É o que me pergunto: quem será? (TODOS SE DEITAM.
MÚSICA DE MACUMBA MISTURADA COM MÚSICA INDIA: ENTRAM ÍNDIOS E
PRETOS DE PAPEL CREPON, FIGURAS CONHECIDAS COMO JOSÉ CARIOCA,
CARMEM MIRANDA, LATIN LOVER, MEXICANO DORMINHOCO, ETC. BAILAM
GROTESCAMENTE COMO NÓS FILMES DE HOLLYWOOD, E OFERECERAM UM
LAUTO BANQUETE DE FRUTAS TROPICAIS. TODOS SE DESLUMBRAM).
REI ─ Que música maravilhosa.
ANTÔNIO ─ Quanta comida!
GONÇALO ─ Que doce harmonia.
SEBASTIÃO ─ Bananas!!
REI ─ Que seres estranhos serão estes?
ANTÔNIO ─ Jamais em minha vida vi algo tão exótico e exuberante!
39

REI ─ Ah, se eu pudesse levar alguns desses monstros para a


Europa, seria o monarca mais venturoso! ...
ANTÔNIO ─ E se poderia cobrar entrada...
GONÇALO ─ Se nota que são todos tropicais...
REI ─ Sim, pela maneira rude e rústica como dançam. Os
movimentos são lindos, porém mal acabados, primitivos, como convém a arte
selvagem.
GONÇALO ─ Falta tradição.
SEBASTIÃO ─ Savoir faire.
REI ─ Souplesse.
GONÇALO ─ Finesse.
ANTÔNIO ─ E cheiram a suor.
REI ─ Justamente por isso teriam muito êxito na Europa: lá não se
sua. (ENTRA ARIEL GROTESCAMENTE FANTASIADO DE HARPIA, VESTIDO
COM VÉUS, SALTOS ALTISSÍMOS, BOCA TERRIVLEMENTE PINTADA, LONGAS
PESTANAS POSTIÇAS, UM TRAVESTI LOUCO. ENQUANTO FALA OU CANTA,
CAMINHA COM PASSOS DECIDIDOS E FORTES. VOZ ROUCA.)
ARIEL ─ Um momento, senhores! Antes de começar a engolir essa
comida toda, recebam primeiro os comprimentos do meu senhor e senhor desta ilha:
Prós-pe-ro !!!! Benvindos sejam todos! Welcome! Bienvenue! Willkomen!
Benvenutto!! Benvindos sejam ao nosso país tropical! E para que vocês possam
desfrutar de um momento agradável e prazenteiro, apresento a mim mesmo, A-ri-el
!!! Com vocês, dentro de um momento, EU!!! Vou cantar, atendendo a pedidos,
“Come to South America, Come Down My Way!”
COME TO SOUTH AMERICA,COME DOWN MY WAY

If you are tired,


You need a break,
You overwork,
Vacations take! (ALUCINANTE)
But please, don’t go astray:
Come to South America,
Come down my way!
Come, come, you’ll see!
40

Real blood in the streets,


you’ll see, come and see!
If not, if not,
Your money back, your money back
garantee! ( CANTA FRAGMENTOS DE OUTRAS
CANÇÕES LATINOAMERICANAS).
ARIEL ─ (PROSSEGUE) Obrigado, muito obrigado, obrigadinho,
obrigadíssimo. E agora a mensagem do meu senhor dom Próspero! Ele me manda
dizer, da maneira mais delicada possível, que vocês todos são muitos filhos da puta.
( MOSTRA ANTÔNIO). Este, o irmão cruel, lhe roubou o ducado de Milão, e
expulsou o meu senhor e sua filhinha, pobrezinha, coitada. Este aqui, rei do não sei
o que, apoiou o ladrão e roubou também. De toda essa camarilha o único que
escapa é esse velho, que lhe fez algum favor, não sei o que, parece que emprestou
uns livros, sei lá. E vocês só tem uma salvação: levar , de agora em diante, uma vida
imaculada, e olha, muita contrição! Senhores, boa digestão. (SAI E VOLTA). Ai, ai,
ai, ai, ai: quase que eu me esquecia , a Tempestade, quem a fez, com suas artes
mágicas, foi ele, foi meu patrão! Eu ajudei um pouquinho também, né, que eu
também sou versado nessas coisas... E agora, adeus, adeus... Oooooohhhhhh.....
(SAI CANTANDO).
REI ─ Próspero..... ainda vive....
ANTÔNIO ─ E tem prosperado...
SEBASTIÃO ─ (CHORANDO) Se me matam, nem os cães vão comer minha
carne imunda!
GONÇALO ─ Estão desesperados pelos crimes que cometeram...
ANTÔNIO ─ Por isso não: temos medo é da vingança de Próspero!
SEBASTIÃO ─ Vamos embora antes que caia a noite.
REI ─ E sem esperar a sobremesa? (SAEM CANTANDO A M´SUCA
DE ARIEL EM TOM MENOR)
7. CASA DE PRÓSPERO

PRÓSPERO ─ Perdão, Fernando meu amigo, todas essas provas que você
sofreu. Mas hoje me dia, ninguém sabe o que é que pode acontecer, e é melhor
estar preparado para qualquer coisa. Eu mesmo, sou o senhor desta ilha. Mas
Calibán preparou contra mim um terrível complô!! Até quando serei senhor?
41

Nenhum homem pode dizer que é feliz antes de descer à sepultura, com toda a sua
felicidade como mortalha. De um lado Calibán, de outro o Rei, teu pai! Tenho de ser
rápido! (ENTRA MIRANDA VESTIDA DE NOIVA). Aí está: eu te darei de presente o
que você conquistou como teu esforço. É urgente que se faça já o casamento. Este
feliz happy-ending me resolverá todos os problemas: depois da cerimônia vocês
devem ir correndo ao meu quarto e dar livre trânsito aos seus apetites.
FERNANDO E MIRANDA ─ Assim faremos, papi querido do nosso coração!
PRÓSPERO ─ De joelhos e ouçam minha benção. (ARIEL E OS DEMIAS
FAZEM O PAPEL DE PADRINHOS E DEMAIS PARTICIPANTES DA CERIMÔNIA
DE CASAMENTO – DEVE ESTAR SEMPRE PRESENTE, EM TODA CERIMÔNIA O
CARÁTER BURGUÊS MERCANTILISTA DESTE CASAMENTO. OS VERSOS SÃO
DISTRIBUÍDOS POR TODOS OS PARTICIPANTES)
CANÇÃO DA BODA BURGUESA

Um pobre quando se casa


é porque ama sua amada;
entre nós nos juntamos
em sociedade limitada.
(DECLAMANDO COMO UM CÂNTICO). Um casal de jovens ricos para obter a
benção e a proteção do nosso bom deus particular deve produzir sem demora três
filhos varões, todos de grande utilidade (CANTA).
Dos três filhos que tenham
um deles será militar;
general de preferência
para o poder conservar.
O segundo que nascer
a Deus terá por patrão
para com fé administrar
o sagrado Coração.
O dinheiro move o mundo,
o destino do terceiro
por isso está decidido:
o menino será banqueiro.
42

DECLAMANDO ─ Com estes três filhos terão três poderes, terão a força do ouro,
da fé e do trabuco.
Muitos frutos, muitas flores
escravos e todas as bênçãos
terão de tudo meus filhos
aprendendo estas lições:
Não queiram nunca lutar
com os mais fortes: concórdia
aos pobres que estão embaixo,
duros, sem misericórdia.
O destino aos fortes mima/ terão riqueza e longa vida;
esta é a lei bem conhecida : / se trepa pisando em cima.
(DECLAMAM ENQUANTO DESFILAM DIANTE DO CASAL E AFOGAM OS
NOIVOS EM UMA MONTANHA DE EMBRULHOS DE PRESENTES, COLORIDOS)
─ que sempre fiquei cheia suas dispensas de centeio ,cevada e
aveia;
─ que nunca lhes falte o trigo, o vinho e o azeite;
─ que sobrem azeitonas, o gado e o pescado;
─ e garbanzos, cebolas e viados?
─ que sejam severos, violentos e agressivos;
─ intransigentes e duros!
─ que nunca lhes faltem criados, amém!.
─ e mordomos, amém;
─ cozinheiros, padeiros e forneiros, amém.
─ amém, amém, amém !!!
PRÓSPERO ─ Ita boda est, À cama, ao ataque !!!!
FERNANDO ─ Papi, papaizinho querido do meu coração, vem com a gente
para ensinar como é que se faz.
PRÓSPERO ─ Tem livro pra tudo. Leva este que é um tesouro dinamarquês.
(SAEM OS DOIS, CONTENTÍSSIMOS E DANDO GRITINHOPS FELIZES). Quase
me esquecia da criminosa conspiração de Calibán e seus sequazes! Tenho que me
preparar para a batalha!!
43

ARIEL ─ Depressa patrãozinho, que eles aí vem com os olhos


vermelhos de bebedeira, com os dedos trêmulos nos gatilhos! São terrivelmente
perigosos agora que descobriram que você não tem direito...
PRÓSPERO ─ Como não tenho direito?????
ARIEL ─ Aqui entre nós, patrãozinho, você sabe muito bem que não!
Que direito que você tem? Você é tão dono desta ilha, como podia ser eu ou a
minha avó! E agora que eles descobriram isso, vem aí golpeando as árvores e
cantando a sua raiva, como potros bravos buscando o inimigo! Cuidado que há
perigo de morte: o povo está amotinado, sublevado. Cuidado!!
PRÓSPERO ─ Obrigado, meu lacaio! Vai depressa e solta todos os meus
cães! Chegou a hora final: de um lado, minha filha casada com o filho do Rei; do
outro, o perigo : Calibán e o povo, não posso perder o maior negócio da minha vida!
Os cães, Ariel, os cães! Os que sejam os mais ferozes, Ariel, os mais sangrentos!
Os cães, Ariel, os cães! Os mais brutais, os que se alimentam tão só de carne
humana! Os cães, Ariel, os cães! Todos soltos! Que se arrebentem as portas do
inferno! Por um grande negócio, é necessário arriscar a humana vida alheia! Os
cães, Ariel, os cães !!!
ARIEL ─ ( TONTO, QUE VAI E VOLTA) Já sei, patrãozinho, para que
eu já vou! Eu estou ficando louca! Já sei, os cães, Ariel, os cães, au ,au, au, au
au,au!! ( SAEM OS DOIS, ENTRAM CALIBÁN, TRÍNCULO E ESTEVÃO).
ESTEVÃO ─ ( SEMPRE BÊBADO) Na minha opinião, os nomes feios estão
em desacordo com os bons costumes ocidentais! Não se deve dizer palavrão, meu
querido Calibán fraterno, não se deve dizer palavrões... A não ser em legítima
defesa...
CALIBÁN ─ Já estamos perto. Já sinto o cheiro podre do seu corpo!
Silêncio, para que não se desperte a besta imunda!!
ESTEVÃO ─ Agora que se aproxima o grande momento, eu confesso que
sinto um ardor...
CALIBÁN ─ Aonde?
ESTEVÃO ─ No cu. Todas as vezes que sinto medo, me aperta o cu. E
arde. E agora está me apertando muito, muito. O que é que eu faço? (QUASE
CHORA).
CALIBÁN ─ Uns segundos mais de coragem e teremos a vida inteira sem
patrão.
44

TRÍNCULO ─ Agora que se aproxima o grande momento, me assalta uma


dúvida.
CALIBÁN ─ Que dúvida?
ESTEVÃO ─ Também te arde o cu?
TRÍNCULO ─ Não, a mim não me arde o cu, porque sou uma autoridade.
ESTEVÃO ─ Uma verdadeira autoridade... completa....
TRÍNCULO ─ Mas me assalta uma dúvida: como será possível viver sem
patrão? Sem uma pessoa que te dê as ordens? Faz isso, não faça aquilo, faz
assim, deixa de fazer! Como é que eu vou saber? Ver ser difícil a adaptação...
CALIBÁN ─ Se vai ser difícil, então que seja Estevão o teu senhor.
ESTEVÃO ─ Eu não tenho pinta de senhor!
CALIBÁN ─ Não é necessário ter pinta para ser senhor: é necessário ser
senhor para ter pinta.
ESTEVÃO ─ Mas de qualquer maneira, a uns a pinta assenta melhor...
TRÍNCULO ─ Mas se vamos tirar um patrão para botar outro, porque não
deixamos esse que já está? Esta é a dúvida que me assalta...
ESTEVÃO ─ A mim, em momentos como este, de grande tensão nervosa, a
mim me assaltam os cheiros.... sinto cheiros...
CALIBÁN ─ É o perfume suave da vitória.
ESTEVÃO ─ Não, não, não é. Sinto o cheiro de pipi e cocô. Vai ver que
caguei nas calças...
TRÍNCULO ─ Se pelo menos a gente ainda tivesse uma garrafa... meia
garrafa... um gole...
ESTEVÃO ─ Foi esse puritano que perdeu a garrafa de propósito...
CALIBÁN ─ Caiu por acidente...
ESTEVÃO ─ Acidente? Quebrar uma garrafa de vinho, isso é um acidente?
Como é que se pode menosprezar assim um evento de tal magnitude? Foi uma
tragédia, uma hecatombe, um cataclismo apocalíptico! Como é que eu vou poder
fazer agora, sem ao menos um golezinho.... uma gota...
CALIBÁN ─ Não vamos fazer nada por vingança; lembra que o Próspero
não tem direito. Por isso vamos fazer o que vamos: por justiça!!
ESTEVÃO ─ Como não tem direito? Algum direito terá...
CALIBÁN ─ Qual é o direito de Próspero? (ENTRA PRÓSPERO COM
SEUS CÃES).
45

CANÇÃO DO DIREITO DAS BESTAS


Não tenho nenhum direito,
tenho força e covardia,
tenho meus cães bem treinados
e cheios de valentia!!
Pela raiz corto o mal,
awawawawawawawaw!!
Meus direitos são meus cães,
são leopardo e pantera,
são a força e a violência,
e eu sou uma besta-fera!!
Pela raiz corto o mal,
awawawawawawawaw!!
Aqui mordem meus direitos
pela boca de chacais:
a cada um eu batizo,
a todos meus animais!
Cana e delegacia
são irmãos de lacaio!
Espião e burocrata
são irmão do cipaio!
Pela raiz corto o mal,
awawawawawawawaw!!
Existem cães de toda raça,
estes são da raça “traidor”,
e aquele um “ Delator”
são ferozes para a caça.
Alcaguete e fascista
minha defesa partilham.
Meu direito aqui se afirma
nessa feroz matilha.
Pela raiz corto o mal,
awawawawawawawaw!!
ESTEVÃO ─ Socorro! Me ajudem! Viva meu senhor!!
46

TRÍNCULO ─ Eu me entrego! Basta! Abaixo os provocadores!


CALIBÁN ─ Covardes ! (FOGEM).
PRÓSPERO ─ À caçada! Que meus cães mordam suas carnes e produzem
mais feriadas que manchas tem leopardos e panteras! (SAEM ARIEL E OS CÃES).
Todos os meus inimigos estão à minha mercê. Que venham agora o Rei e os outros.
Ainda que tenham sido eu ferido na alma e no meu tesouro por suas cruéis
maldades, meu nobre coração saberá temperar minha cólera! Mais mérito existe no
perdão que nos pode levar a um bom negócio, que na justa vingança que tudo põe a
perder! Este é a melhor negociata de minha vida! Posso depois de me aposentar a
abandonar as artes econômicas . (ENTRAM TODOS). Velho e virtuoso Gonçalo, que
me salvaste a vida e os livros, em breves terá a tua recompensa. Quero pagar, ainda
que modestamente, teus merecimentos. Mas ao contrário, tu ,Alonso, Rei, que nos
tratastes com a maior severidade a mim e a minha filha, apoiando meu cruel irmão,
que me roubou o meu ducado, minha casa, meu lençóis, tudo, tudo e sem direito. E
tu, minha carne e sangue meu, que poderias tão facilmente ter entrado em
sociedade comigo, mas preferiste o roubo puro e simples. Finalmente tu, Sebastião,
canalha de marca maior, que ousaste a levantar a espada para matar teu irmão e a
teu Rei. Enfim, quadrilha mais canalha do que esta não há no mundo e nunca houve
na história!
GONÇALO ─ Aqui estamos, teus prisioneiros...
REI ─ Podeis matar-nos, que bem merecemos a morte!!
ANTÔNIO ─ A pior tortura será nosso mais suave castigo !
SEBASTIÃO ─ Minhas culpas só as poderá pagar meu pouco sangue...
PRÓSPERO ─ Estão todos de acordo com o pior castigo? Com a mais terrível
vingança?
TODOS ─ Todos de acordo
REI ─ Quais serão nossas sentenças?
PRÓSPERO ─ O perdão.
TODOS ─ Estamos perdoados?
REI ─ Mas se somos todos bestas selvagens!
ANTÔNIO ─ Assassinos!
SEBASTIÃO ─ Conspiradores!
PRÓSPERO ─ Tudo isso e bons homens de negócio também!
TODOS ─ Na verdade que sim.
47

PRÓSPERO ─ Já preparei para todos nós uma grande sociedade comercial


para explorar esta ilha e muitas mais .Antônio meu irmão. (ABRAÇA-O).
ANTÔNIO ─ Meu querido irmão, eu te devolvo teu ducado e tuas contas
bancárias....
PRÓSPERO ─ Claro que sim!
ANTÔNIO ─ Peço o teu perdão e prometo que doravante serei honesto e
bom!!
PRÓSPERO ─ Não, não, parece que ninguém entendeu! De maneira
nenhuma! Nada de honestidade, de bondade! Eu quero você exatamente como você
é: ladrão e assassino!! Eu voltarei a Milão, mas você ficará aqui como meu
representante nesta ilha, com carta branca para exercer a mais dura repressão e
obrigar esses negros a trabalhar e a produzir até a morte! Esse facínora Sebastião,
quase assassino de irmão, (ABRAÇAM-SE O REI E SEU IRMÃO) será chefe
supremo do contrabando da ilha, de agora em diante legalizado, com a condição de
que serei eu o único importador. E agora tu, Rei avaro e pão duro!
REI ─ Sim, eu agora o que?
PRÓSPERO ─ Toda tua vida tu explorastes miseravelmente todos os
ducados da Itália: o Rei de Nápoles encheu seus baús, suas arcas e colchões, com
o trabalho de todos os italianos e de todos os miseráveis que eles dominavam!
REI ─ (SORRIDENTE) Isso é verdade... deliciosa verdade...
PRÓSPERO ─ Juntaste mais ouro que muitos emirados árabes reunidos,
mais riquezas que os ferozes conquistadores da América. E agora tu, o que?
REI ─ Podes tirar-me a vida, mas não me tires uma só moeda dos
meus baús...
PRÓSPERO ─ Ao contrário, eu te darei um rico presente. Eu te darei o que
mais amas depois das tuas moedas. Algo que perdeste e que reencontrarás
dobrado!
REI ─ Meu filho?
PRÓSPERO ─ E uma filha! E bem cedo vários netinhos ( ENTRAM OS
NOIVOS).
MIRANDA ─ Papai, papaizinho, que coisa mais gostosa! É uma sensação
tão, mas tão agradável, é como se fosso com o dedo, mas muito melhor!
Papaizinho, papaizinho querido, eu te quero, eu te quero muito bem!
48

FERNANDO ─ Papai... então você não morreu? Eu ainda não sou o Rei de
Nápoles? Que decepção...
PRÓSPERO ─ Um filho digno de seu pai...
REI ─ Ainda não.. e eu não espero ver esse dia...
FERNANDO ─ Ah, estou muito cansado, já não aguento mais...
MIRANDA ─ Quer dizer que eu então ainda não sou Rainha? Ora veja...
PRÓSPERO ─ Calma, calma, minha filha, já está tudo preparado! Uma
grande sociedade mercantil!
MIRANDA ─ Ah, admirável mundo novo...
GONÇALO ─ Sim, mas nos falta ainda...
PRÓSPERO ─ Que?
GONÇALO ─ Antônio e Sebastião ficarão aqui na ilha, mas como iremos
nós regressar à Itália? Em que navio?
PRÓSPERO ─ Não se esqueçam das minhas mágicas artes. Com muitas
chicotadas fiz o milagre de obrigar os marinheiros a consertarem os cascos
destroçados... Aí vem o Capitão.
GONÇALO ─ O homem que não tinha cara de afogado? Responde agora,
blasfemo, você que amaldiçoava a bordo por qualquer coisa, não te sobrou um
palavrão agora pra praia? (CRUEL, BATE NELE)
CAPITÃO ─ Perdoem Vossas Mercês, mas os navios já estão prontos para
partir.
MIRANDA ─ E as minhas malas? As minhas malas, papai, paizinho querido
do meu coração, aonde estão minhas oitenta malas que estavam aqui? E os
presentes do casamento? E os meus vestidos? E a camisola d noite de núpcias? E
os meus anéis, meus colares e minhas joias? E as minhas malas, aonde estão
minhas oitenta malas?
PRÓSPERO ─ Calma, calminha, Miranda. (ENTRA ANTÔNIO COM
REVOLVER E CHICOTE DANDO CHICOTADAS EM CALIBÁN, TRÍNCULO E
ESTEVÃO QUE ENTRAM CARREGANDO AS MALAS DE MIRANDA).
ANTÔNIO ─ Adiante, bestas! Depressa, canalhas! Mais rápido, animais! Eu
vou matar a chicotadas aquele que for mais preguiçoso!!
TRÍNCULO ─ Temos que amar nossos senhores em cima de todas as
coisas!!
CALIBÁN ─ Temos que aprender boas palavras e bons costumes.
49

ESTEVÃO ─ Temos que servi-los da melhor maneira que pudermos....


REI ─ E estes monstros , quem são?
SEBASTIÃO ─ Estarão a venda? Pressinto um bom negócio.
PRÓSPERO ─ Vou levar alguns comigo para uma exposição na Europa. Vem
Ariel. (ENTRA ARIEL BAILANDO). Este é o mais exótico!!
ESTEVÃO ─ Que o nobre casal seja muito feliz e tenha a vida repleta de
felicidades.
TRÍNCULO ─ Que o nobre casal aumente as suas posses, que sejam cada
vez mais ricos e multipliquem os bens que herdam, por muitos e muitos anos, amém.
CALIBÁN ─ Que o nobre casal tenha muitos filhos, como é o desejo do
senhor Próspero....
PRÓSPERO ─ Finalmente aprendestes boas maneiras...
CALIBÁN ─ (AFASTANDO-SE, EM VOZ BAIXA) ....e que todos filhos
morram enforcados no cordão umbilical, e que apodreçam no ventre de sua mãe, e
que a gangrena destrua cada fibra de seus corpos, e que o diabo em pessoa...
PRÓSPERO ─ Que é que você está dizendo...
CALIBÁN ─ (ALTO) Que tenham longa vida...
PRÓSPERO ─ Bom...
CALIBÁN ─ (BAIXO)... No inferno!
CAPITÃO ─ Todos a bordo!!
MIRANDA ─ Ah, Fernandinho do coração, me segura senão eu caio!
FERNANDO ─ Eu estou cansando, já não aguento mais...
MIRANDA ─ Quem me segura? Quem me segura? Vocês são homens?
CAPITÃO ─ Claro que somos homens...
MIRANDA ─ Como ele?
CAPITÃO ─ Sim, como ele. Talvez um pouco maior...
MIRANDA ─ Ah, admirável mundo novo! Vem comigo no meu camarote
que eu quero ter uma prova concreta!
PRÓSPERO ─ Miranda, Miranda, calma, devagar, tranquila...
FERNANDO ─ Deixa , senhor meu sogro, é preciso reconhecer que eu não
aguento mais...
PRÓSPERO ─ Admirável mundo novo... Se a tua testa não te pica, a minha
eu não me coço...
CAPITÃO ─ Todos a boooooooooordooo!!!
50

PRÓSPERO ─ Outra vez ao mar! (OUTRA VEZ MIMAM O BARCO QUE SE


VAI AFASTANDO NO MAR. ANTÔNIO DANDO CHICOTADAS CONTINUA
OBRIGANDO OS TRÊS A TRABALHAREM. SEBASTIÃO AJUDA NA
REPRESSÃO).
CANÇÃO DE TUDO QUE FICA IGUAL

Não se pode confiar


em gente tão singular
todos se juntam no final
volta tudo a ser igual.

Roda o mundo,
roda, roda,
passa o tempo,
passa, passa,
ganha o rico,
sempre ganha,
perde o pobre,
sofre, sofre,
sempre espera,
nunca alcança,
vive sempre,
a trabalhar,
já perdeu a esperança,
já não pode confiar.

Roda o mundo,
roda, roda,
passa o tempo,
passa, passa.

Tem uns que ficam por cima,


outros de baixo não saem;
tem quem tem viva boa vida
51

morrem outros de trabalho.


Não se pode confiar
em gente tão singular
todos se juntam no final
volta tudo a ser igual

Te dizem coisas bem lindas,


são belos oradores
não se pode confiar
em gente tão singular.

Prometem muitas reformas


quem espera nunca alcança
eles se juntam no final
e volta tudo a ser igual.

Fim de
A TEMPESTADE.
Augusto Boal/ Junho 1974.
52
53
54

Você também pode gostar