Você está na página 1de 5

VASCO GRAÇA MOURA

BIOGRAFIA
Vasco Graça Moura nasceu no Porto, em 1942, e
morreu em Lisboa, em 2014. Formou-se na Faculdade
de Direito da Universidade de Lisboa, tendo exercido
advocacia. Desempenhou vários cargos públicos, tendo
exercido também as funções de deputado. Destacou-se
não apenas pela sua obra poética, mas também pelas
traduções de autores consagrados e pelos ensaios
sobre literatura.

percurso de manutenção

no pinhal da aroeira os corvos esvoaçam sobre a caruma


na luz diagonal da manhã de novembro.
está muito frio e você não se agasalhou.
andamos mais depressa entre as árvores, as clareiras, os
5 charcos brilham numa poalha acinzentada e leve.

quando falamos as palavras condensam-se no ar


em pequenos bafos e a ponta do seu nariz está vermelha.
mas os seus olhos riem. novembro é arenoso e
muito sossegado sob os sapatos de ténis, é mesmo
10 muito mais lírico do que se imagina.

um dia havemos de descer até à fonte da telha.


é um passeio mais longo e decerto vamos encontrar mais gente.
o cão irá connosco a levantar a pata à vista dos pombos bravos,
a brisa marinha enredará esta mediania, esta
doçura útil de existir, assobiar ao vento, entre chão e paisagem.

VASCO GRAÇA MOURA, Antologia dos sessenta anos, Porto, ASA, 2002.

1. Identifique o momento da vida do sujeito poético que é evocado no poema.

2. Explicite o tipo de relação que o eu tem com o tu.

3. Aponte a razão por que o sujeito poético afirma que novembro «é mesmo / muito mais lírico do que
se imagina.» (vv. 9 e 10).

4. Enuncie as emoções que este momento desencadeia no eu. Ilustre a resposta com transcrições
textuais.

ENTRE NÓS E AS PALAVRAS • Português • 12.o ano • Material fotocopiável • © Santillana


não sei se o camões hoje

não sei se o camões hoje teria escrito as suas rhythmas,


começa porque não saberia ao certo quais eram e então não havia camonistas
para discutirem a questão. e depois talvez não valesse a pena
falar àquela gente. e os auditórios têm limites de paciência.

5 por exemplo, o dia em que eu nasci moura e pereça,


diz-me o aguiar e silva, não é dele quase de certeza.
e eu respondo: é tão bom que tem mesmo de ser dele.
e o vítor ri, exclamando: você já está como o faria e sousa.

a ironia desta conversa é que ela se passava


10 no instituto camões, calcule-se, somos ambos do conselho geral,
tratando da expansão da língua portuguesa
que se mais mundo houvera lá chegara

e estava uma tarde esplêndida de janeiro


e se o camões estivesse ali não havia de acreditar
15 que um de nós estivesse prestes a tirar-lhe um soneto
o mais doutamente e o outro lho quisesse devolver,

invocando-lhe o som, a fúria e o sentido,


nem que há séculos que as coisas se vão passando assim,
tirando e pondo, invocando lições e testemunhos,
20 e uns gajos de nome germânico, lachmann, storck,

e mais alguns. a moral desta história é que um verso de camões


com pouca variação é sempre um verso de camões,
é a coisa mais bela e mais difícil do mundo
e dá cá uma guinada tão especial que só pode ser dele.

VASCO GRAÇA MOURA, Antologia dos sessenta anos, Porto, ASA, 2002.

1. Proceda a uma breve investigação sobre as figuras referidas no poema:


a) Vítor Aguiar e Silva
b) D. Manuel de Faria e Sousa
c) os filólogos alemães Karl Lachmann e Wilhelm Storck

2. Indique o motivo por que o eu discutiu com Aguiar e Silva.


2.1 Enuncie os argumentos apresentados pelo sujeito poético para defender o seu ponto de vista.

3. Enuncie as razões por que, segundo o sujeito poético, a discussão entre os dois estudiosos deixaria
Camões incrédulo.

4. Explicite a «moral desta história» (v. 22).

ENTRE NÓS E AS PALAVRAS • Português • 12.o ano • Material fotocopiável • © Santillana


para uma canção de embalar

embalo a minha filha joana que acordou num berreiro.


a casa está às escuras, vou passando com cuidado
para não dar encontrões nos móveis, embalo esta menina
que se calou mas está de olho muito aberto e quer brincar,
5 e há um halo de luz parda a coar-se pelas persianas
e às vezes uns faróis riscando estrias a correrem pelo teto.

levo-a bem presa ao colo, toda de porcelana pesadinha,


enquanto a irmã está a dormir meio atravessada nos lençóis.
ao chegar-me a outra janela vejo as luzes fugindo na autoestrada
10 em direção ao rio, a uma placa da lua sobre o rio,
e trauteio «já gostava de te ve-er», enquanto acendo o fogão
para aquecer o leite e embalo a minha filha e a outra está a dormir.

oxalá cresçam ambas airosas e bem seguras,


e possam ir na vida serenamente como os rios correm,
15 ou como os veleiros voam, ou como elas agora respiram
em cadências regulares neste silêncio táctil.
a meio da noite um homem acordou no sossego da casa
e pôs-se a cuidar do sono das suas filhas pequenas.

oxalá haja fadas benfazejas esvoaçando das histórias


20 de princesas felizes e potros azul turquesa, e forrem esta casa,
e pelas malvadas bruxas alegres sinos dobrem,
e estas meninas existam incólumes e puras no seu quente contentamento,
mesmo que o mundo vá girando numa ordem sobressaltada,
mesmo que os mares agonizem nos seus gonzos de chumbo.

25 lá fora os carros passam, ainda não é a manhã, só alta madrugada,


mas passam alguns carros, deve estar frio. e há passos no andar de cima.
a minha filha teresa tosse e volta-se na cama, a minha mulher dorme,
mas a joana ainda não adormeceu e presta a maior atenção
e mexe-me na cara quando eu chego outra vez a «inda mal abria os olhos»,
30 já ouviu esta toada umas centenas de vezes e passa a mão pelo meu queixo

e aconchega a cabeça e as pálpebras começam a baixar-lhe


muito devagarinho e a pequenina mão abandona-se na gola do meu pijama
e há que dar ainda uns passos para cá e para lá,
a cantar uma sombra de modinha, para ela ficar bem adormecida,
35 e como da irmã, quando a irmã tinha esta idade, eu digo
que sei muito desta menina, e sei. e vou deitá-la outra vez.

VASCO GRAÇA MOURA, Antologia dos sessenta anos, Porto, ASA, 2002.

ENTRE NÓS E AS PALAVRAS • Português • 12.o ano • Material fotocopiável • © Santillana


1. Reconte sucintamente o episódio que é narrado no poema.

2. Explicite o significado da expressão «toda de porcelana pesadinha» (v. 7).

3. Explique o contraste interior/exterior que é estabelecido no poema.

4. Enuncie os desejos que o sujeito poético manifesta para a vida das suas filhas.

5. Identifique os sentimentos que o pai e a filha manifestam um pelo outro. Ilustre a resposta com
transcrições textuais.

ENTRE NÓS E AS PALAVRAS • Português • 12.o ano • Material fotocopiável • © Santillana


o magusto de ricardo reis

(para o josé blanco)

um púcaro com vinho refrescava


sobriamente a sua sede

5 ricardo reis

«— come castanhas, pequena lídia escrava.


não caces borboletas, pousa a rede.»
isto dizia e enquanto a arreliava
um púcaro com vinho refrescava
10 sobriamente a sua sede.

bucólicos, o vate e lídia, a flava.


aos pósteros, inscrito na parede,
ser tempo de beber se recordava.
um púcaro com vinho refrescava
15 sobriamente a sua sede.

entanto lídia as rosas apanhava,


as fugazes e ledas, e vós vede
como a colher o dia as desfolhava.
um púcaro com vinho refrescava
20 sobriamente a sua sede.

a vida é um ouriço e em nós se crava


se não soubermos afastá-lo. crede
que lídia só castanhas mordiscava.
um púcaro com vinho refrescava
sobriamente a sua sede.

VASCO GRAÇA MOURA, Antologia dos sessenta anos, Porto, ASA, 2002.

1. Identifique o poema de Ricardo Reis a que pertencem os versos que surgem como epígrafe e como
refrão deste poema.
1.1 Explicite o significado destes versos.

2. No primeiro verso do poema, além de haver uma relação intertextual com a poesia de Ricardo Reis,
é também convocado um verso de Álvaro de Campos.
2.1 Identifique este verso.
2.1.1 Explique o seu significado, demonstrando de que forma se articula com o verso de
Álvaro de Campos.
2.1.2 Relacione este verso com as atividades que Lídia realiza ao longo do poema.

3. Explicite o significado da última estrofe.

ENTRE NÓS E AS PALAVRAS • Português • 12.o ano • Material fotocopiável • © Santillana

Você também pode gostar