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ANTOLOGIA: CRÔNICAS
Letras/Português ▬ UNIMEP
1. Ai de ti, Copacabana!
Rubem Braga
1. AI DE TI, Copacabana, porque eu já fiz o sinal bem claro de que é chegada a véspera de teu dia, e
tu não viste; porém minha voz te abalará até as entranhas.
2. Ai de ti, Copacabana, porque a ti chamaram Princesa do Mar, e cingiram tua fronte com uma coroa
de mentiras; e deste risadas ébrias e vãs no seio da noite.
3. Já movi o mar de uma parte e de outra parte, e suas ondas tomaram o Leme e o Arpoador, e tu não
viste este sinal; estás perdida e cega no meio de tuas iniqüidades e de tua malícia.
4. Sem Leme, quem te governará? Foste iníqua perante o oceano, e o oceano mandará sobre ti a
multidão de suas ondas.
6. Grandes são teus edifícios de cimento, e eles se postam diante do mar qual alta muralha desafiando
o mar; mas eles se abaterão.
6. E os escuros peixes nadarão nas tuas ruas e a vasa fétida das marés cobrirá tua face; e o setentrião
lançará as ondas sobre ti num referver de espumas qual um bando de carneiros em pânico, até
morder a aba de teus morros; e todas as muralhas ruirão.
7. E os polvos habitarão os teus porões e as negras jamantas as tuas lojas de decorações; e os meros
se entocarão em tuas galerias, desde Menescal até Alaska.
8. Então quem especulará sobre o metro quadrado de teu terreno? Pois na verdade não haverá terreno
algum.
9. Ai daqueles que dormem em leitos de pau-marfim nas câmaras refrigeradas, e desprezam o vento e
o ar do Senhor, e não obedecem à lei do verão.
10. Ai daqueles que passam em seus cadilaques buzinando alto, pois não terão tanta pressa quando
virem pela frente a hora da provação.
11. Tuas donzelas se estendem na areia e passam no corpo óleos odoríferos para tostar a tez, e teus
mancebos fazem das lambretas instrumentos de concupiscência.
12. Uivai, mancebos, e clamai, mocinhas, e rebolai-vos na cinza, porque já se cumpriram vossos dias,
e eu vos quebrantarei.}
13. Ai de ti, Copacabana, porque os badejos e as garoupas estarão nos poços de teus elevadores, e os
meninos do morro, quando for chegado o tempo das tainhas, jogarão tarrafas no Canal do Cantagalo;
ou lançarão suas linhas dos altos do Babilônia.
14. E os pequenos peixes que habitam os aquários de vidro serão libertados para todo o número de
suas gerações.
15. Por que rezais em vossos templos, fariseus de Copacabana, e levais flores para Iemanjá no meio da
noite? Acaso eu não conheço a multidão de vossos pecados?
16. Antes de te perder eu agravarei s tua demência — ai de ti, Copacabana! Os gentios de teus morros
descerão uivando sobre ti, e os canhões de teu próprio Forte se voltarão contra teu corpo, e troarão;
mas a água salgada levará milênios para lavar os teus pecados de um só verão.
17. E tu, Oscar, filho de Ornstein, ouve a minha ordem: reserva para Iemanjá os mais espaçosos
aposentos de teu palácio, porque ali, entre algas, ela habitará.
18. E no Petit Club os siris comerão cabeças de homens fritas na casca; e Sacha, o homem-rã, tocará
piano submarino para fantasmas de mulheres silenciosas e verdes, cujos nomes passaram muitos
anos nas colunas dos cronistas, no tempo em que havia colunas e havia cronistas.
19. Pois grande foi a tua vaidade, Copacabana, e fundas foram as tuas mazelas; já se incendiou o
Vogue, e não viste o sinal, e já mandei tragar as areias do Leme e ainda não vês o sinal. Pois o fogo e a
água te consumirão.
20. A rapina de teus mercadores e a libação de teus perdidos; e a ostentação da hetaira do Posto
Cinco, em cujos diamantes se coagularam as lágrimas de mil meninas miseráveis — tudo passará.
21. Assim qual escuro alfanje a nadadeira dos imensos cações passará ao lado de tuas antenas de
televisão; porém muitos peixes morrerão por se banharem no uísque falsificado de teus bares.
22. Pinta-te qual mulher pública e coloca todas as tuas jóias, e aviva o verniz de tuas unhas e canta a
tua última canção pecaminosa, pois em verdade é tarde para a prece; e que estremeça o teu corpo fino
e cheio de máculas, desde o Edifício Olinda até a sede dos Marimbás porque eis que sobre ele vai a
minha fúria, e o destruirá. Canta a tua última canção, Copacabana!
Rio, janeiro, 1958 ▬ Texto extraído do livro "Ai de ti, Copacabana", Editora do Autor - Rio de Janeiro, 1960, pág. 99.
http://www.releituras.com/index.asp ▬ 16/08/06
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2. Receita para tirar cavalo da chuva
FOLHA ONLINE, 09/09/2003 ― CARLOS HEITOR CONY
Modo de preparar: Pega-se um cavalo que esteja na chuva e usando persuasão ou força, obriga-se o
animal a se dirigir a um lugar seco, onde deverá ficar até que a chuva passe.
Modo de usar: são inúmeras as vantagens de tirar um cavalo, qualquer cavalo, da chuva, de qualquer
chuva. Chuva e cavalo podem se misturar mas há que tomar cuidado para não prejudicar a natureza
dos ingredientes, ficando o cavalo molhado demais e a chuva, que deveria fecundar o solo fazendo
nascer o trigo e as flores do campo, ficar molhando inutilmente um cavalo que não produz flores nem
trigo.
Outro mérito de se tirar o cavalo da chuva, sobretudo para quem não dispõe de um cavalo, mas está
sujeito a chuvas e trovoadas, é fazer o que deve ser feito, ou seja, tirar o cavalo da chuva e, se
possível, tirar-se a si mesmo da chuva, não necessariamente em cima do cavalo, mas "ao lado", como
quer o Zé Genoíno dos funcionários da nação.
Recomenda-se tirar o cavalo da chuva em ocasiões especiais, como em votações no Congresso,
prorrogações de medidas provisórias, reescalonamento de dívidas públicas, cargos e funções. É
preferível tirar o cavalo da chuva, mantendo-o enxuto, do que enxugá-lo depois de molhado. Mas
convém não exagerar, e a pretexto de enxugar o cavalo molhado pela chuva, enxugar os orçamentos
da saúde, da educação, dos transportes, da segurança.
Como servir: com o cavalo tirado da chuva, pode-se fazer muita coisa ou nada fazer. Em ocasiões
mais solenes, o melhor é montá-lo e partir em todas as direções.

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3. O suor e a lágrima
CARLOS HEITOR CONY
Fazia calor no Rio, 40 graus e qualquer coisa, quase 41. No dia seguinte, os jornais diriam que fora o
mais quente deste verão que inaugura o século e o milênio. Cheguei ao Santos Dumont, o vôo estava
atrasado, decidi engraxar os sapatos. Pelo menos aqui no Rio, são raros esses engraxates, só existem
nos aeroportos e em poucos lugares avulsos.
Sentei-me naquela espécie de cadeira canônica, de coro de abadia pobre, que também pode parecer o
trono de um rei desolado de um reino desolante.
O engraxate era gordo e estava com calor – o que me pareceu óbvio. Elogiou meus sapatos, cromo
italiano, fabricante ilustre, os Rosseti. Uso-o pouco, em parte para poupá-lo, em parte porque quando
posso estou sempre de tênis.
Ofereceu-me o jornal que eu já havia lido e começou seu ofício. Meio careca, o suor encharcou-lhe a
testa e a calva. Pegou aquele paninho que dá brilho final nos sapatos e com ele enxugou o próprio
suor, que era abundante.
Com o mesmo pano, executou com maestria aqueles movimentos rápidos em torno da biqueira, mas a
todo instante o usava para enxugar-se – caso contrário, o suor inundaria o meu cromo italiano.
E foi assim que a testa e a calva do valente filho do povo ficaram manchados de graxa e o meu sapato
adquiriu um brilho de espelho à custa do suor alheio. Nunca tive sapatos tão brilhantes, tão
dignamente suados.
Na hora de pagar, alegando não ter nota menor, deixei-lhe um troco generoso. Ele me olhou
espantado, retribuiu a gorjeta me desejando em dobro tudo o que eu viesse a precisar nos restos dos
meus dias.
Saí daquela cadeira com um baita sentimento de culpa. Que diabo, meus sapatos não estavam tão
sujos assim, por míseros tostões, fizera um filho do povo suar para ganhar seu pão. Olhei meus
sapatos e tive vergonha daquele brilho humano, salgado como lágrima. FSP, 19/02/01
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4. Antigamente, quando eu era pequenino...
ARNALDO JABOR
Antigamente, quando eu era pequenininho... - com essa frase mágica eu corto qualquer choro de meu
filhinho, qualquer bagunça em curso e ele sobe em meu colo de olhos abertos, lágrima secando, para
ouvir as estórias de meu passado. Por marketing paterno, eu descrevo o passado como um lugar meio
escuro, ruim, sem nada, para ele valorizar os muitos brinquedos que tem, os homens-aranha, o Bat-
Movel, o peixinho Nemo no aquário e as "gelecas" trêmulas no chão. É uma artimanha meio sacana,
mas funciona; não só lhe dá um início de consciência de seu privilégio social, como valoriza o "bom
papai" aqui.
E ele adora investigar meu passado:
Papai, antigamente não tinha vídeo? Não. Não tinha televisão? Não; tinha só rádio. Tinha He-Man?
Não; tinha Super-Homem, mas só tinha no gibi. O que que é gibi? - ele pergunta. Revista de
quadrinhos - respondo -, mas tinha Príncipe Submarino que hoje não tem mais, um super-herói que
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lutava debaixo d'água contra os polvos malvados e a lulas malditas e venenosas. E ele não morria
afogado? Não, meu filho, porque ele era meio "peixe" também. E pescavam ele? É... tinha uns homens
malvados que queriam pescar ele, mas ele era craque. Tinha você, antigamente? Eu? É. Você, com seu
papai e sua mamãe?
Tinha... tinha eu... mas eu era pequenininho também... olha aqui no retrato.
Por que você está chorando no colo desse homem? Não sei; eu acho que era vocação ha! ha! Que que é
vocação? É um negócio aí... Você tinha amigos, papai? Tinha. Tinha o Bertoldo, o Bertoldinho e o
Cacasseno (personagens de um livro de estórias) e... o meu amigo Albertinho Fortuna... (não sei por
que transformei esse cantor popular dos anos 50 num "amigo de infância"...
Sempre achei graça nesse nome: Albertinho Fortuna...).
E vocês caçavam o gambá gigante? Sim; a gente ia na floresta e ia cada um com um pau na mão e
íamos até a caverna do gambá gigante, que ficava lá no alto do Corcovado. Lá onde tem o "Quisto
Redentor"? Isso, filhinho, a gente ia subindo a pé porque antigamente não tinha o trenzinho e, quando
chegava perto da casa do gambá gigante, a gente sentia o cheiro, argghhhh, era um cheiro horroroso e
aí não adiantava nem bater nele, a gente gritava de fora, tapando o nariz: "Gambá gigante, sai daí!..
Sai, gambá!" Aí, quando o gambá saía, zangado, porque estava dormindo e ia atacar a gente, o
Albertinho Fortuna pegava um vidro de perfume Coty e tacava nele e aí o gambá gigante ficava
cheirozinho e ficava amigo da gente... E pronto... E aí, todo mundo ia dormir, feito você, agora...
E, enquanto meu filhinho começa a dormir, pensando no gambá cheiroso, eu vou pensando em sua
pergunta profunda: "Pai, o que que tinha antigamente?" Bem - respondo para mim mesmo -
antigamente, tinha eu, outro "eu", diferente deste casca-grossa de hoje... É... tinha eu... tinha nossa
casinha de subúrbio, pequena, com quintal, galinha e mangueira e, fora de casa, tinha minha curta
paisagem de menino: rua, poste, fogueira no capinzal, a luz do carbureto do pipoqueiro, a luz nas
poças com a Lua tremendo na água, balões coloridos no céu, trêmulos de lanterninhas, balões-
tangerina, balões-charuto. De dia, tinha o Sol que era meu, a chuva que era minha, tinha as nuvens
que eram minhas, as nuvens-girafa, as nuvens-camelo, que eu contemplava deitado no chão de terra
onde as formigas eram minhas também, os caramujos nas folhas eram meus, sua gosminha
madrepérola era minha, tudo fazia parte de meu universo de subúrbio.
Uma vez, teve um grande eclipse, e eu fiquei olhando minha família olhando o Sol negro através de
cacos de vidro escuros e, eu me lembro, tive a sensação dolorida de que a casa, papai de uniforme de
capitão, minha irmãzinha chorando, a triste empregada com pano branco na cabeça, as árvores, as
galinhas, tudo ia passar, e que nós íamos nos apagar também, como o Sol, tudo indo para longe, como
os urubus, mais longe, quase no infinito, na bruma.
Nas ruas, tinha uma luz mortiça nas janelas das casas, o som do rádio com as novelas deprimentes e
o seriado do Capitão Atlas, tinha os namorados no portão, tinha os amores impossíveis, os suicídios
com guaraná, as luas-de-mel fracassadas, tinha as lâmpadas de carbureto dos carrinhos de pipoca, os
velhos discos de 78 rpm, os cantores com som precário, as primeiras TVs em preto-e-branco, as
saudades do matão, o luar do sertão, tinha um Brasil mais micha, mais pobre, cambaio, troncho, mas
bem mais brasileiro que hoje, em seu caminho da roça que o Golpe de 64 interrompeu, e que, agora,
essa mania prostituída de "Primeiro Mundo global" matou a tapa.
Hoje, esta pobreza é disfarçada pela falsa vertiginosidade de um progresso que nos submete como
uma lei das forças produtivas.
É... - eu penso - antigamente, filho, tinha também uma coisa chamada "povo"; não o povo
arrebentado, dividido, tonto de hoje. Era uma pobreza mais pobre, mas menos, como direi, menos
clamorosa, menos trágica. Tinha uma nacionalidade ilusória, sim, com o povo apinhado nos bondes,
iludido, mais burro que hoje, sem defesas, mas era um falso país em que acreditávamos.
Isso era legal, apesar da ingenuidade de acharmos que bastava o grito das massas e a vontade de
justiça para que um novo país se realizasse. Em 63, não sabíamos ainda que a democracia custava
tanto, que teríamos de passar pelo inferno de 20 anos de ditadura, e tinha, sim, um "vazio" no Brasil,
mas era um vazio que nos dava idéia de que algo ia ser construído ali naquele espaço, que ia surgir
uma sociedade original, mesmo num futuro nevoento, cheio de urubus.
E, aí, eu me pergunto, vendo meu filhinho dormir: Como fazer, meu filho, para restaurar aquela idéia
de Brasil, sem fugir das regras duras deste tempo de vertigem global? Eu não sei. Nem ele - sonhando
com o gambá gigante, sob a voz melodiosa de Albertinho Fortuna, cantando por cima do tempo. OESP,
07/10/03
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5. Sexa
L.F. VERÍSSIMO
- Pai... - É. Não! O sexo da mulher é feminino.
- Hmmm? - E como é o feminino?
- Como é o feminino de sexo? - Sexo mesmo. Igual ao do homem.
- O quê? - O sexo da mulher é igual ao do homem?
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- O feminino de sexo. - É. Quer dizer... Olha aqui. Tem o sexo
- Não tem. masculino e o sexo feminino, certo?
- Sexo não tem feminino? - Certo.
- Não. - São duas coisas diferentes.
- Só tem sexo masculino? - Então como é o feminino de sexo?
- É. Quer dizer, não. Existem dois sexos. - É igual ao masculino.
Masculino e feminino. - Mas não são diferentes?
- E como é o feminino de sexo? - Não. Ou, são! Mas a palavra é a mesma. Muda o
- Não tem feminino. Sexo é sempre masculino. sexo, mas não muda a palavra.
- Mas tu mesmo disse que tem sexo masculino e - Mas então não muda o sexo. É sempre
feminino. masculino.
- O sexo pode ser masculino ou feminino. A palavra - A palavra é masculina.
"sexo" é masculina. O sexo masculino, o sexo - Não. "A palavra" é feminino. Se fosse masculina
feminino. seria "o pal..."
- Não devia ser "a sexa"? - Chega! Vai brincar, vai.
- Não. O garoto sai e a mãe entra. O pai comenta:
- Por que não? - Temos que ficar de olho nesse guri...
- Porque não! Desculpe. Porque não. "Sexo" é - Por quê?
sempre masculino. - Ele só pensa em gramática.
- O sexo da mulher é masculino?
Comédias Para se Ler na Escola. Rio de Janeiro/RJ: Objetiva, 2001. pg 53 - 54
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6. Gravação
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE

— Ué, o senhor é o entrevistado, o que sabe das


— Pronto, tá ligado. Posso começar? coisas.
— Pode. — E quando não sei?
— O senhor se sente realizado? — Não sabe se está realizado?
— Por que você quer saber isso? — Não sei nem o que é realizado.
— Nada não. O professor é que mandou lhe — Corta essa. Não vai me dizer que não tem
perguntar. dicionário em casa.
— O professor tem interesse em saber se eu me — Tenho alguns, mas em vez de me tirarem as
sinto realizado? dúvidas, me acrescentam outras.
— Sei não senhor. — Desculpa, mas o senhor é enrolado, hem?
— Então diga ao professor que venha me Será que não achou o significado de realizado?
procurar. — Achei quatro ou cinco. Quer ver? Olhe aqui.
— Pra quê? O primeiro é o de coisa ou negócio que se
— Para eu lhe perguntar se ele se sente realizou, que se tornou real. Será que me
realizado. tornei real? E antes não era? Quê que eu era
— O senhor vai perguntar isso a ele? então? Fantasma? Projeto?
— Vou. — Assim o senhor me funde a cuca.
— O senhor também está estudando? Nessa — Não tenho intenção.
idade, poxa! — E os outros significados?
— Quê que tem? Toda idade é boa para estudar, — No fim, está o neologismo, e aí é que —
a gente não acaba nunca de saber as coisas. Mas desculpe a expressão, que não costumo usar,
não estou estudando não. mas me deu vontade — aí é que a vaca vai pró
— Então por que vai perguntar isso ao brejo. Aqui está: "indivíduo realizado'. dito por uma
professor? pessoa, de si própria, quando considera ter
— Porque se ele quer saber se eu me sinto alcançado todos o seus objetivos no terreno ético
realizado, eu também quero saber a mesma coisa ou no de suas atividades profissionais ou
dele. Indiscrição por indiscrição. artísticas."
— Gozado... Mas se o senhor fizer isso não bota — Tá legal.
o meu nome no meio, porque vai dar grilo. Vê lá, — Legal no papel, mas e dentro de mim?
hem. — Dentro do senhor o quê?
— Fique descansado. Não vou comprometer — Quais são meus objetivos no terreno ético, ou,
você. mais modestamente, no terreno de minhas
— E o senhor só vai responder a minha atividades profissionais ou artísticas? Tenho
perguntadepois de falar com ele? E se ele não objetivos éticos definidos? Quais são? São meus
responder? Se demorar? Tenho de entregar ou me são impostos ou sugeridos pela educação
esta .entrevista até quinta-feira. e pela conveniência social? Se fossem
— Bem, eu respondo agora mesmo. exclusivamente meus, quais seriam? E em
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— Então responde, vamos lá. minhas atividades práticas ou criativas? Que é
— Primeiro eu preciso saber: o que é se sentir que eu pretendo? Pretendo sempre as mesmas
realizado? coisas? Não mudo de alvo? Não danço conforme
— O senhor não sabe? a música ou até sem ela e contra ela? Que é que
— Para dizer o que eu sinto, quero saber antes eu sei de positivo a respeito disso, ao longo de
se o que eu sinto é o mesmo que se deve sentir minha vida? Que pretendia eu há 20 anos? Há
quando se está realizado, ou se julga estar. E 10? Na semana passada? Me procure depois de
para isso é preciso saber o que é estar realizado. eu morrer. Aí então, posso dar balanço.
— Poxa, não complica. — Chega! Chega!
— Estou complicando, meu querido? Minha — Estou caceteando você?
intenção era simplificar, esclarecer. O que é — Não está enchendo não. É que a fita acabou.
mesmo se sentir realizado? Até que a entrevista foi bacana, um tremendo
— Ora! Se sentir realizado é. . . quer dizer. . . Não barato. O professor vai delirar, a turma
sei explicar muito bem, mas o senhor entende, também. Um cara que não sabe se está
né? realizado nem o que é realizado! Papo findo,
— Mais ou menos. Quer dizer: menos. E você? tchau!
— Se o senhor não entende bem, eu é que vou
entender?
— Então, como é que eu posso responder?

IN ANDRADE, C. D. de e outros. Para gostar de ler: crônicas. v.5. São Paulo: Ática, 1979-1980, p. 16-18.
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7. Carta a uma senhora
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
A garotinha fez esta redação no ginásio: "Mammy, hoje é dia das Mães e eu desejo-lhe milhões de
felicidades e tudo mais que a Sra. sabe. Sendo hoje o dia das Mães, data sublime conforme a
professora explicou o sacrifício de ser Mãe que a gente não está na idade de entender mas um dia
estaremos, resolvi lhe oferecer um presente bem bacaninha e fui ver as vitrinas e li as revistas. Pensei
em dar à Sra. o radiofono Hi-Fi de som estereofónico e caixa acústica de 2 alto-falantes amplificador e
transformador mas fiquei na dúvida se não era preferível uma tv legal de cinescópio multirreacionário
som frontal, antena telescópica embutida, mas o nosso apartamento é um ovo de tico-tico, talvez a
Sra. adorasse o transistor de 3 faixas de ondas e 4 pilhas de lanterna bem simplesinho, levava para a
cozinha e se divertia enquanto faz comida. Mas a Sra. se queixa tanto de barulho e dor de cabeça,
desisti desse projeto musical, é uma pena, enfim trata-se de um modesto sacrifício de sua filhinha em
intenção da melhor Mãe do Brasil.
Falei de cozinha, estive quase te escolhendo o grill automático de 6 utilidades porta de vidro refratário e
completo controle visual, só não comprei-o porque diz que esses negócios eletrodomésticos dão prazer
uma semana, chateação o resto do mês, depois encosta-se eles no armário da copa. Como a gente não
tem armário da copa nem copa, me lembrei de dar um, serve de copa, despensa e bar, chapeado de aço
tecnicamente subdesenvolvido. Tinha também um conjunto para cozinha de pintura porcelanizada
fecho magnético ultra-silencioso puxador de alumínio anodizado, um amoreco. Fiquei na dúvida e
depois tem o refrigerador de 17 pés cúbicos integralmente utilizáveis, congelador cabendo um leitão ou
peru inteiro, esse eu vi que não cabe lá em casa, sai dessa!
Me virei para a máquina de lavar roupa sistema de tambor rotativo mas a Sra. podia ficar ofendida
deu querer acabar com a sua roupa lavada no tanque, alvinha que nem pomba branca, Mammy
esfrega e bate com tanto capricho enquanto eu estou no cinema ou tomo sorvete com a turma. Quase
entrei na loja para comprar o aparelho de ar condicionado de 3 capacidades, nosso apartamentinho
de fundo embaixo do terraço é um forno, mas a Sra. vive espirrando, o melhor é não inventar moda.
Mammy, o braço dói de escrever e tinha um liquidifica-dor de 3 velocidades, sempre quis que a Sra.
não tomasse trabalho de espremer laranja, a máquina de tricô faz 500 pontos, a Sra. sozinha faz
muito mais. Um secador de cabelo para Mammy! gritei, com capacete plástico mas passei adiante, a
Sra. não é desses luxos, e a poltrona anatómica me tentou, é um estouro, mas eu sabia que minha
Mãezinha nunca tem tempo de sentar. Mais o quê? Ah sim, o colar de pérolas acetinadas, caixa de
talco de plástico perolado, par de meias, etc. Acabei achando tudo meio chato, tanta coisa para uma
garotinha só comprar e uma pessoa só usar, mesmo sendo a Mãe mais bonita e merecedora do
Universo. E depois, Mammy, eu não tinha nem 20 cruzeiros, eu pensava que na véspera deste Dia a
gente recebesse não sei como uma carteira cheia de notas amarelas, não recebi nada e te ofereço este
beijo bem beijado e carinhosão de tua filhinha Isabel". ▬ IN ANDRADE, C. D. de e outros. Para gostar
de ler: crônicas. v.5. São Paulo: Ática, 1979-1980, p. 19-20.
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8. Recado de primavera
ZUENIR VENTURA
Meu caro Rubem Braga:
Escrevo-lhe aqui de Ipanema para lhe dar uma notícia grave: a primavera chegou. Na véspera da
chegada, não sei se lhe contaram, você virou placa de bronze, que pregaram na entrada do seu prédio.
O próximo a ser homeageado é seu amigo Vinicius de Moraes, e é essa lembrança que me faz parodiar
o “Recado de primavera”, que você mandou ao poeta quando ele se tornou nome de rua.
Sua crônica foi lida na inauguração da placa, durante uma cerimônia rápida e simples, para você não
ficar irritado. A idéia foi da Confraria do Copo Furado, um alegre clube de degustadores de cachaça
que não existia no seu tempo. Antes que alguém dissesse “mas como, se Rubem só tomava uísque!”, o
presidente da confraria, Marcelo Câmara, se apressou em lembrar que Paulo Mendes Campos uma vez
revelou que o maior “orgasmo gustativo” do velho Braga, na verdade, foi bebendo uma boa pinga num
boteco do Acre. Paulinho, que deve estar aí a seu lado, só faltou dizer que você sempre foi um
cachaceiro enrustido.
Temendo uma bronca sua, Roberto, seu filho, fez tudo na moita: não avisou a imprensa e não
comunicou nada a nenhuma autoridade ou político. De gente famosa mesmo só havia Carlinhos Lyra
e Tônia Carreiro. Aliás, sua eterna musa declamou aquele soneto que você ficou todo prosa quando
Manuel Bandeira incluiu numa antologia, lembra-se?
Tônia se esforçou para não se emocionar, e quase conseguiu. Mas quando aquela luz do meio-dia que
você tanto conhece bateu nos olhos dela, misturando as cores de tal maneira que não se sabia mais se
eram verdes ou azuis, viu-se que estavam ligeiramente molhados, mas todo mundo fingiu que não viu.
Depois da homenagem, subimos até a cobertura. Não sei se você sabe, mas Roberto levou uns quatro
meses reformando o terraço. Agora pode chover à vontade que não inunda mais. O resto está igual: as
paredes cobertas de quadros e livros, o sol entrando, a vista do mar. Quando chegamos à varanda,
achamos que você estava deitado na rede.
O pomar, mesmo ainda sem grama, está um brinco e continua absolutamente inverossímil. “Como é
que ele conseguiu plantar tudo isso aqui em cima?”, a gente repetia, fazendo aquela pergunta que você
ouviu a vida toda.
Os dois coqueiros que lhe venderam como “anões” já estão com mais de três metros de altura. As duas
mangueiras, depois da poda, ficaram frondosas e enormes, uma beleza. Vi frutinhas brotando nos
cajueiros, nas pitangueiras e nas jabuticabeiras, pressenti promessas de romãs surgindo e esbarrei
em pés de araçá e carambola. Agora, há até um jabuti.
As palmeiras que ficam no canto, se lembra?, estão igualmente viçosas. Roberto jura que não é
forçação retórica e que de madrugada vem um sabiá laranjeira cantar ali, diariamente, acordando os
galos que deram nome ao morro que fica atrás. Assim, sua cobertura é a única que tem palmeiras
onde canta o sabiá. (Roberto faz questão de dizer “a” sabiá, em homenagem ao Tom).
Há um outro mistério. Maria do Carmo, sua nora, conta que o pastor alemão Netuno, de sobrenome
Braga, que você nem conheceu, pegou todas as suas manias: toma sol no lugar onde você gostava de
ler jornal de manhã, resmunga e passa horas sentado, com as duas patas pra frente, apreciando o
mar. A diferença é que dessa contemplação ainda não surgiu nenhuma crônica genial.
Mas muita coisa mudou, cronista, nesses 16 anos. As “violências primaveris” de que você falava na
sua carta a Vinicius não são mais o “mar virado”, a “lestada muito forte” ou o “sudoeste com chuva e
frio”. Não são mais licenças poéticas, são violências mesmo.
Para você ter uma idéia, a primavera desse ano foi como que anunciada por um cerrado tiroteio bem
por cima de sua cobertura: os traficantes do Cantagalo e do Pavão-Pavãozinho voltaram a guerrear.
Você deve ter visto aí de cima os tiros riscando a noite, luminosos, como na guerra do Golfo. Estamos
vivendo sob fogo cruzado. Ainda bem que nenhuma bala perdida atingiu seu apartamento. Por
milagre, aquela parede de trás ainda está incólume.
O tempo vai passando, cronista. Chega a primavera nesta Ipanema, toda cheia de lembranças dos
versos de Vinicius, da música de Tom e de sua doce e poética melancolia. Eu ainda vou ficando um
pouco por aqui - a vigiar, em seu nome, as ondas, os tico-ticos e as moças em flor. E temendo, como
todo mundo, as balas perdidas. Adeus. JB, 28/9/96 ▬ Este texto também está no livro Crônicas de
um fim de século.
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9. E o seu nível de corrupção, como vai?
Millôr Fernandes
Dizem por ai que todo homem tem seu prego. Há quem vá mais longe afirmando que alguns homens
são vendidos a preço de banana. Sempre esperei, na vida, o dia da Grande Corrupção, e confesso,
decepcionado, que ele nunca veio. A mim só me oferecem causas meritórias, oportunidades de
sacrifício, salvações da Pátria ou pura e frontalmente a hedionda tarefa de lutar.. . contra a corrupção.
Enquanto eu procuro desesperadamente uma oportunidade, as pessoas e entidades agem comigo de
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tal forma que às vezes chego a duvidar de que a corrupção exista. Mas, falar em corrupção, como
anda a sua? Vendendo saúde ou combalida e atrofiada como a minha? Responda com muito cuidado
às perguntas abaixo e depois conclua sobre sua própria personalidade: você é um corrupto total ou
um idiota completo? (Não há meio-termo.) Conte 10 pontos para cada resposta certa (você é quem
decide qual é a certa) e verifique depois o grau de sua corruptibilidade. Nota: Se você roubar neste
teste, é porque sua corrupção é mesmo absolutamente incorruptível.
A) Você descobre que o chefe do seu departamento está com um caso complicado com a secretária do
outro chefe em frente. Você: 1) Finge que não viu nada. 2) Diz à secretária que ou também está, nessa
ou vai botar a boca no mundo. 3) Oferece o seu sítio ao chefe pra ele passar o fim de semana. 4) Bota
a boca no mundo. 5) Insinua ao chefe que há a perigosa hipótese de a mulher dele vir a saber (e
enquanto isso põe a promoção embaixo do nariz dele pra ele assinar).
B) Você acha que a Lei e a Ordem é uma mística social maravilhosa para: 1) Impor a lei e a ordem. 2)
Acabar com a grita dos descontentes. 3) Grandes oportunidades de ganhar algum por fora. 4) Dividir o
bolo entre os íntimos sem ninguém de fora piar.
C) A primeira vez em que você ouviu falar do escândalo de Watergate você disse: 1) Isso é que é país!
2) Como é que o governo americano permite uma imprensa dessas? Isso desmoraliza um país! 3) Eu
não compraria um carro usado desse Nixon. 4) Isso jamais aconteceria entre nós. 5) Quanto terão
levado esses caras pra se arriscarem dessa maneira?
D) Você, como representante oficial da fiscalização, comparece à apresentação de contas, em dinheiro,
no Instituto dos Cegos. Fica surpreendido com o alto volume das arrecadações e em certo momento:
1 ) Diz : "Estou surpreendido com a miserabilidade dos donativos". E tenta enrustir algum. 2) Diz:
"Como representante do fisco sou obrigado a reter 30 % de tudo porque esta arrecadação é totalmente
ilegal". 3) Diz: "Teria sido até uma boa arrecadação se metade das notas não fossem falsas". 4)
Disfarça bem a voz e diz, entredentes: "Todos quietinhos aí, seus Homeros de uma figa: Isto é um
assalto!"
E) Você se demite do cargo de maneira irrevogável por insuportáveis pressões morais e absoluta
impossibilidade de compactuar com a presente política da firma. Eles prometem triplicar o seu salário.
Você: 1) Recusa, indignado, por pensarem que é tudo uma questão de dinheiro. Só ficará se eles
derem também as três viagens anuais à Europa a que todos os diretores têm direito. E participação
nos lucros retidos da companhia. 2) Diz que, evidentemente, isso e uma prova moral de que eles estão
de acordo com você. O dinheiro, aí é definitivo como demonstração de confiança na sua gestão. 3)
Pede para pensar 5 minutos antes de dar a resposta. 4) Explica que tem mulher e filhos e não pode
manter um pedido de demissão feito, afinal de contas, por motivos tão irrelevantes.
F) Há uma diferença fundamental entre fraudar e evitar o imposto de renda. Quando você descobriu
isso, você: 1) Ficou indignado com as possibilidades de os poderosos usarem tudo a seu favor. Como é
que se pode escamotear um ordenado? 2) Começou a estudar furiosamente a legislação para descobrir
todos os furos. 3) Tinha 11 anos de idade e estava terminando o curso primário. 4) Nunca mais pagou
um tostão de imposto.
G) Você dá um nota de 10 pra pagar o jornal, no jornaleiro velhinho da banca da esquina, e percebe
que ele lhe deu 50 como troco. Você imediatamente: 1) Corrige o erro do velhinho? 2) Reclama
chateado aproveitando a gagaíce do vendedor: "Pô, eu lhe dei uma nota de 100?" 3) Chega em casa e
manda todos os seus filhos comprarem vários jornais? 4) Bota o dinheiro no bolso e fica freguês?
H) Você teve que fazer um trabalho na rua, não pôde almoçar, comeu um sanduíche. Você apresenta a
conta na companhia: 1) Um sanduíche — 3 cruzeiros. 2) Almoço — 32 cruzeiros. 3) Almoço com o
representante da A&F Ltda. — 79 cruzeiros. 4) Despesas gerais — 143 cruzeiros.
I) Quando o desfalque dado pelo auditor geral (8.000.000 pratas) chega a seus ouvidos você murmura:
1) "Idiota, se deixar apanhar assim". 2) "Será que eles vão descobrir também os meus 10.000?". 3) "Se
ele tivesse me dado 10% eu tinha feito o negócio de maneira que ninguém nunca ia descobrir". 4) "Eu
fiz bem em não entrar no negócio".
Conselho de amigo:
Quando alguém, na rua, gritar "Pega ladrão!", finge que não é com você.
Texto extraído do livro "Todo homem é minha caça", Editorial Nórdica Ltda. — Rio de Janeiro, 1981, pág.60.
http://www.releituras.com/index.asp ▬ 16/08/06
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10. Tese de mestrado
CARLOS HEITOR CONY
Uma caneta divide-se em três partes: a tampa, a pena e a caneta propriamente dita. A tampa serve
para tampar a caneta e proteger a pena. A pena é a variante das antigas penas de ganso que os
antigos usavam para escrever, mas, em alguns casos, é substituída por pequenina esfera, daí que o
nome delas passou a ser "esferográfica".
A caneta propriamente dita é o corpo principal dela, onde se colocam os cartuchos com tinta em
massa, no caso das esferográficas, ou onde fica o depósito que armazena a tinta líquida, bombeada
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por pequena alavanca lateral ou por uma espécie de conta-gotas de borracha nos modelos mais
antigos.
A finalidade da caneta é escrever. Apesar dos computadores e editores de texto de que hoje dispomos,
ainda se usa a caneta para assinar nomeações de ministros e assessores, liberar verbas para os
municípios que adotaram o Fome Zero, assinar lista de presença nas missas de sétimo dia.
Um rei em desespero queria trocar seu reino por um cavalo: "A horse! A horse!". Em idêntica situação,
um rei de hoje pediria uma caneta, variando a língua de acordo com o reino.
Nada mais desolador do que um rei sem cavalo e sem caneta. Definida a caneta, é necessário definir
um cavalo. Trata-se de um animal com cabeça, tronco e membros, e só difere do homem, que é um
animal bípede, porque é um quadrúpede (*). Não deve ser confundido com cavalo-vapor, mais
conhecido pela sigla HP (**). E muito menos com cavalgadura, que é outra coisa.
(*) Quadrúpede é o animal que tem quatro pés ou patas (apud Aurélio, in "Novo Dicionário da Língua
Portuguesa").
(**) Em inglês: "horse power".
Nota: Este trabalho não teria sido possível sem a ajuda do corpo docente da UJG e, em especial, de
Catarina, minha esposa, que me ajudou com seus esclarecimentos. FSP, 18/10/03
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11. Única esperança
LUIZ FERNANDO VERÍSSIMO
Defendo a tese de que a única esperança para a sobrevivência do gênero masculino sobre a Terra é o
travesti. Se não fosse o travesti, estaríamos condenados à extinção em 20, no máximo trinta anos.
Já existem técnicas de reprodução humana em que um óvulo é fecundado com outro. Como o
aperfeiçoamento destas técnicas permitirá um controle genético inalcançável por outros meios, o
espermatozóide gradualmente perderá sua função no processo de procriação, e sua razão de ser. E
quem fornece espermatozóides, com exclusividade, no mundo somos nós, machos. Estamos aqui para
isto. A nossa função e razão de ser é esta.
É verdade que, enquanto produzíamos os espermatozóides, fizemos outras coisas. Civilizações,
sistemas filosóficos e jurídicos, pontes, represas, o teto da Capela Sistina, etc. (E desenvolvemos o
processo suicida que dispensa o macho na reprodução da espécie.) Mas tudo isto foi atividade
secundária. Nosso negócio principal, transmitido de pai para filho desde o ano zero, é
espermatozóides. E somos um monopólio em vias de descobrir que não há mais mercado para o nosso
produto.
Não há o que fazer. Não podemos adaptar a planta para produzir outra coisa. Com o tempo, quando a
própria Natureza se der conta de que somos um gênero supérfluo, começarão a nascer mais
produtoras de óvulos do que homens. E cedo ou tarde as mulheres se perguntarão para que servem os
poucos homens que sobrarem. As profissões tradicionalmente masculinas —- leão-de-chácara,
estivador, chef, zagueiro central — ou serão automatizadas ou ocupadas por mulheres. Como
parceiros sexuais, seremos facilmente substituíveis, também pela automatização ou por outras
mulheres. O que impedirá as mulheres de começarem a eliminar os machos ao nascer, para evitar o
estorvo e o custo da sua inutilidade?
Os travestis. Eles serão os últimos depositários das graças femininas em desuso. Manterão vivos o
coquetismo, a futilidade estabanada, a inocência provocadora e tudo que os homens de outra era
chamavam de feminilidade — e que nenhuma mulher, ocupada em ser dona do mundo, conseguirá
parodiar tão bem. E garantirão a sobrevivência do nosso sexo, nem que seja no cativeiro. O GLOBO,
21/12/03
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12. O padeiro
RUBEM BRAGA
1913▬ 1990
Levanto cedo, faço minhas abluções, ponho a chaleira no fogo para fazer café e abro a porta do
apartamento - mas não encontro o pão costumeiro. No mesmo instante me lembro de ter lido alguma
coisa nos jornais da véspera sobre a "greve do pão dormido". De resto não é bem uma greve, é um lock-
out, greve dos patrões, que suspenderam o trabalho noturno; acham que obrigando o povo a tomar
seu café da manhã com pão dormido conseguirão não sei bem o que do governo.
Está bem. Tomo o meu café com pão dormido, que não é tão ruim assim. E enquanto tomo café vou
me lembrando de um homem modesto que conheci antigamente. Quando vinha deixar o pão à porta
do apartamento ele apertava a campainha, mas, para não incomodar os moradores, avisava gritando:
― Não é ninguém, é o padeiro!
Interroguei-o uma vez: como tivera a idéia de gritar aquilo?
"Então você não é ninguém?"
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Ele abriu um sorriso largo. Explicou que aprendera aquilo de ouvido. Muitas vezes lhe acontecera
bater a campainha de uma casa e ser atendido por uma empregada ou outra pessoa qualquer, e ouvir
uma voz que vinha lá de dentro perguntando quem era; e ouvir a pessoa que o atendera dizer para
dentro: "não é ninguém, não senhora, é o padeiro". Assim ficara sabendo que não era ninguém...
Ele me contou isso sem mágoa nenhuma, e se despediu ainda sorrindo. Eu não quis detê-lo para
explicar que estava falando com um colega, ainda que menos importante. Naquele tempo eu também,
como os padeiros, fazia o trabalho noturno. Era pela madrugada que deixava a redação de jornal,
quase sempre depois de uma passagem pela oficina - e muitas vezes saía já levando na mão um dos
primeiros exemplares rodados, o jornal ainda quentinho da máquina, como pão saído do forno.
Ah, eu era rapaz, eu era rapaz naquele tempo! E às vezes me julgava importante porque no jornal que
levava para casa, além de reportagens ou notas que eu escrevera sem assinar, ia uma crônica ou
artigo com o meu nome. O jornal e o pão estariam bem cedinho na porta de cada lar; e dentro do meu
coração eu recebi a lição de humildade daquele homem entre todos útil e entre todos alegre; "não é
ninguém, é o padeiro!"
E assobiava pelas escadas.
Texto extraído do livro:
Para gostar de ler, Vol I -Crônicas . Carlos Drummond de Andrade, Fernando Sabino, Paulo Mendes
Campos e Rubem Braga. 12ª Edição. Editora Ática . São Paulo.1989. p.63 - 64.
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13. Crônica IX
GRACILIANO RAMOS
O vendedor de jornais é o tipo mais despreocupado e alegre do mundo.
Tem uma alma de pássaro.
Claro está que nos não referimos ao carrancudo português que, em meio de uma chusma de folhas
metodicamente dispostas, passa os dias sentado, com as pernas cruzadas no ponto de reunião da Rua
do Ouvidor com o Largo de São Francisco, na Brahma, nas portas dos cafés da Avenida, em toda a
parte. Não aludimos tampouco ao grave italiano de bigodeira espessa nem ao "carcamano" que, de
bolsa a tiracolo, apregoa uma algaravia "à la diable", a Nôtizia e o Zêculo.
Queremos falar do pequenino garoto de dez anos, o brasileirito trêfego, ativo, tagarela como uma pega,
travesso como um tico-tico.
Está sempre a rir, sempre a cantar. Canta o dia inteiro, num tom arrastado, apregoando as revistas
que vende.
Por aqui, por ali, vai, vem, corre, galopa, atravessa as ruas com uma rapidez de raio, persegue os
veículos, desliza entre os automóveis como uma sombra. Parece invulnerável.
É assim uma espécie de pensionista do público - arrebata as pontas de charuto que se jogam à rua e
surrupia, para revender, os jornais que se deixa esquecidos nos bancos dos passeios. Se pode à
socapa, deita a mão a alguma dessas pirâmides de frutos que sedutoramente se elevam às portas das
mercearias.
É extraordinária a celeridade com que ele se transporta de um lugar para outro. Anuncia no Leme, na
Tijuca, em Niterói, um jornal que a gente pensa ainda estar no prelo. Dir-se-ia que tem asas.
Fuma, bebe aguardente, pragueja, solta pilhérias torpes, pisca os olhos maliciosamente à passagem
das mulheres, canta trovas obscenas com a música da "Cabocla de Caxangá".
Torna-se importuno às vezes, quando, a correr pelas plataformas dos bondes, fazendo reviravoltas de
símio para escapar à sanha de algum condutor rabugento, nos atordoa os ouvidos com estupendos
gritos estridentes.
Nada lhe empana a limpidez de espírito, nada. Está tão habituado a anunciar todos os dias "um
grande atentado, um pavoroso incêndio, a prisão do célebre bandido Fulano", que afinal acaba por
encarar todos esse fatos indeferentemente.
Tem gestos próprios e expressões peculiares. Para ele um assassínio ou um suicídio é simplesmente
uma "encrenca". Um conflito é um "robo". Sua interjeição predileta é uê, que aliás é usada por toda a
gente carioca.
Parece que desconhece hierarquias e vaidades tolas, porque não empresta títulos a nenhum nome.
Diz: "O partido do Pinheiro, discursos do Ruy Barbosa, o governo do Nilo Peçanha", como se todos os
cabecilhas da República fossem apenas vendedores de jornais.
Fala sobre política, conhece o valor de nossos parlamentares, discute os principais episódios da
conflagração européia, critica os atos do poder e emprega imoderadamente esses vistosos adjetivos
que figuram nos cabeçalhos dos artigos importantes para engodar o público incauto.
Detesta a monotonia dos tempos de paz. Gosta das revoluções, dos motins, das grossas "mixórdias"
que lhe proporcionam ocasiões de ver todas as folhas arrebatadas, sem que haja necessidade de ele
gritar como nos dias ordinários.
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Não é somente o jornalista que explora vantajosamente os crimes - ele, o garoto endiabrado, também
sabe tirar partido das mais insignificantes perturbações da ordem, revestindo todos os fatos de
acessórios que lhes dão proporções extraordinárias. Parece que tem o dom de pôr um grande vidro de
aumentar em cima dos acontecimentos.
É astucioso, impostor, velhaco.
Com uma finura de comerciante velho, emprega artimanhas de mestre, complicados ardis, artifícios
que são uma obra-prima de sutileza, tudo para embair os transeuntes. Mente apregoando sedutoras
notícias fantásticas.
Enfim, sob certos pontos de vista, o pequeno garoto vendedor de jornais é uma espécie de jornalista
em miniatura...
Extraído do livro
Linhas tortas. Graciliano Ramos. Editora Record. 11ª Edição. Rio de Janeiro. 1984. p. 29 - 31.
Paraíba do Sul, em 20 de maio de 1915.
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14. Como Comecei a Escrever
Rubem Braga
Já contei em uma crônica a primeira vez que vi meu nome em letra de forma: foi no jornalzinho "O
ltapemirim", órgão oficial do Grêmio Domingos Martins, dos alunos do colégio Pedro Palácios, de
Cachoeiro de Itapemirim. O professor de Português passara uma composição "A Lágrima" — e meu
trabalho foi julgado tão bom que mereceu a honra de ser publicado.
Eu ainda estava no curso secundário quando um de meus irmãos mais velhos — Armando — fundou
em Cachoeiro um jornal que existe até hoje — o "Correio do Sul". Fui convidado a escrever alguma
coisa, o que também aconteceu com meu irmão Newton, que fazia principalmente poemas.
Eu escrevia artigos e crônicas sobre assuntos os mais variados; no verão mandava da praia de
Marataizes uma crônica regular, chamada "Correio Maratimba". Quando fui para o Rio (na verdade
para Niterói) por volta dos 15 anos, mandava correspondência para o Correio. Continuei a fazer o
mesmo em 1931, quando mudei para Belo Horizonte.
A essa altura meu irmão Newton trabalhava na redação do "Diário da Tarde" de Minas. Em começo de
1932 ele deixou o emprego e voltou para Cachoeiro; herdei seu lugar no jornal.
Passei então a escrever diária e efetivamente, e fui aprendendo a redigir com os profissionais como
Octavio Xavier Ferreira e Newton Prates. Quando terminei meu curso de Direito, resolvi continuar
trabalhando em jornal.
Fazia crônicas, reportagens e serviços de redação. Ainda em 1932 tive uma experiência bastante séria:
fuI fazer reportagem na frente de guerra da Mantiqueira missão aventurosa porque a direção de meu
jornal'era favorável à Revolução Constitucionalista dos paulistas, e eu estava na frente getulista.
Acabei preso e mandado de volta.
A essa altura eu já era um profissional de imprensa, e nunca mais deixei de ser.
Texto extraído do livro "Para Gostar de Ler - Volume 4 - Crônicas", Editora Ática - São Paulo, 1980, pág.
4.
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15. Meu Ideal Seria Escrever...
Rubem Braga
Meu ideal seria escrever uma história tão engraçada que aquela moça que está doente naquela casa
cinzenta quando lesse minha história no jornal risse, risse tanto que chegasse a chorar e dissesse --
"ai meu Deus, que história mais engraçada!". E então a contasse para a cozinheira e telefonasse para
duas ou três amigas para contar a história; e todos a quem ela contasse rissem muito e ficassem
alegremente espantados de vê-la tão alegre. Ah, que minha história fosse como um raio de sol,
irresistivelmente louro, quente, vivo, em sua vida de moça reclusa, enlutada, doente. Que ela mesma
ficasse admirada ouvindo o próprio riso, e depois repetisse para si própria -- "mas essa história é
mesmo muito engraçada!".
Que um casal que estivesse em casa mal-humorado, o marido bastante aborrecido com a mulher, a
mulher bastante irritada com o marido, que esse casal também fosse atingido pela minha história. O
marido a leria e começaria a rir, o que aumentaria a irritação da mulher. Mas depois que esta, apesar
de sua má vontade, tomasse conhecimento da história, ela também risse muito, e ficassem os dois
rindo sem poder olhar um para o outro sem rir mais; e que um, ouvindo aquele riso do outro, se
lembrasse do alegre tempo de namoro, e reencontrassem os dois a alegria perdida de estarem juntos.
Que nas cadeias, nos hospitais, em todas as salas de espera a minha história chegasse -- e tão
fascinante de graça, tão irresistível, tão colorida e tão pura que todos limpassem seu coração com
lágrimas de alegria; que o comissário do distrito, depois de ler minha história, mandasse soltar
aqueles bêbados e também aqueles pobres mulheres colhidas na calçada e lhes dissesse -- "por favor,
se comportem, que diabo! Eu não gosto de prender ninguém!" . E que assim todos tratassem melhor
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seus empregados, seus dependentes e seus semelhantes em alegre e espontânea homenagem à minha
história.
E que ela aos poucos se espalhasse pelo mundo e fosse contada de mil maneiras, e fosse atribuída a
um persa, na Nigéria, a um australiano, em Dublin, a um japonês, em Chicago -- mas que em todas
as línguas ela guardasse a sua frescura, a sua pureza, o seu encanto surpreendente; e que no fundo
de uma aldeia da China, um chinês muito pobre, muito sábio e muito velho dissesse: "Nunca ouvi
uma história assim tão engraçada e tão boa em toda a minha vida; valeu a pena ter vivido até hoje
para ouvi-la; essa história não pode ter sido inventada por nenhum homem, foi com certeza algum
anjo tagarela que a contou aos ouvidos de um santo que dormia, e que ele pensou que já estivesse
morto; sim, deve ser uma história do céu que se filtrou por acaso até nosso conhecimento; é divina".
E quando todos me perguntassem -- "mas de onde é que você tirou essa história?" -- eu responderia
que ela não é minha, que eu a ouvi por acaso na rua, de um desconhecido que a contava a outro
desconhecido, e que por sinal começara a contar assim: "Ontem ouvi um sujeito contar uma
história...".
E eu esconderia completamente a humilde verdade: que eu inventei toda a minha história em um só
segundo, quando pensei na tristeza daquela moça que está doente, que sempre está doente e sempre
está de luto e sozinha naquela pequena casa cinzenta de meu bairro.
A crônica acima foi extraída do livro "A traição das elegantes", Editora Sabiá - Rio de Janeiro,
1967, pág. 91.
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16. Mãe
(Crônica dedicada ao Dia das Mães, embora com o final inadequado, ainda que autêntico.)
Rubem Braga
O menino e seu amiguinho brincavam nas primeiras espumas; o  pai fumava um cigarro na praia,
batendo papo com um amigo. E o mundo era inocente, na manhã de sol.
Foi então que chegou a Mãe (esta crônica é modesta contribuição ao Dia das Mães), muito elegante em
seu short, mais ainda em seu maiô. Trouxe óculos escuros, uma esteirinha para se esticar, óleo para
a pele, revista para ler, pente     para se pentear — e trouxe seu coração de Mãe que imediatamente
se pôs aflito achando que o menino estava muito longe e o mar estava muito forte.
Depois de fingir três vezes não ouvir seu nome gritado pelo pai, o garoto saiu do mar resmungando,
mas logo voltou a se interessar pela alegria da vida, batendo bola com o amigo.
Então a Mãe começou a folhear a revista mundana — "que vestido  horroroso o da Marieta neste
coquetel" — "que presente de casamento
 vamos dar à Lúcia? tem de ser uma coisa boa" — e outros pequenos assuntos sociais foram aflorados
numa conversa preguiçosa. Mas de repente:
— Cadê Joãozinho?
O outro menino, interpelado, informou que Joãozinho tinha ido em casa apanhar uma bola maior.
— Meu Deus, esse menino atravessando a rua sozinho! Vai lá, João, para atravessar com ele, pelo
menos na volta!
O pai (fica em minúscula; o Dia é da Mãe) achou que não era preciso:
— O menino tem OITO anos, Maria!
— OITO anos, não, oito anos, uma criança. Se todo dia morre gente grande atropelada, que dirá um
menino distraído como esse!
E erguendo-se olhava os carros que passavam, todos guiados por assassinos (em potencial) de seu
filhinho.
— Bem, eu vou lá só para você não ficar assustada.
Talvez a sombra do medo tivesse ganho também o coração do pai; mas quando ele se levantou e
calçou a alpercata para atravessar os vinte metros de areia fofa e escaldante que o  separavam da
calçada, o garoto apareceu correndo alegremente com uma bola vermelha na mão, e a paz voltou a
reinar sobre a face da praia.
Agora o amigo do casal estava contando pequenos escândalos de uma festa a que fora na véspera, e o
casal ouvia, muito interessado — "mas a Niquinha com o coronel? não é possível!" — quando a Mãe
se ergueu de repente:
— E o Joãozinho?
Os três olharam em todas as direções, sem resultado. O marido, muito calmo — "deve estar por aí", a
Mãe gradativamente nervosa — "mas por aí, onde?" — o amigo otimista, mas levemente apreensivo.
Havia cinco ou seis meninos dentro da água, nenhum era o Joãozinho. Na areia havia outros. Um
deles, de costas, cavava um buraco com as mãos, longe.
— Joãozinho!
O pai levantou-se, foi lá, não era. Mas conseguiu encontrar amigo do filho e perguntou por ele.
— Não sei, eu estava catando conchas, ele estava catando comigo, depois ele sumiu.
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A Mãe, que viera correndo, interpelou novamente o amigo do filho. "Mas sumiu como? para onde?
entrou na água? não sabe? mas que menino pateta!" O garoto, com cara de bobo, e assustado com o
interrogatório, se afastava, mas a Mãe foi segurá-lo pelo braço: "Mas diga, menino, ele entrou no mar?
como é que você não viu, você não estava com ele? hein? ele entrou no mar?".
— Acho que entrou... ou então foi-se embora.
De pé, lábios trêmulos, a Mãe olhava para um lado e outro, apertando bem os olhos míopes para
examinar todas as crianças em volta. Todos os meninos de oito anos se parecem na praia, com seus
corpinhos queimados e suas cabecinhas castanhas. E  como ela queria que cada um fosse seu filho,
durante um segundo cada um daqueles meninos era o seu filho, exatamente ele, enfim — mas um
gesto, um pequeno movimento de cabeça, e deixava de ser. Correu para um lado e outro. De súbito
ficou parada olhando o mar, olhando com tanto ódio e medo (lembrava-se muito bem da história
acontecida dois a três anos antes, um menino estava na praia com os pais, eles se distraíram um
instante, o menino estava brincando no rasinho, o mar o levou, o corpinho só apareceu cinco dias
depois, aqui nesta pr aia mesmo!) — deu grito para as ondas e espumas — "Joãozinho!".
Banhistas distraídos foram interrogados — se viram algum menino entrando no mar — o pai e o
amigo partiram para um lado e outro da praia, a Mãe ficou ali, trêmula, nada mais  existia para ela,
sua casa e família, o marido, os bailes, os Nunes,  tudo era ridículo e odioso, toda essa gente estúpida
na  praia que não sabia de seu filho, todos eram culpados — Joãozinho !" — ela mesma não tinha
mais nome nem era mulher, era um bicho ferido, trêmulo, mas terrível, traído no mais  essencial de
seu ser, cheia de pânico e de ódio, capaz de tudo — "Joãozinho !" — ele apareceu bem perto, trazendo
na mão um sorvete que fora comprar. Quase jogou longe o sorvete do menino com um tapa, mandou
que ele ficasse sentado ali, se saísse um passo iria ver, ia apanhar muito, menino desgraçado!
O pai e o amigo voltaram a sentar, o menino riscava a areia com o dedo grande do pé, e quando sentiu
que a tempestade estava passando fez o comentário em voz baixa, a cabeça curva, mas os olhos
erguidos na direção dos pais:
— Mãe é chaaata...
Maio, 1953
Texto extraído do livro “A Cidade e a Roça”, Editora do Autor – Rio de Janeiro, 1964, pág. 57.
http://intervox.nce.ufrj.br/~jobis/c-mae.html
22/08/06

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17. Os jornais
RUBEM BRAGA
Meu amigo lança fora, alegremente, o jornal que está lendo e diz:
— Chega! Houve um desastre de trem na França, um acidente de mina na Inglaterra, um surto de
peste na índia. Você acredita nisso que os jornais dizem? Será o mundo assim, uma bola confusa, onde
acontecem unicamente desastres e desgraças? Não! Os jornais é que falsificam a imagem do mundo. Veja
por exemplo aqui: em um subúrbio, um sapateiro matou a mulher que o traía. Eu não afirmo que isso
seja mentira. Mas acontece que o jornal escolhe os fatos que noticia. O jornal quer fatos que sejam
notícias, que tenham conteúdo jornalístico. Vejamos a história desse crime. "Durante os três primeiros
anos o casal viveu imensamente
feliz. . ." Você sabia disso? O jornal nunca publica uma nota assim:
"Anteontem, cerca de 21 horas, na rua Arlinda, no Méier, o sapateiro Augusto Ramos, de 28 anos,
casado com a senhora Deolinda Brito Ramos, de 23 anos de idade, aproveitou-se de um momento em
que sua consorte erguia os braços para segurar uma lâmpada para abraçá-la alegre-
- mente, dando-lhe beijos na garganta e na face, culminando em um beijo na orelha esquerda. Em
vista disso, a senhora em questão voltou-se para o seu marido, beijando-o longamente na boca e
murmurando as seguintes palavras: "Meu amor", ao que ele retorquiu: "Deolinda". Na manhã seguinte,
Augusto Ramos foi visto saindo de sua residência às 7,45 da manhã, isto é, dez minutos mais tarde
do que o habitual, pois se demorou, a pedido de sua esposa, para consertar a gaiola de um canário-da-
terra de propriedade do casal ".
A impressão que a gente tem, lendo os jornais — con' tinuou meu amigo — é que "lar" é um local
destinado principalmente à prática de "uxoricídio". E dos bares, nem se fala. Imagine isto:
"Ontem, cerca de 10 horas da noite, o indivíduo Ana-nias Fonseca, de 28 anos, pedreiro, residente à
rua Chiqui-nha, sem número, no Encantado, entrou no bar "Flor Mineira", à rua Cruzeiro, 524, em
companhia de seu colega Pedro Amâncio de Araújo, residente no mesmo endereço. Ambos entregaram-
se a fartas libações alcoólicas e já se dispunham a deixar o botequim quando apareceu Joca de tal, de
residência ignorada, antigo conhecido dos dois pedreiros, e que também estava visivelmente alcoolizado.
Dirigindo-se aos dois amigos, Joca manifestou desejo de sentar--se à sua mesa, no que foi atendido.
Passou então a pedir rodadas de conhaque, sendo servido pelo empregado do botequim, Joaquim
Nunes. Depois de várias rodadas, Joca declarou que pagaria toda a despesa. Ananias e Pedro
protestaram, alegando que eles já estavam na mesa antes. Joca, entretanto, insistiu, seguindo-se uma
13
disputa entre os três homens, que terminou com a intervenção do referido empregado, que aceitou a
nota que Joca lhe estendia. No momento em que trouxe o troco, o garçom recebeu uma boa gorjeta,
pelo que ficou contentíssimo, o mesmo acontecendo aos três amigos que se retiraram do bar
alegremente, cantarolando sambas. Reina a maior paz no subúrbio do Encantado, e a noite foi
bastante fresca, tendo dona Maria, sogra do comerciário Adalberto Ferreira, residente à rua Benedito,
14, senhora que sempre foi muito friorenta, chegado a puxar o cobertor, tendo depois sonhado que seu
netinho lhe oferecia um pedaço de goiabada ".
E meu amigo:
— Se um repórter redigir essas duas notas e levá-las a um secretário de redação, será chamado de
louco. Porque os jornais noticiam tudo, tudo, menos uma coisa tão banal de que ninguém se lembra: a
vida. . .
Maio, 1951
IN ANDRADE, C. D. de e outros. Para gostar de ler: crônicas. v.5. São Paulo: Ática, 1979-1980,
p.47-48.
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18. Anúncio de João Alves
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
Figura o anúncio em um jornal que o amigo me mandou, e está assim redigido:

A procura de uma besta. — A partir de 6 de outubro do ano cadente, sumiu-me uma besta vermelho-
escura com os seguintes característicos: calçada e ferrada de todos os membros locomotores, um
pequeno quisto na base da orelha direita e crina dividida em duas seções em consequência de um golpe,
cuja extensão pode alcançar de 4 a 6 centímetros, produzido por jumento.
Essa besta, muito domiciliada nas cercanias deste comércio, é muito mansa e boa de sela, e tudo me
induz ao cálculo de que foi roubada, assim que hão sido falhas todas as indagações.
Quem, pois, apreendê-la em qualquer parte e a fizer entregue aqui ou pelo menos notícia exata ministrar,
será razoavelmente remunerado. Itambé do Mato Dentro, 19 de novembro de 1899. (a) João Alves Júnior.

55 anos depois, prezado João Alves Júnior, tua besta vermelho-escura, mesmo que tenha aparecido, já é
pó no pó. E tu mesmo, se não estou enganado, repousas suavemente no pequeno cemitério de Itambé.
Mas teu anúncio continua um modelo no género, se não para ser imitado, ao menos como objeto de
admiração literária.
Reparo antes de tudo na limpeza de tua linguagem. Não escreveste apressada e toscamente, como seria
de esperar de tua condição rural. Pressa, não a tiveste, pois o animal desapareceu a 6 de outubro, e só a
19 de novembro recorreste à Cidade de Itabira. Antes, procedeste a indagações. Falharam. Formulaste
depois um raciocínio: houve roubo. Só então pegaste da pena, e traçaste um belo e nítido retrato da
besta.
Não disseste que todos os seus cascos estavam ferrados; preferiste dizê-lo "de todos os seus membros
locomotores". Nem esqueceste esse pequeno quisto na orelha e essa divisão da crina em duas seções, que
teu zelo naturalista e histórico atribuiu com segurança a um jumento.
Por ser "muito domiciliada nas cercanias deste comércio, isto é, do povoado e sua feirinha semanal,
inferiste que não teria fugido, mas antes foi roubada. Contudo, não o afirmas em tom peremptório: "tudo
me induz a esse cálculo". Revelas aí a prudência mineira, que não avança (ou não avançava) aquilo que
não seja a evidência mesma. Ê cálculo, raciocínio, operação mental e desapaixonada como qualquer
outra, e não denúncia formal.
Finalmente — deixando de lado outras excelências de tua prosa útil — a declaração final: quem a
apreender ou pelo menos "notícia exata ministrar", será "razoavelmente remunerado". Não prometes
recompensa tentadora; não fazes praças de generosidade ou largueza; acenas com o razoável, com a justa
medida das coisas, que deve prevalecer mesmo no caso de bestas perdidas e entregues.
Já é muito tarde para sairmos à procura de tua besta, meu caro João Alves do Itambé; entretanto essa
criação volta a existir, porque soubeste descrevê-la com decoro e propriedade, num dia remoto, e o jornal
a guardou e alguém hoje a descobre, e muitos outros são informados da ocorrência. Se lesses os
anúncios de objetos e animais perdidos, na imprensa de hoje, ficarias triste. Já não há essa precisão de
termos e essa graça no dizer, nem essa moderação nem essa atitude crítica. Não há, sobretudo, esse
amor à tarefa bem feita, que se pode manifestar até mesmo num anúncio de besta sumida.
IN ANDRADE, C. D. de e outros. Para gostar de ler: crônicas. v.5. São Paulo: Ática, 1979-1980,
p.21-22.

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19. Romance dos pequenos anúncios
ANTONIO MARIA
14
Dinheiro — Preciso 35 mil
cruzeiros empréstimo,
boas referencias.
Pago no vencimento
50 mil 30 dias.
— Mas, a gente vai separar por quê? — perguntou o marido. A conversa começou cerca da meia-noite,
e eram oito da manhã. Marilda só dizia que ia separar e que não ficava mais nem um dia. Na hora de
explicar o motivo, se trancava. A pergunta "você tem um novo alguém", Jaribe lhe fizera umas mil
vezes. Marilda se arrepiava da cabeça aos pés, com a forma "um novo alguém". Foi quando Jaribe
levantou, foi no armário e, de urna malinha da Varig, trouxe um Smith Wesson 38, carga dupla.
— Fala, Marilda. Se não falar eu me mato aqui mesmo.
Marilda não sabia daquele revólver. Nunca vira, antes, alguém com um revólver na mão. Sentiu uma
náusea. A violência, qualquer espécie de violência, lhe nauseava. Pediu:
— Guarde o revólver que eu falo.
Jaribe atirou o revólver, de qualquer maneira, no armário.
— Vai, fala.
Marilda ergueu metade do corpo e recostou no espaldar da cama. Tinha que falar. Um homem nunca
se conforma em separar-se sem ouvir, bem direitinho, no mínimo 500 vezes, que a mulher não gosta
mais dele, por que e por causa de quem. Já mulher, não (pensava). Basta que o homem lhe diga uma
vez que quer ir embora, nasce-lhe um brio, um ódio poderoso, uma espécie de soberba, tão grande,
que ela se veste toda, pega um telefone, pede um táxi e sai. Mulher (pensara Marilda, a noite inteira)
pode não ter muita vergonha nos outros lugares. Mas, na cara, tem. Mulher não se importa de vestir o
menor dos biquínis e deixar que a vejam, horas. Mas não consente que o homem que a despreza lhe
olhe a cara, um só minuto.
Mas tinha que falar, porque homem, enquanto não sabe do pior, não sossega. E começou, Marilda,
sem um segundo de sono (seis "dexas"), recostada no espaldar.
— Escuta, bem. Você sabe que eu tenho minhas coisas, não sabe? Fala. Sabe ou não sabe?
— Mas conta.
— Você vai dizer que eu sou louca, se eu disser que, no terceiro mês de casada, não agüentava ouvir
ou dizer seu nome. Nós estamos casados há dois anos e três meses, não é? Pois bem, qual foi a última
vez que você me ouviu chamar você pelo nome?
Jaribe fez uma rápida busca no tempo e só lembrou de Marilda a chamá-lo de "meu bem". Ou, então,
quando não havia ninguém perto, falar assim: "hei"!... e dizer o que queria.
Marilda continuava:
— Tentei o seu sobrenome. Você se lembra que, de junho a agosto do ano passado, eu passei
chamando você de Carvalho? Mas não podia continuar. Mulher chamar marido pelo sobrenome é
humilhante demais.
— Mas meu nome é tirado da Bíblia — ... apelou Jaribe.
Marilda continuou:
— Mas não é só isto. Você fala umas coisas que não há mulher que agüente.
Houve uma pausa, que Jaribe se apressou em quebrar:
— Por exemplo?
Marilda preferia não dizer. Ajeitou-se no espaldar da cama, puxando o lençol acima dos seios, pois
naquela posição a camisola não estava dando conta. Mulher não diz nada sério, não assume mesmo a
mínima dignidade, se houver qualquer de suas pudícias à mostra. Marilda puxou o lençol até o
pescoço.
— Eu estou esperando — insistiu Jaribe.
E Marilda falou o resto:
— Outra coisa: você fala "menas".
— Como assim?
— Você diz muito: "menas gente".
Jaribe a amava como um louco. Sentia, por dentro, uma dor enorme. Aquela dor da falta de ginásio.
Mas queria saber tudo:
— E você tem um novo alguém?
Marilda botou o rosto dentro das mãos e começou a chorar. Chorava e falava, ao mesmo tempo:
— Me manda embora! Me manda um mês para fora pra ver se a gente conserta! Deixa eu ficar dois
meses no Paraná com a família da minha madrasta! Vai, arranja um dinheiro e me manda! Depois a
gente acerta.
Jaribe o que queria era esperança. Como todo homem que sente perder a mulher, queria a esperança
de ainda retê-la. Tivesse ou não "um novo alguém", ele queria Marilda. Honra? O que é honra? Em que
parte do corpo está localizada?
Com a lucidez dos enganados, Jaribe descobria todas as verdades da vida.
15
Pobre Jaribe! Iria arranjar o dinheiro, custasse o que custasse. Com uns 35 mil cruzeiros,
solucionaria o problema. Qualquer agiota lhe emprestaria 35 por cinqüenta, em trinta dias. Qualquer
um. O próprio contador da Importadora. Se falhasse, era só botar um anúncio no Jornal do Brasil.
Naquela efusão de suas esperanças, pensou: "Por que será que a Condessa comprou a Tribuna?". Pôs-
se de pé.
— Olha, Marilda. Você vai para o Paraná, sim. Depois de amanhã. Fica lá, descansa, passa o tempo
que quiser e depois volta.
— Faz uma coisa — pediu Marilda —. Você me escreve, tá?
— Claro. Você vai para descansar.
E Jaribe foi para o banheiro, alentado por todos os maus alentos. Vigiar-se-ia dali por diante quando
falasse.
Precisava de Marilda. Retê-la-ia, custasse o que custasse. E, coitado, em tudo o que pensava, não
estava mais que estruturando sobre o absurdo.
24/2/1962
Texto extraído do livro "Com vocês, Antônio Maria", Editora Paz e Terra, São Paulo, 1994, pág. 185.
http://www.releituras.com/index.asp
22/08/06

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20. O pechada
Luis Fernando Verissimo
O apelido foi instantâneo. No primeiro dia de aula, o aluno novo já estava sendo chamado de
"Gaúcho". Porque era gaúcho. Recém-chegado do Rio Grande do Sul, com um sotaque carregado.
– Aí, Gaúcho!
– Fala, Gaúcho!
Perguntaram para a professora por que o Gaúcho falava diferente. A professora explicou que cada
região tinha seu idioma, mas que as diferenças não eram tão grandes assim. Afinal, todos falavam
português. Variava a pronúncia, mas a língua era uma só. E os alunos não achavam formidável que
num país do tamanho do Brasil todos falassem a mesma língua, só com pequenas variações?
– Mas o Gaúcho fala "tu"! – disse o gordo Jorge, que era quem mais implicava com o novato.
– E fala certo - disse a professora. – Pode-se dizer "tu" e pode-se dizer "você". Os dois estão certos. Os
dois são português.
O gordo Jorge fez cara de quem não se entregara.
Um dia o Gaúcho chegou tarde na aula e explicou para a professora o que acontecera.
– O pai atravessou a sinaleira e pechou.
– O que?
– O pai. Atravessou a sinaleira e pechou.
A professora sorriu. Depois achou que não era caso para sorrir. Afinal, o pai do menino atravessara
uma sinaleira e pechara. Podia estar, naquele momento, em algum hospital. Gravemente pechado.
Com pedaços de sinaleira sendo retirados do seu corpo.
– O que foi que ele disse, tia? – quis saber o gordo Jorge.
– Que o pai dele atravessou uma sinaleira e pechou.
– E o que é isso?
– Gaúcho... Quer dizer, Rodrigo: explique para a classe o que aconteceu.
– Nós vinha...
– Nós vínhamos.
– Nós vínhamos de auto, o pai não viu a sinaleira fechada, passou no vermelho e deu uma pechada
noutro auto.
A professora varreu a classe com seu sorriso. Estava claro o que acontecera? Ao mesmo tempo,
procurava uma tradução para o relato do gaúcho. Não podia admitir que não o entendera. Não com o
gordo Jorge rindo daquele jeito.
"Sinaleira", obviamente, era sinal, semáforo. "Auto" era automóvel, carro. Mas "pechar" o que era?
Bater, claro. Mas de onde viera aquela estranha palavra? Só muitos dias depois a professora
descobriu que "pechar" vinha do espanhol e queria dizer bater com o peito, e até lá teve que se
esforçar para convencer o gordo Jorge de que era mesmo brasileiro o que falava o novato. Que já
ganhara outro apelido: Pechada.
– Aí, Pechada!
– Fala, Pechada!
Nova Escola, Edição Nº142 ▬Maio de 2001

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21. Tipo assim
Kledir Ramil
Tô ficando velho! Um dia desses, às 2 da manhã, peguei o carro e fui buscar minha filha adolescente
na saída do show do Charlie Brown Jr. Ela e as amigas estavam eufóricas e eu ali, meio dormindo,
meio de pijama, tentei entrar na conversa. "E aí, o show foi legal?". A resposta veio de uma mais
exaltada do banco de trás: "Cara! Tipo assim, foda!". E outra emendou: "Tipo foda mesmo!" Fiquei tipo
assim calado o resto do percurso, cumprindo minha função de motorista. Tô precisando conversar um
pouco mais com minha filha, senão daqui a pouco vamos precisar de tradução simultânea.
Para piorar ainda mais, inventaram o ICQ, essa praga da internet onde elas ficam horas e horas
escrevendo abobrinhas umas pras outras, em código secreto. Tipo assim "kct! vc tmb nunk tah trank,
kra. Eh d+, sl. T+ Bjoks. Jubys". Em português: "Cacete! Você também nunca está tranqüila, cara. É
demais, sei lá. Até mais, beijocas. Jubys". Jubys, que deve ser pronunciado "diúbis", é isso mesmo
que você está imaginando, a assinatura. Só que o nome de batismo é Júlia, um nome bonito, cujo
significado é "cheia de juventude", que eu e minha mulher escolhemos, sentados na varanda, olhando
a lua... Pois Jubys é hoje essa personagem de cabelo cor de abóbora, cheia de furos nas orelhas, que
quer encher o corpo de piercings e tatuagens. Tô ficando velho!
Outro dia tentei explicar pro mesmo bando de adolescentes o que era uma máquina de escrever.
Nunca viram uma. A melhor definição que consegui foi "é tipo assim um computador que vai
imprimindo enquanto você digita". Acho que não entenderam nada.
Eu sou do tempo do mimeógrafo. Para quem não sabe, é uma máquina que você coloca álcool e dá
manivela para imprimir o que está na folha matriz. Por sua vez, essa matriz precisa ser datilografada
(ver "datilografia" no dicionário) na tal máquina de escrever, sem a fita (o que faz com que você só
descubra os erros depois do trabalho feito), com o papel carbono invertido... Enfim, procure na
internet que deve haver algum site de antiguidades que fale sobre mimeógrafo, papel carbono, essas
coisas. Se eu ficar explicando cada vocábulo descontinuado, não vou conseguir acompanhar meu
próprio raciocínio.
Voltando às garotas, a cultura cinematográfica delas varia entre a "obra" de Brad Pitt e a de Leonardo
de Caprio. Há anos tento convencê-las a ver "Cantando na Chuva", mas sempre fica para depois. Um
dia, cheguei entusiasmado em casa com a fita de um filme francês que marcou minha infância: "A
guerra dos botões". Juntei toda a família para a exibição solene e a coisa não durou nem 5 minutos. O
guri foi jogar bola, Jubys inventou "um trabalho de história sobre a civilização greco-romana que tem
que entregar tipo assim até amanhã senão perde ponto" e até minha mulher, de quem eu esperava um
mínimo de solidariedade, se lembrou que tinha um compromisso com hora marcada e se mandou.
Fiquei ali, assistindo sozinho e lembrando do tempo em que eu trocava gibi na porta do Capitólio.
Eu sou do tempo em que vidro de carro fechava com maçaneta. E o Fusca tinha estribo e quebra
vento. Não espalha, mas eu andei de Simca Chambord, de DKW, Gordini, Aero Willis e até de
Romiseta. Não dá pra explicar aqui o que era uma Romiseta, só vou dizer que era tipo assim um
veículo automotivo, com 3 rodas, que a gente entrava pela parte da frente (onde hoje fica o motor) e a
direção era grudada na porta. Procure na internet, deve haver um site.
Tá bom, tá bom, confesso mais. Usei camisa Volta ao Mundo, casaquinho de Banlon, assisti à Jovem
Guarda, O Direito de Nascer... mas é mentira essa história de que meu primeiro disco gravado foi em
78 rotações.
Há pouco tempo, João, meu filho de 8 anos, pegou um LP e ficou fascinado. Botei pra tocar e mostrei
a agulha rodando dentro do sulco do vinil. Expliquei que aquele atrito era transformado em pulsos
elétricos e transmitido através do toca-discos, dos fios, até chegar ao alto falante onde era gerado o
som que estávamos escutando... mas aí ele já estava jogando o Pokemon Stadium no Game Boy. Não é
que ele seja desinteressado, eu é que fiquei patinando nos detalhes. Ele até que é bastante curioso e
adora ouvir as "histórias do tempo em que eu era criança". Quando contei que a TV, naquela época,
era toda em preto e branco ele "viajou" na idéia de que o mundo todo era em preto e branco e só de
uns tempos para cá é que as coisas começaram a ganhar cores.
Acho que de certa forma ele tem razão. Tipo assim...
www.correaneto.com.br/cronicas/tipoassim.htm
22/08/06
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22. Muito pêlo contrário
MÁRIO PRATA
Tem um texto navegando aí pela internet escrito pelo Kledir (ou seria pelo Kleiton?) chamado "Tipo
Assim", que é realmente genial. O compositor gaúcho tentando explicar para os seus filhos
adolescentes as coisas que existiam no nosso tempo. Uma luta, por exemplo, para explicar o telefone
que discava ou o que era uma máquina de escrever. Tipo assim.
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E outro dia eu estava conversando com uma amiga - 22 anos - pelo messenger e ela me contou que
havia sido convidada para escrever para uma revista de mulher pelada. E eu comecei a contar - para
espanto dela - como eram as revistas de mulheres peladas - inclusive a Playboy brasileira - nos anos
duros (ops!) dos redentores militares.
Imagine você, minha amiga, que pêlo não podia. Jamais! Portanto, as revistas de mulheres peladas no
começo dos anos 70 eram apenas de peitos pelados. Mas os peitos também sofriam os cortes das
tesouras da caserna. Peito grande podia, mas bico grande, não. Até hoje eu não entendi muito bem a
implicância com o problema dos bicos.
Meu irmão Leonel editava a revista Homem (mas que era de mulheres), da Editora Três. Quando a foto
apresentava um bico um pouco maior, tinha de pegar cromo por cromo das fotos e raspar. E, naquela
época, não tinha computador para diminuir bicos. Era com a gilete mesmo. Aquilo ficava meio
esquisito: aquele seio grandão e o bico mínimo. Pêlo, dizia eu, nem pensar.
Você vê que os militares eram atentos. Queriam salvar não apenas o Brasil, mas a família e os pêlos
da tradição e da propriedade alheia. A maconha, por exemplo, era alvo dos militares. Não por viciar,
fazer mal, ser contrabando, levar perigosamente a outras drogas, desviar dos estudos. Nada disso.
Fumar maconha era, segundo eles, subversão. Era subverter o social, a ordem constituída. Portanto,
ser maconheiro, era subversivo. Conheci muito comunista naquela época que fumava só para
contrariar a oliva classe dominante. Uns, fumam até hoje. Só para contrariar.
Mas voltemos aos pêlos lá de cima. Ou melhor, cá de baixo. Um dia, não mais que de repente, sabe-se
lá o porquê, liberaram os pêlos. Foi tão inesperado aquilo que nenhuma das revistas tinha pêlo em
estoque. E mais, as mocinhas da época não iam se expor assim sem mais nem menos. Podia ser um
golpe da ditadura (sem trocadilho) para descobrir os pêlos subversivos. As Adrianes, Maitês, Tiazinhas
e Lucianas da época, por preço algum iriam entrar na fria.
A solução imediata foi a exportação dos pêlos pubianos. Me lembro que uma noite o Leonel chegou lá
em casa com um pacote de 200 pêlos frontais ingleses. Como ele sabia que eram de mocinhas
inglesas, eu não sei. Podiam muito bem ser pêlos paraguaios, falsificados. Eram muito escancarados
para serem comportadamente ingleses. Mas a revista dele não podia ficar atrás da Playboy que iria
chegar às bancas com os púbis americanos, loirinhos.
O que ele queria é que a gente inventasse o nome, idade, profissão, daquelas garotas, como se elas
fossem brasileiras. Tipo assim: "Carlinha tem 19 aninhos, mora em Angra dos Reis, estuda psicologia,
tem 1,75 metro e olha a cinturinha dela. Adora J.G. de Araújo Jorge, foi miss Verão 71 e está
solteiríssima." E toma páginas e páginas de pêlos ingleses (ou paraguaios).
Só que na euforia toda, o Leonel se exaltou e colocou uma delas na capa da revista Homem (me parece
que pêlo em capa não está liberado até hoje) com uma espada na mão. Como era setembro, mês da
Semana da Pátria (na verdade semana dos militares e não da Pátria), deu o nome para a moça de
Elvira, do Ipiranga. E, lá dentro, 20 páginas. E o texto todo era uma paródia do Hino Nacional, mais
ou menos assim: "Elvira nasceu às margens plácidas do Ipiranga, de um brado retumbante"... Foi
preso e processado, é claro. Mesmo porque, naquela época, o nosso Hino e a nossa Bandeira não eram
mais nossas.
Eram deles. Não se podia sair por aí enrolado numa bandeira do Brasil. Fazer bermudinha com as
cores do Brasil dava exílio na hora. Não fosse o parentesco de um nosso cunhado com o ministro da
Justiça da época (Gama e Silva) o Leonel teria caído na clandestinidade com seus abusados pêlos. E
se fosse aqui no Estadão, no lugar dos pêlos, sairia o bigode do Camões ou uma receita de linguado.
Hoje, 30 anos depois, começo a achar que os milicos estavam um pouco certos.
Porque hoje em dia escancaram demais. E a nudez da mulher exige uma certa arte. Não se pode
mostrar tudo. Há de ter um paninho aqui ou ali. Nem que seja apenas "a ponta de um torturante
bandeide no calcanhar". Há de se usar calcinhas, sim senhora. Há de existir a mágica do escondido,
do proibido. Do procurável, do inacessível que pode, um dia, tornar-se achado e acessível.
Ou, muito pelo contrário.
OESP, 26/02/2003
http://www.marioprataonline.com.br/obra/cronicas/muito_pelo_contrario.htm
22/08/06

23. Antigamente (I)
CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
ANTIGAMENTE, as moças chamavam-se mademoiselles e eram todas mimosas e muito prendadas.
Não faziam anos: completavam primaveras, em geral dezoito. Os janotas, mesmo não sendo rapagões,
faziam-lhes pé-de-alferes, arrastando a asa, mas ficavam longos meses debaixo do balaio. E se
levavam tábua, o remédio era tirar o cavalo da chuva e ir pregar em outra freguesia. As pessoas,
quando corriam, antigamente, era para tirar o pai da forca e não caíam de cavalo magro. Algumas
jogavam verde para colher maduro, e sabiam com quantos paus se faz uma canoa. O que não impedia
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que, nesse entrementes, esse ou aquele embarcasse em canoa furada. Encontravam alguém que lhes
passasse a manta e azulava, dando às de vila-diogo. Os mais idosos, depois da janta, faziam o quilo,
saindo para tomar fresca; e também tomavam cautela de não apanhar sereno. Os mais jovens, esses
iam ao animatógrafo, e mais tarde ao cinematógrafo, chupando balas de altéia. Ou sonhavam em
andar de aeroplano; os quais, de pouco siso, se metiam em camisa de onze varas, e até em calças
pardas; não admira que dessem com os burros n’água.
HAVIA OS QUE tomaram chá em criança, e, ao visitarem família da maior consideração, sabiam
cuspir dentro da escarradeira. Se mandavam seus respeitos a alguém, o portador garantia-lhes: “Farei
presente.” Outros, ao cruzarem com um sacerdote, tiravam o chapéu, exclamando: “Louvado seja
Nosso Senhor Jesus Cristo”, ao que o Reverendíssimo correspondia: “Para sempre seja louvado.” E os
eruditos, se alguém espirrava — sinal de defluxo — eram impelidos a exortar: “Dominus tecum”.
Embora sem saber da missa a metade, os presunçosos queriam ensinar padre-nosso ao vigário, e com
isso metiam a mão em cumbuca. Era natural que com eles se perdesse a tramontana. A pessoa cheia
de melindres ficava sentida com a desfeita que lhe faziam, quando, por exemplo, insinuavam que seu
filho era artioso. Verdade seja que às vezes os meninos eram mesmo encapetados; chegavam a pitar
escondido, atrás da igreja. As meninas, não: verdadeiros cromos, umas tetéias.
ANTIGAMENTE, certos tipos faziam negócios e ficavam a ver navios; outros eram pegados com a boca
na botija, contavam tudo tintim por tintim e iam comer o pão que o diabo amassou, lá onde Judas
perdeu as botas. Uns raros amarravam cachorro com lingüiça. E alguns ouviam cantar o galo, mas
não sabiam onde. As famílias faziam sortimento na venda, tinham conta no carniceiro e arrematavam
qualquer quitanda que passasse à porta, desde que o moleque do tabuleiro, quase sempre um cabrito,
não tivesse catinga. Acolhiam com satisfação a visita do cometa, que, andando por ceca e meca, trazia
novidades de baixo, ou seja, da Corte do Rio de Janeiro. Ele vinha dar dois dedos de prosa e deixar de
presente ao dono da casa um canivete roscofe. As donzelas punham carmim e chegavam à sacada
para vê-lo apear do macho faceiro. Infelizmente, alguns eram mais do que velhacos: eram
grandessíssimos tratantes.
ACONTECIA o indivíduo apanhar constipação; ficando perrengue, mandava o próprio chamar o doutor
e, depois, ir à botica para aviar a receita, de cápsulas ou pílulas fedorentas. Doença nefasta era a
phtysica, feia era o gálico. Antigamente, os sobrados tinham assombrações, os meninos lombrigas,
asthma os gatos, os homens portavam ceroulas, botinas e capa-de-goma, a casimira tinha de ser
superior e mesmo X.P.T.O. London, não havia fotógrafos, mas retratistas, e os cristãos não morriam:
descansavam.
MAS TUDO ISSO era antigamente, isto é, outrora.

24. Antigamente (II)


CARLOS DRUMMONDE ANDRADE
ANTIGAMENTE, os pirralhos dobravam a língua diante dos pais, e se um se esquecia de arear os
dentes antes de cair nos braços de Morfeu, era capaz de entrar no couro. Não devia também se
esquecer de lavar os pés, sem tugir nem mugir. Nada de bater na cacunda do padrinho, nem de
debicar os mais velhos, pois levava tunda. Ainda cedinho, aguava as plantas, ia ao corte e logo voltava
aos penates. Não ficava mangando na rua nem escapulia do mestre, mesmo que não entendesse
patavina da instrução moral e cívica. O verdadeiro smart calçava botina de botões para comparecer
todo liró ao copo-d’água, se bem que no convescote apenas lambiscasse, para evitar flatos. Os
bilontras é que eram um precipício, jogando com pau de dois bicos, pelo que carecia muita cautela e
caldo de galinha. O melhor era pôr as barbas de molho diante de treteiro de topete: depois de fintar e
engambelar os coiós, e antes que se pusesse tudo em pratos limpos, ele abria o arco. O diacho eram
os filhos da Candinha: quem somava a candongas acabava na rua da amargura, lá encontrando,
encafifada, muita gente na embira, que não tinha nem para matar o bicho; por exemplo, o mão-de-
defunto.
BOM ERA TER as costas quentes, dar as cartas com a faca e o queijo na mão; melhor ainda, ter uma
caixinha de pós de perlimpimpim, pois isso evitava de levar a lata, ficar na pindaíba ou espichar a
canela antes que Deus fosse servido. Qualquer um acabava enjerizado se lhe chegavam a urtiga no
nariz, ou se o faziam de gato-sapato. Mas que regalo, receber de graça, no dia-de-reis, um capado!
Ganhar vidro de cheiro marca barbante, isso não: a mocinha dava o cavaco. Às vezes, sem tirte nem
guarte, aparecia o doutor pomada, todo cheio de nove horas; ia-se ver, debaixo de tanta farofa era um
doutor da mula ruça, um pé-rapado, que espiga! E a moçoila, que começava a nutrir xodó por ele, que
estava mesmo de rabicho, caía das nuvens. Quem queria lá fazer papel pança? Daí se perder as
estribeiras por uma tutaméia, um alcaide que o caixeiro nos impingia, dando de pinga um cascão de
goiabada.
EM COMPENSAÇÃO, viver não era sangria desatada, e até o Chico vir de baixo vosmecê podia provar
uma abrideira que era o suco, ficando na chuva mesmo com bom tempo. Não sendo pexote, e soltando
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arame, que vida supimpa a do degas! Macacos me mordam se estou pregando peta. E os tipos que
havia: o pau-para-toda-obra, o vira-casaca (este cuspia no prato em que comera), o testa-de-ferro, o
sabe-com-quem-está falando, o sangue-de-barata, o Dr. Fiado que morreu ontem, o zé-povinho, o
biltre, o peralvilho, o salta-pocinhas, o alferes, a polaca, o passador de nota falsa, o mequetrefe, o
safardana, o maria-vai-com-as-outras... Depois de mil peripécias, assim ou assado, todo mundo
acabava mesmo batendo com o rabo na cerca, ou, simplesmente, a bota, sem saber como descalçá-la.
MAS ATÉ AÍ morreu Neves, e não foi no Dia de São Nunca de Tarde: foi vítima de pertinaz enfermidade
que zombou de todos os recursos da ciência, e acreditam que a família nem sequer botou fumo no
chapéu? http://www.algumapoesia.com.br/drummond.htm 22/08/06
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Quero minha mãe
 ADÉLIA PRADO
Abel e eu estamos precisando de férias. Quando começa a perguntar quem tirou de não sei onde a
chave de não sei o quê, quando já de manhã espero não fazer comida à noite, estamos a pique de um
estúpido enguiço. Sou uma pessoa grata? Às vezes o que se nomeia gratidão é uma forma de amarra.
Entendo amor ao inimigo, mas gratidão o que é? Tenho problemas neste particular. Se aviso: passo na
sua casa depois do almoço, acrescento logo se Deus quiser, não sendo grata, temo que me castigue
com um infortúnio. Bajulo Deus, esta é a verdade, tenho o rabo preso com Ele, o que me impede de
voar. Como posso alçar-me com Ele grudado à cauda? Uma esquizofrenia teológica, eu sei, quando
fica tudo confuso assim, meu descanso é recolher-me como um tatu-bola e repetir até passar a crise,
Senhor, tem piedade de mim. Até em sonhos repito, Senhor, tem piedade de mim, é perfeito. Sensação
de confinamento outra vez, minha pele, minha casa, paredes, muro, tudo me poda, me cerca de arame
farpado. Coitada da minha mãe, devia estar nesta angústia no dia em que me atingiu: “trem ordinário”
Com certeza não suportava a idéia, o fardo de ter-que-dar-conta-daquela-roupa-de-graxa-do-meu-pai,
daquele caldo escuro na bacia, fedendo a sabão preto e ela querendo tempo pra ler, ainda que pela
milésima vez, meu manual de escola, o ADOREMUS, a REVISTA DE SANTO-ANTONIO. Mãe, que dura
e curta vida a sua. Me interditou um reloginho de pulso, mas não teve meios de me proibir ficar no
barranco à tarde, vendo os operários saírem da oficina, sabia que eu saberia o motivo. Duas mulheres,
nos comunicávamos. Tá alegre, mãe? A senhora não liga de ficar em casa, não? Posso ir no parque
com a Dorita? Vai chamar tia Ceição pra conversar com a senhora? Nem na festa da escola, nem na
parada pra ver eu carregar a bandeira ela não foi. Não dava para ir de “mantor” porque era de dia com
sol quente, gastei cinqüenta anos pra entender. Teve uma lavadeira, a Tina do Moisés, que ela adorava
e tratava como rainha. Sua roupa acostumou comigo, Clotilde, nem que eu queira, não consigo largar.
Foi um tempo bom de escutar isto, descansei de vê-la lavando roupa com o olhar perdido em outros
sítios, sentindo e querendo, com toda certeza, o que qualquer mulher sente e quer, mesmo tendo
lavadeira e empregada. Tenho sonhado com a mãe tomando conta de mim, me protegendo os
namoros, me dando carinho, deixando, de cara alegre, meus peitinhos nascerem e até perguntando:
está sentindo alguma dor, Olímpia? É normal na sua idade. Com certeza aprendeu, nas prédicas às
Senhoras do Apostolado, como as mães cristãs deviam orientar suas filhas púberes. Te explico,
Olímpia, porque pode te acontecer na escola, não precisa levar susto, não é sangue de doença. Achei
minha mãe bacana, uma palavra ainda nova que só os moleques falavam. Coitadas da Graça e da
Joana, que nem isso ganharam dela. Morreu antes de me ensinar a lidar com as incômodas e
trabalhosas toalhinhas. mãe, mãezinha, mamãezinha, mamãe, e o reino do céu é um festim, quem
escondeu isto de você e de mim?
Texto extraído do livro “Quero minha mãe”, Editora Record – Rio de Janeiro, 2005, pág. 41.
http://www.releituras.com/aprado_menu.asp
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O Desbunde
ADÉLIA PRADO
Tinha, como direi, eu, que sou uma senhora a seu modo pacata e até pudica, uma, ou melhor, um
derrière esplendido. Não é preciso ser homem pra essas avaliações. Firme em definidos e perfeitos
contornos, rebelde ao disfarce das saias e anáguas daquele tempo, inscrevia-se na cara de sua dona,
que, movendo os olhos como as ancas, subia a rua em falsa pudicicia, apregoando-se: tenho. Os
homens ficavam loucos. Eu era mocinha boba e escutei no armazém do Calixto ele dizer pro Teodoro,
meu futuro marido, naquele tempo preocupado em fazer bodoques de goma: eh, ferro! O Vicente não
vai dar conta daquela ali, não. É preciso muita saúde. Calixto falava com o Teodoro do que eu
suspeitava serem os tesouros da Oldalisa e ela nem aí, toda toda, sobe e desce rua. Exatamente o que
era me escapava, só podia ser coisa de homem e mulher. Felicitei-me por estar viva e participar de
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segredos tão  excitantes. O Vicente era muito magrinho, não jogava bola, não nadava, "não salientava
em nada", o Vicente
Cisquim. Pois foi dele que a Raimunda — como o Calixto chamou ela naquele dia — gostou.  
Casaram e tiveram pencas de filhos. O Calixto ficou chupando o dedo. Ser bonitão e dono de armazém
não contou ponto pra ele. Pois é, falou o Teodoro, hoje, assim que botou o pé em casa: O que é a
tecnologia, hein? Tecnologia? É o avanço da medicina. Teodoro falava era do avanço do tempo. Tou
aqui matutando, disse ele, porque a Oldalisa escolheu o Vicente, não tem base. Tô vendo aquela dona
pegando as compras no caixa e... Plim! Era ela, a velha senhora. A Oldalisa do Vicente? É. O Vicente
estava junto? Não. Estava com duas alianças e um menino, neto dela com certeza. Será que o Vicente
morreu da praga do Calixto? Acho que não, porque eu procurei o traseiro da Oldalisa e nada da olda,
só mesmo a lisa, magra e murcha. Ter encontrado a Oldalisa expropriada de seu dote mais tentador
deixou Teodoro bem filosofante sobre as agruras do corpo. Teria ele também sido um apaixonado da
Oldalisa e eu corrido sérios riscos? Porque amor não olha idade, não é mesmo? Agora, daquela do
escritório eu tive, medo não, por causa de meus outros poderes, tive inveja. A uma cintura de vespa
seguia-se, instruída e fatal, o que a Oldalisa trazia com inocência. Batia à máquina, agarradinha no
Teodoro, de saia justa e batom cor de sangue. O apelido dela na firma era Corrosiva, e foi Teodoro
quem pôs. Se chamava Rosiva, a perigosa. Imagina o risco que eu corri.
Adélia Prado - Filandras - Editora Record - Rio de Janeiro, 2001, pág. 51.
http://www.releituras.com/releituras.asp
22/08/06
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