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CAUSOS

Marcos Soares Ramos Cabete – Página 1 de 39


CAUSOS

Aqui você encontrará um apanhado de causos que tenho


escrito e na maioria das vezes enviado ao site
www.eptv.globo.com/caipira/ que é o site do “Sítio do
Caipira”. Se você entrar no site e quiser ver outros
causos meus ou de outros autores procure a pagina dos
causos e nesta pagina encontrará os 4 ou 5 últimos
causos. No final da pagina encontrará a frase: “ver mais
causos” que o levará a um grande arquivo de causos.

Esta obra, no atual estágio em que se encontra não tem


pretensões literárias, desejo apenas relatar-lhes os
verdadeiros fatos que normalmente ocorrem com nossos
caipiras, qualquer semelhança com pessoas ou fatos
reais é porque as histórias são reais mesmo!

Espero que gostem e se divirtam um pouco, obrigado


pela atenção e pelo seu tempo.

Marcos Soares Ramos Cabete

Ribeirão Preto.
Abril de 2002.
cabete@brascopper.com.br
mcabete@ig.com.br

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Indice

Caipiras Aviadores ................................................Pag. 04


O Palhaço da Folia de Reis ...................................Pag. 07
O Tempo Avua .......................................................Pag. 09
Porquinho e o Galo Severino ................................Pag. 11
Boi Véio, o Caipira e a Reciclagem .......................Pag. 13
O Caipira e a Astronomia ......................................Pag. 15
O Galo Capão ..........................................................Pag. 16
João de Deus ............................................................Pag. 18
A Esperteza dos Bichos ..........................................Pag. 20
Perdigueiro Bem Treinado ....................................Pag. 22
Falta de Mistura Pode Matar ................................Pag. 24
Mané I – A sopa especial de Sexta-feira Santa.... Pag. 25
Mané II – Pode trazer o frango ? .......................... Pag. 27
Mané III – O coelho desencarnado ...................... Pag. 29
Coitada da Moça ... .............................................. Pag. 31
A Coragem do Caipira ......................................... Pag. 33
O Caipira, a Radioestesia e o Leite de Onça. .... Pag. 35
O Primo Ventania ................................................. Pag. 37

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CAIPIRAS AVIADORES

A paixão de nosso caipira pela aviação Mudei-me para São Paulo em 1978 e
começou há muito tempo. Aqui ao lado logo, minha esposa e eu, fizemos amizade
de Ribeirão Preto uma pequena cidade com mais um caipira aviador e sua
homenageia em seu nome o mais ilustre esposa. O descendente de italianos
de seus caipiras que ali teve fazenda e Ângelo fala alto, xinga bastante e se acha
sonhou com os ares. Dumont. destemido, desbravador, inventor, etc.
Em meu tempo de faculdade lá em Inventou de fazer três filhos e quase não
Guaratinguetá encontrei muitos caipiras deu conta, cada um foi saindo com a boca
encantados com os ares. Um deles em maior que a do outro. O mais novo cada
especial, meu amigo, judiou bastante de vez que chorava engastalhava os dentes
mim fazendo piruêtas, parafusos e outros nas orelhas, dava o maior trabalho
malabarismos com um aviãozinho desengastalhar o menino. Acabou ficando
paulistinha. com o apelido de “O Boca”.
Em um de nossos passeios malucos o Destemido, de certa feita o Ângelo vinha
Hortão, este meu amigo piloto, viu uns chegando do trabalho, de terno, pasta 007
pescadores com redes armadas no rio na mão, viu a prancha de skate das
Paraíba, coisa que não era proibida crianças no corredor. Tomou impulso e
naquela época, e resolveu dar uma com muita velocidade pulou sobre o
ajudazinha aos pescadores. Skate. A prancha rodou suavemente até o
Descemos alguns quilômetros no rio e o fim do corredor, no exato tempo que o
Hortão foi abaixando o avião sobre o rio Angelo levou para subir e cair de costas
Paraíba e eu fui me desesperando. A certa quebrando duas costelas.
altura ele encostou as rodas do teco-teco Após fazer seu pé de meia na cidade, tirar
na água, com a pequena frenagem da brevê de piloto, tomar raiva de
água o avião inclinou-se para a frente e computadores ( trabalhava como analista
tocou com a ponta da hélice no rio, ele de sistemas ), o Ângelo resolveu voltar às
segurou a aeronave nesta posição e foi raízes.
subindo o rio tocando os peixes para as Juntou um bom patrimônio que havia
redes dos pescadores. constituído mais uma boa herança de sua
Era água que voava para todo lado, esposa e foi alimentar bicho de pé em
parecia que estávamos dentro de um uma bela fazenda que adquiriram em
liqüidificador. Tupi Paulista, interior de São Paulo.
Próximo das redes ele subiu e deixou os Como na época a moda era plantar cana
atônitos pescadores com as redes de cara ele plantou 100 hectares. Plantou
abarrotadas e uma “história de pescador” e cuidou muito bem pois tinha dinheiro
inacreditável. Quem for pescar pelos rios na poupança. O canavial ficou lindo.
de Guaratinguetá certamente ouvirá esta Se esqueceu de combinar a venda da cana
história de algum pescador. A brincadeira antecipadamente. Quando foi tratar na
custou-lhe caro. A hélice do avião destilaria ficou sabendo que àquela altura
desbalanceou e teve que ser substituída. da colheita a destilaria só aceitaria a cana
Quem lucrou fui eu que ganhei a bela se ele a colhesse e entregasse pois toda
hélice de pau marfim que hoje está mão de obra e frota estava comprometida.
enfeitando a varanda de minha casa.

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Aquela foi uma noite terrivelmente mal na estrada para ver aquela enorme área
dormida, se perdesse o canavial o fiasco totalmente limpa quando no dia anterior
seria grande e sua carreira como era um imenso canavial.
fazendeiro terminava ali. Acostumado a À partir deste dia os coitados dos gansos
administrar crises em seu trabalho na da fazenda ao ouvirem barulho de avião
cidade agora tinha que aplicar ali toda sua ou helicóptero passaram a andar de
experiência. cabeça baixa o que para eles é bastante
Pela manhã o Ângelo pulou da cama difícil e desengonçado devido o enorme
cedo, avisou a esposa para fechar os pescoço.
porcos no chiqueiro e não deixar as Infelizmente nem tudo é alegria. A
crianças saírem de casa, ninguém poderia aeronáutica ficou sabendo do feito e
se aproximar do canavial ! Foi sua ordem caçou o brevê do Ângelo por pilotagem
expressa para a esposa e empregados. perigosa.
Saiu em disparada, com a caminhonete, Famoso mas desgostoso com o episódio
em direção à cidade. da cana ele resolveu investir em outra
Antes do almoço ouviram um barulho cultura. Estudou, pesquisou, conversou
estranho ao longe que foi crescendo em muito e decidiu plantar uva de mesa,
direção à fazenda. Era o Ângelo com um aquela que todos nós compramos no
helicóptero ! natal, diferente das outras que são usadas
Assim que foi chegando começou a na fabricação de vinhos.
balançar o helicóptero lateralmente e o Iniciou com 10 hectares de parreiras.
mesmo parecia o pêndulo do relógio cuco Comprou as melhores mudas, contratou
que tinham na sala. Quando estava bem especialistas para orientarem seus
próximo do canavial com uma oscilação empregados e novamente o resultado foi
maior ficou de ponta cabeça com o um sucesso.
helicóptero. Abaixou até quase tocar o Na primeira safra os cachos de uva
solo e entrou pelo canavial afora. estavam lindos e as uvas doces como mel.
Nunca se viu nada igual. A nuvem de Mas mais uma vez a sorte não o ajudou.
poeira que se levantou era enorme e A produção de uvas no sul do país
quando se abaixava a poeira não se podia também foi excepcionalmente boa neste
acreditar na cena: havia uma verdadeira ano e o mercado foi inundado com uma
estrada limpinha no meio do canavial quantidade de uvas que nunca se viu. O
com duas leiras de cana amontoadas a preço caiu a patamares que não pagavam
suas margens. o trabalho da colheita.
Após quase uma hora em que o Ângelo Nosso amigo esgotou todo seu repertório
estava cortando a cana com seu aparador de palavrões ( que era respeitável ) e foi
de grama gigantesco começaram a chegar parando de falar aos poucos até entregar-
caminhões e carregadeiras que havia se a uma introspecção total.
contratado na cidade. Até o final da tarde Sua esposa, vendo-o naquele estado, dia
ele já havia cortado os 100 hectares, só após dia e cada vez pior percebeu que
parando para abastecer o helicóptero e deveria fazer algo para reverter a situação
limpar e afiar as hélices. pois naquela depressão ele não iria
Os caminhões trabalharam a noite toda e conseguir achar solução para o problema.
o dia seguinte todo para conseguirem Precisava distraí-lo do assunto por algum
transportar toda a cana. A história correu tempo para que pudesse relaxar um pouco
toda a região e os fazendeiros fizeram fila daí talvez viesse alguma boa idéia.

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Imaginou que a melhor distração para o Foram para a cama e ela começou a
homem é o sexo. Preparou-se com entrelaçar-se sobre o corpo do marido que
especial esmero para aquela noite. parecia um boneco de cera. Sua cabeça só
Depilou-se, fez as unhas, tomou banho de conseguia pensar nas uvas se perdendo
ervas cheirosas e colocou uma roupa nas parreiras.
extremamente sexy para esperar o Após tentar várias carícias e provocações
marido. e vendo que ele não se armava
O marido chegou de cabeça baixa e mal a adequadamente para o sexo ela tentou a
notou. Após muita insistência foi tomar última cartada que conhecia:
um banho. Jantaram à luz de vela, ele - Benzinho, disse ela com voz melosa,
pensou que a energia elétrica tinha você quer que eu chupe?
acabado, fato comum na zona rural. - Ao que ele respondeu: Mas são dez
hectares meu bem, você vai conseguir ?

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O Palhaço da Folia de Reis.

Naquele final de tarde o Milton estava


muito pensativo. Terminou sua lida diária Esperou exatamente duas horas após o
tirando o burro do arado e soltando-o no jantar e foi tomar um “banho de caneca” e
piquete com o merecido prêmio de 4 colocar seu pijama listrado de azul e
espigas de milho. branco.

Pegou um balaio de milho colocou nas Pela abertura do forro afofou as palhas de
costas e dirigiu-se ao chiqueiro. Jogou as milho desfiadas, do enchimento de seu
espigas aos porcos e antes que a última colchão, fazendo o típico barulho que
caísse ao chão já estava caminhando em avisava a todos da casa sem forro que
direção a sua casa. estava na hora de fazer silêncio e apagar
as lamparinas.
Parou junto à bica de água e tirou o
grosso da poeira do rosto e dos braços. Quem dorme em colchão de palha cria o
hábito de não se mexer. Tem que ficar
No interior da modesta e limpíssima bem quietinho pois a cada mexida o
casinha com piso de saibro socado já barulho das palhas informa à casa inteira
tremia a tênue luz de uma lamparina a que tem alguém acordado. Naquela noite
querosene. não teve jeito. O Milton se remexeu por
um bom tempo pensando na promessa
O Milton entrou calado, sentou-se à mesa que havia feito ao pai em seu leito de
na sua cadeira predileta que ficava ao morte dois anos atrás. Só parou de se
lado da janela por onde podia observar as remexer quando tomou a decisão de sair
estrelas e o luar da noite clara e quente. como palhaço na Folia de Reis deste ano
assumindo assim o compromisso de pagar
A comida foi rapidamente servida por uma promessa que seu pai havia feito em
suas irmãs entre um e outro comentário vida e que ele havia se comprometido a
sobre a porca que havia parido e os pagar mas vinha adiando pois era muito
bernes da vaca malhada que foram reservado e não se via fazendo as
curados com óleo queimado cedido pelo estripulias de um Palhaço de Folia de
homem do caminhão que recolhia os Reis.
latões de leite.
O tempo de preparação foi curto pois já
O Milton só ouvia e comia o arroz com estavam em novembro. As irmãs
feijão e pele de porco, colherada após costuraram à mão a fantasia e com a
colherada. A coxa de frango reservou ajuda de uns vizinhos ele conseguiu fazer
para o final. uma máscara bem rudimentar e colorida.
Feia como convém ao palhaço que
Terminado o jantar sentou-se do lado de representa “o Coisa Ruim” na Folia.
fora da casa onde tomou um café com
rapadura e fumou calmamente um bem Acertado com a Companhia de Foliões
enrolado cigarro de palha. pediu licença ao patrão para se ausentar

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do serviço explicando que era motivo de
força maior pois tinha de cumprir a Namorou uma moça de muita
promessa feita pelo pai. Não sabia qual personalidade e força interior que já
era a graça pedida pelo mesmo e nem se a conhecia sua história e acabaram por se
havia alcançado ou não mas promessa casar. Sua esposa conhecia as rezas
feita tem que ser cumprida. secretas das benzedeiras e passou a
benzê-lo todas as noites quando dormia o
Nas andanças da Companhia descobriu sono dos bêbados.
que só dava para desempenhar bem o
papel do “Coisa Ruim” após um meio Após algum tempo lhes foi oferecido pelo
litro de Tomba Perna, cachaça da boa! patrão um pozinho que era acrescentado à
sua comida, com o seu consentimento, e
Assim foi que o Milton cumpriu a lhe trouxe um verdadeiro pesadelo de
promessa do pai mas tornou-se um vida com vômitos intermináveis quando
alcoólatra. tomava algum trago.

O caboclo de mãos calejadas e pele Após poucas semanas já não sentia tanto
grossa do sol já não era mais o mesmo a falta da cachaça e passou a freqüentar a
responsável e trabalhador de sempre. A venda novamente apenas para um bate-
garrafa de cachaça passou a acompanhá- papo com os amigos. O cheiro da pinga
lo na matula e acabava dormindo na ainda o incomodou por vários anos.
sombra de um pé de café.
Hoje, quando o Milton assiste às famosas
Ele se desesperou com a situação e certa Folias de Reis de Altinópolis fica muito
manhã, quando suas mãos trêmulas não emocionado e sente sua fé aumentar mais
conseguiam tirar o leite das tetas da ainda quando se lembra que quem o
malhada, amarrou a corda de pear as salvou, sua forte e amada esposa, se
vacas em um esteio do barracão e quase chama Divina.
conseguiu dar fim a seu sofrimento.

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O TEMPO AVUA.

Naquele tempo, que não está tão longe em latas de banha ou andando sobre suas
como alguns irão imaginar, havia uma próprias pernas.
preocupação muito maior com os
relacionamentos humanos, gastava-se Quando raramente íamos à cidade nosso
muito mais tempo com um bom bate papo maior prazer eram os picolés de côco
e com a preparação de um “agrado” para queimado da padaria do Corchini.
as crianças.
Pois às vezes éramos surpreendidos
Eu e meu irmão mais velho ( dois anos ) durante as aulas, que reuniam alunos da
Tadeu estávamos na escola de roça do primeira segunda e terceira séries em uma
Congonhal, que era também uma estação mesma classe por visitas do Chefe da
de parada ( e partida é claro ) das Estação do Congonhal que nos avisava
composições da São Paulo e Minas com que chegara alguma “encomenda” da
suas barulhentas “Marias Fumaça” cidade que deveríamos retirar no final das
movidas a lenha. aulas para levarmos a nossos pais.

Cerca de 10 quilômetros atrás , ou adiante Quando a tal “encomenda” era um grande


conforme o sentido, estava a nossa caldeirão de alumínio todo suado e com a
querida e já bem conhecida Altinópolis. tampa presa com um elástico de câmara
de ar de bicicleta nosso coração batia
Nosso avô, Manoel Joaquim Soares, mais rápido e tomávamos o rumo do síto
português legítimo, foi o primeiro o mais rápido que podíamos andar pois
prefeito da cidade e quando em viagem sabíamos que a carga era preciosa.
pela “São Paulo e Minas” chegava a fazer
uso de sua autoridade para parar o trem Chegando em casa todos os irmãos se
ao lado de algum canavial e junto com reuniam à volta do famoso caldeirão
outros senhores colher cana para adoçar a suado, éramos um punhado nesta época,
viagem das senhoras e moças alojadas não me lembro bem se seis ou sete ou
nos vagões de madeira da composição. oito.
Alguém já imaginou hoje, um prefeito de
São Paulo, tentando parar o Metrô para Nossa mãe, fazendo o maior suspense,
descer e comprar refrigerante em algum abria a tampa do caldeirão e revelava em
boteco ao longo da linha ? seu interior outro caldeirão menor sendo
que o espaço entre um e outro estava
Nossa avó materna, Celuta, era uma preenchido com água e gêlo que
pessoa rara. De físico franzino e rapidamente disputávamos.
personalidade robusta sabia cativar a Dentro do caldeirão menor estava a maior
todos e cuidar de nós com muito carinho. prova de estima e carinho de nossa avó
Celuta: um punhado de picolés de côco
Nesta época, no sítio, não tínhamos queimado !
energia elétrica e nenhum de seus
confortos. As carnes eram conservadas

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Meus amigos, esta prova de amor será esquecido assim como nunca
aconteceu por várias vezes a apenas esquecerei minha querida e meiga Vó
quarenta anos atrás. Celuta. Que doce de leite delicioso ela
sabia fazer!
Hoje ainda vejo, raramente, algumas
provas de amor de tamanha grandiosidade Um bom Natal e um ano novo cheio de
e simplicidade. carinho e amor para todos vocês.

O maior presente para nossos filhos e


netos neste natal e início de 2002 não
precisa ter pilhas alcalinas, megabytes de
memória e nem botões coloridos. PS: Este causo foi escrito em dezembro
de 2001 como uma mensagem de natal
O nosso maior presente precisa ter uma aos amigos, parentes e leitores.
sincera dose de amor e com certeza nunca

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Porquinho e o Galo Severino.

Nosso amigo a quem chamávamos e ficou observando. O Índio pegou uma


carinhosamente de Porquinho era galinha, pegou a segunda e antes de
baixinho, gordinho, falava muito e terminar o serviço caiu mortinho da silva
xingava à vontade, como todo bom com a língua escapando para um dos
descendente de italiano. Se não estivesse lados do bico.
gritando e xingando, estava distribuindo O Porquinho soltou uma meia dúzia
uma farta gargalhada. Era daqueles que daqueles palavrões que não dá prá se
preenchiam o espaço à sua volta, escrever, juntou o galo pelo pescoço e foi
principalmente, o coração dos muitos ver o Seu Mané que levou o maior susto
amigos. com aquele galo caindo a seus pés e com
Homem irrequieto, amava as corridas de a gritaria do Porquinho.
Kart e todas as coisas belas da natureza, --- Carma, seu Porquinho! A gente
principalmente as do sexo feminino. arresorve! Gaguejou o Seu Mané e lá se
Cansado do serviço repetitivo por detrás foi galinheiro adentro com outra caneca
do balcão de sua loja de parafusos, de milho.
resolveu adquirir um pequeno sítio para --- Vamos experimentar este aqui. Não é
criar galinhas e se distrair no final do tão vistoso quanto o Índio mas tenho
expediente e finais de semana. visto ele trabalhar bastante as galinhas.
A criação de galinhas cresceu Lá se foi o Porquinho com o novo galo,
rapidamente chegando a 180 galinhas e todo preto e com uma estranha crista
nenhum galo. amarelada. Prendeu-o debaixo de um
Certo dia lhe disseram que ovo bom tem balaio para soltar na manhã seguinte.
que ser ovo galado. O Porquinho foi até o Logo cedo, o galo preto é solto. Parte
sítio vizinho e pediu ao “Seu” Mané um todo empinado e traça a primeira galinha
galo “dos bons” pois não queria colocar de pé. A segunda perde sua virgindade
mais que um para não dar briga. encostada na cerca do galinheiro. Parte
Seu Mané entrou pelo galinheiro com para a terceira sem muita pressa e após a
uma caneca de milho debulhado e foi um quarta cai morto no meio do terreiro com
estardalhaço de asas batendo e bicos um monte de galinha à sua volta. O
disputando cada um dos grãos. Porquinho chega distribuindo pontapés e
Com um bote certeiro Seu Mané pegou de joga galinha prá tudo quanto é lado. É
qualquer jeito um Galo Índio. uma verdadeira chuva de penas. Agarra o
--- É o melhor que tenho! É belo, forte e galo preto e sai rodando ele em direção a
com certeza não vai lhe decepcionar, sítio do Seu Mané.
disse Seu Manuel. De longe Seu Mané já escuta o xingatório
O Porquinho “peou” o galo amarrando e corre a pegar outro galo.
suas pernas com uma tira de pano que a --- Seu Porquinho, vai logo dizendo, este
patroa do Seu Mané lhe arranjou e foi é o ultimo que tenho. É baixinho,
pela trilha de vaca admirando a cabeçudo, tem a cabeça chata e quase não
plumagem vermelha, os olhos azuis e a tem pescoço. Seu nome é Severino.
crista de vermelho vivo. O Porquinho olha desolado o galo
No dia seguinte o Porquinho nem foi corcunda, com olheiras, sem crista e
cedo para a loja. Soltou o galo no terreiro pensa alto:

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--- Era só o que me faltava. Um galo três capivaras esfriando suas partes
cearense! Pega o galo pelas pernas e vai íntimas na água do rio, um tatu entrando
arrastando-o com a cabeça batendo no de marcha à ré no buraco... até que, de
chão e o pequeno pescoço pelado repente, vê o Severino caído no chão.
espetando nos espinhos dos juás. Uma cena estarrecedora!! Os urubus
Chegando no sítio resolve fazer o teste na voando em círculos já farejavam a
hora. Solta o Severino no terreiro. Todas comida.
as galinhas param de comer e levantam as Quando viu os urubus, o Porquinho
cabeças observando a estranha figura. entendeu de imediato a situação.
Severino balança a cabeça para tirar o pó --- Nããããooo, Severinooooo!!! Morreuuu
e parte com tudo para cima da galinhada. o Severinooo!! Logo agora que eu tinha
Enlouquecido come as 180 galinhas. Dá encontrado um galo de verdade!!
uma respirada profunda e come as 180 de E no meio do lamento, cuidadosamente o
novo. Sai correndo e sobe no pastor Severino abre um olho, olha para o
alemão. O Porquinho pega o Severino dá- Porquinho e diz:
lhe dois sopapos para acalmá-lo e tranca- --- Shhhhhhhhh!!! Fica quieto que eles
o na gaiola. estão quase descendo!
As galinhas estavam enlouquecidas, era A amizade que se formou entre os dois
Severino prá cá, Severino prá lá, que o era coisa linda de se ver. O porquinho
Severino é isto, que o Severino é aquilo ... levava o Severino até no bordel e fazia o
No dia seguinte, ao soltar o Severino só maior sucesso.
se vê poeira. O safado do galo dá duas O Severino ainda está por aí. Depois que
voltas completas faturando tudo quanto é o Porquinho se foi, o Severino ficou
buraco com penas, pega o cachorro as desgostoso e passou a beber pinga. Já não
porcas e quando está chegando no curral é é mais o mesmo. As galinhas não gostam
alcançado pelo Porquinho que pega-o do bafo dele.
pelo pescoço enfia no tanque de água fria Quanto ao nosso querido Porquinho, ele
para acalmá-lo e o joga na gaiola. deixou saudades e um vazio imenso. Sua
O Porquinho é todo sorrisos. Êta galinho querida esposa deu-lhe a maior prova de
fera! Este vai dar conta do sítio inteiro amor após sua morte. Plantou sobre o
sozinho, pensa em voz alta. túmulo mudas de Marias-Gomes, Marias-
No outro dia o nosso amigo se descabela Rosas, Marias-Pereiras e a prova maior de
ao encontrar a gaiola toda arrebentada. seu bem querer: um canteiro de Maria-
No terreiro, as galinhas fumando e Sem-Vergonha a lhe fazer companhia!
assoviando. No chiqueiro, o porco com o
rabo para o sol, as duas vacas coçando as
ancas em um toco e falando do Severino.
O cachorro, com o rabo quebrado para
um dos lados, vê que o rastro vai em PS: Com este causo procurei lembrar um
direção ao sítio do vizinho e se desespera. pouco meu grande amigo Marco Pace que
O Porquinho pega um cavalo e sai no partiu prematuramente e o
rastro do Severino, sem descanso. desprendimento e amor de sua esposa
Encontra cabras suspirando, uma Ana.
tartaruga que perdeu o casco no tranco,

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Boi Véio, o caipira e a reciclagem.

Nesta terceira semana de setembro de a máquina de beneficiar arroz do Cidonio,


2001, o programa Nossa Gente, da EPTV, filho da Dona Helena e meu pai. Lá ia ele
me fez uma deliciosa e nostálgica para mais uns dois dedos de prosa. A
surpresa. conversa acabava na cozinha do sobradão
Era uma matéria sobre o famoso Boi de 1919 onde a Dona Ruth, minha mãe,
Véio, caipira já bem conhecido e tombado sempre tinha um bolo de fubá e um
pela mídia regional. A lembrança bateu cafezinho fresco para as visitas.
fundo em minha alma e resgatou-me Creio eu que foi o Boi Véio que
experiências de infância indeléveis em despertou no Cidonio o interesse por
minha memória. colecionar estribos de arreio, peças que
É que eu tive o privilégio de conhecer ficavam expostas na máquina de arroz.
este verdadeiro bicho-homem no meu Tinha até algumas da cavalaria do
tempo de moleque. Boi Véio, João-de- Império.
Deus, Seu Alvino e tantos outros Numa destas visitas, a prosa foi
autênticos caipiras são bichos-homem, interrompida pela chegada do Dito
homens integrados à natureza e dela Chicão, um homem lá do Brejão, uma
usufruem, mas sem destruí-la, e deixam região de muita areia e capim barba-de-
para os seus próximos lindas lições de bode. Morava num casebre de pau-a-
vida. pique com suas duas irmãs e uma meia
Quando conheci o Boi Véio eu tinha centena de barbeiros e algumas dezenas
pouco mais que sete janeiros e ainda não de percevejos. Toda a família dele tinha
tínhamos entrado nos anos de trevas da enormes bócios que chamavam a atenção
ditadura militar quando os nossos caipiras da criançada.
foram incentivados a saírem da roça pra ir O Dito Chicão, que aporrinhávamos
morar na periferia das cidades para depois chamando de Dito Areia, ia até a máquina
voltarem às roças sobre as carrocerias de pra ganhar fubá e quirela de arroz,
caminhões com suas enxadas enferrujadas aproveitando a ida também para ganhar
e suas marmitas frias: os bóias frias. mais algumas coisas na venda da Dona
Boi Véio saia dos cafundó de Santo Helena. Na volta para o Brejão, ele
Antônio da Alegria e vinha até a venda da completava a carga com algumas
Dona Helena, minha avó, ali no rapaduras do engenho do Seu Tino, pai do
Congonhal, já bem mais perto de saudoso Lyseas, o Côco, de Altinópolis.
Altinópolis. Conversa vai, conversa vem, o Cidonio
Ali na venda, entre garrafas de cachaça, falou para o Boi Véio de uma idéia que
latas de sardinha, doces em pedaço, fumo tinha de conseguir algumas doações e,
de corda, peças de panos embrulhadas, num mutirão, construir uma casinha mais
botinas, querosene em lata e tantas outras decente para a família do Dito Chicão.
coisas, havia sempre uma boa prosa Pronto! Bastou falar e o Boi Véio já ficou
enquanto se fazia calmamente a despesa todo assanhado. Caipira bom é assim:
do mês. falou em fazer mutirão para ajudar
Feita a compra, o Boi Véio escutava o alguém que os olhos brilham e ele não vê
barulho do velho motor diesel que tocava a hora de começar.

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Foram incontáveis finais de semana que o mandioca ao lado da casa. É que
Boi Véio saia de seu rancho e fazia uma enquanto eles levantavam a casa o Dito
longa viagem até nosso sítio. Lá o Chicão, as suas irmãs já tinham cuidado
Cidonio já o esperava com uma charrete de plantar mandioca, fazer uma cerca,
cheia de ferramentas e um borná com o plantar erva-cidreira, trazer a bacia com
almoço e café. Lá iam os dois tagarelando cebolinha verde...
rumo à fazenda do Seu Corchini onde A casinha, construída naquele areal era
conseguiram a doação de uma gleba para impecavelmente limpa. Na cozinha. uma
levantarem a casinha. Eu bem que tentava prateleira feita com tábuas de caixote de
ir junto mas não me levavam. bacalhau tinha canecas feitas de latas de
Um belo dia meu pai me chamou cedo. Ia massa-de-tomate, panelas de latas de
me levar junto para conhecer a casinha óleo, frigideiras de latas de marmelada e
que já estava pronta. A viagem foi muitas outras criações do Boi Véio que,
interminável e deliciosa, escutando a sem saber, já praticava na década de 1960
prosa do alegre Boi Véio e do meu pai. algo que só foram inventar o nome
Quando chegamos à casinha eu não recentemente: a reciclagem.
entendi como que já tinha uma roça de

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O caipira e a astronomia.

Nosso caipira observa o céu e conhece fazenda pois lá não haveria tanta
muito pouco sobre ele. Às vezes acredita iluminação a atrapalhar a observação dos
que São Jorge vive na lua matando o astros.
dragão. Minha avó presenciou pela tv a À noite, telescópio à postos, céu
ida do homem à lua e até a sua morte maravilhoso, chamamos o Sr. Francisco,
anos depois não acreditava que aquilo administrador da fazenda, para participar
realmente ocorreu. Dizia que era mais um do evento. Após uma breve aula de
truque do cinema americano. astronomia, da diferença entre estrelas e
Em 1975 fui estudar engenharia mecânica planetas, de quantos planetas temos no
em Guaratinguetá, terra do presidente sistema solar, etc.., o Guto apontou o
Rodrigues Alves. Morávamos em nove telescópio para Saturno e foi realmente
amigos em uma república estudantil que um espetáculo. O danado parecia uma
formamos à beira do rio Paraíba bem bolinha de gude, do tamanho de uma
próximo à ponte metálica ou ponte velha. jabuticaba graúda e com os tais
Meu maior amigo desta época é de aneizinhos à sua volta. Era uma coisa
Cruzeiro, estava mais adiantado na linda realmente.
faculdade, seu pai tinha uma fazenda no Chamamos o Sr. Francisco para ver. Ele
município de Guaratinguetá a qual olhou pelo telescópio, olhou para o céu,
visitávamos com freqüência para noitadas olhou novamente pelo telescópio, olhou
regadas a vinho, queijo fresco, violão e outra vez para o céu e tornou a olhar pelo
muitos causos contados e ouvidos. telescópio.
Certa ocasião o Guto, este meu amigo, foi - E aí Sr. Francisco, o Sr. viu Saturno ?
fazer um curso de astronomia no Perguntou o Guto.
planetário em São Paulo. Viajava todo - Vê eu vi, respondeu, mas não acreditei
final de semana para as aulas, aprendeu não !
sobre as constelações e também como Assim é nosso caipira, às vezes não
fazer um telescópio. Não precisa dizer acredita no que vê, mas acredita naquilo
que o assunto de muito tempo foram as que lhe foi contado por seus avós e
estrelas, os planetas, as galáxias e tudo compadres, como Saci Pererê, Curupira,
relacionado. Por muito tempo demos boas Mula sem cabeça ... Para ele a informação
risadas do Guto quando teimava em nos oral é a que vale. O nosso caipira é um
fazer acreditar que um de seus bicheiro às avessas, um São Tomé de
professores de astronomia era cego. ponta-cabeça. Não vale o que está escrito,
Muitos anos depois, já residindo em São nem há a necessidade de se ver para crer.
Paulo, vim a descobrir que o tal professor A tradição oral passada a gerações é a
cego realmente existia! história e também a ciência. O resto são
Curso feito, telescópio construído, lá esquisitices ou invencionices como
fomos nós no Jeep 54 do Guto para a sinhôzinho Guto tentou ensinar.

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CAUSOS

O GALO CAPÃO.

O Zé Alves era um destes homens instrumento cirúrgico, o tal Róger em sua


caprichosos. Fazenda sempre bonita, bem inseparável bainha de couro.
cuidada, pomar com os troncos das O Zé Alves era também muito brincalhão
árvores sempre caiados de branco, e estava sempre aprontando das suas.
igualmente à sua séde, sempre pintadinha Dizia-se que ele tinha um pouco do
de novo, de branco e azul. espírito dos porcos que capava.
Cafezal todo alinhadinho e bem carpido, Na beira de um rio, era impossível
gado holandês sadio e roliço, chiqueiro continuar-se a pescar à partir do momento
limpinho com aqueles porcões cor de rosa em que ele resolvesse que a pescaria tinha
e os caipiras, de brinquinho, com acabado. Jogava lata no rio, ficava
manchas negras sobre o fundo branco. treinando tiro ao alvo com a carabina,
A bomba d’água cabeçuda batendo dia e batia o pé no chão e fazia de tudo para
noite e dando suas golfadas de água para atrapalhar aqueles que sempre tinham a
toda a criação. A galinhada solta no esperança de pegar um peixe para não
terreiro correndo atrás das tanajuras era voltar de mão abanando.
uma verdadeira festa naquela mistura de Certa vez estava ele na alta varanda da
raças. porta da cozinha de sua casa
Tinha carijó, pescoço pelado, garnizé, (vocês já repararam que na roça, a
galo índio, peru, pato, ganso, galinha varanda na porta da sala só serve prá
d’angola e outros tantos bichos de pena e juntar folha seca?) olhando a galinhada e
bico. começou a ficar invocado com o galo
O Zé Alves só não era muito caprichoso índio que teimava em brigar com tudo
consigo mesmo. A calça sempre quanto era galo que chegava perto. E foi
caindo,só não não acabava de cair por aí que uma idéia maluca começou a tomar
milagre, pois não tinha onde se conta de sua cabeça. Quando a dona
engarranchar. Doca, sua esposa, foi limpar um frangão
O homem parecia uma tábua bem que já era quase galo, ele ficou
aplainadinha quando visto por trás. O seu remexendo nas partes íntimas do tal com
andar rápido e elétrico o livrou de muitas a ponta de seu Róger.
picadas de cobra. Eu mesmo vi uma No Sábado, após terminar o giro pela
jararaca tentar acertar sua perna e errar o fazenda, ele pegou uma espiga de milho e
bote. Foi num trilho de gado na beira do começou a debulhar, chamando a
rio Sapucai, lá no poço do Rancho Azul, galinhada. Num bote certeiro ele pegou o
em nossa querida Altinópolis. galo índio pelas pernas e foi uma gritaria
O Homem tinha também duas coisas que só.
fazia com esmero e carinho: tocar violão Amarrou as pernas do tal e com uma
com um grupo de amigos e capar porco. colher, foi lhe enfiando pinga pela guela
Seu canivete Róger, com as talas do cabo abaixo. Quando o galo estava bem
de chifre bem polido, estava sempre bêbado, ele deu um toque final na afiação
afiadíssimo e era cobiçado por todo do Róger em uma tira de couro. Depois
capador da redondeza. Era um verdadeiro fez dois pequenos cortes nas costas do
galo, bem próximo do rabo, e com muito

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CAUSOS
cuidado retirou os dois baguinhos e jogou tipo de cria. Passou a adotar perús,
pro garnizé se refestelar. Desinfetou, galinhas d’angola e até marrecos.
costurou os cortes e soltou o bicho. A galinhada só se assustou quando ele
Passada a bebedeira, o galo índio ficou de apareceu com dois filhotes de lagarto teiú.
ressaca uns dois dias e depois começou a E foi daí que em pouco tempo não havia
mudar o comportamento. Parou de brigar mais uma única fazenda, sítio ou chácara
com os demais rivais, não quis mais saber em Altinópolis que não tivesse um galo
de correr atrás de galinha e, com o tempo, capão. Dizem até que algumas mulheres
foi ficando mais vistoso, cuidadoso com andaram tentanto capar os maridos prá
suas penas que ajeitava uma a uma com o ver se ficavam mais dóceis.
bico, nm um ritual interminável. No Corre o boato que algumas conseguiram e
segundo mês, ele já estava cuidando de quando a gente vê aquele homão grandão
uma ninhada de pintinhos e não deixou e peludo correndo atrás das crianças prá
morrer nenhum. cima e prá baixo, com o maior cuidado e
Ninguém esperava que o galo capão carinho, tem logo alguém que diz:
ficasse tão dócil e atencioso com todo --- Olha lá, o Galo Capão !!

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CAUSOS

JOÃO DE DEUS
- Como o senhor se chama? do braço de João de Deus que só via água
- João. quando chovia. Foi necessário apelar para
- João de que? uma grossa agulha de aplicar injeção no
- João de Deus. gado e é claro que doeu bastante. Nesta
Era assim que ele se apresentava e era o madrugada João de Deus foi-se embora
nome perfeito para ele. com seu jumento e nunca mais o vimos
João de Deus era um andarilho que uma ou soubemos se havia sarado ou morrido.
vez ao ano passava pelo nosso sítio em Naquela noite, após o médico ter ido
Altinópolis. Trocava raízes e ervas embora, enquanto meu pai fervia a
medicinais por rapadura, café, sal, arroz, seringa, João de Deus me contou que
pinga e outros gêneros de primeira certa vez ficou seis semanas de cama,
necessidade. Tudo que ganhava era com muita febre, em uma fazenda
repartido meio a meio com seu abandonada.
companheiro de jornada que era um - Mas e como você não morreu de fome e
jumentinho no qual nunca cavalgou, ia sede ?
sempre ao lado dele que levava dois sacos Perguntei-lhe.
bem leves com as ervas, raízes e algumas - Olha menino, Deus é grande e cuida dos
latas a serem usadas como panelas. seus. A minha sorte é que nunca amarro
João de Deus vivia em sintonia com a meu jumento e ele pegava uma lata nos
natureza, dormia no mato quando o tempo dentes e ira buscar água para mim em um
estava bom ou procurava abrigo no curral córrego próximo.
de alguma fazenda. - Mas e a comida João de Deus, não me
Nunca aceitou dormir no paiol ou outro diga que o jumento cozinhava para você?
lugar melhor, que fosse fechado. Tinha - Não, é claro que não, eu nunca deixei
que dormir em local onde pudesse fazer ele lidar com fogo!
uma fogueirinha para cozinhar sua - A última alma bondosa que lá morou
comida e fazer os seus chás. deixou umas galinhas prá trás, as galinhas
João de Deus visitou nosso sítio por foram aumentando e tinha bem umas
muitos anos mas só me lembro de duas ou vinte ou trinta. Eu nunca tinha visto um
três visitas pois quando fiz oito anos foi o bando de galinha tão inteligente! Elas
ano em que ele adoeceu e meu pai, o foram se aproximando da minha cama
Cidonio, foi à cidade chamar o médico, improvisada, acho que prá comer os
Dr. Alberto, e o farmacêutico Sr. Célio. pernilongão que vinham chupar meu
Não houve meio de convencê-lo a ir para sangue e mais pareciam aqueles lava
a cidade, João de Deus não iria se separar bunda que ficam sobre as poças de água,
de seu jumento. O médico receitou de tão grandes. Depois de comer bastante
algumas injeções que o precavido a galinhada se ajeitava nos meu pé e
farmacêutico já tinha em sua maleta. Meu botava os ovos, era cerca de duzia e meia
pai ficou encarregado de aplicar as por dia. Elas eram tão espertas que depois
injeções pois já fazia isto para toda a de botar saiam bem quietinhas prá não me
redondeza e era experiente na tarefa. acordar e só iam cantar quando chegavam
Na primeira tentativa a agulha da injeção bem longe no terreiro.
entortou e não entrou na grossa carapaça

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CAUSOS
- Mas então você ficou este tempo todo - Eu até engordei uns quilos!
comendo ovo crú ? Esta foi a última prosa que tive com esta
- Não, a febre realmente era forte demais, magnífica pessoa perfeitamente integrada
eu pegava e punha um ovo em cada na natureza. Nunca me esquecerei dele.
suvaco. Um minuto e comia ovo quente,
dois minutos e comia ovo cozido!

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CAUSOS

A esperteza dos bichos

Lá na minha terra, em Altinópolis, as Bem no meio no pasto tinha uma árvore


coisas não são como nos outros lugares. linda, enorme, com trinta metros de
Pra começar, o vento de lá é danado de diâmetro de copa. Era um Óleo de
persistente. Venta quase o tempo todo e Copaúva com galhos que chegam bem
no nosso sítio, todas as galinhas tem o perto do chão.
rabo torto pro mesmo lado. O lado que o Naquele dia, o meu irmão já pressentindo
vento vai. que o Castelo ia dar trabalho, levou umas
E o pior do vento é que fica zunindo na espigas de milho como atrativo. Andou
oreia, parecendo um bando de abeia. por todo o pasto e nada. Bateu todas as
Me lembro que no nosso sítio tinha cercas pra ver se tinha alguma arrombada
também um burro muito esperto que e, cadê o Castelo?
atendia por nome Castelo. Era um animal Depois de horas de caminhada resolveu
perfeito, mas ninguém se metia a besta de descansar sob o olhão ( diga ólhão ) que é
montá-lo pois o trote do danado tirava o como conhecíamos aquela árvore única.
rim do lugar e o sujeito ficava aleijado Meu irmão tirou o borná com as espigas
uns dois meses. de milho, catou umas gabirobas para
Na carroça ele era imbatível, parecendo adoçar a boca e sentou sob a árvore,
até que ela fazia parte de seu corpo. encostando no seu tronco. Qual não foi o
Nunca bateu com ela num mourão de seu susto quando viu, a uns 5 ou sete
cerca ou num esteio de porteira. Podia ser metros de altura, na árvore, o danado do
até em marcha a ré que o danado Castelo bem quietinho se equilibrando em
manobrava com perfeição. Pra pulverizar dois galhos que partiam desde o chão!
café então, era uma máquina perfeita. O burro tinha aprendido a subir na árvore
Saía de uma rua e entrava na outra sem pra se esconder e não ir trabalhar!
esbarrar num pé e sem ninguém precisar É a pura verdade. Nesta mesma época,
falar nada. meu pai, que era assíduo leitor da
Os dois únicos problemas do Castelo “Chácaras e Quintais”, viu em uma destas
eram os sustos que levava com qualquer revistas um paiol de milho que era à
papel ou vulto aparecesse no seu prova de rato.
caminho. Ele empacava e dava um Mais que depressa derrubou um belo
trabalhão para tirá-lo de lá. O outro eucalipto e o transformou em tábuas,
problema era a preguiça do Castelo. caibros e vigas na quantidade necessária
Quando meu irmão ia pegá-lo no pasto para o miraculoso paiol.
era outra complicação. Cada vez o danado Ficou uma beleza. Montado sobre
se escondia em algum lugar diferente, ora pilastras de cimento, o intento era impedir
no meio de uma moita de capim ou dentro a subida dos ratos. Tinha uma escada de
de uma grota. Não havia quem achasse o cimento afastada do paiol e a porta descia
burro. sobre a escada como nos antigos castelos
Mas teve um dia que o Castelo fez o que medievais. Com a porta fechada, não
parecia impossível. tinha como os ratos entrar... Até que um
dia, o paiol deixou de ser novidade e o

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CAUSOS
vão sob ele passou a servir para guardar meio que desconfiada e, em segundos,
lenha e um monte de quinquilharias que saia correndo.
deveriam ser jogada fora. Tinha alguém Resolvi tirar a limpo aquela história.
que sempre dizia: 'guarda debaixo do Pensei que poderia ser alguma jararaca,
paiol que uma hora serve para alguma pois o pessoal dizia que as cobras eram
coisa'. Aí foi uma festa para os ratos. atraídas por metal e lá tinha muita enxada
Tinha uns que pareciam preá, de tão velha, foice e rastelo. Fui com a minha
grande e gordo. cartucheira calibre 32 e fiquei escondido
Foi aí que meu pai se esqueceu que o perto da escada. A gata entrou e em
paiol era “à prova de rato” e resolveu seguida escutei uns latidinhos bem
arrumar uma gata de três cores, as baixos, meio esquisitos. A gata saiu
melhores para tal função. correndo e eu entrei em tempo de ver o
No início foi um sucesso. A cada dia a danado de um rato latindo que nem
danada matava pelo menos uns três. Era cachorro, o que espantava a gata. Foi uma
uma malabarista n arte da caça. Dava uns pena que, na hora, fiquei com tanta raiva
saltos espetaculares dentro do paiol e daí do bichinho que o despachei com um tiro
a pouco saía com um ratão na boca, feliz certeiro... Podem acreditar, foi a pura
da vida. Só não matava mais porque verdade.
passava horas brincando com a sua presa Os bichos lá de Altinópolis são muito
antes da refeição. espertos. Alguns dizem que é a água,
Um belo dia, de repente, ela parou de outros que é a vida tranqüila e também a
caçar. Entrava no paiol e saía correndo, comida sadia que tem por lá. Outros
deitando no rabo do fogão e ali ficava, o falam que é porque o pessoal respeita os
dia inteiro. No outro dia era a mesma animais e conversa muito com eles.
coisa. Meu pai baixava a porta sobre a Tem até um pessoal da USP querendo
escada e da janela da cozinha ficava só fazer uma pesquisa num outro sítio
observando. A gata ia entrando no paiol, vizinho ao nosso. Encontraram um bugio
que joga xadrez.

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CAUSOS

Perdigueiro bem treinado.

No tempo em que se podia caçar perdiz e cachorro que come a caça, e tem aqueles
tinha perdiz prá ser caçada Altinópolis que nasceram pro serviço.
tinha mais cachorro perdigueiro que O sultão era um destes, aprendeu facil,
qualquer outro bicho. prendia na boca a bolinha de meia com a
Prá se treiná bem um perdigueiro tem que maior delicadeza sem danificá-la, quando
ter paciência, eles são ótimos de faro mas "amarrava" uma perdiz ficava totalmente
são um pouco lerdos dos miolo. imóvel parecia uma seta de placa
O Zezim da venda era especialista em indicando onde a danada tava amoitada,
treiná perdigueiro, arte que ele aprendeu nem piscava, seu rabo ficava alinhado
lá no Monte Santo de Minhas e com sua espinha dorsal parecendo um
acrescentô mais umas invenção própria. espinho enorme de tão duro e imóvel,
Fazia uma bola de meia recheada com assim ele ficava quanto tempo fosse
penas de perdiz e codorna. Começava necessário até que o Zezim o visse e
com uma brincadeira em que se joga a viesse matar mais uma pois este nunca
bola e o cachorro vai buscar só que esta errou um tiro, a não ser aquele de quando
brincadeira ia virando coisa séria onde a o marimbondo fez casa dentro do cano de
bola era escondida e o cachorro tinha que sua pica-pau e o cano estourou na hora do
ir encontrar, depois chegava no ponto em disparo deixando-o surdo de uma oreia.
que ele encontrava mas não podia pegar. Naquela caçada o Zezim tava meio
Tinha apenas que apontar onde estava, disperso, vorta e meia perdia de vista o
tinha que "amarrar" a perdiz ou codorna, sultão distraido com a beleza da paisagem
situação em que o cachorro fica todo ou com algum pé-de-fruta.
duro, do fucinho à ponta do rabo fica tudo Teve uma hora que o Sultão sumiu de
esticado como se o mesmo fosse uma veiz, o Zezim da venda assoviou,
flexa indicando em que moita estava o chamou, chegou até a dar um tiro a esmo
passarinho. prá ver se o Sultão aparecia e nada!
Neste ponto, quando o cachorro Já tava ficando tarde e o Zezim pensou
"amarrava" a perdiz o caçador atento com seu borná: vai vê ele foi prá casa,
chegava por trás do cachorro e já tendo canhorro novo é assim mesmo meio
armado sua espingarda dava um cutucão destrambelhado. E pensando estas coisas
com o joelho na bunda do cachorro, o ele foi-se embora. Chegou no seu sítio já
cachorro dava um salto espantando a bem tardinha com o sol se pondo e logo
perdiz que voava e era abatida pelo foi dar uma olhada no cantinho onde o
caçador. sultão costumava ficar deitado, debaixo
Deixar um perdigueiro neste ponto era do fogão de lenha, não tava lá.
tarefa de muita paciência e perseverança. Começaram os pensamentos ruins: será
O Zezim da venda sempre que tinha um que foi jararaca?
perdigueiro já velho começava a treinar Os dias foram se passando e o Zezim foi
outro filhote pois precisava tambem de se conformando que o sultão não ia mais
tempo para saber se o cachorro tinha aparecer. Como tinha um irmão do sultão
vocação pra caçador. Tem cachorro que levava jeito prá coisa pegou firme no
bagunceiro, que só quer brincar, tem treinamento do mesmo para poder deixá-

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CAUSOS
lo preparado para a temporada de caça do Qual não foi sua surpresa quando
próximo ano pois como bom caçador que encontrou o esqueleto do sultão em pé,
sempre foi só caçava na epoca certa. em posição de quem tava amarrando uma
No próximo ano foi levar o sheike para perdiz com o rabo esticado e tudo o
sua primeira caçada, o danado também mais... o Zezim não acreditava no que via
era bom! e acreditou menos ainda quando foi fuçar
De perdiz em perdiz foram andando e na moita para onde estava apontanto o
sem se dar conta acabaram chegando na esqueleto do sultão e encontrou um
mesma região onde o sultão tinha sumido. esqueleto de uma perdiz abaixadinha
De repente o sheike amarrou de uma dentro da moita!!
forma diferente, com os pés meio de lado Foi uma pena que quando voltou ao local
como quem qué sair correndo mas é dali uma semana prá fotografar o fato
obrigado a fazer aquela tarefa. tinha dado um temporá danado de granizo
O Zezim foi se chegando devagar com e desmontou os esqueletinhos, agora só
cuidado, espingarda armada, vai que é um podemos contar com a descrição da cena
murundum de jararaca enrolada que o Zezim da venda faz com os olhos
esperando prá dar o bote. cheios de agua.

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CAUSOS

Falta de mistura pode matar.

Ao passarmos por aquela tenebrosa grota serviço e casou-se com uma mulher que
da estrada, comentei com meu pai que não levantava os pés para andar. Seus
toda vez que passava por lá, a qualquer rastos pareciam os rastos de um casal de
hora do dia, sentia arrepios. cobra que anda lado a lado, de braços
O velho começou me tranqüilizando: dados. Até as verduras que eles ganhavam
--- Estes lugares escuros e frios, devido à dos vizinhos a mulher deixava perder, só
sombra das árvores, nos deixam de preguiça de lavar. Foram sete anos
apreensivos e com medo. Cada sombra se sem mistura. Só arroz e feijão, no almoço
parece com um animal ou uma pessoa, e no jantar.
mas é só isso, uma sombra. --- Eu, continuou meu pai, bem que tentei
Quando estávamos bem debaixo daquela ajudar. Mas a gente segue o que a bíblia
lúgubre árvore, toda retorcida, com os prega. Não podia ficar dando o peixe,
fiapos de parasitas caindo de seus galhos tinha que ensiná-lo a pescar, ou melhor
parecendo farrapos, o meu velho pai dizendo, a caçar. Comprei uma socadeira
continuou: usada (espingarda de carregar pela boca )
--- O Dionísio, um negro muito bom, se e fui levar para o Dionísio, num domingo,
enforcou ali naquele galho. pensando em ensiná-lo a atirar pois,
Eu senti um gelado na espinha e apertei o naquela época, tinha muita caça. E se o
passo, apesar de ser pouco mais das dez homem tivesse uma espingarda não
horas da manhã. Mas como não sei se faltaria mistura na mesa.
assombração sabe ver a hora o melhor é Quá! Não adiantou nada, o rapaz morria
prevenir! de medo de espingarda, não chegava nem
Quando íamos saindo da grota e o sol perto!
esquentou novamente minha espinha, Deu no que deu, sete anos sem mistura é
arrisquei perguntar: muito prá qualquer um. Ele não agüentou
--- Mas porque foi que ele se matou ? mais e deu um fim na sua vida, ali
--- Por falta de mistura! Emendou meu naquele galho. Foi uma pena!
pai. - O Dionísio não era muito bom de

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CAUSOS

Mané I – A sopa especial de Sexta-Feira Santa.

Nosso primo, Mané, é uma pessoa preguiça sempre terá o que


cativante e que se destaca em qualquer
lugar que estiver pela sua simpatia e bom comer.
papo. Problema sério foi em
De temperamento uma sexta-feira santa de muitos
irrequieto já fez um pouco de anos atrás, não havia dinheiro
tudo mas adaptou-se melhor para o bacalhau e nem tempo
mesmo foi na lida com para ir pescar. Na quinta-feira
plantações de café assunto no ainda não tinham
qual é mestre. providenciado a mistura. Na
O Mané sempre foi muito hora do almoço a Dorinha
brincalhão, herdou o bom lembrou ao Mané que no dia
humor de seu pai, o Tita, seguinte não podiam comer
eternos moleques arteiros, carne e que os ovos estavam
sempre maquinando alguma sendo reservados para chocar
brincadeira com os amigos. uma ninhada de pintinhos. O
Ele encontrou a esposa Mané não se apertou.
ideal, de temperamento calmo Finalzinho do dia,
a Dorinha sempre teve encerrado o trabalho e
paciência com suas dispensados os peões o Mané
traquinagens ... quase sempre! tomou um bom banho, colocou
A Dorinha teve que aprender a uma roupa limpa e foi até a
fazer parto de leitão venda do “Seu” Joaquim, típica
atravessado, fato que venda de roça que tinha de
presenciei, fazer comida para a tudo um pouco. Caderneta de
peãozada toda e também a fiado já estourada, sem crédito
participar das artes do marido. na venda ele chegou e ficou
Passaram por altos e assuntando o movimento e as
baixos econômicos mas sempre prosas.
houve a criatividade para não Quando o movimento
faltar mistura para as crianças. diminuiu e Seu Joaquim estava
Quem mora na roça e não tem fazendo anotações no livro de
fiados o Mané perguntou:

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CAUSOS

- Seu Joaquim, qual o melhor uma cesta cheia daquelas


bacalhau que o senhor tem? ripinhas com a
Seu Joaquim absorto em recomendação:
suas contas respondeu: - Amanhã é dia de jejum e
- O melhor bacalhau é o de abstinência, faça uma boa
minha querida terra, o sopa de bacalhau para as
português, é claro! crianças!
- O Senhor poderia me A Dorinha ficou olhando
arrumar um caixote vazio incrédula para aquelas
deste bacalhau? Emendou o ripinhas fedidas e levou um
Mané. tempo até “cair a ficha”.
Seu Joaquim foi até os No dia seguinte, no almoço,
fundos da venda e voltou teve uma deliciosa sopa de
com um dos fedidos legumes com sabor e cheiro de
caixotes de bacalhau. bacalhau. No caderno de
O Mané voltou para o receitas da Dorinha ainda
sítio serrou o caixote em existe até hoje a receita de
pequenas tábuas de cerca de “Sopa de caixote de bacalhau”.
5 cm e entregou à Dorinha

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CAUSOS

Mané II – Pode trazer o frango ?

Meu primo Mané mudou-se de Franca contarem as cigarras. No domingo subiu


para uma fazenda de Itirapuã onde foi os aros até a ponta do poste e prendeu-os
administrar uma grande plantação de com uma longa corda formando uma
café. armadilha.
Ocorreu por lá uma verdadeira Quando os cientistas chegaram na
infestação de cigarras. Mal se conseguia segunda-feira e perguntaram pelas
conversar com aquela gritaria toda nos cigarras o Mané levou-os até as
ouvidos. proximidades da árvore onde estava a
Como as cigarras, em uma fase de ponta da corda. A cantoria das cigarras
seu crescimento, sugam as raizes do pé de era ensurdecedora. Puxou a ponta da
café prejudicando seu desenvolvimento corda e o enorme filó desceu
chamaram a atenção de alguns cientistas aprisionando toda a árvore e suas
pesquisadores de um destes centros cigarras.
especializados como EMATER ou - Podem entrar lá e fazer suas
EMBRAPA, não me lembro mais de qual pesquisas! E o almoço é por minha
deles. conta. Disse ele indo embora e
Os cientistas chegaram, visitaram deixando os cientistas de boca aberta
várias fazendas e se defrontaram com um com a engenhosidade da armadilha.
sério problema a ser resolvido: como Foi à partir deste episódio que em
capturar uma população significativa das Itirapuã ele ficou conhecido como
cigarras se ao se aproximarem das árvores “Mané Cigarra”.
onde ficavam ocorria uma grande revoada À hora do almoço as crianças foram
e poucas sobravam ? chamar o grupo de cinco estudiosos
O Mané, tinhoso que é, foi logo que estavam dentro do filó coletando
dizendo: as cigarras.
- Vão prá cidade e deixem comigo. Após se refrescarem do calor na bica que
Quando eu pegar as cigarras mando ficava na porta da cozinha todos se
chamá-los. sentaram e a Dorinha, esposa do Mané,
Ele comprou uma peça inteira de filó serviu o almoço que consistia de arroz,
e um rolo de mangueira preta feijão e uma salada de chuchu com um
daquelas duras. Escolheu uma bela ovo cozido picadinho no meio e uns
arvore próxima do cafezal. Enterrou fiapos de cebola.
um poste fino junto a seu tronco de tal Quando todos já haviam comido
forma que a ponta ultrapassava a cerca de metade de suas porções a
altura de sua copa em alguns metros. Dorinha apareceu na porta da cozinha
Marcou no chão o diâmetro da copa para a copa e perguntou:
da arvore e fez vários aros com a - Mané ! Posso levar o frango ?
mangueira preta como enormes - Ainda não! Disse o Mané. Espere
bambolês. Aos aros costurou o filó mais um pouco.
formando enorme saco que dava para Todos diminuiram o rítimo das garfadas
vestir toda a árvore. esperando o frango que não vinha nunca.
Mandou avisar aos cientistas que E as histórias e mais histórias do Mané
poderiam vir na segunda-feira para distraindo a todos.

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CAUSOS
A cena da Dorinha vindo à porta - Tá bom Dorinha, pode trazer o
perguntar se podia trazer o frango e a frango!
negativa do marido aconteceu por mais Ela chegou com um frango vivo e soltou
três vezes. Os convidados cansaram de sobre a mesa para comer os restos dos
esperar o tal frango e comeram todo o pratos e as migalhas da toalha sob o olhar
arroz com chuchu antes que esfriasse. incrédulo das visitas.
Na quinta vez o Mané disse: Era mais uma das grandes
brincadeiras do primo Mané !

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CAUSOS

Mané III – O coelho desencarnado.

Todos vocês já ouviram falar de outro e ele continuava a mirar até que o
espingarda que atrasa o tiro! Isto era tiro saia e abatia a mistura do dia.
muito comum de acontecer com as Um dia ele mirou uns três ou
socadeiras ( espingardas de carregar pela quatro e nada do tiro sair. Desistiu
boca ) que usavam pólvora preta feita pensando: - Vai ver que este negou!
com carvão vegetal, salitre e enxofre. Voltou para casa desanimado e
Esta pólvora é aquela mesma que foi passou pelo paiol para pegar umas palhas
descoberta pelos chineses e até hoje é e fazer um cigarro. Pegou a espingarda
muito usada no norte do pais e também pela ponta do cano para colocá-la
em “trabalhos espirituais” ou se preferem: encostada na sacaria de café e neste
em macumba. É uma pólvora que absorve momento, mais de hora após ter
muito facilmente a umidade e se mal disparado, o tiro saiu! Fez um grande
armazenada pode “negar fogo” ou estrago em sua mão sendo que um dos
“retardar o tiro” e que faz muita fumaça. dedos ficou troncho até hoje.
Ao disparar fica um barulhinho como se Triste com o ocorrido e para poder
estivesse fritando alguma coisa e após se tratar adequadamente mudou-se com a
alguns segundos quando a pólvora aquece família para a cidade de Franca. A Franca
com o pequeno fogo que a está do Imperador como a chamamos.
consumindo e o tiro ocorre. É um perigo Em Franca continuou a
pois o atirador pode pensar que o tiro não administrar fazendas mas viajando todos
vai sair e apontar a arma para onde não os dias e morando na cidade o que
deveria, como o seu próprio pé ou pior facilitava o estudo das filhas e de seu
ainda para o seu olho! É verdade! Tem filho caçula.
caboclo que vai olhar no cano para ver se Seu caçula, apegado que era ao
a bala “lá invém vindo”! cachorro levou o Totó para seu quintal e
Pois o meu primo Mané quando sempre que chegava da escola ia brincar
estava tocando o sítio de seu pai entre com ele.
Altinópolis e Santo Antônio da Alegria A cerca do quintal, como em
vez ou outra saía para caçar uns inhambús muitas casas do interior era de taquaras de
com a sua socadeira. Lazer saudável que bambú, dava para um terreno baldio no
naquele tempo não era crime inafiançável qual fizeram uma horta e plantavam
como hoje. alguns pés de milho. Deste terreno havia
Sua “Pica-Pau”, outro nome pelo outra cerca que dava para o quintal de
qual se chama a socadeira nas roças, uma bela casa com um grande gramado e
começou a retardar o tiro e tal defeito foi que era a casa do delegado da cidade.
se agravando com o tempo. O estranho é Viviam arrumando a cerca para que o
que no caso dele o defeito era da arma e Totó não incomodasse aquele ilustre
não da pólvora que até colocou para secar vizinho. Vai se saber qual seria a reação
no sol sem resultado. do mesmo ?!
Chegou ao ponto de puxar o Um belo dia a filhinha do
gatilho, ouvir o barulhinho de fritar e ele delegado ganhou em seu aniversário um
ficar na mira por longos minutos até o tiro belíssimo coelho daqueles bem peludos e
sair. Às vezes o inhambú sumia, aparecia branquinhos dos olhos vermelhos.

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CAUSOS
Ganhou até casinha para o bichinho de parente. Na realidade estavam tentando
estimação. O cuidado com a cerca e com ouvir se os vizinhos já haviam chegado
o Totó passou a ser redobrado pois o ou não.
danado do vira-lata vivia namorando o Na tarde de domingo ouviram
coelhinho da vizinha pelos vãos da cerca. uma grande gritaria no quintal do
Em um sábado à noite, a família delegado e correram até a cerca para ver o
do delegado tinha viajado, aparece na que acontecia. A cena era tétrica: a
cozinha o Totó feliz da vida com o coelho criança chorava e gritava em coro com a
todo sujo de terra entre os dentes, sua mãe ajoelhadas ao lado do coelho. O
mortinho da silva. delegado andava de um lado para o outro
A tensão foi instantânea e geral. E sem saber o que fazer com a situação até
agora ! O que fazer ? que os viu espiando por sobre a cerca e
O Mané, que não é de desistir fácil, foi até eles quando o Mané, com a maior
tomou um aperitivo para clarear as idéias, cara de pau perguntou: - O que foi que
matutou um bocado e decidiu: aconteceu? O coelhinho da menina
- Não foi o Totó! Vamos fazer parecer morreu ? Ao que o delegado respondeu:
que foi morte natural! Vamos lavar - Sim, o coelho morreu de sexta-feira
bem lavado o coelho, secá-lo e para o sábado e antes de viajarmos eu
colocá-lo em sua casinha. Por via das e minha esposa resolvemos enterrá-lo.
dúvidas prendemos o Totó na coleira Iríamos dizer a minha filha que ele
até eles voltarem da viagem! havia fugido! Agora o encontramos na
E assim foi feito. Lavaram o coelho sua casinha ! E nem sujo ele está !
com o melhor shampoo que tinham, Está até cheiroso ! É um mistério !
passaram creme rinse e secaram com Até hoje esta misteriosa historia é contada
o secador de cabelo. O coelho nunca em Franca e já a vimos até na internet.
esteve tão lindo cheiroso e morto! Cada vez que alguém conta ela perto do
Ajeitaram o bichinho em sua casinha e Mané ele fica com um sorriso maroto e
passaram o resto da noite de sábado e o misterioso de quem sabe qual é o santo
domingo na maior tensão. Todos falavam responsável pelo milagre do coelho
baixo como se estivessem velando algum desencarnado.

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CAUSOS

Coitada da moça ...

Álisson acordou mais cedo naquele dia, Alisson, disse, ainda bem que hoje não
talvez pelo cansaço do dia anterior. Junto temos almoço! Sem parar acho que até à
com seu irmão mais novo Antônio e com tarde conseguiremos completar as vinte
o vizinho Raimundo havia puxado quatro latas do Seu Deusdeti! Vai dar prá
carretas de raízes de árvores de uma nova comprar rapadura e farinha com os R$
gleba que seu tio estava limpando e 2,40 que vão sobrar depois de pagar os 20
descarregado na pedreira. Êta coisa % do tio que arrumou as madeiras para
desajeitada para se lidar esta soca de amolecermos as pedras. Os irmão vão
árvores! De todo jeito que se pega tem ficar feliz hoje na janta!
sempre uma raiz a lhe cutucar. Fica-se - Tá bão, falou o Alisson,
torcendo para encontrar alguma cobra no vamos começar queimando
meio das galhadas e garantir o almoço. aquela pedrona ali da beirada
Com a mão em concha jogou dois assim teremos trabalho até o
punhados de água na boca e um no rosto meio da tarde enquanto
para espantar o sono. Cutucou o Antônio queimamos outras duas.
e enquanto ele se aprumava pegou a velha Como era o mais experiente
foice e no escuro foi até a moita de palma com toneladas e toneladas de pedras
e cortou um punhado que colocou no queimadas e quebradas na marreta
balaio e deixou do lado de fora da porta Alisson foi orientando seu irmão no
da cozinha. Aquele seria o almoço do dia arranjo dos galhos ao redor da
para seus outros sete irmãos mais novos pedrona.
que ficariam com sua mãe. Seu pai tinha Puseram fogo e sentaram-se
ido para São Paulo há dois anos atrás, ao longe observando o fogo trepidar
quando ele ainda tinha treze anos e nunca no escuro da madrugada, logo
mais deu notícias. amanheceu e vez ou outra um se
Apesar de todo o cansaço Alisson levantava para ajeitar os galhos sobre
estava feliz e até arriscava uma “Mulher a pedra.
Rendeira” no assobio. O seu Deusdeti, do Lá pelas nove horas a pedra
açougue lá da vila, havia encomendado estava avermelhada. Alisson foi
umas vinte latas de brita para a ampliação buscar uma lata d’água na cacimba,
que estava fazendo no seu comercio e seguido pelo seu irmão. Chegaram
tinha pedido da brita mais fina que valia ao lado da pedra e simultaneamente
R$ 0,15 cada lata de vinte litros bem arremessaram suas águas sobre ela.
cheia. A pedra chiou, rangeu, estralou
Seu irmão já estava pronto sobre e sob uma imensa nuvem de vapor
seus chinelos de dedo tão gastos que rendeu-se e se quebrou em várias.
pareciam dois pedaços de papel. Cada pedaço enfraquecido por
Seguiram no escuro em direção à pedreira dezenas de trincas.
que ficava à beira da estrada uns dois Com uma velha enxada os
quilômetros acima. irmãos arrastaram as brasas que
Quando estavam quase chegando sobraram. Alisson pegou um pedaço
à pedreira Antônio rompeu o silêncio: - ainda quente arremessando-o ao ar

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CAUSOS
para não queimar as mãos. Sentou- Antônio começou a chorar e o
se sobre uma pedra e com uma Alisson ficou olhando fixamente para
pequena marreta passou a esfacelar o chão paralisado de cansaço e
aquele pedaço em pequenas desânimo; finalmente falou: - Tá bom!
pedrinhas que pareciam ter sido Dá a grana!
medidas uma a uma tamanha a Seguiram direto para a venda
uniformidade de tamanho. do Seu Genivaldo. Enquanto o
Antônio foi colocar outra pedra Antônio comprava uma metade de
sob a ação desintegradora do fogo e rapadura o Alisson se acotovelou
logo se juntou ao irmão no quebra- com um grupo de conterrâneos
quebra. olhando para uma velha TV preto e
Por volta das quatro da tarde, branco. Tinha alguma coisa
após marretarem o dia todo sob o importante acontecendo!
calor do sol escaldante e sobre o No meio do caminho de volta
calor das pedras aquecidas tinham a foi o mais velho que quebrou o
seus lados belos montes de pedra silêncio:
britada. Avaliaram bem os montes e - Você viu só a sacanagem
juntando ao que tinham feito nos dias que fizeram com a moça?
anteriores acharam que já era - Num vi não, respondeu o
suficiente. mais novo.
Pegaram uma velha carriola e - Pois é, eu vi lá na TV do
fizeram inúmeras viagens levando as Seu Genivaldo, a coitada
britas até a porta do açougue que da moça até chorou. Foi de
ficava a uns 600 metros ou mais da cortar o coração!
pedreira. Aprontaram com ela e foi
Quando terminaram chamaram sacanagem das brabas
orgulhosos Seu Deusdeti para ver o feitas pelo pessoal lá de
monte de britas. São Paulo! Uma moça tão
O açougueiro olhou, rodeou, boa! Queria fazer tanta
cutucou com o pé e disparou: coisa boa prá gente! Num
- Não gostei do tamanho das deixaram não!
britas! Ficaram muito - Coitada da moça ..
pequenas! Só dou R$ 1,40
pelo monte todo!
- Mas, mas, Seu Deusdeti!
Gaguejou o Antônio. Aí tem PS.: Este causo foi escrito em abril
uma semana de nosso de 2002 coincidentemente logo após
Roseana Sarney, governadora do Maranhão
trabalho e muito suor! desistir de sua candidatura à presidência
- Se quiserem é 1,40! Se não devido denuncias de corrupção em seu
quiserem podem levar de governo.
volta!

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CAUSOS

A CORAGEM DO CAIPIRA.

Tem caipira que vai caçar onça arroz e que estavam vindo em direção ao
armado apenas de uma zagaia que é uma nosso sítio.
lança grande a qual apoia-se no chão para Ficamos todos apreensivos e por
aparar a onça quando ela pula sobre a várias vezes, à noite, fomos verificar a
pessoa, haja coragem e agilidade! divisa com o sítio vizinho.
Tem caipira que enfrenta cobra Por volta das 23:00 horas elas
venenosa, outros pegam jacaré pelo rabo começaram a chegar. Para quem nunca
ou tiram enxame de abelha sem proteção viu o espetáculo é terrível. Chegam como
nenhuma, passam em local mal uma onda e fazem barulho para comer.
assombrado, etc.. Em poucos minutos pés inteiros de milho
Este tipo de coragem podemos são devorados ficando apenas os talos.
classificar muito mais como falta de Eu não suportei ver aquilo. Armei-
responsabilidade, gosto pela aventura, ou me de um pulverizador à gasolina
até como “esporte radical” como fazem abastecido com BHC em pó. Veneno hoje
hoje. banido mas muito usado na época. Entrei
A verdadeira coragem do caipira pelas plantações fazendo uma verdadeira
está no seu dia a dia. Para pegar nuvem branca de veneno.
empréstimo em banco e plantar sem saber Como estava bastante escuro eu
se vai chover na hora certa ou fazer sol no não via onde estava a nuvem de BHC e
momento em que precisa para a colheita acabava passando por dentro dela
ou se o preço de venda estará bom precisa respirando aquele pó letal pois só usava
ter uma coragem enorme. um lenço no rosto como mascara de
Plantar café, cuidar durante anos e proteção.
depois perder tudo com a geada e voltar a Após muito veneno jogado e
plantar mais café ... tem que ter muita respirado percebi que aquela luta era
coragem ! desigual, as lagartas estavam em número
Em minha adolescência já não muito maior e eu não iria conseguir para-
morava mais em nosso sítio mas nas las mesmo porque o veneno levava um
férias escolares sempre íamos para lá, eu tempo para agir e enquanto isto elas
e meus irmãos, para ajudarmos no que continuavam a devastar.
pudéssemos. Adubar café, pulverizar, Quando parei para reabastecer o
tratar dos porcos e várias outras tarefas pulverizador e já estava sentindo o efeito
ficavam por nossa conta nestes períodos. tóxico do veneno meu pai aproximou-se
Eu gostava de trabalhar com os de mim e disse:
pulverizadores costais movidos a gasolina - Deixe-as, elas também são filhas de
pois os danados sempre davam problemas Deus e também precisam comer.
e como sempre gostei de mecânica podia Deixe-as em paz, depois nós
desmontá-los e tentar arrumar. plantamos outro milho e outro arroz!
Em uma ocasião estávamos todos No momento não entendi aquela
no sítio e à tarde chegou a notícia de que atitude. Julguei seu ato como
no sítio vizinho havia uma grande sendo de resignação e
infestação de lagartas que estavam conformismo.
acabando com as plantações de milho e

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CAUSOS
Hoje tenho outra visão dos fatos, Nosso tio Antônio a quem
penso que precisa ter muita coragem para chamávamos de tio Tonho foi a única
trabalhar-se dia a dia na dependência e vítima humana desta tragédia. Um gato
em interação com a natureza. Às vezes que escapou da matança contraiu a
perde-se em minutos meses ou até anos hidrofobia e atacou-o. Cravou seus dentes
de trabalho em uma chuva de granizo, na batata da perna de nosso tio e não
uma nuvem de gafanhotos, um raio, uma largou por nada deste mundo. Mataram o
planta venenosa, uma tromba d’água ou gato e ele continuou grudado. Parecia
outra catástrofe da natureza perante a qual cabeça de saúva quando a gente gruda na
o homem é impotente mas tem a coragem beirada da camisa e arranca o corpo. Meu
suficiente e necessária para recomeçar. tio tomou todas as vacinas contra a raiva,
Em uma ocasião tivemos que que eram aplicadas na barriga.
matar mais de 20 animais entre cachorros Foi muito difícil para todos da
e gatos de nosso sítio e vizinhos pois família suportar o mal cheiro daquele
fomos visitados por um cachorro raivoso gato que foi apodrecendo aos poucos
e não sabendo quais tinham sido dependurado na perna de nosso tio. Levou
contaminados tivemos que sacrificar uns três meses para cair o corpo e ficar só
todos. Foi uma choradeira danada. o crânio do gato. Quando já estávamos
Minhas irmãs ,que são em cinco, todos acostumados a ver aqueles ossos
amontoaram-se sobre uma cama e dependurados em uma janela na perna da
choraram o dia todo encharcando a colcha calça o crânio caiu lá pelo sexto mês após
e o lençol. Minha mãe que nunca foi de a mordida do gato. Meu tio se apegou ao
desperdiçar nada colocou os panos para gato com o qual teve que conviver por
secar no varal e depois de secos estendeu seis meses e guardou os ossos por muitos
um pano de colher café sob os panos e foi anos até que faleceu recentemente e em
batendo neles com um pau. O sal das seu leito de morte pediu a seus filhos que
lágrimas que caiu dos panos ela juntou e colocassem junto a seu corpo no caixão
deu para cozinhar um mês inteiro! um saquinho com os ossos do gato e
assim foi feito.

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CAUSOS

O CAIPIRA, A RADIOESTESIA E O LEITE DE ONÇA.

Por volta de 1959 ou 1960 eu com pedra o que lhe deixou vários caroços na
meus seis ou sete anos tinha poucas musculatura dos braços.
preocupações, era responsável por fazer Nesta época um fazendeiro pediu-
diariamente 100 litros de lavagem para os lhe para ir analisar sua propriedade pois
porcos usando fubá de milho, farelo de estava querendo aumentar o rebanho de
arroz, abóbora, inhame, galinha, gato, gado e a água disponível era pouca.
cachorro ou qualquer outra proteína que Conhecedor da propriedade por ter
tivesse parado de respirar. Nesta minha caçado algumas codornas por lá ele já
tarefa acabei aprendendo a comer inhame saiu de casa com um propósito e levou-
e abóbora sem sal e cheguei a me como ajudante além de seu “aparelho
experimentar algumas carnes que não de curva de nível” que havia construído
freqüentam habitualmente a mesa do conforme instruções da revista Chácaras e
caipira. Quintais. Era constituído por dois sarrafos
Outra tarefa que gostava muito era graduados com uns dois metros de altura
a de ajudar o Cidonio, meu pai, a marcar aos quais era presa uma fina mangueira
curvas de nível e regos d’água e de de plástico transparente cheia de água
acompanhá-lo quando, fazendo uso da com uns 20 metros de comprimento e
radioestesia, ele mapeava os veios de cujo simples funcionamento ele dominava
água de uma propriedade e determinava o com maestria.
melhor local para furar uma cisterna que Chegando à fazenda fomos direto
não viesse a secar na época das estiagens. para uma grande nascente de água que
Meu pai nunca cobrou por seus fica atrás de um morro próximo ao curral.
serviços relacionados à água, assunto que Partindo da nascente fomos marcando
ele e seus irmãos dominavam como onde seria o leito de um rego de água
poucos e para “achar água” era mais sempre colocando um desnível no sentido
procurado que giló em gaiola de canário. do curral e contornando o morro. Após
Com uma forquilha retirada de alguma algumas horas chegamos ao curral.
árvore local percorria toda a propriedade, Meu pai pediu que o fazendeiro
sentia os veios subterrâneos de água e chamasse o tratorista e que o mesmo
seus volumes, estudava a topografia e deveria vir fazendo um sulco profundo
finalmente definia o melhor ponto para se com o disco do arado seguindo nossas
cavarem os poços não sendo raras as marcações desde a nascente até o curral.
vezes em que acertava a profundidade em O fazendeiro inicialmente se
que se encontraria água e qual seria o seu negou a fazer o serviço alegando que a
volume. água não iria subir o morro. Foi preciso
Em nosso sítio em Altinópolis prometer-lhe que se não desse certo a
existe uma de suas obras primas. O poço despesa do trator lhe seria reembolsada!
fica na parte mais elevada da propriedade O rego foi feito e a água chegou
e o fundo do poço fica acima do nível das ao curral logo atrás do trator.
casas desta forma a água desce por Ocorreu que enquanto
gravidade da cisterna para as casas não esperávamos o trator fazer o serviço
havendo a necessidade de ser bombeada. fomos dar uma olhada em uma mata
Para chegar até o lençol de água teve que adjacente à nascente. Eu havia levado
romper na picareta grossa camada de uma pequena carabina .22 da qual

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CAUSOS
raramente me separava. Presente de meus água com o trator em uma longa distância
tios. o que estava inviabilizando o negócio.
Ouvimos um barulho suspeito e Tentou abrir várias cisternas e
meu pai fez sinal para que fizesse para isto chamou os especialistas em
silêncio. Logo apareceu uma onça e fato “achar água” da região. Em nenhum dos
muito estranho uma outra vinha atrás cerca de seis poços que perfurou obteve
segurando com a boca o rabo da primeira. sucesso.
Mirei bem no pé da orelha da Certo dia acordou desanimado da
primeira e atirei. Distrai-me a recarregar a vida e resolvido a vender as vacas.
arma que era de uma única bala. Quando saiu na porta da casinha em que
Percebemos que a primeira onça dormia viu em um pasto próximo a figura
caiu fulminada pelo tiro e a segunda, do Cidonio, vestido com uma daquelas
apesar do susto, não largou o rabo da longas capas de cavaleiro. Meu pai
primeira e ficou bem quieta. apontou para o chão no local onde se
Rodeei a onça com a arma encontrava e sem dizer nada sumiu como
preparada mirando-a constantemente. uma nuvem que se desfaz.
Após uma detalhada observação Meu tio Zezim foi até o local e marcou-o
constatamos que ela era cega e estava com uma estaca. Chamou os cavadores de
sendo guiada pela que havíamos matado. poços e mandou cavarem. A água
Meu pai desembainhou sua apareceu logo e em abundância. Meu tio
inseparável faca Solinger, presente de seu fica muito emocionado quando nos conta
irmão caçula, e com ela cortou bem no pé estes fatos, os quais não me arrisco a
o rabo da onça morta. Tomou o rabo na interpretar. Seria uma manifestação da
mão e saiu andando sendo seguido pela radioestesia de meu próprio tio ?
onça cega que não largava o rabo por
nada.
Tivemos que voltar à pé para o
nosso sítio para levarmos o belíssimo
felino.
Esta onça foi uma grande atração
na redondeza, todos queriam ir vê-la.
Uma vizinha, que havia parido uma
menina prematura, pediu-nos leite da
onça para dar à menina e foi um santo
remédio. A menina arribou rapidamente e
ficou um lindo bebê. Nós nunca fizemos
questã de contar esta história aos outros
pois sempre tem aquele que quer duvidar
e isto nos magoa muito.
Vale ainda deixar aqui registrado
que anos após a morte do Cidonio seu
cunhado Zezim ( o Zezim da Venda )
enfrentou sérios problemas de falta
d’água em sua fazenda de Goiás. Seu
gado começou a sofrer e tinha que buscar

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CAUSOS

O Primo Ventania. havia nada igual para, depois de um


aniversário de criança, incentivar uma
O primo Renato desde criança já divertidíssima disputa de quem soltava o
manifestava sua preferência pelos gazes e mais alto, quem soltava o mais fedido,
sólidos que tanto enojam aos outros. quem soltava o maior número em menor
Quando criança, em visita a seu tempo e o prêmio máximo era daquele
avô materno em Altinópolis, acordava que conseguisse imitar alguma seqüência
cedo e ia com as outras crianças buscar de notas musicais.
água fresca em uma bica no final da O Renato conseguia após uma
pequena rua principal. estranha ginástica que envolvia coices ao
A bica ficava em uma gostosa ar e tapas na barriga imitar com perfeição
chácara e para chegar a ela passava-se por uma longa seqüência de uma marchinha
um pomar de mangueiras e jaboticabeiras tocada pela banda do Seu Alcindo. Ele
atravessando-se depois um piquete com imitava o som da tuba.
sua aparadíssima grama pontuada com Já na adolescência ele queimou
inúmeros montículos de esterco fresco vários pijamas e cuecas fazendo um show
deixado pelas vacas que ali pastavam. de "Homem Dragão" para os amigos.
O Renato, longe da vista das Pena que este número não tenha aceitação
demais crianças, apanhava vários na televisão pois é simplesmente
pedregulhos escolhendo sempre os mais fantástico. Quando íamos com vários
achatados e enchia os bolsos com eles. primos e irmãos passar as férias no
Na volta, cada qual com seu casarão do sítio chegamos a segurá-lo em
latãozinho, caldeirão ou balde de água, difícil posição sobre o fogão a lenha para
iam conversando e caminhando conseguirmos acender o fogo com
distraidamente pelo gramado do piquete. madeira úmida.
Quando o primo via algum montículo de Muitos amigos passaram pelo
estrume bem fresco ia atrasando o passo e terrível vexame de "carimbarem a cueca"
deixava os demais se adiantarem, quando tentando imitá-lo. Sempre foi insuperável.
acabavam de passar pela bosta fresca ele, O tempo passou e ao
com uma pontaria certeira, atirava um dos completarmos dezoito anos e tirarmos
pedregulhos achatados. A pedra girando carteira de motorista fomos fazer nosso
atingia o monte de estrume como um primeiro passeio ao litoral. Carro
disco voador desgovernado em abarrotado de panelas, barracas, e toda
aterrissagem forçada. A pasta verde e tralha de camping mais cinco malucos
pegajosa era arremessada em todas as fomos acampar em Bertioga.
direções lambuzando os moleques e suas A praia quase deserta logo nos
vasilhas de água. incomodou e fomos dar um passeio em
Era inevitável a gritaria e o corre- Santos. A caipirinha de pinga vagabunda
corre de todos. À partir deste ponto o mais os camarões fritos super gordurosos
Renato tinha de seguir sozinho, primeiro logo fizeram efeito no intestino sempre
para não apanhar dos demais e segundo solto do primo.
porque todos tinham que retornar à bica Caipira apertado na praia logo
para se limparem e apanhar nova água. pensa no "marzão besta" à sua frente e
O seu gosto pelas sonoras e assim foi que ele entrou no mar até o
fedidas sinfonias de gazes começou junto pescoço, abaixou seu calção e aliviou sua
com o gosto pelas balas de coco. Não aflição.

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CAUSOS
Assim que o "submarino amarelo" o safado estava gargalhando no quarto
saiu da garagem começou a levantar a !
proa e quase a 90 graus subiu esfregando O episódio do trovão lhe valeu
a popa pela suã do Renato até saltar fora mais de um mês de abstinência
d'água na altura de sua nuca deixando em sexual!
suas costas uma faixa amarela e fedida O castigo demora mas um dia
que lhe valeu o apelido de gambá por chega! Dia destes o Renato foi
muitos anos. dormir.
Entramos na faculdade e o Primo Deu boa noite para a Helô e
Ventania foi estudar em Bauru onde dormiu logo pois estava cansado.
enamorou-se e acabou tendo que se casar, Havia viajado o dia
não que não quisesse casar mas ficava todo comido algumas bobagens
muito preocupado com seus terríveis e pela estrada e se sentia meio
sonoros gazes. indisposto.
Caipira sem-vergonha não tem De madrugada acordou com um clarão e
jeito. Solta um pequenininho hoje para assustou-se com um grandão barbudo à
testar a mulher, um pouco maior amanhã sua frente. Êpa! O que é isto? O que tá
e até o final da semana já está soltando fazendo no meu quarto? Perguntou.
até na mesa de jantar e sob as cobertas. - Eu sou São Pedro e você não está no
Para ele que tem perfeito controle da quarto, está no céu! Afirmou o
válvula foi muito fácil armar um plano barbudo.
para que a esposa se acostumasse com sua - Cê tá é doido! Eu não posso morrer
sina. não! Emendou o Renato. Tenho que
Quem mora em Ribeirão Preto sob acabar de pagar a casa, dar escola
seu causticante sol sabe que no "verão para os meus filhos! Eu trabalho
brabo" o melhor horário para se secar como representante comercial e ainda
roupa é à noite pois pela manhã elas estão não sobrou para deixar-lhes nada!
no ponto certo para passar enquanto se Cancela isto! Me deixa voltar! Foi
forem secadas durante o dia ficam disparando como metralhadora.
esturricadas parecendo couro cru que foi - E o velho São Pedro: Meu filho, as
seco esticado na parede do paiol. coisas não são assim tão fáceis, não
Nossa prima por adesão, esposa tem como deixá-lo voltar pois seu
do Renato, pendurou toda a roupa ao corpo já entrou em decomposição! Só
anoitecer e aquela noite foi se deitar posso deixá-lo voltar se for encarnado
muito cansada. Já estava quase dormindo, em sua cachorra ou em uma galinha
com as ondas cerebrais sintonizando em de seu galinheiro.
alfa quando o maridão soltou o seu peido O Primo Ventania tentou pensar
número 8,6 ! A veneziana de alumínio do rápido: Naquela cachorra não vai dar.
quarto tremeu por uns 15 segundos e o Quando entra no cio os cachorros da
som ecoou e reverberou pelas paredes. A vizinhança toda fazem fila! Deus me
coitada da Helô deu um tremendo salto da livre! Como galinha ... sei lá, nunca vi
cama e disparou: a ferramenta do galo. Deve ser bem
- Renato, corre! Levanta e vem me pequena! Vou nessa!
ajudar a recolher as roupas que vai - Tá bom, então me manda de galinha!
chover ! Já estava destrancando a
porta da cozinha quando percebeu que

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CAUSOS
Mal deu tempo de acabar de falar e nacional. O menino leva jeito! Só que os
Zuuummmmm! Estava no galinheiro. dele tem o som de trombone!
Sentiu-se estranho, fofo e leve.
- Puxa! Có, virei mesmo galinha, có!
Viu então o galo vindo em sua direção...
- Cóóó, você é nova por có aquí ?
- Có, sou sim, có! Có, que cóisa, não
paro có, de cócarejar !
O Galo vai logo enumerando as regras do
galinheiro.
- Có, aqui có, você tem só có duas
cópções: có reprodutora ou có
poedeira.
Novamente o rápido raciocínio
funcionou: Se vou có chocar ovos os
mesmos tem que ser cócó galados! Có,
ovo para ser có frito não precisa galar
coóóh!
- Eu có gostaria de có ser poedeira mas
cócó não sei có botar ovo!!
- Isto é có muito có fácil, afirmou o
galo, eu có ensino você.
- O necócio é assim: có senta aí! Agora
có levanta có a asa direita cócó e
abaixa có duas vezes có! Agora grita
cócórecodeco duas vezes!
O Primo seguiu fielmente os passos e
PLOC! Caiu um ovo quentinho, muito
gostoso e confortável, não doeu nada,
pelo contrário, foi prazeroso!
O Renato se empolgou com a façanha e
começou a repetir os procedimentos...
- Que có delícia, estou começando a
gostar có desta história de có ser
galinha!
Quando começou a fazer o procedimento
para colocar o quarto ovo ele houviu os
gritos de sua esposa:
- Acorda seu desgraçado ! Agora você
passou dos limites! Tá cagando na
cama seu porco !!!
Na semana passada fiz uma visita a eles,
mais por curiosidade, prá ver se a raiva da
Helô já tinha passado.
Encontrei o Renato ensinando o seu filho
a tocar a famosa primeira estrofe do hino

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