Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Ribeirão Preto.
Abril de 2002.
cabete@brascopper.com.br
mcabete@ig.com.br
Indice
CAIPIRAS AVIADORES
A paixão de nosso caipira pela aviação Mudei-me para São Paulo em 1978 e
começou há muito tempo. Aqui ao lado logo, minha esposa e eu, fizemos amizade
de Ribeirão Preto uma pequena cidade com mais um caipira aviador e sua
homenageia em seu nome o mais ilustre esposa. O descendente de italianos
de seus caipiras que ali teve fazenda e Ângelo fala alto, xinga bastante e se acha
sonhou com os ares. Dumont. destemido, desbravador, inventor, etc.
Em meu tempo de faculdade lá em Inventou de fazer três filhos e quase não
Guaratinguetá encontrei muitos caipiras deu conta, cada um foi saindo com a boca
encantados com os ares. Um deles em maior que a do outro. O mais novo cada
especial, meu amigo, judiou bastante de vez que chorava engastalhava os dentes
mim fazendo piruêtas, parafusos e outros nas orelhas, dava o maior trabalho
malabarismos com um aviãozinho desengastalhar o menino. Acabou ficando
paulistinha. com o apelido de “O Boca”.
Em um de nossos passeios malucos o Destemido, de certa feita o Ângelo vinha
Hortão, este meu amigo piloto, viu uns chegando do trabalho, de terno, pasta 007
pescadores com redes armadas no rio na mão, viu a prancha de skate das
Paraíba, coisa que não era proibida crianças no corredor. Tomou impulso e
naquela época, e resolveu dar uma com muita velocidade pulou sobre o
ajudazinha aos pescadores. Skate. A prancha rodou suavemente até o
Descemos alguns quilômetros no rio e o fim do corredor, no exato tempo que o
Hortão foi abaixando o avião sobre o rio Angelo levou para subir e cair de costas
Paraíba e eu fui me desesperando. A certa quebrando duas costelas.
altura ele encostou as rodas do teco-teco Após fazer seu pé de meia na cidade, tirar
na água, com a pequena frenagem da brevê de piloto, tomar raiva de
água o avião inclinou-se para a frente e computadores ( trabalhava como analista
tocou com a ponta da hélice no rio, ele de sistemas ), o Ângelo resolveu voltar às
segurou a aeronave nesta posição e foi raízes.
subindo o rio tocando os peixes para as Juntou um bom patrimônio que havia
redes dos pescadores. constituído mais uma boa herança de sua
Era água que voava para todo lado, esposa e foi alimentar bicho de pé em
parecia que estávamos dentro de um uma bela fazenda que adquiriram em
liqüidificador. Tupi Paulista, interior de São Paulo.
Próximo das redes ele subiu e deixou os Como na época a moda era plantar cana
atônitos pescadores com as redes de cara ele plantou 100 hectares. Plantou
abarrotadas e uma “história de pescador” e cuidou muito bem pois tinha dinheiro
inacreditável. Quem for pescar pelos rios na poupança. O canavial ficou lindo.
de Guaratinguetá certamente ouvirá esta Se esqueceu de combinar a venda da cana
história de algum pescador. A brincadeira antecipadamente. Quando foi tratar na
custou-lhe caro. A hélice do avião destilaria ficou sabendo que àquela altura
desbalanceou e teve que ser substituída. da colheita a destilaria só aceitaria a cana
Quem lucrou fui eu que ganhei a bela se ele a colhesse e entregasse pois toda
hélice de pau marfim que hoje está mão de obra e frota estava comprometida.
enfeitando a varanda de minha casa.
Pegou um balaio de milho colocou nas Pela abertura do forro afofou as palhas de
costas e dirigiu-se ao chiqueiro. Jogou as milho desfiadas, do enchimento de seu
espigas aos porcos e antes que a última colchão, fazendo o típico barulho que
caísse ao chão já estava caminhando em avisava a todos da casa sem forro que
direção a sua casa. estava na hora de fazer silêncio e apagar
as lamparinas.
Parou junto à bica de água e tirou o
grosso da poeira do rosto e dos braços. Quem dorme em colchão de palha cria o
hábito de não se mexer. Tem que ficar
No interior da modesta e limpíssima bem quietinho pois a cada mexida o
casinha com piso de saibro socado já barulho das palhas informa à casa inteira
tremia a tênue luz de uma lamparina a que tem alguém acordado. Naquela noite
querosene. não teve jeito. O Milton se remexeu por
um bom tempo pensando na promessa
O Milton entrou calado, sentou-se à mesa que havia feito ao pai em seu leito de
na sua cadeira predileta que ficava ao morte dois anos atrás. Só parou de se
lado da janela por onde podia observar as remexer quando tomou a decisão de sair
estrelas e o luar da noite clara e quente. como palhaço na Folia de Reis deste ano
assumindo assim o compromisso de pagar
A comida foi rapidamente servida por uma promessa que seu pai havia feito em
suas irmãs entre um e outro comentário vida e que ele havia se comprometido a
sobre a porca que havia parido e os pagar mas vinha adiando pois era muito
bernes da vaca malhada que foram reservado e não se via fazendo as
curados com óleo queimado cedido pelo estripulias de um Palhaço de Folia de
homem do caminhão que recolhia os Reis.
latões de leite.
O tempo de preparação foi curto pois já
O Milton só ouvia e comia o arroz com estavam em novembro. As irmãs
feijão e pele de porco, colherada após costuraram à mão a fantasia e com a
colherada. A coxa de frango reservou ajuda de uns vizinhos ele conseguiu fazer
para o final. uma máscara bem rudimentar e colorida.
Feia como convém ao palhaço que
Terminado o jantar sentou-se do lado de representa “o Coisa Ruim” na Folia.
fora da casa onde tomou um café com
rapadura e fumou calmamente um bem Acertado com a Companhia de Foliões
enrolado cigarro de palha. pediu licença ao patrão para se ausentar
O caboclo de mãos calejadas e pele Após poucas semanas já não sentia tanto
grossa do sol já não era mais o mesmo a falta da cachaça e passou a freqüentar a
responsável e trabalhador de sempre. A venda novamente apenas para um bate-
garrafa de cachaça passou a acompanhá- papo com os amigos. O cheiro da pinga
lo na matula e acabava dormindo na ainda o incomodou por vários anos.
sombra de um pé de café.
Hoje, quando o Milton assiste às famosas
Ele se desesperou com a situação e certa Folias de Reis de Altinópolis fica muito
manhã, quando suas mãos trêmulas não emocionado e sente sua fé aumentar mais
conseguiam tirar o leite das tetas da ainda quando se lembra que quem o
malhada, amarrou a corda de pear as salvou, sua forte e amada esposa, se
vacas em um esteio do barracão e quase chama Divina.
conseguiu dar fim a seu sofrimento.
O TEMPO AVUA.
Naquele tempo, que não está tão longe em latas de banha ou andando sobre suas
como alguns irão imaginar, havia uma próprias pernas.
preocupação muito maior com os
relacionamentos humanos, gastava-se Quando raramente íamos à cidade nosso
muito mais tempo com um bom bate papo maior prazer eram os picolés de côco
e com a preparação de um “agrado” para queimado da padaria do Corchini.
as crianças.
Pois às vezes éramos surpreendidos
Eu e meu irmão mais velho ( dois anos ) durante as aulas, que reuniam alunos da
Tadeu estávamos na escola de roça do primeira segunda e terceira séries em uma
Congonhal, que era também uma estação mesma classe por visitas do Chefe da
de parada ( e partida é claro ) das Estação do Congonhal que nos avisava
composições da São Paulo e Minas com que chegara alguma “encomenda” da
suas barulhentas “Marias Fumaça” cidade que deveríamos retirar no final das
movidas a lenha. aulas para levarmos a nossos pais.
O caipira e a astronomia.
Nosso caipira observa o céu e conhece fazenda pois lá não haveria tanta
muito pouco sobre ele. Às vezes acredita iluminação a atrapalhar a observação dos
que São Jorge vive na lua matando o astros.
dragão. Minha avó presenciou pela tv a À noite, telescópio à postos, céu
ida do homem à lua e até a sua morte maravilhoso, chamamos o Sr. Francisco,
anos depois não acreditava que aquilo administrador da fazenda, para participar
realmente ocorreu. Dizia que era mais um do evento. Após uma breve aula de
truque do cinema americano. astronomia, da diferença entre estrelas e
Em 1975 fui estudar engenharia mecânica planetas, de quantos planetas temos no
em Guaratinguetá, terra do presidente sistema solar, etc.., o Guto apontou o
Rodrigues Alves. Morávamos em nove telescópio para Saturno e foi realmente
amigos em uma república estudantil que um espetáculo. O danado parecia uma
formamos à beira do rio Paraíba bem bolinha de gude, do tamanho de uma
próximo à ponte metálica ou ponte velha. jabuticaba graúda e com os tais
Meu maior amigo desta época é de aneizinhos à sua volta. Era uma coisa
Cruzeiro, estava mais adiantado na linda realmente.
faculdade, seu pai tinha uma fazenda no Chamamos o Sr. Francisco para ver. Ele
município de Guaratinguetá a qual olhou pelo telescópio, olhou para o céu,
visitávamos com freqüência para noitadas olhou novamente pelo telescópio, olhou
regadas a vinho, queijo fresco, violão e outra vez para o céu e tornou a olhar pelo
muitos causos contados e ouvidos. telescópio.
Certa ocasião o Guto, este meu amigo, foi - E aí Sr. Francisco, o Sr. viu Saturno ?
fazer um curso de astronomia no Perguntou o Guto.
planetário em São Paulo. Viajava todo - Vê eu vi, respondeu, mas não acreditei
final de semana para as aulas, aprendeu não !
sobre as constelações e também como Assim é nosso caipira, às vezes não
fazer um telescópio. Não precisa dizer acredita no que vê, mas acredita naquilo
que o assunto de muito tempo foram as que lhe foi contado por seus avós e
estrelas, os planetas, as galáxias e tudo compadres, como Saci Pererê, Curupira,
relacionado. Por muito tempo demos boas Mula sem cabeça ... Para ele a informação
risadas do Guto quando teimava em nos oral é a que vale. O nosso caipira é um
fazer acreditar que um de seus bicheiro às avessas, um São Tomé de
professores de astronomia era cego. ponta-cabeça. Não vale o que está escrito,
Muitos anos depois, já residindo em São nem há a necessidade de se ver para crer.
Paulo, vim a descobrir que o tal professor A tradição oral passada a gerações é a
cego realmente existia! história e também a ciência. O resto são
Curso feito, telescópio construído, lá esquisitices ou invencionices como
fomos nós no Jeep 54 do Guto para a sinhôzinho Guto tentou ensinar.
O GALO CAPÃO.
JOÃO DE DEUS
- Como o senhor se chama? do braço de João de Deus que só via água
- João. quando chovia. Foi necessário apelar para
- João de que? uma grossa agulha de aplicar injeção no
- João de Deus. gado e é claro que doeu bastante. Nesta
Era assim que ele se apresentava e era o madrugada João de Deus foi-se embora
nome perfeito para ele. com seu jumento e nunca mais o vimos
João de Deus era um andarilho que uma ou soubemos se havia sarado ou morrido.
vez ao ano passava pelo nosso sítio em Naquela noite, após o médico ter ido
Altinópolis. Trocava raízes e ervas embora, enquanto meu pai fervia a
medicinais por rapadura, café, sal, arroz, seringa, João de Deus me contou que
pinga e outros gêneros de primeira certa vez ficou seis semanas de cama,
necessidade. Tudo que ganhava era com muita febre, em uma fazenda
repartido meio a meio com seu abandonada.
companheiro de jornada que era um - Mas e como você não morreu de fome e
jumentinho no qual nunca cavalgou, ia sede ?
sempre ao lado dele que levava dois sacos Perguntei-lhe.
bem leves com as ervas, raízes e algumas - Olha menino, Deus é grande e cuida dos
latas a serem usadas como panelas. seus. A minha sorte é que nunca amarro
João de Deus vivia em sintonia com a meu jumento e ele pegava uma lata nos
natureza, dormia no mato quando o tempo dentes e ira buscar água para mim em um
estava bom ou procurava abrigo no curral córrego próximo.
de alguma fazenda. - Mas e a comida João de Deus, não me
Nunca aceitou dormir no paiol ou outro diga que o jumento cozinhava para você?
lugar melhor, que fosse fechado. Tinha - Não, é claro que não, eu nunca deixei
que dormir em local onde pudesse fazer ele lidar com fogo!
uma fogueirinha para cozinhar sua - A última alma bondosa que lá morou
comida e fazer os seus chás. deixou umas galinhas prá trás, as galinhas
João de Deus visitou nosso sítio por foram aumentando e tinha bem umas
muitos anos mas só me lembro de duas ou vinte ou trinta. Eu nunca tinha visto um
três visitas pois quando fiz oito anos foi o bando de galinha tão inteligente! Elas
ano em que ele adoeceu e meu pai, o foram se aproximando da minha cama
Cidonio, foi à cidade chamar o médico, improvisada, acho que prá comer os
Dr. Alberto, e o farmacêutico Sr. Célio. pernilongão que vinham chupar meu
Não houve meio de convencê-lo a ir para sangue e mais pareciam aqueles lava
a cidade, João de Deus não iria se separar bunda que ficam sobre as poças de água,
de seu jumento. O médico receitou de tão grandes. Depois de comer bastante
algumas injeções que o precavido a galinhada se ajeitava nos meu pé e
farmacêutico já tinha em sua maleta. Meu botava os ovos, era cerca de duzia e meia
pai ficou encarregado de aplicar as por dia. Elas eram tão espertas que depois
injeções pois já fazia isto para toda a de botar saiam bem quietinhas prá não me
redondeza e era experiente na tarefa. acordar e só iam cantar quando chegavam
Na primeira tentativa a agulha da injeção bem longe no terreiro.
entortou e não entrou na grossa carapaça
No tempo em que se podia caçar perdiz e cachorro que come a caça, e tem aqueles
tinha perdiz prá ser caçada Altinópolis que nasceram pro serviço.
tinha mais cachorro perdigueiro que O sultão era um destes, aprendeu facil,
qualquer outro bicho. prendia na boca a bolinha de meia com a
Prá se treiná bem um perdigueiro tem que maior delicadeza sem danificá-la, quando
ter paciência, eles são ótimos de faro mas "amarrava" uma perdiz ficava totalmente
são um pouco lerdos dos miolo. imóvel parecia uma seta de placa
O Zezim da venda era especialista em indicando onde a danada tava amoitada,
treiná perdigueiro, arte que ele aprendeu nem piscava, seu rabo ficava alinhado
lá no Monte Santo de Minhas e com sua espinha dorsal parecendo um
acrescentô mais umas invenção própria. espinho enorme de tão duro e imóvel,
Fazia uma bola de meia recheada com assim ele ficava quanto tempo fosse
penas de perdiz e codorna. Começava necessário até que o Zezim o visse e
com uma brincadeira em que se joga a viesse matar mais uma pois este nunca
bola e o cachorro vai buscar só que esta errou um tiro, a não ser aquele de quando
brincadeira ia virando coisa séria onde a o marimbondo fez casa dentro do cano de
bola era escondida e o cachorro tinha que sua pica-pau e o cano estourou na hora do
ir encontrar, depois chegava no ponto em disparo deixando-o surdo de uma oreia.
que ele encontrava mas não podia pegar. Naquela caçada o Zezim tava meio
Tinha apenas que apontar onde estava, disperso, vorta e meia perdia de vista o
tinha que "amarrar" a perdiz ou codorna, sultão distraido com a beleza da paisagem
situação em que o cachorro fica todo ou com algum pé-de-fruta.
duro, do fucinho à ponta do rabo fica tudo Teve uma hora que o Sultão sumiu de
esticado como se o mesmo fosse uma veiz, o Zezim da venda assoviou,
flexa indicando em que moita estava o chamou, chegou até a dar um tiro a esmo
passarinho. prá ver se o Sultão aparecia e nada!
Neste ponto, quando o cachorro Já tava ficando tarde e o Zezim pensou
"amarrava" a perdiz o caçador atento com seu borná: vai vê ele foi prá casa,
chegava por trás do cachorro e já tendo canhorro novo é assim mesmo meio
armado sua espingarda dava um cutucão destrambelhado. E pensando estas coisas
com o joelho na bunda do cachorro, o ele foi-se embora. Chegou no seu sítio já
cachorro dava um salto espantando a bem tardinha com o sol se pondo e logo
perdiz que voava e era abatida pelo foi dar uma olhada no cantinho onde o
caçador. sultão costumava ficar deitado, debaixo
Deixar um perdigueiro neste ponto era do fogão de lenha, não tava lá.
tarefa de muita paciência e perseverança. Começaram os pensamentos ruins: será
O Zezim da venda sempre que tinha um que foi jararaca?
perdigueiro já velho começava a treinar Os dias foram se passando e o Zezim foi
outro filhote pois precisava tambem de se conformando que o sultão não ia mais
tempo para saber se o cachorro tinha aparecer. Como tinha um irmão do sultão
vocação pra caçador. Tem cachorro que levava jeito prá coisa pegou firme no
bagunceiro, que só quer brincar, tem treinamento do mesmo para poder deixá-
Ao passarmos por aquela tenebrosa grota serviço e casou-se com uma mulher que
da estrada, comentei com meu pai que não levantava os pés para andar. Seus
toda vez que passava por lá, a qualquer rastos pareciam os rastos de um casal de
hora do dia, sentia arrepios. cobra que anda lado a lado, de braços
O velho começou me tranqüilizando: dados. Até as verduras que eles ganhavam
--- Estes lugares escuros e frios, devido à dos vizinhos a mulher deixava perder, só
sombra das árvores, nos deixam de preguiça de lavar. Foram sete anos
apreensivos e com medo. Cada sombra se sem mistura. Só arroz e feijão, no almoço
parece com um animal ou uma pessoa, e no jantar.
mas é só isso, uma sombra. --- Eu, continuou meu pai, bem que tentei
Quando estávamos bem debaixo daquela ajudar. Mas a gente segue o que a bíblia
lúgubre árvore, toda retorcida, com os prega. Não podia ficar dando o peixe,
fiapos de parasitas caindo de seus galhos tinha que ensiná-lo a pescar, ou melhor
parecendo farrapos, o meu velho pai dizendo, a caçar. Comprei uma socadeira
continuou: usada (espingarda de carregar pela boca )
--- O Dionísio, um negro muito bom, se e fui levar para o Dionísio, num domingo,
enforcou ali naquele galho. pensando em ensiná-lo a atirar pois,
Eu senti um gelado na espinha e apertei o naquela época, tinha muita caça. E se o
passo, apesar de ser pouco mais das dez homem tivesse uma espingarda não
horas da manhã. Mas como não sei se faltaria mistura na mesa.
assombração sabe ver a hora o melhor é Quá! Não adiantou nada, o rapaz morria
prevenir! de medo de espingarda, não chegava nem
Quando íamos saindo da grota e o sol perto!
esquentou novamente minha espinha, Deu no que deu, sete anos sem mistura é
arrisquei perguntar: muito prá qualquer um. Ele não agüentou
--- Mas porque foi que ele se matou ? mais e deu um fim na sua vida, ali
--- Por falta de mistura! Emendou meu naquele galho. Foi uma pena!
pai. - O Dionísio não era muito bom de
Todos vocês já ouviram falar de outro e ele continuava a mirar até que o
espingarda que atrasa o tiro! Isto era tiro saia e abatia a mistura do dia.
muito comum de acontecer com as Um dia ele mirou uns três ou
socadeiras ( espingardas de carregar pela quatro e nada do tiro sair. Desistiu
boca ) que usavam pólvora preta feita pensando: - Vai ver que este negou!
com carvão vegetal, salitre e enxofre. Voltou para casa desanimado e
Esta pólvora é aquela mesma que foi passou pelo paiol para pegar umas palhas
descoberta pelos chineses e até hoje é e fazer um cigarro. Pegou a espingarda
muito usada no norte do pais e também pela ponta do cano para colocá-la
em “trabalhos espirituais” ou se preferem: encostada na sacaria de café e neste
em macumba. É uma pólvora que absorve momento, mais de hora após ter
muito facilmente a umidade e se mal disparado, o tiro saiu! Fez um grande
armazenada pode “negar fogo” ou estrago em sua mão sendo que um dos
“retardar o tiro” e que faz muita fumaça. dedos ficou troncho até hoje.
Ao disparar fica um barulhinho como se Triste com o ocorrido e para poder
estivesse fritando alguma coisa e após se tratar adequadamente mudou-se com a
alguns segundos quando a pólvora aquece família para a cidade de Franca. A Franca
com o pequeno fogo que a está do Imperador como a chamamos.
consumindo e o tiro ocorre. É um perigo Em Franca continuou a
pois o atirador pode pensar que o tiro não administrar fazendas mas viajando todos
vai sair e apontar a arma para onde não os dias e morando na cidade o que
deveria, como o seu próprio pé ou pior facilitava o estudo das filhas e de seu
ainda para o seu olho! É verdade! Tem filho caçula.
caboclo que vai olhar no cano para ver se Seu caçula, apegado que era ao
a bala “lá invém vindo”! cachorro levou o Totó para seu quintal e
Pois o meu primo Mané quando sempre que chegava da escola ia brincar
estava tocando o sítio de seu pai entre com ele.
Altinópolis e Santo Antônio da Alegria A cerca do quintal, como em
vez ou outra saía para caçar uns inhambús muitas casas do interior era de taquaras de
com a sua socadeira. Lazer saudável que bambú, dava para um terreno baldio no
naquele tempo não era crime inafiançável qual fizeram uma horta e plantavam
como hoje. alguns pés de milho. Deste terreno havia
Sua “Pica-Pau”, outro nome pelo outra cerca que dava para o quintal de
qual se chama a socadeira nas roças, uma bela casa com um grande gramado e
começou a retardar o tiro e tal defeito foi que era a casa do delegado da cidade.
se agravando com o tempo. O estranho é Viviam arrumando a cerca para que o
que no caso dele o defeito era da arma e Totó não incomodasse aquele ilustre
não da pólvora que até colocou para secar vizinho. Vai se saber qual seria a reação
no sol sem resultado. do mesmo ?!
Chegou ao ponto de puxar o Um belo dia a filhinha do
gatilho, ouvir o barulhinho de fritar e ele delegado ganhou em seu aniversário um
ficar na mira por longos minutos até o tiro belíssimo coelho daqueles bem peludos e
sair. Às vezes o inhambú sumia, aparecia branquinhos dos olhos vermelhos.
Álisson acordou mais cedo naquele dia, Alisson, disse, ainda bem que hoje não
talvez pelo cansaço do dia anterior. Junto temos almoço! Sem parar acho que até à
com seu irmão mais novo Antônio e com tarde conseguiremos completar as vinte
o vizinho Raimundo havia puxado quatro latas do Seu Deusdeti! Vai dar prá
carretas de raízes de árvores de uma nova comprar rapadura e farinha com os R$
gleba que seu tio estava limpando e 2,40 que vão sobrar depois de pagar os 20
descarregado na pedreira. Êta coisa % do tio que arrumou as madeiras para
desajeitada para se lidar esta soca de amolecermos as pedras. Os irmão vão
árvores! De todo jeito que se pega tem ficar feliz hoje na janta!
sempre uma raiz a lhe cutucar. Fica-se - Tá bão, falou o Alisson,
torcendo para encontrar alguma cobra no vamos começar queimando
meio das galhadas e garantir o almoço. aquela pedrona ali da beirada
Com a mão em concha jogou dois assim teremos trabalho até o
punhados de água na boca e um no rosto meio da tarde enquanto
para espantar o sono. Cutucou o Antônio queimamos outras duas.
e enquanto ele se aprumava pegou a velha Como era o mais experiente
foice e no escuro foi até a moita de palma com toneladas e toneladas de pedras
e cortou um punhado que colocou no queimadas e quebradas na marreta
balaio e deixou do lado de fora da porta Alisson foi orientando seu irmão no
da cozinha. Aquele seria o almoço do dia arranjo dos galhos ao redor da
para seus outros sete irmãos mais novos pedrona.
que ficariam com sua mãe. Seu pai tinha Puseram fogo e sentaram-se
ido para São Paulo há dois anos atrás, ao longe observando o fogo trepidar
quando ele ainda tinha treze anos e nunca no escuro da madrugada, logo
mais deu notícias. amanheceu e vez ou outra um se
Apesar de todo o cansaço Alisson levantava para ajeitar os galhos sobre
estava feliz e até arriscava uma “Mulher a pedra.
Rendeira” no assobio. O seu Deusdeti, do Lá pelas nove horas a pedra
açougue lá da vila, havia encomendado estava avermelhada. Alisson foi
umas vinte latas de brita para a ampliação buscar uma lata d’água na cacimba,
que estava fazendo no seu comercio e seguido pelo seu irmão. Chegaram
tinha pedido da brita mais fina que valia ao lado da pedra e simultaneamente
R$ 0,15 cada lata de vinte litros bem arremessaram suas águas sobre ela.
cheia. A pedra chiou, rangeu, estralou
Seu irmão já estava pronto sobre e sob uma imensa nuvem de vapor
seus chinelos de dedo tão gastos que rendeu-se e se quebrou em várias.
pareciam dois pedaços de papel. Cada pedaço enfraquecido por
Seguiram no escuro em direção à pedreira dezenas de trincas.
que ficava à beira da estrada uns dois Com uma velha enxada os
quilômetros acima. irmãos arrastaram as brasas que
Quando estavam quase chegando sobraram. Alisson pegou um pedaço
à pedreira Antônio rompeu o silêncio: - ainda quente arremessando-o ao ar
A CORAGEM DO CAIPIRA.
Tem caipira que vai caçar onça arroz e que estavam vindo em direção ao
armado apenas de uma zagaia que é uma nosso sítio.
lança grande a qual apoia-se no chão para Ficamos todos apreensivos e por
aparar a onça quando ela pula sobre a várias vezes, à noite, fomos verificar a
pessoa, haja coragem e agilidade! divisa com o sítio vizinho.
Tem caipira que enfrenta cobra Por volta das 23:00 horas elas
venenosa, outros pegam jacaré pelo rabo começaram a chegar. Para quem nunca
ou tiram enxame de abelha sem proteção viu o espetáculo é terrível. Chegam como
nenhuma, passam em local mal uma onda e fazem barulho para comer.
assombrado, etc.. Em poucos minutos pés inteiros de milho
Este tipo de coragem podemos são devorados ficando apenas os talos.
classificar muito mais como falta de Eu não suportei ver aquilo. Armei-
responsabilidade, gosto pela aventura, ou me de um pulverizador à gasolina
até como “esporte radical” como fazem abastecido com BHC em pó. Veneno hoje
hoje. banido mas muito usado na época. Entrei
A verdadeira coragem do caipira pelas plantações fazendo uma verdadeira
está no seu dia a dia. Para pegar nuvem branca de veneno.
empréstimo em banco e plantar sem saber Como estava bastante escuro eu
se vai chover na hora certa ou fazer sol no não via onde estava a nuvem de BHC e
momento em que precisa para a colheita acabava passando por dentro dela
ou se o preço de venda estará bom precisa respirando aquele pó letal pois só usava
ter uma coragem enorme. um lenço no rosto como mascara de
Plantar café, cuidar durante anos e proteção.
depois perder tudo com a geada e voltar a Após muito veneno jogado e
plantar mais café ... tem que ter muita respirado percebi que aquela luta era
coragem ! desigual, as lagartas estavam em número
Em minha adolescência já não muito maior e eu não iria conseguir para-
morava mais em nosso sítio mas nas las mesmo porque o veneno levava um
férias escolares sempre íamos para lá, eu tempo para agir e enquanto isto elas
e meus irmãos, para ajudarmos no que continuavam a devastar.
pudéssemos. Adubar café, pulverizar, Quando parei para reabastecer o
tratar dos porcos e várias outras tarefas pulverizador e já estava sentindo o efeito
ficavam por nossa conta nestes períodos. tóxico do veneno meu pai aproximou-se
Eu gostava de trabalhar com os de mim e disse:
pulverizadores costais movidos a gasolina - Deixe-as, elas também são filhas de
pois os danados sempre davam problemas Deus e também precisam comer.
e como sempre gostei de mecânica podia Deixe-as em paz, depois nós
desmontá-los e tentar arrumar. plantamos outro milho e outro arroz!
Em uma ocasião estávamos todos No momento não entendi aquela
no sítio e à tarde chegou a notícia de que atitude. Julguei seu ato como
no sítio vizinho havia uma grande sendo de resignação e
infestação de lagartas que estavam conformismo.
acabando com as plantações de milho e
Por volta de 1959 ou 1960 eu com pedra o que lhe deixou vários caroços na
meus seis ou sete anos tinha poucas musculatura dos braços.
preocupações, era responsável por fazer Nesta época um fazendeiro pediu-
diariamente 100 litros de lavagem para os lhe para ir analisar sua propriedade pois
porcos usando fubá de milho, farelo de estava querendo aumentar o rebanho de
arroz, abóbora, inhame, galinha, gato, gado e a água disponível era pouca.
cachorro ou qualquer outra proteína que Conhecedor da propriedade por ter
tivesse parado de respirar. Nesta minha caçado algumas codornas por lá ele já
tarefa acabei aprendendo a comer inhame saiu de casa com um propósito e levou-
e abóbora sem sal e cheguei a me como ajudante além de seu “aparelho
experimentar algumas carnes que não de curva de nível” que havia construído
freqüentam habitualmente a mesa do conforme instruções da revista Chácaras e
caipira. Quintais. Era constituído por dois sarrafos
Outra tarefa que gostava muito era graduados com uns dois metros de altura
a de ajudar o Cidonio, meu pai, a marcar aos quais era presa uma fina mangueira
curvas de nível e regos d’água e de de plástico transparente cheia de água
acompanhá-lo quando, fazendo uso da com uns 20 metros de comprimento e
radioestesia, ele mapeava os veios de cujo simples funcionamento ele dominava
água de uma propriedade e determinava o com maestria.
melhor local para furar uma cisterna que Chegando à fazenda fomos direto
não viesse a secar na época das estiagens. para uma grande nascente de água que
Meu pai nunca cobrou por seus fica atrás de um morro próximo ao curral.
serviços relacionados à água, assunto que Partindo da nascente fomos marcando
ele e seus irmãos dominavam como onde seria o leito de um rego de água
poucos e para “achar água” era mais sempre colocando um desnível no sentido
procurado que giló em gaiola de canário. do curral e contornando o morro. Após
Com uma forquilha retirada de alguma algumas horas chegamos ao curral.
árvore local percorria toda a propriedade, Meu pai pediu que o fazendeiro
sentia os veios subterrâneos de água e chamasse o tratorista e que o mesmo
seus volumes, estudava a topografia e deveria vir fazendo um sulco profundo
finalmente definia o melhor ponto para se com o disco do arado seguindo nossas
cavarem os poços não sendo raras as marcações desde a nascente até o curral.
vezes em que acertava a profundidade em O fazendeiro inicialmente se
que se encontraria água e qual seria o seu negou a fazer o serviço alegando que a
volume. água não iria subir o morro. Foi preciso
Em nosso sítio em Altinópolis prometer-lhe que se não desse certo a
existe uma de suas obras primas. O poço despesa do trator lhe seria reembolsada!
fica na parte mais elevada da propriedade O rego foi feito e a água chegou
e o fundo do poço fica acima do nível das ao curral logo atrás do trator.
casas desta forma a água desce por Ocorreu que enquanto
gravidade da cisterna para as casas não esperávamos o trator fazer o serviço
havendo a necessidade de ser bombeada. fomos dar uma olhada em uma mata
Para chegar até o lençol de água teve que adjacente à nascente. Eu havia levado
romper na picareta grossa camada de uma pequena carabina .22 da qual