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Adolpho Pereira Carneiro

PAU E BICHO

André Viana
Tato Coutinho
Mateus Lopes
SUMÁRIO

PRÓLOGO
Um homem de sorte, 7

PARTE 1 — ADOLPHO, O PRIMEIRO


Pau e bicho é judeu, 14
Vida de comerciante, 20
Camillo, Martina, Ernesto, 29
O bom patrão, 34
Dois irmãos, 41

PARTE 2 — CAMILLO E ERNESTO


No Caxangá, 52
Comércio e Navegação, 59
Triste ocorrência, 67
O palacete Santa Cruz, 71
Jornal do Brasil, 76

PARTE 3 — ADOLPHO, O SEGUNDO


“À sombra do conde”, 82
Adolpho e Ernesto, 87
O agreste e o mar, 91
Revoluções, 95
O irmão Antonio, 100
Condessa Maurina, 106
“O senhor é doido!”, 111
Haréns, 118
Odete, 121
Vida de casado, 129
Hilde, a reprodutora, 134
Adolpho pai, 142
Ladrão de cocos, 148
Adolphinho, 152

PARTE 4 — DECLÍNIO
O início do fim, 158
“Ou você ou eu”, 163
Terra nua, 165
Crônica do casarão demolido, 169 PRÓLOGO
Herança, 175

EPÍLOGO
Na Barra de Suape, 180
Um homem de sorte

6 Assim que bateu o olho, a senhorinha que cruzava a 7


vau do rio naquele exato momento não teve dúvida:
— Ah, esse aí não escapa, não! — falou em voz alta,
para si mesma.
Ao ouvir o vaticínio, o acidentado emergiu da rede na
qual estava sendo carregado por pescadores da região,
esticou lentamente o braço na direção da senhorinha,
repuxou o antebraço até dobrar o cotovelo e, com al-
gum esforço, balbuciou:
— Figa, minha velha! Vire seu olho mau pra lá que
eu vou escapar!
O estrago, de fato, não havia sido pequeno. O balan-
ço geral era o seguinte: um talho em V na cabeça, aberto
de fora a fora, abdome perfurado, braço esquerdo par-
tido em quatro pedaços, as duas patelas expostas em tentou seguir em frente, mas a chuva pesada, a pouca
carne viva, além da sexta e da oitava vértebras trincadas. visibilidade e uma ventania cruel repuxando violenta-
E pensar que tudo começou com um rabo de saia... mente o monomotor de lado o obrigaram a tentar um
Mas não um qualquer, é bom salientar. Quando o major pouso forçado na praia. Na aterrissagem, o major Mafra
Mafra, da Aeronáutica, soube que uma companhia fran- não conseguiu impedir o choque de uma das asas em
cesa de balé se apresentaria no Rio de Janeiro bem no um coqueiro, o que levou o avião a fincar o bico no chão
período em que estaria lá para levar um Corsário para a a 120 quilômetros por hora.
revisão no Campo dos Afonsos (a oficina de então para Seguro no cinto, o major Mafra saiu ileso. Já Adol-
toda a Força Aérea Brasileira), ele não pensou duas ve- pho, que viajava com o cinto de segurança afrouxa-
zes. Sabendo que seu amigo Adolpho Pereira Carneiro do, foi catapultado para fora do cockpit, chocando-se
conhecia uma das bailarinas, planejou uma operação violentamente contra o manche da metralhadora. O
casada, civil-militar: enquanto o avião estivesse encos- impacto foi tão forte que Adolpho viu seu abdome ser
tado para a manutenção, os dois aproveitariam para se rasgado e as tripas ficarem à mostra.
8 divertir um pouco com as moças pela cidade. Socorridos pelos pescadores de uma pequena vila na 9
Adolpho aceitou o benfazejo convite, mesmo envol- ponta da praia, Adolpho e o major foram levados até
vendo uma contravenção, já que civis não eram auto- um casebre com teto de palha onde ficariam abrigados
rizados — como ainda não são, 80 anos depois — a até que as chuvas diminuíssem e eles conseguissem
subir a bordo de uma aeronave militar. Monomotor atravessar o rio que os isolava de uma fazenda que havia
de dois lugares em linha, com o posto de operador de na outra margem. O major, desconsolado, chorava feito
metralhadora à frente do assento do piloto, a solução um menino. Os pescadores quiseram saber:
encontrada pelo major Mafra foi fazer Adolpho voar — O comandante, quem é? É o senhor?
sem ajustar o cinto de segurança, regulado para o cor- — Não, é ele ali — respondeu Adolpho, num fiapo
panzil de seu tripulante habitual, de modo a não deixar de voz.
vestígio de sua passagem pelo cockpit. — Ah, não, esse aí é um frouxo — se exaltou um
Tudo correu às maravilhas da decolagem no Reci- deles. — O comandante é o senhor!
fe até o litoral sul da Bahia, onde o Corsário mergu- Alçado à condição de “comandante” por seus salva-
lhou em uma súbita tempestade. O Major Mafra ainda dores, Adolpho os orientou a correrem atrás de bambu,
que serviriam talas para “encanar” as fraturas. Ordenou O doutor virou-se para Adolpho e disse:
também que cortassem em bandagens o que tivessem — Pode deixar! O seu amigo é muito educado, vou
de tecido para colocar as vísceras de volta ao lugar de atender o senhor.
origem e segurá-las lá dentro. Com agulha e linha de Todos voltaram a respirar.
costura dos sacos de aniagem, Adolpho ajudou a cos- Prestado o primeiro atendimento em Salvador, Adol-
turar a própria barriga. As cinzas de molambos foram pho foi despachado para Recife a bordo de um navio
usadas para estancar os sangramentos e pó de café co- da Companhia Comércio e Navegação, fato que, como
briu as feridas. Era tudo o que se podia fazer. Fora a se verá, teve seu quê de ironia. Por sorte, ele não teve
reza braba, claro. nenhuma infecção, mesmo com a situação precária que
Com a estiagem das chuvas, três dias mais tarde, viveu nos primeiros dias depois do acidente. Quando
os pescadores finalmente puderam cruzar o rio com foram reparar as vértebras fissuradas, os médicos avi-
o acidentado. Carregado na rede, Adolpho espantou saram que havia um pequeno risco de Adolpho não
o mau agouro da velha pelo caminho e o major Mafra conseguir mais andar, ao que ele teria dito a um irmão,
10 conseguiu um caminhão na fazenda que os levassem a sem rodeios:
Salvador – 220 quilômetros sacolejando num colchão — Se for pra ficar paralítico, eu quero que você acabe
de capim, na caçamba de sua ambulância improvisada. com a minha vida.
Fim da história? Ainda não. Ao chegarem a um pron- A única sequela do acidente, contudo, foi um leve
to-socorro na cidade, o médico que os recebeu se negou encurtamento no braço esquerdo, o que só traria al-
a acolher o ferido, zeloso com o regulamento: gum inconveniente a Adolpho, e mesmo assim passável,
— Não, não pode. Esse acidente faz mais de 24 horas. porque era canhoto. Dizem que ele também ganhou um
Vão ter que ir para outro hospital e... “pescoço meio duro” e o hábito de girar o tronco inteiro
Ao ouvir isso, o major Mafra, com sua estima já re- se precisasse virar a cabeça. Nada que espantasse, se
cuperada, interrompeu o falatório, passou a mão na sua comparado ao susto inicial.
.45, engatilhou a pistola na cabeça do doutor e avisou Quatro meses depois, Adolpho Pereira Carneiro es-
com uma voz delicada: tava a caminho da fazenda São José, em São Caetano,
— Seu filho da puta, ou você atende meu amigo ou pilotando sua motocicleta.
eu estouro os seus miolos.
12 PARTE 1 — ADOLPHO, O PRIMEIRO 13
Pau e bicho é judeu a outro do mapa, em modo quase compulsivo, como
alguém em busca de algo que sabidamente nunca será
alcançado. Um genuíno “aventureiro, amante de desa-
fios e da adrenalina na natureza”, como resumiu Adol-
pho Pereira Carneiro Filho, o Adolphinho, idealizador
destas memórias.
Uma vocação exercida na família pelo menos desde
que seu bisavô, José Francisco Pereira Carneiro, deixou
Portugal para ser cônsul em Buenos Aires na primeira
metade do século 19. É ele quem encabeça a árvore
genealógica — desenhada à caneta, em letra cursiva,
da esquerda para a direita, em duas folhas de papel
pautado emendadas por grampos – em posse, hoje, dos
14 O acidente de avião na Bahia não foi o primeiro e nem descendentes. 15
seria o último no atribulado currículo de Adolpho Pe- Nada se sabe nem foi encontrado sobre o primeiro
reira Carneiro. Até sua morte, em 1981, aos 77 anos, o Pereira Carneiro a pisar no continente sul-america-
personagem que dá título a este livro viu e viveu bons no além do fato de que era natural do Porto, que se
infortúnios no ar, em terra, no mar e, ninguém está a naturalizou argentino e que lá se casou com Severa
salvo, em curvas mais prazerosas. Almanza, com quem teve seis filhos, listados na árvore
Por mais enraizada que tenha sido sua existência – genealógica da família na seguinte ordem, de cima para
fosse cuidando dos robustos negócios familiares, das baixo: Camillo (Severiano)1 (1826), Adolpho (Severia-
fazendas que administrou com cinto de coronel no no) (1828), Carlos Severiano, Martina (1835), (Antonio)
agreste pernambucano ou como esteio da família que Ernesto (1840) e José Julian (1845).
tardiamente construiu, já passado dos 40, ao lado de Considerando os hábitos e costumes de então, em
Odete –, Adolpho Pereira Carneiro foi uma alma em
trânsito, um corpo sempre em movimento, deslocan- 1 As informações entre parênteses constam dos registros de batismo,
casamento e óbito das igrejas de Buenos Aires onde foram celebrados
do-se freneticamente, apaixonadamente, de um ponto ou firmados.
que os casamentos se davam logo no começo da vida Carneiro estabelecem por tabela a data de seu nasci-
adulta, e que o primogênito Camilo Severiano nasceu mento: 15 de outubro de 1828. Redigido em caligrafia
em 16 de março de 1826, não seria descabido estimar clássica, a bico de pena, o livro de notas da igreja de
que José Francisco tenha nascido em princípios dos Nuestra Señora de La Merced declara:
anos 1800 e se casado na década de 1820.
Registro da igreja de Nuestra Señora de la Inmacu- Dr. Antonio Basore, cura reitor da Catedral Norte, certifica
lada Concepción de Devoto, em Buenos Aires, mostra que à folha [ilegível] do livro 27 de batismos desta paróquia se
que José Francisco e Severa Almanza batizaram um fala do presente acontecimento – em vinte e cinco de outubro
filho chamado Adolfo em 20 de setembro de 1827 – um de mil oitocentos e vinte oito, o presbítero D. Buenaventura
ano antes, portanto, do nascimento do Adolfo (sempre Lara batizou solenemente a Adolfo Severiano, de dez dias de
com “f” nos documentos argentinos) que nos interes- idade, filho legítimo de D. José Francisco Carneiro e Da. Se-
sa, avô do biografado, batizado em outra igreja, a de vera Almanza. Foram padrinhos D. Juan Soza Martínez e Da.
Nuestra Señora de La Merced. O documento sugere a Manuela Almansa, a quem advertiu-se o parentesco espiritual
16 provável perda de um filho, ocorrência tampouco in- e demais obrigações. 17
comum naqueles tempos – com a morte do primeiro Por verdade, assina Diego Antonio Mendoza.
Adolfo, os pais dariam o mesmo nome ao filho nascido Concorda com seu original; e por petição da parte interes-
no ano seguinte. A reforçar essa possibilidade está o sada expede o presente em Buenos Aires a nove de janeiro de
fato de que a árvore genealógica consagrada pela fa- mil oitocentos e setenta e nove.
mília registra um único Adolpho (com “ph”) entre os Por [ilegível] do Sr. Cura Florindo Marinelli
filhos de José Francisco.
Os livros paroquiais de Buenos Aires assinalam ain- Segundo Adolpho Pereira Carneiro Filho, seu bisavô
da o batismo de um outro filho de José Francisco e Adolpho Severiano Pereira Carneiro tinha ascendência
Severa Almanza – José Maria Augustin Tiburcio Pe- judaica. Apesar de não conseguir estabelecer a origem
reira Carneiro, nascido em 18 de abril de 1837 – que da lenda, Adolphinho a sustenta a partir do sobrenome,
também deve ter morrido em idade precoce, visto que “que é nome de pau e de bicho, Pereira e Carneiro, o
não consta na árvore genealógica da família. Os termos tal do cristão novo” – ou, por outras, os judeus sefar-
do registro de batismo de Adolpho Severiano Pereira ditas de Portugal forçados, no século 15, à conversão
ao catolicismo e ao batismo, com a adoção de um novo Com o domínio holandês e a presença, no Brasil, do conde
nome, sob a ameaça de degredo ou execução por here- Maurício de Nassau, este incomparavelmente mais príncipe
sia. Sendo o patriarca José Francisco Pereira Carneiro nas atitudes e nos gestos decisivos do que o marido de Dª. Car-
português de nascimento, não soa absurdo considerar lota Joaquina – embora D. João não fosse, como já demonstrou
que fosse descendente de judeus convertidos à força o historiador Oliveira Lima, o toleirão das anedotas – o Recife,
pela Inquisição Portuguesa, ou quem sabe até mesmo simples povoado de pescadores em volta de uma igrejinha, e
de criptojudeus, religiosos que preservaram de forma com toda a sombra feudal e eclesiástica de Olinda para aba-
oculta as tradições e costumes do judaísmo. fá-lo, se desenvolvera na melhor cidade da colônia e talvez
Tampouco existem evidências do motivo pelo qual do continente. Sobrados de quatro andares. Palácios de rei.
Adolpho Pereira Carneiro, filho de José Francisco e Se- Pontes. Canais. Jardim botânico. Jardim zoológico. Observa-
vera, teria emigrado da Argentina para Pernambuco. tório. Igrejas da religião de Calvino. Sinagoga. Muito judeu. Es-
Mas, seguindo a teoria da descendência judaica, a his- trangeiros das procedências mais diversas. Prostitutas. Lojas,
tória das migrações judaicas na América oferece uma li- armazéns, oficinas. Indústrias urbanas. Todas as condições
nha especulativa que a retroalimenta. Com as invasões para uma urbanização intensamente vertical.2 19
holandesas no Nordeste do século 17, abrangendo sete
das dezenove capitanias coloniais de então, a chama- Considerando as rotas marítimas do século 19, não se-
da Nova Holanda viveria um período de prosperidade ria impossível que, ao deixar Buenos Aires, Adolpho
econômico-cultural e de maior diversidade religiosa. tenha aportado primeiro no Rio de Janeiro, capital do
Dada a maior tolerância religiosa do reformismo calvi- Império, para só então se dirigir ao Recife, motivado
nista, foram grandes, à época, as correntes migratórias por sua suposta ascendência sefardita e pelo imaginário
judaicas para a região. Não por acaso, Recife abriga a da cidade desde os tempos da ocupação holandesa li-
primeira sinagoga das Américas, Kahal Zur Israel (ou gado ao acolhimento de refugiados e imigrantes judeus.
Congregação Rochedo de Israel), inaugurada entre 1636
e 1637.
O período é destacado pelo sociólogo, antropólogo
e ensaísta pernambucano Gilberto Freyre (1900-1987)
2 Em Sobrados e Mucambos, de Gilberto Freyre. 1ª edição digital, São
em Sobrados e Mucambos (1936): Paulo, 2013. Editora Global.
Vida de comerciante mesmo Jornal do Commercio, de janeiro de 1853, em que
“Francisco de Arango e Cia. fazem sciente que tem dado
procuração bastante para dirigir os negócios de sua
casa na ausência temporária do Sr. Arango ao sr. Adol-
pho Pereira Carneiro”, ajuda a fixá-lo como negociante
na cidade, onde ficava a sede da empresa da qualque
se torna representante, com negócios recorrentes na
Buenos Aires natal.
Em 24 de março de 1854, o jornal O Liberal Pernam-
bucano registra pela primeira vez passagem de Adolpho
Severiano Pereira Carneiro pelo Recife ao noticiar seu
desembarque do vapor inglês Severn, “proveniente do
Rio de Janeiro e Bahia”. Adolpho partiria do Recife um
20 A primeira notícia pública que se tem de Adolpho Se- mês depois, como noticiado na edição de 28 de abril 21
veriano Pereira Carneiro no Brasil aparece no Jornal do do mesmo jornal. A longa temporada pode indicar que
Commercio do Rio de Janeiro, em sua edição de 19 de Adolpho já tinha com o Recife laços mais estáveis do
dezembro de 1852 – quando ele tinha, portanto, 24 anos. que o acompanhamento pontual dos eventuais negó-
Nas tradicionais colunas de então sobre o “movimento cios em que estaria envolvido à frente da Francisco de
nos portos” pelo país, a registrar o crescente tráfego Arango e Cia.
da navegação de cabotagem, uma nota registra a parti- Tudo leva a crer que Adolpho Severiano emigrou so-
da para Santos, em São Paulo, do “argentino Adolpho zinho para o Brasil. Anos depois, já estar devidamente
Pereira Carneiro”. estabelecido em Pernambuco, o Jornal de Recife anun-
Suas passagens pelo porto do Rio de Janeiro entre ciaria, em abril de 1879, uma viagem para “visitar sua
1852 e 1853, com partidas regulares para o Sul do país e o família na capital da República Argentina” :
“Rio da Prata” (Montevidéu e Buenos Aires), reforçam
a chegada ao Brasil pela capital do Império, onde teria Chegada – No paquete nacional Pernambuco chegou hon-
iniciado sua trajetória de comerciante. Uma nota do tem do sul o Sr. Adolpho Pereira Carneiro, socio gerente da
casa Pereira Carneiro, Maia & C., que acerca de oito mezes toria, mas com caligrafia, ortografia e narrativa que o
fôra com a esposa visitar sua familia na capital da Republica colocam em princípios do século passado, descreve a
Argentina, sua patria. fundação e as primeiras alterações societárias da em-
Amigos e parentes foram ao seu encontro, apenas fun- presa criada por Adolpho Severiano. Em linhas gerais,
deara o vapor, cheios de desejo de abraçal-o e de jubilo por a Pereira Carneiro & Cia. veio ao mundo para explorar
tornar a vel-o. o comércio “de toda sorte de gêneros nacionais e es-
Os navios consignados á sua casa [comercial] e outros em- trangeiros”, primeiramente via navegação de cabota-
bandeiraram-se, apresentando o ancoradouro um aspecto gem – aquela que se faz sem perder a costa de vista –,
festivo, que era a elle consagrado, como justa demonstração atuando também em operações financeiras e comércio
publica do apreço e estima em que é tido e a que lhe da direito de câmbio. Conta o manuscrito:
o seu bello caracter.
Em 1 de Dezembro de 1863, fundou-se nesta capital (Recife), á
Nas regulares menções às viagens de Adolpho Severia- antiga rua do Trapiche n°10, para a exploração do commercio
22 no, não há referência à companhia de seus pais e irmãos. de Commissões, Consignações e Conta Própria, a nossa firma
Dez anos depois da procuração que lhe deu poderes Pereira Carneiro & Cia., constituída por Adolpho Pereira Car-
para dirigir os negócios da Francisco de Arango e Cia., neiro, natural de Buenos Aires, tendo por commanditario o
no Rio de Janeiro, Adolpho Severiano fundaria, no Re- socio João Frias, do Rio de Janeiro, a qual, devido á iniciativa
cife, sua própria empresa, como noticiado pelo Jornal e operosidade daquele, logrou um desenvolvimento rápido,
de Pernambuco em 9 de dezembro de 1863: alcançando em pouco tempo um lugar de destaque entre as
suas congêneres.
Ao commercio O abaixo assignado participa ao commercio
haver estabelecido nesta praça uma casa de commissões sob a A fundação e as atividades da Pereira Carneiro & Cia.
razão de Pereira Carneiro & Cia, sendo socio commanditario aparecem ainda no resumo biográfico de Adolpho
della o Sr. João Frias, do Rio de Janeiro. Pernambuco, 1º de Severiano presente no livro Ação Católica no Brasil –
dezembro de 1863 — Adolpho Pereira Carneiro. Corporativismo e Sindicalismo, que tem como tema a
atuação de um dos líderes do movimento católico de
Um caderno do acervo da família, sem data nem au- mitigação das tensões entre o patronato e o opera-
riado em Pernambuco, Antonio Carlos de Menezes, tropas brasileiras. No dia 13 do mesmo mês, o Jornal
de quem se falará mais adiante, quando ele e tornar de Pernambuco daria publicidade ao seguimento das
parceiro de Adolpho em desdobramentos futuros de tratativas entre o império e a companhia:
sua companhia de comércio:
Dito aos consignatários do vapor inglês Viper, Pereira Carnei-
Pereira Carneiro nasceu na Argentina, filho do cônsul por- ro & C. – Respondo ao ofício que acabo de receber de Vmes.
tuguês José Pereira Carneiro, que se naturalizou argentino declarando-lhes que expeço ordem ao arsenal da Marinha para
e naquele país se casou. Fundou a firma Pereira Carneiro & fornecer as cem toneladas de carvão Cardill, de que precisa o
Cia., exportadora de açúcar, aguardente e algodão e impor- vapor Viper, e que ao governo imperial devem Vmes. solicitar
tadora de charque do Rio Grande do Sul e do Rio da Prata, e o pagamento das despesas feitas com práticos e amarração
farinha do Rio de Janeiro. Era agente do Rio Floor Mills Ltda., do referido vapor.
da Companhia Comércio e Navegação e, finalmente, agente
financeiro do Banco do Brasil. 3 Em 16 de dezembro, como publicado no Jornal do Recife,
24 decide-se que “mandem transportar para a corte no 25
Uma das principais sócias da Companhia Comércio mencionado vapor por conta do Ministério da Guer-
e Navegação, que chegou a reunir sob sua bandeira ra, um volume pertencente à bagagem do 5º corpo de
11 embarcações levando regularmente produtos como Voluntários da Patria”. Mas não foi exatamente o pa-
açúcar café ao Velho Mundo e trazendo de lá tudo o triotismo compulsório de Adolpho Severiano Pereira
que não se produzia no Brasil, a Pereira Carneiro & Cia. Carneiro que o faria voltar às páginas no Jornal de Re-
teve um de seus vapores recrutado para a frota imperial cife, em sua edição de 26 de novembro de 1869, e sim
em operação na Guerra do Paraguai, que durou de 1864 sua reputação de “honrado e importante negociante”,
a 1870. Em expediente publicado em 5 de dezembro como os periódicos costumavam se referir a ele.
de 1865, o presidente da província de Pernambuco re- Entre notas registrando suas viagens pelo Brasil ou
comenda que o navio inglês Viper siga imediatamente assinalando sua participação junto à Associação Comer-
para o Rio de Janeiro a fim de estar à disposição das cial Beneficente, ao Clube Commercial ou à comissão
organizadora dos festejos da “padroeira dos marítimos,
3 Em Ação Católica no Brasil – Corporativismo e Sindicalismo, de Carlos
Alberto de Menezes. Edições Loyola, 1986. Nossa Senhora do Bom Sucesso dos Navegantes”, uma
mostra que nem tudo eram rapapés na vida de Adolpho luz do dia, que só foi terminas na delegacia, onde o
Severiano. Sob o título Questão importante, o jornal, escrivão – segundo o qual a injúria cometida contra o
“julgando conveniente que o publico tenha conheci- queixoso foi “clara como a luz meridiana” – concluiu
mento da importante questão criminal”, registra uma sua peça lançando “os nomes dos réos no rol dos cul-
agressão física e verbal sofrida por Adolpho Severiano pados” e remetendo o processo ao “Juízo Municipal
Pereira Carneiro durante uma negociação comercial e da 2ª vara”.
a consequente surpresa de seus advogados diante da Chapeladas e xingamentos à parte, não se tem no-
recusa da Justiça em acolher a denúncia do “queixoso” tícia se pai e filho pagaram a Adolpho o que deviam.
por uma falha processual – o delegado teria iniciado
os trâmites legais (talvez por deferência em excesso) No dia 9 de outubro de 1871, o sócio João Frias se re-
antes mesmo de a parte ofendida prestar queixa, o que tirou da Pereira Carneiro & Cia. e Adolpho Severiano
teria levado à sua anulação. admitiu dois novos parceiros: o gaúcho Manuel da Sil-
A contenda, segundo o Jornal de Recife, aconteceu no va Maia e o comendador português Antonio da Costa
26 dia 4, supostamente do mesmo mês de novembro em Corrêa Leite. 27
que a nota foi publicada, ali “pelas 11 horas da manhã, No manuscrito encadernado em que a história da fir-
á rua do Apollo, armazem de Feliciano José Gomes”. O ma é contada, o primeiro é identificado como “solidário”
“facto criminoso” teria se dado durante uma conversa e o segundo, como “commanditario”. A nomenclatura
em que Adolpho Severiano Pereira Carneiro tratava se refere ao modelo de negócio estabelecido, isto é, a
com Luiz de Oliveira Lima e Luiz de Oliveira Lima sociedade em comandita. Nela, os sócios comanditá-
Junior sobre “um arranjo amigavel relativo á fallencia rios entram com o capital e suas responsabilidades se
da casa commercial de Maia & Espirito Santo”. A certa restringem ao investimento em si. Já os sócios solidá-
altura, “sem que houvesse provocação”, pai e filho par- rios, ou comanditados, se incumbem da gestão dos bens
tiram para cima do comerciante “dando o querellado e serviços prestados, tornando-se responsáveis pelas
pai com um chapéo de sol e o querellado filho sôccos dívidas da sociedade e o passivo da empresa. Com a
em forma a produzir na pessoa do queixoso ferimentos mudança no quadro, a firma passou a se chamar Pereira
e offensa physica”. Carneiro, Maia & Cia. Tudo indica que foram tempos de
Em outras palavras, um barraco daqueles em plena bonança e rápida expansão. Conta o manuscrito:
Elevada a um plano superior em conceito e negócios impor- Camillo, Martina, Ernesto
tantes, firmou-se em breve o vasto crédito de que já dispunha
a casa, nesta como nas principais praças da Europa e das Amé-
ricas, não só a exploração de toda a sorte de gêneros nacionais
e estrangeiros, como, principalmente, operando comércio de
cambio, em transações avultadíssimas, com a que se familia-
rizou com os mais importantes estabelecimentos das grandes
praças”. Infere-se que, neste momento, a Pereira Carneiro &
Cia já fazia a travessia transatlântica, avançando em relação
às operações de cabotagem.

29
Na aurora dos 1870, os bons ventos, para Adolpho Seve-
riano Pereira Carneiro, não sopravam apenas no plano
profissional. O Jornal do Recife, em sua edição de 18 de
maio de 1872, listou seu nome ao lado do de Candida
B. Moniz Machado (ou Muniz, a depender da fonte) na
coluna Proclamas de casamento. Equivalente legal ao
bordão cerimonial “se alguém tem algo em contrário,
que fale agora ou cale-se para sempre”, a proclama é até
hoje o procedimento em que o cartório de um informa
ao cartório de outro que os interessados deram entrada
no processo de habilitação para o casamento civil.
Com a publicação de seus nomes em “segunda de-
nunciação” feita em maio de 1872, é razoável supor que
tenham se casado naquele mesmo ano. Dedução pare- mento, os diários Jornal Pequeno e Jornal de Recife des-
cida já fica mais complicada de ser feita em relação ao crevem quase com as mesmas palavras os primeiros
nascimento do primogênito do casal, Camillo Pereira anos de Camillo, sobretudo como ele inaugurou entre
Carneiro – na falta de um documento oficial, dia e ano os Pereira Carneiro uma velha tradição da burguesia
variam bastante tanto nos papeis informais da família brasileira em formação no final do século 19 – mandar
quanto à luz dos obituários publicados pelos jornais seus filhos para estudar na Europa depois da educação
de Recife em sua morte, em 1º de novembro de 1925. inicial com professores particulares e em internatos de
Da memorabilia reunida no acervo da família, um tradição religiosa. Conta o Jornal Pequeno:
santinho impresso para uma missa fúnebre em home-
nagem a Camillo estabelece seu nascimento no Reci- [Camillo] Fez os seus primeiros estudos nesta capital [Recife],
fe em 29 de janeiro de 1873. Já na pequena brochura completando-os na Inglaterra, para onde seguiu aos 20 anos
distribuída na inauguração da Escola Coronel Camillo [1894/95]. Naquelle país cursou, durante cinco anos, impor-
Pereira Carneiro, em São Caetano, em março de 1945, tante Instituto de ensino, aperfeiçoando-se no conhecimento
30 o perfil Notas biográficas repete o dia e o mês, mas in- de linguas e assuntos commerciaes. Terminado o seu curso de 31
forma um ano diferente – 1875. commercio, regressou ao Recife [1899/1900], vindo trabalhar
Quanto aos obituários, o do Jornal Pequeno, publi- ao lado de seu progenitor, chefe da importante firma Pereira
cado no dia seguinte à sua morte, Camillo “nasceu Carneiro & C.ª”.
nesta cidade [Recife] a 19 de janeiro de 1885, contando,
portanto, 50 anos de idade” – considerando que na há O Jornal do Recife reforça a notícia da ida de Camillo
dúvidas sobre a idade do falecido, corrigida a conta, para as terras de Charles Müller:
estamos falando de 1875. O obituário do Jornal do Recife,
por sua vez, na capa da edição de 3 de novembro de “[...] depois de fazer os primeiros estudos nesta capital, foi o
1925, informa que “o coronel Camillo Pereira Carneiro então jovem Camillo Pereira Carneiro para a Inglaterra, onde
nasceu no ano de 1874, a 29 de janeiro, nesta cidade”. se especialisou nos estudos de linguas e commercio, num
Em resumo, cotejadas as fontes, o mais provável é que importante estabelecimento educacional.
Camillo tenha nascido em 29 de janeiro de 1875.
Apesar das divergências em relação a data de nasci- A brochura distribuída na inauguração de escola Coronel
Camillo Pereira Carneiro, em São Caetano, detalha os Carneiro. Nascido em Jaboatão dos Guararapes (hoje
“importantes estabelecimentos educacionais” por onde incorporada à Grande Recife), em 14 de abril de 1877,
passou e a carreira que inicialmente pretendia seguir: Ernesto seguiu o mesmo caminho do primogênito em
seus anos de formação. Depois de fazer os primeiros
Assim, Camillo [...] [cursou] o colégio dos padres Josefitas estudos na capital, viajou para a Europa, onde frequen-
[Ordem religiosa estabelecida em 1817 pelo padre belga Constant tou os colégios Arriaga, em Lisboa, e dos Jesuítas, em
Guillaume Van Crombrugghe (1789-1865), fundador do St Geor- Paris. Já adolescente, retornou ao Brasil para os estudos
ge’s College] em Londres, o dos Jesuitas em Paris e o Colégio secundários no Colégio Anchieta, também jesuíta, em
Arriaga em Lisbôa. No Brasil estudou com professores parti- Nova Friburgo, no Rio de Janeiro. De lá, voltaria à Eu-
culares em Recife, depois no colégio dos Jesuitas em [Nova] ropa, para o St George’s College, onde se especializou
Friburgo [no estado do Rio]. Terminou os estudos no mesmo em economia.
colégio dos Josefitas em Londres. Regressando ao Brasil pre- Mais adiante voltaremos a falar dele e da sua impor-
tendeu seguir a carreira de engenheiro, mas a pedido de seu tância para a imprensa brasileira.
32 pai, que desejava ver continuada a firma por seus dois filhos,
ingressou juntamente com seu irmão na vida comercial.

Nascida em 1876 – um ano depois, portanto, de Ca-


millo –, Martina Pereira Carneiro não teve, ao longo
de sua vida, os mesmos holofotes dos irmãos. Solteira,
a única filha de Adolpho Severiano parece ter passado
ao largo dos setoristas da família nos principais jornais
de Recife. Ao contrário de Camillo e Ernesto, quase
não há notícias sobre ela. Seria lembrada apenas por
ocasião de sua morte, em 9 de março de 1926, aos 50
anos, mesma idade em que o irmão Camillo morreu.
E assim chegamos ao caçula de Adolpho Severia-
no Pereira Carneiro, o futuro conde Ernesto Pereira
O bom patrão ção. Mas os empreendimentos não se restringiram ape-
nas ao mar. Em 1889, sempre de olho no cenário nacio-
nal, Adolpho Severiano e Antonio Muniz alimentavam
planos mais ambiciosos do que a simples exploração
do segmento açucareiro quando receberam a Usina
João Alfredo, localizada em Goiana, na zona da Mata
Pernambucana, como pagamento de um empréstimo
concedido aos antigos proprietários.
Os dois sócios ainda não tinham como saber, mas
a tão desejada entrada no setor produtivo viria logo
em seguida, com a aproximação do jovem engenheiro
fluminense Carlos Alberto de Menezes. Nascido em
1855 no Rio de Janeiro, Carlos Alberto era genro do
34 No dia 9 de outubro de 1879, como registrado no ma- industrial baiano Antônio de Lacerda, que idealizou e 35
nuscrito anônimo que conta a história da companhia, o construiu, em 1873, o famoso elevador que liga a cidade
português Manuel da Silva Maia retirou-se do negócio alta à cidade baixa, em Salvador. Por força da profissão,
“ficando o ativo e passivo da sociedade sob a responsa- Carlos Alberto participou ativamente do segmento fer-
bilidade dos dois outros sócios, até findar o prazo do roviário nacional no momento de sua maior expansão,
contrato”. A firma, então, voltou a se chamar Pereira na segunda metade do século 19.
Carneiro & Cia. Menos de dois anos mais tarde, em 2 de Em meados dos anos 1880, quando precisou fixar
janeiro de 1881, foi admitido como sócio “solidário e so- morada em Jaboatão dos Guararapes a serviço da Co-
cial” o cunhado do fundador, Antonio Moniz Machado. missão de Fiscalização da Estrada de Ferro Central de
Fundada originalmente “para a exploração do com- Pernambuco, ligando Recife a Caruaru, Carlos Alberto
mercio de Commissões, Consignações e Conta Pró- conheceu o velho Adolpho. Ambos ficaram amigos e
pria”, a Pereira Carneiro & Cia. conglomeraria diversas Adolpho Severiano passou a indicá-lo a cargos públicos,
empresas de navegação, como a A.C. Freitas & Cia, a primeiro como empreiteiro na Estrada de Ferro do Nor-
Lloyd Brasileiro e a Companhia Commercio e Navega- te do Estado do Rio de Janeiro e, em 1886, como dire-
tor-gerente da companhia Ferro Carril de Pernambuco4. cer a Fábrica de Tecidos Camaragibe, no engenho de
Foi neste contexto que Adolpho o convidou para dirigir mesmo nome, em São Lourenço da Mata, um municí-
a usina João Alfredo de que acabara de tomar posse. pio adjacente ao Recife6. Carlos Alberto de Menezes
Carlos Alberto não aceitou o convite, mas indicou para foi designado o responsável por comandar as obras de
a função um amigo em comum, o baiano Luis Correia construção e implantação da tecelagem de algodão.
de Brito, também formado pela Escola Politécnica do Em 1891 e 1892, ele seria mandado pela Ciper ao Rio
Rio de Janeiro. Carlos Alberto também sugeriu a ideia de Janeiro e depois à Europa para uma pesquisa sobre
da fundação de uma fábrica têxtil, um ramo industrial boas práticas, projetos de arquitetura e engenharia e
que começava a tomar forma no Brasil5. o melhor maquinário para a fábrica a ser construída.
A sugestão não poderia ser mais oportuna. O velho Por ser ligado às fileiras da Sociedade de São Vicente
Adolpho sabia que, mesmo com a forte concorrência de Paulo desde os tempos de Escola Politécnica Flu-
estrangeira, as tecelagens fluminenses ainda se mos- minense, Carlos Alberto aproveitou sua passagem pela
travam bastante rentáveis. Criar uma no Recife poderia França para conhecer a experiência que moldaria o seu
36 ser ainda mais vantajoso, já que o custo do algodão, modelo de gestão empresarial (e por extensão, o dos 37
no Nordeste, era 15% menor do que no Sul – e os sa- Pereira Carneiro) – a “gerência cristã” de Leon Harmel
lários, pelo menos um terço dos de lá. Foi assim que (1829-1915) empreendida na recuperação da tecelagem
Adolpho Severiano, Antônio Muniz Machado e mais da família, em Val-des-Bois, quase inteiramente destru-
alguns sócios fundaram, em 23 de novembro de 1891, ída em um incêndio em 1874.
a Companhia Industrial Pernambucana. Harmel vinha obtendo excelentes resultados com
Dona, já de saída, de uma usina em Goiana, a Com- a reorganização da força de trabalho em uma corpo-
panhia Industrial Pernambucana, ou simplesmente ração cristã. O prédio principal de sua tecelagem se-
Ciper, como ficaria conhecida, iria em breve estabele- ria reconstruído em torno de uma capela consagrada
à Notre-Dame de l’Usine (Nossa Senhora da Usina),
4 Ação Social Católica no Brasil – Corporativismo e Sindicalismo, de cercado pela vila operária onde viveriam o próprio
Carlos Alberto de Menezes. Edições Loyola, 1986. São Paulo.
5 Em A Fábrica de Tecidos de Camaragibe e sua Organização Cristã do Harmel e seus operários. A experiência coletiva de
Trabalho (1891-1908), de Sylvana Maria Brandao de Aguiar e Lúcio
Renato Mota Lima, artigo publicado na Revista de Teologia e Ciências
de Religião da UNICAP/PE em dezembro de 2012. 6 Ver nota 12.
educação religiosa, aprimoramento fabril e respeito Como em Val-des-Bois, o projeto original da Fábrica
ao trabalhador, que valeu a Harmel a alcunha de bon de Tecidos Camaragibe incluía uma vila operária, uma
patron (ou bom patrão), de alguma maneira antecipava escola e uma igreja, seguindo o modelo das corpora-
o espírito da encíclica Rerum Novarum, datada de 1891, ções cristãs. Além da preocupação de seus sócios com
em que o papa Leão 13 criticava a “usura voraz [...] e o um projeto arquitetônico otimizador da produção, a
monopólio do trabalho e dos papéis de crédito, que se implantação da vila operária seguiu padrões sanitários
tornaram o quinhão dum pequeno número de ricos e modernos, com casas construídas em grupos de duas
de opulentos, que impõem assim um jugo quase servil ou quatro unidades, com rede de esgoto e abasteci-
à imensa multidão dos proletários” – isso sem deixar mento regular de água, todas elas dotadas de terreno
de condenar a ascensão dos “socialistas que instigam para a organização de hortas, jardins e criação de ani-
nos pobres o ódio invejoso contra os que possuem e mais. Poucos anos depois de sua fundação, uma comis-
pretendem que toda a propriedade de bens particulares são médica daria parecer favorável às instalações, com
deve ser suprimida”7. um total de 147 casas construídas nas proximidades
38 Carlos Alberto voltou ao Brasil entusiasmado com o da fábrica, em uma seção elevada do terreno, com boa 39
que viu e, decidido a seguir a bem sucedida experiência ventilação e arborização9.
de Léon Harmel, convenceu Adolpho Severiano a in- As inúmeras citações à administração da Fábrica de
cluir, nos estatutos da nova Companhia, um parágrafo Tecidos Camaragibe em estudos acadêmicos sobre a
garantindo um tratamento, digamos, mais cristão aos militância social de Carlos Alberto de Menezes aju-
seus futuros empregados. Inaugurada em 1895, a Fábrica dam a compreender a histórica preocupação do velho
de Tecidos Camaragibe entrou em funcionamento com Adolpho com o bem-estar dos empregados em seus
599 operários (277 homens, 197 mulheres e 60 meninos), negócios, o que deixaria marcas profundas na forma-
seis dias de trabalho por semana e jornada diária de 10 ção e atuação dos filhos Camillo e Ernesto em seus
horas8 – contra 11 horas na tecelagem de Harmel. empreendimentos futuros.
Sobre a ligação cristã de Carlos Alberto de Menezes
7 Passagens da encíclica Rerum Novarum – sobre a condição dos e Adolpho Severiano Pereira Carneiro, avô de seu ma-
operários (1891), do papa Leão 13 em seus parágrafos 2 e 3.
8 Em A Corporação Cristã em Perspectiva Transnacional: Interações e
Transferências entre as Organizações Católicas para Trabalhadores de 9 Ver nota 13.
Camaragibe (Brasil) e Val-de-Bois (França), de Deivison Gonçalves
Amaral, Revista Mundos do Trabalho (vol. 11), 2019. Página 7.
rido, Odete Pereira Carneiro disse em entrevista para Dois irmãos
o livro Ação Social Católica no Brasil:

Na sua atuação extraordinária, Carlos Alberto sempre recebia


o apoio contínuo de Adolpho Pereira Carneiro, um homem,
aliás, que não gostava de publicidade. Pereira Carneiro pen-
sava muito no bem-estar dos operários da Fábrica de Tecidos
Camaragibe. Por isso comprou uma fazenda em São Caetano
do Raposo, no interior de Pernambuco, que tinha um clima
frio e seco, para que os operários doentes pudessem se recu-
perar da tuberculose provocada pelo pó do algodão. Depois,
aumentou o terreno da fazenda com outras aquisições. O fi-
lho de Adolpho, Camillo, registrou a fazenda com o nome de
40 Fazenda São José. Cada um a seu tempo, Camillo e Ernesto começaram 41
a trabalhar com o pai no retorno de suas viagens de
Adolphinho tem uma versão parecida com a de sua mãe, formação à Europa. Ernesto foi o primeiro, em 1895,
mas segundo ele, a fazenda São José, a 18 quilômetros recém-chegado da Inglaterra, aos 18 anos de idade. Um
de Caruaru, foi adquirida pelo avô Camillo, e não pelo breve perfil dedicado a ele presente no Dicionário His-
bisavô Adolpho. De resto, a finalidade da fazenda con- tórico Biográfico Brasileiro, da Fundação Getúlio Vargas,
tinuava sendo a mesma: um lugar de recuperação para o define como “bom comerciante”. O texto ainda infor-
os funcionários da fábrica acometidos de tuberculose ma que Ernesto “foi eleito vice-presidente da Associa-
provocada pelo pó de algodão. ção Comercial de Pernambuco em 1897 e, pouco depois,
  começou a diversificar suas atividades, adquirindo uma
fábrica de malhas em Várzea (PE) e várias salinas no
Rio Grande do Norte e no Ceará10.”

10 Dicionário Histórico Biográfico Brasileiro, FGV CPDOC.


Em 1899, contando então 25 anos de idade, Camillo que o matrimônio foi celebrado na alvorada dos anos
se juntaria ao pai e ao irmão para cuidar dos negócios 1900, pouco antes da mudança para o Engenho Limoei­
no Recife. Tudo indica que o dia a dia no batente era rinho, em Escada. Já Ernesto e Beatriz Correia de Araú-
puxado, já que, depois de uma curta temporada na fir- jo se casariam em 1909, como se verá mais adiante.
ma, Camillo se mudaria para a fazenda São José, em São
Caetano, para cuidar da saúde, abatido por uma estafa11. Enquanto davam os primeiros passos na formação de
A vida no interior o agradou a tal ponto que ele logo se suas respectivas famílias, os irmãos Camillo e Ernesto
lançaria na agropecuária depois de arrendar o engenho estiveram ligados ao apoio e ao desenvolvimento de
Limoeirinho, em Escada, a 60 quilômetros da capital. muitos esportes em Recife — das regatas e outras pro-
Tiradas as diferenças de personalidade, algo que vas aquáticas ao turfe, motociclismo e automobilismo,
se pode dizer que os irmãos tinham em comum era o passando pelo futebol. Em 1901, ambos integraram o
apreço por status social. Camillo e Ernesto se casariam grupo que fundou o Clube Náutico Capibaribe. Camilo
com duas irmãs, filhas do advogado recifense e sena- fez parte da diretoria e Ernesto ocuparia, até morrer, a
42 dor do Império Antônio Francisco Correia de Araújo a presidência de honra. Sendo um clube de regatas, os 43
(1845-1886) e de Antônia de Silveira Lins (1858-1941), irmãos participaram ativamente dos avanços e recuos
de tradicional família de Escada – o pai de Antônia, para a introdução do futebol – vale lembrar que ambos
Belmiro da Silveira Lins (que morreria assassinado em fizeram seus estudos de juventude em Londres durante
consequência de uma eleição senatorial na cidade de os anos de forte popularização do esporte na Inglaterra,
Vitória de Santo Antão12, a 45 quilômetros do Recife), com a fundação da Liga Inglesa, em 1888.
era o Barão de Escada. Aproveitemos o gancho futebolístico para um peque-
Não há registro da data de casamento de Camillo e no salto no tempo e contar o papel que os dois irmãos
Maria Isabel Correa de Araújo, que passaria a assinar tiveram na disputa do primeiro clássico recifense de
Maria Isabel de Araújo Pereira Carneiro. Tudo indica futebol, que aconteceria no dia 24 de julho de 1909
entre o Clube Náutico Capibaribe – depois de uma
11 Em Notas biográficas, perfil publicado em brochura distribuída na
inauguração da Escola Coronel Camillo Pereira, em São Caetano, em devida interferência de Ernesto e Camillo no estatu-
março de 1945. to do clube, oficializando o futebol como atividade da
12 Em Archivo Nobiliarchico Brasileiro, organizado pelo Barão de Vas-
concelos. Página 147. casa – e o Sport Recife. Ernesto, presidente de honra,
fez apenas uma ressalva para a partida: atletas negros como também no meio dos seus respectivos admiradores. Em
estavam proibidos. ambos os teams tomam parte jogadores antigos, como sejam
O palco do amistoso foi o o British Club, em Ponte Camillo Pereira Carneiro [...] para os quaes o foot-ball não é
d’Uchoa. O Clube Náutico Capibaribe, de camisa, cal- uma novidade”.
ção e distintivo brancos, escalou o seguinte time misto,
formado por ingleses e brasileiros: H.King; E. Montagne Dito isso, regressemos aos primeiros anos do século
Smith, H. A. Ávila; R. Ramage; F. M. Ivatt; John Cook; 20, pois eles irão definir a passagem para a segunda
A. Silva; H. Grant Anderson; R. Maunsell; D. Thomaz e parte deste livro. Com o envelhecimento do patriarca
João Maia. Reservas: MacPherson, Linesman e A. Chal- Adolpho Severiano, Camillo e Ernesto foram pouco a
mers. Apesar do escrete improvisado, o Náutico venceu pouco assumindo a bandeira dos Pereira Carneiro na
o Sport por 3 a 1. sociedade recifense, à frente dos negócios e da bene-
Nascia o “clássico dos clássicos”13. merência, auxiliados por uma regular cobertura dos
Tudo indica que Camillo fosse um entusiasta do jornais locais.
44 futebol já que menos de um mês depois daquele clás- Ernesto logo se tornaria figura frequente nos primór- 45
sico inaugural ele apareceria escalado como half-back dios do colunismo social, seja pela direção de derbies
do Náutico, algo como o volante de hoje, em novo no Velódromo de Pernambuco e de regatas no Club
confronto entre os rivais. Camillo contava então 44 Náutico Capibaribe, seja pelas reuniões e eventos nos
anos de idade. A partida foi registrada em A Província clubes e associações de classe, com destaque para as
no dia 15 de agosto de 1909, infelizmente, sem notícia ações de benemerência – como a doação, ao lado do
do resultado: irmão Camillo, de 50 mil réis para a então recém-cria-
da Liga Brasileira Contra a Tuberculose14, mencionada
Grande interesse tem despertado este match [...]. Como será pelo jornal A Província em 31 de agosto de 1900.
este o primeiro encontro dos dois importantes clubs, entre te- Camillo, a essa altura, já se dividia entre a capital
ams compostos de brasileiros, exclusivamente, é fácil avaliar o pernambucana e o engenho Limoeiro, em Escada, para
enthusiasmo que reina, não só entre as referidas [agremiações], 14 Em Primeiras ações contra a tuberculose no Brasil partiram de
Liga criada em 1900, entrevista com a professora do Programa de
13 Em A história da introdução do futebol em Pernambuco, blog Vozes Pós-Graduação em História das Ciências e da Saúde (Fiocruz), Dilene
da Zona Norte, publicado em 15/3/2011. Raimundo do Nascimento. Publicada em 24/3/2017.
onde se dirigira depois de uma rápida passagem pela Adolpho mereceu ainda um obituário na capa do
Pereira Carneiro & Cia logo depois de seu regresso da Jornal Pequeno em sua edição de 14 de fevereiro de 1903:
Europa. Entre notas sobre seu apoio a festejos religio-
sos e sua participação em um ou outro evento social, ADOLPHO PEREIRA CARNEIRO
Camillo é mencionado no jornal A Província, em 30 Em Caxangá, lugar de sua residência, hontem à 7 1/2 horas
de setembro de 1902, como um dos convivas a trocar da noite, faleceu o honrado commendador cujo nome epigra-
“calorosos brindes” em banquete realizado na casa do pha estas linhas, conceituado e antigo commerciante nesta
cônsul de Portugal em Recife, o comendador Celestino praça.
de Menezes, na ocasião dos festejos de aniversário do Victimaram-n’o antigos padecimentos, resistíveis aos mais
rei d. Carlos e da rainha d. Amelia. carinhosos desvelos da sua dignissima familia e aos poderosos
recursos da sciencia.
No dia 13 de fevereiro de 1903, Camilo, Ernesto e a irmã Fundador da acreditada casa que gyrava nesta praça, sob a
Martina perdiam o pai, falecido aos 75 anos, em sua firma Pereira Carneiro & C. era aqui estabelecido ha muitos
46 residência, no bairro do Caxangá. A morte de Adolpho annos, sendo em todos os seus negocios de uma correcção 47
Severiano Pereira Carneiro, como era de se esperar, não inigualavel, merecedor por isso de grande credito e da pro-
passou em branco nos principais jornais da cidade. Do funda amisade de todos os commerciantes.
segmento comercial, foi homenageado por uma série Viuvo, contando 75 annos de idade, deixa tres filhos, que
de notas tanto das organizações patronais quanto da são os srs. Ernesto Pereira Carneiro, Camillo Pereira Carneiro
“Associação dos Empregados do Commercio” – esta e a exma. sra. d. Martina Pereira Carneiro.
última em tom até mais derramado que o dos colegas, O seu enterramento terá lugar hoje no cemiterio publico
salientando no Jornal do Recife “o conceituado e notável de Santo Amaro, ás 3 horas da tarde, sahindo o feretro da es-
negociante commendador [...] cujo prestigio na classe tação das Officinas, onde são encontrados carros a disposição.
commercial se impoz pelo seu caracter impolluto e pela Não ha convites especiaes.
sua honradez immaculada”. Na reunião da diretoria Em extremo penalisados pelo desaparecimento do notavel
do Club Náutico Capibaribe, seu presidente mandou commerciante, apresentamos sentidas condolencias à dignis-
inserir na ata um voto de pesar pelo falecimento do pai sima e virtuosa familia do extincto.
do “consorcio Ernesto Pereira Carneiro”.
Com a morte do pai, Ernesto seria, dos filhos, o pri-
meiro a entrar oficialmente como sócio na companhia,
logo em 1903, assim mencionada no livro-manuscrito:

“[...] com o auxilio poderoso de Ernesto Pereira Carneiro, que,


como socio solidário, havia sucedido a seu pae em 1903, a
nossa firma continuou a transaccionar em larga escala e com
os grandes elementos adquiridos em sua longa existência”.

Já Camillo levaria ainda um tempo até assumir seu pa-


pel na empresa da família. Naquela aurora do século
20, provavelmente inspirado pelos ares campestres do
engenho, Camillo parecia mais preocupado em se de-
dicar a fazer filhos. 49

50 PARTE 2 — CAMILLO E ERNESTO 51
No Caxangá Quando ficou viúvo, Camillo já havia deixado o En-
genho Limoeiro e construído o famoso “casarão da
Várzea”, que seria o principal cenário da infância de
Adolpho e seus irmãos. Na verdade, o mais provável
é que o casarão tenha sido erguido por Camillo logo
depois da aquisição da Fábrica de Malha da Várzea pela
Pereira Carneiro & Cia, em 1904 – e o fato de casa e fá-
brica ficarem no mesmo bairro leva a crer que Camillo
quisesse morar perto do trabalho. Conta o livro-ma-
nuscrito da companhia:

A firma Pereira Carneiro & Cia incorporou ao seu patrimônio


em maio de 1904, por compra de todas as acções, a Fábrica de
52 Perto de nove meses depois da morte de Adolpho Se- Malha da Várzea que se dissolveu, ficando a firma responsável
veriano Pereira Carneiro, nascia em 23 de novembro por todas as operações da extincta fábrica a partir de 1° de
de 1903, no engenho Limoeiro, no município de Es- janeiro daquelle anno.
cada, seu neto homônimo, que ganhou o nome por
motivos evidentes. Na ordem dos filhos de Camillo e Segundo o obituário de Camillo no Jornal Pequeno, ele
Maria Isabel, Adolpho Pereira Carneiro foi o terceiro, se dedicou à recuperação do negócio somente a partir
depois do primogênito Camillo (o Camillito, morto de 1907, quando voltou do interior para a capital:
precocemente aos 16 anos, num evento trágico que
será relatado em seu devido tempo) e de Maria Cân- A sua obra de remodelação da Fabrica de Tecidos de Malha, na
dida. Maria Isabel manteria o ritmo de um filho por Varzea, diz bem da sua organisação de industrial inteligente,
ano – depois de Adolpho viriam Antônio Francisco, corajoso, emprehendedor. Mais de 1.200 contos empregara
Maria Antônia (a Toni), Maria Beatriz (a Beca), Maria ultimamente na acquisição de machinisinos e outros mate-
Izabel – até não resistir ao parto do caçula, José, em riaes, afim de tornar aquella fabrica capaz de rivalisar com as
7 de maio de 1910. melhores do paiz.
O Casarão e a fábrica parecem não apenas terem enrai- hoje se espraia a avenida Caxangá, uma das principais
zado Camillo e sua família no bairro do Caxangá como da região Norte do Recife. À época, na outra margem do
transformado todo a região. Um livrinho impresso e rio, ficava a olaria que, segundo relatos da família, teria
distribuído por Adolpho Pereira Carneiro na cerimô- produzido os tijolos usados na construção do casarão
nia de inauguração de escola em homenagem ao pai, a de Camillo. Uma das lendas a respeito dessa edifica-
Escola Coronel Camillo Pereira Carneiro, em São Cae- ção conta que, para empregar o máximo possível de
tano, em março de 1945, joga luz sobre as intervenções moradores da região, Camillo teve a ideia de mandar
de Camillo no bairro: transportar manualmente os tijolos da olaria até o ca-
sarão – cada pessoa só podia carregar um único tijolo,
Em Caxangá, zona muito afetada pelas enchentes que a tor- serviço pelo qual era devidamente recompensado.
nava quase intransitável, adquiriu grande extensão de terra Tirando os tijolos made in Recife, praticamente todo
onde construiu sua residência e várias casas para seus em- o resto do casarão veio de fora: escadarias, vitrôs, fer-
pregados. Fazendo muitos melhoramentos, transformou, em ragens, tudo importado da Inglaterra. O requinte de
54 pouco tempo, esta vasta área em aprazível lugar. Camillo e o apreço pela morada que idealizou chegava 55
ao detalhe de ter suas iniciais — CPC — gravadas em
Um outro trecho do obituário de Camillo no Jornal todos os vidros das janelas e das portas do casarão.
Pequeno faz coro aos relatos familiares de como ele
procurou ajudar a população mais simples da região Só não se pode dizer que Adolpho Pereira Carneiro e
durante a construção do casarão: seus irmãos tiveram uma infância inteiramente feliz
no casarão porque foi lá que Maria Isabel morreu, em
Fôra sempre um amigo da pobreza, ninguém lhe batendo à 1910, por complicações no parto de seu oitavo filho,
porta sem receber o conforto, o auxílio, que procurava. José. O fato foi anunciado – sem que se informasse as
razões do óbito – pelo jornal A Província em sua edição
Erguido no período em que se abateu uma seca histó- daquele mesmo dia:
rica sobre grande parte do Nordeste, atingindo com
severidade a população mais carente, o casarão de Ca- Na rua do Progresso, n. 11 falleceu hoje, ás 2 e meia horas da
millo ficava nas proximidades do rio Capibaribe, onde madrugada, a exma. sra. d. Maria Pereira Carneiro, esposa do
sr. Camillo Pereira Carneiro, socio da importante firma d’esta
praça Pereira Carneiro & Cia. Em 23 de junho do mesmo ano, outro acontecimento
Dotada de superiores qualidade de espirito e de coração a de vulto na família: Beatriz Correia de Araújo, irmã de
digna extincta falleceu quase repentinamente. Maria Isabel, se casa com o irmão de Camillo, Ernesto.
Deixa oito filhos menores, sendo a sua morte motivo de Beatriz tinha então 24 anos de idade, e, como sua irmã,
consternação para todas as pessoas que a conheciam. pertencia de uma das principais famílias das aristocra-
O seu enterramento terá logar hoje, ás 4 horas da tarde, cia pernambucana. Seu pai, Antonio Luis Correia de
no cemitério de Santo Amaro, havendo carros á disposição Araújo, como já foi dito, havia sido senador durante o
da rua do Imperador. Império. Um de seus tios, Joaquim Correia de Araújo,
Sentimentamos ao inconsolavel esposo da distincta morta, além de senador, também havia sido conselheiro do
assim como á familia Pereira Carneiro. imperador, catedrático da Faculdade de Recife, e, last
but not least, governador de Pernambuco. Contam que
Antes de morrer, Maria Isabel ainda testemunharia Beatriz era “uma mulher forte”, criada com afinco por
56 dois eventos importantes. Em 1909, com a morte de dona Antonia Correia de Araújo, que, tendo enviuva- 57
Antonio Muniz Machado, sócio de seu sogro, ela veria do ainda jovem, havia se tornado uma mãe dedicada
seu marido entrar para o quadro societário da Pereira exclusivamente aos filhos.
Carneira & Cia. O livro-manuscrito registrou a troca: Beatriz e Ernesto não tiveram filhos.

Em 1909 entrou para a firma o socio Camillo Pereira Carneiro, Depois da morte de Maria Isabel, Camillo contrairia
pernambucano como seu irmão Ernesto Pereira Carneiro, o segundas núpcias com outra integrante da elite per-
qual já dedicava a sua actividade aos interesses da casa, que lhe nambucana, Arlinda Barbosa de Araújo, com quem teria
deve, em parte, o grande renome que hoje possue. A direcção mais cinco filhos. Sem registro de data, o casamento
da firma á qual estiveram sempre confiados interesses de gran- entre Camillo e Arlinda é citado na brochura distribu-
de vulto, particulares do próprio Governo — por intermédio do ída na inauguração da Escola Coronel Camillo Pereira
Branco do Brasil, do qual foi agente por longos annos – ficou a Carneiro, em São Caetano, em março de 1945. Está lá,
cargo dos irmãos Pereira Carneiro por haver fallecido em 1908 em Notas biográficas:
o socio Antonio Moniz Machado, que foi succedido pela viúva.
Contraiu segundo casamento com D. Arlinda Barbosa de Comércio e Navegação
Araujo, da família dos Barões de Vassouras, e deste consórcio
teve os seguintes filhos: Ernesto, oficial da reserva, advogado
e jornalista, empregando suas atividades nas organizações
do seu tio Conde Pereira Carneiro; Ruth, casada com o Dr.
Domicio Veloso da Silveira, progressista industrial, da im-
portante familia Veloso da Silveira; e Camillo, Arlindo e Tito,
respectivamente oficial da reserva e estudante de Direito, e
estudantes de Ciencias Econômicas e Medicina.

58 Poucos anos depois da morte do irmão, Ernesto tro-


caria a vida provinciana do Recife pelo cosmopolitis-
mo da capital federal. Personagem cativo nas notas
de imprensa, tão comuns naquele tempo, dedicadas a
mostrar as figuras da alta sociedade que embarcaram e
desembarcaram nos principais portos do país, Ernesto
havia feito de suas cabotagens entre Recife e Rio de
Janeiro algo genuinamente rotineiro desde que assu-
mira maiores responsabilidades à frente dos negócios
da família, no começo dos anos 1900.
A decisão de se mudar para a capital federal estava
diretamente associada ao seu ingresso na Companhia
Comércio e Navegação, a CCN. Não há registros de
quando a Pereira Carneiro & Cia. se tornou acionista
da armadora carioca, fundada em 1905 por fusão de di- geiro. Naquela época, quase inexistia o comércio de
versas outras companhias de menor importância, mas sal nacional – sua produção se limitava às salinas de
sabe-se que não demorou para que Ernesto assumisse Cabo Frio, no litoral fluminense, Aracaju e Macau, no
seu controle acionário, fincando de vez os pés no seg- Rio Grande do Norte, de onde procediam os tímidos
mento do transporte marítimo, em franco desenvolvi- carregamentos que aportavam no Rio de Janeiro16.
mento o país desde a proclamação da República. Apesar A partir dos carregamentos de Cabo Frio para a vizi-
das escassez de informações a esse respeito, o perfil nha capital federal, a Rodrigues Faria & Cia. se lançaria
de Ernesto no Centro de Pesquisa e Documentação da à expansão nacional com a constituição da Empresa
Fundação Getúlio Vargas pelo menos estabelece uma de Navegação Salina, em 1902, e investimentos em um
data para a mudança de cidade e a aquisição da CCN: grande centro produtor cearense, as salinas de Ca-
noé. O passo seguinte seria a formação da Companhia
Pretendendo ampliar seus negócios, transferiu-se em 1912 Comércio e Navegação, em 1905, quando a Empresa
para o Rio de Janeiro, então Distrito Federal, onde adqui- de Navegação Salina incorporou outras três empre-
60 riu a Companhia Comércio e Navegação, especializada em sas do segmento chegando a uma frota de 11 vapores 61
transportes marítimos, e a massa falida da indústria de navios com capacidade grande o bastante para sustentar o
[Rodrigues] Faria e Companhia, procurando vincular essas crescimento planejado, mas também com elevada ne-
operações ao fortalecimento de suas empresas nordestinas.15 cessidade de investimentos, posto que boa parte das
embarcações recebidas estava em inatividade, à espera
A incorporação da Companhia Comércio e Navegação de reparos e modernização.
pela Pereira Carneiro & Cia. está diretamente ligada à Parceiro da Rodrigues Faria & Cia na instalação das
queda de uma concorrente carioca na “exploração do salinas de Canoé, o empresário Rodolpho Lahmeyer
commercio de comissões, consignações e conta pró- participou da aquisição das instalações do antigo Es-
pria”. Fundada no Rio de Janeiro, em 1896, a Rodrigues taleiro Mauá, na Ponta da Areia, em Niterói, onde
Faria & Cia. havia iniciado suas atividades voltada para comandou a construção do Dique Commercio (mais
o negócio do sal, então dominado pelo produto estran- tarde Lahmeyer) entre dezembro de 1907 e abril de
16 Impressões do Brazil no Seculo Vinte, Lloyd’s Greater Britain Pub-
15 Ver nota 12. lishing Company Ltd., 1913.
191317, para garantir a autonomia da empresa na ma- a frota recém-incorporada à Companhia Comércio e
nutenção da frota. Navegação, diversificando as rotas dos navios para atra-
É nesse contexto de expansão que, dez anos depois car também em portos europeus:
da fundação da Empresa Salina de Navegação, a Ro-
drigues Faria & Cia. abre seu capital e vê a Companhia Suas atividades empresariais receberam grande impulso du-
Comércio e Navegação, já sediada em Niterói, ser ad- rante a Primeira Guerra Mundial, deflagrada em 1914. Apesar
quirida, em 1914, por Ernesto Pereira Carneiro. Preci- do afundamento de alguns de seus navios que faziam trans-
samente naquele ano, a firma passou a ser exclusiva porte para a Europa, sua frota aumentou consideravelmente
da família Pereira Carneiro, como registra o livro-ma- e operou com grande lucratividade, ao mesmo tempo que a
nuscrito: queda das importações brasileiras e o maior acesso das in-
dústrias nacionais ao crédito permitiram a diversificação de
Terminou em 1914 o contracto entre os sócios subsistentes suas atividades18.
(Herdeiros Corrêa Leite, Viuva Moniz Machado e irmãos Pe-
62 reira Carneiro) e, uma vez pagos e satisfeitos os que se retira- Segundo Paulo Burle, sobrinho e afilhado de Adolpho 63
ram, reconstituíram os irmãos Pereira Carneiro e antiga firma Pereira Carneiro, grande parte do crescimento da Com-
Pereira Carneiro & Cia que ainda hoje obedece ás orientações panhia de Comércio e Navegação pós Primeira Guerra
de seus dois unicos componentes (1923). Mundial se deveu a uma milionária indenização paga
pelo governo alemão à empresa para compensar os tor-
Com experiência no segmento do transporte marítimo pedeamentos em navios da frota ocorridos durante os
depois de agenciar os serviços “de várias empresas taes anos de conflito.
como a A.C. Freitas & Cia, de Hamburgo, [e] Lloyd No livro História da Marinha Mercante do Brasil (2
Brasileiro, por cerca de 15 annos”, como registra o li- volumes), do historiador marítimo José Carlos Rossi-
vro-manuscrito, a Pereira Carneiro & Cia reorganizou ni, a Companhia Comércio e Navegação é destacada
entre as quatro grandes companhias privadas a explo-
17 Em A indústria da construção naval e offshore, no portal do Centro
dos Capitães da Marinha Mercante <www.centrodoscapitaes.org.br/ rar o contexto do nascimento da indústria nacional,
marinha-mercante/construcao-naval-e-offshore>; e verbete Compa­
nhia Comércio e Navegação, em Impressões do Brazil no Seculo Vinte,­
Lloyd’s Greater Britain Publishing Company Ltd., 1913 18 Ver nota 12.
armando cargueiros de bandeira pátria para disputar casas higiênicas e modernas”20, ligadas à rede de esgoto
o transporte de importações e exportações com as e voltadas para resolver a questão da habitação popular.
então dominantes empresas estrangeiras. Suas con- A entrega das primeiras unidades se deu durante os
correntes diretas eram a Companhia Nacional de Na- festejos do Dia do Trabalho em 1920, como descreveu
vegação Costeira, de Henrique Lage; o Lloyd Nacional, o Correio da Manhã em 3 de maio daquele ano:
do empresário Giuseppe Martinelli (o mesmo do edi-
fício no centro de São Paulo); e a Sociedade Paulista Foi também belíssimo o festival levado a effeito na Villa ope-
de Navegação Matarazzo, do também “paulistano” rária ora em construção no morro da Armação e rua de Santa
conde Francesco Matarazzo19. Clara, obras estas de iniciativa do sr. conde Pereira Carneiro,
director da Companhia de Commercio e Navegação. Todos os
Quando Ernesto e a Companhia Comércio e Navegação predios foram feericamente iluminados a luz electrica, apre-
se estabeleceram na Ponta da Areia, em Niterói, a então sentando assim um aspecto encantador.
capital do estado fluminense já era uma cidade marcada
pela presença de empresários e operários navais, com A iniciativa de Ernesto claramente ecoava a bandeira 65
perto de uma dezena de estaleiros funcionando literal- levantada de seu pai na fundação da Fábrica de Tecidos
mente a pleno vapor. Com a compra e recuperação das de Camaragibe, em 1895. Como na indústria de bene-
instalações do decadente Estaleiro Mauá, inaugurado ficiamento de algodão em Pernambuco, a intenção de
em 1845, a CCN contribuiria para dar novo impulso à Ernesto era abrigar os trabalhadores a uma pequena
tradição de inovação iniciada por seu antigo fundador, distância do local de trabalho, com uma infraestrutu-
Irineu Evangelista de Souza, o Barão de Mauá. ra urbana que proporcionasse o bem-estar necessário
Além da inauguração do maior dique seco da Améri- ao desenvolvimento não apenas dos empregados, mas
ca Latina para a manutenção de embarcações, o Dique também do ser humano. Tal doutrina seria professada
Comércio (Lahmeyer), o que tornaria a CCN particu- em recepção organizada pela companhia ao novo bispo
larmente especial aos olhos da sociedade niteroiense de Niterói, D. José Pereira Alves, em discurso proferido
foi a construção de uma grande vila operária com “400 pelo cônego Mello Rezende, “humilde capelão que tem
19 Em Livro narra a história das maiores companhias de navegação, 20 Em Histórias de Imigrantes e de Imigração no Rio de Janeiro, de An-
Portal Naval, 22/1/2013. gela de Castro Gomes (organizadora). Editora 7 Letras, 2000.
a seu cargo a direcção religiosa da Companhia Com- Triste ocorrência
mercio e Navegação”, em 20 de maio de 1928:

Contíguo às officinas onde gemem as machinas, a companhia


collocou a Escola, onde se ilustra a Intelligencia; o Médico,
que restitui a saúde aos organismos comballidos; e, conscia da
necessidade imprescindivel de um princípio moral e religioso
que discipline as vontades e impulsione os corações, não se
descuidou de colocar também o Sacerdote, para que abra ao
homem do trabalho as portas da Egreja, ensine a moral dic-
tada pelo Mestre da Judéa e o assista nos momentos felizes
e nas horas difícies da vida21.

66 Àquela altura, a CCN empregava perto de quatro mil A notícia, envolvendo Camillo Pereira Carneiro Fi- 67
pessoas22. Com a morte de Ernesto, em 1953, as casas lho, o Camillito —primogênito de Camillo e Maria Isa-
começariam a ser vendidas, nem sempre aos trabalha- bel, e, portanto, irmão mais velho de Adolpho Pereira
dores do estaleiro23. Hoje, a Vila Pereira Carneiro é um Carneiro —, ganharia a primeira página do jornal A
dos mais tradicionais bairros operários de Niterói, in- Província em 27 de dezembro de 1917:
corporada ao patrimônio arquitetônico da cidade.
Triste ocorrência em bôa-viagem
Pereceu afogado
Ante-hontem deu-se um caso lamentável na praia da Boa
Viagem, que deixou em todos quantos o assistiram ou delle
tiveram conhecimento a mais profunda consternação.
21 Em O Rvmo. Bispo de Nichteroy – D. José Pereira Alves foi recebido A triste occorrencia passou-se da seguinte forma:
hontem na capital fluminense, Jornal do Brasil, 20/5/1928. O illustre coronel Ernesto Pereira Carneiro e seus sobri-
22 Idem.
23 Ver nota 47. nhos, entre os quaes o de nome Camillo Pereira Carneiro
Filho, foram passar o dia de Natal em Bôa-Viagem. go coronel Camillo Pereira Carneiro com a saudosa d. Maria
Ás 9 horas, seguramente, foram banhar-se nessa praia. Correia de Araujo Pereira Carneiro, já fallecida.
Em certo momento, notou o jovem Camillo que uma filhi- Cursava com intelligencia e dedicação o Collegio Salesiano,
nha do dr. Joaquim Amazonas de nome Maria, com 4 annos onde era muito estimado pelos seu comportamento e optimos
de edade, fora levada pelas ondas para longe . 24
sentimentos.
Incontinente o destemido rapaz resolveu salval-a, luctando A dolorosa noticia, foi levada ao conhecimento do Coronel
contra as ondas ate segural-a, a fim de trazel-a para a praia. Camillo Pereira Carneiro, em Caxangá, ficando elle profun-
Ao seu encontro foi o dr. Antonio Correia de Araujo, que damente desolado pela perda de seu querido filho.
tomou a creança dos braços de seu salvador, ficando este, A este cavalheiro e tambem ao seu illustre irmão e nosso
exhausto de forças, a luctar ainda contra o salso elemento. digno e particular amigo, coronel Ernesto Pereira Carneiro
Percebendo a situação de seu sobrinho, o coronel Pereira enviamos condolências sinceras pelo desapparecimento do
Carneiro, muito afflicto, bradou-lhe que tivesse animo, pois infortunado jovem.
ia salval-o. Soubemos á tardinha de hontem, que o cadaver do desven-
68 Infelizmente – era já tarde, e o intrepido Camillo, subindo, turado joven ainda não tinha sido encontrado e que á noite, 69
mais uma vez, á superficie d’água, desapparecia das vistas seriam feitas pesquisas com luzes, no local e immediações
cheias de afflicção de seus tio e irmãos. do desastre.
Lanchas, jangadas e outras embarcações percorreram o
local e immediações do sinistro pesquizando para ver se en-
contravam o desventurado moço, não dando, porém, o menor
resultado.
O jovem Camillo tinha perdido a vida depois de ter prati-
cado uma acção heróica, salvando a vida a uma criança.
Camillo Pereira Carneiro Filho contava 16 anos e era filho
mais velho do 1º matrimonio do nosso particular e digno ami-
24 “Camillo morreu salvando uma prima afogada, da família Amazo-
nas, que é uma família bem famosa aqui, que tem um casarão lindo,
hoje tombado. Maria Amazonas morreu agora há pouco.” Entrevista
com Eliza Pereira Carneiro. 23/1/2020.
O palacete Santa Cruz lacete de arquitetura revivalista, pontuado por duas
torres acuminadas, lembrando um pequeno castelo
normando, e localizado nos fundos do estaleiro, em
terras incorporadas do Moinho Santa Cruz, na mes-
ma Ponta D’Areia, em Niterói. Esculpido na rocha, no
alto da encosta, chegava-se lá através de um elevador
externo em dois estágios, construído para poupar os
visitantes que preferiam não encarar a longa escadaria
também talhada nas pedras.
E aqui talvez valha incluir na palavra “visitantes” o
próprio dono, pois, apesar da vultosa empreitada, não
há registro de que ele tenha morado no palacete Santa
Cruz, como ficou conhecido – ou Casarão do Moinho,
70 No final da segunda década do século 20, trafegando como também é chamado entre os descendentes. Er- 71
cada vez mais entre Pernambuco e Rio de Janeiro, os guido por volta de 191825, o endereço funcionava basi-
Pereira Carneiro podiam ser encontrados em pelo me- camente para que Ernesto passasse o dia lá, enquanto
nos quatro endereços diferentes. No Recife, o casarão estivesse em expediente de trabalho, ou então em ce-
no Caxangá de Camillo e o palacete do bairro do Es- rimônias e recepções associadas a visitas importantes
pinheiro, de Ernesto. E no Rio, ambos propriedades à companhia, como a anunciada pela revista Careta em
de Ernesto, o palacete de Petrópolis (cidade serrana 26 de maio de 1923:
para onde toda burguesia carioca se mudava quando
chegava o verão), e a mansão que dava frente para a Realizou-se sabbado ultimo uma excursão de representantes
rua General Dionísio, número 53, e fundos para a rua do commercio alto bancario ás installações da firma dos srs.
Capitão Salomão, no bairro carioca do Humaitá. Pereira, Carneiro & C.ª Ltd. sitos na vizinha cidade de Nic-
Com a compra dos Estaleiros Mauá pela Companhia theroy. Os pontos percorridos foram a villa operaria, a fabrica
Comércio e Navegação, Ernesto mandaria construir
25 Em postagem do perfil Olhar Nichteroy, no Facebook. Consultada
um quinto endereço oficial — nada menos que um pa- em 28/6/2021.
de tecidos, o dique, as officinas, os estaleiros e, finalmente o generosa doação à Igreja para ações de enfrentamento
moinho. Depois da excursão [foi servido] um almoço aos visi- à mortal epidemia naquele ano não passaria em branco
tantes na residencia do conde, onde foram trocadas amistosas aos olhos da imprensa, como noticiado pelo Diário de
saudações e enthusiasticos toasts. Pernambuco em 28 de outubro de 1919:

Vale atentar, na nota acima, para a referência a Ernesto Rio, 13 – As autoridades sanitárias, inclusive o dr. Carlos Chagas,
como “conde”. De fato, a titulação era oficial desde de são de opinião que a grippe diminue de intensidade.
1919 e ganha diferentes justificativas segundo a fonte. Não houve sessão na Câmara, no Senado e no Conselho
Sua origem, no entanto, era uma só, e histórica – uma municipal.
ligação atávica da burguesia brasileira em formação O commercio continua fechado. A Associação comercial insiste
com a Monarquia suplantada havia pouco pela Repú- com o presidente da República pela decretação de moratória. [...]
blica, com fantasias não atendidas pelas novas formas O governo entregou a quantia de 200 contos ao dr. Carlos
de dominação, oligárquica e ruralista. chagas para o combate à epidemia.
Tributários do mesmo respeito e consideração da O sr. Ernesto Pereira Carneiro offereceu 100 contos ao cardeal 73
imprensa, enquanto a Camillo pouco importava o tra- Arcoverde e ao clero para a distribuição entre os pobres, em nome
tamento de “coronel”, comumente dispensado aos da Companhia Commercio e Navegação, da qual é presidente.
senhores da elite no Nordeste, a Ernesto interessava
ostentar certa distinção social, sobretudo depois de Justamente esta última manifestação de seu “espírito
sua mudança para o Rio de Janeiro. caritativo e bom” – equivalente à metade do investi-
Cioso da reputação em construção de “ilustre cida- mento federal no combate à gripe espanhola – valeria
dão e honrado homem de negócios”, sua benemerência a Ernesto a distinção de conde, que lhe seria conferida
era regular e generosa, eminentemente assistencialista, pelo papa Bento 15, como anunciado pelo semanário A
como se pode imaginar, mas em geral voltada a causas Rua em sua edição de 16 de abril do ano seguinte:
de interesse público, como as contribuições feitas à
Liga Brasileira Contra a Tuberculose, no começo dos Sua Santidade por intermedio do Sr. cardeal Arcebispo do
anos 1900, e ao combate à gripe espanhola, em 1918. Rio de Janeiro, acaba de agraciar, com o título de conde, o Sr.
Já uma figura de destaque na sociedade carioca, sua Coronel Ernesto Pereira, conhecido industrial e prestigioso
director da Companhia Commercio e Navegação, uma das rial”, os Bragança, nos anos 194026. Àquela altura já uma
mais ricas emprezas marítimas da America do Sul, director da personalidade nacionalmente influente, proprietário
fábrica de tecidos S. Joaquim e do Moinho de Santa Cruz, tudo de um dos jornais mais importantes de então, o Jornal
em grande prosperidade, dando serviço, portanto, a milhares do Brasil, Ernesto sofreria com os humores da própria
de operários e marítimos. imprensa na companhia de outro histórico industrial,
É, pois, merecedor da alta distincção que lhe foi conferida o paulista Francesco Matarazzo:
o sr. Pereira Carneiro, não só pelo seu valor e actividade, na
direção de todas estas importantes companhias, mas, de ma- Além do mais, a República derrubou a Monarquia, é verdade,
neira especial, pelo seu espírito caritativo e bom, que o levou mas ficou na burguesia brasileira, principalmente nos meios
a concorrer com o valioso obulo de 100 contos para a subs- bem instalados do Rio, de São Paulo, o visgo bragantino. [...]
cripção aberta por monsenhor Rangel, no ultimo e terrivel E se não há mais rei para distribuir títulos, há o dinheiro
surto epidemico da “grippe”, em dezembro do ano passado, que os pode comprar fora. O conde Matarazzo começou do
e destinado a acudir os “hespanholados” pobres. nada. Fez coisas muito humildes nesta terra. Trabalhou com
74 suas próprias mãos, andou em vários e misturados negócios, 75
As memórias familiares que cruzaram duas gerações armazenou dinheiro. Armazenou muito dinheiro e um dia
até chegar aos dias de hoje registram uma história um estava no fim do seu caminho. [...] Faltava-lhe apenas o últi-
pouco distinta dos jornais da época, e fazem mais uma mo toque, o mais requintado, o definitivo: o toque nobre. E o
vez referência aos temperamentos distintos dos irmãos. Conde Matarazzo comprou no Vaticano o seu título. O Conde
Conta-se que, na realidade, o título de conde havia sido Pereira Carneiro fez a mesma coisa [...].
originalmente oferecido pela Igreja a Camillo, que des-
provido de qualquer senso de vaidade, ao contrário de
Ernesto, teria sugerido: “Eu não quero o título, deem
para o meu irmão”.
Décadas mais tarde, o caráter anacrônico e comer-
cial do título nobiliárquico de Ernesto Pereira Carneiro
seria lembrado pelo jornalista Joel Silveira em uma re-
26 Os donos de Petrópolis, revista O Cruzeiro, edição de 18/11/1944.
portagem crítica ao saudosismo da “família ex-impe- Página 64.
Jornal do Brasil mentos imobiliários da Pereira Carneiro & Cia. Ainda
em 1908, acompanhando o processo de desenvolvi-
mento da Capital Federal, Ernesto havia se tornado o
principal credor da Mendes & Cia quando a empresa
precisou captar recursos para a conclusão da nova sede
de seu jornal. O suntuoso prédio situado na avenida Rio
Branco, então o mais alto da América do Sul, receberia
ainda pesados investimentos para a instalação, em suas
dependências, de um novo parque gráfico para o Jornal
do Brasil. Vencido o prazo de dez anos, os proprietários
Candido e Fernando Mendes não conseguiram hon-
rar seus compromissos com a Pereira Carneiro & Cia.
Feitas as contas, como nem mesmo o imóvel valesse o
76 Ancorado no crescimento da Companhia Comércio e suficiente para saldar o valor do empréstimo, Ernesto 77
Navegação, Ernesto seguiu diversificando suas ativi- resolveu tomar posse também do jornal, onde já vinha
dades no Rio de Janeiro. Afora seu empenho em mo- atuando como diretor comercial.
dernizar a produção salineira e seu estaleiro naval, o Com o convite de comando feito ao jovem advogado
conde fundaria ainda em Niterói uma fábrica de juta e jornalista Assis Chateaubriand, que Ernesto conhecia
para produzir sacos. Sem falar na realização de uma desde os tempos do Jornal Pequeno, no Recife, o futuro
antiga aspiração sua de ligar-se de vez à imprensa – não magnata dos Diários Associados recebeu a missão de
exatamente pelo lado de fora, vendo seu nome ser ci- fazer do Jornal do Brasil “o mais influente e respeitado
tado praticamente dia sim, outro também em notas e do país”28. Não demorou para que, de fato, o JB se tor-
reportagens locais, mas pelo lado de dentro27. nasse um dos mais populares diários do Rio de Janeiro,
A incorporação do Jornal do Brasil como um dos seus com até cinco edições por dia e tiragens superiores a
ativos viria como consequência indireta dos investi- 60 mil exemplares.
27 Em Até a Última Página – Uma História do Jornal do Brasil, de
Cezar Motta. Editora Objetiva, 2018. Google Books. 28 Ver nota 42.
Mais que isso. Com o título de conde ainda quente conde. Com os dois pés fincados na arena dos homens
na parede, Ernesto conseguiu fazer da incorporação de imprensa, Ernesto enfrentaria uma dura campanha
de seu novo negócio em um espetacular golpe de pu- liderada pelos irmãos Mendes ao longo de todo o ano
blicidade no estabelecimento de sua reputação como de 1923. Em uma série de artigos não assinados, pu-
um dos mais influentes empresários do momento. Para blicados em O Brasil e reproduzidos pelo concorrente
ficar ainda mais próximo da notícia, Ernesto promoveu Correio da Manhã, os antigos proprietários o acusavam
a transferência da sede da Pereira Carneiro & Cia para o de fraudar livros contábeis e forjar documentos para
mesmo prédio do Jornal do Brasil, já então transforma- tornar sua dívida impagável e “apoderar-se pela vio-
do em marco do remodelado centro da Capital Federal. lência do ‘Jornal do Brasil’”, como escreveu o Correio
A inauguração das instalações da Pereira Carneiro & da Manhã em 12 de outubro daquele ano. “O mala-
Cia faria a delícia dos concorridos semanários cariocas barismo criminoso [...] das contabilidades têm sido
como O Malho, Careta e A Cigarra. “A firma Pereira o elemento básico do néo-jornalismo de bacamarte
Carneiro & Cia, Limitada, é hoje, graças á formidável instaurado pelo conde Pereira Carneiro”, martelou O
78 competência do Conde Pereira Carneiro, umas das Jornal no mesmo dia. 79
mais poderosas do Brasil”, registraria O Malho em sua Eram respostas à matéria de página inteira que Er-
edição de 14 de fevereiro de 1920: nesto havia mandado publicar em seu jornal seis dias
antes, em 4 de outubro: “As necessidades do sr. Candido
Não temos espaço para uma descripção dos confortáveis e Mendes de Almeida contra a Pereira Carneiro & Cia. Ltd.
pomposos compartimentos da nova installação desse núcleo (Companhia Commercio e Navegação) [...] são sempre
de trabalho intelligente. Bastará, porém, dizer-se que o critério, as mesmas: as do inocuo protesto desse ano são repro-
a hygiene e a arte deram-se mãos para um conjunto admirável, duções dos frivolos protestos dos três annos anteriores
attrahente e dignificador dos que ali trabalham, sendo que no [...] já devidamente desprezadas, numa [ocasião], pelo
mobiliário há verdadeiros primores artísticos de marceneria, honrado Juiz da 5ª Vara e pela Corte de Appellação, nou-
destacando-se muito a mesa de trabalho do Sr. conde Pereira tra, pelo integro Juis da 4ª Vara Cível”.
Carneiro, executada no Lyceu de Artes e Offícios de S. Paulo. A questão se arrastaria ainda por alguns anos e novas
apelações jurídicas dos irmãos Mendes de Almeida se-
Mas nem tudo foram flores no canteiro jornalístico do riam feitas, sem qualquer efeito prático contra o conde.
80 PARTE 3 — ADOLPHO, O SEGUNDO 81
“À sombra do conde” a alma agrária da região para a qual regressaria em de-
finitivo, já adulto, como veremos mais adiante. Mas
os anos, aqui, ainda são de formação, de modo que
depois de frequentar o Colégio Salesiano até os 14 anos
e o Ginásio Pernambucano até os 16, Adolpho Pereira
Carneiro, como era comum entre os jovens de elite, e
seguindo os mesmos caminhos trilhados por seu pai
e seu tio, partiu para completar os estudos na Grã-
-Bretanha – primeiro no Saint George’s College, em
Weybridge, nas redondezas de Surrey, na Inglaterra,
depois em um curso de especialização em finanças, em
Glasgow, na Escócia29.
Se os registros familiares não deixam dúvida sobre
82 Até sua adolescência, pouco saberemos de Adolpho quando o jovem Adolpho partiu para os estudos na In-
Pereira Carneiro, filho de Camillo, sobrinho de Er- glaterra, seu regresso ao Brasil é fruto de controvérsia.
nesto. Como todo jovem da elite pernambucana do Diz o livro-manuscrito com a história da firma:
início do século 20, seu cotidiano ao longo das duas
primeiras décadas de vida, supõe-se, esteve voltado Em 1918, passou a interessado com 10% o antigo auxiliar e
basicamente para o convívio em família e os estudos. procurador, sr. Ernesto Nascimento, que assim se conser-
Ou talvez nem tanto assim. Os manuscritos deixados vou até 31 de dezembro de 1923, quando se retirou sendo
por sua futura esposa Odete registram a participação substituído pelo sr. Adolpho Pereira Carneiro, filho do socio
de Adolpho ainda um estudante de 15 anos do Ginásio Camillo Pereira Carneiro e que nessa epoca já trabalhava no
Pernambucano, em Recife, na fundação de uma “coo- escriptório da casa.
perativa agro-pecuária em São Caetano”, certamente
ligada aos trabalhadores e atividades da fazenda São A família, no entanto, sustenta que a temporada de
José, que herdaria anos mais tarde do pai.
A aventura juvenil mostra uma ligação precoce com 29 Segundo anotações de Adolphinho. Folha 8.
Adolpho na Ilha só findou aos 22 anos – em 1925, por- dos Pereira Carneiro, no mesmo cemitério. O Diário de
tanto – de idade e teve como motivo a morte precoce Pernambuco anotou, em 12 de novembro:
do pai, aos 50 anos, em 1º de novembro de 1925. Camillo
estava acamado havia quinze dias, possivelmente em Levantada a tampa do caixão, foi o morto beijado pelo sr. con-
decorrência de uma pneumonia, quando “sobreveio- de, condessa e sobrinhos, estes filhos do morto, sendo em
lhe um derramamento cerebral, que resistiu a todos seguida sepultado.
os esforços empregados pelos seus illustres medicos
assistentes”, de acordo com o Diário de Pernambuco em Os rapapés ao “saudoso capitalista e grande industrial
sua edição de 3 de novembro daquele ano. pernambucano” incluiriam ainda a exposição de um
A pedido do irmão Ernesto, o corpo foi embalsama- “bello retrato” em tamanho natural “encerrado em rica
do para que ele e a irmã Martina pudessem chegar do moldura” na vitrine da “acreditada Photographia Pie-
Rio de Janeiro a tempo de despedirem-se dele antes do reck”. Prossegue o Jornal Pequeno em 14 de novembro:
enterro. Velado no salão nobre do Palacete do Caxangá,
84 na tarde do dia 2 de novembro, Camillo seria transfe- No retrato não se sabe o que mais apreciar. Si o perfeito e 85
rido para a capela do mausoléu dos Muniz Machado, seguro acabamento technico, si a naturalidade da expressão
no Cemitério de Santo Amaro, à espera da chegada do physionomica do cel. Camillo Pereira Carneiro.
irmão. A cerimônia foi noticiada pelo Diário do Estado
no dia 3 de novembro: Com a volta ao Brasil para o enterro do pai, Adolpho
terminaria se juntando aos irmãos menores – Maria,
O cadaver estava vestido de frack preto e sapatos de polimen- Isabel, Maria Beatriz, José e os filhos do casamento de
to, sendo collocado em riquísimmo ataúde de veludo negro Camillo com Arlinda Barbosa de Araujo – como tutela-
com alças de prata e incrustações prateadas. O cortejo era do do tio Ernesto. Não há registro de quando os caçulas
formado de um carro funebre de 1ª classe, puxado a quatro de Camillo teriam se mudado para o Rio para morar
cavallos, e de cerca de 300 automóveis e carros. com o conde, mas é possível deduzir que foi depois da
morte de Maria Isabel, em 1910, e antes de Camillo se
O enterro de Camillo aconteceu quatro dias depois, em casar pela segunda vez, com Arlinda. O reencontro dos
7 de novembro, com o traslado do corpo até o mausoléu irmãos – agora órfãos de pai e mãe – no Rio de Janeiro
pode ser estabelecido com a ajuda do Diário do Estado, Adolpho e Ernesto
que em 3 de novembro de 1925 noticiou a chegada de
Ernesto a Recife para o enterro do irmão:

S.s. vem acompanhado da exma. condessa e dos seus sobri-


nhos, filhos do sr. Camillo, senhoritas Maria Izabel e Maria
Beatriz e os jovens José e Adolpho [recém-chegado da Europa].

As notas biográficas de Odete sugerem que todos os


filhos do primeiro e do segundo casamento de Camillo,
incluindo as irmãs mais velhas de Adolpho (certamente
Maria Antonia, em 1932), se mudaram para o Rio de
Janeiro para “ficar à sombra do conde”30.
De volta da Inglaterra após um longo período de es- 87
tudos, e instalado no Rio de Janeiro, Adolpho viveria
ao lado do tio Ernesto o que se define na família como
uma “vida de milionário”. Adolpho era, segundo seu
filho Adolphinho, o “sobrinho predileto do conde”, com
tráfego intenso nas grandes festas da high society cario-
  ca. Toda a malícia regional que o jovem pernambucano
já havia empregado na Inglaterra em suas conquistas
amorosas só fez ganhar novas camadas tropicais no
Rio. “A mulherada caía em cima e ele vivia nas farras, do
jeito que queria”, conta Adolphinho. A fase é registrada
também nas memórias de Odete:

30 Dos “cadernos” da Odete. Folha 1. A princípio, ele disse que se excedeu um pouco, fazendo
muitas farras e festas. Dava muitas festas sempre com belas balho na área de contabilidade dos negócios familiares.
mulheres. Em pouco tempo, contudo, teria percebido irregula-
ridades em movimentações de executivos ligados ao
Mas o oba-oba não duraria muito tempo, como Odete tio e resolveu fazer uma auditoria na Companhia de
aponta logo em seguida: Comércio e Navegação.
Com as informações em mãos, foi ao conde e expôs
Os amigos que participavam e usufruíam das diversões e pra- quem estaria roubando a empresa, ao que o tio, se-
zeres, estes próprios faziam muita fofoca e propaganda, o gundo Adolphinho, preferiu ignorar as informações. O
que desgostou e muito a ele em ver tanta hipocrisia, falta de conde, sem perder o sotaque, teria dito a Adolpho: ‘Não,
coleguismo, sempre procurando desmerecê-lo. Resolveu se meu sobrinho... Invente coisa não, são pessoas boníssi-
afastar do convívio da sociedade. mas, você está enganado, essas pessoas são maravilho-
sas”. Teria sido a gota d’água. A partir dessa conversa,
Além de ter se decepcionado com a hipocrisia do univer- Adolpho tomou a decisão de abandonar o convívio com
88 so tão particular que era a sociedade carioca da época, o tio, pois acreditava que os dias da Companhia, sob 89
ainda ligada à rigidez do regime monárquico cujo de- administração de sua família, estavam contados.
funto seguia fresco naquele início do século 20, o afas- Em outra versão, registrada por Odete em suas me-
tamento de Adolpho do convívio da sociedade carioca mórias, ao voltar para o Rio, seu futuro marido teria sido
teve também um motivo profissional. A depender da incumbido de gerenciar a fábrica de malhas da Várzea,
fonte pesquisada, essa motivação muda, mas sua origem um dos negócios da família, em Pernambuco. Adolpho
é sempre a mesma: um desentendimento entre Adolpho teria aceitado a posição a contragosto, apenas para pro-
e o tio Ernesto na gestão dos negócios familiares. var que era capaz de trabalhar, e não apenas farrear. Se-
Em uma das versões, antes de retornar ao Brasil, gundo escreveu Odete, o próprio conde Ernesto contou
Adolpho trabalhou durante um ano na Escócia como essa versão no dia de seu casamento com Adolpho:
correspondente bancário da Pereira Carneiro & Cia.
Assim, aproveitando essa experiência e o próprio curso Quando pagou todos os débitos da empresa, regularizou to-
de finanças que havia feito, Adolpho, já vivendo no Rio, dos os departamentos e deixou saldo nos bancos, escreveu
passou a conciliar sua “vida de milionário” com o tra- ao tio: ‘Nesta data estou entregando o cargo ao senhor, eu
só quis provar que sou responsável mas também sei farrar e O mar e o agreste
[me] divertir e honrar meu nome. De hoje em diante, eu sou
apenas Adolpho Pereira Carneiro, e não sobrinho do conde.
Com meu respeito e amor, Adolpho’.

Independentemente de qual versão é a mais fidedigna,


a verdade é que os descontentamentos com diz-que-
diz da sociedade carioca e com o modo do tio de con-
duzir os negócios levaram Adolpho a fazer as malas e
partir definitivamente para Pernambuco. Lá, além de
atuar como agente de abastecimento da Companhia
Comércio e Navegação em Recife, comprando tudo
que era necessário para os navios fazerem a travessia
90 do Atlântico, rumo a Europa, ele iniciaria uma vida De volta à terra natal, Adolpho se dividiu entre suas 91
muito diversa da que o formou na Europa e a da que obrigações como agente de abastecimento da Compa-
encontrou no Rio. nhia Comércio e Navegação em Recife e o investimento
  em terras. No município de São Caetano, na região do
agreste pernambucano, Adolpho ampliou os domínios
da fazenda São José, onde seu pai, anos antes, havia
vivido e encontrado prazer na lida com a terra, e onde
ele próprio, como já visto, havia fundado, aos 15 anos,
uma cooperativa agropecuária.
Em Caruaru, vizinho a São Caetano, Adolpho com-
prou pelo menos mais um sítio, onde fez um loteamen-
to. Seus investimentos não pararam por aí, chegando
também ao litoral, onde adquiriu mais três propriedades:
o engenho Boto, na praia de Gaibu (hoje município de e barato – o chamado gado sujeito – e trazê-lo para a
Cabo de Santo Agostinho), o engenho Cananduba, em engorda na fazenda São José, de clima mais ameno e
Jaboatão dos Guararapes, e a granja Pedacinho do Céu, forragem natural. Nos períodos de seca, o rebanho era
entre Jaboatão e Recife, que terá uma grande importân- tocado do agreste para os engenhos Cananduba e Boto,
cia em sua futura vida familiar ao lado de Odete. que tinham melhores condições de pasto.
Depois de passar pelos bancos escolares europeus e A operação, entretanto, tinha seus desafios: na acli-
pelos ciclos sociais cariocas, Adolpho pareceu ter encon- matação ao ambiente mais úmido, a “doença do car-
trado nas novas aquisições uma expressão de seu gosto rapato”, também conhecido como “maltriste” – uma
pela natureza – algo que se aprofundaria cada vez mais moléstia até então inexistente no sertão, mas bastante
nos anos vindouros. Foi quando se despiu de muitos de presente no gado do agreste e no do litoral – começou
seus hábitos urbanos e se entregou de forma apaixonada a elevar a mortalidade do rebanho a níveis alarmantes.
ao campo, optando por viver em casas simples, desprovi- Sabedor, graças à sua formação europeia, das pesqui-
das de qualquer luxo, como ressaltam os que conviveram sas de Louis Pasteur (1822-1895) no combate a doenças
92 com ele. Em suas memórias, Odete registrou assim esse e infecções, Adolpho começou a testar no gado sujeito 93
momento de virada na vida de Adolpho: um soro feito a partir do sangue do gado que já havia
criado resistência aos males do parasita, emulando com
Sua carreira e estudos eram para ser banqueiro e financista. sucesso os benefícios de uma vacina caseira. “Com isso,
Virou para a vida no campo que o atraiu. [...] Então adquiriu as ele conseguia 80% de sobrevivência nos animais. O
partes dos irmãos na fazenda São José e ele passou a explorar gado mais fraco não aguentava o soro, mas os outros
a fazenda e recuperar a grana que havia gasto. criavam anticorpos e o valor deles mais que triplicava”,
conta Adolphinho, que também ressalta em suas anota-
Com o declínio das atividades da Companhia Co- ções o caráter visionário do trabalho do pai no campo:
mércio e Navegação no Nordeste, Adolpho passou a
se dedicar principalmente à criação de gado, ligando Era um ecologista fora de época. Na fazenda em São Cae-
suas terras do agreste às da zona da mata e litoral. A tano criava bovinos e caprinos extensivamente convivendo
lógica mercantilista vislumbrada pelo pecuarista incluía com a seca e se alimentando [o rebanho] das folhas que a
ainda o sertão, onde ia comprar o gado mais castigado caatinga descartava.
Isso porque, além da pecuária extensiva, a fazenda São Revoluções
José possuía também plantações de agave e palma. O
agave servia sobretudo para a produção do sisal, fibra
natural que só começaria a perder valor depois da pro-
pagação da fibra sintética, no decorrer do século 20. A
palma, por sua vez, um cactáceo altamente proteico e
capaz de reter muita água, servia de alimentação do
gado durante os períodos de seca – devidamente mis-
turado com capim seco, bem entendido, para que o
animal não morresse de diarreia em decorrência de
enzimas existentes na composição da planta.
Quando adquiriu os engenhos Boto e Cananduba,
Adolpho chegou ainda a cultivar cana, mas o plantio
94 seria logo abandonado pela dificuldade em negociar A Revolução de 1930 estourou no início de outubro a 95
um preço justo com as usinas do açúcar. No engenho partir do Rio Grande do Sul, Minas Gerais e Paraíba.
Boto também houve em algum momento exploração O movimento visava a derrubada da chamada Repú-
de madeira, mas a verdade é que, com o passar dos blica Velha, em que os interesses das elites regionais
anos, o uso das propriedades litorâneas de Adolpho – se sobrepunham aos da nação, sem espaço de repre-
incluindo aí a granja Pedacinho do Céu – foi ficando sentação para as novas forças e lideranças políticas.
condicionado aos veraneios em família, principalmente A conflagração, que durou pouco menos de um mês,
depois de seu casamento com Odete. depôs o então presidente Washington Luís, impediu a
posse do paulista Júlio Prestes e empossou um Gover-
no Provisório comandado pelo gaúcho Getúlio Vargas,
líder do movimento.
Principal acontecimento histórico nacional da pri-
meira metade do século passado, aqueles dias encon-
traram Adolpho ainda se reaclimatando aos ares de
Pernambuco depois de deixar o Rio de Janeiro – o que plataforma improvisada, possibilitando que veículos
não o impediu de tomar lado no levante, juntando-se e tropa continuassem sua investida. Odete também
aos revoltosos da Aliança Liberal. Na crônica familiar registraria em seus cadernos, década mais tarde, a atu-
registrada por Adolphinho, a participação do pai no ação de Adolpho no conflito:
conflito lhe valheu algum destaque graças à sua expe-
riência como pecuarista e dono de engenho: Participou da revolução com Juarez Távora, Juracy Magalhães
e outros, como tenente oficial [de] ligação, em transporte de
Na Revolução de 30, então como tenente, comandou uma tropas e caminhões.
tropa, grande parte integrada por cangaceiros a que o estado Quando findou a revolução, eles o convidaram para se le-
daria anistia após a Revolução. Destacando-se por sua lide- galizar como militar, mas declinou o convite dizendo: “Fui
rança, pois já tinha experiência na lida com o sertanejo na sua voluntário, mas não para auferir direitos da Pátria”.
fazenda em São Caetano e nas andanças pelo sertão, com-
prando gado e caçando. Em três semanas, os revoltosos do Nordeste, liderados
por Juarez Távora a partir de João Pessoa, subjugaram 97
Não há registro do envolvimento armado de Adolpho os estados de Pernambuco, Alagoas, Ceará, Piauí, Mara-
em algum combate, mas, ainda segundo a crônica fa- nhão e Rio Grande do Norte. A Bahia cairia logo depois,
miliar, sua atuação foi decisiva em ao menos uma oca- quando as tropas da Aliança Liberal já adentravam a
sião. Ao chegar na margem do rio São Francisco, um Capital Federal.
destacamento se viu diante de um problema técnico: Para Adolpho, é provável que os atribulados anos
só havia uma balsa disponível para fazer o transporte 1930 tenham deixado marcas profundas em sua perso-
até o outro lado. nalidade. Tanto que, no final da vida, quando passou
Nesse momento, Adolpho ordenou que os canga- a enfrentar o Mal de Alzheimer, mostrou-se de certo
ceiros sob seu comando requisitassem todas as canoas modo ainda preso àquele período: “Só falava de coisas
disponíveis nos arredores, bem como todo e qualquer da Revolução de 30, do período quando tinha os seus
pedaço de madeira e corda que encontrassem no ca- 20 e poucos anos”, conta Adolphinho.
minho. Enfileirando as canoas e fazendo o lastro com Também para a família Pereira Carneiro a revolu-
as cordas e tábuas, Adolpho construiu às pressas uma ção de 1930 deixaria cicatrizes profundas. Se Adolpho,
apesar de representante da oligarquia agrária, tomou o o cenário de incertezas advindo da Revolução de 1930,
lado da Aliança Liberal, seu tio Ernesto preferiu o lado a derrocada da companhia já tinha sido alardeada por
dos legalistas. Além de ter participado lateralmente do Adolpho anos antes. Em 1937, quando tem início o Es-
governo de Washington Luís, em 1928, como mem- tado Novo, o conde teve seu mandato político cassado.
bro do Conselho Nacional do Trabalho ­(o Ministério Durante o processo de reestruturação editorial e fi-
do Trabalho, Indústria e Comércio seria criado mais nanceira do Jornal do Brasil, que inundaria a publicação
adiante, por Getúlio Vargas), o conde Pereira Carneiro com os classificados pagos à vista e em moeda viva,
apoiou, nas páginas de seu Jornal do Brasil, ainda que Ernesto ainda se aventuraria na recém-estruturada área
de forma discreta, a candidatura de Júlio Prestes na da radiofusão nacional. Dentre as rádios que inaugura-
eleição que deflagrou a Revolução de 1930. ram o período de experiência das concessões federais
Como represália, o diário foi empastelado e proibi- para a área das comunicações — Rádio Roquete Pinto,
do de circular por quatro meses. A partir daí, o Jornal Rádio Clube do Brasil, Rádio Educativa, Rádio Mayrink
do Brasil não conseguiu se recuperar pelos anos se- e Rádio Philips —, a Rádio Jornal do Brasil surgiu em
98 guintes, vivendo durante a era Vargas seu período de 1935 como uma das mais bem equipadas. 99
maior desprestígio. A solução escolhida por Ernesto
foi transformar o jornal num “boletim de anúncios”,
o que terminou lhe rendendo o apelido de “jornal das
cozinheiras”, devido ao grande número de anúncios de
pessoas em busca de um emprego doméstico.
No breve período constitucional do governo de Ge-
túlio Vargas, Ernesto ainda chegou se eleger deputado
pela Assembleia Constituinte em 1933 e deputado fede-
ral pelo Distrito Federal em 1935. Naquele mesmo ano,
Às voltas com as dificuldades políticas e econômicas e
preocupado com o futuro do Jornal do Brasil, Ernesto
vendeu a Companhia Comércio e Navegação para o
empresário paulista Giuseppe Martinelli. Em que pese
O irmão Antônio vencional. Na época, considerando as operações ainda
rentáveis da Companhia Comércio e Navegação, sob o
controle do irmão Adolpho no porto de Recife, tudo in-
dica que por trás da exploração do xisto Antônio tenha
unido o desejo de voltar ao Brasil com a possibilidade
de desenvolver uma atividade que poderia favorecer
os negócios familiares.
A ideia dele era oferecer uma alternativa domésti-
ca ao fornecimento de combustível para os navios da
empresa, substituindo o carvão mineral, que tinha o
comércio dominado pelos ingleses. Durante o tempo
que ficou instalado na fazenda com Jardi, Antônio se
empenhou em tentar purificar o xisto, que deixava mui-
100 Dois anos mais velho que Adolpho, o geólogo e enge- to resíduo nas caldeiras dos navios, dificultando seu 101
nheiro químico Antônio Pereira Carneiro viveu muitos plano de usá-lo como combustível no lugar do carvão
anos na Alemanha. Foi lá que ele conheceu Jardi Hof- mineral. Na memória de Paulinho Burle, os navios da
ferber, de Hamburgo, com quem regressaria ao Brasil, Companhia iam até lá para se abastecer de xisto na
provavelmente no começo dos anos 1930. Ao que se propriedade, que tinha um “porto natural”.
sabe, os dois viviam juntos sem jamais terem se casa- A tentativa de tornar as navegações do negócio fa-
do. A partir de notícias em jornais pernambucanos e miliar mais rentáveis, contudo, encerrou-se de forma
baianos, é possível estabelecer a presença do casal em abrupta um ano depois da chegada de Antônia à Bahia.
Camamu, na Bahia, em 1934, quando Antonio comprou Sujeito de temperamento explosivo, sempre de arma na
uma propriedade na região de Barcelos para a explora- cintura, Antônio foi assassinado em 7 de agosto de 1935
ção de xisto betuminoso. Rico em matéria orgânica, o em circunstâncias jamais esclarecidas. Acostumados
xisto betuminoso é uma rocha sedimentar da qual se a acompanhar o cotidiano festivo da família Pereira
extrai, em altas temperaturas, o petróleo de xisto, que Carneiro, os jornais de Recife deram cobertura do caso
pode ser usado como um substituto do petróleo con- à distância. Morto a tiro, os fatos divergem bastante de
uma publicação a outra –­ dos motivos ao local do crime, comerciais ligados às reservas de xisto:
passando pelo número dos disparos de um revólver ou
de uma espingarda de caça. A notícia ganhou a capa do VEM PARA RECIFE O CORPO DE ANTONIO PEREIRA
Jornal Pequeno em 8 de agosto de 1935: CARNEIRO – Consta que os criminosos se apresentaram
às autoridades
Antonio Pereira Carneiro – Foi ontem assassinado na SÃO SALVADOR, 10 (Meridional) – Com destino ao Recife
Bahia este jovem industrial pernambucano, que ali exer- passou aqui o corpo do sr. Antonio Pereira Carneiro, assassi-
cia a sua atividade nado no lugar Barcelos do município de Camamu.
Telegrama hoje recebido pelo seu cunhado, o ilustre Eu- Consta que os autores do homicídio se apresentaram às
genio Lacerda de Almeida, trouxe a dolorosa notícia do as- autoridades.
sassinato ontem à tarde, em Camamu, na Bahia, do jovem São desconhecidos os pormenores do delito em vista das
industrial pernambucano Antonio Pereira Carneiro. dificuldades de comunicação.
Há cerca de um ano e meio, esse nosso distinto coesta- Presume-se tratar-se de uma vingança de foreiros de ter-
102 dano adquirira por compra importante propriedade naquele renos ricos em xisto betuminoso, recentemente adquiridos 103
município do litoral baiano. pela Comp. Pereira Carneiro.
Ali explorava minas de xisto betuminoso e já exportava
regularmente os seus produtos para a Central do Brasil. Uma semana depois, em 16 de agosto, o Jornal Peque-
Ontem, às 3 horas da tarde, foi assassinado na sua pro- no voltaria ao caso reproduzindo o material da impren-
priedade com três tiros de revólver, desfechados por um des- sa baiana, apontando uma razão mais prosaica e mun-
conhecido. dana: Antonio teria sido assassinado ao se queixar com
Antonio Pereira Carneiro era um moço trabalhador, edu- os vizinhos que teriam matado alguns de seus porcos:
cado, de temperamento folgazão, amigo do seu amigo. Daí as
grandes simpatias que desfrutava nesta cidade, onde nasceu Um jornal de São Salvador, noticiando o lutuoso aconteci-
e onde, por muitos anos, exerceu a sua atividade. mento, assim se expressou:
“O caso prende-se a questões provocadas pelos assassinos
Dois dias depois, em 11 de agosto, o Diário de Pernambu- do industrial Antonio Pereira Carneiro, seus vizinhos de terra,
co traria a primeira hipótese para o crime – interesses questões que se agravaram pelo fato dos criminosos, que se
chamam Barnabé e Moysés de Barros e são irmãos, terem Camamu se desentendeu com o tio. “No bate-boca, o
matado dias antes uns porcos da vítima que tinham entrado cara puxou a espingarda de trás do balcão e atirou nos
nas suas roças. peitos dele”, relata Adolphinho. “A família acha que
Depois disso ainda escreveram eles ao assassinado, nar- foi arrumação dos ingleses. Com medo de perderem o
rando o fato, tendo com o mesmo um encontro no arraial de monopólio do carvão, mandaram assassinar ele. Sem-
Barcelos, em Camamu. pre a família achou isso, mas nunca se provou nada...”
A vítima recebeu vários tiros de espingarda de caça, mor- Já na versão de Paulo Burle, a versão dos porcos
rendo em consequência de uma hemorragia interna, com le- relatada por um jornal de Salvador e reproduzida no
sões no fígado e nos rins. Jornal Pequeno foi só uma desculpa. “A família achava
Logo que se deu o fato, atendendo a um pedido do Conde que os assassinos foram contratados por algum man-
Pereira Carneiro, o chefe de polícia desta capital fez seguir dante”, conta Paulinho. “Como a propriedade dele só
de avião para Camamu o professor [legista] Estácio Lima. O tinha comunicação com a cidade pelo mar, quando ele
exame porém não foi feito ali, dando-se lá apenas o embal- desembarcou do iate, os assassinos atiraram nele, pu-
104 samamento. seram o corpo dentro do iate e soltaram no mar.” 105
A fim de apurar devidamente o fato, seguiu para Camamu Adolpho e seu irmão José chegaram a ir até Cama-
o dr. Ivan Americano, delegado desta cidade, acompanhado mu na tentativa de aprofundar as investigações, mas,
do escrivão. segundo Adolphinho, foram logo demovidos da em-
A morte do sr. Antonio Pereira Carneiro foi muito sentida preitada pelas mulheres da família: “‘Homem, deixa
em toda a zona camamuense, pois segundo se diz, o bom isso para lá. Não vai trazer ele de volta”.
coração do morto vinha trazendo um surto de progresso e Com a morte do Antônio, Jardi Hofferber voltou
trabalho ao município”. para a Alemanha e lá viveria por uns bons anos, no
lado oriental – até o dia em que resolveu escrever uma
Adolphinho e Paulo Burle guardam outros duas versões carta para Adolpho que terminaria provocando uma
para o assassinato, ambas ligadas à disputa pelo forne- reviravolta na família.
cimento de combustível no movimentado circuito do
comércio marítimo do período. Na versão de Adolphi-
nho, o dono de um armazém de secos e molhados de  
Condessa Maurina cifense uma protetora abnegada. [...] O enterramento estava
marcado para ontem, às 4 horas da tarde. Devido porém ao
pedido de parentes da extinta, residentes no Rio, e que on-
tem mesmo à notinha chegaram a esta capital, foi transferido
para hoje às 9 horas. Em câmara ardente, no salão nobre do
palacete da rua do progresso, foi o corpo da condessa Pereira
Carneiro velado, durante à noite e até a saída do préstito fú-
nebre [...]. O ataúde foi transferido para o cemitério de Santo
Amaro em carro de luxo da “Casa Baptista”, acompanhado de
mais de trezentos automóveis.

A condessa seria homenageada ainda em crônica do


jornalista e escritor carioca Benjamin Costallat:
106 Cinco anos depois da venda da Companhia Comércio 107
e Navegação (e do assassinato do sobrinho Antônio), Foi há muitos anos passados, numa noite de Natal, esse Natal
o conde Ernesto Pereira Carneiro ficaria viúvo da con- que dentro de alguns dias ela ia comemorar entre os seus em
dessa Pereira Carneiro, morta em 4 de dezembro de Pernambuco, que eu conheci D. Beatriz.
1940 de “mal súbito”, como a causa foi registrada no Os Condes Pereira Carneiro me haviam convidado, em
atestado de óbito, por falta de métodos diagnósticos represália a uma cronica em que pretendia terem morrido as
mais precisos. O Pequeno Jornal de Recife, onde o casal festas de Natal, a passar a grande noite cristã com eles, a sua
se encontrava para as comemorações natalinas, regis- família e os seus operários em Niterói.
trou o enterro em sua edição do dia seguinte: Nunca um cronista foi tão bem desmentido pelos seus
proprios olhos!
Todas as classes sociais estiveram presentes ao ato fúnebre. E com que prazer irônico a Condessa Pereira Carneiro
Do capitalista ao humilde homem do povo. O ambiente de me mostrou que o Natal de antigamente, o Natal dos nossos
tristeza era altamente expressivo. Perdia a sociedade pernam- avós, que eu havia dado como desaparecido, lá estava perfei-
bucana uma das suas figuras luminosas. Perdia a pobreza re- to e completo na união da família, no amor ao próximo, na
felicidade da fé, na alegria das crianças e na comunhão amiga moradores das duas casas.
entre patrões e operários nessa Vila em que a Condessa pa- A certa altura, com Ernesto já viúvo, esses almoços
recia acumular a ternura das mães e os benefícios das fadas. ganharam a companhia de Marina que, também ela
E, graças a D. Beatriz eu me convenci, e para me convencer recentemente enviuvada, havia voltado a morar com
é que ela me convidara, de que o bom Natal de outros tempos os pais, trazendo junto com ela a filha Leda. Segundo
não havia morrido ainda. [...] Adolphinho, o conde e ela teriam se envolvido quando
Ernesto se viu acometido por uma séria pneumonia e
O período tumultuoso em que Adolpho e Ernesto ocu- Maurina foi ajudá-lo em sua recuperação.
param cadeiras opostas nas trincheiras da política ter- Somente depois da morte do velho Dunshee, em
minaria com uma conciliação simbólica, antes mesmo 1943, o conde e Maurina assumiram o namoro que já
do fim do Estado Novo. Segundo Adolphinho, seu pai durava perto de um ano. O casamento aconteceu em
foi o único a ficar ao lado do tio quando o conde decidiu 1944. Ele tinha então 67 anos de idade e ela, 43. Àquela
casar-se novamente, quatro anos depois de enviuvar. altura, ele já havia se desfeito não apenas da Compa-
108 “Toda a família foi contra o casamento porque teria de nhia Comércio e Navegação, do estaleiro Mauá e da 109
dividir a herança com a outra parte”, conta Adolphi- fábrica de juta, como também da salina e da fábrica de
nho. “O único que o apoiou no casamento foi meu pai, cimento, em Pernambuco. Manteve sob sua asa apenas
tanto que virou padrinho de casamento. Ele escreveu: o Jornal do Brasil e a Rádio Jornal do Brasil – fora o
[...] ‘Meu tio, case com ela porque ela é uma mulher de consideravel patrimônio imobiliário que havia acumu-
fibra e nenhum dos seus sobrinhos vai tomar conta do lado. Sem filhos ou parentes próximos, o conde, como
senhor na sua velhice’.” era temido pelos Pereira Carneiro, fez de Maurina e a
A mulher de fibra em questão se chamava Maurina e enteada Leda suas únicas herdeiras.
era filha do ex-deputado maranhense João Dunshee de Longe de ser apenas uma boa esposa para os últimos
Abranches. Jornalista e colaborador bissexto no Jornal anos de vida de Ernesto, Maurina Dunshee Abranches
do Brasil, João de Abranches era também vizinho de seria, pelas décadas seguintes, a principal responsável
Ernesto na rua General Dionísio, no Humaitá. Desde pelo renascimento do Jornal do Brasil. O jornalismo,
os tempos em que a condessa Beatriz ainda era viva, como ela dizia, estava no sangue. Seu bisavô havia
eram frequentes os almoços dominicais a reunir os fundado O Censor, no Maranhão, e seu pai, criador da
primeira seção especializada em política no jornalis- “O senhor é doido!”
mo carioca, intitulada “Coisas da Política”. Depois da
morte do conde Ernesto, em 1954, Maurina assumiu o
controle do Jornal do Brasil ao lado do genro, Manoel
Francisco de Nascimento Brito – o advogado que Er-
nesto havia contratado para tratar dos assuntos legais
na Rádio Jornal do Brasil. Sob a direção dos dois, o pe-
riódico foi aos poucos recuperando o prestígio perdido
nos tempos de Vargas. Nos anos 1950 e 1960, o Jornal
do Brasil foi impulsionado principalmente pelo jorna-
lismo cultural, com a criação do “Suplemento Domi-
nical” (1956) e do “Caderno B” (1960), e pela reforma
gráfica modernizadora que se tornaria referência entre
110 os diários em circulação. E nos anos 1970, por fazer Enquanto o conde Ernesto se recompunha de sua viu- 111
combativa oposição ao regime militar e à censura. vez e assumia com sua vizinha Maurina o namoro que
Sobre a morte da Condessa Maurina, em 5 de dezem- daria em casamento, Adolpho, no Recife, descobria ele
bro de 1983, o jornalista Otto Lara Resende escreveria: também, na curva dos 40, uma paixão tardia: a aviação.
Amante do esporte e da tecnologia, na definição da ex-
A morte da Condessa Pereira Carneiro representa um em- nora Eliza Pereira Carneiro, Adolpho era, nas palavras
pobrecimento, uma grande perda para a imprensa. [...] Teve a do filho Adolphinho, “um aventureiro, gostava de de-
capacidade de conciliar o espírito de modernidade, que impli- safios, da adrenalina na natureza. Aí ele viu na aviação
cava reformas que o jornalismo exigia por passar um momento uma maneira de desbravar, de viajar, o que não era fácil
de transição, com a experiência e o passado de virtudes com sua naquela época.”
formação clássica. Foi uma pessoa decisiva naquele momento, Os primeiros voos aconteceram na companhia de
teve o privilégio de exercer à plenitude sua profissão e nisso amigos ligados à aviação amadora, em desenvolvimento
marcou o seu pioneirismo, pois era raro, em sua geração, a mu- no Brasil ali pelo período que antecedeu o início da
lher participar de maneira executiva nas atividades jornalísticas. Segunda Guerra. Adolpho logo se apresentou como um
dos fundadores do Aeroclube de Pernambuco, inaugu- Depois de tirar seu brevê de piloto, entre 1943 e 1944,
rado em março de 1940 no Encanta Moça, uma pista de Adolpho, pelas décadas seguintes, não apenas se tor-
pouso localizada em uma das ilhas urbanas do rio Ca- naria o instrutor responsável pela formação de toda
pibaribe que era usada desde os anos 1920 pelo correio uma geração de pilotos amadores no estado como seria
aéreo. “Meu pai sempre voava com os amigos”, conta reconhecido, para usar as palavras de Odete, como “um
Adolphinho. “Depois de ter dois acidentes muito sérios, dos pioneiros do Nordeste na aviação civil”.
resolveu tirar o brevê”. O argumento para tirar a carta Ao longo da vida, Adolpho teve pelo menos três avi-
de piloto, segundo o filho, tinha uma razão bem plausí- ões, todos da marca Aeronca, norte-americana, uma
vel e serve para dar o tom da personalidade de Adolpho: das mais populares nos anos 1940. Foram dois mode-
“Ele falava assim: ‘Rapaz, se eu tiver que morrer, morro los Champion, muito usado no mundo todo para trei-
pela minha mão, não morro pela mão dos outros’.” namento de novos pilotos, com dois lugares – um na
No primeiro dos acidentes que sofreu, Adolpho frente e outro atrás –, e um Chief, com dois lugares,
acompanhava um colega do aeroclube em um monomo- um ao lado do outro.
112 tor J3, do fabricante americano Piper Aircraft, quando Mesmo tendo começado a voar depois dos 40, Adol- 113
teve início um incêndio em pleno voo. Durante o pouso pho sobrevoou os céus do Brasil por “um bocado de
de emergência, o fogo atingiu uma valise no bagagei- tempo”, segundo o filho, fazendo do trajeto Recife-Rio
ro – não se sabe se de Adolpho ou do colega – na qual uma ponte aérea que podia ser transposta em até três
havia uma pistola carregada. Alguns cart uchos foram dias, a uma média de 110 quilômetros por hora pelo ar e
detonados pelo calor, felizmente sem ferir ninguém. com várias paradas no caminho para abastecer: Maceió,
De todo modo, difícil não pensar no sufoco que deve Aracaju, Salvador, Canavieiras, Caravelas, Vitória... E
ter sido pousar um monomotor em chamas enquanto ia assim, pingando feito bonde, até chegar ao destino.
tiros eram disparados aleatoriamente. Nos tempos áureos, Adolpho mantinha campos de
O segundo acidente de avião sofrido por Adolpho pouso em cada uma de suas propriedades. Seu sobri-
foi aquele do litoral da Bahia descrito no início deste nho e afilhado Paulo Burle, 27 anos mais novo que ele
livro – e esse, vimos, só não teve um fim trágico pelo e hoje com 92 anos, lembra da pista na fazenda São
louvável sangue frio de Adolpho enquanto via suas tri- José com um retoque saudosista: “Era perigoso porque
pas à mostra. tinha umas cercas vivas de avelós muito espessas na
cabeceira, o que criava umas correntes ascendentes e Tentamos contratar um jangadeiro para nos levar aos arre-
descendentes danadas, as ondas de calor mudando a cifes, que eram muito longe, mas o pessoal não quis levar.
direção do vento o tempo todo”. “Essa praia tem tubarão, é muito perigoso”. Nós então caímos
Uma vez Adolpho colocou o sobrinho para aprender n’água e fomos nadando.
a pousar no campo. Depois de vários gritos, Adolpho
largou o manche na mão de Paulinho: “Eu só pensava O dia passou até que a turma que havia ficado em terra
‘Ai, meu Deus do céu!’, mas consegui pousar muito bem, começou a se preocupar. No fim, não houve nenhu-
apesar do susto”. E não foi só no ar que ele passou por ma surpresa grave – a não ser para Paulinho, o mais
apuros ao lado do tio. Adolpho também tinha paixão novo do trio, a quem coube rebocar no braço todos
por pesca submarina, como registra Odete em suas os peixes pescados.
memórias: Se saiu ileso do mar de tubarões, Paulinho não es-
caparia de grandes sustos ao lado do tio-padrinho nas
Fizeram grandes pescas submarinas em Gaibu, Nazaré, Su- aventuras que faziam de motocicleta pelas estradas do
114 ape. Muitas vezes, ele sozinho ia até as jangadas do pescador país. Correr sobre duas rodas, vale dizer, não era uma 115
Ramiro, chegava a pegar 60 quilos de peixe e dividia com o paixão exclusiva de Adolpho, mas estendia-se também
pescador. [Uma vez] Chegou em Nazaré descendo sozinho aos irmãos. De uma fazenda outra ou pelas ruas de
pelo forte e mergulhou no mar. Desta vez, arpoou um melro Recife, sempre era possível ouvir o ronco da moto de
de 180 quilos e veio rebocando. Na entrada da barra, ele pediu: algum Pereira Carneiro. Juntos, participaram de inú-
“Me ajuda a puxar este peixinho”. Quando o pescador Ramiro meras provas amadoras de velocidade, fosse em moto-
viu o tamanho do peixe, disse: “O senhor é doido! O peixe é cicletas ou nas “baratinhas” de então. Arlindo, o irmão
maior que minha jangada”. mais novo do segundo casamento do pai, foi não apenas
um exímio motociclista como chegou a ser campeão
Uma vez, Paulinho, um primo e Adolpho saíram para sul-americano.
fazer pesca submarina – esporte em que, segundo Pauli- O espírito aventureiro do jovem Adolpho pelas ruas
nho, eles foram os pioneiros em Pernambuco – em Bar- da zona norte do Recife foi mencionado em matéria
ra do Suape, ao sul do cabo de Santo Agostinho, onde de capa da Folha da Semana de junho de 1976, em um
hoje fica o maior porto do Nordeste. Conta Paulinho: perfil sobre seu pai, Camillo:
Entre os seus filhos, destacou-se pela sua vivacidade, inteli- com delicadeza perto do sobrinho, passou a mão em
gência e espírito altamente conceptível, o fazendeiro e impul- seu rosto, viu que estava todo ensanguentado e orde-
sionador da aviação civil em Pernambuco, sr. Adolfo Pereira nou que os dois esperassem ali enquanto ele buscava
Carneiro, em sua vigorosa mocidade um jovem de coragem ajuda. Passadas algumas horas, vendo que só havia
e destemeroso que revolucionava, em toda a sua extensão, a sofrido algumas escoriações e já se sentindo melhor,
antiga Avenida Caxangá, onde o “ronco” estridente de sua Paulinho resolveu escalar o morro, subir na moto e ir
passante motocicleta era ouvido por todos os seus habitantes embora com o irmão. Quando Adolpho chegou com o
que ficavam ao longo da citada avenida, apreciando as diabru- resgate, não havia mais sombra dos dois. Dias depois,
ras do seu destemido condutor. quando finalmente se reencontraram, Adolpho partiu
para cima do sobrinho: “Depois de gritar ‘Agora você
Ainda sobre as agruras do jovem Paulinho ao lado do vai me pagar!’, ele pegou o Lysoform e foi jogando em
tio, certa vez ele e o irmão resolveram ir de motocicleta todas as minhas feridas! Esse era o tio Adolpho”, lem-
do Recife ao Rio para tirar o brevê de aviação. Adolpho bra Paulinho, aos risos.
116 resolveu se juntar à expedição. Estavam a caminho de Uma última historinha. Paulinho, certa feita, dirigia 117
Paulo Afonso, na Bahia, quando a moto de Adolpho uma moto do tio tio na praia de Boa Viagem quando
ficou sem farol à noite e, por prudência, ele passou a bateu em um carro. Foi então dar a notícia ao dono:
andar no meio dos dois sobrinhos. A certa altura da “Tio, tenho uma notícia péssima para lhe dar.” “O que
estrada de terra, Paulinho passou à toda velocidade foi?”. “Eu bati com a sua motocicleta.” Adolpho, sem-
por cima de um monte, derrapou e, ao ver que se cho- pre com presença de espírito, sentenciou: “Minha não,
caria contra a balaustrada de uma ponte, saltou sem tua”. Tempo depois, mandou a motocicleta de navio
pestanejar na ribanceira. Foi rolando até finalmente para o sobrinho no Rio.
estacionar lá embaixo. Ainda atordoado e sem conse-
guir falar depois de ter levado uma pancada forte no
abdôme, Paulinho ouviu o tio dizer lá no alto para seu
irmão: “Dessa vez ele morreu…”.
Quando Paulinho finalmente conseguiu gritar, Adol-
pho deslizou imediatamente ribanceira abaixo, chegou
Haréns mulherengo, mas só se envolvia com mulheres humil-
des, nunca com garotas da sociedade”, conta Paulinho,
que se lembra bem das farras promovidas por Adolpho
no Engenho Boto. “Nós tínhamos uma relação de ami-
go, muito amigo, fizemos muita farra juntos.”
Mais do que os deslocamentos constantes entre Re-
cife e os engenhos, Adolpho se dividia entre os negócios
e as mulheres – ele chegou a ter 12 companheiras simul-
taneamente, uma média de três em cada propriedade.
E bem à sua maneira, encontrou um jeito de conciliar
os interesses, envolvendo-as na administração e nos
cuidados que as propriedades demandavam. Com o
seu jeito sem filtros, de falar abertamente “a verdade”,
118 No ar, no mar, na terra... e nas alcovas da vida. Dizem as organizou em equipes – ou haréns – de acordo com
que quando Adolpho passava em cima da sua moto na os perfis de cada uma e as possibilidades de interação
rua Imperial, no Recife, onde tinha casa, saias esvoa- entre elas.
çavam entre suspiros: “O mulherio endoidava”, nas De acordo com Adolphinho, na franqueza em que
palavras da ex-nora Eliza. os vínculos se estabeleciam, era uma troca em que to-
O perfil “raparigueiro” de Adolpho, para usar um ter- dos se beneficiavam de alguma maneira, sem ressen-
mo do filho, nunca foi segredo para ninguém. Avançado timentos. “Ele tinha a ética dele, achava que ter duas
na vida adulta, manteve o comportamento da juventu- ou três mulheres não tinha problema, desde que elas
de, ligando-se a várias companheiras em relacionamen- soubessem”, afirma ex-nora. “Para ele, mulher não era
tos em que não prometia nem exigia exclusividade. Até negócio de dondoca, não. Mulher era para produzir,
que resolvesse se casar, aos 45 anos, as relações eram tratorar, fazer tudo.” Paulinho completa: “Em cada fa-
abertas, com raríssimas exceções que confirmavam a zenda, meu tio tinha uma principal, que chamava de
regra, sem jamais se envolver com moças das famílias secretária, e no mínimo mais três empregadas. Aquilo
do círculo de amizades dos Pereira Carneiro. “O tio era tudo fazia parte de seus haréns.”
Assim, enquanto uma era responsável pelo pesso- Odete
al, outra tomava conta do financeiro e uma terceira
supervisionava o rebanho. E o patrão tinha namorava
com todas. Adolpho acreditava que era uma troca mais
do que justa por tê-las ensinado sobre contabilidade,
administração e outras tarefas do campo. “Ele ensinou
todas elas a trabalhar, tanto é que todas essas mulhe-
res que estiveram sob o domínio dele arranjaram um
bom casamento ou um bom emprego depois”, conta
Adolphinho.
Adolpho, segundo o filho, adorava pregar que dinhei-
ro só se coloca na mão de mulher. A justificava era
um tanto particular. “Porque a mulher se bem não lhe Os dois se conheceram em 1947, no Club Português,
120 quiser, mal não lhe quer”, dizia. “Já o homem, é seu um dos endereços em que a sociedade recifense se en- 121
concorrente em tudo. Para arranjar mulher, ele vai ter contrava para festejos e a atualização cotidiana de seus
que pegar dinheiro em algum canto. A mulher não, se casos e acontecimentos. Adolpho já corria os 43 anos e
um homem a quiser, quem vai gastar é ele, não ela.” No Odete, 27. Filha do engenheiro José Apollinário de Oli-
fim, Adolpho sempre arrematava: “meu filho, eu devo veira, “director das Obras públicas” de Recife nos anos
o que tenho às mulheres que tive”. 1920, homem público em vários governos estaduais, e
E então veio Odete. de Ernestina Robalinho de Oliveira, Odete fazia parte
de uma tradicional família pernambucana com sangue
indígena em suas origens.
Educada no Colégio das Doroteias (atual colégio
São José), em Recife, onde desenvolveu hobbies como
bordado, carpintaria e pintura, há certa divergência
sobre o dia de seu nascimento. Enquanto seus escritos
pessoais registram o aniversário em 6 de julho, o co-
lunismo social de Recife festejou seus primeiros anos estava escrevendo sobre a vida dela”, conta Adolphinho.
em outra data. Está lá, na edição de 9 de julho de 1921 “Minha filha Bethania achou esses cadernos em que
em A Província: ela conta muitas histórias e fala muito da convivência
com o meu pai.”
Fazem [sic] annos hoje [...]: a interessante Odette, filhinha A marcação de Adolpho em cima de Odete já vinha
do sr. José Apollinario de Oliveira, conceituado engenheiro, acontecendo havia algum tempo, mas a fama de mu-
e de sua exma. consorte d. Ernestina Robalinho de Oliveira”. lherengo, que ele jamais procurou mascarar, o levou a
acreditar que eram remotas suas chances com a filha
A mesma informação (dessa vez sem o erro gramatical dos Robalinho de Oliveira, professora concursada da
inicial) é reproduzida no Jornal de Recife, em 9 de julho Escola de Aplicação de Recife, onde lecionava artes e
de 1924: ofícios. Decidido a enfrentar as eventuais resistências,
Adolpho havia mobilizado amigos em comum para a
Faz annos hoje a graciosa Odette, querida filhinha do illustre aproximação e se esmerou no flerte, que culminaria
122 dr. José Apollinario de Oliveira e de sua exma. esposa d. Er- numa manobra aérea sobre a propriedade dos futuros 123
nestina Robalinho de Oliveira. sogros, em Xexéu, na Zona da Mata pernambucana, a
cerca de 15o quilômetros de Recife, na divisa com Ala-
Crescida entre as propriedades da família – o en- goas. Os episódios aparecem nas memórias de Odete:
genho Oriental, de produção de açúcar, em Xexéu, na
Zona da Mata pernambucana, a cerca de 15o quilôme- Aos 43 anos, ele decidiu que deveria constituir família. Disse
tros de Recife, na divisa com Alagoas, e a casa de granja ele que, por diversas vezes, havia me encontrado em diversos
na então distante Sucupira, em Jaboatão dos Guarara- eventos nos clubes sociais, mas não concedia que eu lhe desse
pes, município vizinho a Recife, hoje integrado à região atenção. Dizia a um amigo em comum toda vez: “Esta é uma
metropolitana da capital –, Odete cultivou desde cedo moça com quem eu quero casar”.
uma veia memorialista em uma série de anotações ma- Numa festa no Clube Português (São João), quando depa-
nuscritas em cadernos e folhas soltas, a grande maioria rou-se com a mesa onde eu encontrava-me com parentes, me
sem data. Muitas delas seriam revisitadas com acrésci- cumprimentou e eu respondi ao gesto, sorrindo. Ele tomou
mos detalhando as histórias e lembranças: “Minha mãe coragem, aproximou-se, pediu licença a Napoleão e Mario,
meus primos, e tirou-me para dançar. Apresentou-se enquan- entrei de férias e fomos para o engenho Oriental ao encontro
to dançávamos, conversamos, trocamos ideias. Ao voltar a de mamãe. Chegando no engenho já fazia mais de 10 dias, no
mesa, apresentou-se ao casal amigo. dia 26/7, para nossa surpresa começou o avião DCM Aeronca
Passou junho, houve festa de aniversário [no clube] Inter- a sobrevoar dando voos rasantes. Reconhecemos ser ele e o
nacional, nos encontramos, ficou só nisso, deu-me o número irmão [José]. Depois de muitas voltas, jogou um pacote de
de telefone, eu jamais telefonei, nunca mais ouvi nem o vi. chocolate, 2 kilos, e um bilhete – “Volto amanhã”.
No dia 6 de julho, meu aniversário, recebi minhas colegas Dito e feito. Acontece que ele deu uns voos em cima do
e primas à tarde, pois pretendia ir ao cinema. Só estavam morro e meu irmão providenciou logo os trabalhadores e des-
em casa eu e Yvete [irmã]. Mamãe já se encontrava no en- tocou uma área, onde ele pousou.
genho com Newton [irmão]. Carmem e Niveline [irmãs] já Fizeram lanche reforçado, ele gostou muito de mamãe e
estavam casadas. Newton. Depois foram continuar o desmatamento, ele, José,
O telefone toca às 18 horas, era ele, que queria muito Newton e os trabalhadores.
conversar, trocar ideias. “Pois não”, eu disse. “Dentro de 20 No dia seguinte, 27/7, após o almoço, ele falou a mamãe
minutos estarei aí. Pode ser?”. “Sim”. Não deu 5 minutos, o sobre as intenções dele, queria que ela permitisse e gostaria 125
sino do portão tilintou. Ia logo entrando. Eu desci as escadas de casar dentro de 30 dias. Mamãe apavorou-se, “não pode ser,
correndo, pois ele ia entrando. Perguntou “posso entrar?”. uma moça tem que se preparar”. “Não precisa nada”, disse
“Não, não sei seus intenções”, eu estava só com Yvete. ele, “já tenho mais de uma casa montada”. Terminou mamãe
Frente à nossa casa, residia o D. Maria Estrela, tia de José permitindo que o casamento só podia ser em novembro. Ele
Lopes (estreliana). Esta senhora, toda vez que tocavam no sino marcou 6/11.
da nossa casa, ela ficava o tempo todo na janela bisbilhotando.
Não deixei entrar, ficou passeando comigo na calçada de A decisão de casar foi determinada pelo mesmo prag-
mãos dadas e conversando. Isto durante 2 horas. matismo que marcou toda a vida amorosa de Adolpho.
Dona Estrela não saía da janela. Se com as companheiras com quem estabeleceu rela-
Despediu-se, mas eu não disse nada a ele que era meu ções mais estáveis em seus haréns o elo era as mulheres
aniversário. Ele estranhou bastante por eu estar tão bem ar- e o trabalho, quando se interessou por Odete, o objeti-
rumada em 5 minutos, coisa rara em uma mulher. vo era constituir “família legal”, como ele mesmo dizia,
Nunca mais o vi depois deste dia. Na semana seguinte, e deixar um herdeiro.
Já em sua quarta década de vida, idade vista, à época, Convidara-me para experimentar se eu acertaria no alvo.
como avançada para casar pela primeira vez, sobretudo Não me fiz de rogada. Participei e não perdi nenhuma vez,
se considerarmos que seu pai morrera aos 50, Adolpho sempre acertando o alvo.
resolveu agir. Não que inexistisse espaço para o amor. Os amigos fizeram uma gozação, “abre teus olhos, ela é
Mas o sentimento estaria sempre em desvantagem na boa no tiro”. Mesmo assim ele ficou orgulhoso e satisfeito.
disputa com seus outros interesses, principalmente o
trabalho e o sexo – inextrincáveis na administração de O casamento foi celebrado na Igreja de São Pedro, em
suas propriedades e de sua vida. Olinda, com Odete sendo conduzida ao altar pelo ir-
“Quando encontrou a tia Odete”, conta Eliza, “Ele mão Newton. À noite, dona Ernestina, a mãe da noiva,
se apaixonou. Porque ela era linda, já não era nenhuma oferecereu um jantar aos convidados na casa da família.
menina. O pai dela era engenheiro, secretário de estado, Os planos da lua de mel no Rio de Janeiro, para uma
já tinha sido secretário de outros governos, inimigos. temporada com o Conde Ernesto, seriam frustrados
Uma pessoa inteligente, preparada.” na manhã seguinte à noite de núpcias, passada na re-
126 Fisgado por um sentimento novo e inebriante e sidência onde morariam, a granja Pedacinho de Céu: 127
vendo que havia conseguido vencer a resistência ini-
cial da família, Adolpho se desdobrou na corte à noiva, No dia seguinte, eu fui acometida de uma forte febre o que
incluindo-a em seu círculo de amizades e mesmo nas deixou Adolpho muito apreensivo, mas antes que ele chamas-
atividades mais masculinas, sem que Odete se fizesse se meus familiares vieram logo calafrios violentos, vômitos.
“de rogada”, como ela mesmo registrou: Ele reconheceu logo uma crise de impaludismo grave, pois já
havia tido esta febre palustre. Chamou de imediato Dr. Paulo
Neste período do dia 2 de agosto, quando retomei a Recife, Correia de Araújo que me medicou de imediato. Era para via-
ele ia sempre a nossa residência, ficávamos conversando e nos jarmos para o Rio de Janeiro logo após, o que foi impossível.
conhecendo. Saímos algumas vezes juntos. Somente após quinze dias foi que viajamos para o Rio. Ele
Ele começou a dar-me aulas de direção no carro. Formos despachou o carro e a bagagem de navio.
ao aeroclube, do qual ele era sócio e também instrutor. Ele Fomos no teco-teco Aeronca da propriedade dele e ele
apresentou-me aos outros sócios. mesmo dirigindo. Saímos às 7 horas do aeroclube, pousamos
Dias após houve um torneio de tiro ao alvo. às 14 horas em Canavieiras, Bahia, onde pernoitamos e viaja-
mos no dia seguinte às 7 horas e chegamos ao aeroclube de Vida de casado
Manguinhos às 14h30 do dia seguinte. Fomos hospedados na
residência do tio dele, Ernesto Pereira Carneiro, e tia Mauri-
na, a segunda condessa. O tio de Adolpho, dono do Jornal do
Brasil, disse que enquanto ele fosse vivo, Adolpho teria que
ficar na casa dele toda vez que fosse ao Rio. [...]
Passamos o mês de dezembro. No Natal e Ano Novo, com-
pareceu toda a família, houve uma reunião dos sobrinhos e
sobrinhas para conhecerem a esposa de Adolpho. Fizeram
muita pilhéria, que até que enfim ele fora fisgado e que entrou
no rol dos sérios e responsáveis.

128 Adolpho e Odete construíram o novo lar da família Pe-


reira Carneiro na granja Pedacinho do Céu, em Ja­boatão
dos Guararapes, município vizinho a Recife. Hoje inte-
grada à região metropolitana da capital, àquela época a
propriedade de 181 hectares era distante e tranquila o
bastante para fazer jus ao nome com o qual havia sido
batizado. E granja, sim, porque Adolpho mantinha lá
um pequeno rebanho de “80 vacas semiestabuladas” a
sustentar uma produção de leite suficiente para abas-
tecer hotéis e padarias de Recife. Não só, como conta
Odete em seus escritos:

Vendíamos leite na própria granja e havia distribuição nas


portas das padarias. Os tambores tinham torneiras e saíam
lacrados da vacaria a fim de evitar furto pelo vendedor (tira- nados a correr. Levava para fazenda e lá soltava nos pastos.
dor), para não poder batizar o leite. Uma determinada época, Só comiam pasto e bebiam água e assim adquiriu através das
[...], a sociedade pública fez uma sindicância nas vacarias e éguas ótimos animais e reprodutores.
encontraram muitas irregularidades. Realçou que a única em
que encontrou o leite 100% puro foi a Pedacinho do Céu, de Espírito urbano mais do que do campo, embora não
propriedade de Adolpho Pereira Carneiro. desconhecesse a lida rural do engenho de açúcar da
família, Odete se desdobrou com entusiasmo em todas
Pouco dado a luxos e caprichos, desde sua juventude as frentes de trabalho ao lado do marido. Conduziu
aristocrata, Adolpho jamais se preocupara até então tratores e caminhões levando a madeira “destocada”
com a ambientação das residências em suas proprie- para os oleiros na beira do rio onde eram cozido os
dades. Crescido no casarão dos pais, na Várzea, com tijolos para as benfeitorias nas instalações da fazenda,
temporadas no cinematográfico palacete dos Pereira da taipa à alvenaria. Planejou reformas e ampliações
Carneiro em Londres e na mansão do tio Ernesto no na casa grande ajudando pessoalmente na limpeza e
130 Rio de Janeiro, ele só voltaria a se preocupar com con- remoção da dita metralha, ou seja, o entulho. Vacinou o 131
forto quando passou a dividir a vida com Odete. gado e organizou o abate para marcar as peças de carne
A pedido do marido, Odete abandonou a rotina de após os magarefes “arriarem” o couro dos animais. E
professora para acompanhá-lo no constante tráfego ainda se juntou ao marido para enfrentar o boicote dos
entre a granja Pedacinho do Céu e a Fazenda São José, produtores ao gado da São José:
em São Caetano, onde Adolpho já passava a maior parte
do tempo, à frente principalmente da criação extensiva Cheguei a vender carne no açougue, pois os marchands sus-
do gado bovino, caprino e ovino, mas também de ca- penderam a compra do boi a fim de forçar Adolpho a baixar
valos, com o uso eventual em provas do Jockey Club o preço. Ele perguntou se eu topava atender e vender a carne
de Recife (ele e o irmão Antônio eram assíduos nas no retalho, concordei. Ele comprou duas tarimbas (compar-
provas de turfe, com passagens pela criação esportiva). timentos), eu fiquei na primeira [...] e a auxiliar atendia na
Conta Odete: outra, [a] Bernadete. Sustentamos esta venda quase um ano
vendendo a carne mais barata, sendo que o preço deles era de
Adquiriu no Prado os animais de corrida que estavam conde- 8 cruzeiros, nós vendíamos por 5 até 6, no máximo, e ainda
nos deixava lucro. Seu Faustino, o vizinho da tarimba anexa, sim. Só não fiz decolar ou aterrissar. [...]
dizia pra mim “a senhora não devia estar aqui, mas sim numa As viagens eram ótimas. No Rio, íamos passear e aterris-
rede no terraço da casa grande como um romance na mão”. sávamos nas praias, fazíamos pic-nic, eu e ele.
Eu sorria com a proposta dele. Depois de quase um ano, eles Todos se admiraram e me jugaram corajosa em fazer estas
resolveram retomar a compra novamente, então nós alugamos viagens com ele. Lógico, tinha de demonstrar confiança nele
o espaço a terceiros. [...] e acima de tudo em deus. Ele antes de voar elevava o pensa-
Durante o período de janeiro de 1948 até o nascimento do mento a Deus e se benzia.
meu tesouro, eu sempre participei intensamente de todas as
atividades das fazendas e da Granja. Todo o setor de escri-
turação, controle de pagamentos de impostos e controle s
bancários, transações em cartórios, recebimentos, aluguéis
etc. Toda correspondência era feita por mim.

132 Paralelamente à parceria no trabalho, já uma especia-


lidade dos relacionamentos menos formais de Adol-
pho, o casal compartilhou experiências de intimidade
e confiança mútua, também lembradas com nostalgia
nos escritos de Odete. A demora na gravidez era ainda
apenas uma sombra na relação que ia sendo construída
sem maiores solavancos:

Nas viagens de teco-teco, era somente eu e ele nos quatro


anos em que não havia o filho. Ele me entregava a direção, nas
alturas, e me dizia “mantenha o ponteiro nesta posição”, o
único instrumento era a bússola. Quando por qualquer coisa
saía o ponteiro do lugar e o avião balançava, ele acordava e
dizia “Epa, o que houve?”. Muita coragem e confiança, isso
Hilde, a reprodutora paralela, por isso o arranjo depois de um tempo dei-
xou de ser uma questão entre eles. “Uma dessas três
mulheres do meu pai, inclusive, ficou muito amiga da
minha mãe. Chamava-se Irene. Mais tarde, ela se casou
com um grande comerciante do ramo do tecido, em São
Paulo. E sempre que vinha a Recife, todo ano, passava
uns dias lá na casa de minha mãe”.
Ainda segundo Adolphinho, Adolpho, quando ca-
sou queria ter doze filhos. “Até escolheu o nome dos
seis primeiros”, conta. “Passou-se um ano, dois, passa-
ram-se três, quatro, e nada de minha mãe engravidar.”
O desapego de Adolpho pelas convenções sociais era
tamanho que, diante da dificuldade de ver a gravidez
134 Desde seu casamento com Odete, Adolpho reduziu de Odete concretizada, seu pragmatismo falou mais 135
consideravelmente as atividades extraconjugais, levan- alto. Por se saber fisiologicamente apto à procriação,
do sua vida paralela com relativa discrição nas pro- já que antes do casamento havia determinado que pelo
priedades distantes de Recife e desmontando pouco a menos uma de suas amantes abortasse de um filho seu,
pouco a estrutura de seus haréns. Mesmo assim, nunca Adolpho maquinou uma solução final.
chegou a desativar completamente sua rede de aman- E é exatamente aqui que entra mais uma vez em cena
tes-administradoras – segundo contam, teria mantido a alemã Jardi Hofferber, a companheira do irmão Antô-
pelo menos três de suas chamadas “secretárias”. Odete nio, assassinado na Bahia sob circunstâncias nunca de
conhecia bem o histórico do marido e se resignou a todo esclarecidas. Não se sabe ao certo quem recorreu
lidar com as circunstâncias, não sem pensar uma vez a quem primeiro: se Adolpho a Jardi, em busca de uma
ou outra em desistir. jovem alemã que pudesse lhe dar um filho, ou se Jardi
O pai, para adolphinho, apesar de sempre ter sido a Adolpho, querendo voltar ao Brasil, dadas as dificul-
“muito dominador, muito ditador”, era também muito dades enfrentadas na Alemanha cindida do pós-guerra.
honesto e sincero, jamais escondeu de Odete sua vida Fato foi que Adolpho resolveu transformar a dificul-
dade de Odete em engravidar na grande oportunidade quando a correspondência foi iniciada – nem em que
de colocar em prática uma recorrente fantasia ariana termos Adolpho fez sua solicitação. Não há como saber
da qual se revelou adepto. “Papai dizia: ‘Rapaz, se se se sua intenção, como teria sido exposta a Odete, foi
seleciona todos os animais, por que o mais importante, declarada explicitamente às duas alemãs. Na transcri-
que é o ser humano, ninguém faz seleção?’”, lembra ção a seguir, estão preservados a ortografia da época e
Adolphinho. “Ele então chegou para minha mãe e disse: os erros de ortografia e sintaxe do português de Jardi,
‘Olha, eu vou trazer essa alemã para tirar raça, porque como datilografados:
você não tem família’”. Mesmo acatando a decisão do
marido, Odete sofreu muito, embora não se possa dizer Prezado Sr. D. Adolpho,
que tenha sido surpresa para ela. O assunto está lá em Foi com o máximo agradecimento e com muita alegria que
seus registros pessoais: recebi as Suas agradáveis linhas. Faça O Sr. o favor de dar-me o
antes possível a certeza de que poderei emprehender a viagem
[Adolpho] Era adepto da seleção da raça humana, da esterili- dentro de breve tempo. De accordo com que o sr. já o intimou
136 zação dos presos e do trabalho nos presídios. na sua carta, eu julgo também como ser o mais acertado e 137
recommendavel fazer a viagem em voo, por aeroplano.
Eliza Pereira Carneiro reforça a aspiração ariana de seu No que diz respeito á bagagem de mim e da menina Hilde,
ex-sogro: “Quando ele botava anúncio no jornal para poderemos cada uma levar comnosco 60 livras, sendo em
pegar funcionário, já dizia que não queria negro”, conta. total 60 Kilos. Eu já tenho vendido quasi a totalidade das
“Ele queria procriar como um ariano puro.” Foi nes- minhas coisas e existe a possibilidade, eventualmente, por
se contexto que Adolpho pediu a Jardi que trouxesse uma occasião pelo navio, para Hilde e para mim, fazer seguir
junto com ela, em seu retorno ao Brasil, a jovem Hilde alguma roupa branca e alguns objectos pessoaes; talvez, se
Hildegard, egressa da Juventude Hitleriana, instituição isso der, aqueles artigos ficarão na custódia da mãe de Hilde
de formação obrigatória para crianças e adolescentes por algum tempo, e ocasionalmente hão de seguir mais tarde
na Alemanha nazista. por algum navio.
Uma carta de Jardi, enviada de Hamburgo a Recife O Senhor Wiedemann tinha inteiramente razão quando
com data de 26 de abril de 1949, pressupõe um mo- dizia, que por navio sería mais económico quando se dispõe
vimento prévio de Adolpho, mas não há registros de de muita bagagem; mas, dado o caso que o total se encontra
reduzido a só duas caixas, inclusos os haveres da menina Hilde, pode – conversar relativamente bem naquela língua.
estaríamos nos duas muito felizes se poudessemos fazer a Ela é ambiciosa, correcta e muito inteligente, honesta e
viagem por aeroplano. cordial e graciosa pessoa. – Sou muito feliz e alegre ter uma
Muito gratas e obrigadas recebemos nós duas aqui a Sua pessoa jovem ao meu lado, e da qual estou certa e segura que
garantia; eu queria mencionar que eu e também a menina Hil- haverei de omorificar-me perante V. Quando lhe traduzi á
degard, estamos inteiramente conformes com o ordenado de menina Hilde que ela podería aprender voar em aeroplano nos
Cruz. 300. – para cada, com manutenção livre e habitação livre, serviços de V., respondeu quieta e socegadamente: Procurarei
de accordo com que o Sr. o tem determinado. Comprehende- fazel-o; posso imaginar-me bem quando V. e sua estimada
se com clareza para mim, que a confiança que tu estabeleces esposa verão á menina Hildegard dando uma olhada á cara
para comigo e Hildegard, será devolvida reciprocamente e V. inteligente d’ela, estarão completamente satisfeitos, e aquillo
plenamente e mais ainda. me fará e me deixará inteiramente feliz, porque eu tenho feito
Com respeito a Sua pregunta que o sr. fez concernente as e resolvido então uma tarefa um tanto escabrosa e combinada
habilidades de que dispõe a menina Hilde quero dizer que um tanto com responsabilidade.
138 ela senhoreia tudo quanto se exige num predio domestico No que se refere a mim, encontrará tudo quanto em mim
europeo, é dizer sería o seguinte: Cozedura, cozer de bola- o que desejará –, e esforçarei-me para saber-lhe contento.
chas, pasteis, preservar frutos, e hortaliça, tratar roupa: lavar, Scandinavian Airlines System. Hamburgo-, Hauer Jung-
engomar; ela sabe arrangar e raccomodar a roba d’ela para fernstieg
ela mesma, em base de recortes ou padrões, obra de agulha; Esta linha, conforme apurei em todas as minhas informa-
actualmente está empregada como assistente num laboratorio ções, é a melhor linha aérea que se póde considerar para nos.
chimico; fez o seu exame de baccalaureat ha um anno; serviu Desde Hamburgo á Copenhagen-Geneva-Lisboa-Dakar-che-
tambem durante um anno num prédio agricultural (em casa gada a Reçife: duração de voo 1 dia até 1 1/2 dia. !!
de um camponez); está aficionada para a musica, recebe li- O preço compreende a transporte de 60 livras de bagagem
ções de rabeca (viola d’arco), e tem lições de canção. Canta por pessoa, o que já mencionei acima.
bem. – No que diz respeito ao sport: ela quis fazer-se mestra Já tenho dado a esta Linha o endereço de V. – é dizer: Rio
de sport, e posso dizer que ela está bem instruída no sport, de Janeiro, Jornal do Brasil, –
antetudo no nadar; não sabe conduzir automóvel; mas ela Ainda menciono que na quarta feira vindoura, primeiro
poderá aprendel-o dentro de breve. Linguas: sabe bem o inglês de maio, receberei o Exit—Permit para mim e Hilde. Todos
os comprovantes e papéis para a minha viagem e para Hilde Assino-me, com cordiaes saudações e abraços
para a Missão Brasileira estão acabados e já se acham em mãos A sua feliz
da Entidade ingleza, e já recebi os parabéns para a viagem da Jardi
Sraa secretaria da Missão Brasileira, senhora que gentilmente
me assistiu nos meus esforços. No Brasil, não há notícias de que Hilde e Jardi te-
Prezado sr. Adolpho; falta assim somente uma coisa: é o nham mantido qualquer tipo de relacionamento, apesar
pagamento da quantia para a vinda do avião; eu devo ter aqui do vínculo em comum com Adolpho. Segundo Paulinho
na Allemanha a confirmação de que o pagamento foi feito Burle, Jardi era cartomante e chegou a atender alguns
para mim e para Hilde, diversamente não podemos partir. integrantes da família Pereira Carneiro. COnclui-se,
Naturalmente porém, se V. deve contrahir os postes o logares com isso, que, para além dos termos do acordo expres-
para mim e Hilde, em tal Companhia. so nas cartas trocadas, Adolpho se responsabilizou de
Em fim, tenho feito tudo, vae a zumbir-me a cabeça, já es- alguma maneira por Jardi, que teria vivido em Pernam-
tou quasi a meio caminho na viagem; a Hilde já está dando sal- buco, no Rio e em algum lugar entre Poços de Caldas e
140 tos no aire, e está bem curiosa a saber o que vae desenrolar-se. Campos do Jordão, onde perderia uma casa destruída 141
Para não esquecel-o, no caso de o Sr. ter um desejo qualquer em uma enchente.
no respeito de acquirir este o aquel artigo para trazel-o para
lá, para V. o para a Sua esposa, faça favor de communical-o
dentro de breve com a maior rapidez.
Para mim. De valores, me comprarei uma bela sortija, e o
que mais me alegrará: um aparelho receptor cinematograffi-
co com tamanho 20 x 14 x 6 cm. É o melhor o que existe no
mercado mundial. A optica allemã conduz.
Permita o sr. que eu lhe agradeça por tudo quanto V. me
tem dedicado e espero poder restituir tudo isto.
Estou feliz, vou saudar-lhe e a sua sra. esposa; a menina
Hildegard se permite agregar os seus cumprimentos d’ela; e
esperamos chegar ahi para um dos próximos fins de semana.
Adolpho pai Passamos 4 anos sem aparecer filhos. Finalmente devido a
tantas orações pelas religiosas do Bom Pastor, e a Superio-
ra Madre Mª José Nazareth Breve, em 10 de janeiro de 1952
nasceu o herdeiro tão desejado, fruto das orações, me disse
a madre.
Visitamos elas muitas vezes. Quando Adolphinho [estava]
com oito meses, estivemos no convento, ele [Adolpho] to-
mou-o nos braços e colocou-o junto do sacrário, “eis, Jesus,
o prêmio que nos deste”. [...]
Eu considero realmente que foi o fruto das orações.
Para mim uma graça e uma benção que Deus me concedeu.

Hilde, do seu lado, com ou sem benção divina, não


142 Com Hilde instalada em Caruaru, a 18 quilômetros de teve muito o que festejar, pelo menos por enquan- 143
São Caetano, Adolpho passou a se dividir entre dois to. Querendo garantir a primazia do primogênito da
papeis. Um, do idealizado pai de família, às voltas com “família legal”, Adolpho terminou exigindo que ela
a aflição de Odete – e a sua própria – em não con- fizesse um aborto.
seguir engravidar. Outro, do pragmático reprodutor, Nascido o herdeiro legítimo, que receberia o mesmo
disposto a gerar seu primogênito fora do casamento nome do pai e do bisavô, a vida de Adolpho pode enfim
com um ventre importado diretamente da Juventude voltar à normalidade, com dedicação quase integral ao
Hitleriana. trabalho na fazenda São José e à administração de sua
Em 1951, veio a notícia – e, ironia da vida, em dose agora bastante reduzida rede de “secretárias”. Como
dupla. Fazendo jus ao suor de Adolpho em produzir todas as mulheres de Adolpho, Hilde também traba-
um herdeiro, Odete e Hilde engravidaram simulta­ lhava: tomava conta de uma vacaria que produzia leite
neamente. Para a esposa legítima, a gravidez foi um para ser revendido em Caruaru de porta em porta.
verdadeiro milagre, como ela deixaria registrado em O relacionamento entre Adolpho e a alemã se apro-
seus cadernos: fundou a tal ponto que ele terminaria impondo a Odete
uma convivência com Hilde nos moldes do que Eliza baixo da cama quando a colcha começou a pegar fogo”.
Pereira Carneiro definiu como a “ética particular” do Os dois saíram em pânico correndo pela casa gritando
ex-sogro, expressa em um dos bordões preferidos dele: por ajuda. Para a sorte deles, Adolpho não estava em
“ciúme é safadeza” – algo que poderia ser traduzido por casa e o acidente foi rapidamente apagado e abafado.
“aceite ou caia fora”. Segundo Adolphinho, como todas Apesar do afeto dividido, Adolphinho tem lembran-
as histórias amorosas do pai eram abertas, ele achava ças de carinho entre seus pais, com muitos afagos e
que não havia espaço para ciúme, visto aí como um sen- beijos. Já como pai, sempre segundo Adolphinho, Adol-
timento vil: “No tempo em que ele tinha todas aquelas pho era um tanto ausente, voltado para seu “próprio
mulheres, caso alguém começasse com ciumeira, ele mundo” e para “as coisas da fazenda”. Durante a maior
resolvia dando uma surra em cada uma”. parte do ano, era comum que Odete e o filho ficassem
Com a cordialidade estabelecida entre Hilde e Odete, sozinhos no litoral durante os dias úteis. Nos finais de
numa relação naturalmente desprovida de “má querên- semana, contudo, a convivência de Adolpho com sua
cia”, como define Adolphinho, Hilde logo engravidaria em família compensava a distância. Odete, mulher ao
de novo. E de novo. E de novo. Betinha nasceria em mesmo tempo forte e submissa, encontrava nesses mo- 145
1952, mesmo ano de Adolphinho, Candida em 1953 e mentos uma alegria inocente, como deixou registrado
Ricardo em 1954. em seus escritos:
Com filhos de lá e de cá, não demorou para que os
dois núcleos familiares passassem a se frequentar. As Em Gaibu, passeávamos muito de jangada, eu acompanhava,
visitas de Odete e Adolphinho a Caruaru eram raridade não mergulhava. Era divertido e gratificante. Uma das vezes,
(Adolphinho se lembra de apenas uma vez em que isso Adolphinho, com 2 aninhos e meio, comigo na jangada, quando
aconteceu), ao contrário das idas de Hilde e seus filhos Adolpho escutou o barulho, era o filho atrás dele, pegou pela
à granja Pedacinho do Céu, algo bem mais comum. Para perna e suspendeu na jangada e me entregou. Cabrinha danado,
Adolphinho, a convivência com seus irmãos por parte não podemos mais trazê-lo, você tem que ficar na praia.
de pai era motivo de alegria.
Em sua memória ficou bem marcada a vez em que ele A “família legal” também fazia viagens anuais ao Rio
e Betinha colocaram fogo no quarto do pai, na granja: de Janeiro para se reunir com os outros Pereira Carnei-
“Lembro da gente brincando no chão com uma vela de- ro, ocasiões também registradas por Odete:
Todo fim de ano, nós íamos sempre passar o Natal e o Ano Adolpho, a mãe de Hilde teria ficado chocada ao ver as
Novo [no Rio de Janeiro] com os tios Ernesto e Maurina e os condições em que a filha vivia em Caruaru e a conven-
demais irmãos de Adolpho. ceu a ir embora do país. Quando voltou à Alemanha,
Depois íamos para Cabo Frio [no litoral fluminense]. Uma conseguiu enviar dinheiro para que Hilde deixasse o
das paixões dele fora os aviões e motocicletas era a caça sub- Brasil com os filhos. Na versão de Adolphinho, Hilde
marina. Ele iniciou este esporte com a vinda do sobrinho dele, já não via mais condições de criar os filhos sob as or-
Roberto Lacerda. Iam para Boa Viagem apenas com arpão e dens de Adolpho, “que era desses coronéis que tem que
uma borracha, pegavam camarão e peixe grandemente apre- mandar em tudo”. Desse modo, teria mandado buscar
ciado. Com o tempo, foi procurar sempre armas submarinas dinheiro com a mãe, que era viúva de um juiz morto na
mais atualizadas. guerra e possuía algumas propriedades por lá.
Depois os sobrinhos Paulo Burle Filho e Camilo Burle Ainda segundo Adolphinho, antes de partir com Ri-
resolveram aderir e acompanhar o tio tanto nos mergulhos cardo, Betinha e Cândida, Hilde teria tomado o cuidado
quanto nas motocicletas e jogos de tenis, esporte que gostava de deixar a prestação de contas da semana no cofre:
146 bastante. “Quando ele chegou lá [na fazenda], ela tinha arribado 147
e deixado uma carta dizendo as notícias. Nunca li essa
Em Pernambuco, a convivência entre as duas famílias carta, mas meu pai sempre dizia que ela não levou um
de Adolpho transcorreria sem maiores incidentes até centavo dele”. Décadas mais tarde, quando Adolphi-
uma visita da mãe de Hilde, ali por volta de 1955, para nho, já adulto, esteve na Alemanha para visitar a famí-
conhecer os netos em Pernambuco. Não há qualquer lia, perguntou para Hilde se havia acontecido algum
registro de sua passagem por Recife ou Caruaru, nem evento determinante entre ela e o pai. A resposta dela
por foto, nem por escrito. Sabe-se apenas que pouco foi categórica:
tempo depois de sua partida Hilde deixaria o Brasil de — Eu vi que Adolpho era muito prepotente. Minha
volta à Alemanha com os filhos, sem qualquer aviso índole não era de me subjugar a isso, eu queria criar os
prévio. meus filhos do meu jeito.
Adolphinho e Paulo Burle tem versões diferentes,
mas de alguma maneira complementares, para expli-
car a súbita partida de Hilde. Segundo o sobrinho de
O ladrão de cocos cobrira estar roubando seus cocos. O sujeito, já pre-
vendo uma dura do patrão, chegou de foice na mão.
Exibindo sua pistola na cintura, Adolpho foi direto ao
ponto:
— Rapaz, você não tem vergonha, não, seu cabra sa-
fado, roubando meus cocos?
O agricultor, ofendido, partiu para cima de Adolpho,
que num movimento ligeiro de corpo conseguiu segu-
rar a mão do cabra, tomar a foice e jogar para longe.
Os dois começaram a se embolar no chão, até que o
sujeito puxou uma faca. Adolpho, que estava por baixo,
conseguiu segurar a mão do seu oponente pelo punho,
mas não o suficiente para tomar um corte feio no pulso.
148 “Eu só tenho medo nesse mundo dos castigos de Deus — Vigia!, gritou por ajuda nesse momento.
e de mais nada. Não tenho medo da morte. Não es- O vigia chegou correndo com uma espingarda de
tou aqui nessa terra para semente”, costumava dizer cano duplo na mão. “Quando ele viu o cara por cima
Adolpho, do alto dos seus 1,68 metro de altura, para de meu pai e a sangueira, ele meteu chumbo nas costas
quem quisesse ouvir. De acordo com Adolphinho, o do camarada”, conta Adophinho, que assistia a tudo de
pai não chegava a ser briguento – mas também não longe. “Quando viu o cabra morto, ele pensou que tinha
levava desaforo para casa. Praticante de boxe quando matado papai também. E aí correu para casa, deixou
ainda morava na Inglaterra, Adolpho, nas palavras do a espingarda e danou-se mato adentro, desapareceu.”
filho, tinha “uma canhota perigosa”, ainda que o braço Adolpho foi socorrido pelo administrador da fazen-
esquerdo tivesse perdido força depois do acidente de da, que tratou do corte no pulso e do joelho do patrão
avião na Bahia. Mesmo assim, “se desse uma canhota atingido por um chumbo da espingarda. Quando o vi-
no queixo do cabra, o cabra ia a nocaute na hora”. gia soube que só tinha dado cabo do agricultor, ele se
Certa vez, no Engenho Boto, em Gaibu, Adolpho entregou à polícia e acusou o patrão de ter mandado
mandou chamar à Casa Grande um agricultor que des- matar o “camarada com a foice”. Uma ordem de prisão
preventiva contra Adolpho foi logo decretada. Adol- defesa” também para o vigia:
pho não se fez de rogado. Orientou Odete a tocar os
negócios, pegou Adolphinho, então com seis anos de Notícias do fôro – Absolvido o sr. Adolfo Pereira Carneiro
idade, e fugiu. Em longa sentença o juiz de Direito do Cabo [hoje, de Santo
O primeiro esconderijo foi na praia de Maria Farinha, Agostinho], dr. Jeová da Rocha Wanderley, acaba de absolver,
no litoral norte pernambucano, onde seu amigo José in limine, ao sr. Adolfo Pereira Carneiro no processo criminal
Lopes Siqueira Santos, deputado federal eleito pela que a Justiça Pública daquela cidade contra ele movera, sob
UDN, tinha uma casa. Depois de uma semana, pai e a acusação de coautoria no delito de homicídio praticado na
filho trocaram o litoral pelo sertão e se isolaram na pessoa de Natalicio Guilhermino da Silva, por Sergio Inácio
fazenda de outro amigo de Adolpho, Heráclio do Rêgo, da Nóbrega.
filho do Coronel Chico Heráclio, o Leão das Varjadas, Foi reconhecida a legítima defesa tanto para o sr. Adolfo
figura folclórica do município de Limoeiro, que teria Pereira Carneiro como para o autor material do ato delituoso.
inspirado o personagem Coronel Limoeiro, vivido pelo O promotor público da comarca, sr. Fernando cascão, face à
150 humorista Chico Anysio. prova produzida nos autos perante a Justiça, já opinara pela 151
Com o julgamento de data marcada, Adolpho só rejeição da sua própria denúncia, reconhecendo igualmente
resolveu se entregar porque tinha uma operação de a excludente da legítima defesa.
hérnia já marcada. Nem chegou a ser preso porque foi Funcionou como advogado do sr. Adolfo Pereira Carneiro
logo enviado para o hospital. Assim que se recuperou o prof. Mario Pessoa.
da operação, Adolpho foi diretamente para o banco dos
réus, onde terminou inocentado por juri popular graças Segundo Eliza Pereira Carneiro, os jornalistas ainda
ao testemunho dos funcionários do engenho Boto, que ficaram um bom tempo alimentando o episódio só
corroboraram a versão de que não havia mandado o porque Adolpho era “um homem importante” e seu
funcionário matar o agressor. infortúnio “vendia matéria”.
Uma pequena nota do Diário de Pernambuco, em 29 A história logo foi esquecida.
de dezembro de 1957, estabelece a época dos aconteci-
mentos, anunciando a absolvição de Adolpho em “lon-
ga sentença” que reconhece a “excludente da legítima
Adolphinho Hilde não queria que as filhas fossem criadas da ma-
neira como ele acreditava ser a certa para as mulheres,
Adolpho, segundo seu filho, teria dito:
— Então deixa eu levar o Ricardo para fazer compa-
nhia a Adolphinho?
Hilde teria sido irredutível:
— Os filhos são meus, eles não saem daqui.
Seriam necessários muitos anos ainda até que os
irmãos finalmente se reencontrassem. Enquanto isso,
Adolphinho seguiu com a vida. Com 9 anos, depois de
fazer os primeiros estudos nos Recife, Adolphinho foi
passar uma temporada de dois anos em Niterói para
estudar no Instituto Alfa e morar com o tio José. Foram
Apesar da pouca idade, o episódio como um tudo não anos marcantes, com rotinas bem diferentes da que 153
apenas ficou gravado na memória de Adolphinho como tinha em casa: “Eu gostei muito de morar em Niterói
ele, ainda hoje, passado mais de 50 anos do fato, guarda e de tio Zé”, relembra. “Ele era da estirpe de meu pai,
aquele mês de fuga ao lado do pai como um dos me- piloto, mergulhador, gostava de aventura, de acampar,
lhores de sua vida: “Eu era pequeno, mas me lembro de fazer tudo quanto é desse tipo de coisa, só não gos-
bem porque foi o único momento em que fiquei com tava de trabalhar, por isso tinha mais tempo para os
meu pai um bom tempo, só eu e ele”. filhos e para o sobrinho.”
Pode até ser que o próprio Adolpho tenha achado Aos 11, Adolphinho trocou Niterói pelo Rio de Janei-
algo parecido. Isso porque, tempos mais tarde, ele, que ro, onde foi fazer exames admissionais para estudar no
havia nascido em uma grande família, com muitos ir- colégio São José. No Rio, Adolphinho foi morar com a
mãos, se empenharia pessoalmente em garantir ao filho tia Cândida. De alma bem mais liberal, o primeiro ato
único uma vida mais gregária. Em 1959, Adolpho foi de tia Cândida foi estender a chave do apartamento
pessoalmente à Alemanha atrás de Hilde para tentar para o sobrinho e dizer:
trazer ao menos um irmão para o filho. Por saber que — Está aqui a chave, você chega a hora que quiser.
Se precisar, se estiver com fome, me chame que eu vou
preparar uma comidinha para você. Fique à vontade,
faça de conta que você está na sua casa.
Adolphinho, contudo, pouco aproveitou a hospeda-
gem porque passaria dois anos como interno no São
José, indo para casa apenas aos fins de semana. Do pe­
ríodo no Rio, ele se lembra bem do 31 de março de 1964,
quando estourou o golpe militar que depôs o então pre-
sidente João Goulart: “A bala começando lá no centro,
lá no Forte de Copacabana, e eu na casa da minha tia,
no Posto 6, ficava na varanda querendo olhar o que era
e ela gritando: ‘Já para dentro, menino!’”.
Em 1965, já de volta ao Recife, ainda estudou um ano
154 como interno no Colégio Marista, depois passou a se- 155
mi-interno e, finalmente, como aluno em regime aberto.
156 PARTE 4 — DECLÍNIO 157
O início do fim sofreu com a Kombi, em 1966. Todo ano, Adolpho cos-
tumava ir ao Rio de Janeiro visitar a família. Amante das
estradas e com mania de ensinar todo mundo a dirigir,
Adolpho resolveu, naquela viagem, dividir a direção da
Kombi com seu filho – que na época ainda não tinha
nem 13 anos. Quando chegaram em Esplanada, já perto
da divisa com Minas Gerais, Adolphinho entrou muito
rápido em uma curva e a kombi derrapou até capotar.
Adolpho foi arremessado para fora do carro e uma das
dobradiças da porta estraçalhou os ossos de seu tor-
nozelo em vários pedaços.
Adolpho foi socorrido e levado de ambulância para
Salvador e, da capital baiana, de avião até o Recife. Lá,
158 Era famosa na família a história da cigana que um dia ficou um bom tempo internado no Hospital Centenário, 159
teria alertado Adolpho: de onde publicou nos jornais de Recife uma pequena
— Não se meta com a Bahia ou você vai morrer lá! nota agradecendo o apoio e a preocupação dos conhe-
Podia ser só mais uma anedota do conhecido bairris- cidos e amigos. Assim registrou o Diário de Pernambuco
mo pernambucano em relação aos baianos, mas o fato em 13 de abril de 1966:
era que o histórico de Adolpho com a Bahia não era lá
dos mais favoráveis. A Adolphinho, costumava dizer: Adolpho Pereira Carneiro agradece sinceramente a todas as
— Meu filho, a Bahia é o estado mais rico do Brasil, pessoas que o visitaram e o cercaram de atenções e carinhos
mas eu não tenho sorte lá. Perdi um irmão lá, caí de durante os três meses que passou no Hospital Centenário, por
avião, tive um acidente com dinamite no São Francisco… motivo do desastre que sofreu na Bahia quando em viagem
Todos os incidentes ocorridos com Adolpho na terra para a Guanabara.
de Jorge Amado tiveram consequências em sua vida.
Mas nenhum talvez tenha sido tão determinando para Apesar da seriedade do acidente, Adolpho não chegou
o início do declínio de Adolpho quanto o acidente que a correr risco de vida, apesar da longa internação. O
maior problema foi seu pé esquerdo, cujo processo de um baque”, lembra Eliza. Ele era de falar, de conversar
cicatrização se alongou por muitos meses. Adolphinho com os funcionários, mas depois do acidente ele come-
conta que o gesso tinha uma janela para que fosse fei- çou outra vida, sempre na rede, onde botava alguém
tos curativos periódicos na parte do machucado. Em para conversar.”
uma dessas limpezas, descobriu-se que a ferida estava Era final dos anos 1960, e paralelamente à vivacidade
cheia de tapuru, uma infecção causada pela larva da perdida no acidente de kombi, a Recife dos antepassa-
mosca varejeira. dos e da infância de Adolpho também foi desaparecen-
Louco por carnes de caça como a do tatu e do teiu, do, levando-o a fazer em seu patrimônio ajustes neces-
Adolpho só piorava a situação ao insistir em comer esse sários. Ao longo dos anos subsequentes, ele ampliaria
tipo de prato. “O povo aqui fala que o bicho é reimoso as terras da fazenda São José (seu “xodó”, nas palavras
e minha mãe dizia que era verdade, porque toda vez de Adolphinho) e trocaria a granja Pedacinho de Céu,
que ele comia aquilo, a ferida abria novamente”, conta que tinha 180 hectares, por outra menor, também lo-
Adolphinho. Teimoso, Adolpho não apenas não deixava calizada em Jaboatão dos Guararapes, que começava
160 de comer carne de caça, como, quando melhorava um a se urbanizar e valorizar. 161
pouco, já saia andando dentro dos matos. “Quando A granja Sucupira podia até ser menor, coom seus
magoava e abria, para sarar era uma novela”, lembra meros 32 hectares, mas não era menos glamourosa que
o filho. a antecessora – pela primeira vez na vida Adolpho in-
As sequelas não se resumiram às feridas. O difícil vestia em uma propriedade formalmente mais luxuosa.
processo de consolidação das fraturas no tornozelo “Na granja Sucupira tem uma construção de luxo que foi
acidentado imporia dificuldades na articulação, dei- do senhor João Pessoa de Queiroz, irmão de Francisco
xando Adolpho com problemas de mobilidade para o Pessoa de Queiroz, fundador do Jornal do Comércio de
resto da vida. “Ele ficou muito ruim, quase perdeu o pé, Recife”, conta Adolphinho.
mas continuou mergulhando. Só o tênis que não dava Outra curiosidade era dentro da nova propriedade
mais para jogar”, conta Paulo Burle. havia uma escola básica que levava o nome da antiga
Para Eliza Pereira Carneiro, o acidente foi determi- dona, Jovina Pessoa de Queiroz, e da qual Adolpho que-
nante para uma grande mudança na vida do ex-sogro: ria se ver livre alegando que os alunos fariam “muita
“Ele tinha uns 60 e pouco, e envelheceu de repente. Foi bagunça”. Odete não concordou com o marido e, para
resolver o impasse, propôs que comprassem uma casa “Ou você ou eu”
na comunidade vizinha para transferir a escola para lá.,
o que foi feito. A escola, que antes tinha apenas uma
sala de aula, ficou com duas no novo endereço — e
Odete seria lembrada para sempre pela diretoria.
Para Adophinho, que chegou a morar lá com Eliza
e os três filhos – Betânia, Camilo e a caçula Bárbara –,
a granja Sucupira remete ainda a outras lembranças,
menos alegres: “Quando nos mudamos para lá, pouco
tempo depois meu pai esclerosou, ficou com Alzhei-
mer”.

162 À medida que o tempo corria, Adolpho foi pouco a 163


pouco se alienando da realidade e de si, balançando
como o vento entre um ou outro episódio que ficaria
gravado no anedotário da família. O caso envolveu
uma das últimas “secretárias” que Adolpho manteve
por perto e com quem tinha uma relação mais próxi-
ma e regular.
Loira e de tez branca, Bernardete era descenden-
tes de holandeses e fazia de tudo um pouco na granja.
Adolphinho tinha 20 e poucos anos nessa época e lem-
bra muito bem do episódio no qual se viu envolvido:
“Um dia, a gente estava carregando a camionete com
uns caibros, aí eu peguei uma ripa, assim, brincando,
e dei na bunda de Bernadete!”, conta Adolphinho. Foi
o suficiente para o pai enxergar ali um sinal de que Terra nua
Bernardete traía o patrão com o próprio filho. Adolpho
foi para cima do filho:
— Você já está passando dos limites: ou você ou eu
aqui nessa casa!
“Ele disse mais um bocado de besteira que eu não
me lembro mais, mas quando saiu para deixar esse ma-
terial da camionete, eu só fiz arrumar os meus trapos
e ir embora”, lembra Adolphinho. Quando já estava
chegando na BR para pegar um transporte, Adolpho
apareceu atrás dele com uma ordem oposta:
— Você volte já para casa!
O assunto morreu, mas ficou marcado na memória
164 da família como mais um indício de que Adolpho já Vendo hoje, fica claro para a família que Adolpho Pe- 165
não era o mesmo. Pelo menos no quesito das emo- reira Carneiro começou a morrer em silêncio, sem que
ções, porque no de envolvimentos amorosos… Eliza ninguém se desse conta, quase uma década antes de
conta que sempre houve uma suspeita de que a filha de sua morte. “Com o passar do tempo, percebi que meu
Bernardete fosse também filha de Adolpho: “Como ele pai, desde que eu me entendo por gente, já tinha um
reconheceu os outros filhos que teve fora do casamento princípio de esclerose”, divaga Adolphinho. “Esclero-
com Odete, na hora do testamento, no inventário, a se é assim: você começa a soltar de marcha, mas é só
menina, que hoje tem uns 55 anos, entrou na Justiça aquela soltadinha aqui e ali, na maior parte do tempo
para ser incluída também. Como não existia teste de você está engrenado, lúcido”.
DNA ainda, o juiz não aceitou. Se ela era filha dele? Ele Para ele, a mudança para a granja Sucupira repre-
disse que não, mas eu não sei… Só quem sabe é Deus”. sentou também o momento em que os sintomas da
  doença se tornaram regra, e não mais exceção: “Papai
ficou totalmente alienado”. Quando terminava de co-
mer, Adolpho reclamava que estava sem fome e pedia
um remédio para abrir o apetite. Deixou de reconhecer foi determinante para a despencada final de Adolpho:
as pessoas e, de uma hora para outra, começou a falar a desapropriação pelo Incra – o órgão do governo para
da Revolução de 1930: “Papai ficava apavorado e repetia a colonização e reforma agrária – de parte das terras a
sem parar que o estavam perseguindo, que queriam que os Pereira Carneiro estavam ligados havia gerações.
matá-lo”. “Ele herdou de meu avô seiscentos e poucos hectares,
Segundo a crônica familiar, os problemas da escle- foi comprando e chegou a 3.500 hectares. E o Incra de-
rose foram agravados pelo uso que Adolpho fez por sapropriou 1.780 hectares”, conta Adolphinho. “Aquilo
anos de remédios para estimular seu já insaciável ape- mexeu com o juízo dele, que começou vender tudo o
tite sexual. “Ele gostava de brincar com as meninas, e que tinha, com medo, porque quando você era desa-
como não existia Viagra, ele tomava até injeção de boi”, propriado, não recebia dinheiro, recebia precatório.”
conta Eliza. “Ele tinha gente que aplicava nele, coitado.” Odete deu mais detalhes sobre o episódio em suas
Adolphinho não fala das injeções de boi, mas confirma memórias:
que foi um medicamento específico para aumentar a
166 libido – um vasoconstritor que inibia a circulação do Sobre as desapropriações das áreas do Mingú e Fazenda São 167
sangue no cérebro – que acelerou o processo de escle- José em São Caetano.
rose do pai. Segundo ele, o geriatra de Adolpho revelou Note-se: tempos atrás, recebo um telefonema do dr. Mar-
um dia para Odete: cos Orti, que considerei incrível. Depois que desligou, eu fi-
— Olhe, o que acabou com o seu marido foi esse quei pasma com o que ele falou. Depois de muitas mesuras, de
remédio que ele tomava para potência. praxe, ele me comunicou estar afastado do INCRA (ele era o
O tal medicamento atendia pelo nome de Stugeron e chefe do setor de cadastro e tributação do INCRA), disse-me
era fornecido por amigos de Adolpho que compartilha- estar com um escritório montado e à nossa disposição e [de]
vam com ele o gosto pelo mulherio. “Deus sabe o que demais amigos para qualquer problema que se apresentasse
faz, porque se meu pai vivesse na época de hoje, com junto ao INCRA – ele poderia nos ajudar. Pois continuava
o Viagra, o desmantelo seria grande”, diz Adolphinho tendo acesso ao INCRA *Note-se que eu fui informada por
em tom de gracejo. funcionários do INCRA que este havia sido afastado do cargo
Fora o abuso dos medicamentos para a virilidade, por CORRUPÇÃO.
um último episódio, relacionado à fazenda São José, Dias após este telefonema, ele visitou-nos na nossa granja
em Sucupira (nossa residência). Tornou a oferecer os prés- Crônica do casarão demolido
timos. Então desculpou-se perante mim e Adolpho [por] ha-
ver o INCRA ter sido pressionado pelo governador Moura
Cavalcanti [1974-1979, ex-Ministro da Agricultura de 1973 e
1974] a fazer uma desapropriação mediata. Portanto, [eram] os
dirigentes locais [agindo] a fim de atender as ordens recebidas
de atuar em um proprietário que fosse de família tradicional,
personagem ativo e bastante conhecido, a fim de fazer início
a reforma agrária.
Ele descaradamente contou-me tudo isto. Com delicadeza
despedi-me, [ilegível] o que fazer. Ele retirou-se. Eu tive von-
tade de falar algumas verdades, mas controlei, pois é melhor
se calar do que trocar com pessoas falsas.
168 Adolpho, segundo a ex-nora, guardava no cofre um 169
Segundo Adolphinho, seja qual for a explicação frasco de veneno: “Ele dizia que no dia que começas-
para a desapropriação, a avaliação do Incra foi injusta. se a dar trabalho para os outros, ia tomar o veneno”.
“A propriedade foi considerada latifúndio porque ele Quando a profecia finalmente se cumpriu, Adolpho já
criava o gado dentro da caatinga”, diz. “Se fosse hoje, havia perdido a razão e se esquecido do frasco, do cofre
ele seria visto como ecologista, um conservacionista, e, quem sabe, da vida intensa e controversa que levou
porque naquela época o normal era desmatar, como eu ao longo de 77 anos.
mesmo fiz. Quando assumi a fazenda, desmatei, plantei Talvez o maior símbolo dos anos finais de Adolpho
800 hectares de capim. Aí vieram três anos de seca, o seja o palacete em que cresceu junto com seus irmãos.
capim morreu todinho. Depois, a área que foi distribu- O Casarão de Caxangá, como alguns o chamam, pelo
ída aos sem terra da época, os caras desmataram tudo, nome da avenida em que se localizava, ou Casarão da
não deixaram nem a reserva legal, porque tinha muita Várzea, como outros o conhecem, pela região de Recife
cerâmica na região e eles venderam toda a madeira. a que levou urbanização em seus tempos áureos, o en-
Desmataram tudo, deixaram a terra nua”. dereço teve um destino em dissonância com a história
dos Pereira Carneiro. Erguido por Camillo em 1904 ao juiz Manoel Rodrigues Porio Filho a medida legal para
como um símbolo da opulência da família, o casarão execução da providência.
definharia pouco a pouco desde sua desapropriação O imóvel em apreço, constituído do terreno com área de
pelo Ministério do Exército, em 1965, para ser leiloado 10.500.581 metros quadrados, e benfeitorias com 1.270.000
em pleno abandono, em 1980, e, por fim, demolido oito m2 de área construída, cuja aquisição foi autorizada pelo mi-
anos mais tarde. nistro Costa Silva, titular da Pasta da Guerra, foi declarado de
De acordo com Odete, em uma das muitas cartas que utilidade pública para fins do desapropriação, por necessidade
escreveu aos jornais ao longo de sua campanha pelo daquele Ministério, pelo decreto executivo nº 55.755, de 2 de
tombamento do imóvel, já nos anos 1980, a história de fevereiro do ano em curso. O prédio será destinado à sede da
como a família Pereira Carneiro perdeu a propriedade 7ª Companhia de Comunicações da 7ª Região Militar.
remonta aos “idos tempos da Segunda Guerra Mun- A oferta da União Federal, com à qual concordaram os
dial”, quando ele foi requisitado pela primeira vez pelo proprietários, é a constante da avaliação, na importância de
Exército Brasileiro. Nem mesmo a doação feita pelos 58 milhões, 554 mil e 856 cruzeiros, cujo depósito ­– diz o dr.
170 herdeiros, em 1951, a uma instituição de caridade fez Alencar dirigindo-se ao Juiz Porto Filho – está à disposição 171
com que os militares – que pagavam um “irrisório alu- de V. Excia. Requer, desde já, ao mesmo tempo em que pede
guel”, segundo Odete – desocupassem o imóvel. seja decretada a imissão de posse daqueles bens, na pessoa
Em 6 de abril de 1965, o Diário de Pernambuco abriu do sr. Comandante da 7ª Região Militar.
a página 3 de seu primeiro caderno com a seguinte A expropriação abarca as áreas do terreno de forma poli-
manchete: “Casarão de Caxangá será desapropriado e gonal, irregular, e os dois prédios originalmente construídos,
continuará como Quartel do Exército”: com as dimensões acima mencionadas, atualmente ocupadas
por aquela unidade do IV Exército, que ali realizou apreciáveis
O velho casarão da avenida Caxangá, nº 5.666, que perten- benfeitorias. [...]
ceu ao sr. Camilo Pereira Carneiro e hoje pertence aos seus
herdeiros, vai ser desapropriado pelo Governo Federal, por Com duas varandas laterais sustentadas por sete colu-
utilidade pública. nas neoclássicas, o casarão era um duplo símbolo: da
O dr. José Albuquerque Alencar, procurador da República antiga opulência bairro recifense e da importância da
no Estado, iniciou o processo de desapropriação, requerendo família Pereira Carneiro, que no início do século 20
levou desenvolvimento para aquela região até então Exército resolveu leiloá-lo. O motivo não se sabe bem porque,
castigada por enchentes. Foi, aliás, uma cheia do rio se a edificação ficou muito danificada com a enchente ou o
Capibaribe em 1974, botou quase dois metros de água local teria recebido outra destinação [...]. O comprador foi
dentro da propriedade, fazendo com que o Batalhão um comerciante conhecido apenas como Geraldo. Tudo que
do Exército fosse transferido e a construção, relegada se sabe a respeito é que possui uma representação de biscoi-
ao esquecimento. tos, segundo contou o dono da imobiliária que tenta vender
A propriedade seria leiloada pela União em 1980 o terreno [...]. O que o fez comprar uma área deste porte e
e abandonada pelo novo comprador. Segundo Adol- não ter feito nada para conservá-la durante todo esse tempo
phinho, foi um leilão “um tanto quanto fraudulento também não se sabe. Reina o mistério.
porque ninguém soube, não houve divulgação”. Ode- “Ele tem medo que o Governo tombe o casarão, e caso isso
te, aindabatalhou na Justiça para anular o negócio e aconteça não poderão demoli-lo, o que inutilizará o terreno
transformar o local em uma escola, em vão: “Como para prováveis construções”, confidenciou Mergulhão [o cor-
não conseguiu, ela então se mobilizou para realizar o retor], pouco se importando com o valor histórico e cultural
172 tombamento…”. Quando a ideia de tombar o casarão do lugar, dando sua visão fria de corretor. 173
começou a ser ventilada, botaram tudo abaixo. “Mete-
ram trator de esteira para cima e derrubaram tudo da Derrotada em sua campanha pelo tombamento, Odete
noite para o dia”, relembra Adolphinho. escreveria em 29 de julho de 1988 uma última carta ao
O Diário de Pernambuco repercutiu o caso em 3 de Diário de Pernambuco intitulada “Fúria demolidora”:
julho de 1988, semanas, portanto, antes da demolição,
na reportagem “Nossa história está à venda”: No passado dia 3 de julho a jornalista Hilda Cavalcanti pu-
blicou uma reportagem sobre o Palacete Caxangá, como era
A população da área está revoltada – e dividida. Parte reali- conhecido na região que pertenceu a Camillo Pereira Carneiro.
za movimento para que ele seja tombado e, assim, possa ser [...]
preservado; outra parte quer vê-lo habitado para evitar que Apavorado com certeza com o fantasma do tombamento, o
marginais continuem refugiando-se nele. [...] adquirente, na semana seguinte à publicação, resolve agir com
O imóvel, antes, funcionava como guarnição do Exército, uma fúria demolidora e destruir um marco da nossa história
e logo após a ultima cheia do recife, em 75, o Ministério do e uma obra de arquitetura de alto valor.
É lamentável ainda que, se o imóvel foi desapropriado por Herança
“utilidade pública”, por que nosso Exército o abandona e não
atende a solicitação que foi feita há 15 anos por um dos her-
deiros? Caso não interessasse mais ao Exército o imóvel, desse
a preferência ao mesmo Adolpho Pereira Carneiro, filho do
falecido Camillo Pereira Carneiro, único herdeiro residente
em Pernambuco, mas nenhuma resposta foi dada à solicitação
pedida, com certeza o destino foi o cesto de lixo. [...]
Hoje, se não fosse por um capricho do general Muricy [à
época dos acontecimentos, Comandante da 7ª Região Militar,
em Recife], no local estaria funcionando, sob orientação e a
grande capacidade da Ordem Salesiana do Brasil e no Nor-
deste, um Centro Educacional. [...]
174 Odette Pereira Carneiro – Jaboatão Hoje, para Adolphinho, a herança maior que seu pai lhe 175
deixou talvez sejam Betinha, Cândida e Ricardo, que até
Onde antes havia o casarão hoje existe o Condomínio hoje vivem na Alemanha e com quem Adolphinho e sua
Clube Torres do Mirante. família mantêm uma relação próxima, com encontros
O condomínio Adolpho Pereira Carneiro fica locali- regulares – pelo menos até a pandemia.
zado a alguns quilômetros dali, no bairro da Madalena, Betinha, a mais velha dos três, é professora e, segun-
com vista para o rio Capibaribe. do o irmão brasileiro, “fala muito mal português, por-
que tem medo de falar errado, diferente da Cândida que
fala errado, mas consegue se comunicar”. Cândida tem
  uma filha chamada Isabel, que trabalha como modelo
fotográfica. Ricardo, o mais novo, foi o inventariante
do testamento de Adolpho. Procurados, nenhum dos
três quis dar depoimento para este livro.
Uma amostra concreta do bom relacionamento en-
tre as duas famílias aconteceu logo após a morte de
Adolpho. Da Alemanha, os três passaram uma procu-
ração dando a Odete totais poderes para vender, doar,
fazer o que entendesse com o espólio. “Meu pai tinha
colocado tudo em testamento, reconheceu os três
como filhos, mas a divisão só foi feita posteriormente.
O inventário, como tudo aqui no Brasil, depende da
Justiça e o processo todo durou oito anos. Metade da
herança foi para minha mãe e a outra metade foi divi-
dida entre meus três irmãos e eu”, conta Adolphinho.
A cada dois anos Adolphinho aluga um veleiro e as
quatro famílias passam uma semana confraternizando
a bordo em águas europeias. O pai já foi assunto de
176 muitas conversas entre eles, mas Adolphinho diz que 177
hoje o papo gira em torno mesmo de suas próprias
vidas: “Quando a gente se encontra, bota a conversa
em dia”. Como velhos amigos.
178 EPÍLOGO 179
Na Barra de Suape — Não, seu Adolpho, eu sei nadar — o menino res-
pondeu, doido para ir com eles.
Quando estavam na boca da barra, a uns 200 metros
da terra, uma onda mais forte quebrou sobre eles e o
barco de alumínio em que estavam emborcou, lançando
todos ao mar. Eram quase 10 horas da manhã quando
Adolpho e Fausto saíram nadando até a costa em busca
de ajuda enquanto Adolphinho, Maria Beatriz e o me-
nino – que, descobriu-se ali, não sabia nadar – ficaram
esperando pelo resgate, agarrados a um isopor arran-
cado dos assentos.
— Segurem aí que o vento vai empurrar a gente para
Ainda que pregado à rede, com a memória atrapalhada a praia — Adolpho tentou tranquilizar os dois.
180 e convivendo com as sequelas do pé acidentado, Adol- O menino, no entanto, provavelmente com medo de 181
pho Pereira Carneiro encontrou até o fim da vida espa- tubarão, tentou subir em cima do isopor, o que fez o
ço para suas aventuras. Aqui vai uma última. bloco rodar e deixar todos à deriva. O menino afundou
Dois anos antes de sua morte, Adolpho resolveu no mesmo instante. Adolphinho ainda tentou socorrê-
sair de barco para mergulhar na Barra de Suape. Esta- -lo, mas a maré já os havia arrastado cerca de 10 metros
va acompanhado nesse dia de Adolphinho, Fausto, um longe do barco e o menino terminou se perdendo nas
amigo do filho, a afilhada Maria Beatriz e um “mole- águas da Barra de Suape.
cular”, como Adolpho chamava os meninos que levava Com esforço, Adolphinho conseguiu prender Maria
de sua fazenda para trabalhar e estudar na capital em Beatriz numa corda junto ao barco que mesmo embor-
troca de pequenos serviços para o patrão como buscar cado ainda flutuava:
o cavalo, levar recado ou chamar fulano ali. — Se segure aqui que mais cedo ou mais tarde vão
Na hora de sair, Adolpho ainda perguntou para o achar a gente — disse a ela.
menino: E ficaram ali, em silêncio, à espera do resgate. Mas
— Rapaz, você sabe nadar? Se não souber, não vai. as horas foram passando e nada do socorro chegar. A
maré começou a subir e o vento a açoitar o barco re- estava vazando e deve ter jogado o barco bem para fora.
virado, mal dando para Adolphinho e Maria Beatriz se Não fosse sua experiência com a natureza — a natu-
segurarem nele. reza que amou de maneira quase irracional, qual bicho
Eram perto das 2 da tarde quando os dois ouviram — talvez a história tivesse tido um fim mais trágico do
um barulho de barco. que já o foi com o sumiço do menino.
— Vou tentar ficar em pé aqui para acenar para o Que hoje, quem sabe, segue por aí, mergulhando ao
pessoal — avisou Adolphinho. lado de Adolpho Pereira Carneiro em águas tão profun-
Maria Beatriz, ainda em choque com o sumiço do das que nossa imaginação se mostra incapaz de alcan-
menino, se apavorou: çar, à espera de todos nós.
— Não, não me larga! Não me solte, eu vou afundar!
Seguiram então agarrados dentro d’água, lutando
para que a força da maré não os levassem para o al­to-
mar, até que o barco de resgate finalmente os encon-
182 trasse, por volta das 3 e meia da tarde, com Fausto e 183
Adolpho a bordo. Só então Adolphinho soube como
ele e Maria Beatriz foram encontrados. Fausto, com
seu corpo atlético, chegou sem dificuldade à terra, na
praia de Calhetas. De lá, correu até a vila de Gaibu atrás
de socorro e lá conseguiu um barco com um pescador.
No caminho para a boca da barra, encontraram Adol-
pho, que seguia nadando com dificuldade por conta de
sua perna esquerda praticamente incapaz. Nem bem
subiu a bordo, Adolpho, como se a adrenalina subita-
mente apagasse sua decrepitude e o jogasse novamen-
te à plenitude de sua vida, quando comandava e dava
ordens qual dono do mundo, disse:
— Vamos procurar mais para fora porque a maré

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