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PAU E BICHO
André Viana
Tato Coutinho
Mateus Lopes
SUMÁRIO
PRÓLOGO
Um homem de sorte, 7
PARTE 4 — DECLÍNIO
O início do fim, 158
“Ou você ou eu”, 163
Terra nua, 165
Crônica do casarão demolido, 169 PRÓLOGO
Herança, 175
EPÍLOGO
Na Barra de Suape, 180
Um homem de sorte
29
Na aurora dos 1870, os bons ventos, para Adolpho Seve-
riano Pereira Carneiro, não sopravam apenas no plano
profissional. O Jornal do Recife, em sua edição de 18 de
maio de 1872, listou seu nome ao lado do de Candida
B. Moniz Machado (ou Muniz, a depender da fonte) na
coluna Proclamas de casamento. Equivalente legal ao
bordão cerimonial “se alguém tem algo em contrário,
que fale agora ou cale-se para sempre”, a proclama é até
hoje o procedimento em que o cartório de um informa
ao cartório de outro que os interessados deram entrada
no processo de habilitação para o casamento civil.
Com a publicação de seus nomes em “segunda de-
nunciação” feita em maio de 1872, é razoável supor que
tenham se casado naquele mesmo ano. Dedução pare- mento, os diários Jornal Pequeno e Jornal de Recife des-
cida já fica mais complicada de ser feita em relação ao crevem quase com as mesmas palavras os primeiros
nascimento do primogênito do casal, Camillo Pereira anos de Camillo, sobretudo como ele inaugurou entre
Carneiro – na falta de um documento oficial, dia e ano os Pereira Carneiro uma velha tradição da burguesia
variam bastante tanto nos papeis informais da família brasileira em formação no final do século 19 – mandar
quanto à luz dos obituários publicados pelos jornais seus filhos para estudar na Europa depois da educação
de Recife em sua morte, em 1º de novembro de 1925. inicial com professores particulares e em internatos de
Da memorabilia reunida no acervo da família, um tradição religiosa. Conta o Jornal Pequeno:
santinho impresso para uma missa fúnebre em home-
nagem a Camillo estabelece seu nascimento no Reci- [Camillo] Fez os seus primeiros estudos nesta capital [Recife],
fe em 29 de janeiro de 1873. Já na pequena brochura completando-os na Inglaterra, para onde seguiu aos 20 anos
distribuída na inauguração da Escola Coronel Camillo [1894/95]. Naquelle país cursou, durante cinco anos, impor-
Pereira Carneiro, em São Caetano, em março de 1945, tante Instituto de ensino, aperfeiçoando-se no conhecimento
30 o perfil Notas biográficas repete o dia e o mês, mas in- de linguas e assuntos commerciaes. Terminado o seu curso de 31
forma um ano diferente – 1875. commercio, regressou ao Recife [1899/1900], vindo trabalhar
Quanto aos obituários, o do Jornal Pequeno, publi- ao lado de seu progenitor, chefe da importante firma Pereira
cado no dia seguinte à sua morte, Camillo “nasceu Carneiro & C.ª”.
nesta cidade [Recife] a 19 de janeiro de 1885, contando,
portanto, 50 anos de idade” – considerando que na há O Jornal do Recife reforça a notícia da ida de Camillo
dúvidas sobre a idade do falecido, corrigida a conta, para as terras de Charles Müller:
estamos falando de 1875. O obituário do Jornal do Recife,
por sua vez, na capa da edição de 3 de novembro de “[...] depois de fazer os primeiros estudos nesta capital, foi o
1925, informa que “o coronel Camillo Pereira Carneiro então jovem Camillo Pereira Carneiro para a Inglaterra, onde
nasceu no ano de 1874, a 29 de janeiro, nesta cidade”. se especialisou nos estudos de linguas e commercio, num
Em resumo, cotejadas as fontes, o mais provável é que importante estabelecimento educacional.
Camillo tenha nascido em 29 de janeiro de 1875.
Apesar das divergências em relação a data de nasci- A brochura distribuída na inauguração de escola Coronel
Camillo Pereira Carneiro, em São Caetano, detalha os Carneiro. Nascido em Jaboatão dos Guararapes (hoje
“importantes estabelecimentos educacionais” por onde incorporada à Grande Recife), em 14 de abril de 1877,
passou e a carreira que inicialmente pretendia seguir: Ernesto seguiu o mesmo caminho do primogênito em
seus anos de formação. Depois de fazer os primeiros
Assim, Camillo [...] [cursou] o colégio dos padres Josefitas estudos na capital, viajou para a Europa, onde frequen-
[Ordem religiosa estabelecida em 1817 pelo padre belga Constant tou os colégios Arriaga, em Lisboa, e dos Jesuítas, em
Guillaume Van Crombrugghe (1789-1865), fundador do St Geor- Paris. Já adolescente, retornou ao Brasil para os estudos
ge’s College] em Londres, o dos Jesuitas em Paris e o Colégio secundários no Colégio Anchieta, também jesuíta, em
Arriaga em Lisbôa. No Brasil estudou com professores parti- Nova Friburgo, no Rio de Janeiro. De lá, voltaria à Eu-
culares em Recife, depois no colégio dos Jesuitas em [Nova] ropa, para o St George’s College, onde se especializou
Friburgo [no estado do Rio]. Terminou os estudos no mesmo em economia.
colégio dos Josefitas em Londres. Regressando ao Brasil pre- Mais adiante voltaremos a falar dele e da sua impor-
tendeu seguir a carreira de engenheiro, mas a pedido de seu tância para a imprensa brasileira.
32 pai, que desejava ver continuada a firma por seus dois filhos,
ingressou juntamente com seu irmão na vida comercial.
Em 1909 entrou para a firma o socio Camillo Pereira Carneiro, Depois da morte de Maria Isabel, Camillo contrairia
pernambucano como seu irmão Ernesto Pereira Carneiro, o segundas núpcias com outra integrante da elite per-
qual já dedicava a sua actividade aos interesses da casa, que lhe nambucana, Arlinda Barbosa de Araújo, com quem teria
deve, em parte, o grande renome que hoje possue. A direcção mais cinco filhos. Sem registro de data, o casamento
da firma á qual estiveram sempre confiados interesses de gran- entre Camillo e Arlinda é citado na brochura distribu-
de vulto, particulares do próprio Governo — por intermédio do ída na inauguração da Escola Coronel Camillo Pereira
Branco do Brasil, do qual foi agente por longos annos – ficou a Carneiro, em São Caetano, em março de 1945. Está lá,
cargo dos irmãos Pereira Carneiro por haver fallecido em 1908 em Notas biográficas:
o socio Antonio Moniz Machado, que foi succedido pela viúva.
Contraiu segundo casamento com D. Arlinda Barbosa de Comércio e Navegação
Araujo, da família dos Barões de Vassouras, e deste consórcio
teve os seguintes filhos: Ernesto, oficial da reserva, advogado
e jornalista, empregando suas atividades nas organizações
do seu tio Conde Pereira Carneiro; Ruth, casada com o Dr.
Domicio Veloso da Silveira, progressista industrial, da im-
portante familia Veloso da Silveira; e Camillo, Arlindo e Tito,
respectivamente oficial da reserva e estudante de Direito, e
estudantes de Ciencias Econômicas e Medicina.
66 Àquela altura, a CCN empregava perto de quatro mil A notícia, envolvendo Camillo Pereira Carneiro Fi- 67
pessoas22. Com a morte de Ernesto, em 1953, as casas lho, o Camillito —primogênito de Camillo e Maria Isa-
começariam a ser vendidas, nem sempre aos trabalha- bel, e, portanto, irmão mais velho de Adolpho Pereira
dores do estaleiro23. Hoje, a Vila Pereira Carneiro é um Carneiro —, ganharia a primeira página do jornal A
dos mais tradicionais bairros operários de Niterói, in- Província em 27 de dezembro de 1917:
corporada ao patrimônio arquitetônico da cidade.
Triste ocorrência em bôa-viagem
Pereceu afogado
Ante-hontem deu-se um caso lamentável na praia da Boa
Viagem, que deixou em todos quantos o assistiram ou delle
tiveram conhecimento a mais profunda consternação.
21 Em O Rvmo. Bispo de Nichteroy – D. José Pereira Alves foi recebido A triste occorrencia passou-se da seguinte forma:
hontem na capital fluminense, Jornal do Brasil, 20/5/1928. O illustre coronel Ernesto Pereira Carneiro e seus sobri-
22 Idem.
23 Ver nota 47. nhos, entre os quaes o de nome Camillo Pereira Carneiro
Filho, foram passar o dia de Natal em Bôa-Viagem. go coronel Camillo Pereira Carneiro com a saudosa d. Maria
Ás 9 horas, seguramente, foram banhar-se nessa praia. Correia de Araujo Pereira Carneiro, já fallecida.
Em certo momento, notou o jovem Camillo que uma filhi- Cursava com intelligencia e dedicação o Collegio Salesiano,
nha do dr. Joaquim Amazonas de nome Maria, com 4 annos onde era muito estimado pelos seu comportamento e optimos
de edade, fora levada pelas ondas para longe . 24
sentimentos.
Incontinente o destemido rapaz resolveu salval-a, luctando A dolorosa noticia, foi levada ao conhecimento do Coronel
contra as ondas ate segural-a, a fim de trazel-a para a praia. Camillo Pereira Carneiro, em Caxangá, ficando elle profun-
Ao seu encontro foi o dr. Antonio Correia de Araujo, que damente desolado pela perda de seu querido filho.
tomou a creança dos braços de seu salvador, ficando este, A este cavalheiro e tambem ao seu illustre irmão e nosso
exhausto de forças, a luctar ainda contra o salso elemento. digno e particular amigo, coronel Ernesto Pereira Carneiro
Percebendo a situação de seu sobrinho, o coronel Pereira enviamos condolências sinceras pelo desapparecimento do
Carneiro, muito afflicto, bradou-lhe que tivesse animo, pois infortunado jovem.
ia salval-o. Soubemos á tardinha de hontem, que o cadaver do desven-
68 Infelizmente – era já tarde, e o intrepido Camillo, subindo, turado joven ainda não tinha sido encontrado e que á noite, 69
mais uma vez, á superficie d’água, desapparecia das vistas seriam feitas pesquisas com luzes, no local e immediações
cheias de afflicção de seus tio e irmãos. do desastre.
Lanchas, jangadas e outras embarcações percorreram o
local e immediações do sinistro pesquizando para ver se en-
contravam o desventurado moço, não dando, porém, o menor
resultado.
O jovem Camillo tinha perdido a vida depois de ter prati-
cado uma acção heróica, salvando a vida a uma criança.
Camillo Pereira Carneiro Filho contava 16 anos e era filho
mais velho do 1º matrimonio do nosso particular e digno ami-
24 “Camillo morreu salvando uma prima afogada, da família Amazo-
nas, que é uma família bem famosa aqui, que tem um casarão lindo,
hoje tombado. Maria Amazonas morreu agora há pouco.” Entrevista
com Eliza Pereira Carneiro. 23/1/2020.
O palacete Santa Cruz lacete de arquitetura revivalista, pontuado por duas
torres acuminadas, lembrando um pequeno castelo
normando, e localizado nos fundos do estaleiro, em
terras incorporadas do Moinho Santa Cruz, na mes-
ma Ponta D’Areia, em Niterói. Esculpido na rocha, no
alto da encosta, chegava-se lá através de um elevador
externo em dois estágios, construído para poupar os
visitantes que preferiam não encarar a longa escadaria
também talhada nas pedras.
E aqui talvez valha incluir na palavra “visitantes” o
próprio dono, pois, apesar da vultosa empreitada, não
há registro de que ele tenha morado no palacete Santa
Cruz, como ficou conhecido – ou Casarão do Moinho,
70 No final da segunda década do século 20, trafegando como também é chamado entre os descendentes. Er- 71
cada vez mais entre Pernambuco e Rio de Janeiro, os guido por volta de 191825, o endereço funcionava basi-
Pereira Carneiro podiam ser encontrados em pelo me- camente para que Ernesto passasse o dia lá, enquanto
nos quatro endereços diferentes. No Recife, o casarão estivesse em expediente de trabalho, ou então em ce-
no Caxangá de Camillo e o palacete do bairro do Es- rimônias e recepções associadas a visitas importantes
pinheiro, de Ernesto. E no Rio, ambos propriedades à companhia, como a anunciada pela revista Careta em
de Ernesto, o palacete de Petrópolis (cidade serrana 26 de maio de 1923:
para onde toda burguesia carioca se mudava quando
chegava o verão), e a mansão que dava frente para a Realizou-se sabbado ultimo uma excursão de representantes
rua General Dionísio, número 53, e fundos para a rua do commercio alto bancario ás installações da firma dos srs.
Capitão Salomão, no bairro carioca do Humaitá. Pereira, Carneiro & C.ª Ltd. sitos na vizinha cidade de Nic-
Com a compra dos Estaleiros Mauá pela Companhia theroy. Os pontos percorridos foram a villa operaria, a fabrica
Comércio e Navegação, Ernesto mandaria construir
25 Em postagem do perfil Olhar Nichteroy, no Facebook. Consultada
um quinto endereço oficial — nada menos que um pa- em 28/6/2021.
de tecidos, o dique, as officinas, os estaleiros e, finalmente o generosa doação à Igreja para ações de enfrentamento
moinho. Depois da excursão [foi servido] um almoço aos visi- à mortal epidemia naquele ano não passaria em branco
tantes na residencia do conde, onde foram trocadas amistosas aos olhos da imprensa, como noticiado pelo Diário de
saudações e enthusiasticos toasts. Pernambuco em 28 de outubro de 1919:
Vale atentar, na nota acima, para a referência a Ernesto Rio, 13 – As autoridades sanitárias, inclusive o dr. Carlos Chagas,
como “conde”. De fato, a titulação era oficial desde de são de opinião que a grippe diminue de intensidade.
1919 e ganha diferentes justificativas segundo a fonte. Não houve sessão na Câmara, no Senado e no Conselho
Sua origem, no entanto, era uma só, e histórica – uma municipal.
ligação atávica da burguesia brasileira em formação O commercio continua fechado. A Associação comercial insiste
com a Monarquia suplantada havia pouco pela Repú- com o presidente da República pela decretação de moratória. [...]
blica, com fantasias não atendidas pelas novas formas O governo entregou a quantia de 200 contos ao dr. Carlos
de dominação, oligárquica e ruralista. chagas para o combate à epidemia.
Tributários do mesmo respeito e consideração da O sr. Ernesto Pereira Carneiro offereceu 100 contos ao cardeal 73
imprensa, enquanto a Camillo pouco importava o tra- Arcoverde e ao clero para a distribuição entre os pobres, em nome
tamento de “coronel”, comumente dispensado aos da Companhia Commercio e Navegação, da qual é presidente.
senhores da elite no Nordeste, a Ernesto interessava
ostentar certa distinção social, sobretudo depois de Justamente esta última manifestação de seu “espírito
sua mudança para o Rio de Janeiro. caritativo e bom” – equivalente à metade do investi-
Cioso da reputação em construção de “ilustre cida- mento federal no combate à gripe espanhola – valeria
dão e honrado homem de negócios”, sua benemerência a Ernesto a distinção de conde, que lhe seria conferida
era regular e generosa, eminentemente assistencialista, pelo papa Bento 15, como anunciado pelo semanário A
como se pode imaginar, mas em geral voltada a causas Rua em sua edição de 16 de abril do ano seguinte:
de interesse público, como as contribuições feitas à
Liga Brasileira Contra a Tuberculose, no começo dos Sua Santidade por intermedio do Sr. cardeal Arcebispo do
anos 1900, e ao combate à gripe espanhola, em 1918. Rio de Janeiro, acaba de agraciar, com o título de conde, o Sr.
Já uma figura de destaque na sociedade carioca, sua Coronel Ernesto Pereira, conhecido industrial e prestigioso
director da Companhia Commercio e Navegação, uma das rial”, os Bragança, nos anos 194026. Àquela altura já uma
mais ricas emprezas marítimas da America do Sul, director da personalidade nacionalmente influente, proprietário
fábrica de tecidos S. Joaquim e do Moinho de Santa Cruz, tudo de um dos jornais mais importantes de então, o Jornal
em grande prosperidade, dando serviço, portanto, a milhares do Brasil, Ernesto sofreria com os humores da própria
de operários e marítimos. imprensa na companhia de outro histórico industrial,
É, pois, merecedor da alta distincção que lhe foi conferida o paulista Francesco Matarazzo:
o sr. Pereira Carneiro, não só pelo seu valor e actividade, na
direção de todas estas importantes companhias, mas, de ma- Além do mais, a República derrubou a Monarquia, é verdade,
neira especial, pelo seu espírito caritativo e bom, que o levou mas ficou na burguesia brasileira, principalmente nos meios
a concorrer com o valioso obulo de 100 contos para a subs- bem instalados do Rio, de São Paulo, o visgo bragantino. [...]
cripção aberta por monsenhor Rangel, no ultimo e terrivel E se não há mais rei para distribuir títulos, há o dinheiro
surto epidemico da “grippe”, em dezembro do ano passado, que os pode comprar fora. O conde Matarazzo começou do
e destinado a acudir os “hespanholados” pobres. nada. Fez coisas muito humildes nesta terra. Trabalhou com
74 suas próprias mãos, andou em vários e misturados negócios, 75
As memórias familiares que cruzaram duas gerações armazenou dinheiro. Armazenou muito dinheiro e um dia
até chegar aos dias de hoje registram uma história um estava no fim do seu caminho. [...] Faltava-lhe apenas o últi-
pouco distinta dos jornais da época, e fazem mais uma mo toque, o mais requintado, o definitivo: o toque nobre. E o
vez referência aos temperamentos distintos dos irmãos. Conde Matarazzo comprou no Vaticano o seu título. O Conde
Conta-se que, na realidade, o título de conde havia sido Pereira Carneiro fez a mesma coisa [...].
originalmente oferecido pela Igreja a Camillo, que des-
provido de qualquer senso de vaidade, ao contrário de
Ernesto, teria sugerido: “Eu não quero o título, deem
para o meu irmão”.
Décadas mais tarde, o caráter anacrônico e comer-
cial do título nobiliárquico de Ernesto Pereira Carneiro
seria lembrado pelo jornalista Joel Silveira em uma re-
26 Os donos de Petrópolis, revista O Cruzeiro, edição de 18/11/1944.
portagem crítica ao saudosismo da “família ex-impe- Página 64.
Jornal do Brasil mentos imobiliários da Pereira Carneiro & Cia. Ainda
em 1908, acompanhando o processo de desenvolvi-
mento da Capital Federal, Ernesto havia se tornado o
principal credor da Mendes & Cia quando a empresa
precisou captar recursos para a conclusão da nova sede
de seu jornal. O suntuoso prédio situado na avenida Rio
Branco, então o mais alto da América do Sul, receberia
ainda pesados investimentos para a instalação, em suas
dependências, de um novo parque gráfico para o Jornal
do Brasil. Vencido o prazo de dez anos, os proprietários
Candido e Fernando Mendes não conseguiram hon-
rar seus compromissos com a Pereira Carneiro & Cia.
Feitas as contas, como nem mesmo o imóvel valesse o
76 Ancorado no crescimento da Companhia Comércio e suficiente para saldar o valor do empréstimo, Ernesto 77
Navegação, Ernesto seguiu diversificando suas ativi- resolveu tomar posse também do jornal, onde já vinha
dades no Rio de Janeiro. Afora seu empenho em mo- atuando como diretor comercial.
dernizar a produção salineira e seu estaleiro naval, o Com o convite de comando feito ao jovem advogado
conde fundaria ainda em Niterói uma fábrica de juta e jornalista Assis Chateaubriand, que Ernesto conhecia
para produzir sacos. Sem falar na realização de uma desde os tempos do Jornal Pequeno, no Recife, o futuro
antiga aspiração sua de ligar-se de vez à imprensa – não magnata dos Diários Associados recebeu a missão de
exatamente pelo lado de fora, vendo seu nome ser ci- fazer do Jornal do Brasil “o mais influente e respeitado
tado praticamente dia sim, outro também em notas e do país”28. Não demorou para que, de fato, o JB se tor-
reportagens locais, mas pelo lado de dentro27. nasse um dos mais populares diários do Rio de Janeiro,
A incorporação do Jornal do Brasil como um dos seus com até cinco edições por dia e tiragens superiores a
ativos viria como consequência indireta dos investi- 60 mil exemplares.
27 Em Até a Última Página – Uma História do Jornal do Brasil, de
Cezar Motta. Editora Objetiva, 2018. Google Books. 28 Ver nota 42.
Mais que isso. Com o título de conde ainda quente conde. Com os dois pés fincados na arena dos homens
na parede, Ernesto conseguiu fazer da incorporação de imprensa, Ernesto enfrentaria uma dura campanha
de seu novo negócio em um espetacular golpe de pu- liderada pelos irmãos Mendes ao longo de todo o ano
blicidade no estabelecimento de sua reputação como de 1923. Em uma série de artigos não assinados, pu-
um dos mais influentes empresários do momento. Para blicados em O Brasil e reproduzidos pelo concorrente
ficar ainda mais próximo da notícia, Ernesto promoveu Correio da Manhã, os antigos proprietários o acusavam
a transferência da sede da Pereira Carneiro & Cia para o de fraudar livros contábeis e forjar documentos para
mesmo prédio do Jornal do Brasil, já então transforma- tornar sua dívida impagável e “apoderar-se pela vio-
do em marco do remodelado centro da Capital Federal. lência do ‘Jornal do Brasil’”, como escreveu o Correio
A inauguração das instalações da Pereira Carneiro & da Manhã em 12 de outubro daquele ano. “O mala-
Cia faria a delícia dos concorridos semanários cariocas barismo criminoso [...] das contabilidades têm sido
como O Malho, Careta e A Cigarra. “A firma Pereira o elemento básico do néo-jornalismo de bacamarte
Carneiro & Cia, Limitada, é hoje, graças á formidável instaurado pelo conde Pereira Carneiro”, martelou O
78 competência do Conde Pereira Carneiro, umas das Jornal no mesmo dia. 79
mais poderosas do Brasil”, registraria O Malho em sua Eram respostas à matéria de página inteira que Er-
edição de 14 de fevereiro de 1920: nesto havia mandado publicar em seu jornal seis dias
antes, em 4 de outubro: “As necessidades do sr. Candido
Não temos espaço para uma descripção dos confortáveis e Mendes de Almeida contra a Pereira Carneiro & Cia. Ltd.
pomposos compartimentos da nova installação desse núcleo (Companhia Commercio e Navegação) [...] são sempre
de trabalho intelligente. Bastará, porém, dizer-se que o critério, as mesmas: as do inocuo protesto desse ano são repro-
a hygiene e a arte deram-se mãos para um conjunto admirável, duções dos frivolos protestos dos três annos anteriores
attrahente e dignificador dos que ali trabalham, sendo que no [...] já devidamente desprezadas, numa [ocasião], pelo
mobiliário há verdadeiros primores artísticos de marceneria, honrado Juiz da 5ª Vara e pela Corte de Appellação, nou-
destacando-se muito a mesa de trabalho do Sr. conde Pereira tra, pelo integro Juis da 4ª Vara Cível”.
Carneiro, executada no Lyceu de Artes e Offícios de S. Paulo. A questão se arrastaria ainda por alguns anos e novas
apelações jurídicas dos irmãos Mendes de Almeida se-
Mas nem tudo foram flores no canteiro jornalístico do riam feitas, sem qualquer efeito prático contra o conde.
80 PARTE 3 — ADOLPHO, O SEGUNDO 81
“À sombra do conde” a alma agrária da região para a qual regressaria em de-
finitivo, já adulto, como veremos mais adiante. Mas
os anos, aqui, ainda são de formação, de modo que
depois de frequentar o Colégio Salesiano até os 14 anos
e o Ginásio Pernambucano até os 16, Adolpho Pereira
Carneiro, como era comum entre os jovens de elite, e
seguindo os mesmos caminhos trilhados por seu pai
e seu tio, partiu para completar os estudos na Grã-
-Bretanha – primeiro no Saint George’s College, em
Weybridge, nas redondezas de Surrey, na Inglaterra,
depois em um curso de especialização em finanças, em
Glasgow, na Escócia29.
Se os registros familiares não deixam dúvida sobre
82 Até sua adolescência, pouco saberemos de Adolpho quando o jovem Adolpho partiu para os estudos na In-
Pereira Carneiro, filho de Camillo, sobrinho de Er- glaterra, seu regresso ao Brasil é fruto de controvérsia.
nesto. Como todo jovem da elite pernambucana do Diz o livro-manuscrito com a história da firma:
início do século 20, seu cotidiano ao longo das duas
primeiras décadas de vida, supõe-se, esteve voltado Em 1918, passou a interessado com 10% o antigo auxiliar e
basicamente para o convívio em família e os estudos. procurador, sr. Ernesto Nascimento, que assim se conser-
Ou talvez nem tanto assim. Os manuscritos deixados vou até 31 de dezembro de 1923, quando se retirou sendo
por sua futura esposa Odete registram a participação substituído pelo sr. Adolpho Pereira Carneiro, filho do socio
de Adolpho ainda um estudante de 15 anos do Ginásio Camillo Pereira Carneiro e que nessa epoca já trabalhava no
Pernambucano, em Recife, na fundação de uma “coo- escriptório da casa.
perativa agro-pecuária em São Caetano”, certamente
ligada aos trabalhadores e atividades da fazenda São A família, no entanto, sustenta que a temporada de
José, que herdaria anos mais tarde do pai.
A aventura juvenil mostra uma ligação precoce com 29 Segundo anotações de Adolphinho. Folha 8.
Adolpho na Ilha só findou aos 22 anos – em 1925, por- dos Pereira Carneiro, no mesmo cemitério. O Diário de
tanto – de idade e teve como motivo a morte precoce Pernambuco anotou, em 12 de novembro:
do pai, aos 50 anos, em 1º de novembro de 1925. Camillo
estava acamado havia quinze dias, possivelmente em Levantada a tampa do caixão, foi o morto beijado pelo sr. con-
decorrência de uma pneumonia, quando “sobreveio- de, condessa e sobrinhos, estes filhos do morto, sendo em
lhe um derramamento cerebral, que resistiu a todos seguida sepultado.
os esforços empregados pelos seus illustres medicos
assistentes”, de acordo com o Diário de Pernambuco em Os rapapés ao “saudoso capitalista e grande industrial
sua edição de 3 de novembro daquele ano. pernambucano” incluiriam ainda a exposição de um
A pedido do irmão Ernesto, o corpo foi embalsama- “bello retrato” em tamanho natural “encerrado em rica
do para que ele e a irmã Martina pudessem chegar do moldura” na vitrine da “acreditada Photographia Pie-
Rio de Janeiro a tempo de despedirem-se dele antes do reck”. Prossegue o Jornal Pequeno em 14 de novembro:
enterro. Velado no salão nobre do Palacete do Caxangá,
84 na tarde do dia 2 de novembro, Camillo seria transfe- No retrato não se sabe o que mais apreciar. Si o perfeito e 85
rido para a capela do mausoléu dos Muniz Machado, seguro acabamento technico, si a naturalidade da expressão
no Cemitério de Santo Amaro, à espera da chegada do physionomica do cel. Camillo Pereira Carneiro.
irmão. A cerimônia foi noticiada pelo Diário do Estado
no dia 3 de novembro: Com a volta ao Brasil para o enterro do pai, Adolpho
terminaria se juntando aos irmãos menores – Maria,
O cadaver estava vestido de frack preto e sapatos de polimen- Isabel, Maria Beatriz, José e os filhos do casamento de
to, sendo collocado em riquísimmo ataúde de veludo negro Camillo com Arlinda Barbosa de Araujo – como tutela-
com alças de prata e incrustações prateadas. O cortejo era do do tio Ernesto. Não há registro de quando os caçulas
formado de um carro funebre de 1ª classe, puxado a quatro de Camillo teriam se mudado para o Rio para morar
cavallos, e de cerca de 300 automóveis e carros. com o conde, mas é possível deduzir que foi depois da
morte de Maria Isabel, em 1910, e antes de Camillo se
O enterro de Camillo aconteceu quatro dias depois, em casar pela segunda vez, com Arlinda. O reencontro dos
7 de novembro, com o traslado do corpo até o mausoléu irmãos – agora órfãos de pai e mãe – no Rio de Janeiro
pode ser estabelecido com a ajuda do Diário do Estado, Adolpho e Ernesto
que em 3 de novembro de 1925 noticiou a chegada de
Ernesto a Recife para o enterro do irmão:
30 Dos “cadernos” da Odete. Folha 1. A princípio, ele disse que se excedeu um pouco, fazendo
muitas farras e festas. Dava muitas festas sempre com belas balho na área de contabilidade dos negócios familiares.
mulheres. Em pouco tempo, contudo, teria percebido irregula-
ridades em movimentações de executivos ligados ao
Mas o oba-oba não duraria muito tempo, como Odete tio e resolveu fazer uma auditoria na Companhia de
aponta logo em seguida: Comércio e Navegação.
Com as informações em mãos, foi ao conde e expôs
Os amigos que participavam e usufruíam das diversões e pra- quem estaria roubando a empresa, ao que o tio, se-
zeres, estes próprios faziam muita fofoca e propaganda, o gundo Adolphinho, preferiu ignorar as informações. O
que desgostou e muito a ele em ver tanta hipocrisia, falta de conde, sem perder o sotaque, teria dito a Adolpho: ‘Não,
coleguismo, sempre procurando desmerecê-lo. Resolveu se meu sobrinho... Invente coisa não, são pessoas boníssi-
afastar do convívio da sociedade. mas, você está enganado, essas pessoas são maravilho-
sas”. Teria sido a gota d’água. A partir dessa conversa,
Além de ter se decepcionado com a hipocrisia do univer- Adolpho tomou a decisão de abandonar o convívio com
88 so tão particular que era a sociedade carioca da época, o tio, pois acreditava que os dias da Companhia, sob 89
ainda ligada à rigidez do regime monárquico cujo de- administração de sua família, estavam contados.
funto seguia fresco naquele início do século 20, o afas- Em outra versão, registrada por Odete em suas me-
tamento de Adolpho do convívio da sociedade carioca mórias, ao voltar para o Rio, seu futuro marido teria sido
teve também um motivo profissional. A depender da incumbido de gerenciar a fábrica de malhas da Várzea,
fonte pesquisada, essa motivação muda, mas sua origem um dos negócios da família, em Pernambuco. Adolpho
é sempre a mesma: um desentendimento entre Adolpho teria aceitado a posição a contragosto, apenas para pro-
e o tio Ernesto na gestão dos negócios familiares. var que era capaz de trabalhar, e não apenas farrear. Se-
Em uma das versões, antes de retornar ao Brasil, gundo escreveu Odete, o próprio conde Ernesto contou
Adolpho trabalhou durante um ano na Escócia como essa versão no dia de seu casamento com Adolpho:
correspondente bancário da Pereira Carneiro & Cia.
Assim, aproveitando essa experiência e o próprio curso Quando pagou todos os débitos da empresa, regularizou to-
de finanças que havia feito, Adolpho, já vivendo no Rio, dos os departamentos e deixou saldo nos bancos, escreveu
passou a conciliar sua “vida de milionário” com o tra- ao tio: ‘Nesta data estou entregando o cargo ao senhor, eu
só quis provar que sou responsável mas também sei farrar e O mar e o agreste
[me] divertir e honrar meu nome. De hoje em diante, eu sou
apenas Adolpho Pereira Carneiro, e não sobrinho do conde.
Com meu respeito e amor, Adolpho’.