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SUBINDO O SOLIMÕES

Newton Marcos Leone Porto


(Zé Itatiaia)

2019

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Foto de composição da capa: Firmino Cachada
Arte finalista: Simón Eugênio Sáenz Arévalo
Revisão: Carla Rodrigues

Direitos autorais preservados conforme a Lei nº 9.610/1998.

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O QUE É ESTE LIVRO

Desde que conheci a Amazônia fiquei imaginando como contar o que é a vida
naquele mundão de meu Deus a quem não teve, e talvez não tenha, a oportunidade de viver
essa interessante experiência.
Afinal, aquela região é a metade do território do Brasil, mas é a metade que a
maioria dos brasileiros desconhece... e olha que ainda tem Amazônia em mais oito países
vizinhos.
Invariavelmente quando alguém diz que já esteve por aqueles recantos se refere a
Belém, Manaus, às suas imediações, ou mesmo à sua borda sul, ou seja, na reduzida parte
onde acontece o dito turismo ecológico ou na parte em que a agroindústria vem avançando.
Mas, não onde acontece verdadeiramente a vida naquela imensa região de água e floresta,
aquela vida que existe em seu interior por muitas e muitas gerações.
O que tenho lido a respeito foi um bocado de crônicas e contos sobre um tantão do
que ocorre nas entranhas daquele mundo sui generis. Boa literatura.
Mas, aqui vou tentar fazer um pouco diferente, esmiuçando um bocado o jeito de
viver do caboclo, aquela conversa de pé de ouvido no dia a dia com a mata e com o rio e que
tem permitido sua gente sobreviver ali por tanto tempo.
Caçando u’a maneira de fazer a coisa ficar interessante findei por achar que se
colocasse o assunto como uma aventura e contada por um forasteiro que ali viveu por algum
tempo e, portanto, teve de se integrar à cultura do lugar e também se sentir gente do lugar,
talvez fosse possível levar as pessoas a ler um pouco sobre a vida amazônida.
Daí surgiu a ideia de transformar em um pequeno livro os registros amontoados
durante uma viagem de barco que fizemos, minha esposa e eu, subindo boa parte do
principal rio que corta ao meio o Estado do Amazonas, o Solimões, na verdade uns 1.000 km
de Manaus a Jutaí.
É como se fosse um diário de viagem, com breves comentários a respeito do que
fomos observando e do que foi acontecendo durante o percurso da origem, o porto de
Manaus às margens do rio Negro, ao destino, a vila de Copatana, no rio Jutaí, e o retorno até
a cidade de Tefé, bem no centro daquele estado.
Também busquei no fundo do baú uns fatos do passado enxertando-os no meio do
texto, para ajudar entender como funcionavam as coisas por ali.
A linguagem de propósito tem um bocado da mistura do “goianês” com o “caboclês”,
pois, afinal, é o relato de um forasteiro adaptado ao contexto daquela região, de como foi
possível perceber e sentir a vida naquele mundo onde a natureza ainda ditava à época o
ritmo e a forma dos acontecimentos.

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Fonte mapa original: www.google.com

Mapa do Estado do Amazonas

E a quem não tenha familiaridade com termos regionais dos cafundós amazônicos,
no final dessa história tem uma lista de “tradução” visando facilitar o entendimento de quem
“voa” em algum significado.
Ah! Aviso ao leitor que vai encontrar um montão de palavras repetidas. Isto pelas
regras é um pecado contra a boa escrita. Mas, essa repetição e a irreverência no linguajar
são propositais. A intenção é cá dizer as coisas como lá se diz, é para a escrita ajudar a
integrar a narrativa ao contexto.
Tenho de dizer ainda que, apesar dos tempos idos até os atuais as mudanças terem
bulido muito com o jeito de ser do caboclo, quero me ater naquele que herdou de seus pais e
avós, pois foi assim que conseguiu chegar, aos trancos e barrancos, aos dias de hoje.
Então, o foco é o rio, a floresta e o jeito de viver do caboclo amazonense, enredado
no meio da viagem de barco subindo o Solimões e de algumas lembranças do que por ali se
sucedeu.
Se isso vai dar certo, não sei. Será você que, se ler o livro, dirá se consegui ou não
comunicar como é que se vive no interior da Amazônia. Portanto, bom proveito e, depois, se
puder, diga-me o que achou. Desde já, meu muito obrigado.

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ÍNDICE

Desatracando do porto de Manaus

Entrando no Solimões

Coari na proa

Vila Alfaia e a “terra caída”

De catraias a batelões

Pelo paranã rumo a Tefé

Como foi construir o aeroporto de Tefé

De volta ao Solimões

Jutaí à frente

Enfim, atracando no Copatana

Na proa da volta

Tefé e tantas histórias

O Catalina – assim foi um caboclo voador

Arribando rumo a Manaus

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SUBINDO O SOLIMÕES

DESATRACANDO DO PORTO DE MANAUS

Nossa Amazônia! Metade do tamanho Brasil e maior que qualquer país da América
do Sul. Sozinha faz fronteira com sete desses países e, de quebra, também tem um litoral de
mais de 1.200 km de extensão... uma desconforme fábrica de lonjura.

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Rios gigantes, um amontoado de igarapés e de igapós onde a descomunal floresta
se mistura a caudalosas águas, ora barrentas e ora escuras e todas singrando rumo a um só
ponto do Atlântico.
Nessa vastidão toda sobrevive só 12% da população brasileira. A cidade de São
Paulo tem mais gente do que em toda a nossa grande Amazônia.
Ali é o caboclo que luta e labuta da hora em que nasce até na hora de morrer. Ele é
uma mistura de índio com nordestino, duas gentes acostumadas aos aperreios do interior e,
por isto, gentes valentes.
Para o caboclo o que não é do Norte é “Sul”... não tem meio termo. E o Norte, sua
terra, acaba nas ilhargas de Rondônia, norte do Mato Grosso e Pará... o resto, não tem
conversa, para ele, é “Sul”.
E ele vê que do “Sul” em geral o que aparece é aventureiro ou fiscal de alguma
coisa. De rebarba chegam alguns bem intencionados e bem poucos vão além das intenções.
Pois é! Eu, no meio disso, depois de muito levar bordoada aprendi a gostar dali e
daquele povo.
Apeei de madrugada na porteira de entrada da Amazônia, Belém, lá pelo início dos
anos 70 e, quando a porta do avião abriu entrou aquele bafo quente e úmido, parecendo
coisa de sauna.
-“Nossa! Mas, aqui é quente, assim?!”
- “Aqui até que é fresco. Quente mesmo é no meio da cidade” – respondeu o colega
de viagem.
E era mesmo! O suor escorria em bicas o tempo todo. E fui para ficar sabe-se lá até
quando.
Amanheceu e desde cedo um mormaço danado abafava em todo lugar. Procurei
uma sorveteria e perguntei picolé de quê que tinha e a resposta me deixou mais estonteado
do que já estava:
-“Abacaba, taperebá, cupuaçu, açaí...”
-“Pera aí, menina. Nem sei o que você está falando...”
Ela riu.
-“Tu não és daqui, não é? Tu és lá do ‘Sul’.”
Pai d’égua! Já estava definido que eu era alienígena.
No mercado Ver-o-Peso vi no balcão e pedi um copo de canjica.
O caboclo botou na minha frente num pires um pedaço de curau.
-“Mas, eu pedi foi canjica!...”
-“Pois então, aí está.”
-“Não! Isto aqui é curau.”
-“O quê, rapaz?! Aqui não tem isso, não.”
Apontei o que eu queria e, rindo da minha ignorância:
-“Tu não és daqui, não é? Tu és lá do ‘Sul’. O que tu queres é mugunzá, rapaz!”
Caramba! Adaptar aqui vai ser uma briga.
Para completar, um colega me convidou a acompanhá-lo na “merenda”, antes da
chuva diária, claro! E lá fui eu “merendar”.
Debaixo de um sol esturricante paramos numa banca de esquina e, então, uma
cabocla toda de branco, atrás de um tacho fumegante contendo u’a mistura de tucupi, jambu,
camarão e outras trosobas mais, serviu-nos em uma cuia aquela gosma esverdeada fervente.
Olhei aquilo... olhei pro colega... olhei para ela... e, duvidando que aquilo fosse comestível:
-“Pago o dobro se a senhora tomar esse trem.”
Ela caiu na gargalhada e sentenciou-me:
-“Tu não és daqui, não é? Tu és lá do ‘Sul’. Isto é tacacá, isto é o que há de melhor
no mundo. E quem toma tacacá não sai mais daqui.”
Rapaz! E num é que não saí, mesmo? Findei por “sentar praça” por aquelas terras
por um tempão da vida. E acabei aprendendo a gostar.
Região muito difícil para a gente do “Sul”, mas também muito bonita. Um mundo
diferente, mundo das águas, mundo das matas, mundo do caboclo batalhador, mundo de
sobreviventes.

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Gostei tanto que, vira e mexe tô de volta naquela enorme sauna da natureza. Não dá
para comparar o aqui e o lá. São, de fato, países diferentes. Geografia, povo, cultura, comida,
jeito de falar... tudo diferente. E o caboclo tem um amor por aquele torrão calorento e
ensopado que não é brincadeira, viu?
Aquele rincão socado no distante “Norte” me cativou tanto que, numa das voltas por
lá, juntei imagens na toada da viagem, tentado registrar as coisas que fazem o dia a dia da
majestosa Amazônia. E olha que a viagem foi bem no estilo caboclo.
De barco “recreio” (tipo gaiola) de Manaus a Tefé e, de daí em diante, noutro menor
ainda até a vila de Copatana, às margens do rio Jutaí... “só” umas 80 horas gingando no
convés por uns 1.000 km, enquanto subíamos o rio Solimões.
E é esta a história:

Fonte: autor

O chão caboclo é de areia e argila. Pedra boa mesmo só acima da calha do rio
Negro. O resto é aquela mistura arenosa que num dá consistência. Ruim para pasto e pior
para roça.
Veja a cachoeira aí da foto. Fica no município de Presidente Figueiredo, uns 120 km
ao norte de Manaus, indo pela BR-174.

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Faz parte de um conjunto de quedas d’água que, diferente das do “Sul”, são
temperadas. Pode-se, então, entrar e se banhar sem susto de passar frio.
Água muito limpa, transparente e aquele barulhão de cachoeira desabando em riba
das pedras. Foi uma espécie de “benzeção” à viagem rumo ao Solimões.
Viagem que começou no porto de Manaus, cheio de atracadouros ao cardume de
“recreios”.
O porto é antigo, da dita Era da Borracha, quando os ingleses ainda infestavam as
ruas manauaras e faziam o comércio do látex com o mundo todo, mas presta os seus
serviços até hoje.
É dele que partem e chegam os “recreios” ou “motor”, como lá são conhecidos.
Funcionam como se fossem os ônibus intermunicipais e até interestaduais da Amazônia.

Fonte: autor

Os “recreios” são cascos tipo “baleeira”, ou seja, quilha miúda e fundo achatado que
atraca em qualquer praia.
Também tem os “meia-baleeira”, alcunhados de “rola-rola”, pois têm casco mais
estreito e, por isto, balançam mais no meio do banzeiro (marolas).
A velocidade média é de 13 km/h na subida e uns 15 km/h na baixada. Só tem 2
“classes”: camarotes... poucos, e redes... muitas. E em geral tem 2 banheiros por convés.
Neles se transporta de tudo e, para muitas das vilas penduradas nas barrancas dos
rios, é o que existe de comunicação com Manaus, única metrópole do interior da floresta e
que abriga metade da população daquele maior estado da federação.
Tem muito caboclo que mora com sua família em embarcações assim, de madeira, e
por muito tempo. Em tais casos, invariavelmente têm 4 cômodos: a ponte de comando, a
cozinha, uma área maior onde ficam as redes de dormir e o porão, que faz as vezes de casa
de máquinas e depósito de tudo quanto é tipo de tranqueiras.
A cadência monótona do motor ajuda a rede a embalar o caboclo por dias, cortando
aquelas águas imensas até um lugarzinho sumido no meio da mata, onde ele pratica algum
tipo de extrativismo e volta na mesma toada no rumo do velho e conhecido porto de Manaus.

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Fonte: autor

Mas, vamos embarcar que já está na hora de puxar a prancha, desatracar, virar o
leme, dar força no motor e rasgar água.
Abandonar o porto requer poucas manobras, pois a baía do Rio Negro frente à
cidade tem espaço e fundura de sobra até para os grandes navios da Petrobrás.
Na altura do igarapé do Tarumã, um pouco a noroeste do porto, a largura da baía
passa dos 10 km, a mesma distância entre Rio e Niterói.
E logo Manaus vai ficando ao longe. Seus prédios vão se amiudando no horizonte, a
água vai tomando conta da paisagem e fazendo-os sumir de vez.

Fonte: autor

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Mais à frente, já no rumo da embocadura do Furo do Paracuúba a proa corta da
água escura do Negro para a água barrenta do Solimões.
“Furo” naquelas bandas é um braço d’água que alaga a terra baixa na época da
cheia, deixando os barcos varar por ali e, assim, economizar o tempão de viagem que levaria
para contornar a extensa ponta de terra que por léguas separa os dois rios.
Ali é uma minúscula amostra do decantado “encontro das águas” que fica mais à
frente e que, de verdade, é a trombada do rio Negro com o rio Solimões, daí parindo o rio
Amazonas que se espicha até topar com a ilha de Marajó, perto de Belém.

Fonte: autor

Água escura é a do rio Negro e a barrenta é a do Solimões .


.

Só vê o furo quem conhece bem a sua entrada e só nele navega quem conhece a
sua fundura. Tem de ser caboclo experiente.
Ao longe se vê bem a silhueta de um navio tanque da Petrobrás à espera de iniciar
viagem prá Belém... 5 dias. O monstro de casco de metal tem de ir devagarinho, porque,
senão, o banzeiro que ele faz sai alagando tudo quanto é tapera de caboclo à beira d’água,
afunda as canoas e apressa a “terra caída”, que é o desbarrancamento progressivo das
margens dos rios, levando tudo que tem e até a vida do caboclo. Antigamente não tinha
esses cuidados e a desgraceira era grande. Sem ter a quem reclamar o caboclo tinha de
recomeçar tudo de novo. Não bastasse ter de enfrentar os estragos das insistentes
enchentes, ainda tinha o aperreio de vida que os navios causavam ao seu mundo.

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Fonte: autor

Ah! Agora apareceu a entrada do furo, então é só embicar naquele rumo e logo a
gente vê a vilazinha de palafitas aparecer, como se estivesse numa jangada grande
esparramada à beira da floresta.
Assim é mesmo a coisa pelos beiradões. Condições precárias para tudo e
facilidades para nada. É como se o Brasil não tivesse chegado por ali, ou se chegou, só dá
as caras de vez em quando.
Tem gente que até tenta, porém é canseira dar conta de tudo, as lonjuras, tudo muito
afastado, um Estado do tamanho de país e daqueles para lá de muito grande.
Ainda mais, tem gente achando que o caboclo não precisa de remédios de farmácia,
porque as ervas da mata que ele usa são melhores. Ledo engano, pois o uso dessas ervas é
porque ele não tem atendimento médico e nem remédio.
Quer ver? Numa cidade de interior daquelas muitas tinha só um médico e era clínico
geral. Aparecia de tudo no pequeno e único hospital num raio de quase 200 km.
Era de picada de cobra, a cabeça rachada por ouriço de castanha, escalpo do coro
cabeludo por palheta de motor de barco, ferida de fogo e até ferroada de arraia.
E o único homem de branco tinha de se virar e resolver de tudo.
Sem onde o povo adquirir remédios ele montou uma pequena farmácia perto da
praça da cidade.
Adivinhe o que aconteceu uns tempos depois?
Então!... Apareceram lá uns fiscais para multar e mandar fechar a farmácia, pois,
além de médico não poder vender remédio, tinha de ter farmacêutico no negócio.
Como resultado ficou acertado assim: o doutor fecharia sua farmácia e os fiscais
mandariam um farmacêutico que abriria outra, toda bem arrumadinha e tudo dentro dos
conformes.
Sabe quando isso aconteceu? Nunca!
O médico teve de continuar com a sua funcionando e atendendo o povo
necessitado.
Leis feitas por engravatados nos luxuosos palácios da capital do Paranoá não
funcionam lá muito bem no meio do mato.
Está com dor de dente? Não tinha dentista, só o “prático”, aquele que aplica a
anestesia, pega o boticão e arranca o dente.
Espera desinchar, cicatrizar e, então, faz o molde da “perereca” (dentadura). Escolhe
os novos dentes, monta a peça, lixa daqui e dali e dá polimento.
Experimenta uma vez, duas e quantas forem preciso, raspa de um lado e do outro
até se assentar direito e não incomodar mais. Pronto! O caboclo está de dentes novinhos em
folha e, para ele, tem uma vantagem de lambuja... nunca mais vai doer.
Bem! Mas, vamos lá que as águas vão passando.
O barco continua na sua marcha dividindo a água, fazendo banzeiro e finda por
balançar as canoas passantes, lambendo o matupá que amoita as barrancas e afogando

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mais ainda a mata vizinha, cujas árvores se esticam tentando vir à tona. É uma luta de
gigantes, de florestas e de rios, ambos portentosos.
No meio disso tudo a vida se aproveita e se alastra debaixo e por cima da água.
Debaixo é uma enormidade de peixes rabeando para lá e para cá à caça de petiscos.
E os petiscos são os insetos que disparados voam rasante sobre a água, até que,
num descuido, nela quicam e viram comida de peixe.
Mas, tem peixe que prefere mesmo as muitas frutinhas silvestres que despencam
das grimpas das árvores e lhes fazem a festa lá embaixo.
Vez por outra chega o bicho homem e acaba com aquela farra fisgando para o
almoço ou para janta um escamoso daqueles.
Se fosse só isso até ficava de bom tamanho. Mas, não é.

Fonte: autor

Tem os “geladores”, barcos com uma grande caixa de madeira no meio do convés
que acomoda, além de um cardume inteiro, todo o gelo que precisa para chegar ao porto com
a carga ainda boa de se vender e comer. E nessa leva vai peixe graúdo e miúdo, o que já
desovou e o que ainda não.
Um dos jeitos do caboclo é que ele vive do imediatismo. Resolveu o problema de
hoje? Tá resolvido! E o amanhã? Dá-se um jeito. E, assim, vai.
Mas, de uns tempos para cá, alguns biólogos começaram, lá na boca do rio Japurá,
um baita estuário, um trabalho de mostrar à caboclada dali que se não der trégua ao peixe
dele se reproduzir, logo vai faltar, e é para sempre. Rapaz, não é que isso vem dando certo?
Agora, peixe ovado fica na água. E são os próprios caboclos que alertam os “geladores” para
que não pesquem fora da época certa. É a Reserva de Mamirauá, uma boa área espremida
entre o Japurá e o Solimões.

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Fonte: Fundação Amazonas Sustentável

Mas, deixando o beiradão à retaguarda vamos de volta à viagem, pois lá vem outro
barco baixando pelo furo. No cruzar com ele o banzeiro de um se choca com o do outro, daí é
proa para riba e para baixo como se tivessem se cumprimentando. O convés enverga, range
e até assusta quem não conhece.
Os furos só funcionam durante as cheias, pois seus canais não são muito fundos e
barco carregado pode encalhar.
Tem alguns que chegam a secar completamente na época da estiagem e, daí, os
barcos têm de fazer uma enorme volta que lhes toma tempo e gasto de combustível a mais.
Porém, se acontecesse isto só com os furos ficava de bom tamanho. Mas, não.
Tem rio grande, como o Juruá, que banha terreno muito plano e, então, dá mais volta
que estrada no meio de serra. É raso, com bancos de areia em cada dobra e o canal fica
espremido nos cantos.
E quando chega a seca, aí danou-se! Barco e balsa grandes nem entram nele, pois
é certo que, se tentarem, vão arrastar o casco no fundo e ali ficar até as chuvas devolverem
as águas ao rio.
Até em lagos acontece e um bom exemplo é o de Tefé que, em alguns períodos de
seca chega a despontar bem no meio do canal uma senhora duma praia que fica se
mostrando, enquanto não voltam as torrenciais chuvas.
Bom, gente! Vamos voltar a apreciar a viagem.

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ENTRANDO NO SOLIMÕES

Saindo do Paracuúba o velho Solimões surge do tamanho de um mar... um mar de


água doce que domina tudo por onde serpenteia.
Ele é soberano e se impõe a todos os demais elementos... mesmo ao homem, que
dele sempre depende.

Fonte: autor

Pelos rios viajam de tudo que se pode imaginar.


Por exemplo, assistir o embarque de um carro num “recreio” no porto de Manaus e,
depois, o seu desembarque em uma das pequenas cidades do interior, até parece que é
assistir aquele programa “Ciência do Absurdo”. Coisa de louco! Só tem duas pranchas de
madeira de uns 30 cm de largura por uns 5 m de comprimento, apoiadas na beira do convés
e na beira do porto ou do barranco, conforme o lugar.
É um motorista pilotando, alguns chapas orientando e muitos “sapos” palpitando.
Doidura pura, seo moço! Se aquilo começar a despencar dali ninguém segura mais. Vai virar
poita no fundo do rio, com certeza.
Além dos barcos de casco de madeira tem também as balsas de ferro. Elas
transportam carga mais pesada, como os tambores de “combustol” – apelido do óleo diesel
naquelas bandas – que alimentam os grupos geradores das cidades do interior da Amazônia.
Claro, lá tem muita água, mas na maior parte é mansa, sem quedas que dê para
fazer hidroelétrica. Então, a energia elétrica se consegue é queimando diesel mesmo... e sai
caro, muito caro.
Lá pelos anos 70 fez-se um estudo sobre a viabilidade de se usar energia solar. O
problema é que tem uma época do ano que o céu fica cheio de nuvens, daí... o papo mixou.
Também já se pensou naqueles cata-ventos de energia eólica. Mas, vento ali só dá
as caras quando tem temporal, que costuma passar ligeiro e arrasta o sopro com ele. Então,

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também não dá. Eletricidade ali é só mesmo na base do tal “combustol” e ele também chega
de balsa pelo rio.
Uai, sô! Por aquelas bandas até gado viaja é de barco. No “Sul” é caminhão
boiadeiro e no “Norte” é batelão boiadeiro, é uma espécie de “expresso boiadeiro fluvial”.
Leva dias cortando água até chegar no destino. Já imaginou gado mareado? Pois é, existe.
Até ele se aprumar leva um tempo.

Fonte: autor

Transporte de gado em barco.

Fonte: autor

Espaço na 2ª “classe”, é rede relando em rede, todo mundo acochado.

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Imagine só desatracar de Belém e subir o rio por uns 10 dias num desses barcos. É
o que os tripulantes (5 em média) fazem a vida toda. Vão e voltam sem prazo certo, pois a
toada da viagem depende do que vai acontecendo. É o motor que engasga, é o casco que
vaza, é o temporal que alaga... e daí vai.
Distrair a bordo, fora ficar vendo água e mato, é ficar jogando conversa fora com a
colegada de viagem, já que todo mundo está espremido por ali.
Nem tente balançar na rede. Tem jeito não. E é bom deitar enviesado que é para a
coluna ficar reta e no dia seguinte ter condições de ficar de pé.
No raiar do dia um bocado de passageiros enrola as redes nos punhos (parte que
tem a alça de enganchar), dando mais espaço no convés onde, depois, é montada a mesa do
café da manhã.
Terminado o rango desmonta-se a mesa e fica um bom pedaço do convés livre para
os passageiros ficarem zanzando de um lado para o outro sem ir a lugar nenhum.
Essa zanzação vai aumentando à medida que o povo vai ficando inquieto. E sabe
por quê? É que por detrás da linha do horizonte vai se aprochegando a primeira cidade de
atracação, ou seja, vai ter parada para desembarcar e embarcar passageiros e cargas, pisar
em terra firme e desempenar o espinhaço.

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COARI NA PROA

Chegando a Coari, longe uns 450 km de Manaus pelo rio. É uma das melhores
cidades da rota.
Devagar vai aumentando a quantidade de embarcações, enquanto o “recreio”
desliza rumo ao porto.
Outros “recreios”, rebocadores e balsas, canoas a remo, “deslizadores” ou
“voadeiras” (canoa de alumínio com motor de popa), batelões (casco grande sem motor, que
são atracados a outro já motorizado, para aumentar a capacidade de carga), todos vão se
ajuntando no entorno do pequeno porto, onde a movimentação de gente é grande.
Afinal, a chegada de um “recreio” é sempre uma atração, pois traz as notícias da
capital e não é só nas conversas cheias de perguntas e com as respostas de sempre “lá está
tudo bem, a Raimunda mandou um abraço”, mas, também, nos jornais e nas revistas que
chegam e logo começam a circular do porto até o centro da cidade.

Fonte: autor

A maior parte da economia de cidades assim vem da mata e do rio, é extrativista:


peixe, castanha, açaí, madeira, etc.
Mas, existem também as plantações de banana, cacau, macaxeira e temperos. A
manufatura se restringe a farinha e, claro, cascos de barcos. O que não é consumido na
própria cidade vai de barco para Manaus. Mas, o carro chefe é mesmo o peixe.
Os grandes barcos geladores lotam suas “caixas de gelo” com pescado de todo o
tipo: tambaqui, jaraqui, matrinxã, tucunaré, pirarucu, etc., e é no porto de Manaus que eles
fazem a festa, vendendo o lote todo ou parte que vai abastecer os mercados, restaurantes e
até indústrias.

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Impressiona quem não conhece bem é o jeito de pegar o peixe. É de arrastão e é o
cardume inteiro.
Quando aporta no “lance”, que no “Sul” o pessoal chegado a dar banho em minhoca
chama de ceva, desatracam da popa duas canoas a cabo de remo e vão assuntando donde
pode estar o cardume.
Tão logo os peixes são localizados por uma leve movimentação que fazem na
superfície da água, cada canoa sai para uma banda e já distribuindo a rede de arrastão de
jeito a formar um cerco ao cardume.
Daí, cada vez mais as canoas vão se aproximando uma d’outra, apertando o cerco
até a rede fazer uma espécie de saco e nele prender do graúdo ao miúdo, sem distinção.
Então, os pescadores pulam para dentro da rede e o trabalho passa a ser catar
peixe com um samburá (cesto de cipó) e jogar dentro das canoas até a água estar lambendo
suas beiras. Abarrotadas elas seguem até o “gelador” e o pescado vai para a caixa de gelo,
de onde só sairá para seguir destino à banca do mercado.
Todo peixeiro antigo sabe o que significa “Escadaria dos Remédios”, pois é adonde
seus geladores atracavam na capital para descarregar a carga de pescado. É um dos pontos
conhecidos da capital manauara, pois bem junto tem também o mercado que, nos dias
atuais, virou lugar de visitação de turistas.
Aquele pedaço da cidade que recebia os peixeiros vindos de tudo quanto rio do
Amazonas era intensamente movimentado, tendo um comércio variado e dirigido a atender o
pessoal que vinha dos povoados interioranos e o que tripulava os barcos por ali atracados.
Aquilo ali era a Manaus daqueles que viviam do comércio feito nos rios pelo interior
adentro. Aquela gente simples que, uma vez o “motor” atracado, só saia dele para
perambular pelas lojas da proximidade, gastar quase tudo que conseguiu vendendo peixes e
voltar para bordo, pois que era seu lar durante a maior parte da vida.
Outra coisa que não falta em cidade à beira de rio é posto flutuante de combustíveis
no porto, onde os barcos se abastecem de “combustol”.
É... tem posto fluvial. Por ali é chamado de “pontão”. Os grandes depósitos metálicos
de combustíveis ficam sob um “flutuante”.

Fonte: autor

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Pelas bandas amazônicas o combustível não é nada barato, já que o preço do frete
para fazer com que chegue a esses postos é alto. Além das baitas distâncias tem ainda o
risco de topar com um banco de areia ou com uma tora semi-submersa.
Nesses postos além do “combustol” também tem gasolina e óleo de motor. Não tem
lojinha de conveniência, mas sempre se dá um jeito de atender a fiel freguesia. É só chamar
um catraieiro que sem demora ele traz o que lhe for encomendado.

Fonte: autor

E num é que tem concorrência?

Por causa do transporte de peixe uma coisa que não pode faltar em qualquer desses
lugarejos é a “fábrica” de gelo.
De verdade elas são imensos congeladores cheios de formas com água para fazer
as pedras de gelo que, dali, são quebradas e jogadas dentro das “caixas de gelo” dos barcos,
e vão dividir espaço com o pescado até chegar no destino.
Quando o motor de um desses barcos pifa no meio do caminho o gelo vai
derretendo, o peixe estraga e o prejuízo é total.
A tripulação só não volta sem nada porque volta com uma senhora dívida da
despesa de uma viagem fracassada e, também, do conserto do motor.
Se tem seguro? Em geral não, não tem. Seguradora não gosta de fazer seguro para
barco de casco de madeira, nem para suas cargas, nem para suas tripulações e nem para
passageiros. Considera arriscado demais.
Acaba ficando tudo por conta e risco próprios. Se der prejuízo... azar. Tá
contabilizado e vai ter de fazer a próxima viagem render o dobro.

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Fonte: autor

Coari tem porto bem feito, de ferro. Em muitos lugares o porto é o barranco ou a
praia com somente algumas pranchas de madeira e umas toras.
Hoje o porto da cidade é o principal meio de comunicação com outros lugares. Bem
movimentado, garante o abastecimento do lugar com tudo quanto é tipo de mercadoria.

Fonte: autor

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Por volta dos anos 70 a COMARA – Comissão de Aeroportos da Região Amazônica,
uma espécie de empresa de engenharia da Força Aérea, fez um aeroporto com pista e pátio
asfaltados, uma pequena estação de passageiros e estrada de acesso. Tudo de bom
tamanho para o lugar. Despertou pouco interesse das grandes empresas de aviação, pois a
quantidade de passageiros e cargas seria pequena, não cobrindo nem os custos da escala.
Assim, sobrou à aviação miúda usar aquela pista sempre que tenha uma precisão mais
ligeira, como no caso de transporte de doentes graves, alguma carga de alto valor e até
mesmo algum comerciante graúdo que tenha negócio mais urgente a fechar noutro lugar.
Uma das principais ruas da cidade deságua no porto e ali o movimento é intenso,
pois são muitas novas mercadorias chegando para o comércio da cidade.
Por ali a gente vê um amontoado de canoas com motor de rabeta indo de um lado
para o outro. Carregam gente e carga até quase alagar de tão cheias. São as alcunhadas
“catráias”, táxis fluviais ou, se quiser, pode chamar de “uber do rio”. Servem até como ponto
de venda de comida aos passageiros dos “recreios” por ali atracados. Encostam na beirada
de um deles e ficam negociando de peixe a picolé e de salgadinhos a açaí, qualquer coisa
que engane a fome dos viajantes e dê uns trocados ao catraieiro.
Mas, quando usadas como transporte não se engane, porque não ficam só ali em
volta do porto, não. Às vezes saem rumo a jornadas bem longas, de muitas horas, até algum
sítio ou vilarejo onde descarregam e voltam no mesmo pé para trás.
Também são muito usadas na pesca, seja da de corrico, de arrastão, tarrafa,
arremesso e de arpão. Como têm casco quase chato entram em qualquer lago interior, onde
os peixes mais se amoitam.
E olha que o motorzinho delas é um daqueles que se usa no ralador de macaxeira.
Botam um cano de metal no eixo e, na ponta, uma pequena palheta de duas ou três pás que,
enfiada na água, impulsiona a “montaria” à frente. O comando de direção é feito virando a
rabeta para um e outro lado. Em lugar raso, com banco de areia, toras e paus semi-
submersos, matupá ou outras encrenqueiras que podem danificar a palheta e daí obrigar o
caboclo recorrer ao estepe... o remo, basta levantar a rabeta e deixar ela só triscando n’água.

Fonte: autor

Catraia, o “uber fluvial”

23
Teve uma época que um bocado de cidadezinhas e vilas do interior dispunham de
outro meio de transporte que não só os barcos. Elas eram atendidas pelos aviões do CAN –
Correio Aéreo Nacional.
Eles não pousavam lá, eles amerissavam, ou seja, eram aviões anfíbios que
desciam tanto n’água como em terra e, por isto, podiam atender ribeirinhos que estivessem
em qualquer canto. Assim foi por longos 50 anos... mas, acabou.
Resolveram que a despesa era grande e que não tinha mais como sustentar tantos
voos pelo interior da Amazônia. Hoje só é no nome, faz uns voos aqui e acolá prá atender
coisas do governo, sem as linhas regulares de antigamente.

Fonte: www.defesanet.com

Embarque em um Catalina fundeado no rio

Contudo, o caboclo já tinha se acostumado com os aviões do CAN. E ajeitado que


estava à velocidade do avião, teve então de se conformar e voltar à do barco.
De uma hora e pouco de voo até Manaus voltou a levar uns dois dias no bojo de um
“recreio”.
Agora não tem jeito, é subir pela prancha, embarcar, pendurar a rede no toldo do
convés, deitar no seu fundo e... esperar.
Mas, ele é assim, um sobrevivente.
Do índio herdou o conhecimento da natureza e do nordestino herdou a garra para
viver naquela natureza hostil.
É! O avião até que teve sua serventia, mas seu “adeus” não chegou a ser o fim do
mundo. O caboclo continua sua vida por própria conta.

24
Fonte: autor

Da toada do avião de volta à do barco. É voltar a ter paciência na lentidão da viagem.

Moradia de caboclo fica no alto do barranco.


Esposa e os muitos filhos, todos amadurecidos de temporão pela dureza da vida no
“sítio”. Simplicidade com praticidade é o dia a dia da família.
Sem luz elétrica, não tem geladeira, o peixe da boia tem de ser fresco, não tem
como guardar para depois. Sem água encanada e sem esgoto o rio é a serventia de tudo.
Se não mora na barranca, mora no “flutuante”, cercado de água por todo lado e a
casa fica apoitada no fundo, que é para a correnteza não levar rio abaixo.
Tem uma vantagem... não paga imposto.
E muitas desvantagens, mas que a família não se avexa muito, até porque não tem
solução e, conforme o velho ditado do “Norte”, o que não tem solução, solucionado está.

25
Fonte: autor

No flutuante a vida do caboclo é o rio, sair ou chegar só de barco ou a nado.

Deixando Coari e seguindo rumo rio acima após umas horas à esquerda tem um
terminal da Petrobrás que armazena gás vindo do rio Urucu. Ele chega por um gasoduto que
vara a selva por uns 200 km. De Coari ele segue por mais de 400 km até Manaus.
Isso começou lá nos anos 70, quando o Projeto RADAN prospectou os recursos
naturais da nossa Amazônia. Funcionou assim:
Primeiro um avião a jato Caravelle aerofotografava com câmeras de infravermelho a
uns 12 km de altitude toda a região, detectando os ditos “pontos quentes” no solo (prováveis
jazidas minerais).
Depois, vinham os aviões Islander voando a baixa altitude e velocidade reduzida
fotografando mais de perto os tais “pontos quentes”, para melhor análise.
A seguir, o pessoal do rapel descia de um helicóptero, pairando a uns 50 m de altura,
nos pontos mais promissores e, daí, abria uma clareira para pouso.
Enquanto isso o helicóptero voltava à base e buscava os técnicos que, então,
coletavam amostras no local da clareira aberta.
Êita trabalhão danado e demorado, pois foi feito em toda aquela enormidade de
região.

26
Fonte: MAer

Alguns desses pontos promissores de petróleo ou gás foram depois explorados e o


do rio Urucu foi um deles. Rico em gás recebeu uma baita duma instalação que incluiu o tal
gasoduto.
Bom! E por que esticar conversa sobre isso?
Porque esse troço todo findou por mudar um bocado o jeito das gentes do entorno.
Claro que melhorou o padrão econômico, mas claro que também trouxe mazelas. Um monte
de aventureiros atrás de dinheiro fácil foi se ajuntando por ali e modificou de vez a toada de
ser do ribeirinho.
Cidades pequenas foram inchadas com gente que ali apeou... e de tudo quanto é
espécie. A pacatez pulou fora e pela mesma brecha entrou a gana de enricar a qualquer
custo.
Será isto sina donde o progresso chega ou tem jeito de ser diferente?

27
Fonte: autor

Terminal de gás da Petrobrás, um pouco acima de Coari.


Imagina o aperreio que é fazer o gás chegar até aí.

Mas, largando pelas barrancas as encrencas que insistem viajar no porão do


progresso, a quilha do “recreio” continuou a fender o manso das águas do Solimões,
esquivando-se das muitas toras flutuantes das árvores arrastadas pela “terra caída” e que
podiam fazer um tremendo rombo no casco do barco se o timoneiro de repente descuidasse.
E prazo para se descuidar apreciando as coisas da paisagem ali não falta. Da beira
do rio destacam-se grandes árvores, cujas copas mais parecem vigias da imensidão da
floresta.
São as castanheiras e a majestosa samaúma ou sumaúma, também conhecida por
sapopemba ou sapopema, devido suas raízes largas em forma de pranchas.
Não é difícil topar com essas árvores enormes no meio da viagem, pois suas
frondosas e altas copas despontam ao longe, são como balizas do itinerário dos barcos.
Porém, as que estão mais perto da barranca do rio logo sucumbirão à “terra caída” e
não farão mais parte da paisagem oferecida aos viajantes.
Se vilarejos e até cidades do interior já sentiram o ônus que o rio lhes cobra,
arrancando-lhes grandes nacos de terra, essas árvores, sem nenhuma defesa, estão à mercê
do indomável humor do velho Solimões.
Por tal capricho nem essas belezuras gigantes de até 60 metros de altura escapam
da sanha das águas.

28
Fonte: autor

Magnífica, mas o velho Solimões já lambe as suas raízes. Logo irá devorá-la.

29
O Solimões, igual a qualquer rio da Amazônia, ainda procura onde se deitar de vez,
cavando aqui e fazendo ilha acolá, numa busca que já dura um tempão e ainda vai durar
outro tanto.
Assim, não tem leito fixo, cada temporada escorre por um canal diferente e nessa
dança para se achar vai arrancando pedaços largos de suas margens.
Somente quem navega por ali diuturnamente sabe por onde corre o canal em cada
vazante e, então, escapa do assoreamento do leito e evita encalhar.
A tal “terra caída” começa com um rachadinho de nada na terra lá uns metros no
rumo da floresta e na cheia seguinte vai todo aquele pedaço para o fundo do rio, com mato e
tudo que nele tiver. Por isto, caboclo que mora em barranca de rio fica sempre de olho
nesses minúsculos riscados que começam a aparecer no chão do seu sítio, pois é sinal que
está na hora de arribar de mala e cuia para dentro da terra firme.
Os troncos das enormes árvores arrastadas pela “terra caída” vão flutuando semi-
submersos rio abaixo e ai do casco de barco em que toparem... é naufrágio certo. Menos mal
se for só carga, mais mal se tiver lotado de gente.
Daí que a atenção de quem está à roda do leme precisa ser toda e o tempo todo na
época em que o rio dá trânsito a esses bólidos que navegam à tona d’água.
De vez em quando sai uma notícia de que um “recreio” atropelou uma dessas toras
e foi a pique, e a quantidade de passageiros que aí se vão e também os feridos em geral é
grande. O pior é que a ajuda pode demorar a chegar até o lugar do naufrágio e os
sobreviventes têm de se virar sozinhos.
Mas, por enquanto as majestosas samaúmas ainda estão ali quietas nos seus
cantos de mata, disponíveis à nossa apreciação.

30
Fonte: autor

Isso de “terra caída” é coisa séria, gente! Vou contar aqui um exemplo de como toda
uma vila foi levada de vez pela voracidade do insaciável Solimões.

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VILA ALFAIA E A “TERRA CAÍDA”

Chamava-se Vila Alfaia devido o nome de seu fundador. Pertencente ao município


de Codajás ficava na localidade conhecida como Tapiíra, a uns 70 km rio acima da sede.
Situando: Codajás fica a uns 300 km de Manaus pelo rio.
As fotos a seguir são de algumas décadas atrás, portanto, já perderam bastante
nitidez.

Fonte: Família Alfaia

Uma parte da vila onde a vida pacata e uma economia forte prometiam muito.

Há tempos a vila existia naquelas barrancas do Solimões, com roças produtivas,


considerável atividade extrativista e movimentava um comércio razoável.
Além de peixe liso e pirarucu, produzia com fartura juta, cacau, feijão de praia,
melancia, banana, cebolinha roxa e farinha de macaxeira que era vendida em paneiros.
Muito disto seguia para Belém.
O cacau chegou a ser exportado para o Peru.
Ou seja, era uma localidade bastante produtiva e com uma população bem ativa.
O fundador, Sr. Raimundo Alfaia, constituiu numerosa família e sua esposa, Dª.
Hermínia, cuidou para que o ambiente ficasse bom ao desenvolvimento da criançada. Tanto
ficou que seus filhos, uma vez crescidos, passaram a ajudar na administração da vila e com o
tempo até a assumiram de vez.
Naqueles tempos o que movimentava bastante esses lugarejos era aquele monte de
curumins e cunhantãs zanzando de um lado para o outro.
Como não existia ainda o desvairamento da sede consumista, com pouco se resolvia
as necessidades da petizada.
Roupas e calçados só o indispensável, alimentação era a produzida na própria vila,
a escola, construída em 1963, ensinava a ler, a escrever, a fazer contas e propiciava
conhecimentos gerais suficientes para saber que fora dali existia um mundo muito grande.
Terminadas as aulas diárias todo tipo de arrelias tomava conta e a gurizada enchia a
vila de movimento e de alegria.

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Além da escola, tinha capela e cadeia também. O povoado era bem estruturado e,
como dito, muito produtivo.
Era um polo de economia tão promissor que até os Catalinas do CAN, que iam em
direção à fronteira, atracavam ali por perto, no lugar conhecido por Camará, tal era a
importância da vila.

Fonte: Família Alfaia

Moradores da vila posando para foto em frente à capela. Criançada é o que não faltava.

Fonte: Família Alfaia

Alunos com a professora da escola da Vila Alfaia.


Até uniforme bem ajeitado tinha. O momento da aula era coisa séria.
A escola foi construída e era mantida com recursos próprios da vila.

33
Fonte: Família Alfaia

A ponte parecia meio troncha, mas era não. Podia ficar cheia que aguentava o tranco. Era tudo feito
em madeira de lei de boa qualidade.

Fonte: Família Alfaia

Até para “amigo do alheio” tinha hospedagem.

34
Embora na vila não houvesse crimes suficientes para justificar investir numa
delegacia, ela fazia parte do aparato necessário para, quiçá, uma futura promoção à sede de
município. Sim, pois o lugar era economicamente autossustentável, faltando apenas
estruturar os serviços públicos condizentes com u’a municipalidade.
Tudo ia muito bem.

Fonte: Família Alfaia

Daí, o velho Solimões começou o seu serviço.


Só comendo pelas beiras... literalmente.
Êita, tempos de aperreio!
.

Então, um dia apareceu a temida trinca no chão e o temor começou a tomar conta
dos seus moradores.
Era o prenúncio de que o velho Solimões não está gostando da história e já vem
preparando seu terrível bote. Ele começa a amolecer a terra por baixo, devagarinho vai se
infiltrando cada vez mais para dentro.
É donde aquela expressão “fiquei sem chão” se aplica literalmente, porque o caboclo
vai mesmo ficar sem chão, ele vai desaparecer nas caudalosas águas do rio e com um bruta
tombo. A terra cai todinha e de uma vez.
Quando ela cai faz um estrondo forte e de longe o caboclo fica sabendo, então, que
o Solimões abocanhou mais um pedaço de suas margens.
E era esse estrondo que o pessoal da vila tinha receio de ouvir em uma noite
qualquer e sem outro aviso.

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Pois é, mas foi o que passou a acontecer. A desconfiança virou certeza e o receio
virou descrença. Como escapar da sanha do Solimões por cada vez mais terra?
E a terra caída se sucedeu tão ligeiro que a um tanto de gente nem deu prazo de
fazer outra moradia mais longe do rio, juntar as tralhas e se mudar.
O jeito foi jogar no fundo do barco tudo o que deu para arrebanhar e tomar rumo
sabe-se lá para donde.
A quem deu tempo de se transferir para dentro da terra firme, insistiu em ficar e
tentou ir tocando a vida, mesmo sem ter mais as facilidades que antes tinha na vila. Mas,
foram poucos.
Salvar uma vila carece de um bom prazo, pois a estrutura toda tem de ser
reconstruída em outro lugar longe da força das águas, mas com acesso a um porto para
carga e descarga de mercadorias.
Porém, não é do feitio do inquieto Solimões apreciar antes e só depois atacar. Ele
vai para cima com tudo.
Deu dó ver a vila se acabando e todo mundo saindo com a tristeza no coração.
Décadas de construção destruídas em algumas cheias.

Fonte: Família Alfaia

E a Vila Alfaia se foi.


Ficou só nas lembranças de quem nela viveu ou por lá passou.
Mais uma vez o Solimões venceu.

É um quadro que se repete desde quando ele sai das terras altas dos Andes e
desembrenha rumo às terras baixas da Planície Amazônica, até descarregar no litoral
paraense aquele volume descomunal de água barrenta que veio arrastando as vilas
destruídas.

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Dizem que é o único rio que tem peito para brigar com o mar. É um empurrando o
outro numa pendenga feia a que deram o nome de pororoca que, na língua geral, a dos
índios, quer dizer “estrondo”, porque, deveras, o barulhão da trombada das águas é grande.
Assim, é o velho e mal humorado Solimões. Quando ele quer, não tem quem o faça
desistir.

Fonte: autor

E a cada cheia é mais um beiradão que despenca para dentro do rio.

DE CATRAIAS A BATELÕES

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Já que os inúmeros rios, igarapés, igapós, paranãs, furos e lagos formam a malha
viária natural por onde o caboclo vai e volta, singram por eles uma variada frota de barcos.
Modelos de barcos tão ajustados à região que remontam à era da colônia, quando
ainda nem existia o país Brasil.
Tirando o maquinário e o metal, o resto do material usado nas suas construções sai
dali mesmo, dos beiradões dos rios e da força de trabalho de quem herdou o jeito de fazer.
Tem de tudo: navios cargueiros, “recreios”, grandes balsas de ferro, batelões,
rebocadores, voadeiras, deslizadores, as pequenas “montarias” (canoas de madeira), barcos
regatões, peixeiros ou geladores, boiadeiros e, de uns tempos para cá tem, também, o tal do
“a jato”.
Os “a jato” são menores que os “recreios”, mas com potentes motores de popa (daí,
sua maior velocidade e o apelido “a jato”), com interior igual aos dos antigos ônibus
rodoviários que sacolejavam pelas estradas de terra do interior do “Sul” do país.
Bancos duplos de encosto fixo, com duas fileiras e corredor central. Encurtam a
viagem em mais de dois terços do tempo. Para quem tem alguma pressa este tipo de barco
resolve a questão. Suas paradas são mais rápidas e sua velocidade é bem maior. Sob o toldo
estão os obrigatórios coletes salva-vidas, coisa que em muitas embarcações não se
encontra. São mais recentes e vieram para disputar lugar com os velhos e conhecidos
“recreios”. Às vezes, até tentam compensar a saída dos aviões de alguns lugares do interior.

Fonte: autor

O interior é espartano. Mesmo sendo “só” 13 h de viagem de Manaus a Tefé o cansaço toma conta.

38
Fonte: autor

Já os “recreios” oferecem mais conforto, porque têm convés mais espaçoso e, a


quem gosta e pode, tem os camarotes que além de oferecer cama ainda podem garantir
privacidade aos viajantes. Têm, também, cozinha e espaço para u’a mesa de refeições.
Seus tamanhos são variados e o nível de conforto também. Existem os pequenos e
bem modestos, com um só convés e lugar só para atar redes, não têm camarotes. Porém,
conforme a importância do lugar de destino tem aqueles bem maiores, com um bom conforto
a bordo, até uns três níveis de convés, muitos camarotes e mesmo uma espécie de área de
lazer em riba do toldo, com umas cadeiras e mesas à disposição dos passageiros.
Mas, as paradas dos “recreios” são mais demoradas, pois têm de descarregar e
carregar mercadorias de toda espécie e às vezes até reabastecer de combustol.
Nos últimos tempos os “recreios” têm atendido muito o pessoal que vai para a
festança do Boi Bumbá, em Parintins, no final do mês de junho.
Além de servir de transporte à maioria dos turistas que para lá descambam, findam
por se transformar em verdadeiros hotéis fluviais, já que a rede hoteleira da cidade não
comporta a multidão de gente que ali se despeja querendo participar das animadas torcidas
dos dois bois “contrários”.

39
Fonte: autor

Barco possante é o rebocador que, no caso, é mais um empurrador.


Carga pesada e muito grande é com ele mesmo.

Às pesadas e grandes balsas de ferro, mormente empurradas por barcos pequenos,


mas providos com possantes motores, fica a carga mais pesada, graúda e de muita
quantidade.
Tendo o fundo chato, conseguem chegar em águas rasas e até atracar em praias.
Coisa que facilita bastante carregar e descarregar carga pesada ou volumosa.
E a única maneira de aliviar um pouco o ensurdecedor barulho do motorzão do seu
“rebocador”, é ficar na proa da balsa onde, de quebra, aproveita-se o refrescante vento
decorrente do deslocamento da embarcação.
Já os cargueiros levam de tudo. Rio abaixo é farinha, borracha, banana, castanha, e
rio acima é tudo quanto é produto industrializado.
Se a carga não cabe toda a bordo, então é atrelado em seu costado um batelão
(casco sem motor) para aumentar a capacidade de transporte.

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Fonte: autor

Um barco cargueiro e com uma carga para lá de muito preciosa...


cerveja, muita cerveja, que ninguém é de ferro, né?

Mas, a pressa mesmo só tem um jeito de resolver. É apelar para as “voadeiras”,


aqueles pequenos cascos de metal leve, impulsionados por potente motor de popa e, às
vezes, até por uma dupla deles, que é para dar mais força e aumentar a velocidade. Aí, vai!
Periodicamente os barcos têm de passar pela manutenção, especialmente o de
casco de madeira, pois o calafeto devagarinho vai saindo e começa a minar água num e
noutro ponto.
Usando um cabo de reboque atrelado a uma espécie de molinete gigante o casco é
retirado da água sobre parrudas vigas de madeira.
Uma vez em terra todo o calafeto é revisto e também as pranchas, cavernas, quilha,
convés, paredes, toldo e, enfim, toda a estrutura passa por uma “geral”, é feita até uma
repintura, de forma que saia dali como se novo fosse e fazendo bonito para passageiro ver e
gostar.
Ah!... O motor também é revisado e as peças gastas são trocadas, porque, motor
“fumaçando” é sinal de vida curta. Então, melhor cuidar.
Pois bem! Continuamos seguindo viagem rio acima.
As suas muitas curvas vão passando bem lentamente, como que dando tempo da
gente apreciar cada detalhe daquele panorama de mato e água que domina a vastidão de
horizonte a horizonte. E daqui e dali despontam alguns vestígios de vida... vida do caboclo,
afinado com a natureza e desalinhado com a civilização do “Sul”.
Mundos diferentes. Gente simples e de coração grande. Sem aperreios, resolve o
que é essencial e tudo que não é... deixa como está.
As pequenas vilas ribeirinhas, povoações de pouca monta, ficam debruçadas à beira
do rio e as coisas delas nada têm a ver com as coisas do que tanto se planeja nos muitos
palácios à beira do artificial Paranoá.
É gente que vive do pouco que consegue tirar do rio e da mata e, assim, passa a
vida inteira geração após geração.

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Seus instrumentos de sobrevivência: a rede de dormir enviesado, o terçado que abre
o caminho e corta de tudo, e a canoa com o remo que leva aonde for preciso.
Quando faz família, ela é grande. A filharada se estende de quando o casal é novo
até a chegada da menopausa, com nascimentos quase que de ano em ano... e vão ficando
tudo por ali mesmo, até porque não tem para adonde ir.
A terra é devoluta e o aforamento é o jeito de garantir o direito, até levantar a tapera
que, então, pode trazer o título definitivo.
A sobrevivência depende da saúde, que depende de pegar ou não doença braba.
Doença braba tem a que mata e a que Deus cura, porque médico só bem longe.
Filho de caboclo aprende a andar e a nadar ao mesmo tempo. Aprende a falar o
coboclês – mistura do linguajar nordestino com a “língua geral” (a fala dos índios).
Escola tem, mas é uma aqui e outra acolá. Paredes de madeira, cobertas de palha
ou de telhas de metal ondulado, sem água encanada. Eletricidade... só de motor com
gerador. Ali é onde se aprende o indispensável tão e somente. Nela o filho do caboclo, que
em geral chega é no cabo do remo, aprende a ler, escrever, contar e mais algumas coisas e...
parou por aí.
Se quiser mais terá de seguir para a cidade mais próxima, onde poderá avançar
mais um pouco. E quando lá aporta não demora tem de conseguir trabalho a fim de se
sustentar, pois o dinheiro que vem de casa é curto e o mês é longo.
Quem sabe pouco finda arrumando ocupação no comércio local e aí aprende a
comprar, vender e negociar cada mercadoria. Também aprende o que é o bem-vindo lucro
quando se fecha um bom negócio e o que é o disgramento prejuízo ao se barganhar mal.
Dessa informal escola de comércio muita gente acaba não saindo e nela faz a vida.
É o mais comum acontecer.

Fonte: autor

Um dos vilarejos que sobrevivem do extrativismo e de alguma pouca criação.


Devagar o Solimões vai roendo sua beira.

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Fonte: autor

Escola rural à beira do rio. Ler, escrever e fazer contas.

Enquanto o pensamento vagueia o barco continua na sua toada pelos estirões e


muitas curvas do Solimões. E depois de uma delas a gente se depara com pescadores em
algumas canoas tentando a sorte logo na entrada dum igarapé.
É interessante como eles conseguem perceber donde está o cardume e até de que
tipo de peixe é, só pelo movimento que transparece na tona da água, uma espécie de
tremelique na superfície. É a voz da experiência ditando o rumo da pesca.

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PELO PARANÃ RUMO A TEFÉ

Enfim, Tefé! Cidade mais central do maior estado do país - Amazonas. Equidistante
da capital e da tríplice fronteira Brasil-Peru-Colômbia.

Fonte: 16ª Brigada de Infantaria de Selva

Esta foi uma das cidades afetadas pelo boom da descoberta da jazida de gás do rio
Urucu, quando a Petrobrás ali instalou uma de suas bases de apoio.
O povo foi chegando de todas as plagas. E era povo bom e povo ruim.
O bom estabeleceu negócios rendosos com a estatal e, de rebarba, trouxe
movimento ao comércio local, fazendo-o crescer, se expandir e até ficar mais sofisticado.
O ruim... pois é! O ruim é o aventureiro, o oportunista, o incremento às drogas e,
como efeito colateral, o aumento e diversificação de crimes, então, distantes daquele rincão
de terras. Antigamente crimes ali eram mais resultado de bebedeira ou por causa de mulher.
Durou uns anos até a base ser transferida para Coari por conveniência de logística.
Daí foi quase tudo junto. Quase, porque ficaram aqueles cujas lidas não tinham mais
serventia às atividades de apoio à petroleira. E foram muitos que, sem eira nem beira,
passaram a se esbarrar pelas ruas e pelas beiradas do lago tentando algum jeito de sustento.
Contudo, a cidade não se deixou abater. Continuou sua rotina do jeito que pôde.
Agora meio diferente, se ajeitando com aqueles aperreios, porém tocando a vida para frente.
Por exemplo, das ruas quase sem nada, passou a tê-las aboletadas de carros e de uma
enxurrada de pequenas motos disputando cada palmo, num ziguezague interminável, indo de

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um lado pro outro, pois não se tem muito para onde ir, já que inexiste rodovia no rumo de
qualquer outra cidade.
A economia local cresceu e se diversificou, a cidade, antes fincada só às margens
do grande lago de águas escuras, esticou-se no rumo do interior da mata, ocupando todos os
pedaços de chão às ilhargas do acesso de 5 km que leva ao aeroporto. Novos bairros
brotaram do solo arenoso e se esparramaram para acolher os novos habitantes.
E se antes algumas escolas resolviam a questão da criançada, agora outras mais
passaram a fazer parte desses novos bairros.
Até faculdade lá chegou, melhorando as perspectivas de, ali mesmo, aprender uma
profissão de gente graúda.
Enquanto as lojinhas iam se plantando por tudo quanto é rua, o porto ia ficando cada
vez mais movimentado e o comércio no seu entorno tomou conta do panorama à frente do
lago.
A cidade deixou de ser aquela coisa provinciana para assumir ares de metrópole da
microrregião, de que as vizinhas próximas em parte passaram a depender.
Mas, igual a todo lugar daquele mundão verde e úmido, mesmo com todas as
novidades, continuou dependente do rio.
O rio é onipresente na vida de qualquer cidade dali, mesmo na vida da capital.

Fonte: autor

Lago de Tefé.
Tem uns 10 km de ancho por uns 40 km de comprido.

Assim, Tefé ainda ficou com seu belo e grande lago de águas escuras como principal
referência. É sua marca registrada. De cima vê-se que o lugar é quase cercado pelo lago,
sobrando só o lado sul, em que está plantado o aeroporto. E é para ali que a cidade vai

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procurando mais espaço, disputando com os roçados de macaxeira se vai fincar u’a rama ou
um alicerce de casa.
Ah, e tem mais! No meio disso ainda tem um quartel que o Exército trouxe lá das
terras gaúchas com tudo e ali se assentou de vez.
Pois veja só como tal coisa se sucedeu. O gaúcho do interior é um povo que preza
muito suas tradições e a família patriarcal. É gente apegada à terra e aos seus costumes que
remontam os tempos de luta e das missiones, de quando ainda se definia se o idioma ali
falado seria o português ou o espanhol.
E assim é também o povo da cidade de Santo Ângelo, cravada no noroeste do Rio
Grande do Sul, onde se assentava uma Brigada de Infantaria do Exército que por ali estava
há muito como parte integrante daquelas plagas.
Mas, eis que de repente toda ela foi transferida para Tefé, nem dando prazo de
assimilar direito a ideia. Foi todo contingente de mala e cuia, de vez mesmo.

Fonte: autor

Brigada do Exército “importada” de Santo Ângelo-RS

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Para sentir um pouco do drama, imagine você sendo um desses gaúchos tirados de
sua pacata cidade com família e tudo e desembarcados a uns 3.000 km dela distante e num
mundo todo diferente: clima, alimentação, cultura, jeito de falar e, principalmente, sem as
comodidades a que estava acostumado desde sempre. E, de quebra, para ficar por uma
longa temporada. Pois é, foi exatamente assim que funcionou e a vida daqueles militares e de
suas famílias virou dos avessos de repente. Da cuia do sulista chimarrão para a cuia do
nortista tacacá.
Pelo início da década de 80 havia uns 27 destacamentos da Força Aérea
espalhados pelo interior da Amazônia. Neles os aviões do Correio Aéreo Nacional faziam
linhas regulares. O pessoal era bem integrado com as populações caboclas, pois todos
passavam pelos mesmos aperreios do dia a dia amazônico.
Mas, o inchaço de cidades veio trazendo também o aumento da violência, a
insegurança proliferou e, daí, em Tefé não foi diferente. Vieram as várias medidas de
segurança, dentre elas, cercas foram levantadas, fecharam-se portões e foi-se uma era de
boa convivência.
Nisto, hoje não tem diferença do que o “Sul” vive... a era da desconfiança parida pela
insegurança. Ou seja, da tranquilidade que antes caracterizava a cidade, a ponto de se poder
ir refrescar da quentura na praia à noite, passou-se a tomar um monte de cuidados com
relação aos amigos do alheio.
Só para ilustrar bem tal situação basta dizer que à época da construção do aeroporto
todo maquinário, ferramental, veículos e material diverso era deixado durante a noite no
canteiro de obras, que era totalmente aberto, sem nenhuma cerca, aos cuidados de apenas
um vigia que, em boa parte do tempo, claro, ficava dormindo.
E não era somente isto, mas em média uns 300 tambores de 200 litros cada com
combustível de aviação, gasolina e óleo diesel para os veículos, permaneciam ao relento
todas as noites, sem nunca se ter dado falta de nenhum deles ou de seus conteúdos.
Atualmente fazer isso seria loucura. Agora, a vigilância tem de ser constante e intensiva, e
tudo tem de ficar trancado. Sinal dos tempos?

Fonte: autor

Construído nos anos 70, o aeroporto já passou por boas melhorias.


Dos que foram feitos pela COMARA é um dos poucos que é atendido por linha aérea regular.

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Naqueles bons e velhos tempos a vida era muito diferente. Havia uma espécie de
coesão entre aqueles que ali conviviam, era um apoiando o outro, pois todos viviam os
mesmos aperreios entranhados no cotidiano do lugar.
Eram tempos em que os aviões anfíbios pingavam pelas vilas ribeirinhas,
transportando um pouco da vida moderna aos caboclos daqueles cafundós de mata, e o
ronco de seus motores se fazia ouvir ao longe e já agitava os catraieiros que, então,
disparavam seus “rabetas” no rumo da hidropista para fazer o embarque e desembarque de
passageiros e cargas e, então, ganhar uns trocados. Havia naqueles momentos uma troca de
conversa que, embora à primeira vista parecesse sem importância, irmanava aquela gente
toda em torno de um só objetivo: ombro a ombro sobreviver, o caboclo no rio e na mata e os
tripulantes em seus longos voos sobre o rio e a mata.
Acho que cabe aqui contar bem ligeiro como é que os aviões ganharam tanto a
simpatia daquele pessoal do interior.
A aviação comercial embicou pela Amazônia em 1930, quando a chegante Panair do
Brasil construiu em Val de Cans (depois, Val de Cães), às margens da baia do Guajará, em
Belém, uma base de manutenção de hidroaviões. Três anos depois fundeou na barranca do
bairro Educandos, em Manaus, o primeiro aerobote da empresa, onde se instalara o que, até
hoje, é conhecido como porto da Panair. Mas, foi transportando borracha na 2ª Guerra
Mundial que seus aviões chegaram até a tríplice fronteira Brasil-Colômbia-Peru e espalhou
suas rotas pelos rios amazônicos, passando a atender os lugarejos do interior.
Em 1935, para juntar-se à Panair, chega a Val de Cans a aviação militar, iniciando
com uma rota para o Oiapoque e, depois, outra para Manaus e até a tríplice fronteira, no
extremo oeste.
A Panair montou uma rede de radiocomunicação e de meteorologia por toda a
região. Seus telegrafistas eram os “anjos da guarda” de suas tripulações e, também, seus
elos de contato com as populações dos locais onde pousava. Integrou-se tão bem aos
ribeirinhos que até hoje é lembrada por quem viveu o seu tempo.

Fonte: autor

Prédio que serviu como estação-rádio da Panair. Depois, passou à TASA – Telecomunicações
Aeronáuticas S.A. Os aviões anfíbios amerissavam no lago em frente.

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O bairro do Telégrafo em Belém, a “Feira da Panair” em Manaus e a estação rádio
de Tefé são resquícios do passado, donde a aviação se misturava na vida do caboclo.
Pelo lado do CAN quem dos anciãos daqueles lugares remotos não têm lembranças
das chegadas e partidas dos “Catitas”, “pata-chocas” ou simplesmente Catalinas, como eram
conhecidos?
Esses Catalinas vinham lá do 1º Esquadrão de Transporte Aéreo, da Base Aérea de
Belém rumo à vasta hinterlândia de rios e de florestas, pingando de cidade em cidade e de
vila em vila, até esbarrarem nas fronteiras do extremo oeste. E com eles o caboclo foi se
habituando.
Interessante que por uns 50 anos a aviação fez parte da vida de muitas pequenas
cidades e vilarejos do interior da Amazônia, quando a economia do país era mais modesta e
os recursos escassos.
Contudo, dava-se um jeito e a aviação continuava lá com suas linhas regulares e até
com voos extras. Agora não dá mais. Que coisa, né?
Arrancaram a capital do país do litoral e a socaram no cerrado... e ele se
desenvolveu. Será que vai ter de mudar a capital do cerrado no rumo da floresta prá
desenvolver a Amazônia?
Já o porto da cidade merece mais consideração, porque nele pulsa a vida da cidade.
As embarcações vão atracando e os ribeirinhos apeiam e seguem direto para os
balcões das casas comerciais e lá se abastecem de tudo que precisam.
Impressiona a quantidade de barcos que perambulam pela beira do lago de Tefé. A
variedade também espanta, pois vai das grandes balsas de ferro até as minúsculas
“montarias”.
E junto disso tudo estão os flutuantes, uns servindo de casa, outros de depósitos e
tem até os que servem de oficina de barco.
Fechando essa conta tem os barcos que servem de moradia de famílias inteiras.
Sim, o caboclo quando não tem como morar em terra firme fica no barco mesmo. O convés
vira sala, copa, quarto e cozinha... banheiro às vezes tem e outras não.

Fonte: autor

O porto é sempre lugar de referência no interior e às vezes nada mais é do que um flutuante, onde o
caboclo deixa atracada a canoa enquanto vai fazer compras no comércio local.

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Fonte: autor

Nele transita um monte de gente procurando tudo quanto é mercadoria ou só mesmo na moita de
aparecer um bom negócio.

Cidade do interior amazônida tem de ter um mercado junto ao porto.


Nele o peixe e temperos são vendidos. Carne de gado? Coisa rara e cara.
Comumente o mercado é da prefeitura, mas o comércio nele é feito pelo povo mesmo. Nele
também é onde se encontra os amigos, os conhecidos e os pareceros.

Fonte: autor

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Na maioria das vezes não tem câmara frigorífica e por causa disto o peixe tem de
ser vendido no dia em que chega às bancas do mercado, senão apodrece. Mas, não é só
peixe. Na verdade ali se vende de tudo: de temperos a latarias, roupas e calçados, de redes
a malas e de brinquedos às quinquilharias industrializadas no “Sul”.
Ir ao mercado é como reza de todo dia. Tem de fazer. Porque não é só a compra
diária, mas também é a conversa boa, os sorrisos esparramados, o cafezinho com tapioca e
até mesmo só andar para lá e para cá dando u’a olhada no que tem numa e noutra banca.
Tudo faz parte daquele pedaço do dia, é um verdadeiro ritual.
Mas, bom mesmo é na hora em que chega o peixe... Vixe! É aquela montoeira de
gente, um empurra e espreme e cada qual querendo a melhor cambada e, quando consegue,
sai apressadinho e com um sorriso que diz tudo: “hoje eu consegui”.

Fonte: autor

No mercado se vende de tudo, mas o principal é peixe.

Chegando a boca da noite as bancas vão ficando vazias e, no fim, o mercado fecha,
cioso de mais um dia de missão cumprida como lugar de encontro de uma gente que pouco
tem aonde ir. É o shopping do caboclo disponível nas pequenas localidades da região.
Antigamente o pescado não vendido, o de menor qualidade, acabava ficando sobre
as bancas ao final do dia e quem não podia comprar pegava ali de graça e não passava
fome.
Agora, gente, cabe aqui contar um pouco das escolas do interior amazônico.
Vistas como forma de melhorar a qualidade de vida das novas gerações mundo
afora, ali as de ensino básico plantadas nos beiradões dos rios são construções simples,
mormente as paredes são de tábuas verticais e os telhados de folhas de metal ondulado.
É um cômodo único que serve de sala de aula, lugar de reunião e até refeitório. O
banheiro fica numa casinha ou então até no mato mesmo.
Água encanada e energia elétrica? Luxos que várias não dispõem. Tudo acontece
de dia ou à luz de lampiões à noite e, se precisa de água, fica ali perto... no rio.
O corpo docente muitas vezes é só um corpo mesmo, ou seja, só uma professora...
sim, lá as mulheres dominam a docência, ganham de lavada. Se tiver formação didática em

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nível médio já tem conhecimento de sobra. Até se acha quem tenha formação em nível
superior, mas nem sempre.
O isolamento é tão grande que curumins e cunhantãs por vezes têm de pegar no
cabo do remo na proa duma canoa por horas, enfrentando aquele mundão de água até
chegar no lugar da escola.

Fonte: autor

Barco “a jato” servindo de condução escolar.

Tem prefeitura que dá um jeito e arruma barcos que passam a servir de “condução
escolar” e levam a petizada dos sítios até a sala de aula. Algumas conseguem até os tais “a
jato” que transportam professores e alunos com mais presteza. Já outras não tem nenhum
tipo de transporte e os alunos têm de se virar.
Muito do que se precisa para ali sobreviver não tem nos livros da escola, pois são
feitos bem longe e numa realidade muito diferente daquela.
A vida acaba ensinando mais do que a escola e a grande maioria dos jovens vão
ficar por ali mesmo, repetindo os aperreios de sempre.
Já em cidades maiores existem escolas melhores e até faculdade. Entretanto, dos
62 municípios do estado poucos têm esse luxo.
Tefé, por exemplo, foi agraciada há umas décadas com uma escola de boa
qualidade. Padres holandeses que ali fincaram raízes construíram um portentoso prédio que,
ao longe, se destaca na paisagem.
Conhecido por “Seminário” abrigava os filhos dos caboclos que vinham de tudo que
era barranca de rio e lá ficavam internos, estudando.
Até hoje a edificação feita de tijolos maciços sem reboco mostra-se à beira do lago
aos chegantes. Tinha um auditório que serviu como cinema e até uma tipografia com
maquinário vindo da Alemanha. Por muito tempo foi uma referência em ensino a toda
redondeza por ali.
À época os padres ainda montaram uma rádio e uma serraria. A serraria era
movimentada, além de abastecer a cidade mandava muita madeira de lei no rumo de Manaus

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e Belém. Ajudava a prover a Prelazia de recursos para tocar as obras sociais pelos beiradões
do município.
Porém, o empreendimento que ajudava bastante o pessoal dos sítios era mesmo a
rádio, com os seus “avisos para o interior”.
Postava-se como o único meio de comunicação mais rápida entre o caboclo em
viagem à cidade e a sua família que ficara no sítio. Eram “avisos” tipo telegrama falado: “Dª
Raimunda do igarapé do Bauana, o ‘seo’ Raimundo pede que mande mais numerário, que a
coisa aqui tá feia... pelo que muito agradece”.

Fonte: Tiago Esashika Crispim

O “Seminário” construído pelos padres holandeses.


Era escola de referência.

Um assunto que dá no pensar muito é a chegada das tranqueiras tecnológicas no


meião da Amazônia. Não, não é o caso das lojinhas de quinquilharias estrangeiras que se
conheceu por “Zona Franca de Manaus”. É outra coisa.
Pois bem! Até os anos 80 o jeito de se comunicar mais rápido a longa distância era o
telégrafo da aviação (onde tinha) e o telefone, que também era um rádio com um aparelho de
telefone na ponta. Conseguir ligação era difícil, demorado, com chiados, som baixinho, quase
não se ouvia nada.
A televisão chegou a alguns lugares onde os aviões pousavam, com fitas gravadas e
reproduzidas por transmissores de curto alcance.
Depois, a TV por satélite trouxe as tais antenas parabólicas que captavam os sinais
e os punham à salas das famílias caboclas: novelas da zona sul do Rio de Janeiro,

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programas de auditório com coisas do Sudeste, jogos de futebol com os timões cariocas e
paulistas e jornais televisivos com notícias do desenvolvido sudeste e de países de longe.
Teve-se a impressão de um emprenhamento forçado de uma cultura poderosa sobre
outra provinciana. E é costume vencer a mais forte. Amostra nada grátis do que é
globalização.
Claro que a chegada da tecnologia traz no bojo coisas positivas e melhora bem a
qualidade de vida das pessoas. Aliás, a priori ela chega para fazer isso mesmo: chegou a
telefonia celular, a internet, redes sociais e o resto do mundo entrou no interior da vida
cabocla.
Na outra direção, o mundo descobriu o açaí e o cupuaçu, o tucunaré e o tambaqui, e
que no imenso miolo da Amazônia tinha um bocado de gente vivendo lá há um tempão.
Então, o tempo do remo passou a fazer simbiose com o tempo das
telecomunicações. Catraieiro recebendo chamadas de clientes pelo “zap”. Uber fluvial?

Fonte: autor

Na catraia leva-se de tudo e até quase ela se alagar.


Insegurança ou necessidade?

Agora, imagine-se dentro de uma embarcação dessas, sem colete salva vidas, no
meio de um rio que mais parece um mar e que, de tão carregada, a água vai lambendo a
borda da canoa.
E a despreocupação é a tônica que domina o ambiente, pois que é a rotina daquela
gente. Isso se repete o tempo todo e em todos os rios, igarapés, igapós, lagos, paranãs e
furos, com adultos, crianças e bichos de estimação.
Singram aquele mar doce como se anda a pé em meio a uma multidão na cidade
grande. A “montaria” é o sapato do caboclo.
Saiu de casa tá na água e, se tá na água, tá a bordo batendo remo. Vai escorrendo
manso e só na travessia leva mais de hora.
Seja para pescar, ou buscar mercadorias na cidade, ou ir na plantação, ou catar
ouriço de castanha é a canoa que compartilha todos os momentos da vida do ribeirinho.
A vida é no rio e o rio é a vida. Não tem como separar um do outro naquela difícil e
bonita região. Se sair do rio, daí é a mata, densa, fechada, com árvores altas e muito juntas,
formando um emaranhado só, tapando a vista do sol e formando um clima de sauna
constante, que vara até as madrugadas.

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E assanhando-se dentro dela estão as nuvens de maruins e piuns que, à boca da
noite, passam o “serviço” para as nuvens de carapanãs. São tantos mosquitos que a gente se
acostuma ou se desespera. Não tem outra saída.
Nos seis meses de cheia dos rios as águas invadem a floresta, alagando-a e
formando os igapós, donde só se vê aflorar à tona as altas copas das árvores, então, semi-
submersas.
Tudo isso vira pasto de peixes que buscam as frutas caídas e, sabendo disso, o
caboclo monta na proa da canoa e para lá vai certo de boa pesca.
Se ele conseguir fartura passa do remo ao motor de “rabeta”, se for melhor ainda já
pode até sonhar com o “motor de centro”, mais poderoso, pega mais carga e vai mais longe.
Caso continue a bamburrar nas pescarias o sonho de consumo se expande do barco novo às
coisas que a televisão mostra sempre mandando “compre”, “adquira”, “pague”, etc.
Taí! Um assunto que vale a pena saber. Antes de continuar a prosa sobre a nossa
viagem vou mostrar mais uma das características da Amazônia atual, pois de uns tempos
para cá é o que vem mudando a cara da região.
É a profusão de enxertos de coisas do jeito de ser do “Sul” ao viver do caboclo, trem
que vem aumentando cada vez mais e bulindo com a vida daquele povo. Pois, se por um
lado a intenção é fazer com que a região se desenvolva, que as gentes de lá tenham melhor
qualidade de vida, por outro da intenção à implantação o que se sucede ao final nem sempre
bate com o que se planejou.
U’a maneira de melhor explicar como isto está acontecendo é com um exemplo. E
como tem exemplos... dos bons e dos ruins. Basta ver o caso da base da Petrobrás por ali.
Porém, futricando no baú preferi sacar de lá um outro bem do fundo, que ilustra
melhor como é que essas mudanças chegam naqueles rincões e os efeitos que vão
produzindo no decorrer do tempo. Também, porque desse exemplo tenho bom conhecimento
de causa, já que participei do acontecido de cabo a rabo, nele gastando um bocado da minha
juventude.
Então, vou contar como se deu a construção do aeroporto de Tefé. Uma baita obra
de engenharia civil calcada bem no meio do Amazonas.
Mas, para tanto, vamos ter de voltar aos idos de 70, nesta que é a cidade mais
central do Estado do Amazonas.

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COMO FOI CONSTRUIR O AEROPORTO DE TEFÉ

Tefé, local pequeno, mas estratégico, pois equidistante de Manaus e de Tabatinga,


separadas por quase 1200 km em linha reta.
Para os aviões do Correio Aéreo Nacional – CAN isto significava umas cinco horas
de voo sem reabastecimento, comprometendo a segurança, pois, quando carregados suas
autonomias beiravam esta marca.

Fonte mapa original: www.google.com

Assim, era preciso prover Tefé com uma pista de pouso com boa infraestrutura, para
atender os voos de apoio ao Comando de Fronteiras do Solimões – CFSOL, em Tabatinga, e
seus vários Pelotões de Fronteiras e, ao mesmo tempo, melhor atender as populações
ribeirinhas e as cidades da área: Codajás, Coari, Fonte Boa, Jutaí, Santo Antonio do Içá, São
Paulo de Olivença, Japurá, Ipiranga, Estirão do Equador, Palmeira do Javari, Carauari e
Eirunepé.
Então, o Comando da Primeira Zona Aérea – QG da 1ª ZA, em Belém, fez convênio
com a Superintendência do Plano de Valorização Econômica da Amazônia – SPVEA (que
depois virou Superintendência de Desenvolvimento da Amazônia – SUDAM), projetou e
contratou serviços de uma empresa de construção para executar as obras.
Contudo, logo se percebeu que ela não levaria adiante os trabalhos. O contrato foi,
então, encerrado deixando a Força Aérea e a SPVEA num mato sem cachorro.
Daí, a solução que se encontrou foi montar uma estrutura própria e a FAB mesmo
fazer o serviço.
Assim, nasceu a Comissão de Aeroportos da Região Amazônica – COMARA para
construir os aeroportos pelo interior. Uma verdadeira empresa de engenharia com todos os
apetrechos necessários às obras daquele porte. Ficou subordinada ao QG da 1ª ZA.
No caso de Tefé montou-se nas cercanias da cidade o canteiro de obras e logo
começou a movimentação de terra, drenagem do terreno, desvio de cursos d’água,
aplainamento e compactação.

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Fonte: FAB

Estação-rádio e posto do Correio Aéreo logo que o aeroporto foi inaugurado.

Tal operação demorou muito porque as pancadas de chuva dificultavam a


movimentação das máquinas e dos equipamentos pesados: pás mecânicas, moto-scrapers,
tratores de esteira, rolos compressores, etc.
Com muito esforço do pessoal os trabalhos foram tomando jeito. Longe de suas
famílias, jabá em tudo quanto é refeição, dormindo em redes e trabalhando até altas horas da
noite e nos finais de semana, pelejando para aproveitar as estiagens, todos pegavam firme
no serviço se virando no intuito de dar conta do recado.
Devagar a pista de pouso, a de táxi e o pátio de estacionamento foram tomando
forma; construiu-se a estação de passageiros, a estação meteorológica, a casa de
transmissores e a de força, o campo de antenas e instalou-se auxílios-rádio à navegação
aérea, balizamento noturno e mais o sistema de abastecimento por hidrantes.
Ah! Teve equipamento de auxílio à navegação aérea que veio num avião Hércules
C-130 direto da fábrica no Texas (EUA) para Tefé... e também para Cruzeiro do Sul (AC),
Tabatinga (AM), Boa Vista (RR), Santarém e Cachimbo (PA). Importantes porque davam o
azimute e faziam a telemetria nos procedimentos de descida, principalmente quando em mau
tempo.
As obras estavam indo dentro dos conformes e parecia que ia fechar o cronograma
antes do tempo.
A usina, a espalhadeira de asfalto e outras máquinas pesadas, vieram rio acima em
riba de balsa desde Belém... quase duas semanas para aportar em Tefé.
Troço que exigiu trabalho duro no transporte até o canteiro de obras e, lá chegando,
na montagem, por conta das dificuldades de apoio logístico. Tinha de se improvisar muita
coisa e com o que tinha por ali.
A estrada que unia o local da construção à cidade tinha quase 6 km... de lama. E de
lama escorregadia, daquela que o pneu gira igual palheta de ventilador, mas não sai do lugar.
Era a tal “tabatinga”, argila e areia.
Imagine meia dúzia de caminhões basculantes patinando naquilo e sendo
empurrados por pás mecânicas. O que não faltava era ronco de motor brabo, dava para ouvir
de longe.

57
Fonte: autor

A usina de asfalto veio de Belém em riba de balsa.


Deu um trabalhão danado para levar todas as partes ao canteiro de obras, montar tudo e fazer
funcionar.

As balsas com todo o material da usina e mais algumas máquinas só atracaram na


beira com a boca da noite se aprochegando.
Daí, o responsável técnico (RT) da obra, o Eng.º Edgar Nobuo Inagaki, jovem nisei
de apenas 26 anos, avisou que, no dia seguinte, o expediente seria na beira, onde seriam
construídos aterros de uns 2 m de altura até a borda de cada balsa para o desembarque do
maquinário e transporte ao canteiro.
Tudo certo, peãozada rumando ao merecido descanso e num é que, de repente o
inconfundível ronco de um Catalina vai aumentando e o bicho dana a sobrevoar de um lado
para o outro.
Pousa, taxia até bem donde a gente estava. Abre a “escotilha” e surge, com olhos
brilhando de satisfação, o comandante da 1ª Zona Aérea... ele mesmo, o Brigadeiro
Camarão. E, enquanto ajeita as fraldas da camisa nas calças, já vai dizendo:
-“Ô, Edgar, sobrevoei a beira e vi que as balsas, enfim, chegaram, não é? Coisa boa!
Agora, já podemos tocar o asfaltamento e terminar isso logo.”
O engenheiro, ainda se refazendo da surpresa, informa que, por isso mesmo, logo
no raiar do sol o pessoal construirá os aterros e trará tudo para o canteiro de obras.
O brigadeiro, como que espantado com o que acabara de ouvir, tasca logo a
pergunta que ninguém queria responder:
-“Amanhã?... Por que não hoje?”
E nem adiantou o Edgar mostrar o céu escurecendo, nem que não dava para
trabalhar no breu e nem que nada, nada de nadica.

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-“Não! Pede o pessoal da Celetra (apelido da antiga empresa de energia elétrica)
improvisar lá uns ‘bicos’ de luz, paga hora extra a todo mundo e vamos descarregar agora.
Temos de aproveitar o tempo.”
Lascou-se! Foi madrugada adentro fazendo aterro, descendo máquinas pesadas,
subindo aquele peso danado pelo areial ensopado e haja cansaço pelo corpo todo e sono
debruçando nas pestanas. E ele – o brigadeiro – lá, de pé, acompanhando tudo, dando
palpite, se sujando e ainda com prazo de ver alguém de sua “comitiva” tirando um cochilo na
boleia de um caminhão. Não esperou nem um tiquinho, chamou um major:
-“Vai até aquele basculante e diz ao capitão Fulano que ele está dando mau exemplo
à turma.”
De imediato o dito apeou do seu aconchego e, ainda esfregando os olhos, a
contragosto veio se postar ao lado do chefe. Pois é, se o chefe sexagenário aguenta, por que
o “novinho” não? E ficou até o fim da operação.
Os primeiros raios de sol arribando no horizonte, a tranqueira toda enfim depositada
no canteiro e o espinhaço de todo mundo pedindo cama.
-“Brigadeiro, pronto! Descarregamos e trouxemos todos os itens... já conferi. Posso
liberar o pessoal agora para um descanso?” – perguntou o Edgar, mais morto que vivo.”
O velho aviador passeou a vista por aquele monte de partes da usina de asfalto e,
como quem quer ver logo o fim do filme, deu o troco à pergunta:
-“Será que não dá para a gente começar a montar agora?”
Seo moço! Aquele cabra não tinha jeito. Como podia ter tutano para aguentar tanto?
Contudo, foi essa sua determinação que proveu a Amazônia daquelas dezenas de
aeroportos em curto espaço de tempo. Foi uma verdadeira operação de logística de guerra.

Fonte: autor

Para desembarcar o maquinário teve de fazer aterro... e tudo de madrugada para não deixar escapar a
estiagem. E o brigadeiro Camarão lá o tempo todo.

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Ao final das contas a usina estava montada e funcionando a pleno. A imprimação do
piso foi realizada no tempo previsto e, então, chegou a hora de pavimentar.
É! Mas, a alegria durou pouco. A encrenca foi justamente com a pavimentação da
pista de pouso/decolagem, da pista de táxi e do pátio de estacionamento de aviões.
Os técnicos do Laboratório de Solos pesquisaram as reservas de seixo possíveis de
aproveitamento, pois na região só tem brita para fazer a mistura concreto-asfalto na calha do
rio Negro.
O seixo é só um substituto e foi encontrado em quantidade suficiente somente no
fundo do rio Japurá, há mais de 200 km, lá para as bandas de Maraã. Porém, explorar a
jazida não seria nada fácil.
Foi preciso montar uma tremenda operação: instalou-se uma draga para sugar as
pedras do fundo do rio e jogá-las dentro de uma balsa.
A seguir, uma moto-bomba retirava dela a água, deixando somente o seixo que,
então, era conduzido por um barco rebocador até a beira do lago de Tefé.
Ali, a operação se invertia.
Outra moto-bomba jogava água dentro da balsa, possibilitando que outra draga
retirasse todas as pedras e as depositasse em uma espécie de curral. Dele as pás mecânicas
enchiam os caminhões basculantes que, então, rumavam para o canteiro de obras, sempre
empurrados ou puxados por tratores, devido ao lamaçal que se estendia pela estrada afora.
E assim foi por dias a fio.
Gente, sei que a descrição dessa operação de transporte do seixo ficou longa, mas
tinha de mostrar um pouco das dificuldades encontradas no decorrer das obras e os esforços
para vencê-las a um custo aceitável, em face daquelas precárias condições de trabalho.
O pessoal ali exercia sua máxima criatividade na busca de soluções possíveis,
improvisavam instrumentos imprescindíveis às várias tarefas, inventavam técnicas só ali
aplicáveis e, assim, ia aprendendo como trabalhar em construção civil na difícil Amazônia.
Merece aqui umas considerações a liderança exercida pelo Brigadeiro Camarão,
pois ele realmente ia avante a todas as frentes onde a COMARA estivesse construindo
pistas.
Pessoalmente inspecionava o andamento das obras, pilotando os velhos Catalinas,
de canteiro em canteiro e em cada um deles permanecia por uns dias, dando aos
engenheiros responsáveis técnicos o apoio de que precisavam.
Dividia com os peões os toscos alojamentos, dormia em rede igual a eles e
participava da mesma comida no rancho de campanha do local das obras.
Era raiar o dia e ele já estava percorrendo tudo e verificando o que se tinha de fazer
naquele dia. O velho era incansável.
Só para se ter uma ideia melhor, vai aqui uma breve passagem:
Ao fim de uma das tantas inspeções feitas nas obras de Cruzeiro do Sul, no extremo
oeste do Acre, decolou por volta da uma hora da tarde em um Catalina com sua pequena e
fiel comitiva de engenheiros e técnicos militares, pousando em Tabatinga onde inspecionou a
construção da pista.
A seguir, no mesmo dia, rumou para Tefé, chegando pouco depois das dez da noite.
Reabasteceu o avião de combustível e continuou para Manaus, depois Santarém e,
finalmente, Belém, onde apeou do velho “pata-choca” às oito e vinte da matina, já
convocando a sua exausta equipe para o dia de trabalho no QG, pois já estavam vinte
minutos atrasados para o expediente.
Gente! Um cabra sexagenário, num avião quase cinquentenário, pilotando sobre a
selva por 19 horas e a maioria delas à noite, e ainda ir dar expediente no QG...! Só mesmo o
Camarão. Para ele a missão estava acima de tudo.

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Fonte: autor

Nem dá prazo. É o Catalina pousando duma banda e o asfaltamento se sucedendo na outra.

Mas, voltando a Tefé, a construção foi concluída e a cidade passou a ter uma pista
de pouso e tanto, com 1.800m de comprimento por 45m de largura (posteriormente foi
alongada).
E olha que não foi feita de “asfalso político” (aquele que só dura até a eleição
seguinte), mas de muito durável concreto-asfalto, com balizamento para pousos noturnos,
pista de táxi e pátio de estacionamento.
Tudo isso com capacidade de suportar aviões de grande porte, sistema completo de
abastecimento por hidrantes, estação de rádio, serviço de meteorologia e vários auxílios rádio
à navegação aérea.
Após singela inauguração, sem corte de fita, sem discurso e nem banda de música,
e assistida somente por quem trabalhou na obra e por alguns “sapos”, uma grande empresa
aérea, a Cruzeiro do Sul, passou a fazer escala de voo naquele aeroporto em seus voos
rumo a Iquitos, no Peru.
Ah... claro, tinha quem colocasse em dúvida o custo da obra. Sempre tem essa
gente.
Ora, pois bem! O custo foi menor do que o previsto, mas nem carece dizer que não
existe custo qual seja quando os beneficiados pela obra eram, além dos militares que
estavam a garantir as grandes e vazias fronteiras do Norte, os próprios caboclos.
É essa gente que, de fato, faz com que aquele pedação da Amazônia seja brasileiro,
pois é ela que por lá mora, trabalha e faz família. E os aviões do CAN estavam sempre a ela
prestando serviço.

61
Mas, está bem. Tudo quanto é obra pública tem de ser mesmo duvidada e mostrada
sua cara toda, pois, afinal, a bufunfa vem é do pagador de impostos que peleja para manter a
si, à sua família e também toda a máquina do governo.

Fonte: autor

Obras concluídas e o aeroporto logo começou a funcionar.

Contudo, tem uma renca de exemplos que serve de amostragem a quem duvide da
importância daquela obra:
- Aviões com maior capacidade de carga e maior velocidade passaram a atender a
cidade e as suas redondezas;
- Só em um único mês – dezembro de 1975 – partiram dali uns quinze doentes
graves em busca de recursos médicos especializados em Manaus, uma vez que aquela
cidade passou a ser um entreposto às outras circunvizinhas e também a vários vilarejos do
seu entorno;
- Os pequenos comerciantes, responsáveis pelo aprovisionamento dessas cidades,
passaram a ter um meio mais rápido e seguro para se deslocarem a Manaus, onde
buscavam repor seus estoques de mercadorias e, assim, atender a população das cidades e
os ribeirinhos dos sítios e vilas;
- Por causa do apoio do transporte aéreo mais rápido e seguro, órgãos das áreas de
saúde, previdência social, ensino, etc. ali se instalaram para assistir aos caboclos da área
circundante;
- Por aqueles aviões chegaram novos meios de comunicação; e
- As viagens à capital, que por via fluvial demoravam três dias rio abaixo, passaram a
ser feitas em menos de uma hora.
Enfim, benefícios a uma microrregião que, sem o aeroporto, poderiam demandar
décadas para acontecer.
Mas, não foi só aquela pista de Tefé. Outras mais foram construídas no mesmo
tempo e na mesma toada:

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Carauari e Eirunepé, no rio Juruá;
Ypiranga, Japurá, Tabatinga, Palmeira do Javari, Estirão do Equador, Yauaretê, Pari-
Cachoeira e Cucuí, na fronteira oeste com Peru e Colômbia;
Tiriós, na fronteira norte com a Guiana;
Os novos aeroportos de Rio Branco e Cruzeiro do Sul, no Acre;
Coari, no Solimões.
E mais algumas pistas que passaram a fazer parte da malha aeroviária da Amazônia
brasileira.
Pena que nos lugares em que não se construiu uma pista de pouso, com a
desativação dos aviões anfíbios Catalinas, a morosidade das viagens de barco continuou a
ser a única forma de transporte disponível.
Mas, teve efeito colateral inquietante que a gente acabou vendo só com o tempo.
É que, depois de desativarem as linhas regulares do CAN certos de que a aviação
comercial ocuparia o espaço deixado pelos Catalinas e Douglas da aviação militar, tal coisa
não aconteceu.
Qual não foi o destempero dos que assim imaginavam ao perceberem que a
“comercial” não se interessara em assentar linhas regulares nos aeroportos construídos pela
COMARA, porque o faturamento não cobriria os custos dos voos (com a exceção da linha
Manaus – Tefé – Tabatinga – Iquitos). Será que estavam esperando por uma ajudinha dos
cofres públicos?
Daí, então, foi a aviação miúda que, desde então, vem se valendo dessas pistas,
porque é ela que continuou a atender as cidades do interior da região. É ela que leva o
malote, que carrega o doente, que transporta o comerciante, que lança suprimentos no
garimpo, que não tem hora para se jogar aos céus e rumar adonde dela se precise.
Esses danados aviõezinhos são mesmo inquietos, voam para tudo quanto é canto e
estão espalhados pelo país inteiro.
O trabalho que fazem não aparece, nem tem propaganda, é trabalho de formiguinha
que, tudo somado, faz uma tremenda diferença à economia do vasto interior do Brasil e isto
graças à bravura dos muitos “piloteiros” do sertão.
Um pequeno avião chegando numa pista dessas do interior faz sorrir muita gente
que nele vê mais um pouco de esperança.
E é assim, gente, que as coisas do mundo moderno funcionam no meião da
Amazônia, o que se planeja finda não sendo e o que nem se imagina acaba acontecendo.
Em uma nova tentativa de convencer mais uma vez a aviação comercial a se
espalhar por aquelas plagas, os entendidos inventaram um sistema de subvenção às
empresas de transporte aéreo regional... durou uns quinze anos e acabou.
Os aviões comerciais se escafederam do interior e se voltaram aos grandes e
lucrativos aeroportos, pois sem faturar as empresas aéreas quebram.

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Fonte: www.forcaaereablog.aer.mil.br

Aeródromo plantado bem no meio da selva. Uma tábua de salvação para avião pequeno.

Contudo, aquelas muitas pistas de pouso construídas com tanto afã nos tempos
passados, servem até hoje a aviação militar que apoia os contingentes do Exército, guardiões
das extensas fronteiras do oeste e que, de fato, precisam delas para dar agilidade à sua
logística em meio aquela vasta selva. É o avião que garante a rápida ligação entre os muitos
grupos de tropas do Exército distribuídos por aquelas fronteiras e, da mesma forma, com
seus comandos.
Pois é, aviação comercial com linha regular? Só em Tefé e em Tabatinga, dois
lugares beneficiados desde a época da hidroaviação da Panair.
Alguns dos aeródromos construídos findaram por se mostrar como enxertos de
planta que custa a grudar no “cavalo”, às vezes nem vinga e outras vezes vêm com encosto.
E o pior é que, quando vai para frente, nem sempre sai o que se esperava. Um ou outro
“teco-teco” deita as borrachas do trem de pouso por ali e mais nada.
Talvez estas, sim, carecem de ser mais bem pensadas. Será que compensam o
custo de manutenção? Aliás, o Brasil afora tem muito disso, né? Tem gente que acha bonito
sua cidade ter uma pista de aviação e até botam o nome de aeroporto, dando ideia daquela
coisa grande e bem movimentada. Mas, que nada, mal chega por ali um aviãozinho no ano.
Bom! Enquanto isso, os barcos continuam sendo, como sempre foram, a garantia de
transporte a qualquer canto, por mais sumido que seja, daquela enormidade de planície
atapetada de verde e tomada pelas águas do Solimões e dos seus filhotes.
O lado bom disto é que cada cidade daquela hileia continua sendo um mundo à
parte. E quanto mais longe da capital mais à parte é. E se tiver então na ilharga de um rio
menor, daí que fica mesmo à parte do resto do mundo.
Para elas “globalização” é fazer tudo ficar redondo, não tem como ter outro sentido.
Mas, enfim, é hora de seguir viagem rumo ao Jutaí e, agora, num “recreio” mais
modesto, menor e com motor menos potente. É o jeito de chegar lá para aquelas bandas. E é
só ter paciência que a gente chega.
Os cascos dessas embarcações são feitos de pranchas assentadas em vigas
retangulares esculpidas conforme a posição que ocupam na estrutura tipo “espinha de peixe”.
Entre elas é feito o calafeto usando uma espécie de estopa com betume. Coisa
simples, mas bem funcional.

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Fonte: autor

A construção pode levar meses e até anos, conforme o tamanho, o dinheiro que o
encomendante tem, se será de um convés ou mais, a disponibilidade de material no estaleiro
e até em função das encrencas que vão surgindo à medida que a coisa vai acontecendo.
Além da instalação de um potente motor a diesel que fica em um porão, chamado de
“casa de máquinas”, tem a instalação de um gerador de energia, da fiação com os “bicos” de
luz e tomadas, e de um rústico sistema hidráulico para os banheiros e cozinha.
O leme é controlado através de cabos e correntes por um timão que fica no pequeno
espaço da ponte de comando, quase à proa do barco.
Nessa ponte de comando fica só o indispensável para o tripulante que fica à roda do
leme poder controlar o barco, pois seu espaço em geral é miúdo.
Dizem que até a Era da Borracha a maioria dos barcos que estavam empenhados
no transporte da seiva era de casco de ferro que, por sinal, é mais resistente.
E então, por que hoje em dia quase todos são de casco de madeira?
Pelo que parece, quando findou a precisão pela borracha por parte dos estrangeiros,
a economia dos rios despencou, muita gente quebrou e teve de recomeçar com o que
sobrou.
E o que tinha de sobra na mata era madeira. Daí, a maioria dos barcos começou a
ser feita aproveitando o que a mãe natureza oferecia.
Os estaleiros foram se adaptando às novas contingências e o “motor”, como também
é conhecido o barco com motor central a diesel na região, tomou conta dos rios.
Na medida em que iam ficando sem manutenção os velhos cascos de ferro eram
deixados num canto de igarapé qualquer para ali se acabarem. Agora eles estão voltando,
mas só para atender certos serviços, como no caso dos “a jato”, que cortam mais ligeiros as
águas.
Contudo, a maioria continua sendo mesmo os de casco de madeira e vai da
montaria, aquela minúscula canoa de peça única, até os grandes “recreios” que transportam
toneladas de tudo.
A simbiose do caboclo com seu barco é tanta que ele o trata quase como membro
da família e até lhe dá nome de afeto. Meu sogro, por exemplo, batizou o dele por
“Hokkaido”, nome de sua terra natal lá no Japão. Mas, tem barco com nome de mãe, de
esposa, de filha, de filho, de santos, de sobrenomes, de lugares, de rios, de peixes e de
outros animais. Se tem o “Cmte. Raimundo” tem também o “Mª. Raimunda”, se tem o
“Sanacá” (uma borboleta) do mesmo jeito tem o “Alecrim” (uma planta), se tem o “Silva I” é
porque pode ter o “Silva II”, o “Silva III” e até mais “silvas”.

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Curioso com o nome “Speriamo” de um dos barcos rebocadores da COMARA, que
até me fez passar um aperreio, fui assuntar o italiano e o troço significava “Esperamos”...
pode um trem desse? Que intenção tinha quem botou esse nome no barco?
Mas, um que me encucou mesmo tinha o nome de “Cavalo de Aço”. Fiquei um
bocado de tempo imaginando qual a relação que podia ter um barco com um cavalo e, ainda
por riba, de aço... trem doido, sô!

Fonte: Capitania dos Portos/www.nucleodoconhecimento.com.br

Bem! Voltando à nossa viagem, conseguimos um dos poucos camarotes existentes.


Assim, pelo menos temos onde amoitar nossas tralhas de viagem e espichar num colchão.

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DE VOLTA AO SOLIMÕES

Todos a bordo, motor roncando, pronto para zarpar.


Tudo em um “recreio” é muito simples e funcional.
No fundo do casco o porão de carga divide espaço com a casa de máquinas que
comporta o motor, o gerador de energia elétrica e o tanque de combustol.
O que tiver de convés acolhe os camarotes, o espaço para as redes, uns poucos
banheiros e a cozinha.
À frente fica a singela e exígua ponte de comando com a roda do leme, os
essenciais controles do motor e um farol para uso noturno.
A tripulação de “recreio” em geral é de seis marujos que, em viagem, ficam por conta
de cuidar do leme, do motor, da cozinha e algo extra que ocorra durante o percurso.
No porto tomam conta do carregamento e descarregamento da carga.
O interessante é que esses barcos não se modificaram muito com o correr dos anos
e eles estão cortando aquelas águas há mais de século, desde que os motores a diesel
começaram a substituir as antigas caldeiras a vapor, melhorando a força, a velocidade e até a
capacidade de carga.
Quer camarote ventilado?... Não se fie no ventilador, porque sopra somente vento
quente. Mas, se deixar a porta entreaberta flui o ar que o deslocamento do barco provoca.
Assim, refresca bem melhor.
O trecho do Solimões acima de Tefé até a fronteira é menos movimentado, tem
menos vilarejos, cruza-se com menor quantidade de barcos. O que acaba sendo maior é a
monotonia da viagem e o tédio tomando conta.
O barco tem velocidade menor que aquele do trecho Manaus a Tefé, e à proa dá
para notar isto pelo barulho mais manso da quilha cortando a água.
Uma curva do rio lá à frente demora mais para chegar... muito mais. Pode-se dizer
mesmo que é uma fábrica de lonjura.
A gente vai entrando numa espécie de estado de letargia, vai ficando mais difícil sair
do fundo da rede ou do beliche do camarote, uma prostração danada que parece dobrar o
peso do corpo.
A vida entra em ritmo de câmera lenta.
Os interruptores da pressa vão sendo desligados um a um.
Daí em diante, no amontoado de redes só se vê braços espichando no meio duma
espreguiçadeira que parece não ter mais fim.
Para a tripulação que já está acostumada ao vaivém pelo rio a vida toda, o “motor”
passa a ser um lar e os colegas como se fossem irmãos.
Tanto conhecem detalhadamente o barco como, também, todo o percurso da
viagem.
A vários deles a vida é aquela ali, o mundo se resume naquele espaço, no barulho
constante do motor e na paisagem ao redor.
Para eles, desembarcar num porto qualquer para esperar por uma nova viagem é
como se estivessem em terra estrangeira onde só se passeia, se faz compras e se visita
pessoas.
Para outros são os curtos momentos com a família, quando tomam conhecimento de
como estão as coisas no lar, resolvem alguns problemas e aproveitam o breve convívio com
os seus... até novo embarque.

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Fonte: autor

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Mas, enfim, tem uma hora no mormaço da viagem que todo o pessoal a bordo se
anima.
Ôpa! Já é a hora do “rango”? Então, tem de ir lá armar a mesa.
É, isto mesmo, armar a mesa única que serve a todos, e sempre é bem-vinda u’a
mãozinha de alguns passageiros que, terminada a refeição, têm de desarmar a dita.
E a boia é simples: arroz, feijão, macarrão e, por incrível que pareça, frango! Não,
não é peixe, é frango mesmo. Daqueles que vem ultra-super congelados envoltos em saco
plástico, ou seja, já vem sem gosto nenhum. É o tempero que salva.
A mesa é pequena, não cabe todo mundo de uma só vez. Então, é servir, comer e
sair logo, porque tem a segunda, a terceira e até a quarta leva. Em meio ao barulho de pratos
e talheres tem aquele proserio à toa.
Ah, tem também a hora do banho e a de fazer a higiene matutina. Dois banheiros do
tamanho de box e duas pias minúsculas no convés, e cada passageiro pacientemente espera
a sua vez.
De resto é só ficar vendo o tempo passar, proseando, jogar cartas ou dominó e até
mesmo lendo alguma coisa e, não! Não tem internet.
Ops!... faltou uma coisa.
Lá na popa fica plantado um pequeno mastro inclinado onde, abanando ao vento,
fica uma bandeira nacional... obrigatória, é lei!

Fonte: autor

O pavilhão à popa está lá hasteado... mas, será isso ainda Brasil?

Estranhamente neste país as tripulações das embarcações interioranas cumprem


essa lei, mesmo estando lá nas tantas voltas de um sumido igarapé, longe de qualquer
fiscalização. Sempre à popa está a bandeira de um Brasil que, dali, é tão distante.
Apesar daquele mundo ser pouco lembrado e conhecido pelos patrícios do “Sul” há
nele um gosto por se sentir brasileiro.

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Quem já sobrevoou qualquer fronteira dali sabe que a floresta não deixa ver onde
termina um país e começa outro. Pula-se a fronteira sem perceber, não existem referências
visíveis.
Até os idiomas se misturam – imagine um “portunhol” mesclado à “língua geral”
(indígena) e temperado com “nordestinês”... é bem assim – então, o que garante a
nacionalidade é aquele gosto de se sentir brasileiro, mesmo que seja de um Brasil todo
diferente e muito distante do outro. Aliás, a única coisa que parece ser comum em todas as
diferenças deste baita pedaço de chão, é o idioma e, mesmo assim, com suas muitas
variações.
Do “pai d’égua” do paraense, pula para o “cabra da peste” do nordestino, descamba
para o “tchapada” do cuiabano, cai no “trem” do goiano e logo no “uai” do mineiro, vai pelo
“indo fazennndo” do paulista, arriba pelo “Crixxxto” Redentor do carioca, apeia no “bah tchê”
dos pampas gaúchos e tantos outros jeitos de falar que findam por mostrar que dentro deste
país tem muitos outros.
Dizem que o Brasil é assim grandão porque os bandeirantes desobedeceram o
Tratado de Tordesilhas entre a Espanha e Portugal, ultrapassando a linha que dividia as
colônias de um e do outro país. Meteram-se pelas terras que, então, deveriam ser dos
espanhóis e foram esticando a colônia portuguesa até onde puderam. Daí, essa vastidão.
Mas, por causa dela quem muito perambula de um canto ao outro vê que de verdade
são muitos países dentro de um só. Não é apenas em termos econômicos, mas também
culturais e geográficos. O povo que vive dum lado nada tem a ver com o que vive doutro lado,
que de igual só tem a fala e com suas diferenças.
É de se pensar no significado de “país” para uma coisa com tanta diferença.
Se fazem uma lei o seu cumprimento em todo o território nacional tem de ser
fiscalizado. Contudo, não se consegue fazê-lo nem no desenvolvido Sudeste, quiçá naquela
imensidão de água e mato que ocupa a metade do país.
A impressão que acaba se tendo é que nações grandonas e subdesenvolvidas,
iguais ao Brasil, Rússia, Índia, etc. não se encaixam na concepção tradicional de “país”.
Precisam de u’a maneira própria de ser, diferente dos desenvolvidos ou dos pequenos.
Administrar uma Suíça, por exemplo, deve ser bem mais maneiro do que um grande
em que a banda desenvolvida é muito menor que a subdesenvolvida. Ser patriota numa
pequenina Suíça é bem mais fácil do que neste território desconforme de grande e com
gentes tão diferentes. “Bota amor nisso”, como diz o caboclo do Amazonas.
Ops! Está passando da hora de deixar de mão essas encucações que até nem dão
em nada e voltar as vistas para o meio do rio, pois lá vem outro “motor” cruzando banzeiro
com o da gente.

70
Fonte: autor

E o bicho vem bem carregado, água lambendo as beiras que vai quase alagando.
Pelas plagas amazônicas é assim: se tem carga... vai embarcando. Só para quando não tiver
mais espaço. E o peso? É enquanto estiver flutuando.
Mais um vilarejo à vista e com seu Centro Comunitário de frente para o rio.
“Centro Comunitário” em um povoado é um galpão que serve para tudo, de reunir o
povo a armazenar coisas.
Administração pública num lugar desse aí é coisa pouca. Sem quase recursos vai se
virando do jeito que dá.

71
Fonte: autor

É uma ajeitada nos buracos de uma rua, u’a melhorada no lugar de acesso aos
barcos ou mesmo dar uma afastada no mato que vem no rumo das casas.
Mas, nas cidades debruçadas sobre os beiradões do portentoso Solimões a luta
desigual é mesmo contra a “terra caída”.
Aquelas que têm algum maquinário para movimentar terra ficam brigando o tempo
todo para empurrar o rio de volta, construindo aterros que, em geral, conseguem retardar por
mais um tempo a voracidade das águas... mas, só por um tempo.
Já outras conformam-se com a sina e vão se mudando para mata adentro, fugindo
do futuro de virar parte do fundo do rio, de desaparecer, de ser lembrada só como passado.
Tem também aquelas às margens de lagos, como Tefé, que esnobam até belas
praias e não padecem do mau humor do rio. Assim, elas são mais estáveis, têm porto seguro
e, por isto, possuem intensa circulação de pequenas embarcações que ajudam a movimentar
o comércio local.
O lago é o berço, é onde tudo começou e dali as ruas foram se espichando, mais
casas, pequenas mercearias, mais serviços diversos e a cidade tomou forma, cresceu e virou
uma espécie de entreposto às outras no seu entorno.
No meio da viagem aprecia-se diversas dessas pequenas cidades e vilarejos rio
acima: Alvarães, Porto Praia, Tamaniquá, Fonte Boa, etc. Umas a salvo do rio e outras não.
É quase impossível não se perguntar donde aquele punhadinho de gente veio e
resolveu fincar raízes exatamente ali, naquele lugar, começar do zero, tirando a mata,
roçando o chão, cortando paus para levantar as moradias, arrancando palhas para cobri-las e
iniciando uma vida que acaba sendo a dos seus filhos e netos.
Será essa garra toda só resultado da luta pela sobrevivência, ou aí também tem
esperança de fazer a vida desembestar no rumo do progresso e trazer riqueza e conforto a
todo mundo que ali se aventurou?
Mais à frente um pouco e a gente tem impressão que o rio se estreitou até demais.
Mas, não é não, sô!
Se aguçar a vista, dá para ver que donde o bicho afinou é porque tem uma ilha que
racha o Solimões em dois braços. E mesmo assim dividido, cada braço tem uma largueza
maior que qualquer rio do “Sul”.

72
Fonte: autor

Uma das tantas ilhas que o Solimões faz e desfaz quando bem entende.

No Goiás, por exemplo, a água mais avantajada é a do Araguaia que, de parelha


com o Solimões, quase vira só um igarapé.
O comandante do barco, à roda do leme, faz a opção do braço d’água que melhor
favorece a viagem e por ali vai.
O rio-mar tem dessas coisas, ele até dá opção do barco encurtar viagem se
espremendo pelos seus entremeios.
Mas, tem de tomar cuidado, pois se o caboclo escolher errado pode acabar
encalhado num banco de areia ou mesmo no meio de um rebojo e, então, se ver em apuros,
gingando de um lado para o outro com muita força.
Por riba d’água a aparência é de calmaria, de mansidão.
Contudo, não se fie, tem de conhecer e saber navegar pelo canal certo, pois as
armadilhas estão é nas suas entranhas.
Então, passando da ilha, lá vamos nós dobrando mais uma volta a estibordo.
Na tarde o ar mormacento vai tomando conta, a vontade de cochilar se aprochega e
a rede balançando convida. É a hora da siesta.
No passadiço muitas redes armadas e nelas gente refestelada e se esquecendo do
mundo. Quem resiste vai pegar um vento de proa, jogar conversa fora ou fincar a vista no
infinito e ficar matutando qualquer coisa. Não tem muito o que fazer.
E o tempo vai passando e a boca da noite vai chegando bem de manso, apagando o
clarão do céu e o brilho da água.

73
Fonte: autor

A boca da noite vai se aprochegando de manso.


Convida a refletir sobre esse mundão de meu Deus.

A fila para o banho nos dois únicos chuveiros vai andando. Dali a pouco tem de se
armar a mesa do jantar e o modesto espaço do convés é tomado por ela. O repasto é rápido,
é sempre de revezamento, pois as levas seguintes de esfomeados só ficam ali de marcação,
esperando alguém se levantar do banco.
Na escuridão da noite o proserio vai se aquietando à medida que o povo se ajeita no
fundo das redes e despenca de novo no sono.
A monótona batida do motor vira canção de ninar e a noite toma conta de tudo
embaixo, porque em cima é o céu tão estrelado que estonteia.
O timoneiro, lá na frente, liga o farol e começa a riscar com seu facho as águas à
frente, procurando livrar a proa dos tocos mais parrudos.
Mesmo na hora de revezar com o colega de tripulação o farol não pode parar de
ciscar o rés da água, porque as toras ameaçam o tempo inteiro.
Já a chegada do dia faz o rio brilhar numa mistura de colorido que vai de prata ao
ouro e de azul ao vermelho numa toada só.
E o sol vem com mais novidade. Fonte Boa à vista!

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Fonte: autor

Fonte Boa é uma das cidades que teve de fugir da fúria do Solimões.
Demorasse só mais um tiquinho e teria sucumbido sob as águas.

Pois é, à proa surge a cidade na ilharga esquerda do Solimões. É uma das que já
teve de mudar para mais longe do velho Solimões que, teimoso, queria lhe engolir toda. Foi
só aparecer o racho fino na terra e o povo já foi saindo de vez, sem mais esperar.
Aqui vai u’a amostra da realidade amazônica.
Em vários lugares daquela grande hileia os únicos serviços disponíveis às suas
populações constituem-se em pequenas mercearias que comercializam itens bem básicos,
sem opções de marcas, modelos e qualidade.
Em alguns mesmo esse comércio é feito pelo rio. Sim, barcos entulhados de
mercadorias variadas, que vai do tecido ao terçado e ao comprimido para dor, tem de tudo
um pouco.

Fonte: Juan Diaz

Cameli e sua mercearia fluvial. Da faculdade em Goiânia para o regatão na Amazônia.

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São os chamados “regatões”. Eles sobem o rio parando nas barrancas, vendendo
manufaturados adquiridos em Manaus e recebem o pagamento quando descem o rio em
produtos da terra: castanha, borracha, cacau, banana, farinha, açaí, cupuaçu e... peixe, claro.
Tudo será vendido em Manaus.
Quando a carga do “regatão” é muita atraca-se na sua ilharga uma alvarenga, que é
um casco, mas sem motor, uma espécie de “carreta” de barco, só que vai um atrelado no
outro.
Serviços públicos? Quando tem é coisa bem singela, na maioria dos casos é uma e
outra repartição da prefeitura. É um posto de saúde, a escola, o mercado e mesmo o porto.
Já a presença de repartições de outras esferas é rala e, por vezes, são os fiscais
disso e daquilo que chegam na frente.
Na época do Projeto Calha Norte, proposto pelo Exército, a instalação de novos
Pelotões de Fronteiras devia ser seguida por outros órgãos públicos: saúde, ensino,
previdência, segurança e todo tipo de apoio que, então, daria início a novas vilas e até
cidades. A ideia era ocupar de fato as áreas de fronteiras da Região Norte.
Os Pelotões chegaram e as outras repartições... não.
A Marinha também presta um bom serviço por lá com os seus navios-hospitais,
embora seja um serviço itinerante, ou seja, é de vez em quando que passam pelos vilarejos.
Ela faz isso com navios pequenos e de calado baixo que, assim, conseguem atracar
em águas bem rasas. São poucos, mas assim mesmo ajudam no que dá a gente ribeirinha.
É um atendimento mais ambulatorial, consultas médicas, curativos, remédios, alguns
exames simples e até pequenas cirurgias.
Dispõem também de gabinete odontológico para tratamentos elementares e que
possam ser feitos de uma só vez, pois os barcos permanecem poucos dias em cada lugar.

Fonte: www.marinha.mil.br

Faz ainda um trabalho de orientação sobre procedimentos de higiene, saneamento e


prevenção de doenças aos caboclos e às suas famílias, já que várias enfermidades
acontecem somente por falta de cuidados básicos rotineiros.
Mas, é a falta de atendimento de saúde permanente que muitas vezes derruba o
caboclo no fundo da rede por dias ou mesmo no fundo da cova para sempre.

76
Por exemplo, imagina o bocado de gente picada por cobra que morre porque
demora para chegar de barco onde possa ser socorrida com o soro salvador.
E a malária então?! Essa nem dá prazo para o caboclo, que treme tanto de febre
que desconjunta até a vontade de viver e fica ali sem nenhum atendimento.
Em alguns lugares tem a hepatite que ataca boa parte da população. É encrenca
que não se cura com mero atendimento ambulatorial. Tem de ter tratamento continuado.
Mas... cadê? Fora outras tantas doenças de que padece aquele povo e para as quais ele não
tem para donde correr.
Tem a figura da benzedeira que passa a ser em alguns cantos o único recurso de
saúde ao caboclo doente: “... ô, dona, não tá passando nada na goela, tá fechada, doendo...”
A velha dá u’a olhada e passa a receita: “mangarataia cura”.

Fonte: autor

Na catraia o equipamento de segurança por excelência é saber nadar e bem.


A convivência com o risco é uma constante na vida do caboclo.

Pois é! Então, vamos seguindo viagem.


Uma vez o barco solto das amarras aproamos de volta ao rio para mais uma etapa
daquela jornada. E a mata ribeirinha novamente divide com o Solimões a já monótona
paisagem.
Ainda se veem catraias fendendo água rumo aos sítios nas proximidades. Mais para
frente até elas somem de vista e voltamos ao isolamento total.
Um telefone via satélite passa a ser o único jeito de se ligar a alguém fora dali e,
mesmo assim, tem nuvem de chuva que atrapalha.
A preguiceira pula fora do corpo e a gente sai do fundo da rede para ver um “rabeta”
que vem cortando a água de jeito enviesado, bem no rumo do “recreio”. O abalroamento é
rápido e de uma vez só, como quem já fez aquilo um monte de vezes.
A tripulação da canoa é um casal e a carga está até a boca de bananas ainda
verdes. A transferência do produto é feita com os barcos na toada da viagem, o motor não
para. Enquanto a mulher fica garantindo a atracação com os próprios braços, o homem vai
passando cacho a cacho de bananas ao comprador a bordo do “recreio”.

77
Fonte: autor

Trabalho terminado, carga toda transferida, o negociante paga a mercadoria com


algumas poucas notas de R$20,00... sim, isto mesmo, alguns “vintões” pela mercadoria
inteira. Pagou, a mulher larga mão da amurada do barco e a canoa desembesta de volta para
o beiradão, pulando as levas do banzeiro provocado pelo “recreio”.
É a banana, é a castanha, é a borracha, é o açaí, é o cacau e é a macaxeira... um
pouco para cá e um pouco para lá dos “vintões”, mas é o que o caboclo consegue na venda
do seu produto. E tem de vender senão acaba perdendo tudo, porque a grande umidade e o
calor brabo estragam bem depressa qualquer produto da terra.
A mão-de-obra é bem barata, um quase nada. E é tudo na força do braço e na
teimosia de viver. Uma vez na mata o caboclo tem de se virar com o que tem... e ele tem bem
pouco.
E nem pensar em ficar doente, pois, daí tudo piora muito. Se o chá de folha não
resolver vai ter de pegar no cabo do remo por horas até encostar em uma cidade com algum
recurso médico.
Quando o regatão passa por ali, vira festa.
Muito movimento no batelão cheio de variada mercadoria. O caboclo quer um
terçado novo, a mulher quer o tecido para roupa nova dos curumins que, por sua vez, estão
de olho nos pacotes de bolachas empilhados num canto mais seco do barco. É hora gastar
os “vintões” arrebanhados daqui e dali, na venda dos produtos da terra.
Sem eletricidade, sem geladeira, a comida tem de ser fresquinha, o peixe tem de ser
do dia. Pescar, tratar, temperar e botar no fogo é afazer diário.
O dia do ribeirinho começa quando os primeiros raios de sol riscam o céu até prá
riba de sua moradia.
Cair logo cedo no rio é um jeito ligeiro de espantar o resto de sono. A primeira
refeição do dia é o café e o beiju. Leite só enlatado em pó ou condensado. Às vezes um
mingau de banana completa o desjejum.

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Barriga cheia pé na areia... ou pé no caminho da roça, ou pé na trilha para o
castanhal, ou pé no fundo da canoa que leva à pescaria. Pode escolher, pois o que não falta
ali é o que fazer.
Passam as horas. Sol a pino, hora de comer o peixe com farinha d’água até se
fartar. Terminou? Então, uma breve siesta e volta-se ao batente, que ainda tem muito.
A boca da noite devolve o caboclo para casa.
Mais um pouco de peixe e farinha, mais um pouco de conversa e, com o corpo
moído pela labuta diária e sem televisão, internet, celular e games, o sono chega cedo e o
fundo da rede acolhe a carcaça cansada.
Daí... foi-se o dia.

Fonte: autor

A Bacia Amazônica se parece com uma espinha de peixe, sendo o


Amazonas/Solimões o espinhaço e as costelas cada rio que nele desemboca.
E são rios que se espicham para mais de mil quilômetros floresta adentro.
Desses grandões de um lado tem o Jari, o Trombetas, o Nhamundá, o Branco, o
Negro, o Japurá e o Içá, e do outro tem o Tocantins, o Xingu, o Tapajós, o Madeira, o Purus, o
Juruá e o Javari. É muito rio num só pedaço do planeta.
Mas, essa é uma espinha desconforme de grande e que se mexe o tempo todo,
mudando tudo a cada cheia.
Corta barranco aqui e faz ilha acolá, afunda o canal ali e faz praia lá no meião. Não
se aquieta nunca.
É um fenômeno tão presente em quase todo o percurso do rio, que impressiona
quem não está com ele acostumado.
Tem lugar que as barrancas são mais baixas e noutro ela fica lá nas grimpas.
Depende da ondulação do terreno.
Contudo, miúda ou graúda todas elas despencam para dentro do rio, mais cedo ou
mais tarde.

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Fonte: autor

O Solimões é mesmo um rio em construção.


Vai derrubando suas beiras e assoreando seu leito a cada cheia.

A impressão que a gente tem de toda aquela região é que, da Cordilheira dos Andes
até as rebarbas do Pará, na verdade ela é uma tremenda poça d’água que está secando.
Espia só: o relevo é plano e levemente inclinado na direção do litoral, para adonde
escorre toda a água. O fundo é como se fosse a lama, pois é areia e argila. O musgo que é
comum onde a água da poça já se foi há algum tempo é a floresta... guardando as devidas
proporções, claro.
E tudo isto é muito recente em termos de tempo geológico. Ou seja, depois que os
Andes arribaram inclinou o chão no rumo do Atlântico, o mar escorreu e agora está secando.
Bom! Pelo menos esta é a impressão que o lugar numa primeira vista passa à gente.
Pois é, lá pelas tantas estávamos comentando sobre uma paisagem de mata baixa
que desfilava à nossa frente, quando entrou no papo um “sulista” recém-formado em alguma
coisa de ecologia e que seguia viagem com a gente.
Ele estava meio indignado achando que aquela vegetação mais rasteira decorria do
desmatamento irresponsável.
Sem conseguir disfarçar a troça dissemos que, então, o irresponsável seria o velho
Solimões, pois, além de derrubar a mata ainda assoreava o seu próprio leito.
Mas, dá o que pensar, viu? O que estão ensinando nesses cursos por aí? Cadê o
uso do tal método científico para, primeiro apurar o acontecido e, só depois, palpitar?
Pois, fique sabendo, meu caro diplomado, que o Solimões mais se encaixa no dito
pelo “Maluco Beleza”. Este riozão de meu Deus é, literalmente, u’a “metamorfose ambulante”,
e o que está diante de nós é uma bruta de uma ilha, daquelas que o rio faz em questão de
poucos anos, daí... a vegetação ainda miúda.
Quer conhecer mesmo a Amazônia? Não venha só de passagem, se achegue e
finque morada nela. E não vale ficar no bem bom em uma de suas capitais, mas tem de
interiorizar, fazer ala com o caboclo num dos tantos cantos daquela bonita e difícil região.
Ali quem manda é o rio. Muda tudo enquanto suas águas sobem por uns seis meses
a cada ano e, então, vem a vazante nos outros seis meses expondo o resultado do “serviço”.

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Como as cidades precisam dele para sobreviver geralmente ficam às suas margens.
Mas, o Solimões cobra alto seu preço, pois como faz barrancas por onde passa essas
cidadezinhas não escapam de sua voracidade.
Contudo, se quanto mais longe do rio a segurança é maior, também fica mais difícil a
vida longe dele. A caboclada nem sabe o que é esse negócio moderno de “gerenciar riscos”,
mas tem de fazer isto o tempo todo por instinto mesmo. É ficar perto do rio para tocar a vida e
o tempo todo ficar de olho nas trincas no chão.

Fonte: autor

Alguns lugares o povo constrói muros de contenção e faz aterros tentando retardar o
inevitável. Às vezes passa meses levando terra na direção da beira para ganhar mais um
tempinho até que a cidade vá trocando as ruas da frente pelas de trás. Mas, a terra macia,
arenosa e sem pedras para se agarrar cede fácil à força das águas.
O caboclo continua por ali com sua família nem é de teimosia, fica é por falta de
opção, não tem para onde ir. Se larga tudo e vai de vez para a capital – Manaus – vai viver
pendurado em uma palafita num subúrbio qualquer, onde a droga solta vicia os filhos e a

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prostituição deslavada faz das filhas “mulher da vida” ou, para ser mais moderno...
“acompanhante”.
É a sina daquele que, de verdade, vem há muito garantindo a ocupação daquela
metade do país à outra metade que nem sabe que ele existe.

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JUTAÍ À FRENTE

Olha lá!... Enfim, Jutaí surge na quebrada do rio. E a primeira visão é justamente do
desbarrancamento da beira da cidade. Trem feio, moço!

Fonte: autor

Êita, Jutaí ! Te cuida que o Solimões te quer... e depressinha.


Num te arreda de sua ilharga e vais sentir a água forte te bater por baixo e te afogar,
sem dar tempo nem de reclamar e de despedir.
Hoje tu existes e amanhã... não.

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Fonte: autor

A devoração das terras é implacável. À cidade só resta fugir no rumo da mata... e sem demora.

O povo carece de se mudar ligeiro, porque o rio não espera. Tem de se arredar mais
para a terra firme, mais longe das ilhargas do velho rabugento do Solimões, igual Fonte Boa
fez. Se esperar demais o rio lhe dará o mesmo destino da Vila Alfaia e, então, vai ficar só nas
lembranças das gerações que por ali passaram.
É a sina que se repete por toda a calha do Solimões e Amazonas, e até mesmo de
outros rios dali com estirões que deixem a correnteza pegar força. Daí... não tem conversa!
O que não corre risco são os flutuantes. Tal como jangadas, ficam ao sabor do sobe
e desce das águas. Ora flutuando e ora em terra.

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Fonte: autor

Nessas muitas cidades ribeirinhas a carência de tudo só é minimizada pelos


comerciantes locais e nas pequenas vilas, pelos regatões.
Em geral os comerciantes são pessoas com alguma liderança e com um capital que
lhes permita montar u’a mercearia, uma fábrica de gelo, um pontão, etc. Constituem o poder
econômico do lugar e influenciam até os povoados próximos. Em função disto, vários deles
findam por se envolver na política, chegando à vereança e mesmo ao cargo de prefeito.
Em cidade do interior da Amazônia se o caboclo quer “subir na vida” o comércio é o
caminho indicado, até mesmo porque é uma atividade econômica que não precisa de diploma
de curso superior, pois vai depender mais da capacidade de cada um negociar.
Assim, basta saber ler, escrever e fazer contas e... negociar.
Isso se reflete inclusive em Manaus, já que, muitos comerciantes da capital
começaram seus negócios no interior e, conforme foram aumentando seus patrimônios,
mudaram-se para a cidade grande visando expandir seus negócios. Excluindo o Distrito
Industrial, repleto de montadoras estrangeiras, a maioria do empresariado manauara
constitui-se nesses comerciantes que se arriscando migraram para lá de vez.
É comum seus filhos continuarem os negócios da família, embora a existência de
universidades na capital venha conquistando os interesses dos jovens, principalmente dos
que não têm origens abastadas e querem se fazer através de uma profissão de nível
superior, em geral via concursos públicos, como é de praxe neste país.
O Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia – INPA é um centro de excelência
em estudos científicos sobre a região, porém é comum contar em seus quadros com
pesquisadores que vieram de fora, do “Sul” e de estrangeiros. Pois, a tônica da mão-de-obra
da região é mesmo o comércio e das novas gerações... concurso público.
Devido a essa tradicional vocação em geral não tem muita gente interessada de fato
pela vida acadêmica, pela pesquisa científica e pela produção de novos conhecimentos, ou
seja, em dedicar a vida aos estudos, ao desenvolvimento da Ciência & Tecnologia (C&T).
Daí, a dependência de pesquisadores que vêm de fora, seja do “Sul” ou de outros
países.

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Não é por menos que se diz ter o estrangeiro maior conhecimento da Amazônia que
os brasileiros. Afinal, coleta de amostras gera pesquisa, pesquisa gera invenções, invenções
geram patentes e patentes geram muito dinheiro.
Tempos atrás me disseram que só o investimento que um certo instituto canadense
fazia em um seu pesquisador na Amazônia superava o orçamento anual do INPA. Verdade ou
não, sabe-se que investir em C&T nunca foi o forte por aqui.
E quando se diz isto, logo se mira o governo... não! Não se trata de governo, mas da
iniciativa privada mesmo que, nos países desenvolvidos, investe um monte de dinheiro em
C&T, pois é dali que nascem os produtos que se espalham pelo mercado mundo afora.
Vixe! Já lá estamos divagando de novo e a hora agora é de desembarcar.
Um amigo de meu cunhado Robson está nos esperando em sua residência. Então,
vamos tomar rumo.
Jutaí é menor que Tefé, o movimento de comércio também. Qualquer coisa para
chegar e para sair é só via fluvial.
Chegamos à residência do Alírio, um velho amigo da família. Recebeu-nos muito
bem em sua casa, cuja área externa coberta, com suas cadeiras “espreguiçadeiras”, convida-
nos a relaxar e a um agradável bate-papo sobre os acontecimentos do lugar. Por ali, a
amizade tem muito valor. A conversa para atualizar os assuntos vai longe, mesmo durante a
boia em que o prato principal é... peixe, claro.

Fonte: autor

A vontade mesmo é de só ficar ali bem escarrapachado e proseando.

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O caboclo não é mineiro, mas é desconfiado com forasteiro. Precisa de um bom
tempo até que tenha confiança e, então, aceite a amizade.
Contudo, uma vez amigo... não tem restrição, vira irmão.
O aperreio de um também é do outro, e a alegria de um também é do outro. Ali as
muitas dificuldades acabam ajuntando as pessoas, porque todas vivem a mesma luta pela
sobrevivência. Tem de ser um escorando o outro o tempo todo. Terra caída é prá todos.
Acho que é isso que convence gente, igual ao Alírio, a não sair da terrinha, mesmo
já tendo condições de morar na cidade grande.
Todo mundo se conhece, as famílias se misturam e, no fim, um é parente do outro e
se não é finda que ainda vai ser, é só esperar.
São jeitos simples de viver das cidades pequenas que no “Sul” foram se perdendo
com o tempo à medida que as modernidades nelas foram sendo despencadas. Cada qual
passou a se esconder dentro de seu canto e o encanto do conviver deixou de ser.
Mas, ali ainda se podia aproveitar um cumprimento que começa com um sorriso e se
conclui com um “até mais”, ou de uma conversa aberta com “Ah, rapaz! Foi bom te
encontrar...” e se espicha até se lembrar de um afazer. E por aí vai...

Fonte: autor

Mesmo o poder público carece da serventia dos barcos. As prefeituras podem até não ter caminhão,
mas sem barco... de jeito nenhum.

Quem é aí da velha guarda ainda deve se lembrar de como a religião era muito
presente na vida das antigas famílias do interior.
Pois é, as localidades ribeirinhas ainda guardam muito disso.
As igrejas são prédios simples, desprovidos de adornos, mas proporcionalmente
bem mais frequentadas do que as da cidade grande.

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Para o povo dali a fé ainda move a vida, é uma fé bem simples, mas autêntica, não
se duvida da ação Divina no dia a dia das pessoas. Lá quem crê, crê de verdade.
É comum encontrar religiosos estrangeiros por aqueles recantos, por vezes já bem
idosos e que estão por ali há décadas. Largaram a terra natal, aportaram em um lugarejo nos
confins amazônicos e por lá decidiram passar o resto de suas vidas.

Fonte: autor

Tem uns que até são de famílias com boas condições financeiras, mas não se
aperrearam com isto e vieram assim mesmo.
De vez em quando fazem uma visita aos distantes parentes, mas a seguir
descambam logo de volta para seu recanto nos cafundós da Amazônia.
A fé é tão grande que em Belém, a porta de entrada da Amazônia, todo ano tem o
Círio de Nazaré, uma devoção a Nossa Senhora de Nazaré que começou lá em 1793,
quando ainda nem existia o Brasil como país e esse chão todo era só uma das tantas
colônias de Portugal.
É uma festa bonita e o andor com a imagem da santa é ladeado por uma grossa
corda que todo mundo que está na multidão quer segurar. É o pagamento da promessa. E
vem caboclo de tudo quanto é canto da Amazônia para honrar Nossa Senhora no Círio.
Em Jutaí a fé do povo também é assim forte. Pode até não ter padre para celebrar a
missa, mas a fé continua, pois, naquele meio de tanta dificuldade e lonjura de tudo, de perto
mesmo só tem Deus.
E se tem batizado, missa, procissão, casamento ou velório, mexe com a cidade
inteira. No mínimo fica-se curioso para saber de quem foi e, daí, desfila-se a história toda do
acontecido. Não demora e toda a cidade já sabe dos detalhes e até dos aumentos, porque “o
povo aumenta, mas não inventa”, né?
Até na doença Deus está lá, porque se tem doença que mata, tem a que Deus cura,
porque, se depender de atendimento médico... vai ser difícil.
Os pequenos hospitais do interior fazem o atendimento ambulatorial e pouca coisa
além disso. Médicos especialistas?... Ah, colega! Pode pegar o rumo de Manaus, porque
nessas bandas o clínico geral vai resolver só o que dá para resolver e não é muito.

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Talvez tenha raio X, mas se precisar de uma tomografia, de uma ressonância ou de
um tratamento mais especializado... é embarcar no “recreio” ou no “a jato” e seguir viagem
baixando o rio, rezando para chegar vivo na capital.
Nos pouquíssimos lugares atendidos por avião as esperanças são maiores, pois em
algumas horas o paciente pode pousar em Manaus e ser socorrido em menor tempo.
Na época que existiam os Destacamentos do, então, Serviço de Proteção ao Voo –
SPV fazia-se diuturnamente o transporte de pacientes graves do interior para a capital em
busca de melhor atendimento médico.
Eram as tão conhecidas Missões de Misericórdia – MMI, realizadas por aviões da
Força Aérea, às vezes com médico a bordo acompanhando o doente.
Os 27 Destacamentos por ali espalhados recebiam pedidos de MMI que eram
enviados por telegrafia à Base Aérea de Manaus. Após terem parecer favorável de um
médico militar, um avião era autorizado a buscar o paciente.
Essas poucas iniciativas eram consideradas serviço público, sem nenhuma despesa
ao paciente ou aos seus familiares, tudo por conta dos contribuintes e levadas a cabo pelo
Estado. Coisa rara por este Brasilzão, né?

Fonte: autor

Atendimento ambulatorial. Recursos médicos especializados só na capital...


e serão dias de viagem rio abaixo.
No hospital aí faleceu meu sogro, Yoshinori Esashika, o japonês do Copatana.

Quantas e quantas pessoas são acometidas de algum mal em sítios nas lonjuras
daquela imensidão de água, que sequer conseguem se aluir no rumo de uma cidade no
encalço de uma assistência médica que lhe estique a vida por mais algum tempo?
Um machucadinho de nada infecciona, a ferida não fecha, a febre chega e a coisa
vai piorando. Quando dá fé... foi-se a vida.

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Bom, gente! Ficar pensando na vida é bom, mas já é hora de pegar a “voadeira” e
subir o rio Jutaí até chegar na vila do Copatana, que fica algumas léguas adiante. Coisa que
no “Sul” se faz bem rapidinho de carro, aqui é um mundão de água pela frente.

Fonte: autor

O Jutaí não tem as águas barrentas iguais as do Solimões.


Nasce há uns 700 km a sudoeste de sua foz.

Antigamente dizia-se que para as bandas de sua cabeceira tinha ouro. Coisa que
nunca foi comprovada, mas a lenda durou tempo suficiente para alguns aventureiros
sacudirem suas bateias por lá e pelo que parece sem nenhum bom resultado.
Também já correu boato que em algum ponto do seu percurso era possível encontrar
pedras redondas que, talvez, pudessem ser ossos de animais pré-históricos. Mas, nada do
conteúdo dessas conversas foi comprovado.
O certo é que próximo à cabeceira ele fica a pouco mais de 40 km a oeste da cidade
de Eirunepé, que se assenta às margens do médio Juruá. Ou seja, nada diz que não possa
ter ligação entre um e outro rio, por algum paranã.
Desse ponto extremo do Jutaí até Manaus são mais de 1.700 km, tudo dentro do
Estado do Amazonas e em uma viagem de barco seria mais ou menos uma semana só
vendo a mata passar e, se for na época da vazante, talvez nem se consiga fazer.
O Jutaí é o irmão menor do Juruá e, tal como, também é todo tortuoso.
A malha de rios e igarapés na região é capilar. A todo tempo tem algum curso d’água
desembocando no rio. É ficar atento para não se deixar confundir.
E continuamos Jutaí adentro singrando pela beira para ir um pouco mais ligeiro,
escapando da corrente do meio do rio. E mesmo com toda aquela velocidade parecia que as
voltas do rio não tinham fim.
A barulheira do potente motor nem deixava a gente conversar para passar o tempo.
Então, era só ficar olhando a paisagem: água muita e mata fechada.
Agora, pense que ao em vez de do banco de “voadeira” esteja no banco da proa de
uma canoa e ao em vez de do motor é o remo que tá empurrando água... bem devagarinho,

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naquela toada mansinha que é para não cansar depressa, não esquecendo que a cada três
remadas tem de usar o remo como leme para manter o curso.
E o sol vai subindo e depois vai deitando, e a canoa vai escorregando de manso,
sem nenhuma pressa. Imagine vivendo assim desde quando nasce até quando morre e é
uma geração atrás da outra geração. Dá muito que pensar na vida, né?

Fonte: autor

Não estávamos numa canoa, mas não é que comecei a pensar assim mesmo? No
quê?... Naquele mundão totalmente diferente do que é o “Sul”, onde as coisas são bem mais
fáceis e mesmo assim, vira e mexe, a gente está clamando de qualquer desconforto.
Lembro-me que há um tempão ajudei um acadêmico de odontologia do Campus do
Projeto Rondon, integrante de uma equipe da área de saúde, numa das únicas coisas que ele
podia fazer à gente de um daqueles vilarejos: extrair cacos de dentes.
O lugar usado pela turma como um improvisado posto de atendimento era um
galpão com paredes de pranchas de madeira e teto de folhas de metal ondulado.
Os pacientes do “doutor” dentista sentavam-se num banco sem ter donde encostar o
lombo e a cabeça, então... eu fiz as vezes do encosto.
A criançada abria a boca mais para aprontar berreiro que para aquele aprendiz de
curandeiro lhes tirar os restos de dentes.
E bota berreiro nisso, moço! E bota também uma quentura dos infernos com aquele
sol da tarde luzindo em riba das telhas de metal. E foi a tarde todinha naquele batidão
danado.
Findo o dia fomos todos nos estatelar exaustos no chão à beira do rio.
De cara para o azul sem fim o “dentista” comentou que, depois de passar por aquilo,
nunca mais reclamaria das condições de trabalho que tinha lá em sua cidade, no “Sul”.
Na mesma época era costume eu seguir por quase uma légua de chão de lama da
cidade à área do aeroporto, em companhia de alguns roceiros que lá iam de terçado na mão
e paneiro na cabeça no rumo da plantação, que ficava além da pista de pouso.

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Íamos jogando conversa fora para o tempo ir passando e a distância encurtando.
Daí, vi que um deles era um ancião com pernas já bem arqueadas, mas que mantinha o
passo firme e sem escorregar no lamaçal.
Tentando acompanhar a toada dele fui logo entabulando uma prosa.
E no meio dela disse-me que era cearense e que chegou ali ainda moço como
“soldado da borracha” e nunca mais voltou, porque sua terra natal era muito longe e ele
nunca teria dinheiro para lá voltar. Tinha se conformado em morrer por ali mesmo, sem rever
a parentada que nem mais sabia se ainda existia.
Êita danação! E que direito a gente tinha, então, de reclamar da vida, seo moço?
Diante dessas coisas que se via acontecer com a caboclada nas entranhas daquela selva
não dava para ficar se lamentando de tolices que vão se sucedendo na vida da gente.
Pois, veja só! Um filho que está se tremendo todo de malária no colo du’a mãe que
só assiste, pois é impotente para salvar sua cria e nem tem a quem recorrer... ah, rapaz! Não
é fácil.
Agora, multiplica isso por um monte de mães que passam pela mesma coisa no
meião daquele mundo de mata e água, e tudo na calada, e tudo sempre, e tudo sem nenhum
alarido que chegue à gente do “Sul” e que se diz do mesmo país. Será mesmo do mesmo
país?
Ôpa, chegamos! Enfim... Copatana! A pequena vila surge às margens do manso
Jutaí.

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ENFIM, ATRACANDO NO COPATANA

Foi nela que o jovem Yoshinori Esashika (ou só mesmo Zé Japonês), lá pela década
de 40, aportou com família e tudo. Daí, nasceu a filha dele que se tornou definitivamente a
minha parte amazônida e eu a sua parte sertaneja.

Fonte: autor

Pronto! Finalmente chegando ao destino: Copatana.


Mais uma das tantas vilas penduradas numa barranca de rio e que acolhe a quem,
sem ter para donde ir, vai por ali se ajeitando e fica até não sair nunca mais.

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Fonte: autor

A mercearia ou taberna, como lá se diz, tem de tudo um pouco.


Montada num flutuante atende gente da vila e também o sitiante.

Já de cara demos com a pequena mercearia flutuante onde se compra o


indispensável e até algum supérfluo.
É um ponto de referência na vila. O caboclo que mora no sítio atraca nela a sua
“montaria” e desembarca para fazer as compras da semana.
Nos fundos tem um estrado que serve de lugar para limpar e preparar peixe.
Claro que os preços de produtos industrializados cá por estas bandas são bem mais
altos do que se encontra pelo “Sul”. São eles que tornam o custo de vida mais salgado pelos
beiradões dos rios.
As opções também não são muitas, as marcas do que tem nas prateleiras em geral
são as que oferecem preços que o caboclo pode pagar.
E tem mais. Com a demora na chegada dos produtos feitos em indústrias de São
Paulo, seus prazos de validade ficam no esbarro, já perto de vencerem. Daí que o giro da
mercadoria tem de ser rápido, senão o prejuízo é certo. Por aquelas bandas nada é fácil, nem
tocar comércio.
Só mesmo Deus a zelar por aquelas distantes e enormes paragens. É Ele e o
caboclo, e as tantas carestias colocam um bem pertinho do outro.
Não tem água encanada, nem esgoto, menos ainda eletricidade e, então, também
não tem internet, televisão e demais comodidades da vida moderna. Mas, tem muito trabalho
brabo, de sol a sol, no rio e na plantação, está lá o caboclo jogando rede ou rasteirando mato
com terçado.

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Escola? Ali tem, mas só para aprender o básico e pegar no tranco nos estudos. E
quando pega e se anima, acaba o que se tem para estudar e daí... é o cabo do remo ou o
cabo do terçado, à escolha.
Uns poucos conseguem escapar de tal sina e seguir rumo à cidade em busca de
mais estudo ou mesmo melhor ocupação.
Médico só em Jutaí e remédio também. Vez por outra passa por ali algum
atendimento ambulatorial de saúde, mas não é de se esperar muito.
As pequenas encrencas do dia-a-dia resolvem-se com chás disso e daquilo,
unguentos de folha ou de casca e sempre com muita reza.
Todas essas dificuldades geram algo de muito bom. Pois é, parece até impossível
isso acontecer... mas acontece. É que todo esse arrocho acaba unindo todo mundo. O lugar é
pequeno, daí que todos se conhecem e no aperreio se ajuntam e se ajudam.

Fonte: autor

Já na cidade grande parece que o excesso de comodidades e facilidades dispensa a


mútua ajuda, até porque tudo é cobrado e muito bem cobrado. As pessoas estão juntas, mas
se desconhecem, é a solidão na multidão. Bem diferente do interior amazônico.
No embate entre o antigo e o moderno, por vezes este leva a pior, porque ele não
consegue se estabelecer ali. Aquele mundo d’água e aquela floresta que vara horizonte
impõem resistência, não se deixa vencer facilmente.

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Fonte: autor

O modesto cemitério da vila. Nele jaz meu sogro, o japonês do Copatana.


Da ilha de Hokkaido, no norte do Japão, para o norte do Brasil, na Amazônia. Quase 9 décadas e uns
20 mil quilômetros separando os seus dois mundos, o de nascença e o de “morrença”.

De menino vindo do Japão, para aventureiro e, a duras custas, guerreiro. Assim se


fez por muitos caminhos e descaminhos, em meio ao choque de duas culturas tão díspares,
resultando num nipônico-caboclo, cujo nome ficou sendo só Zé. Todo mundo ali conhecia o
Zé Japonês que pescava de arrastão e que curava quem precisava.

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Fonte: autor

Copatana tem a maioria de suas ruas com capim batido. Se o único veículo em terra
firme é o “pé-dois”, não carece pavimentar nada. E veículo para quê? Tudo acaba ali mesmo.
No “centro” tem calçada cimentada, que é o meio da rua mesmo. Nenhum espaço para
carros... e para quê? Pontes de madeira vão cortando por cima donde a água chega na
alagação.
O rio sobe no primeiro semestre e vaza no segundo, alternando as duas estações do
ano: a que chove todo dia e a que chove o dia todo. Dá para ir “de a pé” a tudo quanto é
canto do lugar e sem muito esforço, até porque o terreno é plano.

Fonte: autor

Aqui é o centro da vila, não muito diferente do restante.

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Fonte: autor

Fonte: autor

Tem de botar tudo na palafita. Ninguém sabe até onde vai a cheia seguinte. No
quintal até mesmo criação, que é parca, tem de estar fora do alcance da água.

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Homem, mulher, criança... a labuta incessante é prá todos, sem distinção. A lei é
mesmo a da sobrevivência, de saber na boca da noite que no raiar do sol tem mais... muito
mais trabalho, e que quando o calor alivia é porque a chuva forte tá despencando.

Fonte: autor

Se agora Copatana é assim imagine então há uns 60 anos, quando o Zé Japonês


chegou ali ainda jovem, tentando entender e assimilar as tantas diferenças entre a cultura de
sua terra, do outro lado do mundo, e a cultura amazônida dos antigamentes.
Bastar ver a baita diferença de um clima super frio até com neve para um super
quente e úmido, e de idiomas com bases linguísticas sem nenhuma conexão. A alimentação
talvez nem tanto, porque na Amazônia e no Japão é tudo na base do peixe. Embora lá seja
peixe de mar e com temperos diferentes.
Sua sobrevivência em um mundo tão diferente e então hostil dependeu de aprender
a se adaptar, de superar, de muito aprender e até de desaprender.
Será quantas vezes ele olhou para o distante horizonte pensando em quando
poderia cruzar aquela linha, seguir adiante até alcançar novamente sua terra do sol nascente
e rever os seus e reverenciar os antepassados, bem ao jeito da cultura de seus pais?
Será quando foi que ele desistiu de pensar nisto e foi resolvendo que nem mais valia
a pena queimar as pestanas com quimeras?
Afinal, já tinha muito do jeito de ser caboclo que incorporara em sua vida e que não
mais teria como deixar de lado e, então, simplesmente voltar a ser o menino nipônico que
outrora fora. E daí... foi ficando de vez, sem mais olhar para trás.

99
Fonte: autor

Yoshinori Esashika, o Zé Japonês, ainda entre o nortista ainu do Japão e o nortista caboclo do Brasil.

Seguindo rumo para a moradia de nosso anfitrião, o Manoel, chega a hora da


verdade. O rango está à mesa e o prato principal é... peixe.
O caboclo é gente simples, não tem coisa para ostentar, mas é cioso quanto à
família, sua riqueza maior. Hora de sentar à mesa é importante.
Família reunida, aí se conversa de tudo, do trabalho no roçado à pescaria, aos
afazeres domésticos e até fatos cômicos.
Também é hora em que o patriarca chama a atenção, dá conselhos, elogia e apruma
o moral de quem está para baixo. Herdou essa mania dos pais e dos avós.
Em geral o roçado da família é longe e por vezes é preciso atravessar algum igarapé
e ainda seguir por um trilheiro até o lugar do plantio.
Ali todos se juntam destocando, carpindo, plantando, cuidando e colhendo, pois é o
sustento que passa de uma para outra geração.

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Fonte: autor

E no interior daquela mata tem de saber se orientar. É tão vital quanto saber nadar
longe, e não tem isso de GPS ou de instrutor de natação.
Cedo na vida o curumim já se mete mato adentro no caminho do roçado, do
açaizeiro e da castanheira.
Também é cedo que ele cai na água e aprende que braço e perna não servem só
para andar, mas, do mesmo jeito, de atravessar um igarapé.
Ah! E tem mais uma utilidade: subir em qualquer tipo de árvore, pois curumim escala
um açaizeiro como se tivesse andando no chão.
E o caboclo da vila sabe de tudo sobre cada canto daquelas redondezas, de cada
riacho e lago, cada praia e barranca, cada planta, cada animal e até sobre cada estranho que
chegue por aquelas bandas. Dá notícia de tudo e ligeiro.
Com o tempo vai passando todo esse saber à sua prole, tornando-a capaz de logo
tomar jeito e virar adulto. É a única e imprescindível herança que pode e deve deixar a ela.
Vez por outra um filho escapa e segue no rumo da cidade. Se tiver lá onde se
escorar e começar vida diferente, de trabalho mais leve e de estudo mais pesado, pode até
ter um bom futuro. Senão... cai no submundo do asfalto.
Como a gente já disse, o caboclo tem muito do índio da região e também do
nordestino, mais especificamente do cearense.
Em duas épocas – de 1879 a 1912 e de 1942 a 1945 – levas de aratacas
descambaram do Nordeste rumo à Amazônia para se tornar seringueiro.
Estima-se que na primeira leva vieram uns 30 mil e na segunda uns 60 mil, mas a
quantidade certa não interessa. O importante é que foi uma quantidade tanta para fazer a
diferença no jeito de ser do povo que tudo junto beirava as 500 mil almas naquele mundão.
A assimilação de costumes nordestinos pela gente da Amazônia foi intensa e
duradoura. Até se tem a impressão que toda família nortista tem um ancestral do Nordeste.
A cultura da floresta é uma ressonância da cultura do agreste. O Boi Bumbá de
Parintins é maranhense, o “arriégua” do paraense é cearense, o “aperreado” do caboclo é da
caatinga, e por aí vai.
Essa mistura foi muito boa, pois juntou duas raças lutadoras: o arataca acostumado
às turras do sertão brabo e o amazônida que porfia o tempo todo prá vencer o rio e a mata.
Daí saiu essa gente que é braba e amiga ao mesmo tempo. Gente que encara as
dificuldades como companheiras de moradia. No Copatana não é diferente. Ali também o
caboclo é um vencedor.

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Fonte: autor

Imagine um monte de pequenos vilarejos igual a Copatana. Assim, se espalha a


população do Amazonas que não mora na capital.
As cidades do interior do estado são poucas e pequenas. Nenhuma chega a 100 mil
viventes.
Juntando a Alemanha, a França e a Espanha dá para colocar todos esses países
dentro do Amazonas e ainda sobra espaço. Porém, ele tem apenas 2% da população desse
trio e quase a metade vive na capital.
Então, sobram uns dois milhões e poucos caboclos espalhados pelas pequenas
cidades e pelos muitos vilarejos e sítios do interior do estado.
Estes são os anônimos, os esquecidos, os que sobrevivem e que, de fato, formam
aquela estrelinha branca mais à esquerda no azul da bandeira do Brasil, a que dão o nome
de Procyon-Alfa da constelação “Cão Menor” à sinistra de Marte. E, pelo que parece, estão
assim bem representados... longe, muito longe.
Êita! Minha nossa! Se continuar deixando os pensamentos vaguear por riba dessas
mansas águas do Jutaí vão acabar pulando a cerca do horizonte e, daí sabe-se lá donde isso
vai terminar. Melhor mesmo ir no rumo do porto que está chegando a hora de empinar a proa
para as bandas de Jutaí.

102
NA PROA DA VOLTA

Despedir para seguir viagem no interior é uma solenidade comprida. Aperto de mão,
abraço, tapinha nas costas, promessa de volta e desejo de boa viagem é o que não falta.
Mas, restam ainda as lembranças de última hora em que sempre tem mangação de
alguém que destrambelhou num momento de aperreio no meio da visita. Tudo faz parte do
adeus.
Agora, é pegar as tranqueiras que por ali foi-se arrebanhando, descer até o flutuante
e fazer o embarque na “voadeira” que já está na espera.

Fonte: autor

Ah!... Tinha tempos que não via essa expressão aí... “puxar rabicho”. Estava pintada
na parede do flutuante.
É mais uma adaptação linguística. “Rabicho” no mundão das águas e da mata nada
tem a ver com rabo minúsculo. Tem a ver com eletricidade.
Pois é! Quando um barco atraca em um flutuante, desliga o motor e, então, o
gerador de eletricidade para de funcionar. A partir daí as luzes e tudo que depende de energia
elétrica passa a usar a das baterias. No intuito de evitar que elas descarreguem, a tripulação
liga um fio de extensão a uma tomada do flutuante, ou seja, faz um “gato”.

103
Só que, então, é o gerador de eletricidade do flutuante que passa a ficar
sobrecarregado. Desta feita, o “rabicho” é o fio do “gato”. E muita gente não quer o “rabicho”
puxando sua eletricidade e, por isto, põe na parede o aviso.
Aliás, essa questão da energia elétrica pelo interior da Amazônia é um problema
sério. As cidades interioranas se servem de grandes dínamos movidos a motor que
consomem óleo diesel. Conhecidos somente por “grupos geradores” funcionam até 24 horas,
conforme a cidade e a disponibilidade do diesel, que vem de Manaus em balsas de ferro. Por
isto, possivelmente seja a energia elétrica mais cara do país.
Com exceção do alto rio Negro e do rio Urubuí, ao norte de Manaus, os cursos
d’água do estado não têm desnível suficiente para se construir barragens e instalar
hidroelétricas. Para se ter uma ideia, de Jutaí até a foz do Amazonas, no litoral paraense, a
mais de 2.500 km, o desnível é só de 80 m.
Além das tentativas de uso de painéis solares e de fonte eólica, possivelmente no
passado tenham tentado também a roda d’água para girar um dínamo aproveitando a
correnteza dos rios. Mas, se em nenhuma cidade ela é usada é porque certamente a coisa
não deu certo.
Assim, os “grupos geradores” continuam bebendo “combustol” a toda para
proporcionar eletricidade ao pessoal de um bocado de cidades da região.
Todo esse diesel é levado até os destinos em grandes balsas metálicas que
diuturnamente singram os rios da região percorrendo centenas e centenas de quilômetros
para fazer a entrega nas termoelétricas instaladas nessas cidades do interior.
Na época da vazante nos rios mais rasos, iguais ao Juruá, a navegação dessas
balsas fica impossível. Mesmo tendo o fundo chato capaz de passar por cima de obstáculos
bem próximos à tona d’água elas não conseguem ir avante.

Fonte: autor

Grupos geradores garantem eletricidade à maioria das cidades do interior do Amazonas.

104
É quando alguns lugares ficam sem combustível para abastecer seus motores e,
então, a eletricidade começa a ser racionada e até completamente cortada. A situação só
volta ao normal quando o rio começa a subir de novo, dando então condições das balsas
continuarem suas viagens. Até lá... lamparinas e lampiões a pleno funcionamento.

Fonte: autor

Inflamáveis requer cuidados, certo? Mas, ali... como?

Sim, perigo! Mas, por aquelas bandas, o que não é perigoso? Se o caboclo vai com
seu “rabeta” para longe, tem de levar combustível para o regresso, pois para os cafundós
onde ele se mete não tem posto de abastecimento.
Por isso, as normas de segurança tão ciosas para o lado do “Sul” não têm como
serem aplicadas no interior da Amazônia.
Mesmo acontecendo acidentes – e eles acontecem – não há como o caboclo se
privar da gasolina para o seu “rabeta” vencer aquelas lonjuras.
Viver ali, por si só, já é um risco considerável.
Além dos perigos visíveis, como as variedades de mosquitos que causam doenças,
as cobras que estão em qualquer lugar, o risco de afogamentos, de ataques de jacarés,
ariranhas, piranhas e candirus, têm também os invisíveis – bactérias, vírus, fungos, etc.
Assim, o caboclo convive com o perigo no seu dia a dia e é um conformado. Para ele
vale muito o ditado “o que não tem solução, solucionado está”.

105
Fonte: autor

De volta a Jutaí... agora é pelo meio do rio para aproveitar a correnteza.


Aqui começa o retorno ao chão do cerrado. Vai demorar “só” uns 20 minutos de “voadeira”, umas 30
horas de “recreio”, mais umas 6 de avião... e 5 de aeroporto.

Uma vez desembarcados em Jutaí fomos ao hotel da cidade e lá, depois de um bom
banho e de uma rápida janta, nos arriamos na cama de tão cansados que estávamos.
E parece que a canseira escondeu o tamanho da noite, pois a sensação foi que o
amanhecer tinha começado antes da hora.
Contudo, é pular da cama e apressar, porque o “recreio” não espera. Ainda bem que
em cidade pequena tudo é perto, do hotel ao porto é ligeirinho.
Ajeitado o bagajal no camarote, fomos para a popa ver Jutaí sumir por trás de uma
das curvas do Solimões. E, então, a viagem voltou à velha e conhecida toada, só que agora
no rumo de baixo.
Ficamos ali vendo as mesmas paisagens, mas de trás para frente e um tiquinho
mais depressa, já que na baixada era a velocidade do barco mais a da corrente do rio.
Ao longe um temporal fez as honras da casa quando o “recreio” já se achegava de
Fonte Boa.

106
Fonte: autor

Chuva pesada e banzeiro forte, até convencer o comandante a encostar o barco em


um beiradão e aguardar o mal humorado cruzar o rio e seguir seu caminho despencando
muita água, trovejando e plantando raios para todo lado.
Os temporais do “Sul” parecem filhotes perto daqueles da Amazônia. A quantidade
de chuva que vertem é impressionante e a quantidade de relâmpagos que estralam pelo céu
é aterrorizante.
Tem ainda a ventania que encrespa o rio formando banzeiro perigoso, pois faz o
barco gingar de um lado para o outro sem parar. O que estiver solto no convés começa a
acompanhar aquele bamboleio, passando ora a bombordo e ora a estibordo.
Mas, na mesma pressa que o monstro vem também vai embora. Quando se dá fé a
calmaria voltou e o barco aproa novamente o Solimões.
Por ali o que parece perto pode estar muito longe. A lentidão do barco e as lonjuras
sem fim enganam muito a noção de distância que a gente tem.
Por exemplo, a travessia do lago de Tefé pode levar quase uma hora num barco com
motor de centro e, no entanto, a impressão que se tem é que a vila de Nogueira, do outro
lado do lago, está logo ali.
Ilusões de ótica à parte, continuamos a cortar água até aparecer depois de uma
ponta de terra mais um vilarejo no alto de uma barranca, que é acessado por uma escadaria
pitoresca.
Estreita e longa mostra bem a altura do barranco feito pelas poderosas águas do
Solimões. Ficará ali por umas cheias até que o rio volte a atacar as margens com força e
persistência.
Se daqui a uns tempos a gente resolver fazer outra viagem igual a esta certamente
não encontraremos mais essa escada, o rio pode levar quando quiser.

107
Fonte: autor

Desce com paneiro de farinha e sobe com lata d’água. Imagine só!

Enquanto no “Sul” as pessoas se vão e os lugares ficam, no meião do “Norte” as


pessoas e os lugares se vão de vez.
Mas, por enquanto a escada está lá servindo a quem da vila precise chegar ao rio.
Subir e descer por ali uma meia dúzia de vezes por dia com certeza dispensa qualquer
malhação em academia.
A passagem por Fonte Boa foi rápida. Só embarcar alguma carga e passageiros,
pegar umas encomendas, uns recados e sem demora estamos baixando o rio de novo.
Mas, tem tempo, nem adianta afobar. Tem ainda a boca do Juruá e, depois,
Tamaniquá, o través do Uarini e daí lá se vão mais uns 70 km até o paranã para o lago de
Tefé. É muita água pela frente.
Chega a hora da merenda e o café com leite e bolacha com manteiga vai à mesa.
Serve mais para distrair do que matar a fome. No meio da refeição o proserio vai se
emendando de uma para outra sentada à mesa. São os momentos em que se fica sabendo
dos acontecidos nos escondidos da mata:
-“Tu não ficou sabendo do Zé? Mas, então! Não é que ele conseguiu vender o sítio?
Foi-se embora para Manaus.”
E como quem levou um susto:
-“É mesmo?!... Mas, tu sabes se ele foi de vez?”

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E ajudando a resposta com o beiço e esbugalhando os olhos:
-“Foi de mala e cuia!”
E, assim, vem a tarde que segue se espreguiçando no meio daquele mormaço
causticante. E o “recreio” vai baixando o rio na sua toada de sempre, jogando pela popa as
horas que já se foram e não servem mais.
Até que a boca da noite se aprochega e o sono vai tomando conta de mansinho. O
dia fecha com o deslumbrante por do sol amazônida... sem igual! Nele o rio faz parelha com o
céu e, assim, esbarrando um no outro, dão boa noite à caboclada dos beiradões.

Fonte: Tiago Esashika Crispim

Na ponte de comando a rotina de fachear a tona do rio para se livrar das toras
flutuantes já recomeçou e dessa maneira será até o raiar do sol.
E bem de manhã ele apareceu com tanta disposição de esquentar para valer, que a
gente teve de deixar a porta do camarote aberta o tempo todo.
O barco continua deslizando mansamente rumo a Tefé, deixando-nos reprisar as
paisagens da subida como uma segunda chance para apreciar o que talvez nunca mais
vejamos.
Diferente dos passageiros com quem compartilhamos a ida, os da volta parecem
mais animados, possivelmente porque estão indo na direção das cidades mais movimentadas
e cheias de novidades.
Alguns continuarão em outro “recreio” até Manaus, a “cidade das luzes” daquelas
plagas, onde há de tudo, do bom e do ruim.
Depois de um dia e meio baixando o rio, o barco entrou no paranã que desemboca
no grande lago azul de Tefé.

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TEFÉ E TANTAS HISTÓRIAS

Fonte: autor

O “Sanacá”, um dos barcos da COMARA atracado nos antigamentes à beira de Tefé.

Não demora e se vê o Abial, um bairro separado da cidade pelo igarapé do Xidariní


e, então, só acessado por barco.
Agora, é só dobrar a ponta de terra e o resto de Tefé aparece bem à proa do barco.
Uma visão reconfortante de estar voltando para onde tínhamos parentes e amigos nos
esperando e... com peixe e farinha, com certeza.
Uma visão que está calcada cá no fundo das lembranças, desde a primeira vez que naveguei
no bojo de um “recreio” nos distantes anos 70.
Uma visão que traz de volta a juventude com aquela vontade danada de conhecer,
de descobrir, de aventurar e de se espantar a cada novidade.
Foi aqui, nesta cidade, bem no meião do maior estado do país que, naqueles
longínquos anos 70, aprendi a gostar dessa região, do jeito dela ser, do povo simples e
amigo.
Um outro mundo, bem diferente do que antes conhecia.

110
As suas lonjuras, os seus verdes, o brilho de suas imensas águas, o branco de suas
nuvens recortando o azul profundo do céu... a canoa que passa lentamente com um caboclo
remando sem pressa, é a expressão perfeita da essência daqueles rincões tão distantes da
agitação frenética das ruas do centro de São Paulo ou dos suntuosos palácios de concreto de
Brasília.
E distantes não só nas centenas de léguas que separam esses dois mundos, mas
principalmente no jeito de ser, de entender a vida e até na velocidade que ela passa.

Fonte: Tiago Esashika Crispim

Êxtase ao cair da tarde. Obra de Deus.

No Tefé daqueles bons tempos nem tinha como apressar nada, qualquer tempo e
lugar servia para bater aquele papo descompromissado, contando causos verdadeiros e
outros nem tão verdadeiros, mas que, de qualquer jeito, alegrava a quem ali estivesse para
ouvir.
Dos bons e velhos tempos da construção do aeroporto para cá a cidade mudou
bastante. Um bocado de gente nova, mas a agitação não conseguiu espantar toda gente
daquela época.
Os resistentes continuam a se encontrar e a lembrar da simplicidade que era viver
às margens daquele lago de águas mansas e azuis, sob um céu deslumbrante na, então,
pequena Tefé.
Neste cafundó o tempo passava na toada da canoa, bem lento, como se as
paisagens do dia fossem estáticas.

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No meio da cidade grande lá do “Sul”, não se vê o tempo passar de tão ligeiro que
ele passa, nem se vê a vida passar, pois se nasce, se cresce, se é adulto, se envelhece e se
morre sem se dar conta da vida.
Aqui um peixe assado num flutuante cercado de muita água ainda junta as pessoas
numa troca de despretensiosos sorrisos, sem tempo prá acabar.
Gente! Imagina uma caldeirada de jaraqui, é o mesmo que a sopa de mocotó... cura
qualquer ressaca. Precisa ver.
Pois é, nem se imagina o tanto de variedades de pratos possíveis de se fazer com
os peixes da Amazônia. É trem que não acaba mais, e vai da banda de tambaqui assada em
riba da folha, até essa maravilha que faz a alegria dos pinguços, a caldeirada de jaraqui. Êita,
suadeira, sô!
Para acompanhar bem o peixe tem a farinha de macaxeira e pimenta murupi. Aliás,
dizem que a melhor dessas farinhas é a do Uariní, cidadezinha que fica há uns 70 km de Tefé
rio acima. Tem boa fama até fora daquelas redondezas.
E de peixe em peixe, farinha daqui e farinha dali, o tempo vai passando e nem se
tem pressa, não tem hora para dali se arredar o pé, até porque o melhor do dia é aquilo ali
mesmo, no flutuante, longe de toda aporrinhação. E os causos vão se repetindo.

Fonte: Tiago Esashika Crispim

Pirarucu – do rio para o barco, do barco para o porto, do porto para o mercado e, daí, para
panela. É o bacalhau de água doce da Amazônia, só que muito mais saboroso que o de água salgada.

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Fonte: Tiago Esashika Crispim

-“Ô seo Raimundo, conta aí de novo para a gente como é foi que o senhor matou
aquele bando de porco do mato que o povo tinha espantado... vai, conta aí!”
E, então, ele contou mais uma das tantas vezes:
-“Mas, então! O povo tudo tonto porque a porcaiada assustou e voltou na carreira
para dentro do mato e ninguém conseguiu matar nenhum.
Daí, eu peguei na espingarda e fui no rumo do igarapé e o povo ficou gritando que
os porcos tinham ido era na direção contrária.
Num me avexei e lá fui para a beira d´água.
Num demora muito cheguei lá na casa arrastando o porco maior, que foi o primeiro a
levar tiro, e falei para o povo que tinha de ir buscar o resto deles lá na beira do igarapé.
E os abestados vieram me perguntar como eu tinha conseguido aquilo se fui na
direção errada.
Mas, rapaz! Os porcos iam era beber água antes da boca da noite chegar.
Daí, o povo apareceu e assustou eles.
Mas, era só todo mundo sumir e iriam voltar para o igarapé.
Então, fiquei escondido na espera beirando a água.
Foi só eles chegarem e deitei tiro nos bichos. Pronto!”
E era ouvindo e era palpitando e era bebericando e era beliscando peixe assado e
era o tempo passando sem ninguém se aperrear.
Mas, quando que lá no “Sul” coisa dessas iria acontecer bem no meio da semana e
no meio do dia, moço?
Lá nesse dito “Sul” os sorrisos da boca para fora acontecem vestidos de finos ternos
e gravatas em meio à sofisticação, ao supérfluo, a escondidas intenções e à pressa em tudo
se fazer. A vida voa num tapa e quando chega no fim até assusta, mas daí... já não tem mais
jeito.

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É ruim, mas acontece, de pousar cá nestas plagas manias do “Sul” vindas na
cacunda de aventureiros, cuja pressa de enricar não encontrou vez na cidade grande e,
então, acham que as muitas carências do povo desta terra podem servir de caminho para
fortuna rápida e fácil. Ultimamente tem acontecido muito... infelizmente.
Mas, enquanto os aperreios da vida metropolitana não joga poita de vez nos
beiradões amazônicos, a gente degusta um jeito de viver que, pelo menos neles, ainda
existe.
Como já disse, bastava puxar uma boa prosa e ia-se dia adentro contando muitos
causos e dando muitas gargalhadas das besteiras acontecidas e das fantasiais não
acontecidas.
Nos velhos bons tempos tinha até o lugar de jogar conversa fora e entornar uma
caipirinha amuada.
Era o “cantinho” donde a rodada acontecia à tardezinha. A animação ali campeava
solta e os causos iam se sucedendo à medida que os frequentes se aprochegavam:
-“ ... moço! Mas, eu tô te falando! Botei o motor ‘no toco’ e a voadeira estava tão
rápida que passou por cima da tora e nem triscou a palheta do motor... verdade!!!”
E todo mundo fazia de conta que acreditava, para não deixar na mão o contador de
verdade inventada.
E, assim, os momentos iam se emendando até a prosa esmorecer e cada um
procurando tomar rumo.
Então, minha gente, vou até ali na praia dar uma espiada no espetacular por do sol
que vem com a boca da noite. Dá licença?...

Fonte: autor

114
Na Amazônia o ocaso acalma a pressa e faz a gente pensar na vida. Não carece
muita coisa, só da beira de um rio e de um pasmacento pôr do sol.
E, depois, é deixar o pensamento vadiar por toda aquela imensidão que foge para
além do horizonte.
As nuvens esparramadas no céu vão mudando de forma, de cor e de intensidade,
como se o dia, inconformado, teimasse em se arredar rumo ao poente.
É u’a mudança sem pressa, do azul ao laranja, até ao encarnado e, então, o sol
devagarinho vai se escondendo atrás do horizonte e a luz se apagando.
A gente nem dá conta que as horas estão passando.
As sombras prenunciam a noite que, se achegando, vai abrir um grande tupé de
estrelas que vão pratear aquelas águas mansas.
É como se fosse uma amostra grátis de como deve ser o paraíso.
Nem se tem vontade de arredar o pé para não perder nem um tiquinho daquela
sinfonia de cores.
De verdade, até dá vontade de não sair dali de jeito nenhum, de ficar só na mutuca
e, quando der fé, pular prá dentro daquele quadro de fim de dia e, por lá, se esbaldar prá
sempre.

Fonte: autor

Mas, se não dá para fazer parte da paisagem, pelo menos aproveitar esse trem de
Deus ao máximo possível, até que as luzes da cidade pontilhem junto à margem, sinalizando
que os eventos de mais uma Festa da Castanha – produto importante à economia da região
– estão para começar.
A agitação intensa já tomava conta das estreitas ruas, reunindo gente que vinha de
tudo quanto é beira das proximidades de Tefé.
Junto com a festa de Santa Terezinha, a padroeira, a da Castanha forma o conjunto
que mais movimenta a cidade, inclusive trazendo de volta tefeenses que, há muito, já não
mais moram por ali.
Então, vamos para a festança!

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Fonte: autor

E a animação toma conta do lugar. Tem pinga, cerveja, peixe frito e no molho. Tem
caldeirada e escabeche, açaí com farinha e beiju na manteiga. Mas, também tem doce de
cupuaçu e bombom de castanha.
A festa pula da noite para a madrugada e só esmorece quando o cansaço arrasta
até os mais afoitos no rumo da rede.
Mas, enquanto ela não se vai, a gente continua se esbaldando de prato em prato e
achando tudo aquilo a melhor coisa do mundo. Êita, trem bão, sô!
Tem gente que acha meio destrambelhado um “raspador de pequi” do cerrado
goiano findar se aprazeirando dos confins amazonenses.
Pois é, se me dão prazo, deixa eu contar um pouco de como, sendo um “sulista”,
acabei me ajeitando à Amazônia e bem do jeito dela.
Lá pelo início de 1973 estava de serviço na estação-rádio do aeroporto Val-de-Cães,
em Belém e ainda tentando me ambientar naquela cidade que é a porta de entrada da
Amazônia. Por volta do meio-dia fui pegar o rango no QG. Mal tinha sentado à mesa quando
um colega antigão comentou sobre uma publicação no boletim citando meu nome.
Curioso, larguei de mão o “picadinho” e me mandei para a sala do oficial de dia,
donde tinha uma cópia do tal boletim.
De fato, a “sentença” estava lá: “3S TE Leone destacado para Tefé por prazo
superior a 2 anos”... Hein?!... Onde?... Dois anos?...
Passado o choque inicial desisti do rango e rumei de volta para o aeroporto, onde
tinha uma sala com mapa da região ocupando quase toda uma parede e botei-me a procurar
e procurar... achei! Lá no meião do Amazonas um minúsculo círculo com o nome Tefé na sua
beirada.
Desabei na primeira cadeira à mão e fiquei tentando juntar aquilo que estava escrito
no boletim, com o que via no mapa e eu no meio disso.

116
Meus neurônios de 21 anos de idade recusavam-se a processar esses dados de
“prazo superior a dois anos num fim de mundo”.
Perguntando para um e para outro colega só descobri que a COMARA estava a
construir um aeroporto por lá e que tinha um campus avançado permanente do Projeto
Rondon, de uma universidade de Juiz de Fora. Só! Mais nada havia de notícia sobre aquele
lugar.
Quando fiquei sabendo que o avião para o Alto Solimões decolaria dentro de uma
semana, não deu noutra, foi uma semana de puro porre. Nem queria pensar no que ia
acontecer, melhor mesmo estar “anestesiado”.
E na tarde de véspera do embarque, quando vi o avião em que cruzaria os céus
amazônicos – um Catalina feito na década de 40 e que ficava pingando óleo pela carenagem
de um dos motores – daí é que debrucei mesmo no balcão do bar do aeroporto e dele só saí
para cumprir a “sentença”.
Pronto! Chegou o dia.
Entrei no avião como quem embarca para o desterro.
Motores funcionando e a velha garça procura logo a cabeceira da pista.
Experimenta se está tudo nos conformes e começa a carreira da decolagem.
Vai se soltando sem pressa da pista e aos solavancos arriba pelo ar mormacento da
baia do Guajará.
E voa, e voa, e voa... até começar a descer para a primeira de muitas escalas, Porto
de Moz, a meio caminho para Santarém.
Parada rápida foi somente para deixar um colega que também ia “cumprir pena” no
destacamento dali.
Então, o “bicho” decolou para mais umas tantas escalas em pequenos lugarejos do
interior: Monte Alegre, Óbidos, Oriximiná... Ah, e Santarém, pois tinha de reabastecer. Esta já
era uma cidade um pouco maior, com mais recursos, possivelmente a mais importante do
interior paraense.
E o Catalina continuou voando o resto do dia. Lá no final da tarde Manaus surgiu à
proa e o pouso foi direto no antigo aeroporto Ajuricaba, ou, como era mais conhecido, Ponta
Pelada.
O dia inteiro dentro daquele avião, voando baixo e sacolejando ao sabor das
correntes de ar ascendente, e ainda faltava um tantão para chegar no destino.
Ô, troço longe aquele, sô!
Mas, ainda deu tempo de fazer um rápido giro no centro da cidade, que tinha um
comércio intenso de variedades estrangeiras. Era a tal de “Zona Franca”.
À noite já que a apreensão sobre o desconhecido não deixava o sono tomar conta
da carcaça, fui novamente escorar balcão de bar de aeroporto.
Dia seguinte, o mormaço tomando conta desde cedo, arribamos rumo oeste
acompanhando mais ou menos o curso do Solimões.
E, depois de solavancarmos por quase duas horas, sobrevoamos Coari, onde ainda
não tinha pista de pouso no chão, mas tinha hidropista.
Os flutuadores das pontas das asas foram descidos e a quilha do velho Catalina
começou a riscar a água, como se fosse duma lancha potente.
Para trás espichou uma cortina d’água espumada que só terminou quando o casco
foi assentando cada vez mais, à medida que caía a velocidade.
Ao final da carreira o mecânico, lá na escotilha de proa, “pescou” a alça da boia e
atracou o avião.
Motores cortados e vimos um “rabeta” chegando pela popa com tanta gente,
bagagens e outras coisas, que mal se via a borda da canoa.
Descarregado e carregado tudo que tinha de ser, fechou-se a escotilha, os motores
tossiram e urraram alto e o “catita” desembestou para o estirão do rio, empinando o nariz e
ganhando velocidade.
A cortina d’água voltou a cobrir a cauda do avião e, depois, foi afinando até sumir.
Pronto! De novo em voo, agora, rumo a Tefé.

117
Mais quase uma hora de voo e, finalmente, já com sol a pino, cheguei à nova
moradia.
Era um canteiro de obras com várias máquinas de terraplanagem, rolos
compressores, caminhões basculantes zanzando para tudo quanto é lado. Tinha lama de
montão e, por isto, o pessoal andava de botas de borracha... que eu não tinha.
Em Belém o trabalho era só com a telegrafia, mas ali tinha de falar usando
terminologia de tráfego aéreo no “boca-de-ferro” (microfone) com os tripulantes dos aviões,
coisa que eu nunca tinha feito na vida.
E o colega a quem estava substituindo e que poderia me dar umas dicas, já se
assentara de mala e cuia no bojo do avião, doidinho para se mandar.
Então, o “pata choca” (como era conhecido o Catalina, pela aparência traseira)
decolou e, ato contínuo, ouvi o piloto chamando no alto-falante:
-“Rádio Tefé, é o CAN meia cinco zero nove decolando aos vinte e cinco, câmbio!”
E eu, de cá:
- “Ciente!”
Até aí, deu para levar.
A encrenca foi quando tive de transmitir para o centro de controle da área, localizado
em Manaus, o plano de voo com diversos itens codificados. Comecei e não demorou para o
sujeito de lá esculhambar:
-“Pode parar! Assim não dá, novinho. Chame outro e vai treinar essa voz!”
Rapaz! Não sei se foi o sangue ou a cachaça que subiu até as ventas, mas grudei
no “boca-de-ferro” e botei para fora o que estava engasgado desde quando soube que tinha
sido mandado para o fim do mundo:

Fonte: autor

Daqui se comunicava com as tripulações dos aviões e com as rádios de outros aeroportos.

-“É o seguinte: só tem eu e não tô aqui por gosto. Então, se quiser receber a
mensagem é desse jeito. Se não quiser, vá te fff... ferrar.”
Daí, larguei tudo, dei uma botinada na chave geral desligando tudo e tirando a
estação do ar.
Lá fora do prédio sentei num caixote e fiquei imaginando o que tinha feito contra a
segurança nacional (moda da época) para terem me socado naquele cafundó de meu Deus.
Se já na chegada tinha sido assim, então, como seria pelos próximos anos de desterro?

118
De fato, os primeiros tempos foram brabos. Tinha muito a aprender para me encaixar
naquele mundo diferente e, também, num trabalho que só ganhando bastante experiência
seria possível levá-lo a bom termo.
Quer ver como tinha muito a penar? Disseram-me:
-“Novinho, vai até o porto que o Speriamo está chegando de Belém com a peça do
laboratório de solos e a gente está com pressa dela.”
Tá! Lá fui eu para o porto esperar o dito colega que vinha de viagem com a tal peça.
Lá pelas tantas o “recreio” chega, atraca e toca a sair passageiro e carga. E fiquei
tentando achar alguém de farda azul que apeasse do barco e estivesse com um pacote a
tiracolo e... nada. Desceram todos os passageiros e nenhum “fabiano”.
Procurei o comandante do “motor” e pedi que verificasse na sua lista de passageiros
se não havia embarcado um sargento da FAB com o nome de Speriamo. Mas... não. Não
havia ninguém da FAB a bordo.
Encucado fiquei ali imaginando se não era num outro “recreio” e, nisso de ali ficar
matutando, surge a proa de um “motor” ostentando descaradamente o gládio alado da FAB.
O quê?!... Barco civil usando símbolo militar? Não pode!
Mais de perto vi o nome do barco pintado no casco: Speriamo!
Rapaz! Speriamo, então, era nome de um barco e não de uma pessoa... e aquele
símbolo da FAB? Prá lá de muito estranho.
Daí, o tal atracou e dele desce um cabra fardado se apresentando:
-“Tudo bom? Eu sou o sargento Carvalho, comandante do barco. Tu que veio buscar
a peça?”
Vixe, agora danou-se! Agora é que tudo ficou destrambelhado mesmo. Sargento da
FAB comandando barco?!... Mas, afinal o que está acontecendo?
Diante da minha cara de besta é que o colega foi me explicar que a COMARA tinha
uma dúzia daqueles barcos que supriam os canteiros de obras espalhados pela Amazônia e
que tinham sargentos nos seus comandos.
Nunca que eu ia imaginar um troço desses, seo moço!
É... mas, a gente vai aprendendo as esquisitices daquele mundo e nele aprendendo
a viver.
Com os dias passando, cada vez mais conhecia as pessoas do lugar, fazia amizades
e via até que não era o fim do mundo estar por ali.
O lugar cativava tanto que a gente esquecia os aperreios de antes e dava começo a
uma vida nova, bem mais simples sim, porém mais gostosa de se viver. Menos comodidades
e mais calor humano.
Um povo que funcionava como se fosse uma grande família, todos com seus gostos
e desgostos iam se aguentando e até se entendendo, pois, não havendo para onde ir, o jeito
era conviver sem muita rusga.
E acabou por ser um tempo tão bom que até pensei em não sair mais de lá, fincar
raízes e tocar a vida para frente por aquelas bandas mesmo... Imagine!
Tanto que, com o tempo, findei por fazer família com aquela cunhantã nissei e,
então, passei a fazer parte da família tefeense.
Pois não é que o famigerado boletim tinha profetizado o certo? “... prazo superior a
dois anos”... fiquei quatro e, sempre que dá, tô lá de volta.
Hoje em dia já não tem o mesmo jeito e nem é a mesma coisa. A cidade inchou de
gente de toda banda, as estreitas ruas ficaram cheias de movimento e o povo antigo que
ainda existe quase não se vê. Muitos já foram para outros cantos, para a cidade grande e
alguns até para outros países.
Ainda tem um bocado de lugarejos daquele interior que continua na mesma toada de
antigamente, pois longe estão dos rios principais, às vezes debruçados na ilharga de
igarapés ou dum pequeno lago qualquer, em lugar sem muita importância.
São pequenos mundos sumidos dos mapas e não há GPS e nem aplicativo de
celular que os encontre. Com vida própria pelejam na luta pela sobrevivência geração após
geração.

119
Basta entrar por um dos infindáveis igarapés, serpentear pelas seguidas e apertadas
curvas que, sem aviso, aparecem umas moradias fazendo fila à beira d’água.
Nesses lugares o caboclo continua o mesmo, aquele que, com sua família, sobrevive
com o remo, o terçado e a rede.
É o autêntico amazônida, gente que sobrevive ali por gerações com o mínimo que
tem e com o que a natureza deixa usar.
Ele desde cedo aprende que sempre dependerá dessa mesma natureza e que,
também, precisa respeitar o jeito dela e muito, pois, se por um lado ela é dadivosa, por outro
cobra caro cada erro e bem cobrado... até mesmo levando embora a própria vida do incauto.
Moradia do caboclo por vezes tem só um cômodo, que é usado para tudo: sala,
copa, quarto e até cozinha. Só o banheiro que não tem, é ao ar livre mesmo.
Móveis? Rede de dormir e, talvez, u’a mesa para todos os fins com bancos longos,
um de cada lado.
O quintal é o mundo inteiro lá fora, vai até onde der.
Pensar na vida?... Para quê? A vida é só ali mesmo, não vai além do alcance das
remadas ou, se tiver, da autonomia do “rabeta”.
O que lhe falta de comodidade sobra de belas paisagens.
Em qualquer canto que plante sua moradia o cenário é sempre deslumbrante.
E o melhor é que não é algo parado no tempo. Conforme o dia vai passando suas
cores vão mudando, as sombras se encolhem ou se espicham, uma hora tem garças voando
sobre o matupá e noutra é um bando de biguás tirando fino no espelho d’água, dali a pouco
vê-se pirarucus batendo rabo perto da beira e no momento seguinte já é boto que mostra o
lombo saindo do igapó.
Sempre muda alguma coisa no quadro que o caboclo tem na moldura de sua porta
ou da janela.

Fonte: Tiago Esashika Crispim

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Fonte: Tiago Esashika Crispim

O endereço do caboclo? É fácil: sai de Tefé pelo paranã, dobra a bombordo e entra no “furo”. Depois,
corta o Solimões já no rumo do Capivara. De lá, embica no igarapé que desemboca no lago do
Macaco e... pronto! Chegou donde ele mora... bem dentro dessa paisagem aí.

Fonte: Tiago Esashika Crispim

Rua? Que rua?... Calçada? Que calçada?... Praça? É tudo em volta.

121
O rio Tefé desemboca no lago em cujas margens a cidade fica. Dali vai-se até o
Solimões por um paranã de uns 3 km de comprido. A partir de então é um emaranhado de
rios, igarapés e lagos que não tem fim.
E a cidade fica no meio disso tudo e fica lá, sozinha, sem nenhuma outra por perto,
como se fosse um mundo único no meio daquela imensidão.
Quem tem condições já saiu dali, já viajou, já conheceu outros cantos do país e até
de outros continentes. Se voltou é pelo gosto do lugar.
Mas, quem não tem condições, e que é a maioria, vive por ali e sua metrópole única
é Manaus, que muito raramente pode-se ir e ver as deslumbrações de uma cidade grande.
O aeroporto da cidade mostra bem essa distinção de quem pode conhecer o mundo
do lado de fora, daqueles que só ficam olhando, mas vão continuar sempre por ali mesmo.
São as duas Tefés numa só.
Enquanto a que pode experimenta o trânsito maluco das megalópoles e passeia
pelos shoppings mundo afora, a que não pode continua vendo as paisagens mutantes de
água, mata e bicho que o mundo amazônico dispõe de graça a quem quiser.
Nesse mundo de cores vivas o caboclo é feliz à sua moda, sem nenhuma pretensão
de novidade e vivendo cada dia do jeito que pode.
O que tem à sua volta, além da exuberante natureza e suas dádivas, é a mulher e os
filhos... muitos filhos. E sempre alimentados com peixe, farinha, mingau de banana e as
frutas que ficam mais ao alcance.
Não espera nada de ninguém e procura resolver as encrencas que vão aparecendo
somente com o que tem à mão.
Motivo de alegria é ter a barriga cheia, é acordar e dar uma espreguiçada na rede, é
cair nos braços da mulher, é ter parecero para jogar conversa fora e é tirar da água o melhor
peixe do dia.
Para os pequerruchos curumins e cunhantãs qualquer coisa alegra a vida. É como
se o mundo em volta lhes sorrisse o tempo todo e só isto já bastasse como energia para
inventar mil coisas para encher o dia todo.
No dito “Sul” é cada vez mais comum se ouvir que a criança está “entediada”, ou
seja, não tem nada o que fazer apesar das muitas ofertas que lhes faz o mundo cibernético,
as áreas de lazer do seu condomínio e a infinidade de shopping center à sua disposição na
cidade grande.
Já a petizada lá dos igarapés do “Norte” não tem isso de “entediada”, não.
Sempre tem alguma coisa na mata ou no rio que desafia a sua capacidade de
aprender a conviver com a natureza, cujas manhas podem lhe facilitar ou piorar a vida.
E numa família grande, cheia de gente miúda, só o exercício de tentar se entender já
toma boa parte do tempo.
As brincadeiras e as brigas vão ensinando a viver todo mundo junto.
As muitas dificuldades acabam sendo o grude que vai ajuntando todo mundo num
balaio só, onde um escora o outro.
A roupa é pouca, o calçado é a chinela, o game não é virtual, é de verdade mesmo.
É ver quem fica mais tempo no mergulho, quem rema mais depressa, quem
consegue achar a trilha de volta, quem sobe mais ligeiro no açaizeiro e até quem consegue o
cacho mais parrudo de tucumã.
São brincadeiras que cansam o corpo, mas não tem academia de malhação que
faça igual. É gente forte, bem disposta e sorridente.
A maioria dos partos acontece por ali mesmo. Quando vai chegando a hora, a
parteira já vai assuntando a posição do rebento e preparando para que tudo corra bem.
Por aquelas bandas uma nova vida é sempre motivo de festa.
Reza uma lenda que a cabocla, quando está prá dar a luz, corre para o rio porque o
rebento já tem de aprender a nadar logo que nasce.

122
Fonte: Myuki Esashika crispim

Família grande. É muita criançada para aprontar arrelias o dia todo.

Fonte: Tiago Esashika Crispim

Cunhantãs e curumins lindos e felizes.


Lindos na expressão mais bela de brasilidade. Felizes com as brincadeiras que vão inventando
com o que encontram na majestosa natureza ao seu redor.

123
Fonte: Tiago Esashika Crispim

A fauna aquática não é só peixe, mas jacarés, ariranhas, tartarugas e mesmo o


peixe boi... que não é peixe, mas mamífero. Aliás, até os mamíferos – macacos, antas,
capivaras e onças – ali são nadadores.

Fonte: Tiago Esashika Crispim

No mundo das águas todos aprendem a nadar... até o gato.

124
Não tem jeito... se cair na água, tem de nadar.

Fonte: Myuki Esashika Crispim

Bom, gente, o diário da viagem está chegando ao fim.


Daqui para frente o resto da volta é em avião moderno, daqules que voam lá nas
grimpas adonde nem se consegue apreciar qualquer paisagem, um trem meio sem graça.
Mas, antes de deixar mais essa vez esse mundão que é a Amazônia, vou contar um
pouco daquele avião anfíbio que voava tão lento e tão baixo que seu lema era “devagar, mas
chego lá” e que acabou virando caboclo e foi aposentado a contragosto depois de décadas
de serviço.

125
O CATALINA

ASSIM FOI UM CABOCLO VOADOR

Fonte: FAB

Arribou de vez das plagas nordestinas e “sentou praça” na Amazônia lá por volta da
década de 40.
Vestido à paisana ou na farda, passou a compor a aquarela amazônica,
bamboleando pelos céus mormacentos desde a Baía do Guajará até as grimpas do rio
Solimões, e tombando para o norte alcançou o alto rio Negro já lá na “Cabeça do Cachorro”
do mapa desta imensidão de país, e descambado para o sul buscou o alto Juruá, nas
ilhargas do Acre.
Assim, foi se tornando caboclo, reconhecido em todas as barrancas dos
esparramentos rios daqueles parrudos e difíceis rincões brasileiros.
E, claro, se para o caboclo viver não era sem muitos aperreios, para o “pata choca”
também não teve vida mansa.
Suas linhas de voo regulares eram um verdadeiro bailado contornando os infindáveis
volteios do Xingu, do Tapajós, do Purus, do Juruá, do Solimões, do Japurá, do Negro e do
Branco e ainda saltava para riba rumo Tiriós e até do Oiapoque, lá no topete do país.
E era pousando ou amerissando, tanto fazia, as escalas eram cumpridas e não
muito à risca, pois dependia do humor de suas “chaleiras” (motores) e dos tocos, pedras e
bancos de areia no rés da água que, de tocaia, ficavam só esperando rasgar aquele casco
teimoso em invadir o lugar da natureza se refrescar.
Voo lerdo naquelas vastidões significava um tempão só olhando muita água, muita
mata, muita nuvem e muito céu.
A claridade e o calor faziam as pestanas irem pesando bem devagarzinho, como se
tivesse chumbo grudado nelas.
Era um olho fechado dormindo o sono dos anjos e o outro esgueirando o horizonte
porque ninguém é besta, né?
E assim lá iam aquelas enormes asas de urubu, aquele corpo de tubarão gordo e
aquele ronco de barriga esfomeada, desembestando pelos céus amazônicos.
Logo sobrevoando um ponto de escala passava em voo baixo sobre a hidropista em
busca de algum caroço que pudesse colidir com seu casco durante a amerissagem.

126
Uma vez livre deste perigo, então tomava posição contra o vento, baixava os
flutuadores de ponta de asa e se soltava para lamber água com a quilha e, depois, com tudo,
até a linha d’água.
Ah, mas antes tinha de ver se o estirão de rio estava “espelhado”, porque quando
não tem vento a superfície reflete até as nuvens e atrapalha a sensação de altura. Daí,
quando então “arredondar” para o pouso?
Resolvido isto, era só taxiar para pescar a boia, já devidamente apoitada lá no fundo
do rio ou, se desse, atracar na beira.
De repente aproximava-se u’a “montaria” com passageiros e tudo quanto era tipo de
carga, de paneiros a tracajás, encostava pertinho da porta que, pela altura, mais parecia
janela ou escotilha de navio e, então, desembarcava e embarcava gente e tudo mais.
Se a atracação foi na beira, daí a coisa ficava menos custosa, pois o desembarque e
embarque se faziam por um pranchão de madeira ou usando uma montaria como tal.
Todos a bordo, livre à esquerda e livre à direita, hora de fazer tossir de novo as
“chaleiras”, taxiar para a ponta do estirão, dali de mansinho começar a deslizar e, ganhando
velocidade, rasgar com raiva aquela enormidade de água e ir se soltando devagar até sair
vertendo pelos drenos o indesejável lastro de água acumulado enquanto atracado.
Ganhava as alturas, fazia a volta e aproava rumo à nova escala.
De novo nos céus da Amazônia.
E pingando de barranca em barranca de rio chegava no ponto de reabastecimento.
Ainda bem que ficavam em terra seca.
Pois é! Não é que o bicho também tinha canelas para pousar fora d’água?
E lá se iam mais uns mil a mil e duzentos litros de mamadeira para o beberrão. Tinha
de completar o óleo, porque na velha idade já se permite vazamento incontinente.
Mais e mais voos vão acontecendo e a boca da noite chegando e, então, mais um
pernoite em um canto qualquer, todo mundo desmoronando no fundo de suas redes para o
merecido descanso.
Afinal, logo amanhecendo tinha mais... mais decolagens, mais amerissagens, mais
pousos, mais voos morosos, mais selva, mais rios, mais nuvens, mais azul e mais gente e
coisas precisando ir de um lado para outro naquela Amazônia que se esticava por mais de
5,5 milhões de km².
E esse vai e volta por cima daquele denso tapete verde escuro recortado de
infindáveis caudais ora barrentos e ora escuros era sem cessar.
Voos que se arrastaram por mais de três décadas, a cada ano, a cada mês, a cada
semana e a cada dia.
Já ainda mais ancião começou a dar sinais de cansaço, tanto que lhe apelidaram de
“maestro”, pois a cada pouso era um “concerto” (deveras, conserto).
Achavam que ele estava chegando ao ocaso e que era melhor aposentar, antes que
começasse a tropicar em suas muitas andanças pelos céus.
Vixe! Mas, como é difícil aposentar um velho que está acostumado a vagar pelos
cafundós da Amazônia, levando no bojo faíscas de esperança ao caboclo sumido nos
meandros dos igarapés, dos paranãs e dos igapós. E como fica essa gente, volta para o cabo
do remo?...
Contudo, lá se foi de vez com a pecha de “desativado”. Fazer o quê? Todo mundo,
no final da vida também não é “desativado”? Então, tá... adeus!

127
Fonte: FAB

-“Fostes deixando um rastro de saudade e de muita gente agradecida.


Na paisagem de muita água, de mata e de céu que varava horizonte tu tinhas teu
lugar de destaque, porque era tu que davas dinâmica aos lindos cenários do interior da
Amazônia.
Fazia harmonioso dueto com os barcos motorizados enchendo de movimento e de
som aquelas obras-primas da natureza que se mostram por toda aquela esparramada
floresta.
Mas, não te aperreies, pois tu ficarás muito bem acomodado nos melhores recantos
de nossas lembranças.”

128
ARRIBANDO RUMO A MANAUS

Fonte: Tiago Esashika Crispim

Fonte: autor

É só um dos tantos lagos da Amazônia.


Mas, não há como deixar de se encantar por tão linda paisagem.

129
Bom! Enfim, chegou a hora de decolar de volta a Manaus e, depois, para Goiás. O
mundo das águas e das matas ficará mais uma vez em nossas recordações, parte indelével
do que somos e de como pensamos a vida.
Decolagem feita e aquela amostra do paraíso vai ficando para trás. Há menos de
uma hora à frente, Manaus fecha este nosso diário de viagem e nos devolve à Terra do
Pequi.
Ficou ao longe um mundo que ligeiro vem acelerando da velocidade do remo para a
velocidade da internet.
As manias do “Sul” vão aportando numa profusão tão grande que fica difícil provar
para só depois aceitar... ou não.
Elas vão mesclando o viver do caboclo com o viver do metropolitano, num lugar que
não tem metrópole.
Estará ele agachado à proa de sua canoa rodeado de água que vai até muito para lá
do horizonte ouvindo no “celular” o repórter da cidade grande dizer que tá faltando água no
mundo.
A resistência ao apagamento do jeito caboclo de ser vem mais é do chão fofo de
areia, com a emaranhada vegetação da extensa e densa floresta costurada pelo intrincado
dos cursos d’água, que continuam teimando em atrapalhar a gana de por ali se lançar
rodovias ditas desbravadoras.
Os modernos bandeirantes e os aventureiros de sempre, para vencer essa
resistência, vêm “comendo pela beirada” a mata e, de quebra, secando suas águas.
Claro que, com o tempo, vão se achegando do miolo da floresta e, assim, mudando
a sua paisagem.
Sim, porque junta ali a “fome com a vontade de comer”.
Pois, de um lado interessa fazer da região uma senhora fonte de produção à
economia do país e até do mundo, e de outro ao caboclo sempre é bem vindo tudo que pode
diminuir os aperreios de sua sofrida vida.
Tem maneira de ser de outra maneira?
Tem como juntar esses dois mundos num só sem desfazer de nada?
Em algum momento da História da Humanidade teve como uma cultura sobreviver a
outra sem nenhum trauma?

130
Fonte: Tiago Esashika Crispim

É, mas o avião, arribando aos céus mormacentos da Amazônia, vai deixando para
trás tudo aquilo e apontando a proa no rumo dos prédios, do asfalto e da agitação da cidade
grande, pois a vida que passa depressa tá com pressa de passar e não quer nem saber de
ver donde veio, só para aonde vai.

131
Fonte: autor

Intão, tá... já vamos no rumo da volta.


Inté mais, mundo das águas!

132
Abaixo tem a “tradução” de alguns termos do “Norte” menos conhecidos no “Sul”:

Igapó: parte de floresta invadida pelas águas durante o período das cheias.
Igarapé: rio estreito... para a Amazônia. No “Sul” é um rio tamanho normal.
Paranã: curso d’água permanente ligando rios ou igarapés.
Furo: curso d’água temporário (só nas cheias) ligando rios ou igarapés.
Carapanã: primo avantajado do pernilongo do “Sul”. Nem jeans segura.
Pium: primo avantajado do borrachudo do “Sul”.
Maruim: o mesmo que o mosquito pólvora do “Sul”. Ataca em bando.
Curumim: menino.
Cunhantã: menina.
Sapopema ou sapopemba: árvore grande com raízes em forma de pranchas.
Samaúma ou sumaúma: árvore gigante com raízes tipo sapopema.
Castanheira: árvore grande que produz ouriços de castanha-do-pará.
Matupá: moita de capim com raízes submersas e folhas à tona d’água.
Macaxeira: é a mandioca comestível.
Mandioca: é a mandioca venenosa, também conhecida por mandioca brava.
Poita: objeto pesado que faz as vezes de âncora para barcos e flutuantes.
Flutuante: casa-jangada.
Palafita: casa sobre estacas.
Tacacá: iguaria servida quente em cuia contendo tucupi, jambu, goma de tapioca, camarão,
pimenta, sal e cheiro verde.
Tucupi: sumo da mandioca espremida num tipiti e deixado descansar para se separar da goma,
ferve-se bastante e fermenta-se por dias para tirar o veneno (ácido cianídrico).
Tipiti: espremedor de palha trançada usado para escorrer e secar mandioca.
Jambu: folha usada como tempero, que dá leve formigamento na boca.
Mungunzá ou munguzá: canjica de milho.
Canjica: curau de milho.
Tracajá: um tipo de tartaruga da Amazônia.
Mangarataia: gengibre.
Amerissar: pousar na água.
Ilharga: na beira, do lado.

..................................................................................

O autor apresentando-se a você, caro leitor.

Gente do interior goiano – Ipameri – ingressou na Força Aérea no início de 1970, como
telegrafista (foi a 4ª e última geração de telegrafistas da família). Trabalhou no QG da, então, 1ª
Zona Aérea, em Belém (PA). Participou da construção do aeroporto de Tefé (AM) e da
implantação de órgãos do Serviço de Proteção ao Voo do Aeroporto Internacional de Manaus.
Prestou serviços no CINDACTA - Centro Integrado de Defesa Aérea e Controle do Tráfego
Aéreo, de Brasília, e também no Aeroporto de Goiânia (GO).
Trabalhou no, então, Gabinete do Ministro da Aeronáutica e, depois, no antigo Estado Maior das
Forças Armadas (hoje Ministério da Defesa).
Lecionou nos aeroclubes do Amazonas, de Brasília, de Goiás e no Curso de Graduação em
Ciências Aeronáuticas da Pontifícia Universidade Católica de Goiás.
É pós-graduado em Planejamento de Ensino, pela Universidade Salgado de Oliveira, e Mestre
em História, pela Universidade Federal de Goiás.
Publicou os livros: o “Bunel, uma Tragédia Amazônica”, pela União Brasileira de Escritores,
Seção do Amazonas (1982), e “História do Transporte Aéreo no Centro Oeste Brasileiro, 1930 a
1960” (2004), pela editora da PUC Goiás.
Publicou vários artigos em jornais e em revistas especializadas na área de aviação.
E, agora... este pequeno livro.

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