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Copyright 2021 by Newton Leone

Autoria protegida: Lei nº 9.610/98 e Art. 184 do CP

Edição própria

Revisão: Carla Maria Rodrigues Barbosa

VELHOS PÁROCOS

Printed in Brazil

Goiânia

2021

1
O QUE É ESTE PEQUENO LIVRO

Este trabalho teve três fontes inspiradoras:


- As lembranças referentes a um velho pároco do
interior, Monsenhor Domingos Pinto Figueiredo, ou
simplesmente Padre Domingos, como era mais
conhecido;
- A amizade com um atual “velho pároco” de uma
pequena paróquia do interior, Pe. Genésio Lamunier
Ramos; e
- Um personagem consagrado nas obras de
Giovanni Guareschi, o “velho pároco” Don Camilo.
Eles completam a figura icônica do que foi, ou talvez
ainda seja, o velho pároco.
Gente simples, meio turrão, bastante fiel às
tradições, muito observador e acima de tudo sempre
preocupado com as famílias de suas pequenas paróquias.

2
Enfim, um tipo cuja entrega total ao serviço de Deus
chegou a extremos que em uns provocou admiração e,
em outros, assombro.
Severos sim, mas defensores incondicionais dos
rebanhos de almas que Deus lhes confiou, defensores
intensos dos ensinamentos de Nosso Senhor Jesus Cristo
e defensores perenes da fé cristã.
Quiçá a Igreja tivesse muitos “velhos párocos”.
Certamente os servos do capeta não avançariam tanto
com seus projetos de corrupção da Humanidade.
O texto está dividido em duas partes:
- Os antigos velhos párocos e
- Um novo velho pároco
A primeira parte foi retirada do fundo do baú. São
lembranças sobre antigas paróquias do interior, de como
funcionavam, de como foram surgindo e os seus efeitos
no cotidiano dos fiéis, e como foram paulatinamente
perdendo espaço ao “progressismo” que então tomou
conta da Igreja, especificamente cá no país de Nossa
Senhora da Conceição Aparecida.
A segunda parte é um pequeno conto inspirado na
grandiosa obra literária de Giovanni Guareschi, “Don
Camilo”, em que um velho pároco do interior trava
diuturno embate com um prefeito ateu. Porém, aqui o
drama é bem mais singelo e curto, inserido no contexto do
interior brasileiro, uma ficção espelhada em uma situação
real de um pároco de uma vila deste nosso sertão goiano.
Mas, no final das contas, tudo se trata da figura do
velho pároco que por muito tempo formou a mentalidade
católica dos brasileiros deste vasto país.

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ÍNDICE

OS ANTIGOS VELHOS PÁROCOS – 1ª Parte

UM VELHO PÁROCO

A NORMALIDADE NAS PEQUENAS PARÓQUIAS

DE ONDE VIERAM OS VELHOS PÁROCOS E SUAS


PARÓQUIAS

FORMAÇÃO DA FÉ DO POVO DA COLÔNIA

NOSSA SENHORA APARECIDA INICIA UMA NOVA


NAÇÃO NA FÉ CRISTÃ

OS VELHOS PÁROCOS X PROGRESSISMO NA


IGREJA

OS VELHOS PÁROCOS, OS GRÃOS DE MOSTARDA


A IGREJA ANACRÔNICA

A MORTE, O QUARTO CAVALEIRO DO APOCALIPSE


CONCLUSÃO

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UM NOVO VELHO PÁROCO – 2ª Parte

Pelas Sendas de Aracaty


O pároco e o prefeito
Reunião com o sacristão
O pároco e a delegada
O pároco visita o “coronel” Cezar
O pároco recebe o juiz itinerante
O pároco e o fusca
A delegada e os livros da Paróquia
Homilia de alerta
Atendendo confissões
O projeto da praça
Homilia ou declaração de guerra?
O contra-ataque do prefeito e do “coronel”
O arquiteto chega a Sendas
Direção espiritual ou armação dum crime?
Festa de aniversário da cidade - preparativos
Enfim, a festa da cidade
Apresentação do projeto da nova praça
O pároco perde o sono
Comemorando vitória antecipada
A inesperada visita do prelado
O caminho da redenção
“E se forem só dez os justos?” (Gn 18:32)
Dias de muita expectativa
O fim da novena e a venda da safra
O jogo vira... a igreja está salva!
Enfim, a normalidade volta à Sendas do Aracaty... a
normalidade de Deus.

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OS ANTIGOS VELHOS PÁROCOS
1ª Parte

UM VELHO PÁROCO

Antigamente o padre ficava muito tempo numa só


paróquia. Daí, velho pároco.
Findava por fazer parte do lugar, pois se tornava
bem conhecido de todos.

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Além das celebrações das Santas Missas atendia
confissões até nas casas, visitava doentes e presos,
rezava nos cemitérios pelas almas do purgatório, fazia
direções espirituais aos paroquianos, passava
cotidianamente pelos lares cristãos e não tinha horário
para atender a quem precisasse dum alívio ou duma força
espiritual.
Conhecia cada um de seus paroquianos, suas
famílias, e compartilhava de suas alegrias e de suas
tristezas.
A batina preta era sinal de morte com relação ao
mundo, e que estava sempre pronto a atender a todos.
Era homem de Deus deveras devotado aos paroquianos.
Quando o padre sumia por uns dias é porque tinha
ido descansar um pouco, visitar seus parentes, ir ter com
o bispo e tomar um fôlego... mas, era só por uns poucos
dias.
E quando era substituído é porque estava muito
velho e doente. Então, a diocese o abrigava num canto
até seus últimos dias cá por esta Terra.
A criançada da paróquia tinha seu catecismo já
surrado de tanto ler e decorar os Dez Mandamentos da
Lei de Deus, os Cinco Mandamentos da Igreja, os Sete
Sacramentos e as orações diárias, incluindo a reza do
terço. A catequese era preocupação constante do velho
padre.
Batizado, Primeira Comunhão, Noivado e
Casamento eram ocasiões de juntar as famílias, os
amigos e os vizinhos numa festa só superada pela do
padroeiro, e nelas a figura do padre tinha destaque...
abençoava todos os presentes.

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Padre era um conciliador e tentava sempre aparar as
arestas entre os adversários políticos do lugar,
procurando evitar assim que as contendas chegassem às
vias de fato. Só entrava na briga quando estava em jogo
alguma questão da fé católica.
Na procissão iam todos os paroquianos, sempre em
filas laterais e os andores dos santos seguiam no meio
junto do ostensório com o Santíssimo Sacramento,
carregado pelo padre todo bem paramentado para a
ocasião.
Havia os Irmãos do Santíssimo, o Apostolado da
Oração e os Vicentinos, cada qual participando do seu
jeito e sob a batuta do padre.
E também os coroinhas com suas batininhas pretas
ajudavam nas Missas, na exposição do Santíssimo,
tocavam o sino, as sinetas e as matracas na Semana
Santa, e manejavam bem o turíbulo espalhando fumaça
de incenso por toda a igreja.
Dentre essa gurizada que agitava os corredores da
igreja, especialmente nos domingos e nos dias santos, é
que acontecia a maior parte das vocações sacerdotais.
Aqueles que a recebiam do Espírito de Deus o
pároco os encaminhava pro seminário ainda crianças. Por
lá ficavam na adolescência e juventude até serem
ordenados sacerdotes.
Nos seminários aprendiam a rezar e meditar sobre
as obras de Deus Criador, Redentor e Santificador, e
sobre os Sacramentos dos quais viriam a ser
responsáveis perante a Justiça Divina, e a trabalhar
somente para Deus a vida toda pela conversão e
salvação de Suas criaturas humanas.

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O Domingo era sempre o dia mais importante e
começava nos preparativos para a Missa matinal, que
lotava a igreja.
A homilia durava mais tempo, pois o padre
comentava a primeira e a segunda leitura e, depois,
caprichava no comentário da passagem do Evangelho
quando, então, procurava encaixar as palavras de Nosso
Senhor Jesus Cristo no dia a dia de seus paroquianos.
Noutro assunto não se tocava.
À saída daquela Missa muitos ainda se demoravam
por ali, cumprimentando, conversando e botando a prosa
em dia.
Também era naquele momento que vez por outra
acontecia o convite pro padre almoçar na residência de
um dos paroquianos, mormente quando havia aniversário,
chegada de algum parente ou qualquer fato diferente que
movimentava a família.
Não era comida chique. Só mesmo o arroz com
feijão, ovo, farinha, uma saladinha de alface e tomate e
algumas carnes. Era o tempero que dava aquele gosto de
fazer repetir mais de uma vez. Sobremesa até podia ser
qualquer doce, mas o queijo não faltava. Claro que antes
da primeira garfada o padre dava a bênção à refeição e à
família anfitriã.
Depois, os adultos costumavam ir para a sala ou
varanda da casa donde o padre se inteirava das coisas
boas e ruins daquela família. Aconselhava sempre com
base nos ensinamentos de Nosso Senhor Jesus Cristo,
mostrando que acima de qualquer pendenga tinha de
estar a vontade de Deus do “amai-vos uns aos outros
como Eu vos amei”.

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No meio da tarde, depois do cafezinho com pão de
queijo, ele voltava para a casa paroquial e ia rezar o
Breviário, o terço e ler a biografia d’algum santo.
Na boca da noite tirava um tempinho para meditar
sobre o caminho da Igreja no mundo, pedir forças a Deus,
proteção a Nossa Senhora e muleta espiritual ao Anjo da
Guarda. Também fazia um balanço dos acontecidos do
dia e media-os perante a vontade Divina.
Quando a chuva forte fazia goteira no telhado da
igreja ou o cupim atacava o madeirame, o padre explicava
a precisão pros fiéis e logo aparecia material e mesmo
dinheiro para resolver a encrenca. Ninguém se furtava a
ajudar obra da Igreja, aliás, as doações aconteciam até
quando não se pedia.
Afinal, pro povo daqueles tempos a Fé era o mais
importante e a igreja plantada lá na praça guardava o seu
bem maior, o Santíssimo no seu sacrário bem no meio do
altar-mor, a quem sempre se fazia o Sinal da Cruz.
Os fiéis não eram abastados a ponto de lhes sobrar
tanto que pudessem se dispor de bens a bel prazer em
favor da Igreja. Pelo contrário, naqueles tempos o dinheiro
era curto, as famílias regravam o consumo e só se
adquiria o essencial. À Igreja dava-se do que faltava e
não do que sobrava.
As calças, camisas, paletós, vestidos, saias, blusas
e até meias quando rotas eram cerzidas. Os sapatos e as
botinas levavam meia-sola para continuar pisando o chão.
Os alimentos vinham direto das roças, das hortaliças, do
quintal e do pasto para a panela em riba do fogão a lenha,
e também os doces eram caseiros... bananada, goiabada,
doce de leite, de mamão e de casca de laranja.

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Industrializados mesmo eram só as ferramentas, os
talheres e panelas da cozinha, e os tecidos que se
cortava, costurava e se fazia roupas para toda a família.
Ah!... tinha o rádio. Muita gente tinha um radinho
donde ouvia notícias e músicas. E ele passava por um
monte de consertos e ia durando a vida toda, tornava-se
num bem quase que vitalício.
Até os poucos carros possuíam tantos remendos e
gambiarras que causavam espanto até nos mecânicos,
pois a precisão era só que continuassem funcionando
para cumprir com sua função: transportar pessoas e
coisas quando a pé não tinha jeito.
Não havia preocupação em fazer bonito com luxo ou
com aparências. Estufar o peito para contar vantagem era
visto como coisa de “papudo”, gente de má índole.
À escola a petizada só levava o livro, que tinha todas
as matérias, um caderno, lápis e borracha. E na sala de
aula professor só precisava do giz e do quadro negro para
ensinar o necessário que os alunos careciam quando
fossem tocar suas vidas adiante. E antes das aulas...
rezava-se!
Tudo na vida tinha como baliza a Fé. Criaturas
sempre ao dispor do seu Criador.
E eram eles, os velhos párocos que, assim, davam
continuidade às remotas paróquias das dioceses
espalhadas pelo sertão.
Isso tudo era a vida normal, estabelecida no decorrer
de muito tempo, cujas tradições foram passadas de
geração a geração, para que o verdadeiro sentido desta
breve vida terrena tivesse cumprido assim sua missão. E
o pároco sempre presente segurando a vela donde luzia a
chama do Espírito Santo.

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Foi tempo em que as igrejas eram o centro da vida
das pequenas cidades, quando as badaladas dos sinos
de suas torres é que marcavam as horas.
No tempo em que a praça ao redor da igreja servia
de ponto de encontro e de brincadeira das crianças que,
então, sentiam-se livres para correr, subir em árvores e
também se ajoelhar fazendo o Sinal da Cruz.
No tempo em que se benzer a frente das portas da
igreja era um cumprimento normal de todo passante ao
Deus onipresente. Sinal da Cruz respeitoso a Nosso
Senhor Jesus Cristo lá na hóstia consagrada no sacrário
lá no altar-mor. Era o que havia de mais importante na
vida dos padres e dos fiéis.
O povo desses recantos era simples. Sorrisos e
apertos de mão que expressavam rústica sinceridade. Os
trajes e as falas já indicavam o jeito da roça, e os vários
convites pruma refeição caseira só reforçavam esse jeito.
Porém, o que impressionava mesmo era a fé
piedosa, simples e bem verdadeira dessa gente. Coisa
muito rara de se ver hoje em dia.
O prédio da Igreja se sobressaindo no meio da praça
em geral construída só com recursos dos paroquianos,
pequenos comerciantes da cidade, trabalhadores e
moradores da roça.
Mas, não era só a igreja matriz. Mais algumas
capelas findaram sendo erigidas por eles na zona rural
pelas redondezas. Eram as capelas de fazendas onde
havia Missa pelo menos uma vez na semana.
O povo dali fazia questão que o padre benzesse
suas residências, seus comércios, seus rebanhos e suas
plantações. Mantinham pequenos oratórios dentro de
casa e a reza era uma constante no seio das famílias.

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Ah! As famílias... grandes, cheias de filhos e eram
tantos compadres e comadres que, ao fim, as famílias por
eles se entrelaçavam, os sobrenomes se misturavam e a
criançada ia aprendendo que tudo era parente.
Em geral os jovens daqueles recantos aspiravam a
morar por ali mesmo e a trabalhar no pequeno comércio
da família ou a adquirir um pedaço de terra para nele
construírem suas casas e continuarem as criações e os
roçados de seus bisavôs, avôs e pais, pois nelas
moravam seguidas gerações. E tudo tinha de ter a bênção
do padre, até os noivados só valiam se abençoados com
alguma solenidade.
Algumas coisas ajudavam aquele jeito de vida nos
cafundós de meu Deus: ali o que chegava de fora era
carta e telegrama pelo correio, notícias e música de viola
pelo rádio, e forasteiro que aparecia atrás de algum
negócio ou só mesmo de passagem para outros cantos.
Muita lonjura que dificultava o acesso, pouca
comunicação com o mundo turbulento, muitas estradinhas
de chão precárias que seguravam a pressa, muito
trabalho pesado principalmente na roça e com a criação.
Eram poucos momentos sem se alembrar de Deus,
pois benzer-se vinha antes de qualquer labuta, refeição
ou do bem merecido descanso.
Parece até que Deus, satisfeito com o que via,
punha para cuidar daquelas pessoas boas um padre a
altura delas. Um baita presente... para elas e pro padre,
os fiéis certos pro padre certo.
Em tudo e por tudo era um povo que colocava Deus
em primeiro lugar nas suas vidas. Não aspirava a grandes
coisas, mas somente a um pedaço de tranquilidade perto

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da parentada, ali ter sua casa, viver, criar os filhos e para
eles passar o legado de fé e de trabalho duro.
Os dias se sucedendo sem pressa, um após o outro,
repetindo-se como se fossem estáticos, nas mesmas
paisagens de sempre, nas curvas dos mesmos morros,
nos volteios dos mesmos ribeirões e nas quebradas das
mesmas estradinhas de chão. A toada do tempo era a da
vaca pastando e da planta crescendo, sem nenhum
aperreio, pois não se ia a lugar nenhum... era só ali
mesmo. Imperava nos dias a normalidade que ali se
instalara há gerações.
Claro que aqueles cafundós de meu Deus não eram
uns paraísos na Terra... encrencas existiam.
Um desarranjo no negócio da compra duma
mercadoria, gado ou terra já era motivo para desarranjar
também o entendimento entre famílias. Fofoca, briga de
casal e cachaça demais também azedavam a vida no
meio dos paroquianos e faziam encompridar a fila do
confessionário nas tardes pasmacentas ou antes da
Santa Missa nos domingos e nos Dias Santos.
No fim das contas não passava disso e o padre já
sabia de cor e salteado os caminhos e descaminhos das
ovelhas do seu rebanho. Tanto que nos sermões das
Missas dominicais embutia puxões de orelhas indiretos,
mas com destino certo a quem a carapuça bem calçasse.
Aquilo era mesmo um pedaço do moroso e distante
tempo na beira da agitação que já começava a tomar
conta lá nas metrópoles, e que ia resistindo às intensas e
constantes investidas das modernidades que tanto
distanciam as criaturas humanas de seu Criador.
Hoje em dia, quem ainda consegue preservar a fé
daqueles torrões de cafundó torna-se uma chama de

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esperança, um alento a despertar um discreto sorriso num
cansado rosto cristão que vive sob o fardo duma
sociedade sem Deus.
Parece mesmo que obra de Deus funciona dessa
maneira, um tantinho de fiéis em meio duma vastidão de
incredulidade, de materialismo e de relativismo. E esse
tantinho que é de fato o povo de Deus, pois a Ele não é a
quantidade, mas a qualidade que importa mais. Muito joio
e pouco trigo, mas é trigo de muito boa qualidade, pois
resistiu à enormidade e agressividade do joio.
E o que seria desse tantinho de fiéis se não fossem
os velhos párocos que se dedicavam completamente ao
serviço a Deus?

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A NORMALIDADE NAS PEQUENAS PARÓQUIAS

Normalidade nos lugarejos do interior era mesmo


aquela vida mansa que ia acontecendo dia após dia.
Para um forasteiro parecia coisa sem graça, sem
novidade e sem a correria da cidade grande. Mas, só
parecia!
Porque se a aparência era de marasmo a realidade
era bem outra.
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Na mercearia era o feijão que carunchou, a farinha
que mofou ou a mercadoria que atrasou.
Na roça era barragem que de repente danou a
vazar, uma cascavel que se amoitou no paiol e não se
achava, ou ainda era o bezerro fujão que varou a cerca e
sabe-se lá aonde foi.
Todo dia tinha uma encrenca nova que tirava do
sério a rotina dos afazeres do lugar. E ainda a agonia de
ficar vigiando o céu e torcendo que a chuva chegasse
para garantir a plantação.
Só que forasteiro que não entendia de interior,
achando que sempre tudo estava igual, que no campo a
vida era sempre uma sequência de repetições e ele
entendia isto por tediosa normalidade. Mas, não era!
A normalidade do povo do sertão estava no que ele
era, no que ele acreditava, no jeito que herdou dos pais,
que já herdou do avô e do bisavô, e com base nisto ia
tocando a vida.
Era no jeito de entender a própria vida, no de se
ocupar, no de fazer a família e de como criar os filhos... os
muitos filhos.
Era no jeito de ter fé, de se entender com o Criador e
de como ia passando isso pros filhos e até pros netos.
Esta era a normalidade que campeava pelos muitos
pedaços do sertão.
Logo que terminava a escola básica cursada lá na
vila, o sonho de vida do rapaz era conseguir um afazer
por ali no seu torrão, onde faria a sua morada e iniciaria
seus negócios no comércio ou na criação ou na roça,
enfim, fazer a base do sustento de sua futura família.
Sim, e daí vinha a família.

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Começava ele visitando a moça na casa dos pais e
ganhando confiança para ser aceito pelos futuros sogros.
Baita esforço, pois era normal a desconfiança... será um
bom marido? Um bom pai? Um bom provedor?
E ela, a moça, iria administrar o lar e ensinar às
crianças que palavra dada é palavra cumprida, que o
trabalho constrói a pessoa, que tudo tem sua hora e que
Deus tudo vê do que se faz cá nesta Terra.
A dureza da vida onde tudo se fazia com as próprias
mãos não tirava, porém, a constância do sorriso de quem
achava graça em coisas simples que aconteciam ao seu
redor:
A caraíba que floria de amarelo forte, a moita cheia
de gabirobas, a fisgada do lambari na linha de pesca, o
sabor do leite que vinha direto do curral pro fogão à lenha
e a toada do monjolo socando arroz na ida e vertendo
água na volta e, claro, o proseado comprido a que se
achegavam uns daqui e outros dali por horas a fio.
Ora! Bastava ouvir as risadas de quando todo
mundo se ajuntava para fazer a pamonha, assar o porco
ou preparar a massa do queijo. E elas se sucediam não é
pelo trabalho danado que se estava tendo, mas porque
aquela labuta toda num momento unia a família, que
aproveitava para prosear, contar causos e esticar
conversa até a pamonha, o porco ou o queijo já estar bem
acomodado e as vasilhas areadas e brilhando de novo.
Taí a baita diferença da normalidade do sertão, com
os espantos avexados que já grassavam a vida nas
grandes cidades, onde já se queria que a cada instante
algo diferente saltasse à frente do cidadão, com novas e
mais variadas emoções.

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Já naqueles tempos a normalidade do interior
construída por gerações não satisfazia a ansiedade do
metropolitano, a crescente vontade de cumprir aqui e logo
a finalidade da vida humana.
E como se não bastasse essa gana por novidades
no próprio labor, tem as mil e uma viagens não só a todos
os recantos do mundo, como que em busca de respostas
lá fora para questões de dentro d’alma. E de preferência
que essas respostas nenhum vínculo tenham com as
concepções tradicionais da existência humana,
especialmente com a verdadeira fé em Deus.
Quem tratou com maestria dessa normalidade de
outros tempos encontrada pelos cafundós do sertão foi
Gustavo Corção, o engenheiro filósofo que colocou a
inquietude do ser humano moderno como sua
incapacidade em admitir a normalidade como inerente à
própria vida neste mundo.
Aquela normalidade que vem da certeza na Verdade
Absoluta e que o homem moderno, esse metropolitano,
tem se empenhado em substituir pelas incertezas do
relativismo.
De fato, de lá para cá a pressa em fazer mais coisas
em menos tempo possível, de procurar novas
perspectivas de vida, experimentar situações diferentes,
correr atrás de novidades, enfim, nunca cair na rotina, tem
sido a tônica do ser humano dito moderno.
Já o viver pacato dos dias ditos normais, que se
emendam um após outro, parece que dá a ele uma
sensação de perda de tempo, de que está faltando algo,
embora ele não saiba o que seja. Levantar da cama e
repetir os dias, sem grandes mudanças e sabendo que
assim provavelmente será até o anoitecer, em geral o

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deixa inquieto e até mesmo ansioso... “não fiz nada hoje”,
ele se atormenta. Gente da cidade grande tem sempre
pressa, nunca tem tempo para nada. É mais ou menos
assim:

Tempo!
Não tenho tempo!
O tempo é que me tem.
Ele me encurtece,
me espreme e me suga.
Brinca com os instantes da minha vida
e ironiza minha pressa.
Segurando na ponta dos dedos
a foice da morte assanhada,
ri da minha inquietação,
e gargalha quando olho pro relógio.
Tempo... maldito onipresente,
que encurta esperanças,
que adverte a minha calma
e exige o meu final.
Por que és implacável,
opressor e insensível?
Não adianta!...
Não me responde!...
Apenas passa,
passa sempre,
como sempre passa.
Sem dar chances
é inexorável e definitivo quando diz:
- Acabou!

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A normalidade de que tratou o engenheiro Corção
em sua obra “A Descoberta do Outro”, ainda
recentemente tinha vez em duas fases da vida: na
infância e na velhice. Em ambas a passagem do tempo
não interessava.
Na primeira pela total falta de percepção de que o
tempo existe, que as brincadeiras sejam quais fossem
não tinham hora para começar e nem para terminar.
Na segunda porque, já consciente que a busca
apressada por cada vez mais não altera em nada o viver,
o ancião finalmente encontrava na normalidade de cada
dia o tempo para a reflexão sobre a efemeridade do viver.
Percebe aí enfim que a busca por algo relativizado
não o levou a lugar algum, a não ser reencontrar o
absoluto, a finitude desta vida e, nela, a misericórdia e a
justiça de seu Criador diante da insensatez em que
transformou a vida terrena.
Na criança há muito existe perene esforço dos pais e
do Estado em lhe extirpar a normalidade dos dias,
impondo-lhe a precocidade da vida adulta, vida que corre
sempre atrás de um algo subjetivo nunca encontrado.
Mesmo antes de a criança compreender o mundo
em que vive ela já está sendo depositada por seus pais
em instituições onde o dia inteiro até as brincadeiras e os
seus tempos são escolhidos e impostos por adultos
“profissionais em educação”, elas não têm mais liberdade
de escolher as brincadeiras e nem os seus tempos.
Restou ainda um pouco da normalidade à velhice
que, entretanto, ao sentar-se de frente para o cotidiano e
sem nenhuma pressa vê-lo passar, entristece por
perceber que só descobriu a paz da normalidade ao final

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da vida, que deixou a pressa e a ansiedade consumirem a
maior parte de sua existência terrena e, pior, que
contribuiu para eliminar da criança a normalidade dos dias
de brincadeiras e do tempo delas.
Só nos dias em que se vivia as miúdas e lentas
rotinas é que se tinha tempo para refletir, por exemplo,
sobre aquela diferença entre as irmãs Marta e Maria.
Enquanto uma se exasperava em construir o dia
com muitos afazeres que pareciam ter algum sentido, a
outra optava por viver o dia sentada a ouvir o Mestre
Jesus, a Verdade Absoluta, que expressava a brevidade
desta vida e a eternidade da outra, onde a normalidade é
de se estar diante de Deus.
Uma vez que a finalidade última das criaturas
humanas é adorar a Deus e que esta vida se resume em
aprender a voltar-se a Ele, todo o resto é dispensável.
Mesmo os afazeres da sobrevivência só têm sentido
se considerados como meios ao fim último, pois sem este
a breve existência terrena fica sem sentido e sem
perspectiva.
Corção percebeu então que o outro, o próximo, é o
único meio para se prostrar nesta vida diante do Redentor
que, assim, reabre ao ser humano as portas da vida
eterna no Paraíso.
E, como sempre foi, é na humilde simplicidade da
vida em família, cuidando dia a dia da subsistência de
cada um e no cotidiano rogando “aumentai, Senhor, a
nossa fé”, é somente nisto que o povo dos singelos
vilarejos incrustados no meio dos morros, com a cruz da
torre de suas igrejas apontando para o céu, findava por
encontrar a verdadeira razão de viver.

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E daí, que baita diferença existia entre a toada da
cidade grande e a do interior. Lá nos confins do sertão, no
Domingo, dia da Santa Missa e das estradinhas de chão,
começavam a chegar os fiéis de todas as bibocas
socadas à beira dum ribeirão. O padre os recebia e dava
as boas-vindas.
As famílias iam tomando lugar nos bancos, sempre
se mantendo agrupadas.
Trajadas sem luxo, mas respeitosamente,
ajoelhavam-se, abaixavam a cabeça e reverenciavam o
Santíssimo na Hóstia Consagrada lá no sacrário.
Após o pedido de perdão pelos pecados cometidos,
de dar glória a Deus e de ouvir as leituras do Antigo
Testamento, das cartas de São Paulo e de uma
passagem do Novo Testamento, o padre fazia o sermão e
ia dando exemplos de como os fiéis podiam aplicar
aqueles ensinamentos ao cotidiano de suas vidas.
Ia direto ao ponto e deixava claro que Deus é amor,
mas também é justiça; que tem a planta sadia, mas
também tem o mato disgramento e os dois, após a
colheita, não irão pro mesmo lugar... um será aproveitado
e o outro botado fora.
E que também tem o bom ladrão, arrependido de
verdade, mas tem também o mau ladrão, o da descrença
na salvação, o da desesperança, e mesmo o fiel
cometendo erros, deles tem de arrepender-se de verdade
e dar novo rumo na vida.
A Consagração Eucarística guardava o silêncio
profundo dos que, de joelhos no chão, sentiam ali a
presença de Nosso Senhor Jesus Cristo sofrendo
terrivelmente por conta dos pecados cometidos por cada

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um dos presentes e dos ausentes, dos que tinham fé e
também dos que não tinham.
E, por fim, receber em estado de graça a Hóstia
Consagrada que renovava (e renova) a fé e fortificava (e
fortifica) a alma. “Ide em paz e que o Senhor vos
acompanhe” é o lembrete a todo aquele povo de que
Deus estará com ele na casa, no afazer diário, na roça,
junto da criação e em todo lugar.
Era a normalidade que se acomodava em gente de
Fé e lhe dava finalidade a esta vida... preparar para a
outra, para a eterna.
E preparava-se no decorrer da semana com os
cavacos que iam se ajuntando e pesando na cacunda dia
a dia, pois eles ajudavam a montar a cruz, aquela que é a
carta de apresentação à Misericórdia Divina... e o velho
pároco lá estava sempre para ajeitar essa carga de
pequenos pedaços da cruz no lombo de cada paroquiano.

24
DE ONDE VIERAM OS VELHOS PÁROCOS E SUAS
PARÓQUIAS

Na pequena Belém da Judeia nasceu há dois


milênios o nosso Redentor.
E pelos momentos que esteve neste mundo nos
ensinou como fazer jus à Misericórdia Divina, infinita,
amorosa e justa. E assim ensinou já desde Seu
nascimento, que aconteceu na simplicidade e na
humildade.

25
Também cresceu nas mesmas condições e
obediente ao Pai, cumpriu toda a Sua missão neste
mundo, sacrificando-se inteiramente pela redenção das
criaturas humanas que sinceramente se arrependem e se
corrigem.
É uma correção de rumo de vida, de deixar tudo
deste mundo de lado e se submeter completamente à
vontade do Criador. Afinal, Ele criou e, então, Ele é quem
sabe o que é melhor às Suas criaturas.
O que é deste mundo finito serve apenas para
garantir nele a sobrevivência, enquanto se dedica a
desenvolver nas pequenas coisas do dia a dia a prática
das virtudes, cujo mérito final é exatamente fazer jus à
Misericórdia Divina.
E é nesse viver os detalhes dos dias que acontece a
normalidade de toda a vida, de quem já descobriu e
aceitou seu fim último neste mundo.
Desde que assim Nosso Senhor Jesus Cristo
mostrou às criaturas humanas, a Igreja por Ele instituída
foi crescendo mundo afora com humildade e simplicidade,
apesar das penosas dificuldades e resistências que as
criaturas humanas, alvo da redenção, têm insistido em lhe
impor no decorrer dos séculos.
Tais resistências apresentam-se de várias formas.
No passado por um tempo considerável foi a perseguição
ostensiva e violenta por parte do Império Romano. Depois
aconteceram cisões e, então, vieram os exércitos do Islã
invadindo as nações convertidas ao Cristianismo, um
flagelo que durou séculos e atingiu grande parte da Ásia
Menor, do Norte da África e da Europa.
Por volta do Século XII lá no canto da Península
Ibérica, após longa luta, cristãos conseguiram livrar seu

26
torrão natal do domínio do Islã, e nas terras libertas
nasceu o pequeno Portugal.
Pequena faixa de terra de frente pro Oceano
Atlântico, desde cedo cobiçada pelo vizinho e poderoso
reino de Castela, a jovem nação portuguesa findou
desenvolvendo sua economia com base na navegação de
longo curso, conforme bem declama o poeta Camões em
“Os Lusíadas”.
E foi nesse singrar dos “mares nunca d’antes
navegados” que as naus portuguesas foram conquistando
as colônias, base de sustentação da economia lusitana.
Com a descoberta de novas terras que iam do
noroeste ao sudoeste e distantes mil léguas do porto de
Lisboa, do continente que viria a se chamar América,
nasce nelas mais uma colônia, as terras de Santa Cruz.
Um nascimento que teve por batismo uma Santa
Missa, a primeira, celebrada pelo Frei Henrique de
Coimbra e acompanhada por outros sacerdotes, em 26 de
abril de 1500.
Desta feita, aporta na nova colônia a cruz que traz
consigo a aceitação do sofrimento, seu oferecimento
como sacrifício a Deus e a consequente normalidade dos
que têm a certeza de que nesta vida a esperança lhes
basta. Normalidade que se estabelece com a paz de
espírito.
Das praias tropicais adentrando a exuberante mata,
subindo por morros e serras e até os planaltos, o colono
finca seu lar, rasga a terra, planta, cria animais, resolve
suas precisões e vai se ajuntando aqui e ali, formando
vilarejos e cidades.
No centro dessas povoações em geral ficava uma
praça, e nela a igreja onde o pároco celebrava as Santas

27
Missas, ensinava e batizava a criançada, atendia as
confissões, fazia os casamentos, atendia os doentes e
dava-lhes a unção.
Assim, a presença do pároco ia se tornando sinal
visível da esperança, da necessidade de continuar com a
cruz de cada dia e de nunca desistir.
A colônia se fez mais por essa persistência do
colono do que pela presença de tropas e funcionários da
coroa portuguesa. Foram os colonos que se ajuntaram e
construíram dia após dia cada uma das cidades onde, a
duras custas, foram implantando os meios de subsistência
de suas famílias, tendo como ânimo perene a esperança
na Misericórdia Divina.
As enormes dificuldades da vida na colônia lhes
faziam olhar para o céu e rogar a Deus pedindo essa
Misericórdia.
Saindo da parte do litoral que hoje em dia é baiano,
desceram os lusitanos rumo ao sul, chegando onde é a
atual baía da Guanabara e, depois, até onde agora é o
porto de Santos.
Era isso a colônia, uma tripa de litoral cheia de
reentrâncias que se estendia por mais de 2.500 km e
onde pontilhavam aqui e acolá vilarejos com algumas
dezenas ou centenas de colonos e soldados da coroa
portuguesa.
Os moradores nativos do território, alcunhados de
“indígenas”, dividiam-se em diversas tribos. Um ponto
comum as unia: todas podiam ser classificadas como pré-
históricas, pois não tinham desenvolvido escrita, não
conheciam a roda e nem o uso dos metais. Várias
guerreavam entre si e algumas eram antropófagas.

28
Foi, então, um tremendo choque de culturas de
tempos muito diferentes. Mas, não tinha volta. Os
europeus já haviam desembarcado de vez no continente e
estendiam a colônia por toda a costa.
Em alguns pontos começaram a adentrar para
algumas léguas pelo interior, em busca de produtos da
terra que valessem a pena vender para os mercadores
que aportavam pelo litoral.
Foi assim que subiram a serra e chegaram ao que
hoje é denominado de Planalto Paulista, onde as terras
férteis favoreciam as plantações.
E nesse planalto deu-se então o início da formação
de vilas e cidades onde os padres construíram igrejas e
fundaram as primeiras escolas da colônia. Por elas a fé
cristã foi se expandindo e formando uma cultura que
caracterizaria aquele povo por séculos.
A congregação da Companhia de Jesus enviou
sacerdotes seus lá de Portugal, os jesuítas, para iniciarem
a catequese na colônia. Padres que se dedicaram
inteiramente a arraigar a doutrina católica e a educar as
novas gerações de colonos e de nativos nos preceitos
cristãos.

29
FORMAÇÃO DA FÉ DO POVO DA COLÔNIA

Alguns sacerdotes jesuítas esforçaram-se muito para


que houvesse entendimento pacífico entre colonos e os
nativos, e que a paz cristã prevalecesse na colônia destas
terras de Santa Cruz.
Há tempos idos escravizar povos vencidos era
prática corriqueira em várias partes do mundo. No tempo
de Nosso Senhor Jesus Cristo, lá na Judeia, existiam
escravos. O Império Romano escravizava povos vencidos
e até na Grécia da democracia e dos filósofos havia
escravos. No continente africano tribos vencidas eram
submetidas pelas tribos vitoriosas e se tornavam
escravas. A comercialização de escravos constituía-se,
pois, um hábito de muitos povos.
Ao constituir suas colônias Portugal também usou
muito a mão de obra escrava, especialmente comprando

30
escravos africanos. Cá na sua colônia americana não foi
diferente. Os indígenas sofreram tentativas de
escravização tanto pelos portugueses passantes como
pelos próprios colonos.
E uma das lutas insistentes dos jesuítas foi impedir
que isso acontecesse sem, contudo, demonizar o colono.
Trabalho árduo de convencimento pela doutrina católica e
de estabelecimento de aldeamentos conhecidos por
Missões ou Reduções, onde os indígenas estivessem
mais protegidos das tentativas de escravização.
Mas, outras obras desses padres também foram
importantes para que a colônia se desenvolvesse com
base nos preceitos católicos, como foi a fundação de
cidades – São Paulo, por exemplo – e a construção de
escolas. Tudo sempre sob a cruz de Nosso Senhor Jesus
Cristo, tudo sempre voltado a estabelecer condições de
vida cristã.
Muitas cidades interior adentro tiveram origem numa
capela, donde o padre se esforçava para juntar sob a
proteção Divina as famílias dos colonos e os nativos que
por ali iam se achegando de mansinho.
Três desses padres destacaram-se por seus
empenhos em daqui fazer um lugar onde a normalidade
da vida cristã de vez fincasse suas raízes nas famílias
colonas e nos indígenas: Pe. Manoel da Nóbrega, Pe.
José de Anchieta e Pe. Antônio Vieira.
E o que foram esses ilustres jesuítas?
O Pe. Manoel da Nóbrega nasceu em 1517, em
Sanfins do Douro, Portugal. Estudou Filosofia e Direito
Canônico na Universidade de Coimbra formando-se aos
24 anos de idade.

31
Deus permitiu que a gagueira não o deixasse
realizar o sonho de ser professor e três anos depois o
induziu à Companhia de Jesus, que o traria a estas
distantes plagas já com 32 anos de idade.
E foi aqui que Deus lhe deu sua missão de vida.
Veio à frente de um grupo de jesuítas que, tão logo
desembarcados, iniciaram os trabalhos de catequese
junto aos pequenos ajuntamentos de patrícios e dos
primeiros colonos e, também, procurando contatar
indígenas com o mesmo fim.
Coordenou os trabalhos de catequese nas capitanias
de São Vicente, Porto Seguro e Pernambuco e teve
especial participação na fundação das cidades de
Salvador e São Sebastião do Rio de Janeiro.
Em Portugal não pôde ser professor, mas aqui, em
1554, juntou-se ao jovem Pe. José de Anchieta e
fundaram o Colégio de São Paulo, dando início ao que
viria ser a maior metrópole da América do Sul.
O educandário começou a atrair famílias que ali
matriculavam seus filhos. Filhos de patrícios, de colonos e
de indígenas que, naquela escola, sob a doutrina cristã,
começavam uma cultura de boa convivência entre os
diferentes elementos humanos que estavam formando a
colônia.
Os dois jesuítas fizeram muito por estas terras. Em
1563 firmaram um acordo de paz com os belicosos
Tamoios, que haviam se aliado aos invasores franceses e
preparavam um grande ataque às vilas de Santos e de
São Vicente. Pois Inglaterra e Portugal batiam-se contra a
França e Espanha há tempos, inclusive na disputa pelas
colônias estabelecidas noutros continentes. Em 1567 foi a

32
vez de ajudar a defender a baía de Guanabara contra os
franceses.
Mas, os embates da vida difícil por estas bandas
cobraram seu preço, e ainda cedo, aos 53 anos de idade,
ele faleceu no Rio de Janeiro, uma das cidades que
ajudara a fundar.
Seu legado à cristandade foi fincar por estas terras a
base duma cultura voltada à convivência pacífica entre
grupos humanos diferentes. As populações das cidades
que ajudou a fundar cresceram consolidando essa cultura
que perduraria por séculos, até a colônia se transformar
em país.
Seu colega de sacerdócio, o espanhol e também
jesuíta José de Anchieta, tanto fez pela colônia
portuguesa de além-mar que notabilizou-se como “o
Apóstolo do Brasil”. Desembarcou por estas plagas em
1553, com apenas 19 anos, junto com outros seis
jesuítas, encontrando-se aqui já estabelecido há quatro
anos o Pe. Manoel da Nóbrega.
O jovem Pe. Anchieta, disposto a integrar-se o mais
breve possível à vida da colônia, esforçou-se em aprender
o idioma dos indígenas, o tupi, em menos de um ano. Tal
empenho resultou na primeira gramática em tupi e nesse
idioma compôs poemas, peças teatrais e uma epopeia,
tornando-se assim um europeu pioneiro da literatura tupi.
Compactuando com o Pe. Manoel da Nóbrega,
dedicou-se à construção de igrejas, à fundação de
escolas e de cidades.
Da mesma forma que o colega o Pe. Anchieta
defendeu os indígenas contra as tentativas de
escravização, procurando catequizar tanto nativos como

33
colonos para, então, estabelecer-se na colônia uma
cultura cristã.
Apesar de sua origem espanhola, também participou
das lutas contra as tentativas de ocupação da colônia por
parte dos franceses.
Em São Sebastião do Rio de Janeiro, dirigiu por três
anos o colégio ali fundado por sua congregação e, a
seguir, em 1577, foi nomeado o Provincial (chefe maior)
da Companhia de Jesus na colônia, devido à sua
esmerada dedicação aos trabalhos nela desenvolvidos.
Como exímio literata escreveu as obras: “Os feitos
de Mem de Sá”, “Arte e Gramática do Idioma Tupi”,
“Cartilha dos Nativos”, “Carta da Companhia de Jesus”,
“Auto da Festa de São Lourenço”, “Auto da Visitação de
Santa Isabel”, “Poema à Virgem Maria”, “Cartas
Informativas” e um vasto acervo de textos sobre assuntos
variados relativos à colônia, à Companhia de Jesus e à
doutrina católica.
Faleceu em 1597 nesta sua terra adotiva e que por
ela se sacrificou.
O terceiro jesuíta que fez a diferença cá pela colônia
de além-mar foi o padre português Antônio Vieira, que
nela chegou ainda criança, com apenas 6 anos de idade,
em 1614. Portanto, apenas 17 anos após a morte do Pe.
José de Anchieta.
Nessa época os reinos de Espanha e Portugal
estavam unificados (1580 a 1640).
Logo que a família fixou residência, ele começou a
estudar no Colégio dos Jesuítas de Salvador. Aos 15
anos de idade ingressou na Companhia de Jesus, mas no
ano seguinte teve de se refugiar no sertão devido à

34
invasão holandesa a Salvador, a capital da colônia. E foi
nesse sertão que ele começou o seu trabalho missionário.
Já em 1625, com 17 anos de idade, fez seus votos
de castidade, pobreza e obediência, preparando-se para o
exercício do sacerdócio, e a seguir ficou encarregado de
escrever, em latim, a “Carta Ânua”, um relatório anual da
Província dos jesuítas ao superior-geral em Roma.
Com somente 20 anos de idade lecionou Retórica no
colégio de Olinda, e seis anos depois foi finalmente
ordenado sacerdote em Salvador.
Mas, não parou por aí, pois além de Teologia,
estudou Lógica, Matemática e obteve o título de Mestre
em Artes. Em 1638 foi nomeado professor de Teologia do
Colégio Jesuíta de Salvador.
Filósofo, escritor e orador, também defendeu os
indígenas contra as tentativas dos portugueses e colonos
de escravizá-los. Trabalhou na catequização das famílias
colonas e dos indígenas e por estes foi denominado
“Paiaçu”, que em tupi significa Grande Pai.
Quando Portugal ficou livre da Espanha lá esteve de
1641 a 1653, a serviço da coroa como diplomata.
Voltando à colônia dirigiu a Missão Jesuíta no Maranhão e
Grão Pará, e por lá escreveu o “Regulamento das
Aldeias”, também conhecido por “Visita de Vieira”, em que
fixou diretrizes às missões religiosas na Amazônia.
De 1654 a 1681 voltou a Portugal e lá travou
intensos embates com a Inquisição. Também foi a Roma
defender a canonização de mártires jesuítas.
Após essa longa estadia na Europa voltou para a
colônia como visitador-geral das Missões Jesuítas e
passou a se dedicar à escrita dos seus sermões, cartas e

35
da obra “Clavis Prophetarum”, uma interpretação profética
das Sagradas Escrituras.
Suas obras literárias, num total de 30 volumes, só
vieram a público recentemente, expondo um rico acervo a
respeito da doutrina católica na catequese realizada na
colônia, da constituição das Missões e sobre as
Escrituras.
Desde que iniciaram seus trabalhos na colônia, os
jesuítas defenderam a boa convivência entre os grupos
humanos que passaram a nela viver, portugueses,
colonos (já nascidos por estas terras) e indígenas. Para
tanto, não mediram esforços no intuito de impedir que os
indígenas fossem escravizados e procuraram instalar
colégios que promovessem o convívio pacífico às novas
gerações da colônia.
Pode-se dizer que eles foram responsáveis pela
implantação das pequenas paróquias pela colônia, pois
onde estabeleciam suas Missões, Reduções e povoados
levantavam uma igreja no centro, donde iam se
espalhando as moradias e pequenos comércios. Deles é
que se desenvolveu a cultura da cordialidade e
entendimento entre os povos que construíram o que viria
a ser o maior país do continente... e tudo com base na Fé
Cristã.
E apenas 20 anos após o falecimento do Pe. Antônio
Vieira, os trabalhos e preces dos jesuítas por estas plagas
foram premiados por Nosso Senhor Jesus Cristo, por
meio da presença de Sua Mãe Santíssima na figura de
uma singela imagem encontrada no fundo dum rio há
mais de 200 léguas a sudoeste da capital da colônia,
Salvador: Nossa Senhora da Conceição Aparecida.

36
NOSSA SENHORA DA CONCEIÇÃO APARECIDA
INICIA UMA NAÇÃO NA FÉ CRISTÃ

Pois é, só duas décadas depois que o último dos


três grandes jesuítas - o Pe. Antônio Vieira - seguiu rumo
ao Paraíso, três pescadores que não estavam
conseguindo pegar nenhum peixe em suas redes, içaram
do fundo do rio Paraíba do Sul, nas proximidades da
cidade de Guaratinguetá, no Vale do Paraíba, o corpo
duma imagem de Nossa Senhora e, em outra lançada de
rede, pescaram a sua cabeça.
Após tal feito espantaram-se com o que veio depois:
peixes, muitos peixes. Daí em diante pescaram mais
peixes do que podiam esperar naquele dia em que, até
então, não tinham dado o ar da graça.

37
Já em terra limparam a imagem e ajustaram a
cabeça ao corpo. Era uma figura simples em estilo
barroco, feita em terracota.
Levaram-na para uma das casas e, sabendo do
achado, o velho pároco de Guaratinguetá, Pe. José Alves
Vilela, construiu uma pequena capela para acolher os
devotos cuja quantidade foi crescendo dia a dia.
O povo das redondezas, quando tomava conta do
acontecido, pegava rumo para visitar a imagem, rezar e
pedir graças. E a quantidade de visitantes devotos foi só
aumentando. Tanto que 28 anos depois teve de ser
construída uma capela maior, desta feita no topo do Morro
dos Coqueiros, à vista do rio Paraíba, onde encontraram a
santa.
Com a capela grande bem no topo, o morro mudou
de nome e passou a se chamar Aparecida, pois Nossa
Senhora ali tinha sido aparecida como que do nada. Daí,
o nome Nossa Senhora da Conceição Aparecida.
O padre, vendo que a romaria à imagem continuava
aumentando, já no ano seguinte resolveu iniciar a
construção de uma igreja que comportasse todos que a
ela recorriam. É a igreja que até hoje está lá no topo do
morro.
Assim, desde 1717, Nossa Senhora Aparecida
passou a cuidar, atender e unir em oração o povo destas
terras de Santa Cruz, tornando-se o primeiro referencial
de cunho axiológico à nação brasileira.
Em pouco tempo as graças por ela alcançadas
fizeram aumentar ainda mais a quantidade de romeiros
que, então, chegavam de todos os cantos da colônia.
Gente vindo de longe, de centenas de léguas e por
todo tipo de caminho, gente com muita fé e esperança em

38
ser atendido, em ter ali junto à santa um alento para
continuar a trilhar pelas dificuldades da vida.
Um povo que se tornou u’a nação à sombra do
manto azul de Nossa Senhora Aparecida, um povo
abençoado por uma santinha que veio nas malhas duma
rede de pesca lá do fundo do rio.
Finda a romaria o caminho de volta era feito com
revigorada fé e esperança de que a vida continuaria na
sua toada normal até que o Criador determinasse a hora e
o jeito de encontrá-Lo no Paraíso.
Assim, foi naquela primeira Santa Missa celebrada
logo na chegada dos portugueses por aqui, no esforçado
trabalho catequético dos jesuítas nos dois primeiros
séculos da colônia e a seguir na proteção de Nossa
Senhora da Conceição Aparecida ao povo que viria a
construir u’a nação, que este país se formou sobre a base
da fé cristã, que estabeleceu uma normalidade no viver
duma gente simples, trabalhadora e com esperança de,
ao final, cair nas boas graças do Criador.
Quem poderia imaginar que uma imagem singela,
quebrada, colhida do fundo dum rio, pudesse angariar
romarias que somam milhões de peregrinos vindos de
todos os lugares?
Que a Mãe de Deus por ela multiplicasse as graças
que alcançariam uma infinidade de necessitados?
Que conseguiria se tornar na mais efetiva
espontânea expressão dum povo?
Aquela imagenzinha era um grão de mostarda
quebrado e descartado no fundo do rio e que, encontrado
por gente humilde, foi por ela adubado com a fé e, então,
ele vingou, cresceu numa frondosa árvore e esparramou
sua sombra por todas as terras de Santa Cruz.

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Nenhum fator político ou econômico, mormente
imposto pelo poder do Estado, conseguiu superar a
adesão espontânea do povo a um referencial que o une
em nação... e o faz pela fé.
E esse povo demonstra sua inabalável crença nela
no hino que a louva:

“Viva a mãe de Deus e nossa/ sem pecado concebida,


viva a virgem imaculada/ ó Senhora Aparecida.
Aqui estão vossos devotos/ cheios de fé incendida,
de conforto e de esperança/ ó Senhora Aparecida.
Nossos rogos escutai/ nossa voz seja atendida,
do imo d’alma vos pedimos/ ó Senhora Aparecida.
Virgem santa, virgem bela/ mãe amável mãe querida,
amparai-nos, socorrei-nos/ ó Senhora Aparecida.
Protegei a Santa Igreja/ ó mãe terna e compadecida,
protegei a nossa pátria/ ó Senhora Aparecida.”

É, pois, estas terras abençoada por Deus desde seu


início, quando da primeira Santa Missa, depois pelo
diuturno trabalho dos jesuítas e, por fim, pela aparição da
Santa Mãe de Deus que uniu esse povo numa nação
cristã.
Desse jeito a vida por estes recantos foi funcionando
por muito tempo. Tempo que começou a mudar em
meados do Século XVIII, quando as ideias iluministas
atiçaram na civilização ocidental o fogo do pecado
original: o homem sem Deus, a criatura que diz não ter
Criador, o antropocentrismo, enfim, o egocentrismo se
assenhorando das mentes cochichando “o homem, por si
só, pode tudo”.

40
Umas quatro décadas depois que Nossa Senhora
Aparecida surgiu nestas terras e começou a juntar cada
vez mais gente ao seu redor, o iluminista Marquês de
Pombal, então Secretário de Estado do reino português,
expulsou os jesuítas da colônia, terminando assim o
trabalho deles por aqui, embora a fé cristã implantada
pela Companhia de Jesus e por Nossa Senhora
Aparecida já estivesse consolidada na cultura dos muitos
vilarejos socados nestas distantes plagas do Novo
Mundo.
Mas, começa aí o purgatório da Igreja cá nestas
terras que, com o contínuo avanço do ateísmo, só foi
piorando com o tempo.

41
OS VELHOS PÁROCOS X PROGRESSISMO NA
IGREJA

Primeiro tudo começou de mansinho, sem alardes,


mas sob a desconfiança de qualquer pessoa de fé mais
atenta.
Nos meios ditos mais intelectualizados, as ideias
iluministas grassaram com mais avidez, já que neles a
soberba é mais comum e serve de ótimo adubo ao
egocentrismo... a vaidade é um dos pecados preferidos
do capeta.
A ideia de ser o homem o seu próprio construtor e
também do mundo colocou a Ciência como deus e a
Tecnologia como seu profeta.
Diante de tal concepção, as soluções aos mais
variados problemas da Humanidade viriam através da

42
Ciência e da Tecnologia. Portanto, o que não fosse
Ciência passou a não merecer nenhuma credibilidade...
inclusive a religião.
Claro que, uma vez o Criador sendo substituído nas
mentes das criaturas pela Ciência, o mundo descartava-
se do espiritual e passava a se apegar só ao material.
Mas, também o passado espiritual entrou no rol do
que se queria descartar. Como não dá para apagar as
lembranças, ele passou a ser visto como uma fase ruim
da Humanidade, a dita “idade das trevas” em oposição à
nova idade que surgia, a das “luzes”, do conhecimento
(ilusoriamente) pleno. Na verdade repetindo-se o velho e
conhecido pecado original, só que renovado.
E à medida que essas ditas sapiências humanas
foram passando aos laboratórios, às experimentações e
gerando muitos novos produtos tecnológicos, como que
corroborando o poder da Ciência, foi-se difundindo a
todos os segmentos da sociedade que este seria o
caminho certo a ser doravante seguido: o homem,
construindo a si e o mundo em que vive.
Os costumes foram mudando passo a passo, a cada
geração, dando tempo para que tudo se transformasse
em Ciência e que seus efeitos fossem então assimilados
progressivamente.
A caridade cristã, prova pessoal de abdicação da
matéria em prol do espírito, foi sendo substituída por uma
solidariedade social devida ao Estado e a associações
laicas. Portanto, sem o sentido original da caridade.
A pobreza deixou de ser de espírito para ser
somente a de matéria, ou seja, resolvida a falta de bens
materiais não existiriam mais pobres... nem de espírito,
claro.

43
E foi justamente essa distorção da caridade cristã
que começou a atiçar parte do clero da Igreja.
Sofrida com a situação de penúria material de muita
gente essa parte do clero, que parece não ter
compreendido bem a função espiritual da caridade cristã,
começou a deixar-se levar pelo canto da sereia do
materialismo.
Para ela a solução da pobreza material cumpriria a
missão cristã, embora não percebesse que solucionaria
apenas sua própria angústia perante as misérias
terrenas... quando muito.
Mas, faltava espaço suficiente dentro da Igreja para
que essa ala de angustiados e sedentos por resultados
concretos e imediatos do clero impusesse a ela o seu
próprio credo.
O Concílio Vaticano II surgiu-lhe como oportuna
ocasião para provocar mudanças tais que substituíssem a
verdadeira caridade cristã pela solidariedade social, a
entrega de si mesmo pelo assistencialismo coletivo.
Deus criou cada ser humano único, cada qual com
suas particularidades e dons, e iguais só perante Ele.
Contudo, doravante a igualdade seria estendida por essa
ala dita “progressista” também às circunstâncias
terrenas... e principalmente a elas. O bem espiritual, se
existente, ficaria totalmente dependente do bem material.
O amar subjetivamente ao próximo no lugar do amar
concretamente a Deus.
E mesmo essa pretensa igualdade, ou pretenso
amor ao próximo, devia acontecer por meio de instituições
públicas e filantrópicas, tendo a figura subjetiva do Estado
como tutor e financiador.

44
Sim, o Estado passou a ser um novo deus, o deus
do materialismo.
Sim, o Concílio serviu de locus aos tais
“progressistas” para que essas mudanças fossem
iniciadas na Igreja.
Sinais aparentemente inofensivos começaram a
aparecer:
Batina passou a ser coisa de burguesia;
O latim abandonado em prol de uma pretensa
aproximação com o povo;
Celebrações de frente para a “comunidade” (não
mais “fiéis”);
O sacrário relegado a um canto das igrejas;
Mesas de comunhão e confessionários descartados;
Cantando-se muito “amor” a Deus e nada à Justiça
Divina;
O inferno só para pecados “sociais”;
O purgatório sumiu;
O confessor virou uma espécie de terapeuta que
atende num escritório;
O padre passou a trabalhar para a “comunidade” e
não mais para Deus e daí... tem dia e hora para atender;
A discreta relação caridosa do bom samaritano com
seu viajante ferido foi substituída pelo alarde das ditas
ações sociais de gentes regidas por estatutos e
angariando “fundos”; e
A recatada fé individual virou tênue sombra da
euforia das “comunidades”.
Para completar, a vida contemplativa foi sendo
substituída por uma agitação à base de cantos e
movimentos, no intuito de expressar só alegria, porque,
mesmo sem a correção dos pecados, sem a penitência e

45
sem o sacrifício, todo mundo supostamente está salvo
pela cruz de Cristo e sem nenhum mérito pessoal, sem
nenhum esforço próprio. A Ressurreição sem a Cruz.
Aliás, os pecados individuais foram substituídos pelos
ditos pecados sociais.
Passou a ser comum ouvir que o mais importante
duma Missa é a “palavra” e não a Consagração
Eucarística, é o encontro da “comunidade” e não a
presença de Jesus Crucificado.
Os padres daí em diante ficaram mais por conta de
liderar movimentos do que de ministrar os Sacramentos -
a essência de sua função perante Deus.
O corpo da Igreja de Cristo passou a ser agredido
não mais pela violência exterior, como antes, mas agora
pela degeneração interior.
Porém, permaneceram os Lós, aqueles poucos
velhos párocos que resistem às Sodoma e Gomorra
atuais.
Aqueles que lá nas suas pequenas igrejas
continuam fiéis aos dois milênios dos ensinamentos de
Nosso Senhor Jesus Cristo.
Aqueles que insistem em preparar almas para o
momento da Justiça Divina... e nem que sejam bem
poucas essas almas.
Claro, são execrados pela cada vez maior
“comunidade” dos progressistas. São postos de lado,
igual ao Santíssimo na Hóstia Consagrada, colocados
num canto da Igreja, onde não tenham chance de expor
seu conservadorismo, seu tradicionalismo, sua fidelidade
ao Deus verdadeiro.

46
Mas, numas poucas sumidas paróquias lá estão eles
continuando junto à gente simples a missão que suas
vocações sacerdotais lhes impuseram:
Preparar almas para o momento da Justiça Divina,
fazê-las meritórias da Misericórdia de Deus, através dos
Sacramentos instituídos por Nosso Senhor Jesus Cristo.

47
OS VELHOS PÁROCOS, OS GRÃOS DE MOSTARDA

Relegados ao ostracismo dentro da própria Igreja, os


poucos velhos párocos, então alcunhados de
tradicionalistas ou conservadores pelas levas dos ditos
“progressistas” que ganharam força e espaço após o
Concílio, remoíam a frustração de não mais poder exercer
o sacerdócio de conformidade com a verdadeira doutrina
da Igreja fundada por Nosso Senhor Jesus Cristo.
Sob as ordens de superiores “progressistas”
mormente foram colocados em funções auxiliares sem a
prerrogativa de contestar, mas apenas de acatar a
avalanche das inovações que mais aproximavam a Igreja
do materialismo marxista do que do Espírito de Deus.

48
Os ainda resistentes e que assim não se
comportassem, disfarçadamente findavam escamoteados
do contato com as assembleias de fiéis, com o público
das igrejas.
Envelheciam reclusos num canto qualquer, como os
antigos ermitões. E igual aos ermitões, restou-lhes a vida
contemplativa, e nela as orações à sobrevivência da
Igreja passaram a ser diuturnas, intensas e apaixonadas.
Tanto as fizeram que Deus as recebeu de bom
grado e as atendeu.
Após quatro décadas submissos aos ditames dos
“progressistas” os velhos párocos se alentaram com o
Motu Proprio Summorum Pontificum do Papa Bento XVI
que, em 2007, decidiu: “Art. 5-§ 1. Nas paróquias, onde
houver um grupo estável de fiéis aderentes à precedente
tradição litúrgica, o pároco acolha de bom grado as suas
solicitações de terem a celebração da Santa Missa
segundo o rito do Missal Romano editado em 1962.”
Daí em diante aqui e ali começaram as celebrações
das Santas Missas no Rito Tridentino, as batinas
devagarzinho voltando a significar desapego e serviço
incondicional às almas de Deus, a vida contemplativa
voltando a ser praticada por alguns e priorizando-se a
prática dos Sacramentos.
Só em alguns lugares isso vem acontecendo, pois
restam bem poucos dos velhos párocos e as novas safras
advindas dos seminários sob ditame “progressista” nem
sabem do que se trata esse mui modesto volver às
milenares tradições católicas.
Mas, não é nada fácil recomeçar após tanto tempo
de descaminhos buscando a ilusão de que toda miséria
humana poderia ser resolvida aqui neste mundo e às

49
custas do próprio ser humano que, por vaidade, quis
negar seu Criador.
O caminho de volta a Ele é longo, penoso e
doloroso, pois é muito difícil ao ser humano aceitar que
errou e que se perdeu no tempo.
E ao clero da Igreja, a que Nosso Senhor Jesus
Cristo confiara a condução das almas às portas do
Paraíso, admitir o tremendo erro decorrente de sua
submissão ao canto da sereia do materialismo, torna-se
algo quase insuportável, tanto se apresenta o peso de sua
responsabilidade perante o Criador.
Durante todo esse tempo, o deus Ciência e seu
profeta, a Tecnologia, foram mudando o jeito de vida da
sociedade: a produção de uma infinidade de bens e
serviços requereu a estruturação de uma complexa
cadeia de produção, distribuição e consumo, que resultou
no adensamento demográfico em grandes cidades, onde
torrentes de facilidades, confortos e comodidades foram
atraindo multidões que viviam no campo.
E no campo a automação da produção agrícola e do
extrativismo dispensou levas de pessoas que, então,
foram em direção ao brilho deslumbrante das metrópoles,
onde havia de tudo e se fazia de tudo que o materialismo
ateu lhes proporcionava.
Nessas metrópoles o desnecessário e descartável
foi substituindo o imprescindível e o essencial, daí,
gerando a ganância por cada vez ter mais, mais
sofisticado e mais variado.
Para tanto, o tempo dispensado ao trabalho avançou
a passos largos e rápidos sobre o tempo em prol da
família... e de Deus.

50
Igrejas cada vez mais vazias e os templos dos novos
deuses, os shoppings, cada vez mais lotados. Domingo
deixou de ser o dia de assistir a Santa Missa e passou a
ser o dia de consumir supérfluos nos shoppings.
Igrejas cada vez mais acanhadas, com paredes
lisas, e shoppings cada vez mais suntuosos e cheios de
atrativos.
Nas igrejas celebrações cada vez mais barulhentas,
sem chance para momentos de introspecção, de
meditação, de conversa íntima com Deus, pois a
assembleia dos fiéis é movimento, é som, é a alegria
duma ressurreição sem passar pelo arrependimento, pela
correção, pela penitência, pelo sacrifício... tudo passa a
ser efusiva alegria porque, sem nenhum mérito, o ser
humano, guiado por um clero relativista, acha que o
retorno ao Paraíso já lhe está garantido... aliás, é pior!
Acha que está construindo um paraíso aqui e agora na
Terra, um paraíso essencialmente materialista, sem ao
menos considerar a efemeridade desta vida.
A desvairada ânsia pelo ter mais e melhor, por
melhores posições dentro das macroestruturas donde
emanam serviços, produtos, tecnologia, ciência e poder
absorve quase todo o tempo das pessoas e daí as
famílias vão se transformando em espectros surrealistas,
pai e mãe dedicados essencialmente ao trabalho fora, à
remuneração financeira e de status social e os poucos
filhos... quando ainda os têm, mal compensados por
trivialidades materiais.
A juventude encontrando motivação de vida em
redes sociais virtuais e em grupos de interesses em jogos
variados, ao invés de salutares relações de amizades em

51
associações cristãs que os possam conduzir ao
verdadeiro sentido desta vida finita.
Famílias sem filhos, bichos domésticos substituindo-
os, o amor substituído pela paixão, e quando ela se vai
procura-se em outra pessoa, e depois em outra, em
outra... pois o projeto de família como igreja primeira,
como instituição perene neste mundo, como locus de se
procriar e educar novos seres humanos que povoarão
este mundo e, depois, o Paraíso, foi abandonado quando
se abandonou Deus.
E a partir daí todo tipo de aberração passa a ser
possível, a violência cresce à medida que o verdadeiro
amor diminui e o ser humano se desumaniza, para grande
euforia de Lúcifer, o anjo caído que corrompe a criatura
humana para assim tentar atingir o Criador.
Em tais condições é muito difícil volver ao verdadeiro
Deus, cuja justiça requer que, antes da ressurreição e
volta ao Paraíso, haja a conversão, o arrependimento
contrito, a penitência, o sacrifício, a contemplação e a
entrega total à vontade do Criador.
Será que só mesmo lá naqueles cafundós socados
no interior, nas pequenas povoações os velhos párocos
conseguirão reaver algo do verdadeiro espírito cristão,
aquela normalidade do dia a dia que possibilita viver em
função da esperança na infinita Misericórdia Divina?
As criaturas de Deus que moram nas cidades
grandes estarão, assim, condenadas?

52
A IGREJA ANACRÔNICA

Parece que não é só questão de ficar alheio às


novidades da época, mas à medida que os prédios ao
redor duma igreja vão ficando cada vez maiores, ela vai
diminuindo de importância na vida das pessoas.
Parece que é um efeito da sociedade que vive só pro
trabalho e consumo e se esquece de vez de Deus... é
mesmo como se a Igreja dEle estivesse anacrônica.

53
Levanta-se cedo, faz-se a higiene pessoal
rapidamente, um também rápido “café da manhã” e já se
sai afobado pro trânsito insano e depois pro trabalho.
Nele enfurna-se com tudo e a manhã passa num
instante.
O almoço é ali na esquina e também bem rápido.
Retorna-se pro trabalho e nele novamente se esquece do
tempo. A noite se avizinhando e fim de expediente.
Passa-se num supermercado para comprar alguma
comida instantânea e volta-se para casa no trânsito
estressante.
Banho ligeiro e come-se aquela gororoba
industrializada, enquanto no celular passeia-se pelas
redes sociais e, daí, o cansaço do dia faz o ser
metropolitano arriar o esqueleto no colchão e só acordar
para um “novo” dia.
A família, quando existe, é pequena e todos
funcionam dentro do mesmo ritmo.... correria de um a
outro afazer, mal se falam, mal se entendem.
E assim os dias, os meses e os anos vão passando
num flash. Até que esse ser metropolitano descobre que a
vida passou e ele envelheceu... e está só.
Ele juntou bons imóveis, bons automóveis e bons
investimentos.
Sem mais perspectivas, passa daí a procurar numa
infinidade de viagens turísticas um sentido para o resto de
sua vida e depois... vem o tédio.
E a somatória de pequenas encrencas na saúde
começa a indicar que o corpo envelheceu e que se iniciou
o poente da efêmera existência terrena.

54
Pega-se esta descrição e multiplica-se por milhões e
o resultado é uma sociedade desumanizada e que vive
mecanicamente, sem um sentido transcendente.
A igrejinha sumida lá no meio do bairro, cercada por
grandes edificações, só não fica vazia o tempo todo
porque alguns daqueles seres metropolitanos vez por
outra se sentam em seus bancos para descansar um
pouco e, claro, sem se desgrudarem das redes sociais
estampadas em seus celulares.
O Santíssimo Sacramento, na Hóstia Consagrada,
fica sozinho por dias e semanas, lá numa capelinha
socada num cantinho da igreja... quase ninguém vai até lá
dar um “oi” ao Redentor da Humanidade.
Até padre se por acaso alguém quiser encontrar, tem
de ser com dia e hora marcada... estão muito ocupados
com outros afazeres.
E a danada da morte um dia bate à porta e a alma
deixa o corpo para apodrecer, vai ter com Deus e daí ela
se assusta: “Uai! Então, Deus existe?”
Existe!... só que agora é tarde, você o ignorou por
toda sua vida terrena.
O ser metropolitano, urbano por excelência, viveu
em função de construir seu paraíso terrestre, tendo coisas
e ocupando posições.
Pois é, então como um velho pároco pode convencer
esses seres metropolitanos de que Deus existe, enquanto
ainda é tempo de eles se converterem, se penitenciar,
rezar, praticar caridade e fazer multiplicar os dons da
alma que o Criador lhes deu?
Com certeza não é tarefa nem um pouco fácil... é
tarefa possível só pela Graça de Deus. Sem ela qualquer
esforço será em vão.

55
Mas, é por isto que o velho pároco terá de bater os
joelhos no chão e rogar por esta Graça. Fazer com que no
imenso vazio de sua igreja Deus o veja miudinho e
humilde ao pé do sacrário rogando por ajuda.
Com a Graça e dedicando-se piedosamente às
celebrações das Santas Missas, ao atendimento de
confissões, às direções espirituais, aos batizados, aos
casamentos e às unções dos enfermos, devagarinho
algumas pessoas começarão a aparecer.
Primeiramente retraídas, passarão ligeiramente por
ali, mais por curiosidade ou até mesmo para descanso,
findarão por ouvir u’a Homilia que encaixa direitinho às
circunstâncias de sua vida e voltarão para ouvir mais um
pouco.
É um trabalho lento e gradativo, que exige muita
paciência e perseverança e não se pode querer fazer
mais do que o indispensável às almas que vão se
achegando de mansinho à Igreja, pois muitas
desconheciam até o que é ser cristão.
Por outro lado, também não dá para se fazer
concessões só por conta desse acolhimento, pois afinal
os Mandamentos da Lei de Deus sempre têm de estar em
primeiríssimo lugar.
Então, melhor ter pé atrás com a dita inculturação,
pois num escorregão a forma pode ser levada mais em
conta do que conteúdo da Fé.
Ora, se para Deus é preferível poucos com muita
qualidade do que muitos com pouca qualidade, e se a boa
qualidade do cristão se mede é pelo cumprimento a todos
os Dez Mandamentos... sem exceção, então está aí o
foco que não se pode perder.

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Se ao prazo de um bom tempo, um velho pároco
numa igreja dessas rodeadas de prédios grandes
conseguir um pequeno grupo de fiéis que mal ocupa as
fileiras dianteiras dos bancos da igreja, mas que sejam
fiéis de verdade, então pode-se dar por satisfeito...
cumpriu sua missão.
A Igreja vive dos Dez Mandamentos da Lei de Deus,
que são imutáveis no tempo, porque foi o próprio Deus
quem os fez, e Ele é atemporal.
O que Ele diz é para sempre, independente dos
modismos mundanos.
Deus fez o homem à imagem Dele e não à imagem
de cada época terrena.
A Igreja vive dos Sete Sacramentos – Batismo,
Confissão, Eucaristia, Crisma, Matrimônio, Ordem e
Unção dos Enfermos – que são instrumentos de Deus a
esta vida.
A inserção no rol dos redimidos, o arrependimento e
a penitência, a Eucaristia em que se recebe no nosso
corpo humano Nosso Senhor Jesus Cristo, a confirmação
do batismo com plena consciência, a união indissolúvel
em família para que o Céu seja povoado de criaturas de
Deus purificadas, a entrega total no sacerdócio ao
trabalho de Deus junto às Suas criaturas humanas e,
então, a bênção final a quem logo estará à mercê do
Juízo e da Misericórdia Divina.
A Igreja vive dos seus membros e, em especial, de
sua cabeça que é Nosso Senhor Jesus Cristo.
Membros que têm de viver pela oração ao Redentor
em todos os momentos destas suas vidas, seja no lar, no
labor, no lazer... cumprindo a vontade do Criador.

57
É a essência da Igreja, é a sua vida nesta Terra, é
do que ela precisa para cumprir a sua finalidade neste
mundo: membros fiéis ao que emana de sua cabeça...
Nosso Senhor Jesus Cristo!

58
A MORTE, O QUARTO CAVALEIRO DO APOCALIPSE

threadless.com

Sim, a Morte é o último dos Quatro Cavaleiros do


Apocalipse. Mas, ela tem uma vantagem sobre os outros
três – Peste, Guerra e Fome: não precisa de esperá-los,
ela atua independente deles... e desde sempre.
Do dia em que toma consciência de sua vida cá
neste planetinha sumido nos confins do universo, toda
criatura humana descobre que vai morrer... crendo ou não
que a morte é consequência do pecado original.
Só isso bastaria para ela desesperadamente
procurar cumprir a vontade do Criador até o seu último
instante aqui. Mas, não!

59
O ideário iluminista – sem dúvida uma baita obra do
capeta – tem a capacidade de convencer muita gente de
que a felicidade é aqui e agora neste mundo mesmo...
sem Deus.
Chegar aos 100 anos de idade com um corpo de
fazer inveja a muita gente de meia idade passou a ser a
meta dum monte de humanos, cujo objetivo de vida é aqui
viver seu paraíso regado de prazerosas comodidades e,
ao chegar ao fim, iludir-se numa continuidade através de
grandes e destacados feitos que, de fato, quando muito
só atrasarão seu total esquecimento. Mas, é certo que
serão esquecidos... os feitos e seus autores.
Os mais novos vão substituindo os que morrem e
repetem, e cada vez de forma piorada, as ilusões das
gerações passadas. E a principal delas é a ilusão de que
existe um paraíso terreno e que a morte é algo distante.
Mas, a morte chega para todos, mesmo que se
tenha um corpo aparentemente juvenil. E daí, crendo-se
ou não, estar-se-á perante o juízo do Criador que, então,
cobrará a multiplicação dos dons espirituais com que
proveu as almas humanas:
- Acreditou piamente em Deus e viveu conforme Sua
vontade, especialmente através da Eucaristia?
- Procurou o arrependimento e a correção para fazer
jus à Misericórdia Divina?
- Desprendeu-se do lastro material em prol da vida
eterna?
- Praticou a caridade cristã ajudando o próximo à
conversão, à correção e ao merecimento da Divina
Misericórdia?
- Enfim, o que fez durante esta vida que justifique o
Criador lhe abrir as portas do verdadeiro Paraíso?

60
Não, nada disso! Não deu tempo. Muito trabalho,
muitos projetos, muitas reuniões, muita vida social, muitas
viagens. Pouco tempo para família, pouco tempo para ter
e criar filhos, pouco tempo para ajoelhar-se diante dum
sacrário numa igreja, pouco tempo... ou nenhum tempo
para crer em Deus.
Mas, por mais veloz que seja a Ferrari vermelha –
fruto de tanto trabalho – ela é facilmente alcançada pelo
corcel fumegante em que a morte galopa assaz lépida,
brandindo sua foice rumo ao inconsequente humano que
lhe tenta fugir. E num só e certeiro golpe, ela lança o
coração do fujão aos pés do juízo de Deus. E agora?...
Urge, pois, que se faça uma minuciosa revisão do
que se viveu e a coloque à apreciação da consciência,
medindo-a perante os Mandamentos de Deus. Afinal,
pode-se até não ser aquele trabalhador que foi contratado
à primeira hora e nem à segunda ou terceira... mas, quiçá
seja o da última hora. Que ainda haja tempo de
desencavar o talento escondido e o fazer render ao seu
dono, Deus.
E no momento dessa dificílima virada na vida, nada
melhor do que poder contar com um velho pároco, desses
poucos ainda sempre disponíveis aos arrependidos.

61
CONCLUSÃO

O velho pároco tem sido um agregador das famílias


cristãs, que o têm como um referencial seguro para a
prática da Fé.
A família cristã é a pequena igreja da qual se terá de
prestar contas a Deus, pois ela é o talento que precisa
render em virtudes às criaturas humanas que as
desenvolvem.
Essas criaturas então virtuosas é que povoarão o
Céu, conforme o projeto do Criador. Portanto, a
responsabilidade das famílias cristãs é enorme perante
Ele.
Para fazer frente e vencer as infindáveis tentações
modernas voltadas às suas desagregações, elas têm de
se fortalecer e elas se fortalecem ligando-se umas nas
outras. E o que as liga é o velho pároco através dos
Sacramentos, da catequese e do diuturno atendimento a
cada uma delas. O velho pároco que, inspirado pelo
Divino Espírito Santo, lê os corações de seus fiéis,
compreende suas angústias e os orienta como carregar
suas cruzes.
Humildade, simplicidade, serviço, firmeza na fé,
santidade... assim equipado o velho pároco une as igrejas
familiares em torno de si para resistirem às tentações do
mundo moderno e então encaminhá-las para Deus.
Que venham mais novos velhos párocos, as famílias
cristãs muito necessitadas agradecem.

62
UM NOVO VELHO PÁROCO
PARTE 2

PELAS SENDAS DO ABARÉ*

Ele veio lá das bandas do rio Paranaíba e findou


chegando nas Sendas do Abaré, depois de passar por
dois seminários diocesanos, estudar em Roma e na 1
1
Sendas do Abaré é o nome da pequena cidade fictícia onde se desenrola
este conto e que, propositalmente, significa “Caminhos do Padre” (Abaré no
tupi significa Padre, conforme o “Pequeno Vocabulário Tupi-Português”, do

63
Espanha, e de ter cuidado d’algumas paróquias ali pelo
sertão goiano.
Pe. Genésio de Ligório apeou por ali por obra e
graça de seu prelado Dom Sebastião José de Carvalho e
Pombal, até como jeito de aquietá-lo num canto donde
não muito incomodasse a toada da prelazia.
Foi logo recebido pelo mui solícito sacristão Élcio
Generoso, que há muito se dedicava aos variados
serviços da paróquia e, portanto, conhecia
minuciosamente tudo que nela se passava.
O lugarejo ficava socado no meio duns morros que
vertiam água em abundância pelas muitas nascentes
espremidas nos grotões de mata fechada.
Aquele recanto começou como pouso de tropeiros
que ali pernoitavam à beira dum ribeirão de águas
fresquinhas. Quando os cascos das mulas foram trocados
pelos pneus dos carros, o lugar parou no tempo e só teve
novo embalo com a criação de gado e plantação de
banana.
Os poucos quarteirões abrigavam talvez um terço da
população, já que a maioria dela espalhava-se pelas
propriedades rurais miúdas engastadas nas ladeiras dos
morros que, de tantos, chegavam a sumir no rumo do
horizonte.
Já na chegada o padre foi percebendo que sua nova
paróquia tinha mais jeito de roça do que de cidade, coisa
difícil de se encontrar numa época dessas. Mas, agradou-
lhe aquela maneira matuta do lugar.
A posse como pároco dali aconteceu logo após a
sua primeira missa, rezada com certa solenidade e com a
presença do prelado Dom Pombal.
Pe. A. Lemos Barbosa, publicado pela Livraria São José – RJ, 1951).

64
Ainda na sacristia foi abordado por uma senhora
bem apessoada, bem vestida e com ares de autoridade...
e era. A Drª Gilma Normanda era a delegada de polícia
local e gostava de assim ser reconhecida.
- Sua bênção, padre. O senhor é muito bem-vindo.
Sua experiência na polícia lhe dizia que aquele
padre de batina preta, chapéu de coco e vozeirão que
enchia a igreja toda, embora ainda novo, era daqueles
dos antigamentes, raros de se encontrar... e ela tinha
gostado disto.
Pe. Genésio olhou para aquela mulher de meia
idade, porte acima da média, olhar firme e jeito decidido, e
ficou impressionado que ali o cargo de delegado fosse
ocupado por aquela mulher. Contudo, respondeu
cordialmente agradecendo:
- Deus abençoe a senhora. Obrigado pelas boas
vindas. Sou o Pe. Genésio de Ligório, o novo pároco.
Mas, assustou-se quando ela, de dedo em riste, o
corrigiu imediatamente:
- Senhora não! Senhorita! Mas, pode me tratar por
“doutora”.
E não dando tempo para que do espanto do padre
pudesse sair uma resposta, foi logo emendando:
- Mas, é que além de delegada eu também divido
com o sacristão os serviços aqui na igreja. Cuido da
agenda do nosso pároco e mantenho limpo e organizado
tudo aqui na paróquia. O senhor não precisará se
preocupar com nada. Poderá se dedicar às celebrações
das Missas e às confissões sem se preocupar. Do resto
cuidamos eu e o Élcio.
O padre logo entendeu tudo... ela é quem mandava
por ali, inclusive na igreja. Deu um jeito sutil de descartar

65
seus préstimos logo de início, já prevendo ali uma
possível dor de cabeça:
- Agradeço sua gentileza, Drª Gilma, mas cheguei
hoje e ainda não tomei pé da situação. Amanhã vou me
reunir com o Élcio para saber como andam as coisas por
aqui e, então, se houver necessidade, recorrerei à
senhora, está bem?
Boquiaberto ficou foi com a resposta dela e já
seguida de rápida despedida:
- Está certo, padre Genésio, amanhã cedo estarei
aqui para a reunião. Daí a gente vai se conhecer melhor e
colocarei o senhor a par de tudo aqui dessa cidade.
Então... sua bênção e até amanhã.
Levou a mão espalmada à testa prestando
continência ao atônito padre e, antes que ele retrucasse,
ela deu meia volta e rapidamente saiu pela porta da
sacristia.
O sacristão, terminando de ajeitar os paramentos no
armário, franziu o cenho, olhou para o padre e deu um
sorriso disfarçado com o canto da boca.
- Escute, essa mulher é sempre assim?
Quis saber o padre.
- É o jeito dela. E é sempre do jeito que ela quer.
Respondeu o sacristão. E completando:
- Aqui ela só não manda no prefeito e no “coronel”.
Mas, vira e mexe tem um arranca rabo entre eles.
- Ah, sim... tem o prefeito. Preciso que você me
apresente a ele tão logo seja possível.
Lembrou-se o pároco de que tinha por obrigação
conhecer a mais alta autoridade do lugar.

66
- Ele é prefeito novo, foi eleito agora. Ele era
presidente do Sindicato dos Agricultores e é cunhado do
“coronel”, mas não se dá muito bem com ele.
- Tudo bem! Trataremos disso depois. Agora quero ir
para a casa paroquial e descansar um pouco, pois
amanhã teremos muita coisa para fazer... não se esqueça
da reunião.
- Não me esquecerei. Amanhã cedo estarei por
aqui... sua bênção, “seo” padre.
E logo que saiu o sacristão, o Pe. Genésio enfim
pôde relaxar um pouco em seus aposentos na casa
paroquial.

O PÁROCO E O PREFEITO

Noite tranquila, sono pesado e merecidamente bem


relaxante. Mal a aurora deu a ar da graça, o pároco já
estava ajoelhado no genuflexório do seu quarto fazendo
suas orações matinais.
Rezou a Missa contando com poucos e ainda
curiosos fiéis. E enquanto tirava os paramentos na
sacristia, o Élcio lhe comunicou que o prefeito o estava
esperando na sede da prefeitura para o café da manhã.
Assim, logo seguiram os dois para o prédio da
administração pública que ficava no canto da praça.
Lá chegando foram recebidos pelo próprio prefeito
que foi logo cumprimentando:
- Bom dia “seo” padre. Gênio Brisolla, prefeito da
cidade, às suas ordens.

67
O sacerdote retribuiu o cumprimento e foi convidado
a entrar e tomar lugar à mesa oval numa pequena
varanda da lateral do prédio.
Mesa posta e o padre abençoa os presentes e a
refeição. Foi quando entra no recinto uma senhora
gorduchinha e toda sorridente e que também tomou
assento à mesa, e foi o prefeito quem fez as
apresentações:
- Ah, “seo” padre, esta é a nossa primeira dama, Dª
Berlinda Graça Brisolla.
Continuando sorridente, Dª Berlinda não se fez de
rogada:
- Sim, “seo” padre, sou a esposa do Gênio. Prazer
em conhecê-lo.
- O prazer é meu, Dª Berlinda. Agradeço por me
receberem com este apetitoso café da manhã.
Então, o prefeito pôs as cartas na mesa:
- “Seo” padre, na nossa cidade tivemos aí uns
párocos desses modernos, gente muito boa, sempre
disposta a ajudar e afinados com as ideias da gente. E eu
espero que a prefeitura possa continuar contando também
com a ajuda de sua distinta pessoa.
- Claro, senhor prefeito, no que eu puder ser útil à
cidade estarei sempre disposto a ajudar. Mas, minha
função será mais dentro da igreja mesmo. Não sou muito
de me envolver com questões políticas.
Procurou esclarecer assim como pretendia tocar a
paróquia, sem envolvê-la com a administração pública.
- É... o que o senhor falou está bom para mim. Mas,
sendo terreno da prefeitura a praça onde está a igreja,
acho que vez por outra vamos ter de tratar de uns
assuntos de nossos interesses.

68
Tomou um fôlego e completou:
- Mas, não se preocupe... tudo tem seu tempo e sua
hora. Quando a gente precisar de resolver qualquer coisa
sobre a praça, vamos fazer de comum acordo.
Pe. Genésio olha para o sacristão procurando algum
sinal donde está se metendo. Contudo Élcio apenas
entope a boca com pão de queijo e café e faz de conta
que não está ouvindo nada.
Assim, o sacerdote deu uma resposta evasiva:
- Tudo bem, senhor prefeito. Contudo, parece-me
que a igreja já é bem antiga, ou seja, ela está lá na praça
há um bom tempo e, então, é porque a prefeitura e a
paróquia têm se dado muito bem nesta questão.
O prefeito Gênio não disfarçou o sorriso e disse:
- Sim, a prefeitura e a paróquia sempre andaram de
mãos dadas e estamos pensando em aproveitar ainda
mais essa convivência boa, “seo” padre. Mas, como já
disse, tudo ao seu tempo, né?
E para que o pároco não ficasse muito curioso,
deixou o assunto de banda e apressou-lhe um convite:
- Eu gostaria de lhe apresentar o “coronel” Cezar.
Um cunhado meu. É pessoa muito influente na cidade.
Dono de muitas terras, já foi prefeito. É meio turrão, mas a
gente consegue alguma ajuda dele quando a prefeitura
precisa. Que tal amanhã depois da missa irmos lá na
fazenda? A “comadre” Alexandrina, mulher dele, faz um
bolo de fubá muito gostoso, o senhor vai gostar, padre.
Pe. Genésio pensativo responde:
- Bom... hoje tenho de conversar com o Élcio sobre
as coisas da paróquia, tomar pé da situação toda. A
delegada também ficou de ir lá na casa paroquial. Mas,

69
acho que amanhã dá para ir lá conhecer o “coronel”
Cezar.
Quando o pároco disse que se encontraria com a
delegada o prefeito se mexeu todo na cadeira, esticou o
pescoço, coçou a testa, ajeitou o bigode, ficou sério, e
apressado comentou e fez a advertência:
- A delegada vai lá com o senhor? Êita, mas essa
mulher não perde tempo mesmo. Cuidado, “seo” padre!
Essa aí é uma que gosta de controlar todo mundo... até a
igreja, viu? Se o senhor num botar freio ali a sua igreja vai
voltar no tempo.
Recompondo-se um pouco, o prefeito enfim voltou
aos sorrisos, amenizou o clima e acompanhou o pároco
até à saída, onde dele se despediu procurando mostrar a
todos os passantes por ali que já se entendia bem com o
novo pároco do lugar.

REUNIÃO COM O SACRISTÃO

Ao chegar à casa paroquial Pe. Genésio, curioso,


pergunta ao sacristão:
- Élcio, deu-me a impressão que a delegada não é
do agrado do prefeito... é isto mesmo?
O sacristão se ajeitou numa banqueta, passou a
mão pela cabeça, torceu a boca e tentou resumir a
novela:
- Bem, “seo” padre, é a política, né? A Drª Gilma é
assim mesmo, mandona, quer controlar tudo. Ela é das

70
antigas, não gosta dessas coisas moderninhas... e é
como o prefeito falou. Por ela a igreja voltava a ser como
era antigamente.
E olhando para o padre, meneou a cabeça e
completou:
- Mas, acho que só porque o senhor usa a batina
preta o tempo todo, ela já está achando boa a sua vinda
para cá. E também porque as Missas que o senhor
celebrou foram mais no estilo antigo, sem essas
inovações dos padres de hoje. Ela gosta disso.
Pe. Genésio entendeu bem o recado: a delegada
postava-se como uma espécie de guardiã da moral e dos
bons costumes, inclusive em termos de igreja. E, então,
perguntou ao sacristão:
- E então o prefeito não concorda com essa postura
da delegada... por quê?
Élcio, olhando pela janela para o prédio da prefeitura
lá no canto da praça, comentou em tom de segredo:
- Vixe, “seo” padre! A encrenca está aí. O prefeito
parece ser gente boa, amigo de todo mundo... tipo
político, sabe como é? E sempre ele foi assim, mesmo
quando ainda era presidente do sindicato... amigão,
tapinha nas costas de todo mundo... mas, punhaladas
também.
E sentando-se bem de frente para o pároco, disse
quase que em segredo:
- O prefeito e o “coronel” Cezar, que o senhor vai
conhecer amanhã, estão de olho nesta praça... querem
aqui mais do que só a igreja. É o centro da cidade e
entendem que o terreno tem de ter melhor proveito...
querem um tal de centro de convivência ou conveniência,
sei lá. Coisa que serve para tudo... tudo mesmo.

71
E com ar ainda mais misterioso, finalizou:
- É por isto que o prefeito está lhe tratando bem. Ele
não quer o senhor do “outro lado”.
Como que adivinhando o padre arriscou o palpite:
- Do “outro lado”... quer dizer, do lado da delegada?
Élcio abriu o sorriso e assentiu com a cabeça:
- Isto, padre! Isto mesmo, ela é a oposição. Se não
conseguiram ainda é porque ela bate o pé e não deixa.
Pensativo o sacerdote perguntou:
- E nós, Élcio, como ficamos? Pois, pelo que você
está me dizendo, temos de um lado a Drª Gilma querendo
mandar na igreja e doutro o prefeito querendo o terreno
onde está a igreja... o prelado já sabe dessa situação?
O sacristão abre os braços e diz:
- Ora, o Dom Pombal tem hora que parece estar do
lado da delegada, e tem hora que parece estar do lado do
prefeito. Não dá para entender... acho que ele quer é ficar
de bem com todo mundo.
Pe. Genésio pensa consigo: “...se Dom Pombal
sabia dessa situação melindrosa para a igreja aqui em
Sendas, por que não me preveniu?”
Mas, tentando não se incomodar com aquele
assunto, pelo menos por enquanto, o pároco pergunta ao
sacristão sobre a situação administrativa da paróquia e o
rapaz procura, então, colocá-lo a par de tudo:
- Funciona assim: a limpeza, os arranjos, toalhas do
altar é da responsabilidade das senhoras do Apostolado
da Oração. A Zélia, minha esposa, cuida da casa
paroquial, da cozinha e de lavar e passar as roupas do
padre... é a única funcionária da paróquia.
E dando um suspiro, completou o relatório para o
pároco:

72
- Já o livro caixa, as compras e a catequese é tudo
por conta da Drª Gilma, ela não deixa ninguém se meter...
nem o padre.
Pe. Genésio quase deu um salto da cadeira:
- Como?!... Nem o padre?... Mas, é o padre que tem
de assinar tudo.
- Sim, assina sim... mas, só assina. Quem resolve
tudo é ela.
Finalizou dizendo que os fiéis dali tinham grande
devoção a Nossa Senhora, que não faltavam às Missas,
comungavam sempre e ajudavam a paróquia nas suas
necessidades materiais.
Mal tinha terminado e eis que adentra à sala a figura
portentosa da delegada Gilma e já batendo continência
pro pároco e cumprimentando do jeito dela:
- Sua bênção, Pe. Genésio. Estou aqui para a
reunião.

O PÁROCO E A DELEGADA

O padre e o sacristão se entreolham e é o pároco


quem dá a notícia:
- Mas, a reunião era só com o Élcio... e já acabou, e
até atrasamos, porque fomos tomar café com o prefeito.
A delegada parou no meio da sala, estufou o peito e
disparou:
- Como?!... O senhor não me esperou?... O senhor
não pode fazer isso. As coisas aqui não funcionam assim.

73
Esbaforida, danou a andar rápido dum lado pro outro
na sala, com as mãos cruzadas nas costas e não parava
de esbravejar:
- Eu tenho de tomar decisões. O senhor é novo aqui
e não sabe como as coisas funcionam nesta cidade... eu
sei! Eu sempre vivi aqui e sei quem é quem e como tudo
tem de ser. O senhor celebre as Missas, atenda as
confissões, faça os batizados e casamentos, e deixe o
resto por minha conta.
O pároco, espantado com a intempestiva reação da
delegada, tentava argumentar, mas ela não dava trégua:
- E pior ainda, padre, foi o senhor ter ido falar com o
prefeito sem me dizer. O senhor não tem ideia de como
essa ideia foi infeliz.
Voltando-se, então, para o sacristão, fulminou-o com
os olhos esbugalhados, levantou o dedo em riste,
entortando o canto da boca e quase rosnando
descarregou para cima do coitado:
- E você!... seu... seu... traíra de araque! Passou por
cima de mim e armou tudo, né, seu sonso? Teve de levar
ele logo lá no prefeito, naquele falso.
Para não deixar por menos, ainda deu a alfinetada
final:
- Gostou do bolo de fubá daquela Dª Berlinda,
gostou? Bolo de fubá... peixe morre é pela boca, padre.
E antes que ela continuasse com a descompostura
nos dois, o pároco deu um basta:
- Drª Gilma! A senhora é a delegada, mas na igreja e
na Paróquia mando eu. E eu quis me reunir só com o
Élcio, aceitei o convite para o café com o prefeito e,
depois, para amanhã ir conhecer o “coronel” Cezar, e

74
para isso não preciso de autorização nem do meu
prelado. É minha obrigação conhecer meus paroquianos.
A mulher subitamente estancou, levou a mão à testa,
ficou lívida e balbuciou:
- “Coronel” Cezar?!... O senhor vai na fazenda do
“coronel” Cezar?!...
Deu meia volta, marchou até o fundo do recinto,
olhou fixamente para o padre e com voz bem pausada,
disse:
- O senhor tem alguma ideia do que está para fazer?
Esse estrupício do Élcio informou ao senhor onde está se
metendo?
E batendo o punho no tampo da mesa e rangendo
os dentes esbravejou:
- Não vou deixar que vocês façam isso com a minha
igreja!... não vou!
Virou-se para o lado da janela, tomou fôlego e soltou
um lamento no meio dum suspiro profundo:
- E eu que, ao ver o senhor de batina preta e chapéu
de côco, pensei que Deus tinha me mandado um aliado...
mas, não.
E balançando a cabeça para os lados, foi saindo a
passos largos e cadenciados da sala, enquanto o Pe.
Genésio levantou-se da cadeira e rumou para sacristia,
sem antes, porém, dizer à delegada:
- Ah, Drª Gilma, depois traga-me o livro caixa e a
agenda, pois a partir de agora eu tomo conta deles, viu?
A mulher parou estancou como se tivesse batido
numa parede, arregalou bem os olhos e boquiaberta só
conseguiu balbuciar:
- Ahnnn?...

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O sacristão aproveitou a deixa e bem rapidinho saiu
junto com o pároco.

O PÁROCO VISITA O “CORONEL” CEZAR

Nem terminara a celebração da Missa matinal e o


prefeito já estava à porta da igreja com o velho jipe da
prefeitura esperando pelo pároco.
Avisado pelo sacristão, o Pe. Genésio tirou os
paramentos e tomou lugar ao lado do alcaide que, num
solavanco, arrancou no rumo da saída da cidade.
Sacolejaram por mais de duas léguas até a sede da
fazenda do “mandachuva” local, onde já eram esperados
pelo sorridente casal anfitrião.
- Bom dia, “seo” padre. Prazer em recebê-lo em
nossa casa. “Coronel” Cezar Raposo Aragão de
Alcântara, ao seu dispor.
Adiantou-se o todo poderoso do lugar nos
cumprimentos.
- Bom dia, “coronel” Cezar. Satisfação em conhecê-
lo e obrigado por nos receber.
Respondeu formal o pároco.
A seguir o anfitrião apresentou sua esposa:
- Esta é minha “patroa” Dª Alexandrina Brisolla
Aragão de Alcântara.
- Encantado, Dª Alexandrina.

76
Cumprimentou a mulher também de maneira bem
formal. Pretendia assim agir para evitar qualquer
aproximação prematura com aquela gente do poder.
Logo foram convidados para uma ampla varanda de
estilo colonial, mas muito bem conservada e toda
mobiliada em madeira de lei.
Refestelaram-se em confortáveis poltronas macias
revestidas de couro marrom dispostas em círculo e que,
aos seus lados, tinham mesinhas feitas de pranchas de
mogno encerado. Local propício a reuniões.
Já acomodados o gelo foi quebrado pelo próprio
“coronel” dirigindo-se ao seu cunhado prefeito:
- E então, Gênio, como vão as coisas lá na
prefeitura?
O prefeito tirou o chapéu, ajeitou o cabelo e deu uma
risadinha matreira como se já estivesse antevendo para
onde o papo ia descambar:
- É... a gente tá levando como pode, né? Do feijão
com arroz estamos dando conta. Mas, tem muita coisa
ainda por fazer para o povo. Tem uns projetos aí, porém
dependem de recursos que a prefeitura não tem.
Velha raposa da política e dos negócios, o “coronel”
olhou para o cunhado com um notório ar de deboche e
aproveitou para dar uma alfinetada:
- Aquele seu sindicato tem muito dinheiro, por que
não pega emprestado lá?
Depois de outra matreira risadinha o prefeito
devolveu:
- Não tem tanto dinheiro assim, não. O que tem é
para ajudar os sindicalizados. Mas, estamos pensando aí
numa parceria público-privada e, quem sabe, até com a
ajuda da igreja, não é “seo” pároco?

77
Opa!... O pároco, pego desprevenido, levantou o
cenho e procurou sair pela tangente:
- Lamento, gente, mas ainda nem me inteirei da
situação financeira da paróquia... não sei como as coisas
estão e, por isto, não posso dizer nada a respeito agora.
O velho fazendeiro, que não perdia ocasião para
cutucar na ferida, soltou como que sem querer:
- É, mas o senhor pode ter certeza de que aquela
delegada sabe muito bem como andam as finanças da
paróquia, viu?... e não só as finanças, mas tudinho e nos
mínimos detalhes.
Os pratinhos de pão de queijo e de biscoito de
goma, e o bule de café que acabavam de ser colocados
nas mesinhas salvaram o padre naquele round.
E como não se fala com boca cheia, o “coronel” ficou
sem a resposta malcriada que certamente ouviria do
padre.
Percebendo o rumo da conversa, Dª Alexandrina
tentou arejar o ambiente com um assunto mais ameno e
que, como gente da alta soçaite local, mais lhe
interessava:
- Padre, ouvi dizer que o senhor estudou na Europa,
é verdade?
Antes mesmo que o pároco pudesse responder, o
marido atalhou firme e bruscamente:
- Ora, mulher! Que pergunta mais despropositada...
o padre não está aqui para matar sua curiosidade, não.
Vai caçar o que fazer lá na cozinha, anda!
Toda sem graça, mas sem perder a pose, Dª
Alexandrina levantou-se, inclinou levemente a cabeça e
disse apenas:
- Com licença, senhores. Tenho coisas a fazer.

78
E sumiu por uma larga porta que dava acesso ao
interior da casa.
O silêncio foi quebrado pelo próprio “coronel”:
- Pois é, padre. O senhor viu que a igreja está
situada em local de destaque em nossa cidade? É o jeito
do povo daqui demonstrar apreço pelo nosso Grande
Arquiteto do Universo. Povo bom, povo de fé, o senhor
pode ter certeza disto.
O prefeito, ligeiro, completou:
- ...povo de muita fé. É gente simples, pobre e que
não sai daqui nunca. Por isto é preocupação da prefeitura
oferecer aos nossos cidadãos logradouros públicos que
possam frequentar com suas famílias, encontrar os
amigos, prosear e até se juntar para decidir sobre os
problemas da cidade. Este é um projeto que a gente quer
levar para frente, “seo” padre.
No fôlego do cunhado o “coronel” engatou e deu
sequência:
- É um projeto bom para todos. Por isto vai precisar
da união dos fazendeiros, da prefeitura e da igreja... o
senhor não concorda, padre?
No entanto, estando ainda o pároco com o
pensamento parado na forma com que o “coronel” antes
tratara o Criador, nem percebeu a pergunta a si dirigida e
foi preciso do prefeito tirá-lo do catatonismo:
- E então, Pe. Genésio, o que o senhor acha dessa
precisão da gente se unir para trazer benefícios ao nosso
povo?
Ainda tentando entender em que pé chegara o
assunto, o pároco foi evasivo:

79
- É... tudo isso depende de muita coisa. A Igreja em
todos os lugares sempre ajuda o poder público... no que
ela pode, claro. Mas, cada caso é um caso.
O velho “coronel” percebendo que aquele momento
ainda não era o de botar as cartas na mesa, optou por
mudar de assunto e começou a descrever como seus
ancestrais por ali chegaram, o quanto tinham feito pelo
lugar e o quanto ele mesmo havia triplicado as posses da
família, tornando-a a mais influente daquelas plagas.
E no final, para não deixar passar batido, deu mais
uma estocada no cunhado:
- A minha família é, pois, de gente batalhadora,
gente do campo, gente que enrica trabalhando do
nascente ao poente o tempo todo... só o cunhado Gênio
aí que preferiu se bandear para o lado desse tal de
sindicato, dando guarida para quem não quer trabalhar.
O prefeito se empertigou e procurou logo se
defender:
- Êita!... Nós já discutimos isso muito, compadre. A
coisa não é bem assim. O sindicato defende a peãozada
da exploração dos fazendeiros e...
Mas, antes que o prefeito inflamasse mais o seu
discurso, o “coronel” dirigiu a palavra ao pároco:
- Pe. Genésio, e quais são os seus planos aqui para
a nossa querida Sendas do Abaré, posso saber?
Sorrindo levemente o pároco resumiu como
pretendia tocar a paróquia dali para frente:
- Os meus planos são os planos de Deus, Dr. Cezar:
assistir aos fiéis nas suas necessidades espirituais,
preparando-os para o Reino de Deus. Para isto estarei
sempre na igreja celebrando as Santas Missas,
atendendo confissões, batizando, casando, catequizando

80
e atendendo a todos os necessitados da Misericórdia
Divina... é isto.
O velho fitou o vazio e, aquiescendo com a cabeça,
concluiu:
-É... isso daí tenho certeza que o senhor vai fazer
bem. Mas, lembre-se que a Igreja precisa estar junto com
o pessoal das fazendas e com a prefeitura. Só assim a
cidade vai para frente.
Para não espichar mais conversa, o pároco
levantou-se consultando o relógio e disse:
- Desculpem-me, mas tenho de ir. Preciso aproveitar
o tempo para colocar as coisas em dia.
O prefeito também levantou-se, despediram-se do
anfitrião e, claro, pedindo-lhe que agradecesse à ausente
Dª Alexandrina a gentil acolhida.
Aboletaram-se no velho jipe e rumaram aos
solavancos para a cidade.
Não só a poeira e o sol a pino incomodavam o
pároco, mas principalmente a arapuca em que o metera o
seu prelado.
Pouco depois que apeou frente à casa paroquial,
uma figura dum senhor esguio e bem trajado apresentou-
se à sua porta:
- Boa tarde, reverendo! Sou o Dr. Pompeu Gallardo
de Mantiqueira e Alterosa, juiz itinerante da comarca de
Santana, que atende a Sendas do Abaré. O senhor pode
me receber?
O pároco ficou curioso, pois ninguém o prevenira a
respeito de um juiz itinerante... e o que o dito queria dele
naquela visita inesperada?

81
O PÁROCO RECEBE O JUIZ ITINERANTE

Meio ressabiado com aquela ilustre visita, o pároco


convidou o juiz a tomar assento na minúscula sala da
casa paroquial.
- A que devo a honra da visita, meritíssimo?
Perguntou sem maiores delongas.
- Bem! Como estava fazendo o “balão” pela área da
Comarca de Santana e me falaram que Sendas do Abaré
tinha recebido um novo pároco, resolvi passar por aqui
para cumprimentar e conhecer o reverendo e, diga-se de
passagem, já me causou boa impressão.
O padre, mais curioso ainda quis saber:
- Me desculpe, mas nós acabamos de nos
apresentar e já foi suficiente para lhe causar boa
impressão?
- Sim, afinal hoje em dia é difícil conhecer um
reverendo que usa batina e, como a sua está bem rota na
barra, parece-me que é de uso constante, não é mesmo?
Quase que de imediato Pe. Genésio olha
encabulado para a barra de sua batina e meio sem graça:
- É... o senhor é muito observador, meritíssimo.
E tentando passar por cima do desconforto,
continuou puxando assunto:
- Fico feliz de podermos contar com um juiz aqui por
Sendas, mesmo que itinerante. E o meritíssimo tem
encontrado muitas questões por estas bandas?
Sentindo-se um pouco mais à vontade, o juiz fez
breve descrição de seu trabalho por ali:

82
- Não, até que não. Este é um lugar tranquilo, quase
nada acontece aqui de diferente. Sempre que passo por
aqui recebo todo apoio e atenção da delegada, a Drª
Gilma, que já me adianta tudo e tem realizado um bom
trabalho. É pessoa de nossa total confiança... aliás, ela
também recomendou-me passar aqui para conhecer o
senhor.
Sem disfarçar o sorriso, o padre meneou a cabeça e
comentou:
- Ah! A delegada... sim, claro, ela recomendaria.
Entendera a ladina jogada da Drª Gilma que ali
usava o juiz para mostrar que tinha do lado dela a força
do judiciário.
Para confirmar sua suspeita, embutiu num
comentário uma sutil pergunta:
- Na verdade, meritíssimo, eu mal cheguei aqui e
ainda estou tomando pé da situação. Hoje, por exemplo,
fui conhecer o “coronel” Cezar, um figurão destas bandas,
dono de muitas terras. O meritíssimo já ouviu falar dele?
O juiz se ajeitou na poltrona, torceu a ponta do
bigode grisalho e olhou bem para o pároco e sentenciou:
- Homem difícil, reverendo... muito difícil. Muito
esperto nos negócios e não mede esforços para
conseguir o que quer. Com ele é bom sempre ter um pé
atrás. Mas, com certeza a Drª Gilma vai prevenir o senhor
se ele tentar alguma coisa para o lado da Igreja. Pode
confiar.
Pronto! Tinha a confirmação de que a delegada
estava por trás daquela inesperada visita da autoridade
judiciária local.
Continuaram a conversa comentando algumas
amenidades do lugar, a situação da Igreja em geral e os

83
perrengues relativos às brigas por conta de posse de
terras que fazia o dia a dia do meritíssimo nos cafundós
da Comarca de Santana.
Já chegando a boca da noite, o juiz levantou-se,
rumou para a saída, agradeceu a acolhida e despediu-se
do pároco.
Ao fechar a porta atrás de si o Pe. Genésio pensou
alto: “Ô, dia cheio! De cidadezinha tranquila isto aqui
parece que não tem nada.” Foi rezar o Breviário, o terço e
refletir sobre o que toda aquela situação podia afetar a
sua paróquia.

O PÁROCO E O FUSCA

Nos dias seguintes as surpresas da chegada deram


lugar à normalidade dos lugarejos do sertão.
Pôde então o pároco ir organizando as rotinas de
sua paróquia com a ajuda do sacristão e, claro, sempre
com a interferência da delegada que, de repente, surgia
do nada e já começava a palpitar.
A luta pela posse da agenda e do livro caixa
continuava entre eles. Ele insistindo para ter os livros sob
seu controle e ela se esquivando de entregá-los.
Logo que ela aparecia começava a dar ordens ao
casal Élcio e Zélia que, por seu turno, ficava receoso em
obedecê-la e, assim, contrariar o pároco. Mas, bastava o
padre lhe perguntar pelos ditos livros, ela sumia como
num passe de mágica.

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Numa tarde mormacenta em que o pároco estava
debruçado sobre a biografia de São João Maria Vianney,
o Cura D’Ars, o sacristão veio lhe dizer que a Dª
Alexandrina não estava passando bem e queria receber
uma bênção do pároco.
Questionado sobre os detalhes desse súbito mal que
acometera a esposa do “coronel”, o sacristão não soube
mais nada informar. O recado recebido do peão que viera
da fazenda tinha sido só esse mesmo.
O pároco, sempre solícito para com seus
paroquianos, foi até a garagem nos fundos da casa
paroquial e colocou o velho e empoeirado fusca para
funcionar. O carrinho tremeu todo, fez manha, deu umas
tossidas, mas acabou pegando.
O sacerdote fez as devidas recomendações ao
sacristão a respeito dos trabalhos daquela tarde e a
seguir pegou a estrada rumo à fazenda do “coronel”
Cezar.
Estradinha de chão quando não tem poeira tem
lama, mas buraco tem o tempo todo. Como estava no
tempo da seca, além dos buracos tinha a disgrama da
“costela de vaca”, que fazia o carro andar de banda e ia
desconjuntando peça por peça.
Mas, o pároco foi tocando em frente e até um pouco
afobado, pois estava preocupado com o estado de saúde
de Dª Alexandrina... o que deveria ser? Pensava ele,
agoniado para chegar logo.
Quando a tinha visto durante sua visita à fazenda,
ela parecia estar bem. Tá certo que o marido fora muito
grosso quando a mandou sair da conversa e ir cuidar da
vida. Porém, pelo que ele entendeu, aquilo era um

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comportamento comum naquela casa... o “coronel”
mandava e todos obedeciam.
Absorto nos pensamentos, tentando adivinhar a
súbita doença da esposa do “coronel”, mal percebeu que
a casa grande lá no pé do morro que lhe surgia à frente já
era a do casal Alcântara.
Embicou o focinho do fusca no rumo de baixo e
despinguelou pela ladeira aos solavancos, catando tudo
quanto é pedra que tinha pela frente. Mas, quando uma
vala enviesada na estrada apareceu, ele meteu o pé no
breque para diminuir o tamanho do baque e... o carro não
diminuiu a velocidade. Continuou a toda, entrando roda a
roda na vala e chacoalhando tanto o padre dum lado pro
outro que ele quase perdeu a direção.
Passando da vala o padre chuchou de novo o pé no
freio... e nada. O bicho continuava desembestado no
rumo do pé do morro a toda.
Tentou engatar u’a marcha mais baixa para, assim,
diminuir a velocidade... e nada. O carro pegava era mais
velocidade, pois a ladeira ia ficando cada vez mais
empinada.
Dum lado era barranco alto e doutro era uma loca
funda e larga pro carrinho passar. O jeito era mesmo
continuar tentando trocar marchas.
No aperreio esquecera-se do freio de mão... mas,
agora lembrou e puxou a alavanca tudo que pôde. E
nada, o dito também não funcionou e o fusca continuou a
sua corrida desembestada ladeira abaixo. E no fim dela...
a casa do “coronel”.
E a casa foi crescendo de tamanho, e o pároco
tentando parar o fusca de tudo quanto é jeito.

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Lembrou-se de quando era moleque e usava o
solado da botina no pneu da bicicleta como breque. Ah,
se pudesse fazer aquilo ali e parar aquele carro danado!...
Já dava para ver até os detalhas da fachada da casa
que ligeiro vinha crescendo de tamanho. E, se fosse bater
ali, menos pior seria mirar na grande porta de folha dupla
bem no meio daquele “alvo”. Bater na parede, donde tinha
aquelas toras de aroeira, é que não!
Passou zunindo pelo mata-burro, atropelou um
canteiro de hortênsias, botou as galinhas para correr,
subiu o degrau da varando dum salto só e se arrebentou
na porta de cedro da entrada da casa, fazendo um baita
estrondo. Foi parar só quando as rodas dianteiras do
carro se debruçaram no assento do enorme sofá de couro
refestelado no meio da sala.
As fuças do carrinho virou um bagaço. E o pároco lá
dentro, com as mãos no volante, estático, olhos
esbugalhados, nem se mexia para nada.
De repente aparecem na porta que dava para aquela
grande varanda em que ficaram no dia da visita, o
“coronel”, a Dª Alexandrina e u’a meia dúzia de peões...
todos muito assustados como se tivessem visto alma
penada.
De novo foi o “coronel” que quebrou aquele silêncio
esquisito:
- Ôxe! Mas, o que é isto, reverendo?! Num carecia
invadir a casa, não... Olha só o que o senhor fez!
O pároco saiu do susto, olhou bem em volta e
balbuciou:
- Ah!... Obrigado por perguntar se eu estou bem.

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E, empurrando com força a porta entortada do fusca,
saiu tentando ajeitar o corpo tenso e todo doído, e
comentou meio sem graça:
- Faltou freio.
E o “coronel”, para não perder a ocasião de dar a
espetada;
- Faltou mesmo?
O pároco o olhou inquisidor:
- O senhor está insinuando o quê?... Que eu fiz isso
de propósito?
E endireitando a batina no corpo, continuou:
- Eu vim aqui para atender um chamado de sua
esposa que disse estar mal, o carro fica sem freio,
acontece este desastre e o senhor acha que fiz por
querer? Ora!...
E olhando para Dª Alexandrina, que ainda estava
assustada, mas estava ali em pé, firme e forte, ele
pergunta:
- E parece que a senhora não está tão mal assim,
né? Pensei que estivesse acamada.
O “coronel” percebe que tem ali uma ocasião
vantajosa e procura tirar proveito. Aproxima-se do pároco,
passa o braço por seu ombro e tenta tranquilizá-lo:
- Calma, padre! Calma... Está tudo bem. A porta e o
sofá são peças muito caras, mas a gente dá um jeito
nisso. Não se preocupe.
E, olhando para o fusca com a frente destruída,
ainda comenta:
- Já o seu carrinho... tá bem ruim. Mas, tenho um
mecânico que faz milagres com os carros daqui do lugar.
Deixa comigo!

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E conduzindo o pároco para a grande varanda nos
fundos da casa, procura ser amistoso:
- O senhor parece que está bem. Acho que foi só o
susto mesmo. Vamos sentar ali, beber uma água com
açúcar e relaxar um pouco, está bem?
O pároco, visivelmente desconfortável, senta-se na
beira dum banco, toma fôlego e procura declinar da oferta
do conserto do carro:
- Não! Pode deixar que eu resolvo o problema do
carro. Quanto à porta, ao sofá e a qualquer outros
estragos, o senhor será devidamente indenizado.
A velha raposa esboça um leve sorriso e deixa o
pároco numa arapuca:
- Olha! Acho melhor deixar como eu disse, porque só
a porta e o sofá já são peças muito caras... acho que nem
tudo que a festa do padroeiro arrecada consegue cobrir o
prejuízo. Então, reverendo, é melhor ficar do meu jeito.
E procurando demonstrar ser ainda mais amistoso,
completa a argumentação:
- Como o senhor disse, foi um acidente, não é
mesmo? Então, deixe pra lá. Ora! O senhor veio aqui para
dar a bênção à minha mulher... pois ela está aqui, pode
benzê-la.
O pároco fita a mulher e intrigado pergunta:
- Mas, a senhora não estava passando mal, não
estava acamada, não estava com a saúde abalada?
Afinal, nem parece que a senhora está doente!
Antes mesmo que Dª Alexandrina pudesse
responder, o “coronel”, como sempre, atalhou:
- Não é nada disso, senhor padre. É só uma dor de
cabeça. Sempre que ela teve essa tal dor de cabeça o
outro padre vinha aqui dar a bênção pro encosto sair.

89
O pároco então não se conteve. Levantou-se rápido,
pôs-se em guarda e disparou:
- Ora! Venho aqui às pressas e quase perco a vida
num acidente desses, porque a senhora sua esposa está
com dor de cabeça?!...
E virando-se vai saindo a passos largos, sem antes
resmungar:
- Tenha a santa paciência! Onde já se viu uma coisa
dessa? Dor de cabeça... ora bolas!
Mas, o “coronel”, quase rindo escancaradamente do
pároco, pergunta em tom de troça:
- Espere aí, reverendo! O senhor vai andar mais de
duas léguas até a cidade? Faz o seguinte: o senhor
abençoa a minha Alexandrina e eu mando lhe deixar de
caminhonete lá na casa paroquial, está bem assim?
O pároco levou a mão à testa, suspirou fundo, olhou
para cima e pensou “meu Deus, ajuda-me, pois a coisa
está difícil”. Procurou acalmar-se, aproximou-se da Dª
Alexandrina que, então, estava sorrindo candidamente,
mandou-a ajoelhar-se e a benzeu.
Ao final, não pôde deixar de escapar a bronca:
- E não lhe benzi para tirar encosto nenhum, mas
para a senhora ter mais juízo e não chamar o padre sem
precisão, viu?
O “coronel” satisfeito porque, além de ter vencido
daquela vez, teria agora o pároco em dívida com ele. Não
lhe poderia ter sido melhor. Até que lhe calhou bem
aquele acidente, pois o prejuízo virou investimento.
Chamou então um seu peão e o mandou deixar o
pároco na cidade.
Ao dirigir-se para a caminhonete o padre passou por
cima dos escombros da grande porta e não pode deixar

90
de observar no chão um quadro que, embora tenha se
quebrado todo no acidente, dava para ver ainda nele a
figura de um esquadro cruzado com um compasso e a
letra “G” no centro. Então não pode conter a sua
satisfação... pelo menos estilhaçara o símbolo do capeta.

A DELEGADA E OS LIVROS DA PARÓQUIA

Entrou na casa paroquial sentindo o peso daquele


dia difícil, arrastou os pés até seus aposentos, tomou um
banho restaurador e arriou o corpo na cama.
Foi acordar só no dia seguinte, já perto da hora da
Santa Missa.
Missa com poucos fiéis, coisa mesmo de meio de
semana. Mas, alguém estava lá no banco da frente, firme
e forte como sempre: a delegada! De mangas compridas
e de véu que tapava toda a cabeleira. Sim, e com o coldre
vazio na cinta, pois nunca entrava na igreja com a arma.
O Pe. Genésio até gostou de vê-la por ali, pois,
afinal não devia estar tão brava com ele, já que não
deixara de assistir as Missas.
Assim sendo, poderia voltar a tocar no assunto do
livro caixa e da agenda de compromissos, tão logo
terminasse a Missa.
Mal chegou na sacristia pediu ao Élcio que a
chamasse. Enquanto retirava os paramentos ficou
imaginando como fazer uma abordagem eficaz sobre o

91
assunto para, enfim, obter os dois livros de controle da
vida administrativa da paróquia.
Mas, nem teve tempo de abrir o bico. A mulher nem
acabou de pedir a bênção e já foi dizendo de dedo em
riste:
- Tá vendo, padre?!... Tá vendo no que deu o senhor
atropelar a agenda, que eu tenho todo o cuidado de
organizar?
O pároco ainda tentando entender do que se tratava,
recebeu a segunda carga da bronca que lhe passava a
delegada:
- Toda a cidade já sabe que o senhor bateu o carro
na casa do “coronel” Cezar e ele já espalhou por aí que
não lhe cobrou o prejuízo.
E, estufando mais o peito, esbravejou:
- Agora o senhor ficou numa dívida de favor com o
“coronel” e com uma dívida em dinheiro para pagar o
conserto do carro. E poderia ter evitado as duas se o
senhor tivesse seguido o que estava na agenda... era
horário da novena e não de fazer visita desnecessária.
Enquanto ela tomava fôlego o pároco aproveitou
para retrucar:
- Drª Gilma, eu tenho a obrigação de atender meus
paroquianos seja a hora que for e onde for. E eu é quem
deveria estar cuidando dessa agenda que, aliás, já pedi à
senhora que me entregasse, não é mesmo?
Mas, ela já tinha tomado todo fôlego de que
precisava para continuar sua descompostura:
- O quê?!... Entregar a agenda?... Eu já lhe disse: o
senhor não conhece as pessoas daqui, não sabe onde
está se metendo e levando a Paróquia junto. Eu sei o que

92
estou fazendo... e é para o bem da Igreja. Portanto, a
agenda continua comigo... e o livro caixa também.
E completando:
- A despesa com o conserto do carro, que a
Paróquia não teria se o senhor tivesse seguido a agenda,
a gente paga com o dinheiro que tem em caixa. Mas, não
vai dar para pagar o estrago que o senhor fez na casa
dele, pois lá tudo é muito caro... e pode ter certeza de que
aquele homem sabe muito bem como cobrar uma dívida
de favor.
O pároco suspira fundo, põe a mão no queixo e diz
bem pausadamente, como que controlando sua vontade
de dizer poucas e boas à delegada:
- Foi um acidente como outro qualquer. Graças a
Deus que ninguém saiu machucado. Danos materiais a
gente vai resolvendo com o tempo. E fui atender um
chamado de uma paroquiana doente...
- Doente?!... Qual o quê, padre! Aquela mulher vive
se fazendo de doente por qualquer dorzinha boba. Todo
mundo sabe disso... menos o senhor, não é?
Atalhou ligeira a delegada.
Mas, o pároco continuou procurando manter a
calma:
- Tudo bem, “doutora”. Concordo que estou aqui há
pouco tempo e não conheço bem a vida dos paroquianos.
Mas, de qualquer forma, eu quero a agenda e o livro caixa
aqui, no máximo até amanhã.
E não dando tempo para que ela voltasse à carga,
concluiu a conversa:
- A catequese a senhora pode até continuar
“comandando”, e mesmo ajudando nos outros serviços da
Paróquia... se quiser. Porém, se os dois livros não me

93
forem entregues até amanhã, darei início a outros e
considerarei os que estão com a senhora por encerrados.
Percebendo que não tinha mais como protelar a
entrega dos livros, a delegada deu-se por vencida... pelo
menos por enquanto:
- Está bem! O senhor quer o senhor terá. Mandarei
lhe entregar os livros ainda hoje... mas, o senhor vai se
arrepender, pode estar certo disto.
E assim dito, deu meia volta sem se despedir e saiu
a passos cadenciados da sacristia rumo ao altar mor.
Pôs-se de joelhos perante o Santíssimo e meneou a
cabeça dum lado pro outro, como se estivesse dizendo a
Nosso Senhor Jesus Cristo que aquilo não estava certo.
O pároco, dando-se por satisfeito, fez o Sinal da
Cruz, virou-se e foi feliz da vida para a casa paroquial.
Enfim, algo de bom... teria o controle dos livros.
Já na boca da noite teve de interromper suas
orações porque batiam à porta.
Lá estava um meganha estendendo-lhe a mão com
os dois livros que a delegada mandara entregar.
Recebeu-os, agradeceu gentilmente ao rapaz e
voltou-se alisando a capa da agenda, que estava por
cima. Agora poderia se inteirar de como estavam as
contas da paróquia e de que forma estavam organizados
os serviços aos paroquianos.
Terminou primeiro suas orações do entardecer e,
então, sentou-se à mesa para folhear os tão disputados
livros.
Admirou-se muito ao perceber que o livro caixa era
preenchido com esmerado zelo, constando até os
centavos que entravam e os que saíam, e anotadas não

94
só as datas dos movimentos financeiros, mas até o
horário em que tinham acontecido.
Entradas em cor azul e saídas em cor vermelha e
tudo separado por linhas verticais em cor preta. A
descrição minuciosa de cada movimento daquele era feita
sempre à esquerda e com letras de fôrma.
Em cada folha estavam grampeados recibos, cupons
e notas correspondentes às anotações ali feitas.
Realmente um bom trabalho. Percebeu ali o pároco
o motivo de a delegada resistir tanto em ceder aquele livro
a quem ela ainda não bem depositava confiança.
Mas, tinha o outro lado da questão: ela era mesmo
muito controladora. Seu capricho no assentamento
daqueles movimentos financeiros mostrava que ela queria
saber de cada centavo que circulasse pela igreja e que
nenhuma despesa fosse feita sem seu consentimento.
O pároco passou então para o livro da agenda. Logo
de início já viu que o zelo era o mesmo, com tudo muito
bem detalhado, com os eventos, os dias e os horários
bem destacados e organizados, e tudo escrito numa
caligrafia bem caprichada e com toda correção gramatical.
Mas, lendo alguns dos assentamentos já foi ficando
meio inquieto. Ali estavam definidas as tarefas do pároco
constando os dias da semana e com os horários: Missas,
confissões, exposição do Santíssimo, direção espiritual,
uns dois batizados e visitas a paroquianos devidamente
selecionados a dedo pela delegada... e só!
Não havia ali nada a respeito do pároco participar
das reuniões com o Apostolado, com os Vicentinos, com
os Irmãos do Santíssimo e nem mesmo qualquer coisa
relacionada à catequese da petizada.

95
A Drª Gilma limitara o pároco à ministração dos
Sacramentos e à direção espiritual individual dos
paroquianos... e não de qualquer paroquiano, mas
também só daqueles por ela selecionados.
Na última página preenchida tinha um papelzinho
grudado com um clips tendo um recado... quase uma
ordem: “o senhor pároco cumpra o que está na agenda e
as demais atividades da Paróquia cumprirei eu” e a seguir
estava a assinatura da delegada.
Pe. Genésio levantou-se da cadeira de supetão,
caminhou ligeiro até a porta, abriu-a com toda a força e
quase em cadência marcial tomou o rumo da delegacia.
Sua mente fervilhava e só pensava numa coisa:
“Agora, aquela mulher vai saber quem eu sou... Ah,
se vai! Vou botá-la de vez para fora de minha Paróquia. E
ela que nem se atreva a abrir a boca... agora só eu vou
falar.”
E quando desceu o último degrau da escadinha de
tijolos do pátio da igreja um pé de vento fez a porta da
casa paroquial se fechar com uma batida que reboou pela
pequena praça.
O pároco virou-se e viu a porta fechada. Voltou até
lá e só aí percebeu que, com a pancada, o ferrolho interno
descera e trancara a porta, deixando-o do lado de fora.
Para destrancar ele tinha de dar a volta por dentro
da igreja e entrar na casa paroquial pela porta da
sacristia.
E lá foi ele ainda mais furioso pelo imprevisto que
estava atrasando seu entrevero com a delegada.
Passando pela frente do sacrário fez a genuflexão,
como era de hábito e, então, viu que a pequena chama da
lamparina próxima ao sacrário estava apagada.

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De imediato pensou que o pé de vento que fizera a
porta se fechar tivesse também apagado a chama. Mas,
parou de repente e refletiu: “Estranho... coincidência?”
Ficou incomodado com aquilo: o súbito pé de vento
numa noite calma... a porta batendo com força... a chama
do sacrário apagada.
Foi voltando devagar para frente do altar mor, olhou
para o sacrário, ajoelhou-se e ficou ali, só fitando a
pequena cruz no centro da portinhola de metal daquele
nicho que lá dentro escondia a Hóstia Consagrada.
Quase sem perceber matutou:
“... foi coincidência ou foi um recado, Senhor Jesus?”
Não demorou muito e veio-lhe à mente o rompante
com que saíra da casa paroquial no rumo da delegacia.
Sentiu um calafrio no cangote e de repente entendeu
tudo: tinha mesmo sido um recado... um baita puxão de
orelhas.
O Crucificado não devia estar gostando nada
daquela pendenga dele com a delegada... fechara-lhe a
porta e apagara o sinal de Sua presença na igreja.
O pároco então se sentiu abatido. Desmoronou toda
a sua vontade de brigar com a Drª Gilma. Colocou o rosto
entre as mãos, suspirou fundo e sentiu um leve tremor
pelo corpo... entendeu que estava lidando com aquela
situação de forma totalmente errada. Pois, se assim não
fosse, Nosso Senhor Jesus Cristo não lhe teria lhe
mandado aquele pé de vento repentino numa noite de
calmaria.
A porta fechada o obrigara a passar por dentro da
igreja e a habitual genuflexão diante do altar o fizera ver
que a pequena lamparina de óleo estava apagada... não,
não era coincidência.

97
Deus usa coisas da natureza que Ele criou pra dar
sutis avisos a quem tem fé. E é com o livre arbítrio que se
decide atender, ou não, a esses avisos.
Daí, o pároco continuou de joelhos e começou a
rezar. Pediu perdão repetidas vezes, pediu ajuda para
entender direito os fiéis daquela Paróquia a ele confiada e
pediu temperança para saber lidar melhor com a Drª
Gilma.
Ficou ali de joelhos no chão frio por um bom tempo,
até o cansaço tomar conta.
Então, levantou-se e cabisbaixo dirigiu-se aos seus
aposentos na casa paroquial. Tão logo recostou a cabeça
no travesseiro caiu em sono profundo, com a alma lavada
e sossegada.

HOMILIA DE ALERTA

Ao iniciar a celebração matutina da Santa Missa, o


reverendo estava muito calmo e observava um a um cada
paroquiano ali presente, como que tentando perscrutar-
lhes o íntimo da alma.
Leu pausadamente a passagem do Evangelho
prevista para o dia:
- Evangelho de São Mateus 16, 13-19. Naquele
tempo, Jesus foi para os lados de Cesareia de Filipe e
perguntou aos seus discípulos:

98
«Quem dizem os homens que é o Filho do
homem?».
Eles responderam:
«Uns dizem que é João Baptista, outros que é Elias,
outros que é Jeremias ou algum dos profetas».
Jesus perguntou:
«E vós, quem dizeis que Eu sou?».
Então, Simão Pedro tomou a palavra e disse:
«Tu és o Messias, o Filho de Deus vivo».
Jesus respondeu-lhe: «Feliz de ti, Simão, filho de
Jonas, porque não foram a carne e o sangue que te
revelaram, mas sim meu Pai que está nos Céus. Também
Eu te digo: Tu és Pedro; sobre esta pedra edificarei a
minha Igreja, e as portas do Inferno não prevalecerão
contra ela. Dar-te-ei as chaves do reino dos Céus: tudo o
que ligares na Terra será ligado nos Céus, e tudo o que
desligares na Terra será desligado nos Céus».
Glória a Vós, Senhor!
Voltando a fitar os fiéis, apoiou-se com os dois
braços no púlpito à sua frente e fez uma breve, mas
contundente homilia:
- Meus caríssimos paroquianos, esta passagem do
Evangelho é bem significativa para o que estamos
vivendo por aqui.
- Primeiro, Nosso Senhor Jesus Cristo quer saber se
os apóstolos acreditam que Ele é o Filho de Deus. E São
Pedro responde sem hesitar que sim, Ele é o Filho de
Deus.
- Depois, Ele diz que São Pedro cuidará da Igreja
que Ele edificará.
- E finalmente Ele diz que o Inferno, ou seja, o
demônio, não a destruirá.

99
- E não a destruirá porque a cabeça da Igreja é Ele,
Nosso Senhor Jesus Cristo, e o demônio não tem poder
sobre o Filho de Deus.
- Porém, os membros da Igreja somos nós, as
criaturas humanas que passamos a fazer parte da Igreja
quando somos batizados nela.
- E o demônio sabe que nós somos a parte fraca da
Igreja, e procura acabar com os membros da Igreja
usando principalmente a sua artimanha preferida: a
enganação.
- Ele nos oferece uma bela e suculenta maçã... só
que põe lá no meio dela uma droga que, ao mesmo tempo
que vai nos viciando, também começa a nos destruir por
dentro. E quanto mais comemos, mais queremos comer e
mais vamos nos destruindo e, assim, devagarinho
destruindo os membros da Igreja.
- Daí, vamos ler lá no Evangelho de São Lucas, 18,
8, quando Nosso Senhor Jesus Cristo indaga: “Mas,
quando vier o Filho do Homem, acaso achará fé sobre a
Terra?”
- Vamos refletir bem sobre isto, pois tempos difíceis
estão por vir... aqui mesmo em Sendas do Abaré.
- Cada um terá de fazer a sua escolha: deixar-se
seduzir pela aparência de uma bela e enganadora oferta
ou resistir e continuar sendo membros da Igreja fundada
por Nosso Senhor Jesus Cristo, aquela pela qual
entraremos no Paraíso?
- Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo!
E, assim, o pároco finalizou sua homilia e passou ao
Ofertório da Santa Missa. O recado estava dado, quem
conhecia a situação entendeu e já pode ficar preocupado
com o que estava por vir.

100
ATENDENDO CONFISSÕES

A trégua que o pároco tinha dado na pendenga com


a delegada deu-lhe certo sossego por um bom tempo. Ela
continuava indo às Missas, comungando e “comandando”
a catequese. Mas, não se meteu mais com os livros da
Paróquia, muito embora não perdesse oportunidade de
demonstrar sua insatisfação com os novos rumos dos
serviços paroquiais.
Numa tarde mormacenta estava o pároco socado no
confessionário atendendo os fiéis que recorriam ao
Sacramento da Confissão, quando a esposa do prefeito
Gênio, Dª Berlinda, ajoelhou-se no genuflexório e sem
nem lhe dar prazo já foi dizendo:
- Padre, dai-me a vossa bênção! Só tem um mês
que não me confesso, mas tive de vir porque cometi um
pecado dos grandes.
O pároco, com a calma que o confessionário lhe
induzia, perguntou:
- E qual é esse pecado dos grandes que a senhora
cometeu?
Dª Berlinda se inquietou um pouco, colou a boca na
gradezinha de madeira da janela daquele cubículo e disse
duma só vez:
- Traí o meu marido.

101
Fez uma pausa bem curta e também num só fôlego
disparou:
- E foi com a delegada.
O pároco afastou o ouvido da grade e, como se
tivesse levado uma bordoada, quase fez coro com Dª
Berlinda:
- Nossa! Com a delegada?!...
E a primeira dama assentiu com a cabeça... sim,
tinha sido com a delegada.
Pe. Genésio ainda tentava assimilar aquela
confissão quando a mulher disse meio agoniada:
- Mas, eu tinha de fazer, “seo” padre... eu não podia
deixar ela sem saber das intenções do Gênio.
O pároco ficou confuso:
- Espere aí!... Que traição foi essa?
E a madame explicou:
- O Gênio não se dá bem com o compadre Cezar,
mas tem coisas que eles se juntam para cada um tirar
proveito.
E assumindo ar de indignação, prosseguiu:
- Aqueles dois estão tramando trazer para a cidade
um empreendimento muito grande, coisa para mudar a
cara da cidade.
O pároco então ficou mais tranquilo, pois percebeu
que não se tratava de traição amorosa e, então, procurou
entender melhor onde estaria o pecado dos grandes da Dª
Berlinda:
- Mas, a senhora diz que traiu seu marido porque foi
dar essa notícia à Drª Gilma? Uai, por que isso seria uma
traição?
A mulher afastou o nariz da treliça de madeira e
estranhou:

102
- E por que não? Eu contei para ela, pois não acho
justo meu marido entrar num negócio que vai prejudicar a
Igreja... ora bolas!
- Como?!... Prejudicar a Igreja?... Como é isto de
prejudicar a Igreja, minha senhora? Se isto existe a
senhora tem de contar é para o pároco e não para a
delegada.
A mulher fez um muxoxo e, sem querer, pisou feio
no calo do padre:
- Ora! Pois eu tinha de contar é para ela... afinal, é
ela quem manda, não é?
Pe. Genésio sentiu o sangue subir a toda para o alto
do seu cocuruto. Mas, antes de explodir lembrou-se da
porta batendo e da chama da lamparina do sacrário
apagada. Então, aquietou-se, suspirou fundo, deu um
prazo para a raiva sair do cangote e, pausadamente,
disse à Dª Berlinda:
- A senhora pode me explicar melhor esse negócio
de prejudicar a igreja? No que o seu marido e seu
compadre poderiam prejudicar a igreja... além das
maledicências?
A mulher aproximou bem o rosto da treliça e disse
bem baixinho, como se fosse um segredo de estado:
- O senhor não sabe? O projeto, senhor padre... o
projeto da praça! Eles estão combinando de tocar o
projeto para frente.
Daí, o pároco ficou muito mais curioso:
- Projeto?!... Não estou sabendo de nenhum projeto.
Que projeto é esse? Pelo amor de Deus, diga logo!
Dª Berlinda, sem acreditar que o pároco ainda nada
soubesse, comentou em tom de interrogação:

103
- Ôxe! O senhor não sabe? Ora! Todo mundo sabe
do projeto. Pensei que a Drª Gilma já tivesse contado tudo
para o senhor... afinal, ela sabe de tudo, não é mesmo?
Pe. Genésio mais uma vez teve de contar até dez
para conter a raiva. De novo lembrou-se da porta fechada
e da chama apagada... tinha de se controlar. Mas, pensou
lá com seus botões:
“Ah, meu Deus! Dai-me a santa paciência. Amansa a
minha vontade, senão eu vou perder as estribeiras com
essa mulher.”
Após essa breve pausa para se acalmar, voltou a
insistir com a Dª Berlinda:
- Não, eu não sei de projeto nenhum. E, não, a Drª
Gilma não me disse nada sobre o tal projeto. Portanto, a
senhora, por favor, pode me dizer que projeto é esse que
a levou a trair a confiança do seu marido e por isto vir aqui
se confessar?
Ela voltou a colar o rosto na tela de madeira e disse
rapidamente:
- O projeto da construção... construir na praça.
Imediatamente o pároco ficou em guarda:
- Ôpa, espere aí!... Construir aqui na praça da
igreja? Construir o quê?
Dª Berlinda deu de ombros e respondeu:
- Ah, isso eu já não sei. Só sei que é muita coisa...
coisa para encher toda a praça.
Assustado e também preocupado, o pároco
começou a ligar os pontos: as cortesias do prefeito Gênio
e do “coronel” Cezar tinham, então, segundas intenções...
e, pelo que parecia, más intenções.
Deu a absolvição à Dª Berlinda, pagou-lhe uma baita
penitência cheia de Pai-Nossos e de Aves Marias, além

104
duma novena à Nossa Senhora das Graças e a
despachou.
A fila para a confissão estava grande e ao pároco foi
um tremendo sacrifício finalizá-la, pois estava ansioso
para ir tirar a limpo aquela história do tal projeto da praça
onde estava a sua igreja.
Ele já tinha suspeitado que havia algo no ar, só não
sabia do que realmente se tratava, pois, até então, nem o
prefeito e nem o “coronel” haviam tratado abertamente
com ele a respeito do assunto, a não ser deixando
escapar algumas indiretas, possivelmente para sondar
qual seria a sua reação... o que indicava que a coisa
podia mesmo ser muito séria.

O PROJETO DA PRAÇA

Finalmente o último paroquiano a se confessar


levantou-se do genuflexório e foi cumprir a penitência lá
perto do altar-mor e, então, o pároco pôde sair para
descobrir o que era na realidade o tal projeto da praça.
Mas, à porta da igreja surgiu-lhe a dúvida a quem
procurar a fim de obter informações detalhadas sobre o
assunto.
Olhou no rumo da prefeitura... não, não iria atrás do
Gênio, pois se ele até aquele momento não tinha dito
nada a respeito do que pretendia construir na praça é
porque estava escondendo jogo. Então, seria melhor
procurar outra fonte.

105
Pensou em ir ter com o “coronel” Cezar... mas,
também desistiu, pois o homem nunca lhe despertara
qualquer confiança.
Por fim, virou para o lado da delegacia. Coçou a
cabeça e avaliou a conveniência de ir tratar dum assunto
tão importante com a Drª Gilma, até mesmo porque,
sabendo ela do fato, não o alertara para que se
prevenisse contra a intenção do prefeito.
Quase fez meia volta, porém não via outra
alternativa a não ser dar a mão à palmatória e fazer as
pazes com a delegada. Daí, tomou rumo ao prédio lá no
canto da praça, que abrigava a cadeia pública.
Foi chegando e já foi entrando até mesmo para não
se arrepender. Cumprimentou o guarda da recepção e
dirigiu-se ao gabinete da titular.
Bateu à porta e ouviu o “entre” da já mui conhecida
voz da delegada.
Entrou! E mal entrou a Drª Gilma quase saltou da
sua cadeira:
- Ora, ora! Mas, a que devo esta ilustre e inesperada
visita?... ou o senhor pároco veio a serviço?
Visivelmente desconfortável por ter que à ela
recorrer, ele foi direto ao assunto:
- Boa tarde, “doutora”. Fiquei sabendo que a senhora
tem conhecimento a respeito de um tal projeto da praça.
Por que até agora não me disse nada sobre uma coisa
tão importante como essa?
A mulher recostou-se comodamente em sua cadeira,
cruzou as mãos atrás da cabeça e sem disfarçar o ar
vitorioso, escancarou um sorriso e despachou para cima
do pároco:

106
- Aaah!... Agora o senhor está interessado nisso, não
é? Pois, até agora a sua preocupação comigo era só
tomar a agenda e o livro caixa. O senhor nunca me deu
prazo para tratar de outro assunto que não fosse a
agenda e o livro caixa.
E deleitando-se com aquele momento que lhe dava
certo controle sobre a situação, continuou a espezinhar:
- E como vão a agenda e o livro caixa, estão
passando bem? Estão sendo bem cuidados, limpinhos e
organizados?
O pároco já ia levantando o dedo indicador em riste
para dizer alguns bons desaforos à petulante delegada,
mas lembrou-se de novo da porta batendo e da chama
apagada, e fechou a mão, colocando-a para trás, engoliu
seco e, procurando toda a calma que podia juntar dentro
de si, respondeu bem devagar:
- Eles vão bem, bem cuidados e bem organizados...
não se preocupe. Mas, a senhora poderia me fazer a
grande gentileza de me inteirar sobre esse tal projeto da
praça? Eu lhe agradeceria muito se a senhora pudesse
fazer isto pela igreja.
Ela levantou-se, botou as mãos na cintura e em tom
de troça perguntou:
- Fazer isto para a igreja... ou para o senhor, padre?
Quase que entre os dentes o pároco findou por
admitir que era para ele... e por tabela, para a igreja,
claro.
Só então ela o convidou para se sentar, ofereceu um
cafezinho, água e até cigarro, mesmo sabendo que ele e
nem ela fumavam, mas era só mesmo para se deliciar
com aquele momento vitorioso. Chegou até ter a tentação

107
de pedir de volta a agenda e o livro caixa, mas se
conteve. Não abusaria tanto assim.
Divertiu-se fazendo suspense por algum tempo e
vendo o pároco ficar cada vez mais inquieto, deu-se enfim
por satisfeita, e passou a falar com a imponência de alta
autoridade:
- Pois é, senhor padre Genésio Ligório. O caso é
muito sério e tinha de ser a primeira coisa que o senhor
precisava de cuidar quando chegou aqui. Mas, a agenda
e o livro caixa...
E antes que ele, já muito nervoso, a interrompesse
ela completou:
- Mas, deixa isso para lá... são águas passadas, não
é mesmo? Vamos ao assunto que interessa.
Fez mais um pouco de suspense e, então, explicou a
situação:
- Não é de hoje que aqueles dois estão tramando
tomar a praça da igreja... só que não conseguem. E não
conseguem porque eu aqui, a delegada deste lugar,
venho sozinha impedindo... quer dizer, sozinha não,
alguns paroquianos dão u’a mãozinha.
Refestelando-se novamente em sua cadeira, ela
continuou contando a história do projeto da praça:
- Na verdade não foi muito difícil impedir que
fizessem alguma coisa ali, porque na verdade não tinham
uma ideia boa de como fazer para justificar isto que eu
considero uma invasão do terreno em volta da igreja...
construir alguma coisa lá.
E fazendo jeito de segredo, contou:
- Mas, duns tempos para cá fiquei sabendo que eles
contrataram um arquiteto famoso lá de Santana, para
fazer um baita projeto de ocupação da praça. E tem

108
mais... como a prefeitura não tem verba para arcar com o
tal projeto, o “coronel” já se encarregou de bancar tudo
ele mesmo, com o dinheiro da safra gorda que vem aí... e
é muito dinheiro, viu?
E levantando as sobrancelhas finalizou:
- A igreja está na praça... mas, o terreno é do
município. Então, eles estão com a faca e o queijo nas
mãos, padre. E agora, o que o senhor acha disso tudo?
O pároco ficou pensativo e não disse nada por um
tempo. Depois, com a mão no queixo, respondeu
vagamente:
- Não sei. Não sei... mas, vou brigar! Não vou deixar
que construam ali nada, sem antes brigar muito.
E ainda pensativo, perguntou à delegada:
- E afinal o que eles querem construir na praça?
Ela deu de ombros e acrescentou:
- Não sei. O projeto está fechado a sete chaves. Só
eles sabem realmente do que se trata... nem o prelado
Dom Pombal sabe.
Um silêncio imperou na sala, pois de um lado a
delegada ficou só observando a reação do pároco e do
outro ele ficou matutando o que tinham intenção de
construir na praça, disputando o espaço dos arredores
com a igreja.
O pároco levantou-se mansamente e demonstrando
bastante preocupação. A delegada o acompanhou até a
saída e lhe disse:
- E então, padre, o senhor agora vai me ajudar
nessa questão, ou o aperreio continua sendo só mesmo a
agenda e o livro caixa?
Ele, de cenho fechado, olhou-a de cima a baixo e
sem dizer uma só palavra virou-se e saiu ligeiro.

109
HOMILIA OU DECLARAÇÃO DE GUERRA ?

Até chegar o próximo Domingo foi custoso, pois o


pároco tinha planos nada ortodoxos para sua oratória no
púlpito, quando a igreja estivesse lotada de fiéis.
Rogou ao Espírito Santo que o iluminasse bem,
porque queria dizer algo que tocasse fundo a alma de
seus paroquianos, mas que também fosse uma espetada
forte nos que estavam mancomunando contra a Igreja.
Leu as passagens do Evangelho procurando nelas o
que pudesse usar para dar força à sua homilia.
Confabulou um tanto com o sacristão Élcio, que bem
conhecia todos os paroquianos e já ia antevendo suas
reações às palavras que o pároco pretendia dizer no
púlpito.
E no Domingo logo cedinho, o pároco foi para a
sacristia, ajoelhou-se e rezou até perto da hora da Santa
Missa.
Paramentou-se enquanto o Élcio acendia as velas
dos candelabros do altar, posicionava as galhetas, as
âmbulas e as fitinhas de tecido colorido que serviam para
separar cada liturgia no Missal.
O coro começou o cântico de entrada e, então,
dirigiram-se rumo ao altar o sacerdote e os coroinhas.
Passou o Confiteor, o Glória e veio a Leitura da
passagem do Antigo Testamento, o Salmo Responsorial e
a Leitura duma carta de São Paulo.

110
Por fim, chegou a vez do Evangelho.
Passagem do Evangelho lida mui pausadamente e
em tom grave, e ao final da leitura o pároco fechou o livro
e, após uma longa pausa e passear o olhar pelos fiéis ali
presentes, ele completou dizendo:
- “Guardai-vos dos falsos profetas, que vêm a vós
vestidos de cordeiros, mas por dentro são lobos vorazes.
Evangelho de São Mateus, 7,15.”
Como de costume, apoiou as mãos sobre o
parapeito do púlpito, levantou as sobrancelhas e soltou o
vozeirão:
- Meus prezados fiéis, há algum tempo eu preveni a
vocês que dias virão em que terão de escolher se vão
deixar-se seduzir pela aparência de uma bela, mas
enganadora oferta, ou resistir e continuar fiéis à Igreja de
Nosso Senhor Jesus Cristo.
- Pois bem! Eis que tal tempo está chegando para os
paroquianos de Sendas do Abaré.
- O Poder Público Municipal está fazendo planos
para avançar sobre o terreno em que está edificada a
nossa igreja, alegando que esta praça é logradouro
público, que é da prefeitura.
- Mas, a nossa igreja aqui está há décadas e precisa
preservar a área ao seu redor, tanto para manter afastada
qualquer perdição moral, como também para acolher as
quermesses que nela acontecem todos os anos.
- Este é o uso correto, saudável e cristão desta
praça onde está há muito tempo a nossa igreja. Qualquer
outro uso é um acinte aos paroquianos e principalmente a
Nosso Senhor Jesus Cristo.
- Portanto, não podemos aceitar que ela seja usada
para qualquer outra coisa, senão para servir à Igreja. E é

111
com muita oração de vocês que vamos conseguir que
Deus interfira e não deixe que nos tomem a praça.
Fez uma longa pausa, procurando perscrutar nos
semblantes dos fiéis suas reações ao que acabaram dele
ouvir. E a seguir e com mais ênfase ainda, continuou:
- Mas, além das orações é preciso que todos aqui
façam o prefeito saber que estão descontentes com esse
plano dele. Ele tem de ver em cada paroquiano a
desaprovação pela ousadia, até que desista de fazer mal
à Igreja.
- É preciso que esse pequeno grupo de ateus, que
cerca o prefeito, saiba que os católicos, que são a
maioria, não aceitarão essa ingerência no que é e sempre
foi do povo, pois a cidade é do povo e não do prefeito.
- Tenham coragem e tomem a defesa do que é de
vocês, honrem a Deus defendendo o Seu templo.
- Os lobos em pele de cordeiro não nos enganarão.
Fiquemos atentos, meus caros fiéis!
- Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo!
Voltou para o altar certo de que conseguira motivar
seus paroquianos a tomar a defesa da praça em prol da
Paróquia.
O sacristão pensou: “Agora lascou-se! A guerra tá
declarada”.

O CONTRA-ATAQUE DO PREFEITO E DO “CORONEL”

Claro que logo o prefeito e o “coronel” Cezar ficaram


a par da homilia em que o pároco procurou jogar o povo
contra o projeto deles.

112
Como sempre, foi o “coronel” que tomou a iniciativa.
Convocou o prefeito à sua casa para traçarem um plano
de ação que anulasse o efeito das palavras do pároco
ditas naquela Missa de Domingo.
Gênio, preocupado que estava com os cochichos
que já espalhavam pela cidade, foi ligeiro atender a
chamada do cunhado.
Brecou o jipe bem diante da porta remendada da
entrada do bangalô da família Alcântara, já foi entrando
direto lá para a grande varanda e cumprimentou curto o
“coronel”:
- Boa tarde, compadre! E então, já ouviu as fofocas
que correm na boca do povo?
- É... a peãozada daqui já me deu conta desse
serviço. E é por isto mesmo que mandei chamar você
aqui, Gênio.
E fazendo ares de indignação e de seriedade,
continuou o “mandachuva”:
- De minha parte já vou espalhar por todo canto que
livrei o dito mal-agradecido de me pagar um dinheirão
pelo prejuízo da porta e do sofá, e ainda me dispus lhe
arranjar um mecânico para consertar aquela lata velha de
fusca. Mas, não basta. Temos de mostrar pro povo que
aquele padre tá errado. Que ele é contra o progresso da
cidade, porque quer ficar com um terreno que é da
prefeitura, terreno que é do povo.
Curioso, Gênio interpelou o cunhado:
- Mas, como vamos fazer isto? Pelo que ouvi o povo
tá ficando do lado daquele padre... ele usou o sermão
para levar todo mundo na conversa.

113
O “coronel” ficou pensativo, olhou para suas
lavouras que chegavam a esbarrar no pomar da casa e
como se tivesse divagando, comentou:
- É... a safra vai ser muito boa... a melhor que já tive.
A chuvarada está ajudando. Vai ter dinheiro de sobra para
construir tudo o que a gente quer lá naquela praça.
E voltando-se para o cunhado, disse com voz grave
e firme:
- E não é aquele padreco que vai me impedir de
fazer o que eu quero. Ele quer luta, então vai ter... e das
brabas.
Gênio passou a mão pelo queixo e arriscou um
palpite:
- Será que já não está na hora de a gente botar o
povo a par do nosso projeto? Daí, quem sabe ele num
toma nosso partido, vendo que vai lucrar com isso?
O “coronel” o fitou bem nas fuças e aquiesceu:
- Num é que de vez em quando você até tem umas
ideias boas? Pode ser... viu!
E se achegando mais para perto do cunhado,
confabulou:
- Mas, tem de ser de um jeito bem feito, que o povo
fique tão satisfeito que nem mais ligarão pro que o padre
diz e nem que aquela tal delegada possa desfazer.
Gênio sorriu largo e surpreendeu o cunhado:
- Vamos convocar o Dr. Oscar Ouromaier, o
arquiteto que contratamos lá em Santana para fazer o
projeto. Explicaremos que ele precisa apresentar uma boa
propaganda, com maquete e tudo, de jeito que convença
o povo que tudo vai ser muito bom para todos.

114
Os olhos do “coronel” Cezar brilharam. Tinha
gostado da ideia... e muito. Quase dando gargalhada,
cutucou o cunhado:
- Rapaz, e num é que você até que tem miolos? Que
é que você estava fazendo até agora socado lá naquela
porcaria de sindicato, sô? Tinha era mesmo de ser
prefeito há mais tempo.
Gênio sorriu bem satisfeito com o inesperado e
raríssimo elogio do cunhado, mas ao querer defender a
bandeira do sindicato, foi logo cortado na palavra:
- Bom! Vamos logo prá ação! Você convoque logo o
arquiteto e manda ele preparar essa tal apresentação. O
que for preciso de apoio eu forneço... e não vamos perder
tempo, quanto mais rápido a gente contra-atacar, melhor.
Porém, mais uma vez Gênio surpreende o cunhado:
- Calma! Sem pressa! O momento certo para essa
apresentação pode ser o dia do aniversário da cidade,
que será daqui a pouco mais de um mês. A gente faz
desfile com os alunos da escola, faz a festa, e no final do
discurso eu apresento o arquiteto e digo a que ele veio.
Daí, é só ele apresentar a maquete e explicar tudinho pro
povo. Duvido que, depois, vai ter alguém contra o
projeto... acho que nem o dito padre, viu?
Nessas alturas da conversa o “coronel” Cezar já
estava rindo para as paredes de tão feliz com a fala do
prefeito a quem, então, já relevava suas desavenças por
conta das intromissões que o sindicato fizera na vida de
sua peãozada.

115
O ARQUITETO CHEGA A SENDAS

Os dias iam se passando e os fuxicos só


aumentando. Era briga das boas.
E como “quem conta um conto aumenta um ponto”,
a coisa já tinha ganhado proporções desmedidas.
A maioria do povo apoiava o pároco, pois aquele
pessoal todo era católico fervoroso. Mas, tinha uns e
outros que continuavam fiéis ao prefeito e, por tabela, ao
“coronel” Cezar. Gente que era ajudada na época das
campanhas eleitorais e ficava atada a dívida de favores...
que é das piores que existem.
Numa manhã de chuva fina e demorada a
caminhonete do “coronel” singrou pela rua principal direto
no rumo da fazenda e os curiosos de sempre viram
aboletado no banco do passageiro um sujeito bem
trajado, usando óculos escuros e um bonezinho de lã
achatado no cocuruto... trem de gente grã-fina.
Mas, a curiosidade teve de morrer por aí, pois para
trás só ficou a lama jogada pelos pneus do veículo.
E de rabeada em rabeada na estrada enlameada, a
caminhonete chegou às beiras da casa do “mandachuva”,
que já estava lá, de pé, à entrada, com a Dª Alexandrina
lhe fazendo sombra à ilharga, à espera do visitante.
Mas, não era só ele, o prefeito também já apeara do
jipe e se dirigia para donde estava o cunhado.
Tão logo a porta da caminhonete abriu, apeou dela o
dito cujo com um sorrisão nas fuças e jogando os braços
por riba dos cangotes dos dois anfitriões:

116
- Saudações, ilustres de Sendas do Abaré! Muito
honrado de estar aqui entre os amigos investidores.
Como sempre, foi o “coronel” que se adiantou no
cumprimento:
- Seja bem-vindo, Dr. Oscar Ouromaier. Vamos
entrando, que a casa é de sua serventia.
E todos muito animados e faladores foram para a
grande varanda, onde se faziam as reuniões que o
“coronel” considerava importantes.
Sentaram-se, veio o suco de caju, o cafezinho, o pão
de queijo e as broas de milho e, claro, muita conversa
fiada antes do assunto principal ser tratado.
O “coronel” Cezar, dando a entender que a reunião
ia começar, deu o sinal de sempre:
- Alexandrina, vai caçar coisa melhor para fazer lá
dentro, vai.
Ela, num gesto um tanto repetitivo, fez uma pequena
vênia ao visitante, despediu-se e sumiu pela mesma porta
de sempre.
Então, o “coronel” perguntou ao arquiteto:
- Dr. Oscar, o projeto já está todo pronto, ou ainda
está faltando alguma coisa?
O grã-fino se empertigou na poltrona e calculou bem
a resposta:
- Todo pronto!... Menos o acerto da última parcela
que o senhor ainda não me passou, não é mesmo?
Cezar o olhou de esguelha e retribuiu a “gentileza”:
- E eu já falhei com o combinado alguma vez,
doutor?
- Não, claro que não. Estou só lembrando que a
cada etapa do projeto temos um acerto... e, como eu
disse, o projeto está agora todo pronto.

117
Insistiu no assunto o arquiteto, ansioso para botar as
mãos na parcela mais polpuda do seu pagamento.
Foi então que o “coronel” lhe surpreendeu:
- Mas, tem mais um serviço para o senhor fazer, Dr.
Oscar. E é coisa muito boa, que vai lhe render um bom
dinheiro... talvez mais do que o acordado com o projeto.
O homem levantou o cenho, arregalou os olhos,
ajeitou a gravata e quis saber:
- Outro serviço?... É outro projeto? Do que se trata?
Daí, foi o Gênio que atalhou a conversa:
- Não é outro projeto... é o mesmo projeto. Mas, é
um serviço que vai fazer o projeto brilhar e deixar o povo
com água na boca.
O Dr. Oscar olhou para um e depois para o outro e,
inquieto, quis saber mais:
- Bom... fazer o projeto brilhar é ótimo. Mas, no que
vocês estão pensando, podem me explicar direito?
Então, o prefeito foi detalhando a ideia:
- Propaganda, Dr. Oscar... propaganda. Temos de
fazer uma baita propaganda do projeto, para animar o
povo a apoiá-lo e calar a boca dum bando de pé-rapado
reacionário que ainda empesta nossa cidade.
E, compenetrado na explicação, continuou:
- O senhor poderia fazer u’a maquete de todo o
projeto... bem feitinha, muito bem detalhada, colorida, de
jeito que o povo vendo vai ficar deslumbrado. E daí, a
gente apresenta ela no dia do aniversário da cidade. Logo
depois do meu discurso eu lhe apresento e passo-lhe a
palavra.
E bastante eufórico o prefeito arrematou:
- Será o momento de o senhor pegar o microfone e,
com a maquete bem na frente, explicar todo o projeto pro

118
povo... Ah! E também para todas as autoridades e
pessoas importantes da cidade.
O arquiteto ouviu o prefeito explicar tudo, ficou
pensativo e, por fim, não escondendo sua satisfação,
concordou:
- Certo! Bem pensado, senhor prefeito... muito bem
pensado. Gostei da ideia.
E ainda adicionou:
- ... e podemos filmar a apresentação e passar tudo
num telão montado na praça, de jeito que todo mundo
possa ver e ouvir.
O “coronel” não se conteve de satisfação:
- Vocês formam uma bela dupla, viu? Ô, gente
sabida! A coisa vai sair melhor do que pensei.
Levantou-se da poltrona e, esfregando as mãos,
perguntou ao arquiteto:
- E quando é que o “doutor” pode aprontar tudo
isso?... o aniversário da cidade é daqui há um mês... o
tempo está curto, não é?
O arquiteto, também esfregando as mãos,
respondeu bem sorridente aos dois:
- Apronto tudo isso tão logo os senhores liberem a
verba necessária para a maquete, para o aluguel do
projetor e do telão, para minhas despesas pessoais e,
claro, para trazer a imprensa de Santana.
- Imprensa?!...
Pasmaram o “coronel” e o prefeito.
- Sim, a imprensa. O evento tem de ser divulgado
aqui e também em Santana, pois é um projeto grandioso
e, principalmente, é inovador. Ele será um modelo para as
demais cidades do interior... ou não acham que todo
prefeito vai querer ter um igual?

119
O “coronel” deu uma sonora gargalhada, passou o
braço pelo cangote do Dr. Oscar e lhe pagou um
tremendo elogio:
- Êita, o senhor é um homem que enxerga longe, Dr.
Oscar. Não é à toa que seu trabalho é bem reconhecido
em toda Santana. Fico muito feliz de fazer negócio com o
senhor.
E, então, ficando sério, puxou o arquiteto para junto
de si e, confabulando, disse-lhe:
- E não se preocupe com os gastos. Dinheiro o
senhor vai ter e muito. Olhe só em volta o tanto de lavoura
que tenho aí... é a minha melhor safra, e a chuva tá
ajudando muito. Fique tranquilo.
Diante do dito, o Dr. Oscar sorriu de muita satisfação
e devolveu a confiança:
- Então, está bem. Estamos acertados! Vou começar
já o trabalho.
Trocaram apertos de mãos, todos os três muito
eufóricos, tomaram rumo da saída. O arquiteto se ajeitou
na cabine da caminhonete e os outros dois, rindo à
vontade, ficaram vendo o veículo ir sumindo no meio do
lamaçal.

DIREÇÃO ESPIRITUAL OU ARMAÇÃO DE UM CRIME ?

Como na volta a caminhonete varou a cidade na


mesma carreira da vinda, ninguém pôde assuntar o que
aquele grã-fino tinha ido fazer lá na fazenda do “coronel”.

120
E os fuxiqueiros ficaram a ver navios, sem saber nada de
nada, só bisbilhotando.
De sua parte o pároco continuava usando o púlpito
da igreja para arregimentar seus paroquianos a que
defendessem a praça contra qualquer tentativa de
construção por parte da prefeitura.
Numa tarde em que estava socado lá no
confessionário, ajoelhou-se no genuflexório ninguém
menos que a Drª Gilma Normanda, a delegada.
Mas, ao invés de se confessar ela pediu ao pároco
que lhe desse um momento de direção espiritual.
Surpreso, pois não contava com essa, o padre
aquiesceu e lhe perguntou o assunto, e mais surpreso
ficou ao saber do que se tratava:
- Padre, a lei humana passa a mão na cabeça de
quem mata em legítima defesa. Na da Igreja também, não
é mesmo?
Pe. Genésio ficou pensativo, imaginando donde
aquela conversa esquisita ia chegar. Porém, deu uma
resposta explicativa, mas esperando saber mais do que
passava pela cabeça da delegada:
- Não é bem assim. O 5º Mandamento da Lei de
Deus diz que não podemos matar outro ser humano. E no
Catecismo da Igreja está lá explicado que, diante duma
ameaça real de ser morta, a pessoa pode se defender, e
se em decorrência dessa defesa o agressor morrer...
paciência, mas essa morte não foi o propósito da defesa.
A delegada impacientou-se e continuou:
- Pois é, padre... sei, na legítima defesa o agressor
pode morrer... entendi. Então, é isto mesmo. Veja bem:
aquele coronel de araque já mostrou que é um agressor
da Igreja. Se a gente mandar “passar um susto” nele e em

121
decorrência ele bater com as dez... ninguém tem culpa.
Foi legítima defesa de nossa igreja. O senhor não
concorda?
O Pe. Genésio arregalou os olhos e disse quase
gritando lá de seu cubículo:
- Vade retro, satanás!!! A senhora está louca?!...
Valha-me, meu Deus!
E antes mesmo que ela dissesse qualquer coisa, ele
passou-lhe uma descompostura:
- Me admira muito a senhora, a maior autoridade
policial da cidade propor um absurdo deste. Como é que a
senhora pode se considerar uma pessoa de fé?
A mulher encolheu os ombros, fez um muxoxo e
respondeu quase que num fio de voz:
- Ôxe!... Foi só uma ideia, padre. Um jeito de a gente
se livrar daquele compincha do satanás. Aquele homem
não vale nada. Ele quer, de qualquer jeito, prejudicar a
Igreja e acho que a maneira de a gente impedir é
mandando ele de vez pros infernos.
O pároco passou a mão pela testa enxugando o
suor, olhou fixo na direção da treliça de madeira que o
separava da delegada e, quase descontrolado, contestou
na bucha:
- A gente não!... A gente não!... É só a senhora, Drª
Gilma! Não me meta nessa história. Pretendo vencer essa
pendenga de forma justa, honesta e principalmente cristã.
Nada de violência contra quem quer que seja.
A mulher o olhou espantada e retrucou:
- ...justa e honesta? Contra aqueles dois ateus, o
“coronel” Cezar e seu cunhado? Ora!... O senhor vive em
que mundo, padre? Bote os pés no chão. Estamos

122
lutando contra as forças do mal... e dum mal muito
poderoso.
O pároco chegou a sentir tontura, mas ainda reuniu
fôlego para concluir o pito na delegada:
- Preste atenção! Não sei se a senhora está
acostumada a recorrer a esse tipo de expediente para
resolver suas questões. Mas, se estiver, fique sabendo
que está incorrendo em pecado mortal... nem comungar a
senhora poderá mais.
E suspirando fundo, recomendou-lhe:
- Vá para casa, tire essa ideia da cabeça, peça
perdão a Deus, faça penitência, reze muito e não diga
para ninguém que a senhora comentou isso comigo...
aliás, vou até considerar essa conversa como segredo de
confissão, viu?
Ela foi se levantando devagarinho e resmungou:
- É... só sei que, se existe um problema, a gente
acaba com ele e pronto! Não tem mais problema.
E o pároco, caçando paciência donde podia e
tentando manter o uso da razão, procurou consertar o
resmungo dela:
- A gente não acaba com o problema, “doutora”... a
gente resolve o problema... e pacificamente.
Já dirigindo-se à saída, ela ainda comentou:
- Sei não... com aquela gente não tem nada de
pacífico. Mas... tudo bem.. O senhor é quem sabe. Vou
botar o rabo entre as pernas e ficar lá no meu canto na
delegacia só vendo as coisas ruins acontecerem.
Bateu continência pro pároco e foi-se embora.

123
FESTA DO ANIVERSÁRIO DA CIDADE -
PREPARATIVOS

O grande dia aproximava-se e o prefeito já mandara


construir o palanque propositalmente na frente da praça e
de costas à entrada da igreja.
Mandou passar tinta de cal no meio fio das calçadas
próximas, podar as árvores e o gramado, e montar um
baita telão que era visto em todos os cantos da praça.
Mandou até construir um tablado donde ficaria
estacionada a banda que tocaria o hino da cidade na
abertura das comemorações.
Pelo arrumado parecia mesmo que seria uma
grande festa, igual nunca se tinha visto por ali.
O pároco só estranhou mesmo é de ele e a delegada
não terem sido convidados para compor a comissão
encarregada de tocar os preparativos.
Mas, a zanzação entre a prefeitura e a fazenda do
“coronel” Cezar era intensa e aperreada. Era o jipe da
prefeitura indo no rumo da fazenda e a caminhonete do
“coronel” aportando nas beiras da prefeitura o tempo todo.
E virava e mexia ela pegava a estrada para Santana,
donde vinha o arquiteto confabular com a dita comissão
organizadora dos festejos.
A Drª Gilma, lá do prédio da delegacia, espichava o
olho tentando adivinhar o que estava por trás daquela
agitação toda. Mas, a coisa parecia estar se sucedendo
como segredo de estado, só o pessoal mais chegado ao
prefeito e ao “coronel” tinha conhecimento dos detalhes
dos preparativos.

124
Uma e outra vez ela tentou se aproximar do arquiteto
para sacar alguma coisa, mas ele de manso a dispensava
e seguia rumo à prefeitura.
Ressabiado com a andança daquilo, o pároco
orientou o sacristão a pedir à sua esposa, Zélia, para ir lá
na casa do prefeito como quem não quer nada e tentar
tirar da Dª Berlinda alguma informação.
E assim fez o Élcio, sempre disposto a defender tudo
que fosse da Igreja. Conversou com a mulher e ela findou
por topar xeretar lá na casa do prefeito e conseguir
informação que colocasse o pároco a par dos planos dos
dois cunhados.
Dª Zélia preparou uns biscoitos de goma e foi lá
numa visita improvisada à colega do Apostolado da
Oração, a Dª Berlinda.
Chegou, bateu à porta, foi bem atendida e convidada
a entrar. Entregou os biscoitos bem arrumadinhos num
prato coberto com uma toalhinha bordada, começou a
conversa tratando duns assuntos sobre o Apostolado e
nem precisou triscar no assunto dos festejos, pois a 1ª
Dama já apressou que estava muito preocupada com o
marido que, por conta dos tais preparativos, só aparecia
em casa à noite e ia direto dormir. Nem conversavam
mais, mesmo ela insistindo.
Dª Zélia ainda tentou encompridar o assunto:
- Mas, ele não lhe diz nada, Dª Berlinda? Nem um
tiquinho do que está se sucedendo lá na prefeitura?
A outra balançou a cabeça e chorosa respondeu:
- Parece até que ele não confia mais em mim.
Quando quero saber de alguma coisa, ele desconversa e
sai batendo a porta.
E, com ares de preocupação, acrescentou:

125
- Com certeza estão tramando alguma coisa ruim...
ainda mais que aquele tal de Dr. Oscar não larga o pé do
Gênio. Toda hora vejo os dois juntos, cochichando... ali
tem coisa, viu?
A esposa do sacristão ficou um tanto decepcionada
por não ter conseguido nada, pois parecia mesmo que a
Dª Berlinda tinha sido excluída dos assuntos referentes à
prefeitura.
Trocou mais uns dedos de prosa ali para disfarçar a
verdadeira intenção da visita e, então, disse que tinha de
ir embora, pois precisava de preparar o almoço do marido
e dos filhos.
Já na saída, à despedida, a Dª Berlinda agradeceu
os biscoitos e soltou que a mana Alexandrina ouvira seu
marido e o Dr. Oscar comentando lá na fazenda duma tal
apresentação do projeto, mas que ela não sabia do que
se tratava essa apresentação, pois logo que ela chegou
na varanda os dois mudaram de assunto.
Mal retornara à casa, a Dª Zélia foi inquirida pelo
marido sobre o resultado da visita e, então, ficou sabendo
do comentário feito pela Dª Alexandrina à irmã Berlinda.
- Apresentação do projeto?... Apresentar o projeto
para quem?
Quis saber o pároco.
- Não sei, reverendo... não sei. A patroa só ouviu
isso daí e mais nada.
Respondeu o sacristão.
E os dois ficaram ali na sacristia matutando a
respeito da dita apresentação do projeto de que trataram
o “coronel” e o arquiteto lá na fazenda.
Por fim, o Pe. Genésio coçou a cabeça e disse ao
sacristão:

126
- Bem... eles podem estar pretendendo apresentar
esse tal projeto para as demais autoridades, ou para a
comissão... – fez uma pausa e de repente franziu bem os
cenhos e exclamou – Espera aí!... Rapaz, é isto! Eles
podem estar querendo apresentar o projeto deles no
aniversário da cidade.
O Élcio fitou bem o pároco e duvidou:
-Será, reverendo? Mas, apresentar para quem?
Como se tivesse sido iluminado naquele momento, o
pároco arriscou:
- Uai! Pro povo, para as autoridades, para todo
mundo... vão querer aprovação de todo mundo. É bem o
jeito dos políticos engambelar o eleitorado. Você não vê?
O outro ficou pensativo por um tempo e ainda
duvidou:
Mas, será?... E tanto mistério só para isso... mostrar
um projeto?
Então, o pároco completou seu raciocínio ao
sacristão:
- É exatamente isto, Élcio! Se estão fazendo tanto
mistério sobre a apresentação do tal projeto, é porque o
bote vai ser grande. A coisa deve ser bem pior do que a
gente imagina. Pode esperar!
E como que pensando alto, comentou num sussurro:
- ...é bem isso mesmo, pois até a delegada eles
deixaram de fora da comissão que está cuidando dos
preparativos da festa.
A partir daquele dia o pároco não conseguiu mais
uma noite de sono tranquila, pois na sua mente passava
de tudo, de asneiras a besteiras e de como poderia
sabotar os planos de ocupação da praça por parte do
prefeito e do “coronel”.

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Em cada homilia de Missa ele não deixava de
conclamar seus paroquianos a defenderem a praça em
favor da Igreja, procurando mostrar que a melhor
serventia daquele pedaço de chão era mesmo continuar
como lugar santo, só a matriz bem plantada no seu
centro... e mais nada.

ENFIM, A FESTA DA CIDADE

E o grande dia chegou! Sendas do Abaré


completava mais um ano de existência. Viva Sendas!
Alvorada com muitos fogos de artifícios, rojões
espocando, a banda alegrando o amanhecer tocando
modinhas e marchas... coisa nunca vista antes nos
aniversários da cidade.
O povo até estranhou tanta movimentação e barulho.
Muitos até botaram as fuças pro lado de fora de casa para
ver o que estava acontecendo.
Durante a celebração da Santa Missa, bem no início
da manhã, o pároco comentou com os fiéis que aquela
festa não tinha a bênção de Deus, pois a prefeitura não
encomendara nenhuma celebração religiosa para benzer
a cidade e seus moradores. Era, pois, uma festa pagã.
E teve de fazer essa advertência quase que aos
gritos, pois o barulho do foguetório e da banda reboava
por toda a nave da igreja, atrapalhando a reza e deixando

128
o pároco azucrinado e, por isto, fez a Missa bem curta,
quase sem sermão.
Mas, lá fora o povo ia sendo atraído pela algazarra
promovida pela prefeitura.
O pároco tirou os paramentos e foi com o Élcio lá
para fora observar a movimentação no espaço em frente
ao palanque. Perto dele estava montado um baita telão,
tendo dos dois lados grandes caixas de som.
Não demorou muito e chegaram dois carros grandes
com letreiros nas portas dianteiras, donde estava escrito
“imprensa”. E deles foi saindo gente carregando
filmadoras, câmeras, microfones e todo tipo de
parafernália que esse pessoal carrega para fazer suas
reportagens.
O pároco virou-se para o sacristão e comentou:
- É... se trouxeram a imprensa de Santana é porque
vão querer muita divulgação, com certeza.
E o Élcio ajuntou:
- ...imprensa, heim! Uma coisa é certa. Essa gente
do prefeito sabe se fazer notar. É bem capaz disso chegar
até os ouvidos do governador.
Mais um carrão chegou e o pároco aprumou a vista
para ver quem nele estava. E mais surpreso ainda ficou
quando viu dele desembarcar o prelado Dom Pombal.
Boa surpresa, pensou ele. Logo que colocasse o
bispo a par da situação, poderia então contar com seu
apoio contra as intenções do prefeito com relação à
praça.
Andou ligeiro até interceptar Dom Pombal que já ia
em direção ao palanque.
- Reverendíssimo, sua bênção!

129
Atalhou o caminho do prelado fazendo frente a ele
uma leve genuflexão e beijando-lhe o dedo do anel.
- Deus te abençoe, padre. Parabéns pela bela festa
que vocês prepararam aqui e muito obrigado pelo convite
para dela participar.
Respondeu muito sorridente o bispo.
Então, o pároco procurou já ir inteirando seu superior
da situação:
- Eu não ajudei a preparar festa alguma, Dom
Pombal... aliás, a prefeitura sequer pediu alguma
celebração religiosa por conta deste aniversário da
cidade. E acho que quem convidou o senhor deve ter sido
o prefeito...
Mas, não teve chance de continuar a declamar o seu
relatório a respeito das desandanças entre ele e o
prefeito, pois o “coronel” Cezar surgiu do nada e todo bem
alegre, foi logo convidando o bispo a segui-lo para junto
da comitiva da prefeitura, que já ia tomando lugar no
palanque.
Ainda que o pároco quisesse insistir na conversa, o
prelado olhou de banda para ele e disse:
- Depois dos festejos a gente conversa, padre.
E lá se foi o “coronel” Cezar quase empurrando o
homem de Deus no rumo do palanque.
O pároco, inconformado com a proposital
intromissão do “coronel”, já se preparara para tentar
chegar ao palanque, quando viu mais um outro carrão
chegar e dele apear o juiz itinerante que também seguiu
para lá, onde foi recebido com muitos abraços pelo
prefeito, pelo “coronel” Cezar e pelo Dr. Oscar Ouromaier.
Então, comentou meio desanimado com o sacristão:

130
- Vejo só, Élcio! Convidaram todos os figurões, até o
juiz. Mas, deixaram de fora o pároco da cidade.
E o sacristão lembrou ao reverendo:
- Também deixaram de fora a delegada, padre.
- É mesmo. Por falar nela... onde se meteu?
Quis saber o pároco.
Olhando na direção da delegacia, viram-na sentada
numa banqueta, encostada na parede, próxima à entrada
do prédio.
Foram ter com ela:
- Uai, Drª Gilma, parece que nós formamos o grupo
dos excluídos, né?
Comentou ainda de longe o sacristão. Ao que ela
respondeu:
- Antes só que mal acompanhada. Não faço questão
de estar naquele palanque com aqueles filhos do capeta...
questão nenhuma.
- Viu que até o juiz foi convidado?
Comentou o pároco.
- Vi sim... e isso não está me cheirando bem. Aí tem
coisa, reverendo.
Respondeu a mulher, com cara de raiva no rosto e
com os braços cruzados e apertados contra o peito, como
que querendo se conter e não fazer besteira.
E os três resolveram ir andando devagarinho lá para
perto do povo, tentando assuntar o que se sucederia no
decorrer daquela festança toda.
Já beirando as dez horas da matina o prefeito fez
sinal para a banda parar de tocar, pegou o microfone e
destramelou a matraca:
- Meus queridos conterrâneos e conterrâneas, eu, o
prefeito Gênio Brisolla e a primeira dama, Dª Berlinda

131
Graça Brisolla, desejamos um grande bom dia a todos
vocês, nesta data especial em que nossa bela cidade
completa mais um ano de existência. E sejam bem vindos
à nossa festa comemorativa: o digno meritíssimo juiz Dr.
Pompeu Gallardo de Mantiqueira e Alterosa,
representando aqui o Poder Judiciário; o digno prelado
Dom Sebastião José de Carvalho e Pombal, o mais alto
representante da Igreja em nossa Prelazia; o senhor
“coronel” Cezar Raposo Aragão de Alcântara e sua
digníssima esposa, Dª Alexandrina Brisolla Aragão de
Alcântara, representando o empresariado rural de nossa
terra; e também bem vindos todos os cidadãos de bem
desta linda cidade, que é a promessa do progresso da
região das terras de Santana.
Fez uma breve pausa, arranhou a goela e soltou o
verbo:
- Somos filhos desta terra amada, que serviu a todos
nós de berço e que vem nos servindo de boa morada ao
longo do tempo. Os nossos ancestrais lançaram seus
alicerces e nós continuamos zelando para que ela
continue nos servindo de moradia e também para as
gerações de nossos filhos e netos.
Mais uma pausa com mais um pigarro e a verborreia
continuou e continuou e continuou, até que a impaciência
do “coronel” Cezar não aguentou. O homem deu uma
cutucada com o bico da botina na canela do cunhado que,
de imediato, entendeu o recado... tinha de abreviar a fala
e apresentar o arquiteto que, então, explicaria o tão
esperado projeto.
- Sendas do Abaré é próspera graças ao trabalho
dinâmico da prefeitura, ao grande apoio do Sindicato dos
Agricultores e de ilustres cidadãos, como o “coronel”

132
Cezar aqui presente. E será mais próspera ainda com as
modernidades que pretendemos trazer para beneficiar
muito todo o povo aracatiense.
E, estufando ainda mais o peito, abrindo os braços e
soltando a voz, botou para fora:
- Minha gente! Sendas do Abaré será modelo de
modernidade para toda a região, com o portentoso projeto
que a prefeitura preparou para transformar a cidade em
motivo de muito orgulho a todos vocês. Todos serão
beneficiados, todos vão tirar proveito do que está por vir
em breve para ocupar lugar em nossa praça.
Uma nova canelada do “coronel” lembrou ao prefeito
que ele ainda estava espichando muito sua fala e, então,
ele tratou de se apressar:
- Para que todos vocês conheçam em detalhes o
grande projeto que a prefeitura preparou para Sendas,
convidamos aqui para fazer a sua apresentação o próprio
autor do projeto, o Dr. Oscar Ouromaier, reconhecido
arquiteto de Santana, cujas obras magníficas têm
despertado admiração até no exterior.
E, então, convidou o arquiteto a levantar-se e tomar
lugar na tribuna:
- Por favor, Dr. Oscar... tenha a gentileza de nos
expor com os devidos requintes o projeto que elevará
nossa cidade aos maiores padrões da modernidade.
E, assim, passou a palavra ao arquiteto que, fazendo
pose de gente muito importante, rasgou um baita elogio à
cidade e aos ilustres e convidados que ali esperavam
ansiosos pela explicação sobre o tal projeto.
O telão foi iluminado com uma foto do prefeito à
frente do prédio da prefeitura e, depois, com uma foto
aérea da cidade, destacando o local da praça.

133
As caixas de som esparramavam alto o hino da
cidade, cantado por um coro de vozes juvenis sob o
acompanhamento de uma barulhenta banda marcial.
O povo todo esperando ver do que se tratava e,
então, apareceu a foto da maquete da edificação inteira.

APRESENTAÇÃO DO PROJETO DA NOVA PRAÇA

Mas, tinha ainda o toque mágico da apresentação, a


cereja do bolo da festa.
Ao mesmo tempo em que aparecia a foto da
maquete, à frente do palanque sobre uma grande mesa,
foi retirado o pano que cobria a própria maquete, que
tinha uns quatro metros quadrados e expunha todos os
detalhes externos do prédio.
Os sonoros “Ohhhh!...” de admiração ecoaram pelos
cantos da praça. O povo arregalava os olhos e
escancarava a boca diante dum trem antes nunca visto
por aquelas plagas.
O “coronel” Cezar, o prefeito e o arquiteto não
cabiam em si de tanta satisfação, vendo o povo admirar-
se tanto com a maquete, quase uma obra de arte, como
pela imagem dela no telão.
E foi então que o arquiteto começou a explicar o dito
projeto, começando pelo exterior e, depois, com o bom
uso de imagens tridimensionais, foi adentrando o prédio e
detalhando cada um dos ambientes internos.

134
Era realmente um edifício portentoso de forma
triangular e com três andares, todo branco, envidraçado e
ocupando toda a praça... inclusive donde estava a igreja.
O pároco cutucou o sacristão e perguntou, como se
o rapaz pudesse ter a resposta pronta:
- Uai!... Mas, cadê a igreja?... Vão tirar?
Porém, na explicação do arquiteto aquilo ficou
esclarecido.
Sim, a igreja seria demolida, mas a parte central do
térreo seria ocupada por um grande templo ecumênico,
donde todas as religiões e seitas poderiam agendar o uso
para os seus cultos, satisfazendo, assim, todas as
crenças e todos os deuses, fossem católicos,
protestantes, espíritas, macumbeiros e qualquer grupo
que pretendesse ali fazer u’a manifestação religiosa.
No mesmo andar, mas voltadas para o exterior, o
templo seria cercado por pequenas e variadas lojas, que
poderia ser um boteco, uma mercearia, lanchonete,
aviamentos, sapataria e enfim qualquer tipo de
mercadoria que por bem ali se quisesse vender. Seria
uma espécie de centro comercial concentrado no mesmo
edifício e bem à mão do povo da cidade.
A entrada do templo era na base do triângulo, com
portas enormes ladeadas por duas grossas colunas
cilíndricas ornadas com capiteis gregos assentados bem
lá no topo.
O acesso ao 2º piso seria feito por duas largas
escadarias laterais e lá dentro, em cada vértice do
triângulo, ambientes espaçosos para abrigar um posto de
saúde, a delegacia e um suntuoso gabinete para o juiz.
Na parte central um espaço fechado por vidraças estaria o
gabinete do prefeito, o de seu secretário e algumas outras

135
dependências da prefeitura. Diante de sua entrada uma
escadaria dava acesso ao 3º piso.
Esse 3º piso seria dividido em apenas dois
ambientes: um enorme salão aberto e todo envidraçado,
destinado a todo tipo de reuniões, encontros,
comemorações e até como um tribunal do júri... sim, pois
a intenção do prefeito junto ao judiciário era mesmo
instituir a cidade como sede duma nova comarca,
deixando o Dr. Pompeu de ser um itinerante para ter sua
própria comarca, ideia que o deixou bastante satisfeito e o
fez aderir incontinenti à proposta do projeto.
Mas, o segundo ambiente desse 3º piso, todo
fechado e só com uma grande porta de duas folhas em
madeira maciça na única entrada, tinha um destino
especial para o “coronel”, cujo símbolo gravado em alto
relevo na madeira das portas não deixava dúvida: o
compasso, o esquadro e a letra “G” ao centro... ali seria a
loja maçônica, que teria como venerável mestre, claro, o
próprio "coronel” Cezar.
Finalizando assim a apresentação do projeto, o
arquiteto então passou a palavra a quem estaria arcando
com todo o custo daquela portentosa construção: o
“coronel” Cezar.
E ele não se fez de rogado, tomou o microfone,
pediu silêncio à multidão e sapecou seu inflamado
discurso:
- Povo da minha terra e ilustres convidados, é pois
com satisfação que faço nesta nossa querida cidade o
maior dos meus investimentos, trazendo a modernidade a
todos os cidadãos de Sendas do Abaré.

136
E deliciando-se com as expressões de admiração
estampadas nos rostos ao seu redor, continuou em tom
solene:
- Como vocês viram e ouviram, o comércio local será
beneficiado com a disponibilização de muitas lojas ao
redor desse nosso grande centro de convivência, a
prefeitura terá um lugar moderno e amplo para atender os
cidadãos e até com mais presteza, a delegacia possuirá
dependências mais dignas para o bacharel que o
governador nos mandará como delegado titular, o Dr.
Pompeu deixará de ser um juiz itinerante e terá aqui a
sede de sua comarca, um moderno e bem equipado posto
de saúde pública atenderá a toda nossa população
necessitada e teremos um espaçoso salão para podermos
fazer nossas reuniões, comemorações e, quando houver
algum julgamento, ali poderemos ter o tribunal do júri.
E voltando-se para o titular da Prelazia, procurou
ganhar-lhe a adesão ao projeto:
- E, meu prezado reverendíssimo Dom Pombal, o
templo será ecumênico, mas a primazia do seu uso é da
Igreja Católica. O senhor é quem terá as suas chaves e
decidirá qual e quando cada denominação religiosa
poderá usá-lo, o que certamente facilitará o seu
apreciável trabalho junto aos demais líderes religiosos na
promoção do ecumenismo universal.
O prelado, com um disfarçado sorriso, aquiesceu a
consideração que o “coronel” dispensou à sua Prelazia.
Também o juiz, ao seu lado, estava entusiasmado, pois
deixaria sua vida de andanças por aquelas estradas
esburacadas e teria um belo e moderno gabinete só seu.

137
Mas, lá do canto da praça três pessoas fungavam de
raiva de tudo aquilo que estava sendo posto pelo arquiteto
e pelo “coronel”.
- Vejam só! Além de alijar a gente duma só tacada,
ainda cooptaram nossos chefes para a banda deles.
Comentou entre os dentes o pároco, quase que
mordendo os próprios beiços.
- Bacharel... um delegado bacharel... um delegado
titular. E eu? Vou ficar como auxiliar dum bacharel ou vão
me mandar embora daqui?
Jogou a pergunta no ar a delegada, pasma e vendo
a que ponto a vingança daqueles dois cunhados podia
chegar.
- E vocês viram como eles ganharam o juiz? Agora,
Drª Gilma, a senhora não terá mais o juiz do seu lado...
ele se bandeou para o lado deles.
Comentou o Élcio.
- E você será servo do capeta, seu coisa! Pois, vai
ter de trabalhar num templo ecumênico, servindo a tudo
quanto é tipo de deus que levarem para lá.
Disse o pároco em tom de ralhação ao seu sacristão.
Desabafando, concluiu:
- E viram como o Dom Pombal se mostrou lisonjeado
por ficar com as chaves do tal templo? Nem triscou sobre
a demolição que farão da igreja... nada. Aceitou tudo de
primeira, até como se já soubesse desse desfecho.
Daí, a delegada não aguentou e espetou o pároco
mais uma vez:
- Tá vendo, padre? Se o senhor me tivesse deixado
resolver isso como devia ser, tinha bastado só um tirinho
de nada, só um furinho bem no meio do peito daquele
servo do capeta e... pronto! Nada deste pesadelo estaria

138
acontecendo. Mas, não, o senhor queria resolver tudo
pacificamente. Viu no que deu o seu tal de
“pacificamente”, viu?
O pároco danou a coçar a cabeça sem parar e sem
lá muita paciência, desandou com a delegada:
- É assassinato! É pecado mortal, “doutora”! Nunca
que eu consentiria numa asneira dessa. Mesmo que fosse
para matar o próprio Cão eu não concordaria... ora bolas!
Continuando a coçar nervosamente a cabeça,
sentenciou:
- E eu já lhe disse que se continuar pensando nisso,
a senhora estará cometendo pecado mortal... e sem
arrependimento... o que vai me impedir de lhe dar
absolvição na confissão, viu?
E a mulher, ainda sem tirar os olhos do palanque,
ainda tentou argumentar:
- Mas, reverendo, eu ainda acho que seria em
legítima defesa. É defesa da Igreja contra esses servos
do capeta... é o tinhoso que está por trás disso tudo.
O pároco, levantando-se e já tomando o rumo da
casa paroquial, para não ouvir mais nada daquilo,
encerrou a prosa:
- Agora quem está com o capeta é a senhora. Está
tentando o padre. Vou embora porque parece que essa
fumaceira toda não é de fogo de artifício não, mas é de
enxofre do inferno.
E os dois ficaram ali sentados vendo a maquete ser
adorada pelo povo entusiasmado e pelas autoridades
embevecidas, como se fosse um novo deus... deus da
enganação e da perdição.

139
O PÁROCO PERDE O SONO

A madrugada ia passando, tudo na praça já estava


quieto, uma sujeira danada resultante da folia do dia de
festa, e o pároco sem sono, debruçado no alpendre da
casa paroquial estava quase que aos prantos.
Pensava ali sozinho:
“Meu Deus, quanta desgraceira! Disseram que vão
demolir a igreja e o bispo nem se aluiu. Disseram que vão
colocar no lugar um templo ecumênico com um monte de
lojas em volta, e o bispo nem pestanejou. Disseram que
vão colocar o poder político bem em riba do templo,
donde era a igreja, e o bispo nem muxoxo fez. Disseram
que vão botar um templo de satanás no alto do prédio, e o
bispo não deu a mínima... a quem, então, vou recorrer,
meu Deus, a quem?”
Seus olhos ficaram merejados enquanto fitavam a tal
maquete toda iluminada lá na frente da praça,
desafiadora, mirando a igreja que estava sombreada, sem
nenhuma luz por perto.
Continuou dando trelas aos seus tristes
pensamentos:
“E o pior é que ninguém percebe como está sendo
iludido por essa falsa promessa de felicidade, só porque
vai ter um... como é mesmo? Ah... um centro de
‘convivência’ que, segundo os enganadores, será capaz
de deixar todo mundo feliz.”
E, passeando o olhar por toda a praça, matutou lá na
sua solidão:

140
“Mas, não dizem às claras que o negócio mesmo é
descartar a Igreja de Deus e botar no lugar o poder
humano e, pior, o do capeta bem no topo.”
Imaginou, então, aquela praça tomada por aquele
imenso prédio todo pintado de branco, “cor da paz”, como
dissera em seu discurso o “coronel” Cezar. Sem nem
mais ter vestígio da igreja, pois seria construído sobre
seus antigos alicerces, soterraria qualquer indício de que
ali existira uma igreja de Deus.
Uma angústia veio tomando conta e o pároco findou
por bater os joelhos no chão duro, sentindo o fôlego curto,
as mãos tremendo e uma suadeira fria lhe tomou conta do
corpo todo.
Não sabe quanto tempo ficou ali, inerte, com o olhar
sumido no vazio, a madrugada rompendo o tempo e um
torpor danado de ruim fazendo desmoronar suas
resistências. Já não conseguia pensar direito, imaginava
estar vivendo um pesadelo. Afinal, tudo aquilo poderia ter
uma saída, uma forma de não acontecer, um jeito de
acabar de vez?
E de mansinho veio aquela vozinha mansa,
fraquinha, mas insistente lá bem no fundo: “a delegada
bem disse que tudo isso pode ser resolvido só com um
tirinho...”
O pároco começou a esmurrar a mureta do alpendre
e com cenho bem fechado dizia a si mesmo:
- Não, não e não! Isso nunca!... é pecado e pecado
grave. Tira-me isso da cabeça, meu Deus.
Resolveu ir para seus aposentos, desmoronou sobre
a poltrona do canto do quarto e ali ficou desligado de tudo
até a alvorada jogar pela janela os primeiros raios de sol.

141
Logo mais levantou-se devagar e devagar rumou
para a sacristia. Vestiu os paramentos sem nenhuma
pressa, esperou o Élcio preparar o altar e então dirigiu-se
cabisbaixo e com passos bem curtinhos para a nave
central afim de celebrar a Santa Missa matutina.
Não dormira, não se alimentara e sequer tomara um
copo d’água. Nem água nas fuças para tirar o cansaço e
nem a barba raspara, pareceria um molambo não fossem
os paramentos limpos e bem passados com que estava
vestido.
Na linha de frente bem próxima à mesa da
comunhão estava lá de véu preto a delegada, de cenho
fechado, mãos postas à frente e olhar marcial.
Durante a Liturgia Eucarística, o pároco relembrou
as palavras de Nosso Senhor Jesus Cristo: “... as portas
do inferno não prevalecerão contra ela”. E de repente ele
percebeu que a verdade estava estampada bem à sua
frente.
Não, a Igreja não sucumbiria à profanação
pretendida pelos poderosos do lugar, ela não se tornaria
numa mistureba de seitas compartilhando o mesmo local
onde se fariam cultos a tudo quanto é tipo de deuses
inventados pelos homens.
Ele só não sabia como isto não aconteceria, mas
tinha fé no que Nosso Senhor Jesus Cristo afirmara... ela
sobreviverá.
Mais animado com esses pensamentos, ele
continuou a celebração da Santa Missa e foi até o fim.
Rogou a Deus que o iluminasse para saber o que
deveria fazer diante daquela situação difícil em que
estava a Igreja ali em Sendas do Abaré.

142
Na sacristia o sacristão quis saber o que fariam a
partir daquele momento, diante dos acontecimentos do
dia anterior.
O pároco deu-lhe uma resposta que deixou o rapaz
meio desconcertado:
- Vamos fazer o que sempre fizemos, Élcio. Vamos
continuar celebrando as Santas Missas nos horários de
sempre e cuidando das necessidades espirituais de
nossos paroquianos. A Paróquia continua sua rotina sem
nenhuma alteração.
- Mas, a igreja vai ser demolida, padre. Onde o
senhor vai celebrar as Missas?
Inquiriu o sacristão, achando que o pároco tinha se
esquecido do que fora dito nos discursos do dia anterior.
O sacerdote então comentou em tom bem calmo:
- Ora! Pelo que entendi a gente tem aí um prazo
antes de eles começarem a mexer na praça. Então,
vamos esperar... confiar na Divina Providência, não é?
O sacristão deu de ombros e arrematou:
- Bom! Se o senhor acha assim... então, está bem.
Vamos tocando o barco para frente.
E ambos deixaram a sacristia cada qual para um
lado. O sacristão no rumo de sua casa e o pároco,
cansado, mas tranquilo, no rumo da casa paroquial.

COMEMORANDO VITÓRIA ANTECIPADA

A boca da noite ia chegando e lá na fazenda do


“coronel” Cezar começavam a se reunir para comemorar

143
o que achavam ter sido um grande feito o arquiteto, o
prefeito, o juiz, o prelado e até uns jornalistas convidados.
Na grande varanda as poltronas estavam ocupadas
por este seleto grupo dos que decidiam os rumos da
cidade. Só que desta vez não estavam tomando café
acompanhado de pão de queijo, mas degustando um fino
vinho português que o “coronel” mandara buscar em
Santana.
O “mandachuva” estava todo sorridente e
distribuindo abraços a todos ali presentes.
O prefeito, desta vez, foi o primeiro a tomar a
palavra, para surpresa até do seu cunhado:
- Meus prezados, o dia de ontem foi um marco
histórico para todos nós. Enfim, vamos transformar nossa
cidade numa referência a todas as outras da região. Até
Santana passará a ver Sendas com outros olhos... podem
apostar.
E todos fizeram um brinde ao sucesso do projeto
que, enfim, se tornaria uma realidade. A praça passaria a
ser o centro das atenções de todos, pois reuniria as
repartições públicas, o comércio, o povo de todas as
crenças e teria espaço para reunir todo mundo.
O juiz, Dr. Pompeu, não se contendo, foi direto ao
que lhe interessava:
- “Coronel” Cezar, o senhor me surpreendeu com a
notícia duma sede de comarca em Sendas. Devo
confessar que fiquei muito satisfeito com a ideia. Mas, já
existe algo de concreto a respeito disto?
A velha raposa alisou o bigodão, passou o braço
sobre os ombros do juiz e procurou tranquilizá-lo:
- Não se preocupe, doutor. Já tive uma conversa
com o governador a esse respeito e ele me disse que se

144
nós, aqui da cidade, garantirmos um lugar adequado para
instalar o fórum, então ele providenciaria uma comarca
para cá, e o senhor como primeiro titular dela. Portanto,
não se aperreie, pois, como o senhor viu lá na
apresentação, esse lugar existirá.
Um dos jornalistas aproximou-se e quis saber se a
prefeitura teria recursos suficientes para bancar aquele
baita projeto. E de novo foi o “coronel” a responder:
- Meu caro repórter, o projeto será tocado por uma
parceria público-privada. A prefeitura entra com o terreno
e eu com o dinheiro para a construção.
E em ar confidencial, cochichou ao jornalista:
- Claro que eu ficarei com a concessão de
exploração do prédio por um bom tempo... o aluguel das
lojas e das repartições públicas que funcionarão lá dentro.
Ainda inquisidor, o rapaz continuou sua entrevista:
- Mas, não é muito dinheiro para ser investido ali
duma só vez, “coronel”? Afinal, a área é bem grande e o
prédio terá três andares. O senhor dispõe de todo esse
montante para tocar a obra do início ao fim?
Então, o fazendeiro apontou suas lavouras que se
estendiam por todo o vale:
- Está vendo tudo isto? Pois será a melhor safra que
estas terras já produziram. As chuvas deste ano têm
ajudado muito. Veja como a plantação está viçosa e
quase no ponto da colheita.
E, ajeitando a gravata no colarinho, comentou:
- No início do mês que vem já acertei a vinda dum
representante do maior armazém graneleiro de Santana,
para fecharmos negócio. Então, meu rapaz, vou ter
dinheiro de sobra para construir todo aquele prédio e até

145
para dar u’a melhorada na aparência do que tiver ao
redor.
O prelado interrompeu a entrevista com o assunto
que estava a lhe incomodar:
- “Coronel”, como é esse negócio da Prelazia ficar
responsável pelo templo que o senhor pretende fazer... eu
poderei definir como ele será usado peles demais
denominações religiosas? Pois, afinal o senhor bem sabe
que a maioria do povo de Sendas é católico e, portanto,
tem o direito à primazia do templo, não é?
O “coronel” procurou amansar também o bispo e foi
no rumo do ecumenismo:
- Ora, Dom Pombal, claro que o senhor é quem
controlará o uso do templo... desde que permita a todos o
usarem, pois será um templo ecumênico, conforme hoje
em dia a própria Igreja Católica faz... o ecumenismo. E o
senhor será a principal liderança desse movimento
ecumênico que, certamente, poderá até servir de exemplo
a muitos outros bispos colegas seus. Já pensou no efeito
maravilhoso que isso pode ter?
Meio que meditativo e tentando disfarçar a euforia,
Don Pombal assentiu moderando as palavras:
- Sim, poderemos fazer isso de forma bem
organizada e com a concordância dos líderes das outras
denominações. Conversarei a respeito disto com o pároco
local para acertar um jeito de atendermos a todos.
Daí, o “coronel” franziu o cenho, pegou pelo braço o
prelado e lhe disse ao pé do ouvido:
- Sei não, Dom Pombal... mas, acho que para uma
empreitada dessa o senhor vai precisar botar aqui um
padre com a mente mais aberta, pois o pároco atual é
muito turrão... ele vai lhe causar problemas.

146
E ainda em tom de confidência, disse ao bispo:
- Veja que eu até já livrei ele de pagar um estrago
tremendo que ele fez aqui em casa com aquele fusca
velho, coisa que a paróquia não teria como pagar, e
mesmo assim ele vive batendo de frente comigo... veja
só!
O prelado então, demonstrando preocupação,
assentiu com a cabeça:
- Sim, se for necessário a gente providencia alguém
com uma visão mais ampla sobre os caminhos da Igreja...
vamos ver.
E, como uma última confidência, o “coronel”
desabafou com o bispo:
- E não é só esse pároco... tem também a delegada.
Ou ela ficará como auxiliar dum bacharel titular da
delegacia, que também já acertei com o governador, ou
ela terá de picar a mula e se mandar daqui. O que não
pode é ter gente atrapalhando ao invés de ajudar.
E dizendo isto, deixou Dom Pombal com o seu copo
de vinho e dirigiu-se ao centro do grupo, declarando:
- Meus amigos! Em breve essa lavoura que vocês
estão vendo em toda a volta, será transformada naquele
maravilhoso prédio bem na praça central de nossa cidade.
Serão outros tempos, tempos de progresso e de muitas
mudanças... de boas mudanças para todos nós.
E levantando bem alto o seu cálice, brindou:
- Ao nosso grande centro de convivência que unirá
todo o povo desta cidade... e que todas as outras morram
de inveja!
E o proserio foi até altas horas da noite, com muito
vinho, muitos salgadinhos e muitas gargalhadas.

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A INESPERADA VISITA DO PRELADO

No dia seguinte mal o pároco terminara de celebrar a


Santa Missa matutina recebeu uma inesperada visita:
Dom Pombal o aguardava à porta da casa paroquial.
Bastante curioso por qual motivo estaria ali o
prelado, o pároco pediu a bênção ao bispo,
cumprimentou-o e o convidou entrar e tomar um cafezinho
consigo. E só aí perguntou:
- Reverendíssimo, a que devo a visita do senhor?
O outro, refestelando-se numa poltrona, respondeu:
- Ora, sou o seu bispo, Pe. Genésio e, estando aqui
em Sendas, vim lhe fazer uma visita e saber como andam
as coisas pela paróquia. E então, o que me diz?
O pároco tentou perscrutar o que poderia haver por
trás daquela consideração toda, não comum por parte do
prelado aos sacerdotes das paróquias do interior. Mas,
não se furtou a comentar:
- Uai, reverendíssimo, pensei que o senhor tinha
vindo só por conta do aniversário da cidade e daquele tal
projeto com o qual, pelo que vi, o senhor pareceu
bastante entusiasmado, não é?
O bispo entendeu bem o recado e, matreiramente,
se esquivou da investida do pároco:
- É... parece que os tempos aqui em Sendas vão
mudar. Notei que o povo está bem esperançoso com as
mudanças que virão.

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Voltando-se diretamente para o pároco perguntou
duma vez:
- E você, Pe. Genésio, o que acha de tudo isso que
está para acontecer?
Então, em tom solene, o padre rasgou o verbo:
- O que eu acho, reverendíssimo? Ora, acho que
demolir a igreja e no seu lugar botar um templo pagão,
cheio de comércios em volta e tendo sobre ele repartições
públicas e ainda, por cima, um templo do capeta... é, acho
mesmo que é uma obra do capeta, Dom Pombal.
E apontando o dedo para o bispo, completou:
- Mas, não entendo é que, sendo aquela coisa obra
do capeta, como é que o senhor concordou com ela sem
mais nem menos.
Já um tanto irritado:
- Acho que o senhor deveria ter sido o primeiro a
botar a boca no trombone e não concordar com tal
profanação do templo de Deus... protestar, bater o pé e
não deixar isso acontecer... É isto o que eu acho, Dom
Pombal.
O prelado, percebendo que o pároco estava ficando
nervoso, preferiu tratar o assunto com mais diplomacia:
- Ora, Pe. Genésio, veja por outro ângulo: será uma
ótima oportunidade para aproximarmos da Igreja os
nossos irmãos separados e os excluídos. Quantas
conversões não conseguiremos assim? Afinal, o
ecumenismo é a tolerância como caridade, não é mesmo?
Ficando ainda mais nervoso o pároco retrucou:
- Conversões no meio dessa gente?... Qual o quê,
Dom Pombal. E veja que quem está orquestrando isso por
trás é o tal “coronel” Cezar, um bode a serviço do capeta.

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No entendimento dele todas as religiões e seitas têm o
mesmo valor... e o senhor sabe que não é assim.
O prelado procurou ser ainda diplomático, mas já
subentendeu um aviso ao pároco:
- Olha, devagarinho nós poderemos ir conduzindo
todo esse rebanho para a Igreja. É isto que penso. Mas,
se você não se sentir à vontade, posso poupá-lo e deixar
que outro tome conta dessa tarefa, viu?
E dando por concluída a visita, arrematou já à saída:
- Pense bem no que eu disse, padre. Você é quem
sabe se vai dar conta dessa missão ou não.
Sem dar prazo para a conversa esticar, foi logo
entrando no carro e saindo rumo a Santana.
O pároco ficou lá à porta da casa paroquial meio
sem ação, imaginando não ser possível o prelado não ter
percebido toda a malícia do “coronel”... ou se tinha
percebido, então, a coisa era bem pior do que ele
pensava.
Absorto nem percebeu a aproximação da delegada e
só se deu por ela quando ouviu sua voz em tom marcial:
- Sua bênção, padre! Pela sua cara a conversa com
Dom Pombal não foi muito boa, não é?
Ainda com os pensamentos distantes, ele respondeu
quase que mecanicamente:
- Não... e pode ser que eu nem mais fique aqui.
A delegada abaixou a cabeça e arrematou:
- Então somos os dois, padre. Eu também não ficarei
para ver a nossa Igreja ser espezinhada por essa gente
ruim.
Nem mesmo ela tinha acabado de falar e um pé de
vento repentino fez a porta da casa bater e deixar o
pároco do lado de fora.

150
E ele já ia ficar danado por ter de, novamente, dar a
volta por dentro da sacristia, quando se lembrou da outra
vez que o mesmo fato acontecera. E estranhamente tinha
sido quando ele com raiva ia na delegacia ralhar com a
Drª Gilma.
Então, lembrou-se da chama da minúscula
lamparina próxima ao sacrário e, sem dar nenhuma
satisfação à delegada, saiu às pressas entrando
afobadamente na igreja e já procurando o nicho do
sacrário.
E qual não foi o susto ao ver que, aio invés de ter se
apagado, a chama estava alta, muito brilhosa, tremulando
inquieta e iluminando bem todo o sacrário.
A delegada foi chegando de mansinho e perguntou
num sussurro:
- O que foi padre? O senhor saiu às pressas...
aconteceu alguma coisa?
E o pároco com os olhos fixos na chama, balbuciou:
- ...o fogo, veja o fogo! Ele está forte, muito
brilhante!...
A mulher voltou-se para o local da pequena
lamparina, fez o sinal da cruz e comentou:
- É... está mesmo. O senhor colocou o que no óleo
dela?
Ainda quase em êxtase, ele replicou:
- Não, não coloquei nada... ela ficou assim sozinha
mesmo.
Meio assustada com a resposta do pároco a
delegada benzeu-se de novo, fez uma genuflexão e
exclamou baixinho:
- Valha-me, Nossa Senhora!

151
Então, o pároco ajoelhou-se e ficou ali imaginando o
que poderia significar aquilo... o pé de vento batendo a
porta e agora a chama do Sacrário brilhando como nunca.
A Drª Gilma foi ajoelhar-se lá no fundo da igreja,
meio assustada e meio curiosa. Sacou o seu terço e pôs-
se a rezar bem ligeiro.

O CAMINHO DA REDENÇÃO

Ficaram os dois ali rezando e matutando no


significado daqueles “avisos”.
A Drª Gilma chegou a rezar o rosário inteiro... os três
terços, os Mistérios Gozosos, os Dolorosos e os
Gloriosos. E o pároco só pedia a luz do Espírito Santo
para entender o “recado” que tinha certeza de estar ali
embutido.
Nem perceberam o sino dando as badaladas do
meio-dia e só foram dar por si quando a Zélia, esposa do
sacristão, chegou para fazer a faxina diária na igreja e,
vendo os dois de joelhos e cada qual pro seu lado
rezando sem parar, arriscou uma pergunta:
- Padre, o senhor quer que eu volte noutra hora?
O pároco, quase sem pensar numa resposta, apenas
meneou a cabeça dizendo que não.
Então, a mulher, apenas comentou já indo no rumo
da sacristia:
- É... será que essa reza toda vai adiantar?

152
O sacerdote de repente parou suas preces e,
devagar, foi voltando-se para aquela mulher e perguntou-
lhe:
- O quê?,,, Vai adiantar?... A reza vai adiantar?...
Levantou-se rapidamente e bradou a plenos
pulmões, como se a igreja estivesse cheia de gente:
- Vai adiantar! Vai adiantar sim!... A reza vai
adiantar. E vai ser muita reza... e vai ser muita penitência
também... e jejum, jejum também. Ah! E tem as novenas...
não podemos esquecer as novenas... elas têm força,
muita força.
As duas mulheres arregalaram os olhos no rumo do
padre que, esbaforido, continuava repetindo que a reza ia
adiantar sim. De início elas não entenderam o que estava
se passando com o pároco. Mas, à medida que ele mais
se agitava, elas, então, começaram a perceber o que
estava acontecendo.
Reza! Orações! Penitência! Jejum! Novena! Era o
que tinham de fazer para combater o mal que estava por
assolar a cidade.
E foi o pároco que findou por clarear as suas
mentes:
- Gente, está bem claro agora! Nós não temos forças
para ir contra esse grande projeto dos poderosos e que já
conseguiu apoio de quase todo mundo. Se depender de
nós, eles vão vencer.
E apontando para o sacrário disse:
- Mas, Ele pode impedir que isso aconteça. Ele,
Nosso Senhor Jesus Cristo é o único que pode... e é isto
que Ele estava querendo mostrar.
Voltando-se novamente para as duas mulheres,
explicou:

153
- E o jeito que sempre foi da gente pedir a Ele
alguma coisa foi pela oração, pela penitência e pelo jejum.
É o que vamos fazer!
Aproximou-se delas e, quase que ordenando, disse-
lhes:
- Chamem todos os paroquianos para a Santa Missa
de amanhã. Quero a igreja cheia, com todos aqui. Daí,
vou pedir que todo mundo faça uma corrente de orações,
penitencie-se e participe duma novena a Nossa Senhora
do Perpétuo Socorro.
Levantou a mão direita para cima e completou:
- Vamos mostrar a esses pagãos que Nosso Senhor
Jesus Cristo atende os pedidos de socorro daqueles que
Lhe são fiéis.
A delegada enfim concordava agora de bom grado
com alguma coisa que o pároco lhe pedia. Iria de porta
em porta convidando cada família para a celebração da
Missa do dia seguinte.
Zélia, por sua vez, foi convocar o marido para
participar daquela missão urgente de socorro.
O pároco virou-se para o sacrário a fim de agradecer
aquela providencial iluminação do Espírito Santo e então
percebeu que a chama de vigilância do sacrário tinha
voltado ao seu brilho normal.
Ao padre aquilo era um sinal de que estava agora
agindo conforme Deus esperava dele.
Satisfeito, fez a genuflexão e o sinal da cruz,
agradeceu e também saiu a convidar seus paroquianos
para a celebração da Santa Missa na manhã seguinte.

154
“E SE FOREM SÓ DEZ OS JUSTOS?” (Gn 18:32)

Se por um lado os poderosos da cidade cantavam


vitória e confabulavam entre si sobre a função de cada um
no projeto e qual o resultado que se esperava ao final de
tudo, por outro lado o grupo de católicos composto pelo
pároco, pela delegada, pelo sacristão e por sua esposa
depositavam suas esperanças nas preces que o povo da
cidade levaria a Deus pedindo que mantivesse a praça só
com a igreja, como sempre tinha sido.
Após o resto do dia batendo de porta em porta dos
paroquianos os quatro voltaram para suas casas certos
de que tinham convidado pelo menos todos que residiam
na área urbana, pois não tinha dado tempo de saírem
também à zona rural.
Mas, para lotar a igreja bastava o povo da cidade
mesmo. Não carecia convidar mais, senão nem caberia
todo mundo lá dentro.
Contudo, o que não sabiam é que o Gênio havia
ouvida sua esposa, Dª Berlinda, comentar em casa sobre
o convite aos paroquianos para que comparecessem à
Santa Missa no dia seguinte.
E, mesmo sem saber ao certo o que estava
tramando o pároco, sem perda de tempo o prefeito
mandou imprimir umas duas dúzias de cópias dum aviso
e afixá-las nos principais comércios da cidade.
Gênio não sabia, mas com tal ação ele tinha
desferido um certeiro golpe nas intenções do pároco, pois
o aviso dizia que todo cidadão que se cadastrasse no

155
posto de saúde a ser inaugurado dentro do novo prédio
que se construiria na praça, teria isenção do imposto
municipal por um ano.
Claro que um pouco antes de assinar o aviso tratara
de combinar com o “coronel” Cezar que esse custo
adicional teria de ser bancado por ele. Mas, que não se
preocupasse, pois seria ressarcido no ano posterior ao da
isenção, em face do subsequente aumento dos impostos.
Cansados da andança pelas ruas da cidade
convidando os fiéis, o pároco, a delegada, o sacristão e
sua esposa não se deram conta das aglomerações de
gente nas portas dos comércios em que foram afixadas as
cópias do aviso da prefeitura.
Para eles o importante agora seria levantar cedo,
preparar tudo nos mínimos detalhes para a celebração da
Santa Missa e, na homilia o pároco então explicaria a
urgente necessidade de todos começarem a rezar,
penitenciar-se e participar da novena.
Mal a alvorada lançou claridade na torre da igreja, o
pároco já se levantara e postara-se de joelhos diante da
imagem de Nossa Senhora rezando intensamente. E por
ali ficou até perto de começar a celebração da Santa
Missa.
Na sacristia, enquanto estava se paramentando com
todo cuidado, foram chegando o sacristão, sua esposa e a
delegada. Pediram a bênção e foram preparar a igreja
para a Missa.
Não demoraram muito e voltaram um tanto
perplexos.
A delegada tomou a frente:
- Reverendo, a igreja está vazia!... Tem só uns gatos
pingados cá nos bancos da frente.

156
Foi preciso ele ir lá ver para crer. E era isto mesmo,
só tinha três senhoras do Apostolado da Oração e dois
vicentinos e, por incrível que pareça, a Dª Berlinda.
Contando com ele, o sacristão, a Dª Zélia e a Drª
Gilma, nada mais que dez criaturas de Deus dentro
daquela igreja para assistir a Santa Missa e ouvir o
pároco pedir orações, penitência e jejum.
Ele ficou ali estático à porta da sacristia, olhando
desanimado para aquelas seis pessoas assentadas nos
bancos da frente.
Voltou-se para dentro, andou até a grande cômoda
em que se guardavam os paramentos, apoiou-se nela,
abaixou a cabeça, fechou os olhos e assim ficou por
algum tempo, enquanto a delegada, o Élcio e a Dª Zélia o
fitavam com pena e tristeza.
Depois de algum tempo, suspirou profundamente,
abriu os olhos, desencostou-se do móvel e, voltando-se
para os três, disse a meia voz:
- Vamos celebrar a Missa conforme previsto.
Dito isto, dirigiu-se para o altar e deu início à
celebração.
Fez questão de ler a passagem do Evangelho sobre
a destruição de Sodoma e Gomorra:
- “Disse-lhe, pois, o Senhor:
‘As acusações contra Sodoma e Gomorra são tantas
e o seu pecado é tão grave que descerei para ver se o
que eles têm feito corresponde ao que tenho ouvido. Se
não, eu saberei’ [...]
Abraão aproximou-se e disse:
‘Exterminarás o justo com o ímpio? E se houver
cinquenta justos na cidade? Ainda a destruirás e não
pouparás o lugar por amor aos cinquenta justos que nele

157
estão? Longe de ti fazer tal coisa: matar o justo com o
ímpio, tratando o justo e o ímpio da mesma maneira.
Longe de Ti! Não agirá com justiça o Juiz de toda a
Terra?’
Respondeu o Senhor:
‘Se Eu encontrar cinquenta justos em Sodoma
pouparei a cidade toda por amor a eles’.
Mas Abraão tornou a falar:
‘Sei que já fui muito ousado a ponto de falar ao
Senhor, eu que não passo de pó e cinza. Ainda assim
pergunto: E se faltarem cinco para completar os cinquenta
justos? Destruirás a cidade por causa dos cinco?’
Disse o Senhor:
‘Se encontrar ali quarenta e cinco não a destruirei’.
‘E se encontrares apenas quarenta?’
Insistiu Abraão.
Ele respondeu:
‘Por amor aos quarenta não a destruirei’.
Então continuou Abraão:
‘Não te ires, Senhor, mas permite-me falar. E se
apenas trinta forem encontrados ali?’
Ele respondeu:
‘Se encontrar trinta, não a destruirei’.
Prosseguiu Abraão:
‘Agora que já fui tão ousado falando ao Senhor,
pergunto: E se apenas vinte forem encontrados ali?’
Ele respondeu:
‘Por amor aos vinte não a destruirei’.
Então Abraão disse ainda:
‘Não te ires, Senhor, mas permite-me falar só mais
uma vez. E se apenas dez forem encontrados?’
Ele respondeu:

158
‘Por amor aos dez não a destruirei’ " (Gn 20-32).
O pároco passeou o olhar na direção de cada um
dos nove presentes à sua frente e disse em tom bem
sonoro:
- Em Sodoma e Gomorra Abraão não encontrou nem
esses dez, mas aqui em Sendas do Aracaty somos os dez
que vamos implorar a Deus para que os servos do mal
não consigam substituir a igreja dEle por um prédio de
profanação, que virá para afastar as criaturas humanas de
seu Criador e encaminhá-las para o inferno.
Tomando fôlego, passou a detalhar seu plano de
orações:
- Para Deus mais interessa a qualidade dos fiéis do
que a sua quantidade. E esta que está aqui é a Igreja de
Nosso Senhor Jesus Cristo nesta cidade... dez pessoas!
Dez pessoas com fé firme e inabalável.
- Teremos que salvar a cidade e será com muita
oração, penitência, jejum e novena. O ostensório com a
Hóstia Consagrada ficará exposto por 24 horas durante
nove dias. Mas, nós não deixaremos em nenhum
momento ele desguarnecido e sem orações. Vamos nos
revezar em turnos seguidos pelas 24 horas e pelos nove
dias da novena a Nossa Senhora do Perpétuo Socorro.
E tentando perceber a reação nos rostos dos poucos
presentes, continuou:
- Cada um de nós ficará aqui de joelhos e rezando
por duas horas diárias e eu ficarei por seis horas. As
Missas continuarão acontecendo todos os dias às 8 horas
da matina e vamos oferecê-las a Deus pela Paróquia de
Sendas. A novena será às oito da noite.
Descendo para perto do pequeno grupo,
acrescentou:

159
- Penitência: abdicaremos do nosso tempo livre
nesses dias para dedicarmo-nos à oração. E o jejum:
faremos uma só refeição por dia que seja suficiente para
nos sustentar durante cada um desses dias da novena.
Novamente fixando-se em cada paroquiano ali
presente, concluiu:
- O que faremos nesses próximos nove dias será
suplicar a Deus por Sua proteção à nossa Paróquia, pois
é a única forma de impedir que aquele projeto do mal aqui
aconteça. Espero que entendam isto. E se alguém de
vocês não quiser participar desse nosso esforço de
oração... paciência. Vocês são livres para decidirem.
E colocando a mão sobre o peito, afirmou:
- Eu não desistirei! Se for preciso, faço sozinho a
novena, as orações, as penitências, o jejum e ficarei aqui
com Nosso Senhor Jesus Cristo presente na Hóstia
Consagrada.
Terminou assim sua Homilia e deu prosseguimento à
celebração Eucarística.
Logo após a bênção final o grupo aproximou-se dele
e um por um foi dizendo se dispor a participar daquele
esforço de oração em prol da sobrevivência da Igreja
naquele lugar.
Tal atitude daquele punhadinho de gente animou o
pároco que foi abençoando cada um daqueles
paroquianos.
Resolveu acompanhá-los até a saída da igreja,
detalhando como aconteceria tudo, conforme ele tinha
rapidamente planejado enquanto estava debruçado lá na
cômoda da sacristia.
Ao chegar à saída o grupo voltou-se para a porta da
prefeitura, donde partiam estrondosas gargalhadas.

160
Estavam lá o prefeito, o “coronel”, o arquiteto e mais
u’a meia dúzia de apaniguados fazendo piadas sobre a
minúscula quantidade de pessoas que atenderam ao
convite do pároco.
Gênio só fechou a cara quando viu que sua esposa
fazia parte daquele grupo. E mais ainda quando o
cunhado mangou dele:
- Uai, compadre! Olha lá... sua patroa está no meio
deles. Você num tem autoridade em casa não, é?
E para espezinhar mais ainda:
- Lá em casa a Alexandrina que num se meta a
besta, pois na fazenda o dono do gado sou eu e minhas
são as ordens.
Gênio fez que não ouviu o cunhado e caçou rumo
pro seu gabinete, como se tivesse algo urgente a fazer.

DIAS DE MUITA EXPECTATIVA

A novena começou e o pároco se dispôs ao primeiro


turno, da meia noite até às seis da matina.
Passou a noite em claro rezando, meditando, e cada
vez que o cansaço chamava o sono, ele tomava um
pouco d’água, passava um pouco no cangote para
despertar e às vezes recorria à garrafa de café, mas
continuava ali de frente para o altar, como se estivesse
tendo uma longa conversa com Nosso Senhor Jesus
Cristo.

161
Às seis em ponto chegou a Dª Berlinda que, após
pedir-lhe a bênção, ajoelhou-se e pôs-se a rezar o terço.
O pároco então foi até os seus aposentos para um
banho e um rápido cochilo antes da hora da Missa.
Enquanto isso o resto do pequeno grupo foi
chegando e tomando lugar na igreja à espera do início da
celebração.
A Missa foi breve e logo que terminou o Élcio ajeitou
os paramentos na sacristia, arrumou tudo ali por perto do
altar e deu início ao seu turno de vigília junto ao
Santíssimo Sacramento.
E assim foi aquele dia e também os dias que se
seguiram. Em todos eles o pequeno grupo de
paroquianos fazia a novena às oito da noite, rogando a
Nossa Senhora do Perpétuo Socorro que intercedesse
junto ao seu amado Filho pelas necessidades urgentes da
paróquia e salvasse aquela igreja da demolição.
Porém, entre a prefeitura e a fazenda do “coronel” a
movimentação era intensa. Era caminhonete prá cá e jipe
prá lá o tempo todo. Mesmo chovendo e fazendo lama na
estrada a zanzação não se aquietava.
Um dia, ao terminar a celebração da Santa Missa
matutina, o grupo percebeu que estavam fazendo alguma
coisa na praça. Todos, com o coração na mão, correram
para a saída da igreja ver o que estava acontecendo.
Lá se depararam com um pessoal com aparelhos de
topografia tomando medidas da praça. Fincavam
piquetes, posicionavam a mira, faziam visadas num
teodolito, anotavam tudo, apontavam prum lado e prá
outro... enfim, parecia que o tal projeto iria ter início.

162
Aquilo deu arrepio danado na turma da igreja e a
delegada, mais que depressa, correu lá para tomar
satisfação com o topógrafo que chefiava a equipe:
- O que o senhor está fazendo aqui? Quem autorizou
vocês a virem fincar estacas aqui nesta praça?
O rapaz, percebendo pelo crachá que ela era a
autoridade policial por ali, procurou safar-se da
responsabilidade:
- Ó, dona. Só estou fazendo meu trabalho. Medindo
o que me mandaram medir. Se a senhora tiver alguma
bronca com isso, fale com o Dr. Oscar. O serviço é dele,
viu?
E ela não se fez de rogada, foi direto ao prédio da
prefeitura onde estava o arquiteto. Entrou bufando, quase
botando fogo pelas ventas e, abrindo a porta num
safanão, apontou o indicador no rumo do arquiteto já lhe
inquirindo com rispidez:
- Que estória é essa de medir a praça? O senhor
não tem autorização para nada disso. Pode mandar
aquele pessoal arrancar aquelas estacas e sair de lá.
Surpreso com a entrada inesperada e com todo
aquele rompante, o homem apenas fez um sinal para que
ela esperasse um pouco e saiu da sala.
Mas, não demorou muito e voltou com o prefeito a
tiracolo que, de cara, não deixou escapar um largo sorriso
de satisfação:
- Incomodada com a equipe de topografia lá na
praça, delegada? Pois é só o começo. A senhora pode
guardar um pouco da sua raiva para depois, quando a
obra estiver tomando corpo, viu?
E para deixá-la ainda mais desatinada, empinou as
fuças e solenemente disse:

163
- Eu, Gênio Brisolla, prefeito de Sendas do Abaré, a
maior autoridade municipal, autorizei o Dr. Oscar
Ouromaier a fazer a medição da praça, para o nosso
grandioso projeto de modernização desta cidade... a
despeito de um punhadinho de retrógrados que se
esconde dentro daquela igreja, ouviu?
Antes mesmo que ela saísse de sua perplexidade,
ele ainda espetou:
- E a senhora, como autoridade policial, tinha o
dever de estar garantindo que esse grupelho de
retrógrados não atrapalhasse o progresso da cidade, ao
invés de ficar aí dando-lhe cobertura.
Dito isto, puxou o arquiteto consigo, voltando para o
seu gabinete.
A Drª Gilma ficou lá boquiaberta, faiscando de raiva,
mas sem nada poder fazer. Fez meia volta e saiu batendo
os pés o mais que podia. Parece que queria descarregar
no piso da prefeitura toda a sua ira contra o prefeito.
Voltou para a porta da igreja onde o grupo ainda lá
estava observando o trabalho de medição da praça.
- E então, Drª Gilma, o que lhe disseram lá na
prefeitura?
Quis saber o pároco.
E ela, procurando se controlar, respondeu:
- É ordem do prefeito... estão medindo por conta do
tal projeto.
Um desânimo foi tomando conta de cada um, como
se tudo o que estavam fazendo não estivesse adiantando.
Em silêncio foram se dispersando e só ficaram o
pároco e um dos vicentinos que, então, assumiria aquele
turno da vigília ao Santíssimo Sacramento.

164
Na fazenda o “coronel” se preparava para receber o
representante do maior armazém graneleiro da região,
que faria a avaliação, a oferta e compra de sua grande e
vistosa safra.
- Que bom! As chuvas deste ano estão sendo fartas
e estão ajudando. A gente anda por toda a roça e vê que
está tudo viçoso, pronto prá colher.
Dª Alexandrina se achegou ao marido e com a voz
bem adocicada comentou quase como se estivesse
perguntando:
- Entrando esse dinheiro todo vai dar para eu fazer
aquele passeio que eu sempre quis lá pela Europa, não é
mesmo, meu querido?
A velha raposa dos negócios, ajeitou o bigodão,
virou-se para a mulher e, levantando uma das
sobrancelhas, disse como se fosse algo sem importância:
- É... agora até pode ser... vamos ver.
Mas, bastou esse aceno do marido para a madame
ficar toda feliz. Enfim, realizaria o seu sonho de conhecer
Paris.
E os dias foram passando.
De um lado o pequeno grupo de paroquianos
continuava se revezando na vigília, assistindo as Missas,
fazendo a novena, penitenciando-se e fazendo jejum.
Pelo outro lado a turma do prefeito agilizava os
preparativos para o início das obras de construção,
enquanto o “coronel” estava lá envolvido com a
negociação de venda de sua safra, que garantiria o
custeio da obra.

165
O FIM DA NOVENA E A VENDA DA SAFRA

Sim, a novena ia chegando ao seu final. Era o último


dia e o pároco celebrava a Missa enquanto uma chuva
mansa não dava trégua, deixando a entrada da igreja
cheia de lama.
Também a entrada da prefeitura estava enlameada,
mas o grupo lá de dentro estava era animado, rindo para
as paredes e satisfeito com o andar dos preparativos.
Pois, afinal, o serviço de meteorologia previa céu aberto e
muito sol para dali a uns dias quando, então, poderia
começar a montar o canteiro de obras para dar início à
construção.
Na fazenda, apesar da chuva, o “coronel” passara
um bom tempo rodando em sua caminhonete com o
pessoal do armazém graneleiro. Mostrou tudo e percebeu
que os compradores ficaram satisfeitos com o que viram.
No casarão da fazenda negociaram os valores e,
sabendo negociar muito bem, o “coronel” conseguiu até
mais do que havia imaginado.
Todos felizes com o negócio feito, brindaram e
acertaram de se encontrar no dia seguinte no cartório de
Santana para assinar o contrato.
Mal o jipão “Land Rover” com a logomarca do
armazém sumiu lá no alto do morro, Cezar mandou um
peão avisar ao prefeito que o negócio fora fechado com
sucesso e, uma vez assinado o contrato, botaria as mãos
no dinheiro e, então, poderiam começar as obras.

166
E ainda acrescentou: pode estourar a “champanha”
aí com o Dr. Oscar, pois a ocasião merece um grande
brinde.
Durante o dia, o aguaceiro não arredou o pé. O céu
fechado, com nuvens baixas, um vento frio e úmido, lama
para todo lado... parecia mesmo um mau agouro aos que
se revezavam na vigília lá na igreja.
O pároco suplicava sem parar a Senhora do
Perpétuo Socorro que intercedesse mais, que insistisse
com seu amado Filho que olhasse o desespero daqueles
dez... os dez que não foram encontrados em Sodoma e
Gomorra, mas que ali em Sendas estavam há nove dias
de joelhos no chão implorando para que o mal ali não
vencesse.
Lá pelas oito da noite começou a última reza da
novena e logo no início um barulho no fundo da igreja fez
o grupo para lá se voltar e, então, viram que um meio
metro do forro do teto se soltara e por ali passou a gotejar
água da chuva.
O sacristão fez menção de ir até lá para ver o que
podia fazer. Mas, o pároco fez sinal a ele que não, que
continuasse a rezar com os demais.
Então, rezaram a última parte daquela novena e ao
final o sacerdote deu a bênção e pediu que, quem
pudesse, ficasse com ele ali, rezando, até dar meia
noite... e todos ficaram.
Logo que se ajoelharam de novo ouviram outro
barulho lá no fundo da igreja... mais um metro do forro se
rompera lá no teto e a água da chuva agora entrava como
uma biqueira, estralando quando batia no piso de
cerâmica.

167
Mais uma vez Élcio fez menção de ir lá, e
novamente o pároco lhe fez sinal que continuasse com
eles rezando.
Parecia que a igreja, antes que fosse demolida por
gente ruim, queria ela mesmo se desfazer e não lhes dar
o gosto de que derrubasse uma a uma de suas paredes,
regozijando-se com tal feito e cantando vitória.
E com a chuva engrossando, não demorou para que
mais um pedaço do forro viesse abaixo, aumentando o
aguaceiro dentro da igreja.
O pequeno grupo de paroquianos agora rezava
apavorado, com medo de que o forro todo ruísse e
desmoronasse em riba deles.
O pároco cerrava o mais possível os olhos e
apertava aos mãos entrelaçadas, desligando-se de tudo
que estava à sua volta. Sua mente estava lá dentro do
Ostensório, bem juntinho com a Hóstia Consagrada.
E, daí, o sino badalou meia-noite!...
Ele levantou os olhos para cima e disse em voz alta:
- Fizemos o que podíamos, meu Deus! Agora está
em Vossas mãos. Seja qual for, que seja feita a Sua
vontade e nós a aceitaremos de bom grado. Louvado seja
Nosso Senhor Jesus Cristo!
- Para sempre seja louvado. Amém!
Responderam os demais, que por ali ainda
continuaram inertes, junto do pároco... apenas ouvindo o
barulho da água caindo aos cântaros lá no fundo da
igreja.
Enquanto o clima dentro da igreja era de desolação
e tristeza, lá na fazenda o “coronel”, antes de se recolher
com Dª Alexandrina à sua acolhedora suíte a “La Luís
XV”, se ufanava com o bom negócio que estava fazendo e

168
com as boas perspectivas ao seu grandioso projeto que
lhe renderia muito com as lojas, com os aluguéis dos
espaços aos órgãos públicos e que, além de sumir de vez
com a igreja, arregimentaria todas as demais religiões sob
a batuta de sua loja maçônica, que teria lugar de grande
evidência naquele portentoso Centro de Convivência e
também em toda a cidade. Enfim... vencera!
Ofereceu o braço à Dª Alexandrina que, então, nele
repousou sua mão. Mas, antes que entrassem na suíte,
ouviram batidas insistentes e fortes na porta da frente.
Ora! Quem poderia ser naquela hora da noite?
Curioso, foi lá abrir e ver quem era.
- Coronel!... Coronel!...
Gritava-lhe um seu peão, todo apavorado.
- O que foi, cabra! Que agonia toda é essa?
Perguntou Cezar meio espantado com a atitude de
pânico do seu empregado.
- A represa!... A represa estourou... rompeu! Tá
vindo um mundão d’água e lama por aí!... A gente tem de
sair depressa... depressa mesmo!... Senão a gente vai
morrer aqui!
Só aí que o “coronel” percebeu um leve tremor no
chão, como se u’a máquina muito pesada estivesse
passando ali por perto.
Arregalou os olhos, estufou o peito e gritou:
- Alexandrina, vamos!... Depressa, mulher...
depressa!
E antes que ela pudesse se dar conta do que estava
acontecendo, ele a puxou pelo braço com toda força em
direção à saída da casa, berrando a plenos pulmões:
- Saiam!... Saiam todos! Corram lá prá cima do
morro... depressa!

169
E aquele tremor, antes mansinho, foi crescendo e
crescendo, enquanto um rugido grave foi tomando conta
do ambiente, como uma grande fera desembestada pelo
meio do vale.
O “coronel” saltou para dentro da boleia da
caminhonete seguido às pressas pela esposa e a
peãozada se aboletou na carroceria, o veículo saltou para
frente roncando alto e já saiu rumando para a ladeira que
findava no topo do morro.
Sacode daqui e sacode dali, joga lama para todo
lado, o “coronel” gira o volante à esquerda e depois à
direita, muda marcha ligeiro, pisa no acelerador, faz o
motor reclamar, mas num arrega de ganhar chão para
fugir da torrente de lama que vem chegando cada vez
mais rápida e barulhenta.
Os peões, se agarrando como podiam lá atrás,
batiam com insistência na capota da boleia gritando para
ir mais e mais depressa, pois estava vindo água ligeira e
de montão.
Os faróis bem sujos de lama já quase não faziam
efeito e o “coronel” foi então pelo rumo, pois já conhecia
aquela trilha como a palma da mão.
Quando estralou um raio, o relâmpago iluminou o
vale e o pessoal da carroceria conseguiu ver aquele
mundo d’água e lama se esparramando com fúria por
todo o vale... é de assustar qualquer valentia.
Já quase no topo do morro, o “coronel” erra o rumo e
as rodas dum lado entram feio numa vala e a
caminhonete atola.
Acelera, engata primeira, traciona, reduz, dá ré,
tenta para frente e tenta para trás e... nada. Até parece
que, quanto mais insiste, mais as rodas afundam.

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Enfim, desiste. Mas, acha que já está acima donde a
água pode chegar. E de fato está mesmo, pois mais uns
clarões de relâmpagos deixam ver que a desgraceira ficou
para trás.
A chuva continua e os raios vão se escasseando,
jogando a noite numa escuridão de dar medo.
Não tinha para onde ir. O jeito era ficar quietinho ali
e esperar o sol raiar.
Ninguém abriu o bico para nada. Estavam todos
muito assustados, cansados e tremendo, talvez de medo
e de frio, pois estavam todos ensopados e umas lufadas
de vento frio açoitavam o grupo todo encolhido na
caminhonete, que jazia pensa pruma banda da estrada.
Dª Alexandrina se encolheu toda no banco do
passageiro, fechou com força os olhos e tentou se
desligar daquele horror todo.
Cezar se debruçou sobre o volante e também fechou
os olhos, extenuado pelo enorme susto e pelo esforço em
escapar da morte certa.
A peãozada lá na carroceria se encolhia toda,
tentando se aquecer uns nos outros, enquanto a chuva
continuava a castigar a cacunda de cada um.
Com o decorrer da madrugada, a chuva de
mansinho foi afinando, até virar um chuvisco leve e depois
uma garoa.
A alvorada demorou um pouco, pois o céu ainda
estava bem coberto. Mas, tão logo foi clareando, o
“coronel” apeou para ver o tamanho do estrago. E quando
viu... cruzes! Ficou estarrecido.
Todo o vale tinha sumido debaixo dum grande lago
de lama cheio de pedaços de árvores arrancadas,

171
destroços de todo tipo, inclusive de casas, paióis e
currais.
Dª Alexandrina, quando viu que a sua grandiosa
casa havia sumido debaixo daquilo tudo, entrou num
choro convulsivo que ninguém conseguia fazer parar.
Os peões olharam para aquela desgraceira toda
tristes, pois perderam o pouco que tinham e certamente
perderiam também seus empregos.
O “coronel” bateu a mão na cabeça com força, deu
um urro e pôs-se a chutar com muita raiva a porta da
caminhonete, rogando cada praga cabeluda que assustou
até os peões.
Um deles ainda se arriscou a intervir:
- Calma, patrão!... Calma...
E acabou sentindo o ódio que tomava conta do
“coronel”:
- Calma?!... Calma?!,,, Cê quer calma, é?... Vem cá
que eu vou te dar uma bem no pé do ouvido, fio do cão!
E avançou para cima do rapaz que, incontinenti,
afastou-se rápido do alcance de seu furioso patrão.
Depois, voltou-se novamente para onde era o vale e,
entre os dentes, rosnou praguejando:
- Porca miséria!... Minha lavoura... foi-se! Toda
perdida. Não ficou uma só planta... tudo destruído. A
fazenda está toda debaixo desse lamaçal desgraçado, fio
duma égua!
Não conseguindo conter a raiva, desferiu mais um
violento chute na caminhonete. Porém, desta vez doeu e
ele saiu mancando e xingando. Possesso, sacou a arma
do coldre e descarregou o tambor contra o mar de lama à
sua frente, como se pudesse lhe causar algum mal.

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Voltou-se para um de seus peões e disse, com ares
de muito cansaço:
- Vá até a cidade e peça para aquele imprestável do
meu cunhado mandar alguém com o jipe aqui nos
resgatar.
O peão, vendo que o velho estava furioso, tratou de
tomar rumo e sumir ligeiro pela estrada.

O JOGO VIRA... A IGREJA ESTÁ SALVA

Patinando pelo lameiro, após algumas horas, o peão


enfim conseguiu chegar à cidade e, antes mesmo de
entrar na prefeitura, foi abordado pela delegada que,
vendo o homem naquela sujeira e vindo a pé lá das
bandas da fazenda, ficou curiosa:
- Uai, caiu da montaria, “seo” menino?
- Que nada, doutora. Vim na sola da botina mesmo.
É que o patrão tá atolado lá no alto do morro e vim a
mando dele dizer pro “seo” Gênio mandar socorro.
Respondeu afobado o rapaz.
Ela, estranhando, voltou a inquirir o peão:
- Mas, num seria mais fácil ele pedir socorro à sede
da fazenda, que fica bem mais perto?
A resposta do rapaz deixou a delegada quase que
em choque:

173
- Que fazenda o quê, doutora!... Tá tudo debaixo
d’água e lama... a represa estourou e inundou o vale todo.
E sem demora pediu licença e embicou prefeitura
adentro à procura do prefeito.
Gilma não conseguia se aluir e continuava com a
boca aberta, quando o prefeito saiu espavorido e sem
mais pulou para dentro do jipe, deu partida e saiu às
pressas.
O peão surgiu à porta da prefeitura e ficou vendo o
jipe sumir no rumo da fazenda.
Então, a Drª Gilma finalmente conseguiu se refazer e
o chamou:
- Venha cá! Vamos lá na delegacia que, enquanto
você toma um café quentinho, vai me contar direito essa
história da represa.
E quase intimando o rapaz, fez-lhe sinal que
seguisse à sua frente.
Mal chegaram ao prédio, ela indicou-lhe onde lavar-
se daquela lama toda e serviu-lhe uma caneca de café
pelando e um pedaço de pão com manteiga.
Sentou-se à mesa e passou ao interrogatório:
- Conta aí essa conversa da represa... ela rompeu,
é? E daí, como foi?
- Pois é, doutora... acho que as compotas não
conseguiram dar vazão ao tanto d’água dessa chuvarada
que já vem há dias, e a pressão foi muita... foi só um
estouro e aquele mundão d’água despencou no rumo do
vale e encheu ele todo.
A delegada inquietou-se na cadeira, ajeitou-se prum
lado e pro outro e quis saber mais:
- Mas, encheu o vale todo como?,,, todinho, sem
ficar nada? A água chegou até onde?

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O peão, agitando-se um pouco, continuou a sua
narrativa:
- Ó, a água chegou até quase o topo do morro de
frente à sede da fazenda. Cobriu tudo... casas, paióis,
currais, plantações, levou gado, porcos, galinhas... tudo,
não sobrou nada.
E, tomando fôlego, completou:
- Só escapamos porque montamos na caminhonete
do patrão e ele pisou fundo até ela encrencar lá no alto do
morro... passamos o resto da noite lá... debaixo de chuva.
A delegada não sabia se ria, se chorava, se ficava
alegre ou se ficava pesarosa.
Coçou a cabeça, esfregou os braços e disse ao
peão:
- Se levanta daí e vai agora lá para a igreja. Vou
chamar umas pessoas e encontro com você lá... aproveita
para rezar e pedir perdão a Deus por servir àquele servo
do tinhoso, que é o seu patrão.
Enquanto o rapaz ia para a igreja, a delegada foi em
busca do grupo que participou da novena, até do pároco.
Tão logo o grupo se reuniu nos bancos próximos ao
altar, muito curioso por ter sido convocado às pressas
pela delegada, ouviram o pároco tomar a frente:
- Mas, do que se trata, para que a senhora nos
chame aqui nessa pressa toda?
Então, ela levantou os braços na direção do sacrário
e disse bem alto:
- A igreja está salva! A igreja está salva!
Os demais a olharam espantados, achando que ela
ficara louca ou coisa assim.
De novo o padre tomou a frente:

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- Como é que é isso, Drª Gilma? O que a senhora
está dizendo? Perdeu o juízo, é?
E ela, com os olhos marejados, virou-se para o
peão:
- Conte, conte aí tudo o que você me contou. Conte
a eles o que aconteceu nesta noite.
Então, o rapaz pôs-se a detalhar novamente a
tremenda tragédia que se abatera sobre a fazenda do
“coronel” Cezar.
A cada minuto do seu relato o grupo espichava os
olhos no rumo dele, como que querendo entrar na sua
mente e apressar o fim da história.
E quando ele confirmou que a grande safra que
garantiria custear a construção do tal Centro de
Convivência no lugar da igreja tinha sido sepultada pelo
lamaçal, o grupo deu um baita suspiro de alívio.
Sim! A igreja estava salva!
Então, o pároco pensou um pouco e perguntou ao
peão:
- Você se lembra a que horas isso aconteceu... de a
represa romper?
O rapaz fez uma careta, olhou para cima e disse:
- Foi... foi por volta da meia noite.
O pároco então se levantou, voltou-se para o fundo
da igreja e, olhando para o grande buraco no forro do teto,
exclamou:
- Foi a hora em que o teto se rompeu e que as
nossas rezas estavam mais desesperadas, gente! Foi
naquela hora!
Os presentes se entreolharam assustados e sem
dizer nada foram se ajoelhando voltados para o Altar Mor.
O pároco então emocionado disse:

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- Deus atendeu as nossas preces, Ele aqui venceu a
luta contra o mal, por nós.
Pensou mais um pouco e avisou:
- Vamos fazer uma novena em agradecimento e,
durante ela, as Santas Missas serão dedicadas à Nossa
Senhora do Perpétuo Socorro.
E, de joelhos no chão, muito emocionados,
começaram a rezar o terço.
Lá fora o vento ficava mais intenso e retirava as
últimas nuvens do céu. O sol clareava a praça e um
calorzinho gostoso foi devagarinho secando o gramado ao
redor da igreja.
Lá dentro o terço continuava:
- ...Santa Maria, mãe de Deus. Rogai por nós,
pecadores, agora e na hora da nossa morte. Amém!”

ENFIM, A NORMALIDADE VOLTA A SENDAS DO


ABARÉ... A NORMALIDADE DE DEUS

Nem bem o jipe parou perto da caminhonete atolada


e Cezar tomou assento junto com Dª Alexandrina. Já era
o começo da tarde e um vento brando, mas constante, ia
levando as nuvens embora. Alguns raios de sol até se
arriscavam a aparecer.
Gênio ficou muito assustado ao ver o estrago feito. O
vale era só lama e destroços.
Logo entendeu que sem safra não tinha dinheiro e
sem dinheiro não haveria construção... e ele teria de
enfrentar o descontentamento do povo, que já estava na

177
expectativa do prometido Centro de Convivência e da dita
isenção de impostos.
Cezar permaneceu mudo, sem abrir o bico para
nada. Alexandrina, chorosa, também não queria conversa.
Gênio ficava só matutando uma saída para aquela
situação difícil. Nem queria saber do aperreio do cunhado
e de sua irmã, pois agora estava com uma baita batata
quente nas mãos.
Avistando a cidade, Cezar, bem abatido, mas ainda
fungando de raiva, bradou ao cunhado:
- Passa direto! Leva a gente lá para Santana. Não
quero ver esse raio de cidade nunca mais... a desgraça
da minha vida.
E assim seguiram sem parar em Sendas, mas ainda
foi possível ver à porta da prefeitura o arquiteto olhando
dum lado pro outro, sem saber o que fazer dali em diante.
O juiz não deu mais o ar da graça... e o bispo
também não.
O dia seguinte era Domingo e, então, a igreja
deveria ficar lotada de paroquianos para assistir a Missa
de preceito... mas, não!
Só estavam aqueles poucos que participaram do
esforço de oração para salvar a igreja.
Já os outros muitos que passavam ali por perto
fechavam a cara, pois o sonho de terem ali um suntuoso
Centro de Convivência escafedeu-se.
O pároco então fitou com certa satisfação os poucos
fiéis presentes à Missa e disse-lhes:
- Esta é a nova Igreja de Cristo! Pequena, mas
inabalável em sua fé. Vamos dar início à celebração da
Santa Missa. Em nome do Pai, do Filho e do Espírito
Santo!

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OSTENSÓRIO SACRÁRIO

LÂMPADA (VELA) DO SACRÁRIO GENUFLEXÓRIO

CONFESSIONÁRIO

(Facebook do autor: Zé Itatiaia)

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