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EM TEMPOS PASSADOS...
LÁ! UM AVIÃO!... UM DOUGLAS!

O velho Douglas DC-3/C-47 atendia o vasto interior do país.

Sim, lá naquela época em que as coisas eram mais


difíceis do que hoje, na grande e vasta região das selvas
amazônicas.
Era uma tarde de calor mormacento, como tantas
outras.
Há um quilômetro e meio da cabeceira da pista do
lado do rio do velho e bastante usado aeroporto daquela
metrópole tropical, um velho avião Douglas deixava já visível
o seu grande trem de pouso.
Na cabine apertada o comandante Bonifácio pedia ao
seu copiloto que comunicasse à torre de controle o pouso da
pachorrenta ave metálica que findava mais um de seus voos
por aquelas bandas. Mais uma viagem por aquele interior de
mata e água que, então, chegava ao fim, com o
característico chiado de borracha tocando de vez o piso de
asfalto e deslizando rumo à cabeceira a pista.
Procurou repouso num canto do pátio de
estacionamento e por ali aquietou-se.
O comandante, piloto antigo da região, disse ao seu
copiloto:
- Deixo contigo o descarregamento. Vou até a Sala de
Tráfego e depois me encontre por lá, ok?

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- Tudo bem, chefe. – respondeu o rapaz.


E foi o velho piloto arrastando suas botas rumo à
pequena porta envidraçada na beira do prédio da estação
de passageiros.
Com dedos elásticos, mão de pianista que mais se
afinava tocando o manche do avião, macacão desbotado,
magro e alto, apontando à frente um nariz parecido com o
bico de uma águia, fitou com seus penetrantes e cansados
olhos azuis a tabuleta pregada na porta onde se lia “Sala de
Tráfego – acesso permitido somente a tripulantes”.
Impulsionou-a para o lado tão levemente que mais parecia
estar pedindo licença.
Perguntou com seu característico vozeirão ao
atendente do local:
- Como é, o Catalina da linha Alto Solimões já
pousou?
- Não senhor. Ele foi incorporado nas buscas e
certamente não pernoitará aqui, mas sim lá em Tefé.
O velho piloto espantado arregalou os olhos e
perguntou meio atônito:
- Buscas?... Que buscas?
- O senhor não está sabendo? Os aviões da área já
estão engajados pelo Serviço de Busca e Salvamento, o
SAR, para encontrar o Douglas que decolou ontem de
Santarém para Cachimbo e lá não chegou e, desde então,
não se tem notícias dele.
Apreensivo Bonifácio perguntou quem era o piloto.
- O José e o copiloto é o Arnos.
- José... muita teoria e pouca prática. – Pensou em voz
alta o experiente Boni, como o chamavam por aqueles céus
da Amazônia.
Virando-se para o atendente disse:
- Se me procurarem por aqui diga que fui à sala do
SAR, ok? – e saiu rápido rumo às escadas que levavam ao
posto de coordenação das buscas, saltando degraus com
suas pernas compridas para chegar mais depressa e
inteirar-se da situação.

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Sala de Tráfego e Torre de Controle do Aeroporto Ajuricaba

- O que foi que houve? – perguntou logo para o


encarregado coordenação das buscas assim que chegou ao
recinto.
- Olá, Boni! Foi José. Era para o ele ter pousado na
Serra do Cachimbo ontem à noite e até o presente momento
não temos nenhuma posição concreta dele.
E completou para o velho conhecido:

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- Acho que o seu avião também será engajado nesta


missão, pois não podemos dispensar ninguém enquanto não
o localizarmos.
- Mas, o meu avião não está em condições. Está
vazando muito óleo pelo motor direito... – e foi logo em
direção aos mapas pregados em uma das paredes da sala.
A tarde morna de repente transformara-se num calor
febril e ele pensava rápido:
“... se o avião decolou de Santarém com cinco horas
de autonomia para um voo de umas três horas, alternando
Jacareacanga... mas, não pousou no destino e nem na
alternativa e não há muitas outras opções no trajeto... onde
ele poderia ter ido?... Se eu estivesse no lugar do José, para
onde iria à noite, no caso de ser impossível chegar ao
destino?... para onde, em um momento de emergência?...”
Absorto nesses seus pensamentos quase nem
percebeu quando lhe avisaram:
- O Catalina pousou! É o Carlos quem está no
comando!
Boni deu uma olhada pela janela e viu o colega de voo
cruzando o pátio de estacionamento em direção à Sala de
Tráfego.
Perguntou ao coordenador da operação:
- Qual é a área em que estão fazendo as buscas?
- Como ouve informação de Jacareacanga sobre ronco
de motor lá pelas oito horas da noite, iniciamos por lá. Mas,
também tivemos notícias que nas proximidades de Tefé,
perto da foz do Japurá, ouviram barulho de motor e, então,
enviamos alguns aviões para aquela área também... por via
das dúvidas, pois está muito fora da rota. Mas, é só por
desencargo de consciência.
Nesse momento o comandante Carlos assomou à
porta da sala do SAR e foi logo dizendo:
- Olá, rapaz! Que coisa, heim! Logo o José... estudioso
e interessado em navegação por instrumentos... será o que
aconteceu com ele?
Bonifácio respondeu ao colega:

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- É... mas, muito teórico e com pouca prática. Não tem


muito tempo que ele foi a comando nesse avião. E antes ele
estava acostumado a voar mais lá pelo Sul.
E completou sua reflexão:
- Não estamos voando numa região comum. Ela é
plana, mas embaixo é só mata fechada e muita água. Quase
não tem referências visuais e à noite nada se vê no solo.
Não há continuidade nos sinais dos auxílios rádio à
navegação, que são poucos.
- É... o esperado é que ele tenha rumado para o
sudeste, onde tem mais cidades e pistas ou, então, tentado
voltar para Santarém - comentou o Carlos.
- Pode ser.... mas, acho mais difícil encontrar
Santarém à noite - e observando o mapa Boni viu uma
possibilidade.
- A autonomia dele daria para chegar a Manaus, que
tem auxílio rádio à navegação com maior alcance... daí pode
ter alguma lógica a notícia de barulho de motores pelas
bandas de Tefé. O vento leste pode ter empurrado ele para
fora da rota - argumentou com o colega, também muito
experiente na aviação amazônida.
Mas, Carlos já se preparava para sair e pouco estava
interessado naquelas divagações, pois a insistente dor no
ouvido o estava incomodando e ele queria era voltar para
casa logo. Disse então quase que em ritmo de despedida:
- Bem! Eu vou de “comercial” para Belém. Estou com o
velho problema de ouvido e quero chegar logo em casa.
- E seu avião, como fará com ele? – inquiriu logo
interessado o Boni.
- Ora! Depois a companhia dá um jeito. Já terminei a
linha de hoje... não está previsto eu levar aquela lata velha
de volta para a base e do jeito que estou... nem lavaria
mesmo – respondeu com certo desdém.
- Espere aí! Então, passe uma mensagem para a base
pedindo autorização para eu entrar nesta busca com o seu
avião. O meu está com vazamento em um dos motores e

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quero ajudar a encontrar o José – pediu Bonifácio ao colega


e amigo de longa data.
- Ok! Você é louco mesmo – concordou e assim fez,
contatando a base em Belém e repassando ao outro a
responsabilidade sobre o Catalina.
Assim, logo ao amanhecer do dia seguinte o antigo
piloto da Amazônia estava presente às buscas, sendo
designado para a área da foz do Japurá que, embora pouco
provável, continuava incluída nos voos de busca.
Lá no interior, voando um Catalina, velho avião anfíbio
de mais de trinta anos de uso, há apenas trezentos pés de
altura... uns cem metros, procurava ver por entre as copas
das altas e frondosas árvores algum brilho, algum sinal...
Rios... muitos e tortuosos,
Lagos... uma infinidade e de todos os tamanhos e
formas,
Água escura e água barrenta... fundas e rasas,
Igapós e igarapés... estreitos e largos,
Praias e barrancas... claras e escuras,
Mato alto e mato baixo... de altas castanheiras ao
banhado matupá...
... tudo era revistado com seus olhos de velha águia,
numa ânsia incontida de ver algum brilho prateado no meio
daquela vastidão sem fim.
Mas... nada!
Os dias iam se esvaindo e os resultados de tantos
longos e cansativos voos esmoreciam a vontade e
despertavam muitas dúvidas... será ainda possível encontrá-
lo?
Vinte dias... e nada! Não podia haver mais nada inteiro
lá embaixo, mesmo que achassem então alguma coisa. Não
seria mais possível que, naquela densa mata, alguém sem
experiência de vida nela sobrevivesse após tanto tempo.
E parece que assim também pensavam os
coordenadores da busca que, por outro lado, preocupavam-
se com os vários aviões que estavam ali empenhados
naquela busca, até então infrutífera.

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As linhas precisavam continuar, havia muita carga


acumulada nos depósitos aguardando embarque, a vida da
companhia tinha de seguir em frente.
Vinte dias sem nenhum sinal... não devia mesmo
restar ninguém, caso ainda se encontrasse algo. E, assim,
veio a ordem que todos sabiam que findaria por acontecer,
mas preferiam nela não pensar:
- Suspendam as buscas. Encerrem a operação!
A ordem veio como uma confirmação do que já era
latente nos corações das velhas águias: nada mais restava
a fazer. Foram-se dois colegas e amigos, e mais os
passageiros que estavam a bordo.
Bonifácio olhava para o Catalina pensativo. Aliás,
como todos ali estavam.
Um caboclo sem nome aproximou-se do local e
comentou:
- É... Trás dontonti todo mundo lá prás bandas do
Amanã viu um bando d’urubu que tava lá fazendo volta faz
dias. E num é do feitio deles nesta época do ano.
O Boni olhou para ele e depois para o piloto que
coordenava a sua equipe de buscas e disse;
- Não acha que deveríamos dar uma olhada nisso?
Desalentado o comandante respondeu:
- Ora, rapaz! Informações destas aí já fomos atrás um
monte de vezes. Não temos mais nada a fazer. Já
recebemos a ordem de encerrar. Chega! Para mim chega!
Vamos voltar! - e afastou-se cabisbaixo, como um touro
cansado de muita labuta.
Então, Boni chamou o caboclo e perguntou em tom
baixo:
- Onde viram esses urubus?
- Já disse. Lá prás bandas do lago Amanã. Uns dois
dias e meio subindo de “rabeta” o rio – aguçou o caboclo de
couro grosso igual a um tracajá, tão adaptado que estava
naquele clima de constante sauna.
- Venha cá. Olhe para este mapa. Aqui é o Solimões...
e aqui é o Japurá... sabe me dizer mais ou menos onde é o

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lugar? – inquiriu o velho piloto ainda numa réstia de


esperança.
O caboclo olhou aquele pedaço de papel. Não
entendia bem o que via nele:
- É... tá meio diferente aí, né moço?...
Boni não se deu por vencido e tentou fazer o homem
perceber o seu rio naquele pedaço de papel velho e
amassado.
- Olhe bem! Aqui não é onde você mora? Depois o rio
afasta aqui para este lado... aí tem um lago redondo perto
daquela beira... não é assim mesmo?
- É! É aí mesmo. Espera um pouco... deixa eu ver
aqui... Hum!... Que coisa, num é? Este risco torto aqui
parece o Japurá e mais prá aquela banda ali tá do jeito do
Amanã – foi apontando o caboclo com o dedo no mapa.
- E onde estavam os urubus? – perguntou mais
ansioso o piloto.
- Pois então! Estavam cá prá essa cabeceira, na
ilharga a jusante... bem aqui! – e espetou a ponta do dedo
num ponto no meio do mapa.
Bonifácio circulou o ponto com uma caneta e procurou
o colega que coordenava a sua equipe:
- Escute! Você me autoriza a decolar para fazer uma
última...
Nem terminou a fala e o outro já, irritado, rebateu:
- Caramba! Não insista! Abasteça seu avião e volte
agora para Manaus, ok?
Percebendo não haver como convencê-lo, retornou
para perto do Catalina e disse ao encarregado do
abastecimento:
- Abasteça logo, vou decolar!
Logo mais os motores do velho avião roncavam alto
na cabeceira da pista lamacenta. As rodas patinaram um
pouco, mas logo se soltaram do chão e ganharam os céus.
Boni orientou o avião subindo no rumo de Manaus.
Porém, com pouco mais de cinco minutos de voo, guinou à
esquerda e aproou para o Japurá.

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O Catalina, conhecido por todos os ribeirinhos da Amazônia.

Em questão de meia hora de voo já estava


sobrevoando o local indicado pelo caboclo.
O lago era comprido... uns quarenta quilômetros, mas
só uns quatro de largura.
Águas escuras e muitas voltas.
E lá, depois de mais uma das tantas curvas... um
bando de urubus circulando sobre um ponto na floresta.
Seria coincidência?
Rumou para lá.
Por entre as ramas mais altas de uma frondosa
samaúma, viu algo parecido com um pedaço de pano
colorido balançando.
Alguém balançava aquele trapo... alguém lá naquela
árvore... alguém lá em cima...
Nova volta e agora sobrevoando mais próximo da
árvore e... lá estava! Um avião! Um Douglas!

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DEZ ANOS DEPOIS

A vida seguiu em frente.


E em dez anos as coisas já não são mais as mesmas.
O velho Bonifácio já tinha mudado de companhia.
Agora pilotava na última que ainda mantinham velhos
Douglas voando. Uma pequena empresa de carga aérea da
região.
Voava em seus velhos conhecidos, os bimotores
Douglas DC-3. Já eram bem íntimos. Sabia de suas manhas
e de suas vantagens. Mas, acima de tudo sabia que a idade
avançada reduzira a capacidade de carga daqueles aviões e
os restringira somente ao voo em condições visuais.
A pequena companhia em que estava trabalhando
sobrevivia às custas de um vantajoso contrato com uma
grande empresa de levantamentos cartográficos. A rota
também já era por demais sua conhecida: de Manaus para
Coari e Tefé, no rio Solimões e, depois, Carauari e
Eirunepé, no rio Juruá. Transportava todo tipo de carga, de
tambores de combustível a equipamentos de medição e até
funcionários da empresa contratante.
Em Tefé o pessoal da cartografia montara uma base
de apoio logístico.
As barracas de lona verde davam um aspecto
diferente ao modesto aeroporto local. Estavam mapeando e
fazendo prospecção de toda a região para uso de órgãos
governamentais em seus planejamentos estratégicos para a
Amazônia.
A operação toda se desenrolava a partir de fotos de
infravermelho feitas em alta altitude e de outras feitas com
zoom a baixa altitude, que identificavam os ditos "pontos
quentes" em que desciam os helicópteros para a coleta de
amostras.
Era um trabalhão e tanto... tanto pela amplitude como
pelo detalhamento.

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E a pequena companhia aérea para a qual o Bonifácio


pilotava encarregava-se de prover o devido apoio logístico a
toda essa operação.
Mas, para o velho Boni a área já era sua antiga
conhecida. Conhecia tudo, as castanheiras mais altas, os
igarapés mais tortuosos, os lagos espichados em meio à
floresta... tudo mesmo.
Sabia que a região era bonita, mas era difícil.
Sabia que muito aventureiro nela chegava e
dificilmente saía... porque se deu bem ou não.
A natureza é dadivosa, mas exige respeito... não
perdoa os incautos.
Voar sobre aquela região para o Boni era uma espécie
de sonho.
Sonhava com um mundo melhor...
É!... Já não era mais o mesmo Bonifácio de antes.
Agora era o velho Boni... um simples “piloteiro” da
Amazônia.
Envelhecia?...
Desintegrava-se devagar... afinal, ninguém fica para
semente.
Suspirou lá no fundo de suas amarguras.
A família...
Tantos e muitos voos e pouco tempo sobrou para a
família.
Olhou para o lado e viu a ponta da bela asa do
Douglas desenhada sobre a linha do horizonte, como que o
consolando com o seu brilho forte refletindo os raios do sol.
Abaixo estava a densa mata. Um tapete verde escuro,
vez por outra recortado por um sinuoso igarapé.
Pousou em Tefé e logo que assomou à porta do avião
procurou nos rostos que via sorrisos, apertos de mão,
tapinhas nas costas, um convite para um cafezinho... enfim,
amizades.

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No Aeroporto de Tefé a companhia instalara a sua base de apoio.

De perto de uma velha caminhonete saiu uma figura


magra, andar torto, de botas de vaqueiro, cabelos lisos e
compridos, olhos orientais. Era o Tanaka, um nisei que
chefiava as operações da base da empresa naquele local, e
muito amigo do Bonifácio.
Tanaka sorriu, chamou o amigo, apertou-lhe a mão,
deu-lhe um tapinha nas costas e o convidou para um café lá
no refeitório do acampamento.
- Como foi o voo, comandante de ferro velho? –
perguntou na brincadeira o amigo.
- Ora, japa duma figa! Deixe minha garça em paz. Ela
é velha, mas ainda voa muito bem.
E foram rumo ao refeitório rindo e contando as
presepadas do dia.
Logo chegou o Benedito, um dos pilotos de helicóptero
daquela base:
- Ô chefe, como é, não convida aqui o colega pro
cafezinho?
- Pronto, chegou o manicaca! Sente aí, pega uma
caneca, vai! Como se para você precisasse convidar... ora!
– respondeu o Tanaka.

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O “japa”, como o Boni o chamava, era paulista do Vale


do Paraíba, mas filho de imigrantes japoneses. Desde cedo
conheceu a luta pela vida no árduo e diuturno trabalho no
restaurante da irmã mais velha, em Guaratinguetá. E agora
estava ali em meio aquela grande selva, fazendo algo que
nunca imaginara ser capaz de fazer: chefiar uma frente de
serviços em trabalhos de cartografia e pesquisa em meio à
hileia que haviam lhe dito na escola quando criança ser o
famoso “Inferno Verde”.
Porém, justamente naquela selva é que encontrara o
que na cidade grande nunca conheceu: a amizade.
As muitas dificuldades interpostas pelo “Inferno Verde”
irmanavam as pessoas na busca de soluções improvisadas
para tudo quanto é encrenca que ia acontecendo ao longo
de cada dia por ali.
As mínimas vitórias suscitavam um sentimento de
satisfação compartilhado por todos.
Os laços de amizade assim se construíam e ajudavam
a superar os momentos mais difíceis.
O Benedito, por exemplo, era inquieto no seu jeito de
ser. Sempre com um sorriso destacado pelos dentes
grandes e muito claros, contrastando com sua pele muito
escura. Era um eterno brincalhão e onde estivesse o
ambiente estava sempre alegre. Seu maior problema era
seu chefe imediato, um antigo comandante de linhas aéreas
que não gostava muito do jeito de ser do rapaz.
Terminado o café os três amigos saíram rumo à
estação de rádio, o nicho onde o paraense Saves fazia os
contatos com a sede da empresa, com as demais bases
socadas em lugarejos no meio da floresta e com os pilotos
em voo.
O operador do rádio quase cochilava quando os
amigos chegaram. Estava por ali já há um bom tempo e tudo
naquele lugar era só a monótona rotina da transmissão e
recepção de mensagens com um monte de coordenadas
geográficas e, vez por outra, de condições gerais da
meteorologia nas cercanias do aeroporto.

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Mas, não lhe faltava o bom humor e sorrindo


matreiramente virou-se para o Benedito e instigou:
- Rapaz! Aquela menina lá do Real (algo parecido com
uma modesta boate) veio aqui na estação procurando por
você.
E, piscando para os outros amigos, completou:
- Como está na hora do expediente eu disse que você
não poderia atendê-la e a despachei de volta para a cidade.
O pessoal logo percebeu que era armação. Mas, o
Benedito arregalou os olhos como se estivesse vendo o
tinhoso na sua frente:
- O quê, rapaz?!... Não acredito que você tenha
aprontado essa comigo!... Esta não vai ficar barato, pode
crer!
Num dos intervalos das gostosas gargalhadas o Saves
conseguiu tirar por menos:
- É brincadeira, seu panaca.
Porém, aproveitou para botar mais lenha na fogueira.
- Mas, sabe que ela está mesmo a fim? Vai lá, chega
nela... ou não tem coragem?
Tanaka atiçou ainda mais:
- É... Benedito, a morena não sai do seu pé. Aproveita
hoje à noite e vai lá.
O Boni veio em socorro do amigo:
- Quem é bom já nasce feito, não é rapaz? Sabe como
é... aviador e coisa e tal... elas gostam. Fazer o quê? A
gente tem de aproveitar, ora!
Daí, o resto da turma virou-se para cima do Boni:
- Ah! Se aviador fosse mesmo esperto assim não
ficava só voando por aí. Pois, enquanto ele voa tem gente
voando na casa dele.
Mais boas risadas... menos o velha águia que, de
imediato, ficou meio desconcertado e estampando um
sorriso amarelo.
O amigo Tanaka salvou a situação, desviando do
assunto:

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- Então, vamos todos hoje à noite lá para o Real ver o


Benedito dando uma de Don Juan?
- Taí! Falou, meu irmão! – concordou logo o Benedito,
já todo eufórico.
O Boni titubeou, mas o japa deu força:
- Ê, comandante de ferro velho! Que é que há? Tá de
molho ou está se fazendo de importante com os amigos?
- Tá legal! Eu então vou lá, mas só mesmo fazer
companhia para vocês, ok?
Daí que o Saves se animou de verdade:
- Vou segurar as mesas lá para nós, heim gente! Não
faltem, pois senão vou ficar mal lá com o dono da festa.
E a noite chegou animada.
No pequeno clube a agitação era total.
Um espaço mínimo para muita gente e muito calor.
Uma “luz negra” garantia a visão de vultos se
movimentando e se apertando.
O conjunto de bateria, guitarra, baixo, teclado e um
cantor esforçavam-se para superar a gritaria e dar conta do
recado.
Saves observava sem muito interesse, sentado em um
tamborete tosco e recostado em uma das pilastras do salão.
Foi quando chegou o Pedro, um dos cabras que fazia
o tal rapel, ou seja, descia por cordas do helicóptero
pairando sobre a mata. Sujeito magro e narigudo, que não
destoava muito do resto da turma. Falava muito e gostava
duma farra.
- Taí, pessoal! Vocês não perdem uma, heim! Como
é? Não vão dançar? – e foi se metendo no meio da multidão
em busca de qualquer coisa que lhe tirasse do nada fazer.
- Ele é que tá certo – pensou alto o Benedito – ficar
sentado aqui não vai dar em nada.
- Ele tá procurando é sarna prá se coçar – sentenciou
o Saves.
- Benedito, cadê a sua? Você tá falando muito, mas eu
ainda não vi você partir para a ação – atalhou o velho
Bonifácio.

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- Calma, calma... a nega ainda vai aparecer no pedaço


– respondeu olhando para os lados em busca da sua
morena.
Ficou por ali batucando no tampo da mesa, virando
copo após copo de cuba libre e intercalando-os com outros
de cerveja.
Passando já da meia noite fez-se a tradicional pausa
para descanso dos dedos dos músicos e da garganta do
cantor.
Aí era de praxe sair quem conseguira par e, então,
completar a noitada a sós. Ficava por ali só batendo papo
quem não havia conseguido nada e já estivesse fadado a
ficar só na bebida.
E a mesa do pessoal do acampamento continuava
completa... todos permaneciam fiéis à cerveja quente e à
cuba libre.
Motivo disto? Sabe-se lá...
Desinteresse?
Saudades?
Cansaço?
Talvez um pouco de cada coisa.
Mas, o certo era que o Benedito não estava muito
satisfeito, pois descobrira sua pretendida num canto e que
ela não era mais privilégio seu, mas havia encontrado
alguém mais rápido que ele.
De dentro dos muitos copos que já virara olhou para
as formas arredondadas da cunhã pele de jambo, para seu
sorriso matreiro e debochante, para seus cabelos escuros e
lisos de cabocla amazônida...agora acompanhada por
aquele curumim atrevido.
Ele já estava com aquele olhar de quem num enxerga,
aquele que o álcool turva. Olhava através da mulher.
Olhava... olhava... e só via o caboclo que lhe passara a
perna.
Boni disputava no palitinho algumas cervejas com o
Saves. Tanaka apreciava a brincadeira, bebericando cerveja
quente com limão e sal.

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Lá no fundo do salão um casal desencostou-se da


parede e rumou para a porta de saída, aproveitando o
intervalo da música, o sinal para os amantes.
Os dois atravessaram a pequena pista de danças e,
num gingado um tanto afoito, a cunhã fez o passeio em
direção à porta, passando bem perto do Benedito, jogando
charme e um sutil deboche.
Benedito não aguentou... sua mão boba escapou
dentre os copos sobre a mesa e resvalou nas formas dos
quadris da mulher e desceu em direção às suas grossas
coxas.
Um gritinho histérico e um pulo felino foi a reação
matreira, dengosa e desafiadora que ela lhe dava como
resposta.
O salão parou e olhou para lá.
Benedito se empertigou.
Seus amigos de mesa ficaram desconcertados.
O para-não-para, o deixa disso e o vai e encara...
Rapaz parrudo, como os caboclos acostumados no
cabo do remo, o curumim não esperou para ver. Desferiu
rápido e seguro golpe no maxilar do Benedito que,
cambaleando, tentava se aprumar e entender o acontecido.
Todos boquiabertos e pasmos... sem ação.
Tudo foi muito rápido.
Benedito se recompôs e tentou o contra-ataque.
Recebeu novo golpe... agora na boca do estômago.
Dobrou-se ao meio, arregalando bem os olhos e foi ao
chão de cara e tudo.
Saves foi ao seu socorro e encarou o caboclo em
posição de combate, acertando-lhe o queixo com uma
direta.
O rapaz cambaleou para trás e voltou com tudo.
Bonifácio saiu de seu estarrecimento e gritou firme:
- Parem! Parem com isto agora mesmo! – e colocou-
se ente os contendores.
O caboclo o olhou de cima a baixo, cerrou os punhos e
preparava-se para continuar a briga.

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Benedito, arfando, exasperava-se:


- Vem!... Vem cá, seu cachorro!... Vem!...
- Pare com isto, Benedito! – gritou o Boni impondo-lhe
toda a sua autoridade de comandante.
E, para seu alívio, Benedito se aquietou... bufando,
mas se aquietou.
O rapaz puxou a gazela zombeteira para a porta e a
empurrou no rumo da rua, impondo-lhe seu querer.
Os festeiros comentavam. Claro que ficaram do lado
do conterrâneo e olhavam atravessado para o Benedito.
Não gostavam que um forasteiro acertasse alguém da terra.
Tanaka preocupado com o desenrolar dos
acontecimentos ponderou aos amigos:
- Gente! Acho que está na hora de voltarmos para o
aeroporto. Vamos embora que logo cedo teremos muito
trabalho.
No que foi seguido pelos amigos que, ato contínuo,
levantaram-se e dirigiram-se para a porta.
À saída o dono da festa aproximou-se do japa em tom
de reclamação:
- Pôxa, “seo” Tanaka, eu não esperava por uma coisa
dessa... Acho que o Benedito se excedeu.
- Ok, Doriano. Tudo bem. Já estamos de saída. Não
daremos mais trabalho – respondeu tentando terminar por
ali aquela confusão toda.
Conciliador e sabendo do lucro que aquela turma dava
ao seu estabelecimento, Doriano tirou por menos:
- Bom... querendo voltar, será um prazer. A casa é
sua.
- Não... tudo bem. Depois a gente conversa. Boa noite!
– finalizou o Tanaka procurando sair o mais ligeiro que
podia.
Seguiram para o acampamento no aeroporto em
silêncio. Ninguém queria tocar no assunto.
Não podiam imaginar que uma simples brincadeira
terminaria mal.

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Ao chegarem foi o Saves quem quebrou o raio do


silêncio entre eles:
- Bom, minha gente. Vamos cair no fundo da rede que
amanhã o batente recomeça e isso vira passado.
- Amanhã não. Hoje! Já passa das duas horas da
madruga – atalhou o Boni consultando o relógio.
- É!... tem razão. Até logo, pessoal!
- Até...
- Té logo.
- Hummm... – resmungou por último o Benedito.
O ronco da caminhonete do Saves se fez sumir depois
da curva e os amigos ficaram calados ali pela margem da
trilha.
Benedito entendeu aquele recado mudo e protestou
alto:
- Bolas! O que vocês querem? Droga!...
Silêncio.
E ele continuou:
- Se fosse com um de vocês iam ver só...
Silêncio.
Olhou para um e depois para o outro e, sem
respostas, desistiu:
- Quer saber de uma coisa? Que se danem... – e saiu
batendo o pé no chão e chutando os arbustos à sua volta.
- Ele está que nem panela de pressão – comentou o
Tanaka.
- Ora, ele ainda é só um garotão – concluiu Boni já
rindo de tudo que aconteceu.
Começou também a rir o Tanaka que comentou:
- Minha vontade era mesmo de ter caído na
gargalhada. A tal garota tirou a maior onda com o Benedito
e ele caiu que nem um pato.
Nessa altura do campeonato já estavam dando boas
gargalhadas de tudo que havia acontecido naquela noite.
Desceram o barranco e foram para suas barracas.
Estava passando da hora de se jogarem no fundo da rede e
descansar para o batente do dia seguinte.

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O papo antes de pegar no sono ainda era o Benedito:


- Mulher... Ora! Vocês viram como nosso amigo ficou?
– disse o Tanaka.
- Ele todo gamado por aquela zinha que mal conhece
– comentou o Boni.
- Pois é... perdeu totalmente o controle – continuou o
japa e arrematou – Mas, viu o quanto ele bebeu? Estava
num porre que só.
- É... e encher a cara logo por quem, né? Talvez ele
nem veja novamente essa mulher – comentou o velho piloto
e completando, arrematou – Ele é jovem e os jovens têm
sangue quente, e esse tipo de mulher sabe como fazer esse
sangue entrar em ebulição só para satisfazer suas vaidades.
Tanaka, ouvindo o amigo, pensou um pouco e disse:
- É verdade. Quando a gente amadurece passa a ter
outros interesses que só agradar a uma mulher e, então,
essas coisas passam batido – fez uma pausa e como se
tivesse pensando alto, disse:
- Eu já estou imaginando mais é ter uma família bem
organizada, uma casa, um carrinho, o trabalho e os filhos.
Tudo com muita paz e segurança. Uma família... só isto,
droga! Justamente aquilo que a gente não tem neste mato
dos infernos.
Ajeitou o mosquiteiro para garantir não ser vítima do
bando de carapanãs que zanzavam em volta, enquanto o
Boni o ouviu ali, calado, e seu pensamento voou para
longe... para bem longe, lá em Belém.
Família bem montada...
Ele também tentara por um bom tempo aquilo.
Abanou a cabeça e esfregou os olhos, cansado...
muito cansado.
Tanaka percebera o silêncio do amigo e só aí deu-se
conta de que tocara num assunto que batia fundo na alma
do velho Boni.
Tentando corrigir o fim de noite:
- Eh... que tal a gente ir lá no refeitório filar um
cafezinho antes de apagar?

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Bonifácio deu um suspiro e respondeu:


- Hum!... Está bem... vamos lá.
Em volta a mata já dormia a fundo. O sereno
encharcava as folhas e um vento morno corria sobre a pista
escura. Os bacuraus voavam em voo rasante pelo pátio,
quase colidindo com o chão. Nuvens densas e baixas
navegavam rumo ao oeste e... era noite na Amazônia.
Num fim de mundo, ou talvez até num começo de
mundo, homens de origens diferentes e com anseios
diferentes dormiam em barracas de lona, imaginando futuros
também diferentes. Mas, agora, por força do destino,
estavam ali, juntos, talvez para aprenderem algo que a vida
lhes reservava logo adiante.
Como numa escola, eles se sentiam unidos, apesar
das diferenças de suas personalidades.
Não sabiam ainda, mas a vida usaria aquele rincão
perdido para mais amadurecê-los.
Bonifácio um sulista que mais parecia um prussiano.
Tanaka o paulista oriental.
Benedito o carioca descendente de africanos.
Saves o paraense com cara de português bonachão.
U’a mistura bem à brasileira, irmanada por um trabalho
por demais exigente.
E a noite ia se escoando devagar, preparando um dia
especial que serviria de sala de aula a todos eles.

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UMA VIAGEM APARENTEMENTE COMUM

Aquele tal de “aru” era mesmo uma desgraça para a


aviação. Subia como se fosse fumaça saindo de inúmeras
chaminés enfiadas no meio da floresta e formava uma
densa camada de nuvens com base logo nos primeiros cem
metros de altura.

O “aru” - vapor d’água subindo como fumaça - começa cedinho.

Os pilotos olhavam inquietos aquele fenômeno


meteorológico, pois significava que não teriam como decolar
e seus voos atrasariam até que o calor do dia fizesse o “aru”
subir e sumir.
Boni era um dos mais inquietos, gostava de voar e
ficar esperando no chão não era do seu agrado.
Gostava mesmo era de estar no ar.
Talvez esse seu gosto pelo voo possa até ter
contribuído no distanciamento que tivera da família ao longo

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do tempo. Não vira nem os filhos crescerem, não estava lá,


estava voando... sempre voando.
E o tempo passava e o “aru” nada de sumir. Quase
nove horas da matina e ninguém podia decolar.
Inquieto o Boni chamou o mecânico do avião:
- Sabá! Veja se a carga está toda dentro do avião e se
está bem amarrada.
O experiente mecânico, percebendo que o piloto
estava era impaciente, retrucou:
- Chefe, já chequei tudo, já lhe passei o peso da carga.
Está tudo pronto desde as sete horas. Não se lembra que já
fizemos tudo?
Bonifácio o fitou intrigado, perscrutou de cima abaixo o
atarracado Sabá. Era um bom profissional, sabia lidar muito
bem com aquele par de motores do velho Douglas. Por fim,
perguntou-lhe:
- Então, se está tudo certo, por que está me cercando
com essa cara de preocupação?
O mecânico, enfiando as mãos nos bolsos do
macacão já bem roto, respondeu:
- Bom... jáque o senhor perguntou... Eu lhe passei o
total da carga e mostrei que estamos com a autonomia no
limite, mas que temos disponibilidade para mais alguns
galões. Então, por que a gente não completa com aquela
dose que garante mais segurança, já que estamos aqui
parados esperando o “aru” levantar?
Tanaka interrompeu os dois e os chamou:
- Ei! Vamos lá para o refeitório. O pessoal está
colocando o Benedito na berlinda. Vamos lá ajudar a apertar
o cabra na parede... vamos lá – e já foi empurrando os
amigos no rumo do galpão de madeira que servia de
refeitório ao pessoal da base.
Sabá ainda tentou insistir. Refez mentalmente os
cálculos sobre o combustível, lembrando que naquela época
o vento contrário na volta era mais forte, o que significava
aumento do consumo, menor velocidade, maior tempo de
voo... É, seria bom contar com alguns galões a mais.

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Enquanto caminhavam na direção do galpão ele ainda


ruminava seus pensamentos: a previsão era de voltar com o
avião “batendo lata” (vazio).
Mas, em Carauari sempre tinham os caroneiros,
anciões que vinham à agência do banco em Tefé para
receberem suas mirradas, mas bem vindas, aposentadorias.
Comumente eles faziam essa viagem de barco pelo sinuoso
Juruá, quase mil quilômetros de ida e o mesmo tanto na
volta, só que demorando mais, pois era subindo o rio.
O preço da passagem já levava boa parte do que
sacavam na boca do caixa do banco em Tefé. Daí que pela
carona do avião, desde que os trabalhos de cartografia
começaram por ali, podiam fazer a viagem bem mais rápida
e de graça.
Sabá pensava em tudo aquilo e incomodava não
completarem os tanques tendo ainda disponibilidade para
tanto.
Resolveu que tocaria no assunto com o Boni mais uma
vez antes de decolarem.
Saiu de suas preocupações quando sentiu u’a mão
pesada sobre seu ombro direito.
Virou-se e viu que era o Romero, o jovem copiloto do
Douglas:
- Ô, rapaz! Como é, vamos ou não? Acabei de falar
com o Saves a respeito das condições do tempo e parece
que o “aru” já está começando a levantar – disse ao
mecânico, não escondendo sua satisfação em logo poder
alçar voo rumo ao Juruá.
- Vamos sim. Só que o pessoal está tirando sarro do
Benedito por causa da mancada dele ontem lá na festa e
vieram chamar a gente para participar da brincadeira –
respondeu o mecânico.
- Hê, hê!... Esse não escapa. Essa turma é fogo... não
perdoa nunca – comentou a jovem aviador olhando para
onde estava o avião.
Aproveitando o momento Sabá lhe perguntou:

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- Pois é, o pessoal sentiu sua falta ontem lá na festa.


Por onde estava?
Romero, um carioca muito calmo, cujo sonho era um
dia se tornar comandante de jatos comerciais, deixara a
família lá na sua cidade natal em busca da realização
profissional.
Ali, naquela selva, adquiria a experiência necessária
para se habilitar às grande empresas de aviação.
E era em sua família que agora ele pensava e, por
isto, não se sentiu a vontade em acompanhar os amigos na
noitada que rendera ao Benedito aquele tremendo vexame.
Gostava de sua esposa e pretendia uma família
estável e, portanto, as aventuras estavam para ele
descartadas.
Mas, ao invés de dar ao Sabá todas essas
explicações, devolveu-lhe a pergunta:
- E você, por que não foi com a turma? Ficou aqui a
noite toda...
- Sei lá... acho que já estou velho para essas coisas...
quero mais é ficar quieto e voltar para casa quando este
trabalho terminar. Já estou muito cansado para essas
aventuras – comentou o mecânico.
- Calma, vai devagar, Sabá! Logo você vai poder curtir
sua aposentadoria e ficar de pernas para o ar, só contando
casos para os netos – disse o jovem piloto ao amigo.
-Não, não quero parar totalmente. Não consigo ficar
quieto. Vou parar é com essa vida maluca no meio de
mato... isso cansa. Vou procurar algo mais leve, mais
tranquilo e que eu possa ficar junto com meu pessoal lá em
Belém.
E virou-se para o Romero:
- Você ainda está muito novo. Para você aqui é o lugar
de fazer sua carreira... tem muito a aprender. E a Amazônia
é a escola certa. Voar por aqui é um desafio constante.
O copiloto, vendo estampado o cansaço no rosto do
mecânico antigão, tentou animá-lo:

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- Ora, rapaz! Vamos lá, anime-se! Você é nosso


professor. Muito do que aprendi aqui foi com você. Não me
decepcione, meu chapa!
Sabá apenas aluiu com a cabeça e sussurrou:
- Que adianta reclamar, não é? A vida é assim
mesmo...

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O DERRADEIRO E FATÍDICO VOO

Já lá no refeitório a conversa era outra. Encantoaram o


Benedito que não via como se livrar das gozações da turma
toda.
- Eita, cabra valente!... vocês viram? – disse o Tanaka
rindo que só – Conseguiu até se levantar sozinho depois de
levar uma direta do caboclo, mas foi prá cair de novo.
Boni aproveitou para atiçar ainda mais a mangação:
- Ele bem que tentou mostrar a carteirinha de aviador,
mas o caboclo nem lhe deu tempo e... pou! Foi bem na boca
do estômago. Daí ele nem sabia mais onde é que estava.
O cozinheiro aproximou-se e tirou também sua
casquinha:
- “Seo” Benedito, se o senhor quiser eu lhe preparo um
chá com aquela pinga “amansa corno” que vai fazer
esquecer a mulher e até a surra, viu?
Benedito se via sem saída. Acuado e sem muito o que
dizer, só sentia a raiva lhe subir pelas entranhas.
Era humilhação demais.
Bebia seu café forte como se fosse o pior dos
remédios que já tomara na vida.
De brincalhão que era, agora estava enfezado,
aguentando o tranco da turma que, claro, aproveitava-se de
seu infortúnio.
Para arrematar o Boni ainda instigou:
- Benedito, já pensou agora como é que aquela cunhã
está rindo da sua cara? – e para piorar mais a situação,
completou - e o caboclo além de lhe acertar de cheio ainda
faturou a abusada e, prá não dizer que você ficou sem nada,
ficou com uma baita dor na boca do estômago e também na
cabeça... dum lado e do outro.
E todos caíram na gargalhada.
Benedito, já fulo da vida, não aguentou e esbravejou:

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- Olha! Uma coisa eu digo a vocês: aqueles dois não


vão me escapar. Hoje à noite vou acertar os dois... vocês
vão ver. Daí, vou calar a boca de todo mundo. Pode
esperar... será hoje à noite.
Tanaka, fazendo-se de sério, fechou o acordo:
- Mesmo?!... Essa nós vamos assistir de camarote.
Vou até mandar o motorista preparar a picape para nos
levar até a cidade hoje à noite e você terá a sua chance de
desforra.
Benedito, percebendo o ar brincalhão do amigo,
reagiu:
- Eu não estou brincando! É sério! Vou acabar com
eles... vocês vão ver. Ninguém me derruba e depois fica de
pé!
Boni não se aguentou e completou:
- É verdade... caem vocês dois juntos, né?
Benedito, ainda aperreado, finalizou a conversa:
- É porque a gente tem de decolar agora. Mas, se não
fosse por isto, eu iria lá era agora para resolver esta parada
de vez.
Tanaka, já não se aguentando de tanto rir, disse:
- Certo, tá certo, Benedito. Estou com você – e
virando-se para o Boni – logo que vocês voltarem do voo
iremos todos lá para a cidade e, então, vamos ver o show,
ok?
Boni assentiu, já pegando seus óculos escuros e
saindo rumo ao pátio onde estavam os aviões:
-Ótimo! Vou até voltar mais cedo para a gente não
atrasar o show do Benedito.
Tanaka, também saindo do galpão, ainda virou-se
para o Benedito:
- Está bem! Estamos combinados. Quando vocês,
“aviadores de ferro velho” voltarem de seus voos iremos
todos para a cidade e, então, veremos o “sansão” derrubar o
templo ou... levar os destroços do “sansão” para o hospital.
Benedito, já um pouco mais calmo, pensou bem e viu
que se metera numa nova encrenca. Talvez a ideia não fora

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muito boa. Mas, quem sabe, no retorno todos já tivessem


esquecido sua fanfarronice e tudo ficasse por aquilo
mesmo... sem outros entreveros.
Lá fora o “aru” subia dando um espaço razoável para
se voar. Isto deixava os pilotos mais eufóricos e loucos para
alçar voo rumo aos seus destinos.
O Benedito foi o primeiro a decolar no helicóptero e lá
ia pensando com seus botões:
“O helicóptero de Carauari já deve estar voando há um
bom tempo e despejando o pessoal do rapel para a abertura
das clareiras... droga de ‘aru’ que atrapalhou a gente aqui
mais uma vez.”
O Boni seguia para seu avião com o braço magro
apoiado no ombro de seu copiloto e perguntando-lhe:
- Como é, ô futuro comandante de espaçonave, tudo
pronto para a velha garça voar?
- Está tudo ok, comandante – e aproveitando o
momento, comentou sobre a preocupação do mecânico –
Só o Sabá é que está preocupado com o combustível... ele
acha que convém a gente colocar mais alguns galões, por
questão de segurança... o que o senhor acha?
Mas, o Boni fez que não ouviu. Adentrou o recinto da
estação de rádio onde o Saves conferia o último boletim
meteorológico para um voo comercial que cruzava o local
com destino à cidade de Letície, na fronteira colombiana.
O som que saía do alto falante reproduzia uma voz
metálica, como se fosse de um robô:
- Rádio Tefé, aqui é o Avianca dois nove zero
procedente de Manaus, no nível três três zero, com destino
Letície, passando sua vertical uno quatro uno zero GMT e
ciente das informações meteorológicas de Tabatinga.
Saves anotou tudo e respondeu à tripulação daquele
voo:
- Ciente, Avianca dois nove zero! Mantendo três três
zero direto para Letície. Boa viagem!
Boni ouvia aquilo atentamente e pensativo. Também
ele era um comandante de avião. Não de um daqueles

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grandes jatos que singravam lá nas grimpas do céu, mas do


velho Douglas DC-3, com que compartilhara tantos e tantos
voos por sobre aquela selva e por anos a fio. Ora!... mas, e
daí? Voara por muito tempo pelo Correio Aéreo e naquela
região. Servira a muita gente. Sabia o valor da aviação
naqueles cafundós que era só mato e muita água. Por isto
sentia-se realizado, mesmo que pilotando aquela velha
garça longe dos grandes e modernos aeroportos.
Jatos!... Ora! Voara por mais de trinta anos por ali
onde não existiam rodovias. Aprendera muito sobre voar e
sobre aquela bonita e difícil região. Já completara mais de
vinte mil horas de voo desde o início de sua carreira de
aviador.
Dedicara-se tanto aqueles voos que deixara de lado
até os cursos de aperfeiçoamento que poderiam ter lhe
garantido promoções na carreira profissional. E foi
justamente essa falta de aperfeiçoamento, de aprender as
novidades de sua área, que o deixara longe dos grandes e
velozes jatos comerciais.
Pensou nos colegas que seguiram em frente na
profissão que então já estavam ocupando o posto de
comandantes de linhas internacionais, com altos salários e
conhecendo o mundo todo. E ele ali... ainda voando os
antigos Douglas DC-3. Bons aviões... mas, com quarenta
longos anos de serviços prestados, já cheios de limitações e
desgastados pelo longo tempo.
Seu pensamento fugiu daí para a família.
Sim! A realização na família... esposa, filhos e filhas...
Não! Ali também não... também não fora bem sucedido
nisso.
A vida constante nos céus o afastara muito das coisas
da terra. Não vira sua prole crescer, desenvolver e à ela
tornara-se um estranho... um estranho mesmo para sua
esposa.
Ó céus!... Que vida tinha levado.
O que afinal fizera de errado em tanto gostar de voar?
Gostar da magnitude daquela imensa Amazônia?

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Sentir satisfação em transportar em velhos aviões os


muitos ribeirinhos que vinham sempre lhe pedir uma carona
até um ponto sumido naquela imensidão de floresta e rios?
Seria tão errado em gostar muito do que fazia?
Ora! Ele sabia que era um bom piloto de avião... muito
bom e muito experiente.
Assim pensativo, saiu da estação de rádio olhando
fixamente para o seu avião lá no meio do pátio, onde sua
tripulação já o esperava.
Para ele dirigiu-se com passos firmes e decididos.
Queria se jogar logo aos céus, ganhar as alturas, misturar-
se com as nuvens e esquecer todos aqueles pensamentos
ruins.
Disto ele sabia que gostava muito... voar!
Este saber ninguém poderia tirar dele.
Conhecia e bem o seu avião.
Podia não ter conhecido bem a sua família.
Podia até não ter conhecido bem o mundo.
Mas, o seu avião ele conhecia e muito bem.
Chegando perto do avião, disse com seu característico
vozeirão ao Romero e ao Sabá:
- E então? Vamos decolar?
Romero, coçando a cabeça, tentou mais uma vez
convencer o seu comandante:
- Chefe... olha só! Eu já refiz aqui as minhas contas e
acho melhor a gente colocar só mais alguns galões de
combustível por precaução. O senhor sabe como é... chega
lá e acontece um imprevisto... uma carga a mais...
passageiros...
Boni perguntou o que já sabia:
- O que estamos levando, Sabá?
Meio irritado, pois já passara essa informação a ele, o
mecânico respondeu:
- Já lhe disse... meia carga. Meia carga, chefe! Na ida
meia carga e na volta está previsto trazermos tambores
vazios.

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O piloto notou a irritação do mecânico e isto aumentou


a necessidade de se impor. Afinal, não era ele o
comandante?
- Só isto?...
- Sim, só. Bem... pode aparecer na volta alguns
daqueles velho aposentados...
- Sim, eu sei... os caronas.
Boni nunca se recusara a transportar aquela gente
necessitada. Mesmo na época em que voava pelo Correio
Aéreo sempre tinha o avião lotado de gente que precisava.
Chamou seu copiloto e disse-lhe:
- Romero, o Saves me disse que as condições de
tempo por lá estão boas e vai dar até para voltarmos para o
almoço aqui.
O jovem, ciente de que o velho é quem mandava,
simplesmente deu de ombros e, subindo a bordo,
respondeu:
- Comandante, o senhor é quem sabe.
Sabá ainda tentou:
- E então, chefe? Vai mais alguns galões?...
Desta vez o Boni é quem ficou irritado com a
insistência:
- Não! Vamos fazer um voo mais econômico, Sabá!
Percebendo o tom de voz do comandante, o mecânico
deu-se por vencido e, chateado, foi lá retirar os calços do
trem de pouso do avião.
O sol já aparecera, varando a rala camada de nuvens
que, rapidamente, estava se dissipando.
O jovem Romero tinha a missão de fazer a navegação
no rumo certo para Carauari. Esforçava-se em fazer tudo
dentro dos padrões previstos, educando-se para merecer
galgar os postos mais altos de sua almejada carreira de
piloto de linha aérea.
Sabá, experiente em sua profissão, mas cansado de
tanto tempo nela, procurava cumprir seu papel o melhor
possível, mas contando os dias que faltavam para se
aposentar e largar de vez aqueles voos em máquinas

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desgastadas pelo muito tempo de uso e dedicar-se, então, a


afazeres mais tranquilos e em terra firme.
Meia carga... toda bem embalada, amarrada, e
balanceada.
Era pousar, taxiar, abrir a porta, descarregar,
embarcar os tambores vazios, fechar a porta, correr a pista
e decolar no rumo da volta. Pronto! Seria mais um voo
cumprido dentro do previsto.
E assim seria pelos próximos dias até que aquela
etapa do trabalho fosse concluída.
Tanaka tinha se despedido do Boni avisando para que
chegasse mais cedo e assim pudessem levar o Benedito
para cumprir com o prometido... se tivesse realmente
coragem para tanto.
- Não perderei por nada! – respondera o Boni ao
fechar as portas do avião.
Livre a esquerda e livre a direita!
Contatos!
Motor número um ruge... tosse... e ronca redondo.
Motor número dois logo a seguir ruge... tosse... e
também arredonda macio.
A fumaça escura rola sob as asas.
Cheque dos instrumentos, motores, superfícies de
controle... tudo ok!
Comandos livres... rotações a pleno e as “chaleiras”
urram alto fazendo a fuselagem tremer. Primeiro uma e
depois a outra...
Ingressam na pista.
Romero chama o Saves no rádio:
- Rádio Tefé, é o Papa Tango Zulu Fox Mike pronto
para decolar visual na cabeceira uno quatro, câmbio!
E lá da estação de rádio o Saves respondeu:
- Ciente, Zulu Fox Mike! O vento é de trinta graus com
dez nós, ajuste do altímetro de 1017 e temperatura de 29
graus. Sem tráfego a reportar. Acuse quando fora do solo...
Mike!

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O asfalto negro e tracejado de branco à frente do nariz


do avião se estendia pelos mil e oitocentos metros da pista,
definindo o trajeto da decolagem.
Bonifácio e Romero aliviaram os pedais dos freios,
empurraram as manetes para frente e o avião começou a se
movimentar primeiro lentamente e depois ganhando cada
vez mais velocidade até se despregar do solo e lançar-se no
espaço.
A seguir Romero comandou o recolhimento do trem de
pouso, flaps e procurou a marcação do rádio farol do
aeroporto, para colocar a proa no rumo do destino registrado
no plano de voo: Carauari...e uma hora e quinze minutos de
voo.
Sobrevoaram uma ponta do majestoso lago à frente da
cidade e viraram à sudoeste.
Subiram para o nível de voo quarenta e cinco,
aproximadamente uns mil e quinhentos metros de altitude e
Romero fez as devidas correções de rumo.
Sabá conferiu as amarrações da carga e daí em diante
era só apreciar a viagem lá do fundo da cabine de carga do
avião. Olhando para fora pela janela, ficou pensando em sua
própria vida. Viagens e viagens e todas para ele já
rotineiras. Queria era mesmo parar com aquilo e se dedicar
à família, aos amigos e às amenidades da vida.
Na cabine de pilotagem era mesmo só apreciar o
panorama, pois o barulho dos motores que ali repercutia
tornava inviável qualquer prosa amena. A comunicação era
feita por intercomunicadores que, de tão velhos, ficava
restrita somente ao necessário.
Boni estava atento à linha do horizonte e às nuvens.
Voar para ele era o significado da vida.
Lá em cima o mundo era diferente.
Um mundo onde se sentia livre.
Livre de preocupações.
Só nuvens contrastando com um céu muito azul.
Uma paz que tomava conta de seu espírito e
descansava seu corpo envelhecido.

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Voando livre em meio a nuvens... um mundo diferente.

Uma paz que lhe tinha sido impossível encontrar em


terra.
O as asas cortavam as nuvens e ele sentia uma certa
afinidade com elas.
Trinta anos de voo.
Trinta anos vendo nuvens.
Trinta anos vendo o céu.
Trinta anos de tantos sonhos.
Trinta anos naquela vida.
Refugiava-se ali, naquele seu mundo... no seu mundo
alado... nas alturas.

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Longe de tudo... até dos seus, de sua família... Ôpa!


Pronto! Já estava ele entrando naquele campo minado
novamente.
Espantou logo esse pensamento e voltou-se para seu
copiloto:
- Romero, pare de fuçar nesses instrumentos o tempo
todo, rapaz! Não exagera com isto.
O jovem, surpreso com a inesperada intervenção do
comandante, gaguejou:
- Eu... eu... estava só dando uma conferida.
- Ora! Conferindo... Voe por instinto, homem! Estamos
visual. Preste atenção às voltas dos rios, às árvores mais
altas, às praias... aos detalhes que marcam a rota. Você vai
perceber que isso às vezes é mais valioso do que se
prender aos instrumentos, pois aqui na Amazônia não
existem muitos auxílios rádio para a gente se orientar.
- É... percebi mesmo que o rádio farol de Tefé já está
ficando fraco... não dá mais para seguir por ele.
- Ok! Então, está contigo. Vou tirar um cochilo aqui – e
ajeitou-se como pode por ali.
Uns quarenta e cinco minutos de voo pela frente ainda
e, depois, Romero iniciou a descida para a pista de
Carauari.
Reduziu as manetes e o nariz do avião abaixou um
pouco deixando visualizar mais um bom pedaço daquele
tapete verde que se estendia até a linha do horizonte.
Bonifácio despertou logo que sentiu a suave mudança
de posição do avião, de tão acostumado que estava.
Esfregou os olhos e apreciou a paisagem à sua frente
por um momento.
Paisagem já por demais conhecida. Sentiu um pouco
de tédio. Afinal, quantas vezes tinha feito aquele mesmo
percurso?
É... talvez estivesse chegando a hora de parar... mas,
parar para fazer o quê? Seria esta uma boa pedida? Jogar-
se ao ostracismo, abandonando algo que fazia desde sua

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juventude? Não! Possivelmente não conseguiria tolerar


aquilo.
Novamente afastou aquele tipo de pensamento e
passou a prestar a atenção nos procedimentos preparatórios
para o pouso, acompanhando as ações do copiloto.
Entrando no circuito da pista a mil pés de altura.
Motores reduzidos.
Flaps.
Trem de pouso abaixado e travado.
Aproximação final e pista livres.
Carauari não tem estação de rádio para se comunicar.
Então, um atento passar d’olhos ao redor e verificou que
não havia outro avião pelas cercanias.
Agora era só arredondar e pousar.
Pela posição das copas das árvores e do capim
próximo à pista o vento de superfície parecia estar bem
fraco.
Uma leve acelerada para pular algumas moitas no
início da pista e... pronto! No solo e levantando poeira.
Primeiro só com as rodas principais, pouso de pista,
fuselagem nivelada com o solo.
Motor reduzido e freios acionados.
Romero deliciava-se com cada pouso e cada
decolagem.
São momentos que dão ao piloto a oportunidade de
mostrar bem sua destreza de “pé-e-mão”, especialmente
naquela garça que ainda tinha o trem de pouso lá atrás, a
bequilha, como era conhecida aquela rodeira pequena que
ficava sob a cauda do avião.
Findo o taxiamento, magnetos, baterias e todas as
chaves desligadas... portas abertas.
Gente aglomerada por ali à espera do desembarque
da carga.
Piloto e copiloto dão aquela tradicional espreguiçada
de final de voo, ao se levantarem de seus postos.
Sabá desce e coloca os pinos e os calços de roda.

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Romero ainda fica um pouco na cabine anotando tudo


no diário de bordo.
O Boni já não ligava mais para tais coisas. Saltou ao
solo cumprimentando o pessoal dali:
- Oi gente! Tudo bem por aqui?
De lá alguém da base local respondeu em tom de
troça:
- De novo o senhor, comandante? Essa empresa de
aviação não tem outro piloto prá variar um pouco? Ô,
pobreza, viu?
- Piloto tem sim, seu peste! Mas, bom que nem eu
você não vai encontrar – e fazendo uma vênia bem
caprichada, completou com ar de gozação – Sinta-se
privilegiado de ter a seu serviço um ás da aviação para,
modestamente, lhe atender aqui neste fim de mundo, ok?
Daí abraçaram-se e veio o convite para um café lá no
galpão da base.
Sabá perguntou se era desembarque e embarque
imediato para logo decolarem de volta.
- Está contigo, Sabá! Quando você disser que está
tudo pronto a gente decola, certo?
Bonifácio dava certa liberdade à sua tripulação no que
tinha de fazer, procurando por vezes demonstrar que nela
confiava ciente que era responsável e competente nas suas
lidas.
Deixava que, assim, ficasse mais a vontade e fizesse
a coisa por gosto.
Por isto mesmo Romero foi checara carga para
embarcar, enquanto o mecânico participava do
desembarque da carga que trouxeram.
Boni bebericava seu café e proseava com a turma dali
despreocupadamente, pois sabia que tudo estava correndo
muito bem.
Romero logo encontrou mais o que fazer.
Como já antevera um grupo de quatorze anciões
queria carona até Tefé, para lá sacar o mirrado dinheirinho
de suas aposentadorias.

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Ouviu o pedido de cada um deles, que apresentavam


as mais variadas justificativas, mas que, ao final, se resumia
em que carona era de graça e bem mais rápida que o barco.
Contudo, não deu resposta a nenhum deles. Preferiu
transferir o problema para o encarregado da base local:
- Olha! Tem uns quatorze velhinhos aí querendo
carona. Mas, como o voo é de vocês, vai depender de sua
autorização para embarcá-los.
- Bem... por mim não tem problema algum. Carga
nossa mesmo são só onze tambores com óleo diesel para
os geradores de energia e dois funcionários do rapel que
irão reforçar a equipe de Tefé – respondeu despreocupado o
encarregado.
- Ôpa! Os tambores estão cheios? - perguntou
alarmado Romero.
- Sim... mas, só uns cinco, o restante está vazio - e o
funcionário completou a informação - Vai acrescentar só uns
oitocentos quilos, mas está dentro da previsão da carga de
hoje.
Ok! Mas, então tenho de avisar o comandante sobre
essa “carga extra” – disse o copiloto já saindo no rumo do
galpão no canto do pátio.
Logo que assomou à porta do Boni já o chamou:
- Ô, comandante de espaçonave, venha tomar um café
– e oferecendo-lhe uma caneca perguntou – Alguma
novidade aí ou está tudo pronto para decolarmos?
- O embarque já está feito e tem dois funcionários do
rapel que irão com a gente. Mas, tem ainda quatorze
caroneiros para Tefé e o encarregado disse que cinco dos
tambores que transportaremos estão cheios – e adiantou ao
chefe – Tudo junto dá carga completa. O que o senhor
acha?
- E o encarregado libera o que sobra de
disponibilidade para esses caroneiros? – quis saber o Boni.
- Já falei com o encarregado e ele disse que sim. Por
ele está tudo bem.

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-Eita, menino de ouro, viu! – e sorrindo para a turma ali


em volta, gracejou – Um dia ele ainda vai ser comandante
de espaçonave, pode apostar!
E Bonifácio autorizou o embarque dos caroneiros.
Mas, à porta do avião a conversa do Sabá com o
Romero foi diferente:
- Chefe... veja bem!... Estamos com pouco
combustível. Aqui não tem como reabastecer. Mais peso e
aumentamos o consumo... a subida e depois tem o vento de
proa daqui para Tefé – e demonstrando-se contrariado,
colocou o copiloto a par da situação – O comandante
Bonifácio não quis completar com mais alguns galões antes
de decolar, estamos no limite... não acho boa ideia colocar
mais peso.
Romero pegou o gráfico que o mecânico lhe passara e
conferiu os cálculos. Certificou-se que realmente estavam
com a autonomia no limite... aliás, muito no limite.
Subir até o nível de cruzeiro com mais peso do que o
previsto significava consumir mais. E também haviam
percebido no trajeto de Tefé a Carauari que o vento leste
estava mais intenso do que era previsto para aquela época
do ano. Pegariam vento de meio través à direita pela proa.
Se de lá para cá o vento ajudou, daqui para lá atrasaria
alguns preciosos minutos, com certeza.
É... Sabá estava com razão. Combustível pouco.
Mas... droga! O Boni era piloto antigo.
E antigo naquele modelo de avião.
E antigo naquela região.
E antigo exatamente naquela rota... desde os tempos
do Correio Aéreo.
Pois, então, sabia o que estava fazendo.
Não, não iria ele, ainda um inexperiente piloto
demonstrar falta de confiança em seu comandante, não
demonstraria estar inseguro.
Agiria como um comandante e não como um tímido
copiloto.
Virando-se para o mecânico, sentenciou:

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- Sabá! Sabe duma coisa? Coloque esse pessoal a


bordo e pronto! Depois avise quando estiver tudo ok e,
então, decolamos para Tefé – e para não ouvir o lamento do
mecânico saiu em direção ao galpão afastando-se
rapidamente.
“... vai só botando carga... só botando. Acham o quê?
Que avião é igual barco, que pode botar excesso de carga e
está tudo bem?” – Sabá reclamava para si mesmo enquanto
indicava os bancos do avião aos caroneiros.
Mal chegou à porta do galpão Romero avisou ao
Bonifácio:
- Comandante, sua “nave” está pronta. Podemos
decolar rumo à Marte – desta vez ele que dava o troco,
brincando com o velho piloto.
- Olha aí! Estão vendo? Agora é ele quem fica
mangando aqui do antigão. Pode isto? – e fazendo-se de
sério – Olha o respeito, rapaz!
Brincadeiras à parte, rumaram para o avião, onde
Sabá procurava descontrair os caroneiros:
- Senhores passageiros apertem os cintos. A nossa
companhia deseja-lhes uma excelente viagem. Logo mais
não lhes será servido nenhum cardápio. Mas, vamos lhes
proporcionar uma viagem repleta de satisfação e todo
conforto de que esta lata velha aqui dispõe.
Foi interrompido pelo vozeirão do Boni:
-Ei, Sabá! Pare com essa coisa aí e vai retirar os
calços, porque o Benedito já deve estar esperando lá em
Tefé para sofrer em nossas mãos. Vamos voar!
Romero tentou advogar em favor do Benedito:
- Vocês não perdem uma, heim! Porque não deixam o
pobre coitado na dele? Gostariam que fizessem o mesmo
com vocês?
Bonifácio virou-se para ele com ar interrogador:
- É?... Está tomando a defesa dele? Tá legal! Deixa a
gente chegar lá que vou contar para a turma de que lado
você está, seu advogado do diabo! – e Boni fechou a
conversa – Só faltava essa!...

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Romero balançou a cabeça em desaprovação, mas


não iria perder por nada o desfecho daquela encrenca em
que o Benedito se metera.
Tomaram seus postos na cabine de pilotagem e Sabá
voltou a checar as amarrações dos tambores que
embarcaram ali. Fechou a porta e pensava lá com seus
botões: “uma hora e alguns minutos de voo; vento de proa
talvez com uns quinze nós; carga completa... não prevista;
teriam de voar num regime supereconômico”.

Mas, lá na frente Boni assobiava enquanto seu


copiloto começava a cantar o check-list, confiante nas
decisões de seu comandante.
- Comandos livres, instrumentos do motor ok...
Boni ouvia aquela ladainha sem dar muita importância,
ia já ligando os interruptores e acionando os motores e
deixando ao “copila” aquelas coisas de “manicaca”.
Queria era tirar as borrachas do chão, ganhar os céus
e se misturar com as nuvens. Queria era voar... só!
Tefé a Carauari, uns 300 km esbarrando nas nuvens.

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TARDE AMAZÔNICA: MORMAÇO, SIESTA...


E UM POUSO FORÇADO NA SELVA

Na base de Tefé o Tanaka estava envolvido em uns


perrengues lá na oficina de motosserras. U’as maquininhas
feitas de lata e alumínio danadas para dar pane e deixar na
mão quando mais se precisava delas.
Os helicópteros continuavam na rotina de deslocar o
pessoal do rapel e os técnicos para as clareiras no meio da
mata.
Benedito estava num deles, atento ora às descidas do
pessoal de rapel e ora aos pousos nas minúsculas clareiras.
Vez por outra pensava num jeito de se safar da
encrenca em que acabara se metendo.
Não queria novamente se expor às mangações dos
amigos.
Saves lá no calorento cubículo da estação de rádio
aguardava o chamado dos tripulantes dos aviões em voo.
O sol a pino e o mormaço traziam um desalento e
induzia a uma sonolência que tomava conta de todo mundo
por ali.
Talvez esse clima constante de sauna explicasse
decantada indolência do caboclo da Amazônia.A culpa podia
ser mesmo daquele calor úmido que tomava conta do dia e
da noite, sem dar trégua.
Quem estava a caminho da cidade encontrava a lama
da tabatinga toda encalombada, fazendo o pé torcer para
um e outro lado e as passadas serem lentas e
cambaleantes.
Com certeza à noite haveria um novo aguaceiro e a
lama ficaria tão escorregadia que, quem por aquela trilha se
aventurasse, não conseguiria ficar em pé por mais de
algumas passadas.

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A coisa na base acontecia assim: enquanto o pessoal


de voo se punha a trabalhar o de terra ficava no marasmo
provocado pelo mormaço.
Quando o pessoal de voo chegava e se aquietava, aí o
pessoal do apoio em terra punha-se a trabalhar,
descarregando, abastecendo, verificando o estado dos
aviões, planejando novas saídas.
Era uma rotina já por demais conhecida e cumprida
quase que automaticamente.
Cada um sabia de suas obrigações e punha-se a
executá-las nos momentos certos.

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UM ALERTA ! O COMBUSTÍVEL !

O tempo corria também lá acima das nuvens.


O panorama era diferente, mas o tempo foi passando
do mesmo jeito.
O velho aviador, despertando de um cochilo,
perguntou ao seu copiloto:
- Estamos com quanto tempo de voo?
- Ah!... É... estamos com... com trinta e poucos
minutos pela frente – respondeu Romero, procurando
sintonizar no rádio os sinais do rádio auxílio à navegação do
aeroporto de Tefé.
Ali em cima os raios solares refletiam intensamente
nas nuvens, obrigando o uso de óculos com lentes escuras
para suportar aquele brilho forte
Mas, mesmo assim os olhos iam se cansando e o
copiloto já sentia esses efeitos.
Logo que percebeu isto Bonifácio, que havia deixado o
rapaz pilotando nos dois trechos da viagem, resolveu
assumir:
- Bom... agora deixa comigo, ok? Me dê aí a carta de
navegação para ver onde estamos, e vai descansar um
pouco.
- Certo! Se o senhor quiser assumir, tudo bem. Mas,
na verdade não estou com vontade de descansar – e
demonstrando um pouco de apreensão, acrescentou –
Estou é um pouco preocupado com o vento de proa que
está nos atrasando.
- Atrasando?... Deixa eu ver aqui... Hum... – e passou
a vista pelo trajeto riscado no mapa – Estamos aqui neste
ponto, não é? Começamos a descer aqui neste outro ponto.
Até lá... melhor reduzirmos um pouquinho as manetes – e
puxou levemente as alavancas de aceleração para trás.

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Lá na cabine de passageiros o Sabá tentava se distrair


proseando com os caroneiros, ouvindo seus causos e
piadas. Era um povo sofrido, mas continuava com o bom
humor.
Foi quando ouviu a voz do comandante no
intercomunicador:
- Sabá! Venha até aqui. Estou precisando de você.
Imediatamente pulou de seu lugar e foi em direção da
porta que separava as duas cabines, a de passageiros e
carga da de pilotagem.
Uma vez lá dentro ouviu do Bonifácio:
- Sem me aporrinhar, recalcule o combustível, ok?
O mecânico o olhou interrogativamente e, um pouco
surpreso, assentiu e acomodou-se por ali calculando quanto
de combustível ainda tinham nos tanques.
- Romero, verifique o curso para saber se esse vento
desgraçado nos tirou muito da rota.
Uma pequena ruga tomou conta da parte mediana da
testa do Boni. Exteriorizava ali uma preocupação que
começava a lhe inquietar, mas que não podia deixar
transparecer aos demais.
Em seguida, levou a mão direita às manetes e reduziu
mais um pouco a potência dos motores.
Tentava disfarçar sua crescente preocupação, mas o
experiente Sabá e mesmo o jovem copiloto já percebiam o
que estava acontecendo.
Dentro daquela pequena cabine uma insistente tensão
tomava conta do ambiente e os três ali presentes nem
precisavam falar muito para compreenderem a situação que,
a cada momento, tornava-se mais crítica.
O mecânico finalizara os cálculos e passava os
resultados ao piloto:
- Aqui está, chefe. Não tem dúvida. Estamos mesmo
voando na reserva – e apontando uma luz que se acendera
no painel, completou – Veja só... a luz da bruxa !
Boni, como que dizendo a si mesmo em tom irritado:

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- Quarenta minutos de voo... Raios! Vamos conseguir.


A gente vai conseguir.
Apesar daquela afirmativa, claro que a desconfiança
tomou conta de todos e quase instintivamente passaram a
procurar naquela amplidão de floresta lá embaixo algum
sinal da cabeceira do grande lago à frente de Tefé.
Romero, sem nem consultar o seu comandante, puxou
as manetes mais um pouquinho para trás. Não podia reduzir
muito, pois a velocidade de sustentação estava próxima ao
limite.
Aquela luz acesa e os ponteiros de marcação do
combustível apontando quase zero deixava-os bastante
desconfortáveis... apreensivos até.
As novidades eram que o ponteiro do indicador de
subida e descida passara a apontar um pouco para baixo, e
o ponteiro maior do altímetro tinha iniciado um lento, mas
constante giro anti-horário, revelando perda de altitude.
A tensão aumentou e Romero deixou escapar:
- Estamos descendo quase a duzentos pés por
minuto... chegaremos até lá?
Sua pergunta ficou no ar, sem resposta. Ninguém
queria arriscar qualquer palpite naquelas circunstâncias.
Procurando refazer a sua autoconfiança Boni fez seu
vozeirão sobressair às dúvidas:
- Bem!... Já estamos com uns cinquenta minutos de
voo. Logo o lago vai aparecer aí à frente. Já estava na hora
mesmo de iniciarmos a descida. Vamos lá... vai dar tudo
certo!
Não acreditando muito naquelas palavras Sabá
perguntou visivelmente apreensivo:
- O senhor quer que eu alije a carga, chefe? – e já foi
se preparando para deixar a cabine em direção ao fundo do
avião, onde estavam amarrados os tambores.
Mas, antes que chegasse a abrir a porta o velho Boni
lhe respondeu:
- Não, Sabá! Alijar os tambores não adiantaria muito –
e alertou o seu mecânico – Se você abrir aquela porta em

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voo, além de aumentar o arrasto, vai gerar pânico entre os


passageiros. Melhor não.
- Ok, chefe. Então, vou lá checar e apertar mais uma
vez a amarração da carga e, se for preciso, preparar o
pessoal para o pior.
Boni ficou irritado. Preparar para o pior? Que nada,
eles conseguiriam. E se animou mais quando Romero lhe
comunicou:
- Veja! A marcação do rádio farol de Tefé está
entrando firme e forte. Não estamos tão longe assim... só
falta agora aparecer o lago – e ato contínuo procurou sinais
da cabeceira do lago na linha do horizonte.

barcelosnanet.com
De Tefé, no rio Solimões, a Carauari, no rio Juruá

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MOTORES PARANDO !...

Lá na cabine de passageiros alguns caroneiros


conversavam e outros dormiam, sentindo no ronco dos
motores a garantia da tranquilidade daquele voo que os
embalava rumo aos minguado, mas bem-vindo dinheirinho
da aposentadoria.
Porém, os dois funcionários do rapel, experientes na
área, estranhavam estarem voando tão baixo, sendo que
ainda não tinham chegado ao grande lago de Tefé.
Um comentou com o outro:
- Parece que o comandante resolveu voar baixo...
talvez já estejamos próximos do lago.
E passaram a procurar pelas janelas sinais do lago e
da cidade. Mas, só viram as árvores altas que se
destacavam no meio do igapó logo abaixo deles.
Nada de lago e nada de cidade.
Mil pés de altura e Boni suava aos montes, com a mão
direita agarrada às manetes, empurrando-as e puxando-as,
conforme a dança dos instrumentos indicadores de altitude,
velocidade e subida e descida.
Romero tinha os olhos colados no para-brisas na
espera de ver a cabeceira do lago salvador... já nem se
iludia de que conseguiriam chegar à cabeceira da pista.
Arriscou uma sugestão ao velho comandante:
- Chefe, o senhor não acha melhor desviarmos para a
direita e procurar o rio?... Podemos tentar amerissar nele...
De uma hora para outra os motores vão parar...
Como se estivesse obcecado Boni respondeu enfático:
- Não! Manteremos a rota. Ficaremos no curso. Vamos
chegar... vamos chegar...
Obsessão ou quase alucinação, mas estava decidido a
continuar buscando aquele ponto fixo no horizonte... um
lago ou uma cabeceira de pista.

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Sabá já checara as amarras dos tambores, mas sabia


que, no caso de uma queda, nada daquilo adiantaria.
Orientou, procurando não alarmar, os passageiros a
sentarem-se, afivelar os cintos e prepararem-se para o
“pouso”... sem revelar que tipo de pouso já tinha certeza que
aconteceria.
As margens do lago não apareceram. Concluiu que
estavam mais atrasados do que imaginara.
Para ele o avião estava voando só pelo “cheiro”, já
que, pelos seus cálculos, não tinham mais nenhum
combustível.
Aproximou-se dos dois funcionários do rapel e, pela
simples troca de olhares, eles perceberam que havia algo
errado.
Sabá confidenciou rapidamente a eles:
- Estamos sem combustível para alcançar a pista – e
antes que perguntassem qualquer coisa, passou-lhes uma
árdua tarefa – Se a gente ficar bem, teremos de cuidar dos
caronas aí... só tem velho e vão precisar de ajuda, ok?
Os dois assentiram e voltaram seus olhos, agora
assustados, para a pequena janela do avião.
Logo abaixo frondosas copas de árvores passavam
rapidamente, deixando entrever a água escura do igapó que
tomava conta das terras de várzea naquela época do ano.
Mas, os motores ainda funcionando davam-lhes
esperanças. Quem sabe dá para chegar?...
Lá na frente Bonifácio continuava seu jogo entre as
manetes e os ponteiros dos instrumentos de velocidade e
altitude.
Romero tentava divisar algum sinal do lago, mas só
via árvores saindo das águas do igapó, como se estivessem
tentando alcançá-los.
Um barulho diferente deixou o Boni empertigado...
tenso! Engoliu a seco, ouvira algo que não queria ouvir.
Sim!... aquilo se repetira... de novo.

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Sabá lá atrás também ouviu, esticou o pescoço e


arregalou os olhos na direção de uma janela fitando um dos
motores.
Ele, o motor, estava “tossindo”... e cada vez mais.
Lá do seu posto Boni olhou para o motor, como se
quisesse encorajá-lo a continuar.
Suas sobrancelhas tremiam e as pálpebras se
espremiam com força. Seus olhos azuis pareciam querer
injetar ânimo naquele motor que insistia em falhar e falhar
cada vez mais.
Ele já se vira em situações críticas... terríveis mesmo.
Afinal, não era nenhum manicaca.
Mas, assim?...
Sobre aquela mata...
Sem nenhuma chance?
Resvalando nas copas de árvores e sem nenhuma
pista, clareira ou praia ao alcance?
Não era possível que iria se acabar daquele jeito... não
podia.
Deixou de olhar para o motor e passou a procurar
algum lugar para literalmente jogar o avião... mas, tudo era
igual, árvores que se entrelaçavam e logo abaixo delas o
igapó.
Romero desesperado continuava procurando algum
lugar no horizonte, como se não quisesse acreditar no que
estava para acontecer.
Saiu de sua incredulidade quando o motor do seu lado
também começou a tossir.
Fixou os olhos na carenagem daquela máquina como
se assim pudesse fazê-la continuar funcionando.
Alertou o seu comandante aos brados:
- Comandante! Comandante!... O motor direito...
Mas, o Boni já cortou sua frase rispidamente:
- Já sei, já sei!... Ele parou. O esquerdo também.
Embandeire tudo... rápido!

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Porém, os dois já sabiam que nada mais podiam


fazer... entre o avião e as copas das árvores o espaço
diminuía rapidamente.
Na cabine de passageiros o inevitável já era visível a
todos que, pasmos, tentavam se proteger de alguma forma.
Uns mudos, outros gritando, mas todos apavorados.
Sabá sentou-se rapidamente e afivelou fortemente o
cinto de segurança.
Foi seguido pelos dois do rapel, que se sentaram ao
seu lado e também arrocharam seus cintos de segurança e
ficaram na espera do pior... iminente.
Pelas janelas dianteiras podia-se ver as hélices
paradas e o incômodo silêncio dos motores fazia segurar até
a respiração.
No último momento Boni ainda ordenou ao Romero:
- A rádio!... a rádio do aeroporto! Informe nossa
posição, rápido!
O copiloto, embora tivesse treinamento para situações
de emergência, não imaginara que passaria por aquilo e
ficou por momentos sem ação... paralisado.
Já ouvira relatos de colegas que se acidentaram.
Mas, uma coisa é ouvir essas histórias e outra muito
diferente é estar prestes a passar por uma delas e da pior
forma possível... sobre a selva.
Boni, entre um aperreio e outro, percebeu a cara
abobalhada de seu copiloto e gritou-lhe:
- Ô, astronauta! Faça o que eu disse... avise a rádio
nossa posição!
- Sim... está bem! – finalmente caiu em si e passou a
chamar pelo microfone a rádio do aeroporto, esperando que
Saves o ouvisse logo.
Os ramos mais altos das copas frondosas de algumas
árvores já lambiam o dorso das asas do Douglas.
Não havia mais esperança.
A qualquer momento aquele tapete de folhas, galhos,
toras e água os envolveriam de vez.

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Bonifácio ainda tentava desviar de uma e de outra


daquelas copas, em busca de mais alguns metros adiante.
Quiçá conseguisse jogar o avião no leito do estreito
igarapé cujas águas invadiam a floresta e, assim, evitar um
impacto maior contra a solidez das grossas árvores.

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AGITAÇÃO NO AEROPORTO DE TEFÉ

Saves dormitava com a cabeça recostada no painel do


rádio, aguardando a última das velhas garças pousar... o
Douglas do Boni.
Todos os outros já haviam retornado de suas missões
do dia: os helicópteros e o Islander, um pequeno avião que
mais parecia uma Kombi voadora, lento, porém pousava e
decolava em pistas curtíssimas.
Tanaka entrou no cubículo da estação rádio
espreguiçando-se e atrás dele vinha o Benedito, ainda todo
preocupado em como escapar da sinuca em que se metera.
O pessoal do descarregamento já se dirigia ao pátio
para o último trabalho do dia, ou seja, os tambores que o
Bonifácio estava trazendo de Carauari.
Após o Saves dizer que ainda não tinha notícias do
Douglas, Tanaka comentou:
- Ô, aviãozinho lerdo esse, viu!
E olhando para o sudoeste pediu ao Saves:
- Chame ele aí pelo rádio. Pergunte qual é a previsão
dele pousar – e comentou – Estou afim de um banho, mas
só posso sair daqui depois que o Boni chegar.
Não precisou Saves chamar pelo rádio.
Ouviram aquela voz metálica no alto falante:
- Rádio Tefé, rádio Tefé! Aqui é o Zulu Fox Mike,
câmbio!...
Saves estranhou o tom aflito com que o seu amigo, o
Romero, o chamava pelo rádio, mas ainda gracejou:
- Com essa pressa toda ele deve estar é com dor de
barriga – e atendeu a chamada:
- Mike, é Tefé. Prossiga!
- O Zulu Fox Mike está há vinte minutos fora, com os
dois motores parados. Fará um pouso forçado... posição
atual...

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Foi como se todos ali tivessem levado um tremendo


soco na boca de seus estômagos.
O primeiro instante foi de perplexidade e o segundo foi
como se um raio tivesse energizado tudo ali dentro.
Tanaka deu um pulo e foi parar com o ouvido
encostado no alto falante do rádio.
Benedito praticamente voou por cima da mesa e foi
plantar-se junto aos dois amigos.
Saves apressou-se:
- Fox Mike, confirme suas coordenadas!...
Silêncio...
- Mike, dê a sua posição, câmbio!...
Silêncio...
E antes mesmo de continuar chamando, disse rápido
aos outros dois:
- O Douglas vai fazer pouso forçado... está há vinte
minutos fora. Avisem a todos!.
E voltou a insistir nas chamadas ao avião do Boni.
E uma após outra e a nenhuma tinha resposta.
Lembrou-se de acionar o SAR, citando o momento em
que perdera contato rádio com o avião.
Em breve um Albatroz SA-16 do SAR estaria
decolando de Manaus para iniciar as buscas pela área.
Mas, Benedito não esperou.
Ligou o rádio de seu helicóptero e fez uma chamada
geral para todas as aeronaves que estivessem voando por
ali tentassem fazer contato com o Douglas.
Em seguida ligou o motor do seu aparelho e, com
Tanaka a bordo, decolou rumando para a cabeceira do lago
de Tefé.
Pronto!... O que mais poderiam fazer a não ser
esperar?
Hora da última comunicação com o avião: doze horas
e vinte minutos.
Tremendo a mão, Saves fez o registro, calculando a
hora do “pouso”: doze e quarenta!

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Como o relógio marcava treze horas o que tinha de


acontecer já teria acontecido.
Lá fora todos da base olhavam para o horizonte
procurando um rasgo de esperança. Procuravam na direção
de Carauari um ponto que poderia ser o avião, mesmo
sabendo que, pelo passar da hora, ele não mais apareceria.
Olhavam em vão.

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CAOS A BORDO... A QUEDA

Romero não chegou a conseguir passar as


coordenadas de sua posição ao Saves lá na estação rádio
do aeroporto de Tefé, porque percebeu que Bonifácio
precisava de sua ajuda urgentemente, para pelo menos
tentar controlar a queda.

Segurou firme o manche e tentava acompanhar o


comandante nas manobras milímetro a milímetro.

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- Vamos de trem de pouso em cima ou embaixo? –


perguntou rápido ao Boni.
- Em cima! – foi a resposta curta e sem qualquer
explicação, e acrescentou – estou procurando nos manter
mais ou menos sobre o igarapé... talvez a gente consiga
amenizar o impacto.
O copiloto retrucou:
- Não dá! Estamos raspando no topo das árvores...
vamos bater!
O delgado e tortuoso estirão de água escura sumira
em meio às copas da vegetação mais alta. Boni tentava
divisá-lo, mas sem sucesso.
Só haviam aquelas copas de árvores... altas e
frondosas, que envolviam cada vez mais o avião.
No derradeiro momento o comandante diz ao seu
copiloto:
- Vamos tentar estolar sobre uma dessas árvores
grandes à frente... pode ser que amorteça um pouco o
choque... embaixo é só água.
Ouviu os estalido de galhos quebrando-se à passagem
do avião que, sentindo aqueles trancos, balançou de um
lado para o outro.
Lá atrás, na cabine de passageiros, o caos se
estabelecera. Uns estavam estáticos, outros gritando, outros
cobriam seus rostos, Sabá e os dois do rapel se seguravam
como podiam só esperando o desfecho daquele “pouso”.
Romero gritou ao Boni:
- Aquela ali! Bem à frente... a maior...
E o piloto não hesitou e, mais por instinto mesmo do
que por qualquer efeito prático, puxou as manetes para trás
e o manche todo para si.
O avião levantou o nariz para o céu, como num último
alento de um bravo herói, uma sua reverência ao céu que,
então, deixava, tremeu todo como últimos estertores,
abaixou a asa esquerda e se precipitou sobre a frondosa
copa daquela grande árvore que o recebia como leito de
morte.

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O Boni ficou estarrecido, apavorou-se e, num estalo,


soltou-se de seu assento e atirou-se de peito no chão do
estreito corredor da cabine de pilotagem.
Romero largou o manche já inútil e levou as mãos à
almofada de seu assento para colocá-la à frente do rosto...
mas, nem tempo para isto teve.
O avião colidiu violentamente contra o tronco da
enorme árvore e grossos galhos invadiram a cabine dos
pilotos.
Não suportando o peso a árvore estalou e dobrou-se
ao meio.
O avião despencou lá de cima quebrando ramos,
galhos e destruindo tudo por onde passava.
Romero viu o para-brisas ceder sob o impacto de um
galho mais grosso que foi em sua direção e esmagou seu
tórax. Sentiu as costelas quebrando, uma dor profunda. Sua
cabeça jogada para frente com violência, uma pancada
firme e... nada mais. Perdera a consciência... e a vida se
esvaiu de repente.
De sua fronte e de seu braço direito, quase decepado,
jorrava sangue que rapidamente tingiu o painel frontal, seu
assento e o piso da cabine. Ali se acabou sua curta vida de
vinte e seis anos.
Nem chegara o avião a tocar a água do igapó e ele já
não estava mais neste mundo. Decolara de Carauari para
Tefé, mas acabou pousando na morada eterna.
Próximo a ele o Boni se agarrava às colunas metálicas
que iam do piso ao teto da cabine, tentando aguentar os
safanões do avião chocando-se contra as árvores e, num
deles, chegou a bater a testa com força contra a soleira da
porta, abrindo ali um ferimento por onde o sangue logo fluiu
em abundância.
Seus olhos arregalados fixavam-se no estreito espaço
daquela portinhola, por onde esperava escapar da morte,
enquanto borbotões de água escura invadiam de vez a
cabine.

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Seus dedos como que formando garras tentavam


arranhar o vazio acima, numa ânsia desesperada de
encontrar algum ponto de salvação.
A porta, pressionada pela torrente de água, não abria
e ele usava de todas as suas forças tentando um vão
suficiente para chegar à tona e respirar.
Do outro lado da porta, na cabine de passageiros, a
confusão era total.
No impacto maior passageiros e carga soltaram-se e
voaram rumo à parede metálica que isolava as duas
cabines.
Os tambores funcionaram como projéteis acertando os
passageiros e precipitando-se sobre a água que invadia
rapidamente o lugar.
Os que estavam cheios de óleo espatifaram-se contra
as ferragens, espalhando visco por tudo quanto era canto.
Um dos passageiros recebeu uma forte pancada de
um tambor no ombro que lhe estalou os ossos. Outro tambor
fraturou a perna de um dos anciões. E um outro foi de
encontro à fronte de um terceiro carona.
Sabá procurava se agarrar próximo à porta de saída.
Mas, um dos tambores acertou-lhe uma das mãos e tirando-
lhe um grito de dor, o fez soltar-se e rolar pelo piso molhado
e já quase na vertical.
O avião, inclinado em quase oitenta graus, afundou
até colidir com o fundo lamacento do igapó, a uns oito
metros de profundidade.
O tronco da árvore quebrada pelo impacto prendeu a
fuselagem do Douglas e a destroçou por completo.
Das asas só ficaram fora d’água seus bordos de fuga,
com os flaps e ailerons.
A cabine de pilotagem imprensada contra o fundo e
toda destruída pelos seguidos brutais impactos.
O óleo vazado dos tambores a bordo impregnaram
logo a água, dando-lhe uma tonalidade ocre.
As copas das árvores, tão logo o avião por elas
passou, fecharam-se ocultando tudo o que tinha acontecido.

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Quem olhasse de cima não teria ideia de que a floresta


escondia ali mais um seu segredo, um cenário tétrico de
onde subiam muitos lamentos, gemidos e até gritos
angustiantes.
Sabá, boiando entre os destroços dentro do avião,
percebeu u’a mão trêmula que saia da água, como que
estivesse buscando salvação.
Agarrou-a e puxou com força.
Surgiu o Boni com a face dilacerada e tingida de
sangue.
Enfim, conseguira sair da cabine da morte.
E, graças aos seu mecânico, agora estava salvo.
Salvo? Não! Ainda não. O ferimento em sua testa
sangrava muito e ele perdia as forças.
Enquanto Sabá o puxava para cima um dos
funcionários da empresa, o Pedro, conseguiu a duras custas
chegar à parte traseira do avião e abrir a porta.
De lá ele viu que, em volta, era tudo só árvores e
muita água... não havia terra firme por perto.
Gritou para o Sabá:
- Onde tem corda? Corda para a gente tirar esse povo
daí do fundo.
Sabá, já exausto e sentindo dor na mão machucada,
respondeu:
- Ô, meu irmão! Aí nessa portinha... aí atrás de você.
Abra ela e você vai ver as cordas.
Segurava o Boni pelos braços para que não se
afogasse na água que invadira o avião.
A gritaria tornou-se insuportável... todos queriam
ajuda.
Sangue, óleo, água misturavam-se junto aos
destroços... uma coisa terrível!
O rapaz do rapel conseguiu as cordas e amarrou-as
junto à porta de carga.
Lançou uma das pontas para dentro do avião
sinistrado e gritou para o Sabá:

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- Pega acorda aí... sobe, vem ajudar aqui em cima


para retirar essa gente de dentro do avião.
- Está bem! Vou amarrar a corda aqui no comandante
e você o puxa aí para cima, porque ele está perdendo muito
sangue.
Os lamentosos pedidos de ajuda dos passageiros
enchiam o ambiente, mas eles só podiam atender um de
cada vez.
Primeiro retirando-os do avião inundado e depois...
depois fazer o quê, se tudo ao redor era só água?
Logo que engatou o Bonifácio num pedaço de corda
junto à porta do avião, o Pedro disse ao Sabá, que
continuava na parte do avião que estava alagada:
- Vou jogar a corda de novo e você vai amarrando nela
alguns tambores para a gente jogar aqui na água e, então,
servirem de boias, pois não tem terra firme por perto e o
pessoal vai ter de se agarrar é neles.
Assim se fez. Foi preciso amarrar o Boni em um dos
tambores, pois ele havia desmaiado.
Os três, o Sabá e os dois do rapel foram retirando um
por um dos sobreviventes e os colocando atrelados aos
tambores flutuando na água misturada com óleo.
Ficavam por ali boiando até passarem às árvores que
afloravam do igapó e nelas se atracavam os que assim
podiam fazer.
O trabalho daqueles três foi estafante, visto que
também tinha ferimentos, estavam extenuados e as
condições eram as piores que já haviam enfrentado, embora
fossem acostumados às dificuldades inerentes de suas
atividades profissionais.
Aqueles galhos quebrados, aquele monte de gente
gemendo e chorando, aquele desespero por não saberem
nem onde estavam... tudo era desanimador.
Sabá olhou para o Bonifácio sangrando, desfalecido.
De repente se deu conta! Cadê o Romero?
Procurou entre os que haviam sobrevivido e... nada.

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Pressentiu que ele não conseguira sair da cabine de


pilotagem. Mas, não tinha mais forças para mergulhar e ir
em busca do amigo.
Acocorou-se no que sobrara da asa fora d’água e
abaixando a cabeça... chorou.
Não pela dor da mão machucada, mas por tudo que
tinha acontecido.
Um misto de raiva e tristeza tomava-lhe conta da alma.
Era difícil aceitar tudo daquela forma.
O que faria?
Como sairiam dali?
Claro que as buscas começariam logo.
Mas, quanto tempo levariam para encontrá-los?
Alguns dos passageiros eles haviam conseguido
retirar do avião com certa facilidade. Outros, porém,
exigiram esforços maiores. E tinha ainda um que, soltando-
se da corda, acabou se arrebentando lá no fundo do avião.
Alarmado com a ideia de muitas perdas, fez uma
rápida contagem de quantos deles sobraram e constatou
que, ao final, além do Romero, faltavam mais três
passageiros.
Certamente estavam lá no fundo da água que invadira
o avião. Ainda pensou em ir lá verificar, mas não tinha mais
forças. Estava extenuado, trêmulo, com dor e
desesperançado.

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UM CABOCLO SALVADOR

“Seo” Pedroso, caboclo igual a todos daquela vasta


região, ia todas as tardes para sua roça com o filho mais
velho que o ajudava na plantação.
Tinha uma palafita socada naquele meio de igapó.
Para chegar à roça usava a montaria, aquela piroga
feita de pranchas de tronco de árvore.
Remava à sua proa por pouco mais de um quilômetro
e atracava a canoa perto de seu pequeno roçado.
Simples subsistência... e mal.
Lá da roça sempre ouviam o barulho dos motores dos
aviões que cruzavam os céus entre Tefé e Carauari.
Era subindo o rio de manhã e descendo à tarde. Já
estavam acostumados.
Sempre na mesma rota.
Sempre na mesma direção.
Sempre no mesmo horário.
Sempre o mesmo barulhão.
Ronco de motores... motores de Douglas.
E naquele dia não foi diferente.
O Pedroso carpindo com o filho...
Tinha percebido que o avião passara com atraso no
rumo de baixo.
Mas, depois de algumas horas o ouviu voltando... o
barulho dos motores.
Depois, o barulho sumiu de repente.
Parou de carpir e comentou com o filho:
- Coisa gozada!... O ronco do bicho parou...
Os dois perscrutaram o céu no rumo de onde sempre
vinha o avião e... nada.
Só silêncio.
Mas, não demorou muito e ouviram ao longeestalos de
galhos se quebrando e depois um estrondo.

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Estranharam, pois não havia temporal à vista... aquilo


não era trovão.
De repente o velho entendeu tudo, esbugalhou os
olhos e já se mexendo disse ao filho:
- Menino! Pega a canoa depressa! Vamos já para lá!
O rapaz ainda sem perceber do que se tratava,
perguntou ao pai:
- Mas, o que foi, meu pai? O que tá acontecendo?
- Parece que esse avião caiu! – e já de cabo de remo
na mão, aproou sua montaria para o igapó e danou a remar
o mais rápido que pode.
Passavam pelo emaranhado de arbustos, cipós e
árvores, afastando a folhagem do caminho e procurando
sinal do avião.
Demorou um tanto, remaram quase três quilômetros
cortando as voltas do igarapé pelo igapó adentro.
Ouviram gritos e o Pedroso remou naquela direção.
Saindo das moitas banhadas pela água escura os dois
se depararam com um cenário medonho:
Gente se agarrando em árvores semi-submersas,
gente boiando em tambores e gente acocorada em resto de
avião... chorando, gemendo e implorando socorro.
O avião estava embicado no igapó e sua cauda
destroçada escorada numa grande árvore partida.
As asas quase submersas ainda estavam lá... sem
mais nenhuma função.
O óleo cobria a superfície da água, tornando-a viscosa
e rastros de sangue marcavam a agonia daqueles
sobreviventes empoleirados por ali.
Que triste aquele cenário que, sem aviso, tomara
conta das águas que banhavam o seu sítio.
Alguém, agarrado a um daqueles tambores, implorou
ao Pedroso:
- Ô, meu senhor. Dê uma ajuda aqui...
E outras vozes seguiram ao seu clamor, cada qual
demonstrando sofrimento.

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Sem bem saber o que fazer com aquela gente,


Pedroso respondeu:
- Tá!... Está bem!... Vamos lá, minha gente... levo
vocês para minha casa – e foi remando na direção deles.
Desesperados para saírem dali, alguns dos
sobreviventes foram largando de onde estavam e nadaram
para o lado da canoa, agarrando-se em sua borda.
A pequena embarcação mal comportava umas três
pessoas e, claro, logo começou a balançar e a alagar.
O velho, vendo no que aquilo ia dar, começou a
balbuciar, sem muita coragem de impedir:
- ... não! Espera aí!... calma, gente!... vai alagar.
Bonifácio já lúcido o suficiente para ver o que estava
acontecendo e mesmo fraco fez valer o seu vozeirão:
- Calma! Parem todos! Se a canoa afundar ninguém
sai daqui – e, tomando fôlego, ordenou – voltem todos para
as árvores.
Foi o suficiente, todos estavam desesperados, mas
perceberam que a embarcação era pequena demais.
O caboclo disse ao seu filho:
- Te agarre num galho por aí, que vou levar de dois em
dois. Quando terminar, volto para te buscar.
E assim fez, a cada viagem levava dois dos
sobreviventes.
Pacientemente, ouvindo gemidos, lamentos e choro,
remava por entre a galhada do igapó até sua palafita,
deixava os recolhidos com sua esposa e com os outros
filhos, tomava o rumo de volta até o local do acidente.
Sua pequena moradia virara uma espécie de pronto-
socorro improvisado.
Sua esposa tentava na medida do possível cuidar dos
que apresentavam ferimentos mais graves.
Ia remediando aqui e ali.
Remédios... só aqueles caseiros, para aliviar a dor ou
para estancar o sangue.
Bonifácio foi instalado numa rede pendurada num
canto do cômodo único da casa.

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A palafita do “seo” Pedroso fincada lá no meio do igapó.

Nem parede direito tinha. O piso era de pranchas de


madeira de lei sustentado por vigas que, por sua vez,
apoiavam-se em paus roliços fincados lá no fundo do igapó.
A mulher aplicou na testa ensanguentada do quase
desfalecido piloto uma mistura de borra de café com folhas,
como receita de parar o sangramento.
Ao fim das várias viagens transladando os
sobreviventes, Pedroso finalmente buscou o filho mais velho
que ficara lá no local do acidente e foi ajudar a esposa no
atendimento aos seus “convidados”.
- É... mulher, assim não pode ficar. Todo mundo aqui
está machucado. Temos de avisar o pessoal lá na cidade –
disse preocupado com a situação caótica que ali estava.
O filho logo se ofereceu:

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- O pai quer que eu vá até a cidade buscar ajuda?


O caboclo coçou a cabeça e olhando para fora viu que
o sol já ia se pondo atrás da mata.
Para remar até o lago e depois atravessá-lo até a
cidade seria muita água para o menino vencer à noite.
- Deixa eu pensar aqui... – respondeu o velho,
procurando um jeito menos perigoso de conseguir ajuda.
Sabá ouvindo a conversa, foi ter com os dois do rapel:
- Gente! Temos de ir em busca de socorro. Essa
família já fez o que pode por nós – e olhando para seus
próprios ferimentos, completou – Não estamos tão
machucados assim. Podemos pegar a canoa e tentar chegar
à cidade.
Pensaram um pouco e responderam ao Sabá:
- Mas, quem de nós sabe sair desse igapó e à noite?...
Nem sabemos chegar ao igarapé, imagine então chegar ao
lago.
E o Sabá assentiu:
- É verdade, aqui nesta mata só anda quem a conhece
bem.
Uma vez mais a solução veio pelo velho caboclo:
- Olha aqui! A gente tem de conseguir ajuda da cidade.
Não tem como esse povo ficar sofrendo aqui assim. Já é
quase noite e está perigoso para meu curumim ir sozinho no
cabo de remo até lá. Mas, se um de vocês topar ir junto... aí,
então... tudo bem, ele vai.
De pronto Sabá aceitou a oferta e prontificou-se a
acompanhar o menino na canoa.
Pedro também topou e recomendou ao seu colega que
ficasse para prestar alguma ajuda que “seo” Pedroso
necessitasse.
Embarcaram os três na montaria e sumiram na
escuridão, guiados pelo curumim já conhecedor de cada
pedaço daquele lugar.

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UMA TARDE PERDIDA E UMA BOA IDEIA

Fonte: FAB

- Falcão dois para a rádio de Tefé, câmbio! – chamou


o piloto de um dos helicópteros que participava das buscas.
- Prossiga! – respondeu apreensivo o Saves.
- Até agora nada – notificou desconsolado o piloto – e
perguntou – Alguém deu alguma notícia?
- Negativo! Até o momento sem qualquer informação
do Fox Mike.
Além dos helicópteros havia também um avião
Albatroz SA-16, anfíbio, participando das buscas. Nele o
comandante Azis coordenava a operação, indicando a área
devida a cada aeronave empenhada naquela operação.
Achava difícil um Douglas sumir assim numa área tão
restrita. Partindo de Tefé, num ângulo de quarenta e cinco
graus, em direção sudoeste e calculados uns trinta minutos
de voo, o avião tinha de estar por ali... mas, onde?

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O problema é que, quando o avião bate nas copas das


árvores, elas se abrem e ele passa. Mas, a seguir elas se
fecham e escondem o que está lá embaixo.
A boca da noite já ia chegando.
Não era mais seguro os helicópteros continuarem
voando, então Azis deu a ordem para que retornassem à
Tefé e pernoitassem. Recomeçariam as buscas no dia
seguinte.
Benedito pigarreou:
- Droga! Voltar?... Mas, assim?... Sem achar onde eles
estão?...
Contudo, reconhecia o perigo que seria continuar
voando com aquele tipo de aeronave à noite sobre a selva e
a baixa altura... além de infrutífero, pois ninguém veria nada
lá embaixo.
Poderiam até passar sobre o avião acidentado e não
conseguir divisá-lo.
Quando o Albatroz e os helicópteros “cortaram” os
motores no pátio do aeroporto de Tefé as faces cansadas
expressavam o desconsolo por aquela tarde perdida, pois
sequer conseguiram a localização do avião do Bonifácio.
Tanaka, com olhar perdido para as bandas do Juruá
lamentava pelo infortúnio do amigo.
Perguntava a si mesmo se não fora culpa sua tê-lo
enviado para aquela missão.
Afinal, mesmo sendo de rotina, voar sobre aquela
mata em um avião velho e sem muitos recursos de
navegação e de comunicação era temerário.
Nesses momentos pensa-se em tudo.
O Saves, calado, taciturno, desligou os equipamentos
de rádio ciente de que jamais o Zulu Fox Mike o chamaria
por ali de novo.
Benedito não parava de lamentar.
Sabia que quando o manto escuro da noite cobria a
floresta ele nada podia fazer, nem mesmo podia adivinhar
quais eram as condições de seus infortunados

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amigos...setinham sobrevivido, se estavam muito feridos...


onde estavam?
Se alguns deles sobrevivera, mas estivessem
gravemente feridos, caso socorridos a tempo poderiam ser
salvos.
Mas, a noite impedia que os aviões continuassem as
buscas. Teriam de esperar até o raiar do dia e esse tempo
de espera poderia significar viver ou morrer para quem
estivesse muito machucado.
Absorto nesses pensamentos, caminhava pelo pátio
de estacionamento de aeronaves do pequeno aeroporto
socado nos cafundós daquela densa selva regada por uma
infinidade de cursos d’água.
Da base da companhia veio Tanaka ao seu encontro.
Exteriorizou, então, ao nipônico:
- O pior é que, se estiverem muito feridos, precisando
de socorro urgente, não estamos fazendo nada por eles...
ficamos aqui parados, só esperando.
Saves chegou até eles.
Estava por ali há mais tempo que qualquer um deles e
conhecia bem a região. E conhecia bem o pessoal dali, os
moradores, os ribeirinhos... Chegara na época da
construção do aeroporto e por ali, então, ficara até a
chegada da companhia de cartografia.
Lembrou-se de um velho pescador japonês fixado no
local há muito tempo, que conhecia cada palmo daquela
mata e daqueles rios e uma boa ideia lhe veio à mente:
- Benedito, se o comandante Azis autorizar, talvez a
gente possa sair de barco ainda agora à noite no rumo da
cabeceira do lago e ir perguntando ao pessoal que mora nos
sítios se ouviram ou viram alguma coisa... não sei, de
repente alguém pode dar alguma notícia.
O piloto ficou pensativo por uns instantes e, agoniado
como era, logo encampou a ideia:
- É!... Sabe que até pode ser?... Inclusive podemos já
levar algum socorro – e virando-se para o Tanaka,
perguntou-lhe – O que você acha dessa ideia?

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- Pensando bem, é melhor que ficar aqui parado,


esperando, sem poder fazer nada – e questionou o Saves –
Mas, será que esse japonês topará sair com a gente agora à
noite?
- Acho que sim. É o Yoshi. Ele é sempre muito
prestativo.
E os três resolveram ir lá no acampamento falar com o
comandante Azis.
Benedito logo adiantou-se ao grupo:
- Comandante, o senhor nos autoriza a sair agora com
um barco na direção da cabeceira do lago, para tentarmos
conseguir com os ribeirinhos alguma informação a respeito
do avião? – e procurando justificar aquele pedido, completou
– Não aguentamos ficar aqui parados só aguardando o dia
nascer para voltarmos às buscas.
De cara Azis não gostou da ideia, pois não acreditava
que pudesse ter algum resultado concreto.
Então, o Tanaka interveio:
- Comandante, o senhor é quem está coordenando as
buscas. É claro que acataremos o que o senhor decidir.
Mas, tem um velho japonês que mora por aqui há mais de
quarenta anos, conhece todo mundo e cada canto dessa
mata e cada rio e pode servir de guia para a gente.
Saves arrematou:
- Comandante, os caboclos desse beiradão estão
cansados de ouvir barulho de motor de avião na rota para
Carauari. Se um deles ouviu alguma coisa diferente... quem
sabe?
Talvez mais para se ver livre daquela insistência toda,
Azis aquiesceu:
- Ok! Tudo bem!... Mas, vocês estão por conta e risco
próprios. Se acontecer alguma coisa... se virem! – e finalizou
a conversa – Ainda acho que não encontrarão nada.
Amanhã eles serão localizados.
Os três agradeceram ao comandante e saíram às
pressas no encalço do Yoshi e de um barco.
Benedito assumiu a liderança e disse aos outros:

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- Minha gente, é o seguinte: vamos dividir as tarefas


para que possamos sair o mais rápido possível.
E foi distribuindo a cada um o que deveria fazer:
- Tanaka, você precisa arrumar lá na base alguma
comida para levar, cobertores, garrafas de água, cordas,
terçados, machados, umas duas motosserras e uns dois
rádios transceptores, e o que mais você achar que seja
interessante a gente levar.
- Ok, Benedito. Vou já ver isto. Vamos trazer também
combustível para o barco – concluiu o outro.
- Ah, sim! – virando-se agora para o Saves – você
disse que conhece bem o pessoal daqui. Então, o contato
com o japonês fica por sua conta. Veja se o convence em
nos guiar até a cabeceira do lago.
E pegou para si a parte mais difícil:
- Eu vou atrás de um barco com capacidade de nos
levar e também todo o material.
- Saves, tem mais uma coisa para você. Passe pelo
Campus do Projeto Rondon e veja com o diretor se ele pode
nos ceder alguns acadêmicos da área de saúde para prestar
os primeiros socorros quando a gente achar o avião.
E lembrando-se ainda, pediu:
- Diga aos rondonistas para trazerem medicamentos e
os instrumentos que acharem ser conveniente, porque nós
não temos nada disto.
E finalizou:
- Ok, cada um fazendo o mais rápido possível a sua
parte. São oito horas da noite agora. No máximo às onze
todo mundo reunido aqui, neste mesmo lugar, com tudo
preparado para o embarque, certo?
Todos concordaram e saíram logo para cumprirem as
suas tarefas com as esperanças renovadas. Ninguém
pensava em dormir enquanto poderia haver sofrimento dos
amigos lá na selva.
Pensavam somente em desatracar logo e seguir
destino, encontrar o avião e socorrer o mais rápido possível
os amigos acidentados.

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São momentos de intensa integração, de funcionar


como uma equipe coesa e com vistas somente em atingir o
objetivo.
As diferenças são esquecidas, as opiniões divergentes
são postas de lado e tudo é voltado para a soma dos
esforços visando cumprir a missão a que voluntariamente se
impuseram.
No meio da noite reina a mata soberana, portentosa e
vasta.
Ela é linda, ela dá vida a todos dali, ela é a dona de
toda aquela imensidão... mas, ela é implacável.
Não perdoa quem descuida.
E o caboclo que nela vive sabe que respeitá-la é uma
lei que nunca pode esquecer, pois daí depende sua própria
existência. Habitar naquela floresta significa entregar-se ao
seu jeito de ser.
O forasteiro, pelo contrário, invariavelmente entra ali
com intenção de dominar, explorar, impor seu próprio jeito
de ser.
E isto muitas vezes lhe traz ruína e pode custar até a
vida, pois a mata se impõe por sua grandeza perante o
minúsculo ser humano, ela ainda é soberana.

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JUNTANDOAS TRALHAS

Tanaka encontrou uma dificuldade: a estradinha de


chão que dava acesso à base lá no aeroporto ainda
guardava muita lama da chuva da tarde. A picape patinava e
não saía do lugar.
A solução, embora mais demorada, foi trazer no lombo
dos funcionários da companhia todo o material que iriam
precisar na viagem.
Seis quilômetros de lama e muito suor para chegar até
a beira do lago.
Jornada penosa aquela.
Entre um e outro escorregão e tombo o “safári” passo
a passo foi vencendo o terreno.
À medida que avançava lentamente, o peso da carga
parecia aumentar.
O próprio Tanaka, com uma mochila de lona verde às
costas, com cobertores, lanternas e algumas ferramentas,
escorregava já todo sujo pela lama da estrada.
O motor que os impulsionava para frente era encontrar
o avião e salvar os amigos... se estivessem vivos.
A preocupação de chegar à beira do lago na hora
combinada não deixava ninguém esmorecer.
Foi com grande alívio que Tanaka, encabeçando a fila,
viu as luzes da cidade à sua frente.
Já o Benedito tinha a sua própria dificuldade: não
conseguira nenhum barco nas condições que precisavam.
Rodara a cidade toda, mas os poucos que havia
encontrado não serviam para a missão.
Outros que até serviriam não estavam disponíveis... ou
estavam carregados, ou com o motor em pane, ou mesmo
sem seus tripulantes.
Sem a embarcação não havia como sair à procura do
avião. Era, pois, crucial encontrar algum que servisse... e
logo.

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Frustrado o Benedito dirigiu-se à casa do Yoshi, onde


o Saves já conseguira a sua adesão à viagem até a
cabeceira do lago.
E era um lago bem grande.
Na largura dava no máximo só uns quatorze
quilômetros, mas no comprimento excedia os sessenta
quilômetros e terminava em um emaranhado de cursos
d’água que, entremeados por uma infinidade de ilhotas e de
becos sem saída, escondiam a boca do Rio Tefé.
Ao receber a notícia de que o amigo não encontrara
nenhuma embarcação que lhes pudesse servir, Tanaka
ficou impaciente:
- Não é possível que a gente não vai conseguir ir atrás
deles por falta de um barco, justamente aqui neste lugar que
tem mais barco do que gente!
Ao ouvir isso o Yoshi entrou na conversa:
- Olha! Eu tenho um barco. Não é grande e nem tem
conforto, mas dá para fazer essa viagem... só não tenho
“combustol” (óleo diesel) e apontando lá para a beira, disse
– Ele está bem ali atracado. É só abastecer e pronto! A
gente pode sair.
Saves adiantou-se à porta e chamou os amigos:
- Vamos lá ver esse barco.
Desceram pelo barranco até a beira do lago e lá
encontraram o “Hokkaido”, u’a meia baleeira de uns doze
metros de comprimentos, equipado com um motor de centro
a diesel, e com duas canoas cheias de redes de pesca
atreladas à popa. Era o instrumento de trabalho do japonês,
que se dedicava à pesca de arrastão, cujos pescados eram
vendidos no pequeno mercado local.
Subiram pela prancha à proa e fizeram uma rápida
inspeção no interior da embarcação.
Não dispunha de comodidades, era bem simples.
Porém, no tamanho certo para atravessar o lago e entrar em
cursos d’água estreitos e rasos. Também tinha espaço mais
do que suficiente para acomodar os oito integrantes da
equipe e mais todo o material que haviam trazido da base.

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Yoshi argumentou que seria bom se conseguissem


emprestada a pequena lancha da agência local da ACAR-
AM (Associação de Crédito e Assistência Rural do
Amazonas), pois ela podia navegar em lugares estreitos em
que o seu “Hokkaido” não conseguia entrar e transportava
até umas seis pessoas.
Mais uma vez foi Saves, o conhecedor de tudo ali, que
se incumbiu de obter mais este recurso e foi atrás do
gerente da ACAR.
Na residência a esposa informou que o marido estava
participando de uma reunião no prédio do antigo seminário
dos padres com uns coordenadores que vieram de Manaus.
- Obrigado, minha senhora. Vou já lá – e saiu
apressado em busca do gerente.
No prédio, junto à beira do lago, foi logo entrando e
procurando a sala onde se realizava a reunião.
Lá ao fundo de um dos corredores ouviu uma voz
falando alto em tambaquis e tucunarés.
“É lá” – pensou Saves e seguiu em frente. Bateu à
porta e o seu conhecido amigo da ACAR apareceu,
entreabrindo a porta, perguntando espantado:
- Oi Saves! O que foi?
- Você precisa nos ajudar – pediu o outro – Um avião
caiu e temos de encontrá-lo o mais rápido possível... temos
amigos nele.
A estas palavras o gerente pediu licença ao seu
coordenador e saiu apressado em companhia do Saves.
- Mas, homem! Me conte esse negócio de avião que
caiu... – quis saber, enquanto caminhavam apressados
rumo à agência da ACAR.
- Foi perto do meio dia. Ele nos chamou dizendo que
estava com os dois motores parados e ia fazer um pouso
forçado. Depois disto, passamos a tarde toda procurando,
mas sem nenhum resultado – e continuou fazendo o pedido
ao amigo – Agora, gostaríamos que você nos emprestasse a
lancha de vocês para ajudar na procura que pretendemos
fazer ainda nesta noite. Será possível nos ajudar?

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- Sim, a lancha eu posso ceder, mas não tenho é


gasolina suficiente. O que tenho são no máximo umas três
latas – disse o gerente.
- Então, não tem problema. O combustível a gente
arranja. Aliás, já estamos vendo isto. Só queremos a lancha
– adiantou Saves ao amigo.
- Ok, precisam de motorista para a lancha?
- Não, não é preciso. O Yoshi vai com a gente e ele
pode pilotar a lancha.
- Que nada! Vamos passar logo ali na casa do Lugero
e ele irá com vocês... pode ajudar em qualquer outra coisa
também.
Pôxa, rapaz! Muito obrigado. Não sei como
agradecer...
- Ora! Se eu tivesse um sufôco assim tenho certeza
que você também me ajudaria.
Chegaram junto à porta da casa do motorista da
lancha e o gerente o chamou:
- Ô de casa!...
Lá de dentro, após certa espera, uma janela abriu e o
rosto sonolento do funcionário apareceu:
- O que foi, “doutor”, algum problema?
-Lugero! Temos um problema aqui. Caiu um avião e o
pessoal lá do aeroporto precisa de gente para ajudar na
busca agora à noite. Pegue a lancha e atraque perto da
bomba d’água da prefeitura. Eles vão arrumar a gasolina
que precisar e você vai com eles, está bem?
O funcionário deu uma boa espreguiçada, assentiu e
já foi saindo na direção onde estava a lancha.
Não que aquilo fosse uma obrigação, mas antes de
tudo a amizade, construída através de muitas e muitas
dificuldades comuns daquele rincão, havia firmado favores
entre todos eles, possivelmente por pura e simples
sobrevivência.
Esses frutos eram de boa árvore. Somente com tal
entrosamento poder-se-ia organizar uma expedição
daquelas às pressas e sair ainda naquela mesma noite.

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É aí que se percebe que os canais oficiais, carregados


de burocracia, nessa região e em momentos críticos, só
dificultam e atrapalham o trabalho que tem de ser feito com
urgência, pois são vidas em jogo.
Estavam juntando as tralhas lá na beira do lago
quando chegaram quatro acadêmicos da área de saúde do
Projeto Rondon para se integrarem à equipe, conforme o
Saves pedira.
- Mano velho! Muito obrigado mesmo – Saves
agradeceu ao amigo da ACAR – Vou lá para o ponto de
encontro porque o resto da turma já deve estar esperando.
O professor que dirigia o Campus do Projeto Rondon
prontificou-se a ajudar, desde que o Saves se
responsabilizasse pelos acadêmicos voluntários a participar
daquela perigosa empreitada noturna no meio da selva.
Já mandara os seus pupilos apressarem-se e encheu-
os de recomendações:
- Não se esqueçam! Levem os medicamentos,
lanternas e é bom levar água para beber. Tomem cuidado e
não se exponham. Zelem bem do instrumental clínico.
Vocês não sabem qual será a duração da viagem e o que
encontrarão pela frente. Qualquer coisa que precisarem
recorram ao Saves ou ao Tanaka. Eles estão com rádios e
têm como entrar em contato com a gente aqui.
Tanaka procurou tranquilizar o velho mestre:
- Não se preocupe, professor! Cuidaremos bem de
todos. E água por aqui é o que não falta – disse o Tanaka.
Mas, o velho mestre, acostumado que estava com as
comodidades de sua Juiz de Fora, não dispensava os
cuidados:
- Não, meu filho! A gente tem de tomar cuidado. Se um
desses meninos chega doente em casa eu é quem terei de
assumir a responsabilidade.
E gritou para a sua turma:
- Depressa, minha gente! Todos têm de embarcar até
às onze horas – e voltando-se para a equipe da base,
acrescentou:

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– Tenho certeza que eles ajudarão muito, mas cuidem


bem deles.

Da pracinha da cidade à beira do lago saiu a expedição.

Voltando-se aos universitários, advertiu-os:


- Aqui nenhum de vocês sabe nadar mais que uns cem
metros. Então, não fiquem sem seus coletes salva vidas em
momento algum. Evitem ficar na borda do barco. Quando
voltarem quero um relatório detalhado do que aconteceu de
cada um de vocês.
Saves abreviou as muitas recomendações do velho
mestre perguntando:
- Então, podemos ir? – e já foi se encaminhando para
a beira do lago.
Benedito ainda apreensivo insistia com o velho Yoshi:
- Mas, o senhor conhece mesmo a área para onde
vamos? – e justificou sua preocupação – É noite, o lago é
muito grande e na cabeceira tem muito igapó... às vezes a
gente pode se enganar, não é?...

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- “Seo” menino! Estou aqui há mais de quarenta anos,


conheço palmo a palmo tudo quanto é igarapé daqui.
Tanaka aproximou-se, fez a tradicional reverência ao
velho nipônico e entrou na conversa de um jeito que
denotou o profundo respeito pelo ancião – O senhor nos
leva até a cabeceira do lago?
- Sim, já expliquei aqui para o “seo” Benedito que não
tem erro. Saindo agora até lá pelas três da madrugada a
gente chega na boca do rio Tefé. Depois, a gente pergunta
aqui e pergunta ali e... pronto! Até um caboclo de um sítio
daqueles dizer alguma coisa. É assim!
Yoshi estava na região há um tempão, mas ainda
misturava o idioma de seu Japão com o “caboclês” - u’a
mistura da fala nordestina com a “língua geral” (indígena).
Era o resultado de tantos anos perdidos naquele
cafundó de meu Deus.
Abriram o mapa no convés do barco e Benedito riscou
um ângulo tendo como vértice a cidade de Tefé.
Os lados estenderam-se abrindo em uns trinta graus
no rumo de Carauari.
Daí, calculou até uns vinte minutos de voo na
velocidade do Douglas e fechou ali a base resultando num
triângulo isósceles, que seria a área da busca.
- Taí! É dentro desta área aqui que teremos de
procurar – disse ao terminar seu tracejado.
Yoshi debruçou-se sobre o mapa e observou o riscado
do Benedito, acompanhando os limites do triângulo com o
dedo indicador:
- É... pega “pêru” ilharga do lago e vai... vai... vai...
atééé... aqui, “no boca” do rio. “Dipois” entra no igarapé do
Bauana mais prá cá – e refletindo um pouco, concluiu – Pois
então... por “esses beira” aqui ó... – apontando no mapa – a
gente vai “topá” com muito sítio de “cabocro”, que pode ter
ouvido algum barulho naquelas bandas.
Já impaciente o Benedito chamou:
- Então, gente! Vamos embora?
Yoshi se despediu:

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- “Muiééé!... Eu já vai” – e recomendou – “Fára pros


pescadô pegar o rede e sair pro pescaria sem eu mesmo.
Vou tá ocupado” – e dito isto, pegou suas tralhas e subiu a
estreita prancha, embarcando.
No barco o Benedito ainda tinha lá suas dúvidas
quanto à capacidade o velho japonês guiá-los noite adentro
naquele mundo d’água sem ver um palmo à frente. Foi lá
insistir com o Tanaka:
- Estou preocupado, pois ele pode até conhecer bem a
região aqui. Mas, é noite e temos responsabilidades quanto
à gurizada do Rondon.
Diante da insistência Tanaka aproximou-se do Yoshi e
pediu-lhe para, novamente, explicar seu plano.
Mas, findou por tranquilizar-se e também ao Benedito,
quando o velho japonês lhe respondeu:
- “É como eu já disse. Vamu pelo ilharga do lago até o
boca do Tefé – e completou – Esse avion ficou é perto lá do
igarapé do Bauana. Se o ‘seo’ Benedito acertou nos cálculo
dele, nem tem outro lugar donde ele vai. Vamu mesmo é no
rumo do cabeceira do lago. E lá a gente vai perguntando...”
– e assim encerrou a conversa.
Tanaka concordou com tudo.
Para quem conhece o jeito oriental sabe que quando o
mais velho fala ao mais jovem só resta concordar
É a cultura daquele povo que o torna respeitador dos
mais experientes, dos anciões.
Para eles um velho é, antes de tudo, um sábio, um
guia.
O Benedito, como pouco conhecedor da floresta,
conformou-se e só fez assentir com a cabeça. Findou por
acompanhar os demais e deu a ordem de largada:
- Vamos lá, gente! Vamos embora.

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RUMO AO GRANDE LAGO

No barco do Yoshi a esperança de encontrar o avião .

O barco afastou-se de ré da margem.


Virou para estibordo.
Aprumou para a cabeceira do lago e para lá pôs-se em
marcha.
Yoshi, Tanaka, Benedito, Saves, Lugero e alguns
acadêmicos do Rondon viram o brilho fraco das luzes da
cidade sumirem na noite à popa do barco.
Tinham um só pensamento: quanto mais cedo
achassem o avião, mais vidas poderiam salvar.
Noite sem lua...
Céu encoberto...
Um breu danado...

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O motor do barco roncava alto e a quilha sulcava as


águas escuras, enquanto todos ali, preocupados, tentavam
perscrutar um horizonte invisível, procurando divisar uma
esperança.
As primeiras horas... horas caladas, quietas, sem
nenhuma novidade.
Por vezes alguma prosa curta, um comentário e o
barulho do motor voltava a ser o único som.
Lá por perto das três da madrugada, como se havia
previsto, foram se aproximando da cabeceira do grande
lago.
Até aquele momento tinham varado a escuridão sem
nada que pudesse lhes dar um alento.
Ninguém dormiu... só olhos atentos à escuridão.
O Yoshi, à roda do leme, gritou por cima do barulho do
motor, assustando a todos:
- Lá!... no bombordo!...
E todos se viraram para onde o japonês apontava.
Uma luz fraca!
Luz de barco!
... lá no meião da cabeceira.
- Vamos para lá, Yoshi – berrou o Tanaka para se
fazer ouvir.
A proa mudou de rumo rapidamente
Rumo de uma esperança.
O holofote do outro barco piscou algumas vezes.
Era um sinal entre eles... os barcos.
Uma tensão se instalou no meio da turma, que se
achegou à proa para melhor ver.
Yoshi fez o holofote do seu barco piscar também.
Os dois barcos foram se aproximando um do outro.
Reduziram a marcha de seus motores.
Eram como dois irmãos aproximando-se para um
abraço, após uma longa jornada.
Cinquenta metros um do outro.
Gritos lá do outro barco:

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- Ôôô de bordo!... Ajude a gente! Temos aqui dois


feridos!...
Feridos!!!... Seriam do avião?
Todos tentaram varar com as vistas a escuridão,
distinguir alguém conhecido no convés do outro barco.
- Atraca aqui no proa – disse o Yoshi ao timoneiro do
barco irmão.
E a atracação foi feita ao meio do banzeiro provocado
pelos dois barcos.
De lá o comandante à roda do timão disse alto
fazendo-se ouvir:
- Recolhi lá perto da boca do Bauana estes dois aqui,
que estavam com um curumim na canoa. Eles dizem que
são dum avião que caiu...
Pronto!... O alvoroço à bordo do barco do Yoshi tomou
conta, foi geral.
Tinham ali dois sobreviventes. Graças a Deus!
Sobreviventes do avião caído.
Mas, quem seriam?
- Cadê? Onde estão? – perguntou angustiado o
Tanaka.
Lá do fundo ouviu-se umas vozes lamentosas:
- Aqui! Estamos aqui!...
E surgiram dois vultos dentre os tripulantes daquele
barco: o Sabá e o Pedro.
Devagar passaram de um para o outro barco.
Abraços, choros... e lamentos.
A vida recomeçava dentro daquela noite... ali, no meio
da água.
- Que bom, gente. Que bom... vocês estão aqui. Que
bom – Sabá não parava de dizer.
Um dos acadêmicos de medicina pediu-lhe para
examinar a mão esfacelada e ele disse ao rapaz:
- Isto aqui não é nada, menino. Você precisa ver é os
que ficaram lá.
Tanaka apreensivo perguntou-lhe:
- E o Boni... como está?

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- Ele está muito ferido. Perdeu muito sangue... Oh,


gente. Foi horrível... horrível! – e Sabá desabou em soluços
incontidos.
Benedito ainda arriscou saber mais:
- Sabá, mas... está todo mundo lá?
O mecânico, ainda choroso, balançou a cabeça em
sinal negativo e soltou um grunhido:
- O Romero... – e não conseguiu terminar a frase.
Um véu invisível desceu sobre o cenho dos amigos ali
unidos.
Uma sombra de tristeza... ninguém precisava dizer
mais nada. O jovem amigo se fora.
Yoshi gritou para o comandante do outro barco:
- Obrigado! Nós vai continuá... Té mais vê!
E os dois barcos se soltaram.
Um para Tefé... aliviado.
O outro para o Bauana... pesaroso e ansioso.
- ... foi horrível, gente! O avião batendo nas árvores...
os tambores batendo nas pessoas... todo mundo gritando...
foi horrível... – dizia o Sabá, numa espécie de desespero só
da lembrança do que eles passaram.
Seus relatos batiam nas mentes dos amigos e
pareciam ressoar por todo o barco.
Sabá dava vasão ao que lhe corria por dentro,
desabafava:
- ... os dois motores, gente! Os dois... eles estavam
redondinhos, bons... pararam girando, sem qualquer pane...
foi o combustível. Eu sabia que ia faltar... faltou,
entenderam? Faltou combustível, entenderam? Foi pane
seca... pane seca... – e continuava repetindo e repetindo
como se estivesse obcecado.
Olhares se cruzavam e ninguém dizia nada.
Tanaka foi lá para a popa da embarcação e pôs-se a
refletir sobre aquela tragédia.
O Boni... o experiente Bonifácio!...
Por que ele, um piloto da velha guarda, conhecedor da
região e do avião?

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Qual o motivo?
O nipônico não entendia por que o amigo procedera
daquela forma.
Boni sempre tinha sido muito sensato, responsável...
Tinha bastante experiência em tudo ali.
Adquirir toda aquela experiência ao longo de muito
tempo custara-lhe até o convívio e o amor da família.
Sim! Da família... da esposa...
Talvez isso fizesse algum sentido...
Sim! Talvez...
O Pedro, do rapel, sentado em um banco próximo à
casa de máquinas, dizia aos tripulantes do barco:
- Obrigado, gente! Muito obrigado. Vocês vieram atrás
de nós. Ninguém aguentava mais... muito obrigado.
Os acadêmicos de medicina haviam cuidado de suas
lesões e deram-lhe um calmante, cobrindo-o com u’a manta
e o colocando ali naquele banco.
O vento morno batia nas faces angustiadas dos
amigos, que ansiavam por chegar logo ao local do acidente.
O velho japonês, lá à roda do leme, na proa do barco,
começou a entoar uma canção dos pescadores de sua terra
natal... no idioma pátrio, claro.
Tanaka observou:
- É umavelha cantiga que diz a respeito da esperança
de quem está perdido no mar – e completou – Meu pai a
cantava quando ainda não tínhamos o restaurante lá no sul,
e ele não tinha de onde tirar para nos sustentar.
Benedito assentiu com a cabeça e continuou mudo, só
pensando naquela brusca reviravolta... nem pensava mais
nos seus próprios problemas.
Mas, agora havia motivo para esperança... esperança
de encontrar o mais breve possível o resto dos amigos
acidentados.
Eles agora sabiam que lá no meio do Bauana havia
um caboclo, “seo” Pedroso, que lutava para manter todos os
sobreviventes vivos.

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- Engraçado. Agora que a gente tem certeza que eles


caíram e que estão lá dentro do igapó, como é que não os
vimos lá do helicóptero durante as buscas? – inquiriu o
Benedito, tentando entender o que tinha dado errado nos
voos que fizeram durante toda a tarde, procurando pelo
Douglas.
Foi Saves que lhe respondeu de pronto:
- Nesta mata, quando alguma coisa cai, as copas das
árvores se abrem e deixam passar seja lá o que for, devido
o impacto que nelas causa. Mas, depois que passa... Rá! As
copas se fecham e cobrem tudo de novo. Lá de cima
ninguém vê nada... pode sobrevoar o tempo que quiser, mas
só vai desconfiar de alguma coisa quando já tiver urubu
voando em cima – e com um sorriso triste, acrescentou –
Mas, daí já será tarde. A presença de urubu significa que
tem cadáver lá embaixo... e talvez seja de alguém que
poderia ter sido salvo se socorrido a tempo.
Diante da explicação do Saves o Benedito concluiu:
- Então, poderíamos voar por dias e não
localizaríamos o avião... foi bom mesmo termos continuado
as buscas de barco.
- É... se bem que o Sabá e o Pedro chegariam a Tefé
na parte da manhã e dariam a localização de onde está o
pessoal que sobreviveu, e viríamos atrás deles – disse o
Saves.
- O problema é que esses aviões velhos não têm
localizador por rádio. Porque isto facilita muito encontrar
quem tenha se acidentado nesta selva – e arrematou
Benedito – nossos helicópteros já têm esses localizadores...
facilitam muito.
E Tanaka, entrando na conversa, comentou:
- Na nossa operação, quando o helicóptero fica
pairando a cinquenta metros para o pessoal do rapel descer,
as pás do rotor principal abrem as copas das árvores. Só
que, depois que ele sobe, elas realmente voltam a se fechar.
E até para o piloto fica difícil localizar onde deixou o pessoal

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que vai abri abrir a clareira, se não fosse pelo rádio que eles
levam.
- Pois é, rapaz! Esta mata é realmente perigosa.
Então, como é que os caboclos daqui andam por toda ela
sem nenhum equipamento de orientação e não se perdem?
– quis saber o Benedito.
- Ora! Eles nascem e vivem a vida toda aqui. Desde
criança o caboclo vai se acostumando dentro da mata. Ele
desenvolve um tremendo senso de orientação, só
observando o sol, as árvores mais diferentes, as voltas dos
igarapés... e por aí vai – respondeu o Saves e completou –
Imagine agora a gente pegar um deles e colocar bem no
meio do Vale do Anhangabaú, no centro de São Paulo...
eles nem sairiam do lugar.
- Tem razão... aqui é o ambiente deles – refletiu o
Benedito – cada um no seu mundo, né? E este aqui não é o
nosso mundo, a gente está é invadindo o mundo deles.
E Tanaka completou o raciocínio do amigo:
- Aqui a gente apanha, até nos adaptarmos. A selva
não é ruim. É até muito saudável. Nós é que a usamos de
forma errada.
E sem querer, Saves que, então ficara pensativo,
deixou escapar o que todos agora sabiam, mas não
ousavam comentar:
- É... fazemos muita coisa do jeito errado... Ora! Pane
seca.
Diante disto todos ficaram novamente em silêncio, pois
tratava-se do amigo Boni.
E o tempo foi passando na toada da batida do motor
do barco... toc, toc,toc... e curva após curva ia
acompanhando os volteios da margem do lago, até chegar à
foz do igarapé do Bauana, já lá pelas quatro e meia da
madrugada.
Para quem conhece os mais distantes rincões deste
imenso país, sabe o que é a foz de um rio ou de um riacho:
é onde ele deságua noutro maior, num lago ou mesmo no
mar.

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Mas, isso é bem diferente do que achar a foz dum


igarapé na Amazônia e ainda mais na escuridão de noite
sem lua.
E mais difícil ainda é achar a foz do Bauana na época
da cheia.
Só é possível mesmo para quem conhece muito bem o
lugar.

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Infindáveis meandros dos cursos d’água... só para quem conhece.

O Igarapé vai adentrando a floresta e fazendo um


monte de canais que invariavelmente terminam em
igapó.Assim, o canal principal, aquele que de fato leva ao
igarapé, fica sumido no meio daquilo tudo.Confunde até
gente experiente.
Sombras dão a ilusão donde é a entrada, mas que
pode ser só uma pequena enseada ou termina num lago.
O holofote do barco varria aquela escuridão
procurando uma brecha em que se podia embicar a proa do
barco e por ali seguir até ingressar de vez no igarapé.

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E, ao fim das contas, foi justamente aquele curumim,


filho do “seo” Pedroso, que serviu de guia para achar a
entrada do bicho.Montado na proa ele ia só fazendo sinais
com a mão, donde o Yoshi tinha de virar o leme:
-... aqui... ali... para lá... agora para cá... – e assim lá ia
sinalizando com uma certeza que até espantava, pois nada
se via à frente a não ser escuridão.
Com a sabedoria toda sua ele orientava o barco para
dentro daquele desaguador.
Estava ali a comprovação do que há pouco se
comentava: o caboclo, desde cedo, conhece e sabe por
onde ir.
Se dependessesó das dicas fornecidas pelo
comandante do outro do barco seria praticamente
impossível achar a entrada do igarapé.
Mais um pouco e... pronto! A quilha do barco adentrou
de vez as águas do Bauana.
Doravante era só fazendo curva para cá e curva para
lá. Igual a todo rio da região, as infindáveis voltas de até
quase cento e oitenta graus levavam o barco bem perto de
onde já tinha passado há pouco tempo.
Curvas tão fechadas que o banzeiro provocado pelo
próprio barco topava com a proa dele logo à frente na
próxima curva. Eram “S” bem caprichados.
Quanto mais se adentrava no igarapé, mais ele se
estreitava, as curvas ficavam mais apertadas e mais
numerosas.
Yoshi ao timão esforçava-se para completar a volta
seguinte sem diminuir a toada.Mas, tinha umas que não
dava... ele tinha de diminuir a velocidade da embarcação e
fazer a curva bem devagar.
A escuridão daquela noite não ajudava, pois tinha vez
que nem se conseguia divisar direito o leito do igarapé.
Uma e outra vez teve de botar a marcha a ré para
evitar de enfiar a proa do barco no igapó e, só depois de
consertar o rumo, então botar de novo marcha à frente e
completar a curva.

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Toda essa coisa estava atrasando muito a viagem, o


barco estava cumprindo menos de meia marcha... e o tempo
passando.
A preocupação voltou a incomodar os amigos:
chegariam a tempo de fazer alguma coisa por quem
estivesse muito ferido?
Tanaka teve uma ideia: enviar na frente, na pequena e
veloz lancha então atada à popa do barco, o Lugero, o
curumim que sabia como chegar ao local e uns dois
acadêmicos de medicina para já ir chegando e aplicando os
primeiros socorros.
Comunicou ao Benedito que, de pronto,
topou.Aprontaram a lancha e despacharam a mini expedição
à frente.
Sabá havia informado que o estado do Boni era crítico,
pois perdera muito sangue. O que exigia ação rápida por
parte da equipe de socorro.
Na lancha só uma lanterna de mão iluminava para
onde ela tinha de seguir e, então, logo sumiu naquele denso
breu.
Os que ficaram no barco do Yoshi depositaram
naquele socorro emergencial as suas esperanças.
Um dos acadêmicos do Rondon pestanejou:
- Droga! Mas que dificuldade para tudo é aqui neste
lugar. Será que não tem jeito da gente também chegar lá
mais rápido?
Saves olhou para ele e, sabendo da inexperiência
daquele jovem “sulista” de Juiz de Fora a respeito daquela
imensa selva, respondeu-lhe contando um antigo caso:
- Dificuldade?!... Rapaz, há uns tempos atrás caiu lá
para as bandas do Japurá um Douglas, igual a este de
ontem. Foram muitos dias de busca para encontrar uns
poucos sobreviventes e todos muito machucados. E você
chama isto aqui de dificuldade?...
- Ironia do destino. Foi o Boni quem achou aquele
avião – lembrou o Benedito completando a história.

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LÁ DENTRO, SUMIDO NUM IGAPÓ...


ENCONTRANDO OS SOBREVIVENTES

A lancha volteou mais algumas vezes.


O curumim orientou que o motorista parasse e virasse
noventa graus para dentro do igapó.
Fez o sinal com a mão indicando a direção.
O Lugero interrogou para ter certeza, pois não via
nada lá dentro da mata, que tinha muitos galhos submersos:
- Por aí?... Por aí a lancha não passa. Ficamos sem a
palheta nesta galharia.
- Mas, moço, o pai mora lá dentro do igapó. Se a gente
não entrar, então não tem como chegar até lá – disse o
curumim com muita certeza.
Lugero pensou um pouco e, então, resolveu:
- É... está bem. Vamos entrar... mas sem motor. Vou
desligar e levantar a rabeta dele para não bater em algum
galho.
Em seguida, pegou um remo e deu-o ao curumim.
Pegou outro para si e disse:
- Rema daí desse lado que eu vou remando deste
aqui.
E então adentraram pelo igapó.
Um dos acadêmicos, assustado com o que via à sua
volta, ia só desviando os cipós e folhagens, para que não
lhes atingissem.
Remaram uns três quilômetros.
O dia ainda não chegara.
E, dentro da floresta, ele chegaria mais tarde ainda,
pois as altas e frondosas árvores reteriam os raios solares
por mais tempo.
Na verdade dentro daquele igapó raramente fazia sol,
pois a vegetação era muito densa e com árvores de diversos
tamanhos, das miudinhas até aquelas com dezenas de
metros de altura.

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Lá no fundão daquele breu surgiu a silhueta de uma


palafita cercada de grandes árvores.
Na medida em que se aproximavam era-lhes possível
divisar mais detalhes: moradia pequena, parede de paxiúba,
coberta de palha de açaizeiro e tudo amarrado com cipó
fino.
Duas lamparinas de querosene mal iluminavam lá
dentro.
E de lá... gemidos!
Até parecia que era a casa que se contorcia de dor.
- Estão lá! – gritou um dos acadêmicos rondonistas.
Atracaram devagar junto ao assoalho de pranchas de
madeira da palafita.
Uma pobreza que só... ali, enfiada no seio daquele fim
de mundo, que ninguém nunca imaginou que podia existir.
A choça possuía dois cômodos: um mais lá para
dentro, cercado de parede de palha, com não mais que seis
metros quadrados e o outro, um pouco maior, também
cercado com longas varas e palha.
Neste apinhavam-se catorze feridos.
Gemendo.
Chorando.
Lamentando-se.
Sujos e angustiados.
Deum lado para o outro, tentando amenizar ao
máximo as dores de cada um, confortando, animando e
esperando um socorro, estavam o “seo” Pedroso, sua
esposa e filhos.
Haviam passado a noite toda, desde que encontraram
o avião, naquela faina constante, sem nenhum descanso.
Não tinham nenhum treino na área de saúde. Aliás,
não possuíam curso de nada, mas seus sensos de
humanidade eram sem limites.
Diminuir as dores, matar a fome e a sede... e que
sede. A perda de sangue aumenta a sede... e muito.
Bonifácio estava no fundo duma rede no centro do
cômodo... semi-desacordado.

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O rondonista, percebendo a gravidade de seu estado


clínico, procurou socorrê-lo logo.
Procurou ferimentos e, retirando a borra de café
depositada sobre a testa, viu onde estava o foco da
hemorragia.
Para não ferir susceptibilidades foi logo justificando
com a esposa do “seo” Pedroso que estava retirando o
“remédio” que ela ali colocou, para ver melhor a ferida e
avaliar a sua seriedade.
Fez, então, uma compressa e mediu a pressão arterial
do Boni... oito por seis... muito baixa. Aplicou-lhe o que
tinha... glicose.
Lugero ajudava aqui e ali, como um atendente de
enfermagem improvisado. Foram ver os outros feridos:
pernas, braços e costelas fraturados, cortes e
amassamentos.Um a um foram fazendo o que era possível
naquelas precárias circunstâncias.
Logo os rondonistas perceberam ser urgente a
remoção de alguns dos sobreviventes e, dentre eles, o Boni.
Mas, como tirá-los rapidamente daquele cafundó
cercado de mata e água?
O barco do Yoshi ainda não chegara por ali, devia
estar dando aquelas voltas apertadas do Bauana.
Só foram aparecer lá pelas cinco horas da matina,
quando a aurora já dava as caras.
Mas, sendo seu casco maior, não tinha como entrar
pelo igapó até chegar à palafita do “seo” Pedroso.
A conexão entre ele e os feridos foi feita pela pequena
lancha e por uma canoa.
Porém, a chegada do resto da equipe à pequena
moradia não foi menos chocante.
Benedito aproximou-se do Bonifácio e emocionado lhe
disse:
- Comandante! Estamos aqui... – não conseguiu falar
mais nada. Afastou-se um pouco e encostou-se em uma das
toras de madeira da casa e, mudo, olhava aquele cenário
ainda incrédulo.

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PREPARANDOO RESGATE

Tanaka, ao ver o amigo Boni naquele estado


deplorável, engoliu a seco, aproximou-se dele e apertou-lhe
a mão.
O velho piloto abriu os olhos e forçando um leve
sorriso, exclamou:
- Ô gente! Vocês aqui... que bom. Vocês vieram.
E, visivelmente aliviado, deu um suspiro e continuou:
- Graças a Deus! Ajudem esse povo aí... tem muita
gente machucada.
- Não se preocupe. O pessoal já está cuidando de
todos. Procure ficar quieto, você perdeu muito sangue...
fique quieto aí, amigo.
Tanaka o observava.
Há menos de 24 horas o vira entrar sorrindo no seu
avião e despedir-se com um “até logo” a fim de mangarem
das bravatas do Benedito. E agora... ali, naquele estado
lastimável.
Que vida!...
Pareciam até sobreviventes de uma guerra.
Os rondonistas iam de um a outro ferido fazendo o que
era possível.
Por fim, um deles aproximou-se do Tanaka e o alertou:
- Temos de remover esse pessoal daqui logo e leva-
los para o hospital em Tefé. Tem gente que só dá para ser
atendido lá. Não podemos fazer mais nada.
Benedito ouvira aquilo e, então, aproximou-se já
nervoso:
- Como tirar esse povo daqui às pressas? Só temos
essas embarcações e nada mais.
Tanaka percebeu o estado emocional do amigo e
procurou demonstrar tranquilidade:
- Calma, homem! Calma... vamos pensar um jeito de
resolver isto.

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Olhou em volta e perguntou ao “seo” Pedroso:


- Aqui por perto tem alguma terra firme?
O caboclo virou-se para o leste e respondeu:
- Para lá... naquelas bandas tem. E a mata é mais
baixa.
Tanaka chamou o Pedro e falou:
- Vá com o Lugero ver esse lugar e se dá para a gente
abrir uma clareira para um helicóptero descer nele.
E, voltando-se para o acadêmico, avisou:
- Pronto, doutor! Vamos dar um jeito de um dos
helicópteros descer aqui perto para retirar os feridos deste
lugar, está bem?
- Tudo bem! O mais grave é mesmo o comandante,
por causa da hemorragia e tem suspeita de traumatismo
craniano. A pressão arterial dele está muito baixa. Precisa
ser levado com urgência... aliás, nem sei se dá para ele ser
removido pelo ar. Mas, convém trazer aqui o Dr. Simão, lá
do hospital, para avaliar melhor a situação dele.
Enquanto isso Benedito chamou o Saves
paraembarcarem na canoa e, então, fossem com o filho do
“seo” Pedroso até o local da queda para ver como resgatar
os corpos que por lá estavam.
Segundo o Sabá, lá ficaram o Romero e mais três dos
caroneiros.
Logo embarcaram e o curumim se pôs no cabo do
remo rumo ao igapó.
Enquanto isso o Pedro e o Lugero encontraram a terra
firme da qual o “seo” Pedroso havia indicado.
Ficava a menos de dois quilômetros da palafita e era
ladeada por uma pequena praia, que até facilitava o trabalho
de abrir a clareira.
Lugero subiu a proa da lancha na areia e o Pedro já foi
logo acionando a barulhenta motosserra que, de imediato,
começou a derrubar mato em volta.
Para ajudar, o motorista pegou no cabo do terçado e
pôs-se a roçar a coivara ao redor.

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E só pararam aquela tarefa quando viram que a


clareira já seria suficiente para o helicóptero descer nela
com segurança.
Embarcaram de volta e foram passar a notícia ao
Tanaka.
- Conseguimos terra firme e abrimos a clareira. E vai
facilitar para a gente, porque fica à beira d’água, onde as
embarcações podem atracar – foi logo dizendo o Pedro.
Satisfeito com o relato do “rapel”, Tanaka disse:
- Ótimo! Vamos lá... pegue o rádio e vamos instalar ele
por lá, para orientar a descida do helicóptero.
E, então, voltaram para o local da clareira, do outro
lado do igarapé.

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NO LOCALDO ACIDENTE... TRISTE VISÃO

Saves, Benedito e o filho do Pedroso aprofundavam-


se mata adentro.
Tirando cipós da frente...
Às vezes tendo de empurrar a canoa com as mãos...
O curumim sabia onde ir e continuava no remo.
O dia chegava de manso e ia penetrando com
dificuldade por entre as copas das árvores.
Era mais ou menos umas seis horas da manhã.
Dentro da mata o “aru” começava a subir, formando
u’a camada de vapor denso, que ia se esticando no rumo de
riba como fumaça de mil chaminés.
Na penumbra divisavam-se sombras mais adiante.
Troço esquisito...
Uns raios minguados de luz desciam das grimpas das
árvores e se atiravam para o igapó.
A montaria deslizava silenciosa lá para dentro, mais e
mais.
- Lá!... – o caboclo alertou apontando à sua frente.
Naquele rumo, a uns cem metros, um quadro tétrico: o
Douglas destruído com sua fuselagem enfiada n’água até
meio corpo.
A porta aberta deixava escapar lá de dentro um
pedaço de corda que rabiscava com a ponta a água
misturada com óleo.
Na primeira janela, que estava quebrada, um pedaço
de pano e um morto pendurado ali por um de seus braços.
Tambores boiando por todo lado e óleo esparramado
na água escura.
Roupas rasgadas por aqui e por ali.
Lá em cima, em volta, galhos quebrados.
Próximo à porta u’a mancha de sangue já seco.
Uma cena muito triste de se ver.

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Um avião que antes voava sobre a floresta, agora


estava sob ela, no seu cemitério particular.
Pessoas que tinham como certo receber o dinheirinho
de suas aposentadorias abandonaram ali seus corpos
desfigurados dentro daquele tubo de metal destroçado.
Um piloto jovem que sonhara em ser comandante de
grandes jatos jazia esmagado na cabine enfiada na lama do
fundo daquele igapó.
Que tristeza...
Saves pulou da canoa para a extremidade do flap da
asa esquerda e aproximou-se o mais que pode da porta.
Esbarrou no braço sem vida que saía pela janela... era
um dos caronas, um velho caboclo.
Lá dentro do avião, só confusão.
Tambores, poltronas, água, óleo e rajas de sangue
pintando o interior da fuselagem.
Voltou-se para a canoa e disse ao filho do Pedroso:
- Vamos embora. Sozinhos não podemos fazer nada
aqui.
Dito isto, voltaram para a palafita... calados, abatidos,
pensativos...
Dizer o que num momento desses?
Parecia que lhes faltava o ar.
Talvez por causa daquela mata muito fechada.
Talvez por causa da impotência diante da situação.
Talvez por causa dos sonhos findos daquelas vidas.

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UM VELHO, SEU CHAPÉU E A MORTE

Atracaram a piroga no assoalho da choça e


desembarcaram.
- Gente! Lá não dá para helicóptero descer. Só tem
árvores e água. Vamos ter de levar a lancha para servir de
base de apoio para a operação de resgate – e Saves
continuou seu relato – O negócio lá está muito feio. Romero
se ainda estiver na cabine, está lá no fundo a uns oito
metros de profundidade.
Tanaka, após instalar o rádio na pequena clareira e
instruir o Pedro que chamasse os helicópteros dando-lhes a
posição do local de pouso, estava acabando de chegar à
palafita e ouviu o relato do Saves.
Abaixou a cabeça e pesaroso desabafou:
- Que coisa horrível com o pobre do Romero... Como
pode?... eu conheci a família dele... vão sofrer muito.
Saves interrompeu o lamento do amigo e perguntou ao
Sabá:
- Rapaz, tem um velhinho morto pendurado numa
janela do avião. Ele morreu ali mesmo, naquela posição, ou
foram vocês que o colocaram lá?
O mecânico respondeu emocionado:
- Vocês nem imaginam...
E, então, contou:
- Aquele homem já estava salvo. Morreu depois...
- Depois?!... – exclamou o Tanaka e todos se
espantaram com a revelação do Sabá.
- Como assim... depois? – perguntou Saves
estranhando a resposta do mecânico.
- Sim, gente. Aquele homem já estava salvo. Ele não
tinha sofrido quase nada na queda. Ele estava lá embaixo,
junto com os outros, para o Sabá passar a corda no peito
dele e eu, então, puxar.
E balançando a cabeça, continuou:

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- Quando ele já estava com a corda enlaçada,


lembrou-se de sua mala e gritou para a gente: “a mala!...
minha mala! Não posso deixar minha mala...”. Eu disse que
aquilo era besteira, que não estava na hora dele procurar
mala. Que era para ele se amarrar que depois a gente
pensava nisso – Sabá fez mais uma pausa e continuou,
sempre balançando a cabeça:
- Ele recusou. Afundou na água e voltou segurando a
tal mala... u’a maleta daquelas velhas... marrom claro.
Amarrou ela na corda e puxei. Mal peguei, joguei a tal no
igapó e mandei que ele se amarrasse logo de novo. Daí
puxei o velho para cima – Sabá silenciou um pouco, engoliu
a seco e continuou sua narrativa:
- Quando o velho já estava bem perto e eu já tinha
esticado a mão na sua direção, ele resolveu se lembrar de
um tal chapéu...
Tanaka interrompeu o relato do amigo:
- Chapéu?...
- É... o chapéu dele... um desses de plástico, daqueles
que se usa em canteiro de obras – explicou o mecânico e
prosseguiu:
- E mesmo a gente gritando para ele largar aquilo de
mão, o danado se soltou lá de cima e caiu de volta no fundo
do avião, para buscar o chapéu – e, tomando fôlego, e
completou:
- O infeliz, na queda, bateu com a cabeça num dos
tambores que estava lá no fundo e desmaiou. Desci
depressa lá, enlacei ele na corda e o puxamos para fora.
Tentamos acordar o velho e... nada. Nada de pulso, nada de
batimento e na fronte tinha um afundado, como se debaixo
da pele não tivesse osso. Não tinha ferida, mas é como se o
osso tivesse afundado... e tudo por causa do raio dum
chapéu. Vejam vocês... por causa de um chapéu – fazendo
uma breve pausa, Sabá ainda disse:
- Durante a noite pensei muito nesse velho. Peguei a
mala dele e abri. Só tinha algumas roupas velhas e
molhadas. Nada de valor que justificasse sua vontade de

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reavê-la. O chapéu estava lá... num canto... morrer por


causa daquilo...
Tanaka, cabisbaixo, comentou:
- Vai ver que eram suas únicas coisas no mundo. Vai
ver que esse chapéu era como um amigo. Ele viu o amigo
no fundo do avião sendo abandonado e foi lá buscá-lo,
como se salva um amigo. A riqueza dele estava nessas
poucas coisas que conseguiu ajuntar na vida toda: u’a
maleta com roupas velhas e um chapéu amigo – e
completou sua reflexão:
- A maleta salva, o chapéu salvo, seus papeis de
aposentadoria salvos... e ele morto. Morto por conta de um
chapéu... que vida!
Benedito saiu da sua própria introspecção e reforçou o
que Tanaka acabara de dizer:
- Pois é... às vezes a gente se apega a qualquer coisa,
como se fosse o motivo principal da vida. E por ela a gente
até morre.
Parou um pouco e se lembrou de perguntar ao Sabá:
- Ficou sabendo da família dele, ou se tinha uma?
Sabá respondeu que não tinham encontrado nada a
respeito e que, perguntando aos caronas sobreviventes,
informaram que o velho era sozinho no mundo... o velho,
sua mala de roupas e seu chapéu.

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RÉQUIEM A... NINGUÉM

No cemitério, uma cova sem nome.


Sem indicação.
Sem nada.
Alguém sem família.
Sem ninguém.
Alguém que perdera a vida... por um chapéu.
Alguém que era... ninguém...

(Poema de autoria da Profª Lygia Lopes Ceva Porto,


mãe do autor)

Tanaka quebrou o silêncio que se interpôs no grupo


trazendo-o à emergente realidade:
- Gente, vamos lá! Temos muita coisa a fazer.
Então, todos se puseram em movimento.
Benedito reuniu a turma:
- Escutem! Saves e Yoshi peguem mais uns dois aí
que estejam em melhores condições, coloquem na lancha
alguns machados, terçados, cordas, lanternas e uns sacos
mortuários, e vão lá para o avião e tratem de resgatar os
corpos – e chamou o Tanaka:
- Vamos lá para a clareira esperar a chegada do
helicóptero.
Antes de embarcar na canoa para o local de pouso
Tanaka recomendou aos acadêmicos rondonistas:
- Vocês fiquem por aqui e façam pelos feridos o
melhor que puderem, depois voltaremos para levar esse
pessoal para a clareira. Se precisarem da gente falem com o
“seo” Pedroso, que ele irá ao nosso encontro, ok?
Dito isto, embarcaram na piroga e adentraram o igapó.

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Lá na minúscula clareira o Pedro conseguiu fazer


contato pelo rádio com o aeroporto de Tefé:
- Resgate para Tefé, câmbio!
- Prossiga Resgate... Tefé na escuta, câmbio!
- Aeronave acidentada localizada a 70 km, rumo 245
graus de Tefé, nas proximidades do igarapé do Bauana.
Realizados os primeiros socorros nos feridos. Sendo
providenciado resgate dos falecidos. Foi aberta uma clareira
para pouso de helicóptero próximo ao local. Câmbio!
- Paulo, o auxiliar do Saves na estação de rádio do
aeroporto, prontamente respondeu:
- Ok, Resgate! Tudo copiado. O SA-16 e os
helicópteros já decolaram para continuar a missão de busca.
Retransmitirei a eles a sua mensagem imediatamente.
Câmbio!
Pedro procurou apressar as coisas:
- Certo! Mas, diga a eles para virem logo, pois o
comandante está muito ferido e precisa ser removido com a
máxima urgência. Câmbio e permaneço na escuta.

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NA CLAREIRA O SALVAMENTO DE BONI

O canoeiro voltou para a palafita a fim de levar o Boni


até a clareira, então acompanhado por um dos rondonistas.
E tão logo chegaram nela já ouviram o barulho
característico das pás do helicóptero cortando o ar.
Passou uma e duas vezes sobre o local e, enfim, o
piloto chamou pelo rádio:
- Resgate, é o “Falcão-uno”! Confirme local de pouso...
não o estamos localizando. Câmbio!
- Você está bem próximo, “Facão-uno”. Faça nova
passagem no mesmo rumo, mas desvie um pouco à
direita... passará exatamente sobre nós. Câmbio!
O aparelho fez nova passagem com a correção
indicada e... não localizou a clareira.
Chamou novamente pelo rádio e pediu nova
orientação.
Ao que Pedro respondeu:
- “Falcão-uno”, você passou ao largo. Faça o seguinte:
Retorne em 170 graus e venha diretamente em linha reta...
você nos verá a uns 500 metros à frente. Câmbio!
Nova passagem e... nada.
Já meio impaciente o Pedro perguntou pelo rádio:
- “Falcão-uno”, não é possível! Você não está nos
vendo?... Passou quase em cima de nós. Câmbio!
Um breve silêncio e o piloto respondeu:
- Daqui de cima está tudo igual. Só vejo um tapete
verde e um pouco para o leste um fiapo de rio. Tem alguma
referência que possa informar? Câmbio!
- “Falcão-uno”, pois este fiapo de rio é o igarapé do
Bauana. Venha por uns 100 metros à esteira dele que você
nos encontrará.
Contudo, Lugero já havia amontoado um tanto de
folhas ainda verdes, jogou óleo por cima e tacou fogo. Logo
uma fumaceira escura subiu acima das copas das árvores.

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Então, Pedro disse ao piloto para observar a fumaça


saindo da mata.
Assim, logo a tripulação avistou a fumaça. Guinou o
helicóptero fazendo uma curva de uns 60 graus e rumou
para lá.
Pairou sobre o local e procurou a clareira... era
minúscula. Só o suficiente para descer bem na vertical.
Poderia passar por ali um monte de vezes e não a
encontraria.
A floresta tem dessas coisas.
Ela é uniforme, fechada e de cima tudo parece igual.
Se para a tripulação do helicóptero localizar aquela
clareira com apoio de rádio foi difícil, imagine então
conseguir enxergar o Douglas embicado lá no igapó... era o
mesmo que tentar achar uma agulha num palheiro.
E então o bicho foi se aproximando vagarosamente e
fazendo uma lenta descida, pois o espaço era exíguo.
As pás do rotor principal pareciam bater no ar... uamm,
uamm, uamm, uamm...
Lá embaixo o Pedro ia orientando:
- Um pouco para a direita... agora vem descendo...
pare!... à ré um pouco só... Pronto! Agora continue a descer.

Fonte: FAB

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E assim foi se encaixando naquele espaço mínimo até


os estribos tocarem o chão úmido e arenoso.
Bonifácio foi embarcado sob os cuidados do Dr.
Simão, que veio para avaliar as suas condições clínicas e,
então, se tinha condições de ser transportado por via aérea
até o hospital. Calculando os riscos o médico optou pelo
voo, pois quanto mais rápido chegassem a Tefé maiores
seriam as chances de o Boni sobreviver.
Outros dois feridos também foram embarcados e as
poderosas pás do helicóptero voltaram a girar com
velocidade e força.
Uma nuvem de areia levantou-se do chão forçando o
pessoal em terra proteger os olhos durante aquela arriscada
decolagem.
Dr. Simão instruíra o piloto:
- Vá o mais direto possível e voe baixo. As condições
clínicas dele não são boas. Não aconselho subir muito com
ele neste estado. A pressão arterial dele está muito baixa.
Ganhando polegada por polegada de altura e lutando
para manter aprumada a aeronave o piloto ficou aliviado
quando conseguiu divisar a linha do horizonte... enfim,
estava acima das copas das árvores.
Daí guinou 180 graus e aproou para Tefé.
Foi uma operação que ele repetiu até retirar todos os
feridos por aquela clareira miúda socada lá no meio da
floresta.
- Tanaka, vamos deixar os corpos por último. Mas, a
gente libera logo o pessoal com o barco, pois não
precisaremos mais dele por aqui e vão levar um bom tempo
até chegar a Tefé – ponderou o Benedito, preocupado com
a viagem de retorno que o barco do Yoshi teria ainda pela
frente.
- Está bem. É melhor mesmo. Vou falar com o Yoshi.
Mas, a lancha terá de ir mais tarde, porque precisamos dela
até o último embarque... o dos corpos. Ela é mais rápida...
alcançará o barco.
E refletindo um pouco, comentou com o amigo:

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- Mas, veja você, Benedito! Ontem estávamos todos


juntos e alegres. Hoje... olhe só a situação. Que coisa,
rapaz!...
- Velhão! Eu, depois desta, espero por qualquer coisa.
Hoje nós dois estamos aqui conversando e, depois... sei lá.
Acontece cada uma... – concluiu o Benedito.

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RESGATANDOOS MORTOS

A lancha seguia por entre cipós e folhagens densas.


Teias de aranha por aqui, ninhos de passarinhos por
ali e formigueiros grudados em troncos de árvores.
Até chegar novamente naquele cenário desolador.
O braço do velho estava lá, saindo pela janela.
O velho do chapéu...
Morreu por causa de seu chapéu...
Um amigo?...
Sabe-se lá.
No local já havia umas duas canoas e u’a meia dúzia
de caboclos olhavam curiosos o acontecido.
Então, um deles perguntou:
- Vão precisar de ajuda aí?
- Ôba! E em boa hora, mano – respondeu o Saves, e
completou – Claro que a gente quer u’a mãozinha aqui.
A lancha foi atracada na carcaça do avião.
Um caboclo pegou uma machadinha e foi rasgando a
fuselagem de duralumínio fazendo um vão de uns 80
centímetros próximo à uma das janelas.

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Por aquela abertura maior foi possível observar melhor


a situação no fundo do avião.
Bagunça!...
Dois deles então entraram por ali e iniciaram a retirada
dos corpos de dois dos caronas que faleceram na queda e
do velho do chapéu.
- Aposentadoria... buscar aposentadoria... – foi só o
que o Yoshi conseguiu pronunciar, enquanto fechava o zíper
do saco mortuário em que depositara um dos corpos.
- Ajuda aqui, japonês.
Pediu o Saves que estava com dificuldade em soltar
um dos falecidos do cinto de segurança ainda grudado na
lateral interna do avião.
Yoshi passou pela abertura da fuselagem e foi lá
ajudar o Saves na penosa tarefa.
Foi preciso cortar a lona do cinto, pois a fivela tinha se
deformado na queda e não abria.
Enfim, três sacos mortuários cheios e fechados.
Sentaram-se na beira da lancha.
Arfavam pelo esforço feito... tanto físico quanto
emocional.
- Agora, é só levar esses aqui para onde o helicóptero
está pousando – disse o velho nipônico, enquanto passava
um pouco de água nos braços e no rosto cansado.
- Tem como uma embarcação dessas aí de vocês
levar esses três defuntos aqui lá para a prainha onde o
helicóptero está pousando?
Um dos caboclos que estava no cabo do remo e à
proa de uma das canoas olhou para os sacos impermeáveis
alaranjados e comentou:
- Eita... nunca fiz isso, não. Mas, está bem. Botem eles
aí no fundo da embarcação que eu levo.
Com cuidado passaram aqueles corpos ensacados
para a piroga e Yoshi ainda recomendou:

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- Cuidado! Se algum deles cair n’água vai ser difícil


puxar de volta lá do fundo – e pediu a um dos ajudantes –
Vem cá, rapaz! Ajeita eles aqui e passa a corda, atracando
bem na ilharga da embarcação. Daí fica mais garantido.
Logo o caboclo pôs-se a remar e a canoa sumiu por
entre as folhagens do igapó.
Um dos ajudantes virou-se para o velho japonês e
perguntou:
-“Seo” Zé, até aqui está tudo bem. Mas, o senhor falou
que ainda tem um dos motoristas preso lá no fundo do
avião. E olhando lá dentro, vi que vai ser um aperreio tirar
ele de lá... só tem uma portinha de nada e ela está na parte
alagada. É muito arriscado entrar por ali.
Yoshi fez cara de brabo e respondeu ao cabra:
- Mas rapaz! Tá com medo, é? Que é que tem? Lá no
fundo é igual aqui no rés da água. É tudo igual.
O outro, porém, cerrou o cenho e preocupado atalhou:
- Num é não, “seo” Zé! Lá é mais fundo, escuro e prá
depois daquela portinha, eu vi, é tudo muito apertado. Se
um de nós prender um pé lá... vai ser outro morto no rumo
do cemitério. Tô te falando!
O japonês olhou para o fundo do avião um tanto
pensativo e perguntou:
- Mas, rapaz... qual é a fundura lá?
- Sei não... talvez uns sete ou oito metros – e
alertando o velho pescador, foi logo adiantando – e é tempo
de piranha aqui no igapó... dá muita piranha por aqui.
Yoshi olhou em volta, balançou a cabeça e disse ao
caboclo:
- Ah rapaz, piranha aqui com todo esse óleo na água?
Tem não! Pode mergulhar sem medo, que num tem peixe
que aguenta ficar por aqui com esse visco todo.
O outro ainda tentou demover o Yoshi:
- Agora pode até num ter. Mas, quando a corrente for
levando a água pro igarapé o óleo vai junto dela... daí as
piranhas vêm com tudo... tem sangue espalhado por aí
tudo... num duvida, elas vêm mesmo.

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O experiente pescador não discutiu mais com o


parceiro daquele resgate. Sabia que naquilo ele tinha razão.
Disse então ao Saves:
- É... ele tem “razon”. É perigoso entrar lá por aquela
porta... o vão é pequeno... é tudo apertado. Um de nós pode
ficar preso lá e aí ó... é mais um prá ensacar. Vai ser pior.
Olhou mais uma vez a água em volta e completou sua
preocupação:
- E se temos de tirar o rapaz lá do fundo, tem de ser
logo. Porque, depois que as piranhas voltarem... daí num
tem mais jeito... e elas vão devorar o corpo dele.
Saves ficou pensativo, preocupado e não via saída
para a questão. Comentou com o Yoshi:
- E se enfiar uns oito metros nessa água sem
equipamento de mergulho é um perigo. Talvez seja melhor a
gente repensar se vale a pena... não sei.
O japonês o olhou espantado:
- Que nada, rapaz! Oito metros? Ora, eu garanto e
aposto contigo que qualquer um desses aqui desce até lá e
com sobra.
Os demais assentiram com breve aceno.
Bem... o que restava, então, era ver como estava a
coisa por fora do avião.
- Yoshi, que dar u’a mergulhada e ver se tem jeito de
tirar o corpo do Romero por fora? – perguntou Saves.
- Está bem... vou lá – e dito isso, caiu n’água e
mergulhou.
Dentro, a coisa era bem escura.
E a oito metros de profundidade não se via nada.
O japonês foi apalpando a carcaça do avião.
Chegando mais embaixo, sobre o lado direito da
cabine de pilotagem, topou a mão em algo que lhe espetou.
Foi, então, com mais cuidado.
Tinha alumínio rasgado ali.
Apalpou devagar, para não se ferir.
Um buraco... tinha um buraco ali... e um pedaço de
pau... um grande galho de árvore.

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Tateou procurando delimitar o tamanho do buraco na


cabine de pilotagem.
Tentou retirar o pedaço de pau... que não se moveu.
O ar já lhe faltava nos pulmões.
Largou de mão e subiu logo à tona d’água.
- Ahhh... ahh...
Apreensivo o Saves perguntou-lhe:
- E então?
Tomando fôlego, Yoshi respondeu:
- Tem um buraco bem em riba do menino... lá
embaixo. Mas, tem um galho de pau que atrapalha chegar
nele. Tem de tirar primeiro o galho e, então, tirar o corpo do
rapaz.
Saves pensou um pouco e sugeriu:
- Se o senhor descer com uma corda, dessas mais
grossas, acha que dá para passar ela pelo galho e daí a
gente puxa ele aqui de cima?
O velho pescador passou a mão pela face e
respondeu:
- Num sei... me dê a corda aí... vou tentar.
E recebendo uma das pontas da grossa corda de
nylon, voltou a mergulhar.
Na escuridão da água fria novamente... e lá foi ele.
Lá embaixo procurou um ponto de apoio no galho e
passou a corda em torno dele.
Voltou à tona e avisou ao pessoal que tinha se
agrupado na lancha:
- Tá lá... o galho de pau tá lá amarrado. Agora é só
puxar com tudo.
Saves deu a voz de comando:
- Vamos lá, gente! Vamos puxar com toda força!
Todos juntos!
E todos se compenetraram na tarefa de puxar a corda,
como se esperassem que todo o avião viesse com a força
que faziam.
- Uhhhh...força!!!
- Ahnnnn...vamos lá gente!!!

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- Vai!...
- Força, gente!!!
- Assiiimm... vai, puxem mais!
O Yoshi mergulhou de volta naquela água fria e
oleada... de novo na escuridão... só às apalpadelas.
Foi seguindo a corda esticada até chegar no galho...
espera aí!
O buraco... o galho saiu!
Voltou rápido para a superfície e avisou:
- O pau saiu de lá! Agora, pula outro n’água para ver
se acha o rapaz... eu já tô é cansado.
Outro caboclo relutou um pouco, benzeu-se e findou
por pular na água e nela sumir rumo ao fundo do igapó. Na
verdade não se sentia muito confortável em topar com o
defunto lá naquela escuridão... coisa mesmo de caboclo.
O gelo da água, o cheiro do óleo e a negritude daquele
fundão de igapó.
Apalpou... apalpou... até encontrar o rasgo na
fuselagem lá embaixo.
Enfiou o braço para dentro do avião e... nada. Não
encontrou nada.
Tentou de novo e, de repente, passou-lhe um arrepio
danado e ele voltou com mais de mil para a superfície da
água.
- Ahhhhhhh... êita... Rapaz! A coisa tá difícil, viu?
Foi o que conseguiu pronunciar logo que chegou à
tona.
Todos curiosos e Yoshi foi logo perguntando:
- Que foi? Encontrou o piloto?
O caboclo ainda se refazendo, respondeu:
- Nã... não. Acho que... que ele não tá lá, não.
O japonês já acostumado com aquela gente, procurou
atingir o ego do cabra ainda todo assustado:
- Ah, rapaz! Num é possível. Tu tá é com medo.
Rapaz, o curumim já tá morto. Ele num vai te fazer nada,
não. Quem faz mal é quem tá vivo... morto num faz mal prá
ninguém, não.

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Tentando se defender o caboclo ajuntou:


- Não, “seo” Zé!... Ele num tá lá, não. Eu fui até lá... tô
te dizendo!
Balançando a cabeça em sinal de desaprovação o
velho Yoshi atalhou as desculpas do outro:
- Tem jeito não! Deixa que eu vou lá resolver isso.
E pulando para a água, ainda instigou o caboclo:
- Esse pessoal!... Tem é que ter raça de japonês
mesmo para ser macho!
E afundou novamente nas águas escuras do igapó.
Novamente apalpando e procurando o rasgo na
fuselagem.
Meteu o braço pelo buraco, procurando não raspar nas
pontas do duralumínio e... nada. Nada do Romero.
Tentou de novo... mais lá dentro... e nada.
Mais ainda e... tocou em algo!
Algo macio... não era folhagem... era tecido... era
roupa.
Tateando percebeu que era a parte de cima de um
corpo humano.
Só podia ser o do Romero.
Sentiu sob a palma da mão o tórax... e ele estava
afundado... e muito.
Sem ar, Yoshi voltou rápido à superfície e já dizendo:
- Ahhhh... achei! Ele tá lá mesmo! Eu toquei nele.
Uma tensão maior tomou conta do grupo.
Saves ansioso falou:
- Será que dá para o senhor amarrar ele numa corda e
daí a gente puxa ele daqui, como fizemos com o galho?
-Não sei, não. É melhor eu voltar lá e dar uma olhada,
né?.. Vou lá...
E dizendo isso, tornou a mergulhar.
Embicou no rumo de baixo entrando de novo naquele
negrume.
Foi tateando até chegar novamente naquele buraco da
cabine de pilotagem do avião.

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Cutucou devagar as suas bordas afiadas e percebeu


que ele era muito pequeno para passar por ali o corpo do
Romero.
Voltou então à tona e comunicou o fato aos outros do
grupo:
- Ahhhh... Não dá, Saves. Não dá... tem de abrir mais
o rombo lá embaixo... do jeito que está não dá para passar o
corpo.
Saves olhando para um dos braços do Yoshi
perguntou:
- O que é isso no seu braço?
O japonês levantou o cotovelo e viu um fio de sangue
saindo por ali.
- Ahn?... Ahm rapaz, acho que foi uma das beiras da
lataria do avião... tá tudo rasgado lá embaixo. Acho que
passei o braço “num ponta” daquelas.
Saves ficou preocupado, pois entendeu a gravidade da
situação.
O duralumínio da fuselagem arrebentara-se com a
pancada do galho e agora estava cheio de pontas afiadas...
um grande risco para quem estava mergulhando sem
nenhuma visão lá naquela escuridão toda.
O resto do pessoal do resgate já havia partido rumo a
Tefé, levando os feridos e os três sacos mortuários.
Na lancha que servia de apoio aquele pequeno grupo
não havia nenhum socorro médico.
Yoshi tratava de seu ferimento derramando um pouco
de cachaça sobre aquele corte no cotovelo... e era só.
Estava claro que era muito arriscado deixar que
continuasse mergulhando naquelas circunstâncias.
Então, ponderou com o resto do grupo:
- Gente! Isso tá ficando perigoso. Não vale à pena
arriscar mais ninguém. O “seo” Zé subiu agora com esse
corte. Daqui a pouco o óleo que tá na água vai embora com
a corrente e as piranhas voltam. Vão sentir o cheiro do
sangue e daí a coisa não vai acabar bem.
E passando a mão pela cabeça, completou:

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- Acho melhor a gente parar com isso e voltar para


Tefé... Paciência!... A gente fez o que podia.
O Yoshi arregalou seus espremidos olhos orientais e
disse ao Saves:
- Mas, rapaz! Não podemos deixar o corpo do curumim
lá embaixo! A família tá esperando ele em casa para
sepultar direito, como deve ser.
Saves coçou a cabeça e respondeu meio irritado:
- Eu sei, eu sei! Mas, o que adianta a gente deixar
mais um morrer para salvar outro que já está morto, “seo”
Zé? Não tem lógica uma coisa dessas... me entenda!...
Mas, Yoshi ainda insistiu:
- Olha! Nós viemos aqui para tirar ele de lá e só vamos
sair daqui depois que a gente conseguir. Não se pode deixar
um morto assim, Saves. Não é certo.
Saves, já meio aperreado, tentou demover o pescador
daquele muito arriscado resgate:
- Mas, e se alguém corta uma veia enquanto está lá
embaixo? Nós aqui não temos como estancar uma
hemorragia... e as piranhas então?... Pense bem, um de
vocês pode morrer por causa disso, não vê?
Para o oriental abandonar um morto não era correto,
pois sua família não teria seus restos mortais para, então,
honrá-lo.
- Olha... não sei, não. Mas, ainda acho que não
devíamos deixar ele aí... isso num tá certo.
Saves coçou a cabeça de novo, olhou em volta
procurando divisar até onde o óleo manchava a água e ficou
preocupado.
Sabia que o japonês tinha razão em não querer deixar
a tarefa pela metade. Contudo, realmente era muito
arriscado.
- Mas, como o senhor acha que se pode abrir mais o
buraco no casco do avião? Nós não temos nenhuma
ferramenta que dê para fazer isto – argumentou Saves.
E lembrou ao amigo:

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- A machadinha não funciona lá no fundo, pois o peso


da água impede de se bater ela com força.
Yoshi ouviu, mas insistiu:
- Eu apalpei “o beira” do rasgo e deu para perceber
que ele é grande e que ele tem uma pontona assim, ó... – e
afastou as mãos deixando entre elas um espaço de uns 50
cm.
E continuou explicando seu plano:
- Então, eu vou lá e passo “um corda” forte por essa
ponta. Daí, eu subo e a gente puxa com “todo o força” daqui
de cima. E não é possível que seis machos não consigam
arrebentar de vez esse pedaço de lata do avião... a ideia é
essa.
Finalmente Saves se deu por vencido:
- Ok! Vamos fazer assim: vamos tentar do jeito que o
Yoshi disse. Mas, se mais alguém se machucar, volta rápido
aqui para cima. Não vamos facilitar. Não viemos aqui para
mais alguém morrer. A gente veio para resgatar um corpo.
Lembre-se disto e não facilitem, certo?
Yoshi concordou, mas pediu ao Saves:
- É... mas tem de ir outro lá no fundo. Eu já estou
muito cansado de ficar mergulhando... É só eu, só eu...
pôxa! Alguém tem de ajudar lá embaixo.
A reclamação do pescador era válida. Somente ele
havia feito os mergulhos até a cabine do Douglas e trouxera
resultados.
Então o Saves escalou um dos caboclos e lhe disse:
- Vai você agora, Raimundo. É só passar a corda em
volta do pedaço de alumínio e depois subir para ajudar a
gente a puxar daqui... mas, cuidado, não vá se machucar.
Para ter certeza de que não ia ter de tocar no defunto
o caboclo ainda pediu confirmação:
- É só passar o laço da corda na ponta da lata, né seu
moço?
- É isto mesmo... vai lá agora!
O caboclo se benzeu todo e pulou na água sumindo a
seguir no rumo do fundo.

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Foi tateando até encontrar o rombo na fuselagem.


Tocou os pés no fundo do igapó e o sentiu afundar um
pouco na lama.
Passou uma das mãos pela fuselagem até topar com a
lama do fundo e percebeu que o nariz do avião estava todo
achatado e prensado naquela lama viscosa.
Bem devagar procurou a tal ponta rasgada na beira do
buraco.
Ali estava ela... bem afiada e era mesmo do tamanho
que o japonês dissera.
Passou o laço da corda por ela, apertou bem e
retornou para a tona d’água.
- Auhhh.... Pode... podepuxááá... – ainda arfando
gritou para os que estavam na lancha.
E Saves conclamou a todos:
- Agora, gente! Força aí todo mundo. Puxem!!!
E todos puxaram juntos, fazendo a proa da lancha
quase enfiar na água.
- Vem diaba!
- Vem disgrama!
- Puxem mais!!! – gritou o Saves.
E puxaram... e a corda que estava retesada de
repente soltou-se.
- Tá ruim... soltou – observou o Yoshi.
E já prevendo que ninguém se aventuraria descer lá
de novo, foi logo dizendo:
- É... mas, num aperreia não. Vou lá atar “esse corda”
bem de com força... pode deixar.
E foi novamente para o fundo do igapó.
Lá nas profundezas colocou a corda ao redor da ponta
do duralumínio, de forma que desta vez não se soltasse.
Nadou de volta à superfície e bufando que nem um
touro velho conseguiu avisar à turma daquele cabo de
guerra:
- Ahhhh... Êita, sô!... Agora tá bem amarrada. Vamos
poder puxar com tudo.

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Subiu para a lancha e logo despejou mais um pouco


de cachaça noutro golpe que conseguira lá nas farpas do
rasgo na cabine... desta vez foi na perna.
Todo mundo ali viu e a preocupação só foi substituída
pelo brado do Saves:
- Vamos logo, gente! Vamos puxar desta vez para
valer! Ou é agora ou nunca. Se não resolvermos esta
encrenca já, a gente vai deixar de mão e vamos embora.
Yoshi reagiu imediatamente:
- Ah, não! Então, ele sai é agora – e como um grito de
guerra, berrou para todos:
- Vamos lá, caboclada! Vamos mostrar que aqui só
tem cabra macho!... Vai! Puxem prá valer!
E assim todos se empenharam em dar o que podiam
em forças para romper aquela ponta de metal, aumentando
o buraco da fuselagem e possibilitando concluir o resgate do
Romero.
- Puxem!... puxem!... Vamos! Força, gente!
E a corda bem retesada foi, bem devagar, cedendo...
Mais... mais... e mais.
Yoshi gritou por cima dos grunhidos dos que faziam
força:
- Espera aí! Deixa eu ir lá ver como a coisa está.
E dito isto mergulhou.
Tateou... tateou devagar, para não se ferir de novo.
Acompanhando a corda chegou até a ponta.
Ah! Ela cedera... talvez o suficiente para passar o
corpo do Romero.
Mediu com palmos o buraco... uns três palmos.
Se alguém orientar o corpo na passagem por ali, terão
como puxá-lo lá para cima.
Retornou rápido à tona:
- Olha, gente! Já dá!... já dá para ele passar.
Saves respirou aliviado, e disse ao amigo:
- “Seo” Zé, agora tem de soltar o cinto dele.
- Cinto?!... Mas, para quê? A gente puxa ele com as
calças, mesmo.

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- Não é o cinto da calça, “seo” Zé. Éo cinto de


segurança. Um grande, que fica prendendo ele no assento
do avião – Saves explicou gesticulando.
Yoshi pediu que explicasse melhor como era aquele
negócio de cinto de segurança e Saves, pacientemente, foi
detalhando o que ele deveria fazer:
- Ele é de lona grossa, fica atado na cintura do
Romero e tem uma fivela bem grande na frente. Nela tem
uma alavanca de metal. O senhor puxa essa alavanca para
o seu lado e ela abre. Daí é só puxar um das pontas do cinto
e ele solta o corpo. Se o senhor não soltar esse cinto, o
Romero só sai de lá com o assento e tudo junto.
Fazendo que entendeu, Yoshi então disse ao amigo:
- Ah... Tá! Vou lá soltar esse cinto. E vou aproveitar “o
corda” que está lá para enlaçar o peito do rapaz e, então, a
gente poder puxar ele para fora.
Assim, o velho pescador voltou ao fundo do igapó e
seguindo as instruções do Saves conseguiu desafivelar o
cinto e liberar o corpo do copiloto.
Voltou à tona para tomar ar e já avisou ao grupo:
- Ahhhhh... abri o disgramento. Agora, vai outro lá
passar o laço no corpo... eutô muito cansado – e virando-se
para o caboclo que estava mais próximo à beira da lancha,
disse-lhe:
- Vai! Pula na água aí e vai lá amarrar o rapaz.
- Eu?!... É... “seo” Zé, eu mesmo não. Acho que não
vou não. Negócio de encarar morto não é comigo, “seo”
Zé... Ave Maria!
O japonês olhou para os outros, e todos fizeram de
conta que o assunto não era com eles. Então, disse
zangado:
- Lá vai!... Bando de cabra frouxo. Nem parece que aí
tem macho. Estão com medo de visagem... Eu já disse que
morto não faz mal para ninguém, é gente viva que faz.
Passou mais um pouco de cachaça nos ferimentos e,
voltando-se para o Saves, disse-lhe:
- Não carece, não. Eu vou lá... – e mergulhou.

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Com cuidado tateou as bordas do rombo na fuselagem


e depois passou os braços para dentro dele, até tocar o
corpo do Romero.
Desencostou-o do assento e passou-lhe a corda por
baixo dos braços.
Apertou o nó da corda.
Subiu para a superfície e avisou ao grupo:
- Ufff... Êita, que meus olhos estão ardendo... Pronto!
Ele está bem enlaçado. Agora, é só puxar – e completou –
Vou lá para baixo guiar a saída do corpo, para ele não
engatar num lugar qualquer.
- Cuidado, “seo” Zé! – advertiu Saves.
Mas, o velho nem ligou... foi rumo ao fundo
novamente.
Era perceptível que a correnteza mansa levava
devagar o óleo embora... logo as piranhas viriam atraídas
pelo sangue na água.
Todos queriam terminar logo aquilo e sair dali o mais
breve possível.
Nenhum deles parara um pouco sequer para comer
alguma coisa e a hora já ia longe.
A preocupação de resgatar logo o último dos corpos
impedia que pensassem em si próprios. E o resgate do
Romero estava mais difícil do que tinham imaginado.
Era terminar ali, embarcar o corpo na lancha, pegar as
tranqueiras, desatracar e rumar para a clareira. Lá o pessoal
do helicóptero cuidaria do resto.
De repente, lá do fundo... um puxão na corda!
Era o Yoshi avisando que já podiam começar a puxar
o Romero.
E começaram quase que conjuntamente.
Desta vez, calados... tensos.
Todos apreensivos com cada centímetro de corda que
saía d’água.
Força!
Força!
Mais força!...

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Por que a corda estava tão retesada assim?


Não tinha motivo... ora!
O cinto de segurança fora desatrelado...
Não havia nada mais prendendo o corpo...
Por que pesava tanto?
Será que o corpo se prendera em algo mais?
Espera aí!... Cedeu!...
Puxando e a corda vindo palmo a palmo.
Todos muito apreensivos... só esperavam ver o corpo
aflorar à tona d’água.
A visão de uma vida ainda jovem que havia deixado
este mundo abruptamente abalava a estrutura emocional até
dos mais fortes, quiçá então daqueles homens humildes da
floresta.
Puxando...
A água fez um leve banzeiro próximo da corda.
Ali o Yoshi surgiu e foi logo dizendo:
- Tá vindo... ele tá vindo.
Puxaram mais e um novo leve banzeiro na água...
Apareceu o cabelo preto do Romero, a testa e o rosto
inchado. Olhos cerrados...
Um filete de sangue ainda lhe escorria pela boca e
nariz... na testa um afundamento...uma fratura e massa
cerebral através daquela brecha quase horizontal.
Puxaram mais e surgiu a camisa branca e os braços.
A escuridão da água não deixava ver nada da cintura
para baixo... haveriam rompido suas pernas?
- Rapaz, será que arrebentamos o corpo do moço? –
arriscou um dos caboclos.
- Puxem! – foi a resposta do Saves.
E puxaram... e as pernas apareceram... estavam lá.
A calça jeans escura confundia sua cor com a da água
do igapó.
Alguém gritou:
- Olhem!... O peito dele... está aberto!...
Realmente, o pulmão direito estava à mostra, e com
folhas... costelas trituradas...

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Por ali o galho havia entrado dilacerando tudo que


encontrara pela frente.
O braço esquerdo estava preso ao corpo pela pele e
por alguns fiapos de músculos... quase amputado.
Haviam mais algumas escoriações pelo corpo, que as
roupas rasgadas deixavam à mostra.
Yoshi, homem acostumado às durezas da vida, não se
conteve:
- Coitado, gente... coitado... Tão novo – e algumas
lágrimas desceram pelo rosto cansado do velho pescador.
Outros não exteriorizaram seus sentimentos com
aquela cena, mas engoliram a seco.
Romero estava ali com eles... sem vida.
Sangue ainda merejando pelos lábios e pelo nariz...
A água fria lá do fundo e o óleo que vazava haviam
protegido o corpo.
O corpo do Romero foi colocado sobre o pequeno
convés da lancha.
Abriram o zíper de um dos sacos mortuários
alaranjados e nele o colocaram.
Todos abanavam a cabeça como que não
concordando com o fato de que, justamente alguém tão
jovem, com muita vida pela frente, cheio de esperanças,
fosse ele quem pagasse por aquele... voo mais econômico.
Saves pensava um pouco diferente: Romero era gente
da aviação. E para quem voa por gosto é melhor morrer
voando do que preso a uma cama de hospital, entupido de
remédios e lutando para escapar dos lençóis da morte.
Se todo mundo morre, então é preferível morrer
fazendo o que se mais gosta... e no caso do jovem Romero
era estar na cabine de pilotagem de um avião.
Um dos caboclos resolveu ir lá dentro do avião para
ver se ainda tinha algo para retirar e levar para a lancha.
Olhou para dentro do Douglas... só bagunça.
Num dos cantos tinha uma valise boiando perto de um
dos tambores.
Foi lá e a içou para a porta.

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Abriu-a e nela tinha um par de calças e camisas


ensopadas e numa divisória menor encontrou uns papéis.
Por eles descobriu que a valise era do Romero. Então,
gritou ao Saves:
- Aqui... essa “tiracolo” é dele... aí do morto.
Saves procurou nela endereços, nomes ou alguma
indicação que facilitasse a entrega aos familiares.
Achou uma fotografia.
Nela, uma linda e sorridente mulher, com um meigo
olhar.
Junto a ela duas crianças também sorridentes.
No verso estava escrito “papai nós te amamos”.
Balançando a cabeça, Saves praguejou:
- Raios de vida! Como informar para essas crianças
que elas ficaram sem pai e para a esposa que ela tinha
ficado sem marido?
O endereço dele estava em um cartão.
- É... quando chegarmos à Tefé colocaremos isso para
secar e depois a gente dá um jeito de fazer chegar aos
familiares dele – suspirou fundo e comentou – Coitados...
será um baita choque para eles. Vão sofrer por muito tempo.
No íntimo Saves procurava respostas para tudo aquilo:
“Duas crianças que esperariam em vão pelo retorno do
pai. Pai que elas amavam. Revolta... raiva... Mas, por quê?
Pela vida? Pela morte? Ora! A morte é a única certeza da
vida... mas, tão cedo?Por que a gente não bota logo na
cabeça desde cedo que morrer é obrigação que não tem
recusa?Fica-se querendo dar volta na certeza a troco de
quê? Droga!... Com certeza já meteram nas cabeças
daquelas crianças que morrer é ruim, que ficarão sem pai
para sempre...Tá tudo errado...”
O grito do Yoshi, que naquele momento pulou da água
para a lancha, despertou o Saves daquela confusão de
pensamentos sombrios.
- Êita bicho “digaçado”!...
Assustado Saves perguntou ao japonês:
- O que foi “seo” Zé?

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- Piranha... estão voltando.


- Alguma lhe pegou? – quis saber logo.
- Não! Quando afundei na água prá lavar a cara eu vi...
Ninguém pode mais entrar na água.
Então, desatracaram a lancha da árvore e do avião,
pois nada mais podiam fazer.
A pequena embarcação, livre de suas amarras, tomou
rumo da pequena praia onde descia o helicóptero.
Todo o grupo cansado, abatido, como saídos duma
guerra inglória.
O corpo doía. O estômago reclamava.
Não havia júbilo, após mais de cinco horas de árduo
trabalho, por terem conseguido resgatar o último dos corpos.
É como se tivessem começado pensando que
poderiam salvar o copiloto.
Mas, quando caíram em si, que o máximo que
puderam fazer foi tirar lá do fundo um corpo sem vida, uma
espécie de frustração abateu aqueles homens.
Só se ouvia naquele igapó o barulho do remo
rompendo a água e, depois, o ronco do motor de popa
quando foi acionado.
E foi assim até chegarem à clareira junto à prainha.
Já era perto dumas quatro horas da tarde.
Sentaram-se no chão e ficaram esperando o
helicóptero retornar para levar a derradeira carga.
Saves avisou ao Lugero:
- Rapaz, pegue a lancha e volte para Tefé, senão você
não chega lá antes da boca da noite. Essa lancha não tem
farol... Vai lá!... e obrigado aí pela grande ajuda que você
nos deu.
- Tá certo!... saindo agora acho que chego lá em
tempo. Boa sorte aí para vocês e a gente se vê por lá.
O motor de popa roncou e a lancha saiu deslizando
por cima d’água, empinando a proa no rumo do Bauana.
E não demorou para se ouvir o barulho das pás do
helicóptero que se aproximava.

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Veio chegando de manso, baixando metro a metro,


bem devagar como em todas as vezes.
Assentou os estribos no chão arenoso e, em meio ao
barulho, o seu piloto perguntou ao grupo em terra:
-Não tem mais nada para levar?
- Tem o principal – disse o Saves apontando para o
saco mortuário onde estava o corpo do Romero.
- Ah, vocês conseguiram? Lá na base o pessoal
estava dizendo que era provável que não conseguissem...
- Nós conseguimos sim. E não tem mais nada. Já
levaram tudo e só falta a turma aqui.
- Está bem. Então, vamos subindo e apertando os
cintos.
Yoshi nunca tinha subido numa máquina de voar... não
confiava naquelas coisas. E depois de ver aquela tragédia...
daí é que não queria mesmo se arriscar.
Olhou para o aparelho e se arredou um pouco para a
orla da clareira.
Dois dos caboclos levantaram o corpo do Romero e o
colocaram no piso do helicóptero.
Saves se despediu do pessoal dali do Bauana e
depois foi ter com o “seo” Pedroso:
- Gostaríamos que o senhor fosse até a cidade com a
gente. O pessoal lá da base quer lhe cumprimentar e
agradecer pelo que o senhor fez.
- É... se eu puder fazer alguma coisa... então eu vou.
Respondeu o Pedroso e já foi subindo para o
helicóptero e nele se ajeitando.
Para lá das grimpas das frondosas e grandes árvores
ouviram o ronco dos motores do avião Albatroz do SAR
sobrevoando o local onde estavam.
O seu piloto ainda não conseguira divisar o avião
sinistrado e não o conseguiria ver até o fim, pois a mata do
igapó se fechara sobre a carcaça embicada na água.
Saves deu falta do Yoshi e o procurou.
Lá estava ele no fundo da clareira.
Então, fez sinal para que viesse e embarcasse:

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- Vamos “seo” Zé! Vamos embora. Aqui já terminamos


tudo.
O velho pescador, meio sem jeito, respondeu:
- É que... eu... deixa estar, eu vou na lancha mesmo –
e começou a ir devagar no rumo do igarapé.
Saves gritou mais alto para se fazer ouvir acima do
barulho da turbina e das pás do helicóptero:
- Ora, “seo” Zé! Deixa de coisa. O helicóptero é
seguro. Se o senhor não vier com a gente, não terá como
voltar... a lancha já foi embora.
Yoshi virou-se para o igarapé e viu que a lancha já
tinha mesmo partido para Tefé.
Mesmo ainda desconfortável com a ideia de voar,
acabou concordando, pois não tinha como ele sair dali:
- Bem... está bem. Já que não tem outro jeito... eu vou.
Ressabiado entrou no aparelho, sentou-se e ali ficou.
Tenso e sem mover um só músculo.
Saves apertou-lhe o cinto de segurança e sentou-se
ao seu lado.
Seria mais fácil arrancar o assento do helicóptero para
tirar o Yoshi dali, do que fazê-lo soltar as mãos do banco em
que estava.
Saves fez sinal ao piloto que lá atrás já estava tudo ok.
O piloto assentiu e tirou o helicóptero do chão,
levantando uma grande nuvem de areia.
Logo estavam sobre as copas das árvores e rumando
para a cabeceira do lago.
Yoshi olhava lá para baixo espantado.
Misturava aquele espanto com admiração.
Sobre o lago ele já estava mais relaxado, apreciava
melhor lá de cima a paisagem tão conhecida sua... só que lá
junto à superfície da água escura do grande lago de Tefé.
Admirado comentou:
- Quantas vezes varei esses igarapés e igapós
levando hora para cá e hora para lá, e agora num instante a
gente já está no meio do lago. Rapaz!... Que coisa, né?

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E foi mostrando ao Saves o seu entendimento do que


via lá de cima:
- Olha lá, Saves! Lá é a cabeceira do lago... e lá na
ilharga é Tefé. Para as bandas daquele outro lado, aquela
água branca, é o Solimões – e ia apontando com a mão
cada uma dessas coisas.
Uma chuva localizada à frente obrigou-os a um
pequeno desvio, mas nada demais.
O japonês apreciou maravilhado poder contornar a
chuva e seguir adiante.
Já entrara em muitos temporais com seu barco, sem
nem imaginar as suas dimensões.
Agora, porém, via a nuvem inteira e a chuva que dela
despencava, como algo bem menor que antes fora para si e
para a tripulação de seu barco que, no momento, fendia a
água próximo à margem no rumo de Tefé.
A paisagem amenizava o cansaço de quem estava
naquele helicóptero, mas não a tristeza pela perda do
amigo.
Lá na frente uma réstia de terra foi tomando corpo e a
cidade foi se apresentando.
O helicóptero aproximou-se do aeroporto.
No pátio pessoas se movimentavam.
O chão chegou rápido e os estribos do aparelho nele
se assentaram.
Tanaka apareceu para receber o último grupo do
resgate:
- Saves, vocês conseguiram?
- Positivo! Está aqui no piso... coitados.
Tanaka estranhou a resposta do amigo:
- Coitados? Por quê?... Tinha mais gente?
- Não. Coitados dos familiares... ele tinha esposa e
filhas. Aqui tem a valise dele. Dê uma olhada na fotografia
aí. Tem de dar um jeito de mandar isso aí para a casa dele.
Tanaka viu a foto da família do Romero e comentou:
- Puxa vida! Vai ser fogo comunicar a elas... mais
essa, Saves.

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Mas, o outro já foi logo se desfazendo de qualquer


encargo daquilo:
- É... Mas, está contigo, Tanaka. Estou muito cansado
com tudo isso... vou aproveitar a carona aqui do helicóptero
e vou lá para a cidade.
- Ok! Vai lá! A gente merece mesmo um descanso.
O piloto elevou novamente o aparelho, já
descarregado, e o virou para o lado de Tefé.
Num instante percorreu aqueles poucos quilômetros e
pousaram no pátio da delegacia de polícia, onde alguns
soldados mantinham afastados os curiosos, pois, afinal,
para aquela gente do interior o acontecido renderia conversa
ainda por muito tempo.
Apearam do helicóptero o Saves, dois funcionários da
empresa e o Yoshi um tanto ainda entre o medo e a
admiração.
A seguir retiraram o saco mortuário onde estava o
corpo do Romero.
Benedito chegou junto com a ambulância do hospital:
- E então, gente!
- Taí aí, Benedito. Pode mandar o pessoal levar ele.
Respondeu o Yoshi apontando para onde estava o
corpo do rapaz.
Benedito indicou aos atendentes do hospital que o
colocassem na ambulância e o levassem para o hospital.
Procurando se certificar se já estava mesmo tudo
acabado, perguntou ao Saves:
- Ficou alguma coisa lá?
- Não... só os cacos do avião... os cacos do avião e
uma bruxa com catinga de morte – respondeu
demonstrando cansaço e irritação.
Benedito percebeu que o amigo estava muito abalado
e lhe disse:
- Vai devagar, rapaz! Dá um jeito de tomar um bom
banho, comer alguma coisa e dormir um pouco. Você está
precisando.

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Mas, antes mesmo de se cuidarem, foram ao hospital


ver como estava o Boni.
E ele estava ruim.
Perdera muito sangue e a ferida estava ficando
infeccionada.
O médico e os rondonistas estavam preocupados, pois
o sangue do Bonifácio era de tipo raro de ser encontrado por
ali. Um doador já havia fornecido sua cota, mas insuficiente
para atender o velho Boni.
O médico aguardava a reação do organismo do piloto,
após a transfusão e a medicação aplicada.
A pequena emissora de rádio do local repetia sempre
o pedido para que doadores daquele tipo sanguíneo fossem
ao hospital, a fim de garantir a sobrevivência da velha águia.
Tanaka, um tanto impaciente, já até se oferecera como
doador, mas seu tipo sanguíneo era incompatível com o do
amigo necessitado.
Pediu pelo rádio que a base de Manaus conseguisse
nos hospitais sangue para o Bonifácio, mesmo sabendo que
conseguir isso a tempo era praticamente impossível.
Estaria perdido todo o trabalho que tiveram para salvar
o amigo?
Viria ele sucumbir naquele pequeno hospital por falta
de sangue?
Até nisto o velho amigo teria azar?
Lá na base, no aeroporto, a figura acabrunhada do
mecânico era triste de se ver.
Ele estava inconformado.
Alguns que estavam por ali escutavam seus lamentos,
mas não diziam nada... pois, nada se tinha para dizer num
momento desses.
Estava ele inconsolável com a morte repentina do
amigo de tantos voos:
- Foi ele, gente! Foi ele o culpado... foi o piloto.
E agitando os braços bradava:
- Eu disse para colocarmos mais alguns galões de
combustível e ele não quis. Droga!... Foi ele o culpado...

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E continuava batendo na mesma tecla:


- Os motores, gente! Os motores estavam bonzinhos,
funcionando redondo. Eles pararam girando... funcionando
normal... Foi ele, estou dizendo...
Passava a mão pela testa o tempo todo, como que
querendo tirar dali seus angustiantes pensamentos.
Parava vez por outra de zanzar pelo pátio, agachava-
se e botava a cabeça entre as mãos, dizendo baixinho:
- Coitado... coitado... ô Romero... coitado, tão jovem.
Alguém já tentara o acalmar, mas ele insistia:
- Foi ele...
Fora realmente um dia muito diferente para aquela
cidade do interior, lá no fundão daquela selva, onde a vida
tinha sido mudada por aquele funesto acidente. Aliás, como
em anos passados, quando o principal personagem deste
acidente fora o salvador daquele.

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BONIFÁCIO PIORA !

Ela, a noite, caíra naquele torrão sumido nas


entranhas daquela terra dos trópicos.
As atenções se prendiam ao pequeno e modesto
hospital, onde os feridos ainda se lamentavam.
Nele não existia unidade para tratamentos intensivos e
por isto o Boni estava num quarto comum, sempre assistido
pelo médico que dali de perto não saía.
O Dr. Simão comentou com o Tanaka, que se colocara
ali na porta do quarto do amigo:
- Se ele não melhorar até amanhã e se não aparecer
nenhum doador de sangue, ele terá de ser levado com
urgência para um centro com recursos especializados.
Pensativo Tanaka perguntou ao médico:
- Mas, se a gente levar ele para Manaus, por exemplo,
ficará fora de perigo?
- Não, eu não disse isto. Acho, inclusive, que se não
receber nova transfusão antes mesmo de sair daqui pode
até não aguentar a viagem... ele está muito fraco... a
pressão está muito baixa... perdeu muito sangue – foi
dizendo pausadamente o estado clínico do seu paciente.
- Manaus é o que temos mais perto daqui. Teremos de
preparar para levá-lo até lá – sugeriu Tanaka.
Contudo o médico o atalhou:
- Não sei... creio que se puderem levar ele para Belém
poderá ter melhor atendimento. Lá tem um hospital da
Aeronáutica muito bom.
Por um momento permaneceram em silêncio e depois
o médico voltou a advertir:
- Mas, lembre-se! Convém que ele se submeta a uma
nova transfusão de sangue. É uma viagem longa, mesmo de
avião.
- Doutor, mas onde arrumar isto? Já procuramos
doadores para o tipo de sangue dele por toda a cidade...
O médico pensou um pouco e, finalmente, rendeu-se:

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- Bom... não podemos fazer o impossível. Então, é


melhor que você já comece a pensar em como transportá-lo
para Belém... e seja o que Deus quiser.
- Está bem, doutor. Vou começar a me virar agora
mesmo.
E Tanaka saiu do hospital rumo ao aeroporto.
Em sua mente muitas dúvidas.
Contudo, naquele momento o importante era arrumar
um jeito de transportar o Bonifácio da forma mais rápida e
segura possível.
Procurou logo o Saves no aeroporto:
- Ô, rapaz! Preciso de você.
Saves parou para ouvir o amigo:
- A coisa está séria. Segundo o médico o Boni está
muito mal. Ele acha que devemos enviá-lo o mais rápido
para um local com melhores recursos... UTI ou coisa do tipo.
Por isto preciso que você acione um avião do SAR para
fazer logo a remoção dele para Belém.
- Pôxa, rapaz! O Albatroz que decolou daqui deve
estar pousando agora em Manaus. A gente pode até chamar
ele de volta, mas acho que ele só virá amanhã, porque já
está anoitecendo e aqui na Amazônia não se voa à noite
com esse tipo de avião – respondeu-lhe o Saves.
Tanaka impaciente insistiu com o outro:
- Não dá... não dá... tem de ser logo. Eu assumo a
responsabilidade. Peça ao comandante do avião para voltar
aqui.
Saves percebendo então que a situação era crítica,
resolveu fazer a tentativa:
- Vamos lá para a estação rádio, vamos ver o que a
gente consegue.
A caminho de lá Tanaka comentou ao amigo:
- Esta operação, daqui para a frente, nunca mais será
a mesma. Este acidente mudou tudo. Teremos de rever tudo
sobre a logística da coisa... isto não pode acontecer de
novo... nunca mais.
A brisa morna do final de tarde varria a pista de pouso.

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Os bacuraus voavam rasante sobre o asfalto, como se


brincassem com as sombras.
Lá num canto Sabá continuava amuado e pensativo:
“Esse emprego já era... vão me demitir.Afinal, a corda
tem de arrebentar. E, como sempre, arrebenta do lado mais
fraco... e o lado mais fraco sou eu.Satisfação dada às
autoridades: o ‘parafuso estragado’ da engrenagem foi
retirado e tudo vai seguir seu curso normal. Tudo bem...
Mas, o que interessa tudo isto diante do que
aconteceu com o jovem Romero? E com os aposentados
que pegaram aquela carona fatídica?
Aposentadoria...
O velho do chapéu...
Onde estaria aquele chapéu agora?
Sabe-se lá...
Ninguém vai se importar mais com aquele chapéu.
Deixa para lá. Talvez seja enterrado com o dono... um
dono sem família... ou até pode achar um novo dono.
Ora... morrer por causa de um chapéu.”
Sabá só pensava, esquecendo-se do mundo em sua
volta.
Benedito tomava as últimas providências:
Transporte de retorno às suas casas aos que
ajudaram na busca e no resgate;
Sepultamento dos caronas falecidos no acidente;
Condolências aos familiares e amigos;
Guarda dos destroços para posterior investigação do
acidente; e
Retorno do “seo” Pedroso à sua moradia lá no
Bauana.
Aliás, aquele homem no momento era alvo dos
políticos locais... coitado.
Promessas de casa, sítio e até motor de popa...
queriam se promover através do herói do acontecido.
Demonstravam assim que até nos momentos mais
sofridos há quem tente explorar as emoções do ser humano

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comum, para galgar mais um degrau de vaidade,


egocentrismo, poder e, obviamente, desumanidade.
Lá no hospital nova movimentação apressada.
O Boni piorara ainda mais.
Já no aeroporto o Tanaka e o Saves tentavam
convencer a tripulação decolar de volta para Tefé.
- Mas, vocês aí têm de ver que o comandante
Bonifácio não aguenta esperar muito, pois o estado dele é
crítico.
Enfim, depois de muito insistirem, ficou acertado que
logo à alvorada o Albatroz decolaria para Tefé, pois não
poderia arriscar mais vida em um voo noturno sobre a selva
e sem auxílios rádio à navegação aérea.
Ficou também combinado que as cinco da matina
Saves enviaria à tripulação o primeiro boletim meteorológico
informando as condições de voo nos céus de Tefé.
Terminada aquela comunicação, bastou Saves olhar
para o Tanaka para que este compreendesse a situação...
tinham então uma nova missão ao nascer do dia.

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MISSÃODE MISERICÓRDIA
EM UMDIA MUITO NUBLADO

Sim, o dia amanhecera com uma grossa camada de


nuvens estratificadas cobrindo todo o céu.
É como se o dia tivesse vindo vestido de luto.
Saves já estava pendurado em seu microfone, lá no
aeroporto.
Tanaka ali por perto ouvia tudo que o operador do
SAR dizia:
- ...preparar o paciente para estar próximo à hidropista
pronto para o embarque imediato...
Benedito já estava lá na beira do lago onde pousaria o
avião anfíbio do SAR.
E por volta das oito horas da manhã os motores
radiais do avião se fizeram ouvir sobre suas cabeças.
Tomou posição e amerissou bem de frente à cidade.
Taxiou até encostar na beira e cortou os motores.
Além da tripulação e de um médico que viera junto,
desceu uma senhora de meia idade.
Seria parente?
Alguma amiga?
Sempre calada tomou logo o rumo do hospital.
Tão rápido que o comandante do avião, quando a
procurou para acomodá-la na condução que os levaria até
lá, não mais a encontrou.
Deu de ombros e entrou na picape.
Porém, já se aproximando da porta do quarto do Boni
no hospital aquela mulher procurou pelo médico:
- Doutor?...
- Sim, minha senhora. O que deseja?
- Como está o comandante Bonifácio? – inquiriu com
visível preocupação.
- Mal! Ele está muito fraco... não melhorou nada à
noite – e verificando a ficha do piloto, completou –

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Também... perdeu muito sangue, sabe? Vão levá-lo para


Belém... porém, não sei se ele aguentará uma viagem longa
dessas. E tem a infecção que se agravou durante a noite... é
um quadro difícil.
E curioso, voltou-se para a mulher e lhe perguntou:
- Me parece que a senhora não é daqui... é alguma
conhecida dele?
A mulher deu um longo suspiro e disse ao médico:
- Doutor, eu gostaria de doar meu sangue a ele, se o
senhor permitir.
- Bem... temos de ver qual é o seu tipo sanguíneo,
porque o dele é um tipo raro de se encontrar... só recebe de
outro igual.
A mulher fitou o médico e afirmou:
- Doutor, tenho certeza de que meu sangue é do
mesmo tipo.
Desconfiado o médico a chamou:
- Vamos ao laboratório. Vamos checar isto.
Lá chegando foi direto ao atendente:
- Antonio, veja qual é o tipo sanguíneo dessa senhora.
Algum tempo depois o rapaz confirmou ao médico:
- É do mesmo tipo do acidentado, doutor.
Sem pestanejar prepararam tudo e fizeram a
transfusão.
Tendo a mulher ainda deitada num leito próximo do
quarto do Boni, o médico, curioso com o fato dela saber qual
o tipo de sangue do Boni, perguntou-lhe:
- Como a senhora tinha tanta certeza de que seu
sangue era do mesmo tipo do dele?
Ainda comprimindo o algodão no braço sobre o local
de onde lhe tiraram o sangue, disse com firmeza:
- Eu tenho uma grande dívida para com esse homem.
Talvez eu tenha sido uma das poucas pessoas que tenha
oportunidade de retribuir da mesma forma um favor que
salvou a minha vida.
- A senhora poderia explicar isso melhor? – pediu
ainda mais curioso o médico.

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- Talvez o senhor não se lembre de todos os seus


pacientes, claro. Mas, eu nunca mais esqueci do dia em que
eu estava lá na sala de operações deste hospital, há quatro
anos, e que o senhor disse não haver mais sangue do meu
tipo... lembra-se?
Remexendo bem a memória e fitando bem aquela
mulher o médico começou a se lembrar dela;
- Ah!... A senhora é...
- Sim, doutor. E quando o senhor pensava que já não
podia fazer nada por mim, que não podia mais me salvar, o
comandante Bonifácio, que estava passando com seu avião
por Tefé, ficou sabendo do que estava acontecendo,
interrompeu a sua viagem, veio até aqui mesmo e doou-me
o seu sangue. Eu escapei e ele continuou sua viagem... até
hoje.
E já bastante emocionada, completou sua narrativa:
- E hoje eu estou aqui, depois de ter um
pressentimento ontem, lá em Manaus. Não conseguia parar
de pensar em Tefé. Então, liguei para uma velha amiga
daqui e ela me contou tudo o que estava acontecendo,
inclusive com o comandante Bonifácio. Acho que foi o
sangue dele em mim que falou por ele.
Duas, três e mais lágrimas fizeram seus lábios se
calarem... trêmulos... mas, com um leve sorriso.
Repentinamente o Tanaka assomou à porta de onde
estavam e exasperado disse ao médico:
- Doutor! O comandante do Albatroz disse que trouxe
de Manaus uma mulher para doar sangue... é do mesmo
tipo que o do Boni.
O médico sorriu e indicou-lhe o leito onde estava
aquela senhora ainda enxugando as lágrimas.
Tanaka ficou eufórico. Não sabia se chorava ou se
ria... o amigo estava salvo. Afinal, ele não dormira um
momento só, tentando achar uma solução para a situação
do Bonifácio.
Foi até a mulher e agitado lhe disse:

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- Olha, minha senhora... eu... eu não sei como lhe


agradecer... mas...
Ela o interrompeu:
- Não se preocupe, filho. Sou eu quem está aqui
agradecendo. Espero ter feito por ele agora o que ele um dia
fez por mim.
O médico sintetizou a história que acontecera ali há
quatro anos, em que o velho piloto havia interrompido uma
viagem para salvar aquela que, agora, era a sua salvadora.
Resultados de um plantio que Boni fizera durante toda
sua vida e a colheita foi na hora precisa, o grão que vinha na
hora certa.
Já mais esperançosos prepararam o Bonifácio e o
colocaram numa maca.
Lá na beira do lago o Benedito e o Tanaka assistiram
a tripulação do Albatroz a acomodá-lo a bordo.

Fonte: FAB

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Boni, consciente ouviu o amigo dizer:


- Olha, velhão! Dá um jeito de se sair bem desta, heim!
Estamos aqui esperando sua volta.
O velho piloto expressou um leve sorriso e respondeu:
- Ahn... ah. Rapaz, acho que... desta vez... não volto...
- Ora! Deixe de histórias. Você voltará... estaremos
aguardando, ok?
Boni ainda sorrindo, mas com um sorriso que não
deixava esperanças.
Sentia que para si tudo havia acabado.
Não porque não escaparia daquela, mas porque
dentro de si... morria.
Tanaka desceu do avião seguido por Benedito.
O mecânico fechou a porta.
Os motores foram acionados e aquele rugido
característico dos velhos radiais tomou conta do ambiente.
Após um breve taxiamento na direção do meio do
lago, eles foram acelerados, rugiram mais alto ainda, e o
avião singrou rápido pelas águas do lago de Tefé.
Quantas vezes o próprio Bonifácio não fizera aquilo no
comando de um Catalina?
Mas, agora era diferente... ele estava sendo
transportado numa maca para um hospital lá no distante
Belém do Pará... e em péssimas condições de saúde.
Após a corrida na água escura e pouco ondulada,
jorrando uma estira de espuma para as ilhargas, foi alçando
voo devagarinho até sobrevoar a mata lá do outro lado.
Fez uma meia volta e passou sobre a beira donde
desatracara momentos antes.
Guinou para leste e tomou o rumo de Manaus e de lá
para Belém.
Já no horizonte sumiu... um ponto minúsculo.
E todos ficaram com o olhar fixos naquele ponto:
Tanaka, Benedito, Saves, Pedro, Yoshi e um grupo de
gente do lugar.
Todos com rostos cansados.

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Lá dentro daquele pontinho que sumia no céu ia um


homem muito ferido. Não só aquele ferimento feio na testa,
mas outro muito mais profundo e indelével. Um ferimento
que mesmo com o passar do tempo não cicatrizaria:
Romero!
Romero seria uma figura difícil de sair de suas
lembranças... de seus pensamentos... de seus pesadelos.
Aquele ferimento na testa ia sarar e até mesmo
esquecido. Mas, não o jovem Romero... e nem os três
velhos da aposentadoria.
E tudo por um voo mais econômico.
Teria valido a pena?
Possivelmente esta seria a carga mais pesada que o
velho piloto transportaria por toda sua vida.
Sentiria sempre o peso sobre seus cansados ombros
do voo mais econômico, em que ficaram para sempre o seu
copiloto e três de seus passageiros.
Boni, no seu torpor, voando lá entre as nuvens da
tarde amazônica, pensava... pensava... e pensava.
Sentia-se destruído por dentro.

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AO FINAL... UM VAZIO

Lá na beira do lago estavam ainda os amigos olhando


o horizonte vazio.
Não sabiam se sentiam pena ou raiva do Boni.
Tanaka, o mais amigo de todos, foi o primeiro a se
pronunciar, mesmo sem tirar os olhos do horizonte:
- A vida tem muitas surpresas escondidas sob o seu
manto, minha gente.
Benedito também arriscou algumas palavras:
- Boni era um piloto muito experiente e consciente de
seu trabalho. Mas... – e balançou a cabeça de um para outro
lado.
Saves também expressou o que lhe ia dentro d’alma:
- E ele provara isto que você disse sempre que voou
nesta região. Ele sempre procurou respeitar a máquina,
principalmente porque sabia dos riscos da aviação aqui por
estas bandas. E também sempre foi muito humano,
valorizando as pessoas.
E o Benedito:
- Pois é, e uma prova disto foi quando ele
desobedeceu até ordens superiores para encontrar aquele
Douglas que caiu por aqui há alguns anos, lembram-se?
- Sim, a gente se lembra disso – respondeu o Saves.
E Tanaka observou:
- Alegre o tempo todo, brincalhão, disposto, calmo e
olhar aguçado para tudo à sua volta. Era difícil não se gostar
dele.
Benedito entrou nas divagações dos amigos:
- É... mas, é também humano, né gente? Sujeito a
falhas, igual a qualquer um de nós. E aí está... – e apontou o
braço na direção da cabeceira do lago, onde, lá sumido no
igapó, estava a carcaça do velho Douglas.
Tanaka inquietou-se:
- Gente! Estamos falando a respeito dele como se
estivéssemos falando de um morto!... O que é isto?! O Boni
está vivinho... ferido, muito ferido, mas vivo!

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Benedito tomou a palavra:


- É... mas, quando eu o vi lá dentro do Albatroz, com
aquele olhar... sei não... Ele vai se sair bem desta, contudo
por dentro talvez nunca mais se encontre.
E continuou:
- O nosso velho Boni deixou de existir no momento em
que aquele avião caiu. O que dele sobrou é algo que vai
perambular por aí até deixar este mundo.
Tanaka ainda pensativo:
- Mas, foi justo? Logo com ele?
Foi o Saves quem respondeu ao amigo desconsolado:
- Certamente que não... tantos outros aí que nem
chegam aos pés do que ele é... mas, foi logo com ele que
aconteceu... paciência! Quando é que a vida foi justa, né?
- A gente debita na conta da fatalidade... tinha de
acontecer – encerrou o Benedito.
Continuaram a fitar o horizonte, onde então algumas
nuvens escuras e densas começaram a esconder a sua
linha.
Suas silhuetas na fraca claridade também
desapareciam.
Nada mais seria igual.
Boni errara... como qualquer ser humano erra.
Porém, teve azar de o seu erro ser fatal.
Como viver assim pelo resto da vida?
O significado de sua vida antes daquele acidente, toda
em prol de quem estivesse precisando, havia ali ficado em
check.
A resposta?
Estará dentro de cada um de nós.

VOAR É A MAIOR LIBERDADE JÁ EXPERIMENTADA


PELO HOMEM!
MAS, RESPEITAR ESSA LIBERDADE É A FORMA DE
MANTÊ-LA VIVA.

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