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O Aviador

Ernest K. Gann

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O Aviador
Ernest K. Gann

Dezembro de 1928. Um biplano Stearman transporta o correio de Elko, no Nevada,


para Pasco, no estado de Washington. O tempo está incerto, o terreno lá em baixo está cheio
de perigos, mas para o piloto veterano é uma alegria voar. Aqui, a cerca de dois mil e
quatrocentos metros de altura, ninguém lhe vê o rosto tragicamente coberto de cicatrizes, que
torna a sua vida em terra uma solidão atormentada. Ninguém, isto é, excepto a sua passageira
de onze anos, que, surpreendentemente, parece não reparar.
Depois, inesperadamente, o avião começa com problemas. E ficam os dois isolados
numa encosta montanhosa coberta de neve. Quase sem alimentos e com poucas esperanças de
serem salvos, a situação deles é de facto desesperada. As únicas motivações do piloto são a
confiança da pequenita... e a mensagem estranhamente tocante de uma carta do saco do
correio.

PREFÁCIO
Como 1914, 1928 foi um último ano de inocência para grande parte do Mundo.
Poucos previram a catástrofe financeira que teve início na América e no ano seguinte afectou
todos os países. Depois disso, a inocência morreu de novo, como já acontecera em 1918,
quando os canhões se calaram.
Em 1928, a esmagadora maioria dos jovens americanos acreditava fervorosamente
em Deus, na honra, no dever e no país. Tinham orgulho em si próprios e geralmente na sua
vida de trabalho. Isto era particularmente verdade no caso dos aviadores, muitos dos quais se
haviam iniciado na aventura de voar durante a Grande Guerra, que terminou em 1918.
Eram, muitas vezes, homens impetuosos e com uma atracção pelo perigo. Eram
instintivamente levados a perseverar numa profissão que abria novas fronteiras quase
diariamente. A sua actividade ainda era uma arte. Eram modestamente pagos em dinheiro,
mas prodigamente em ossos partidos e mortes. Muitos deles morreram em serviço enquanto
transportavam o correio.
Os pilotos do correio aéreo não eram considerados cidadãos normais, mas sim um
grande risco para as seguradoras. A maioria deles não se preocupava porque eram uns
amantes do ar. Dedicavam-se-lhe tal como um homem por vezes se entrega totalmente a uma
mulher encantadora.
Os veículos que transportavam estes homens a baixas altitudes eram criações frágeis
de linhas elementares. Os motores eram temperamentais e muitas vezes traiam quem neles
confiava. A assistência à navegação era inexistente ao longo de muitas das rotas do correio
aéreo, e os aviadores abriam caminho, no bom e no mau tempo, empregando uma combinação
de experiência, ousadia e astúcia. Encontraram em si próprios um sexto sentido de
oportunidade e orientação porque tinham de o ter e, em conseqüência disso, muitos
desenvolviam a independência selvagem característica dos velhos marinheiros e dos
Tuaregues do deserto.
A lealdade e confiança em si próprios era um facto entre os aviadores de todos os
países, embora os Europeus, tecnicamente mais avançados, beneficiassem de uma primitiva
comunicação via rádio com terra. Excepto no Leste dos Estados Unidos, os pilotos
americanos não tinham esse privilégio e, por isso, uma vez lançados no céu, desapareciam
simplesmente. Algum tempo depois, voltavam a aparecer – sem cerimónia e sem que ninguém
em terra soubesse por onde tinham andado.
Por vezes, não voltavam a aparecer...
CAPÍTULO UM

O Piloto olhou de novo para baixo e voltou a ter o mesmo pressentimento. Nesta
região, quando o tempo não estava muito bom, era sempre assim. O planalto era elevado e
desprovido de vestígios humanos. A superfície do terreno parecia feita de ferro fundido tosco.
As escarpas nuas e estéreis eram marcos de referência para os pilotos neste oceano ondulado
de rochas e deserto. Era uma região selvagem e havia alturas em que o piloto se perguntava se
seria possível ter-se medo da própria terra.
Olhou para baixo, para as nuvens cinzentas tocadas pelo vento, que iam, sem dúvida,
formar uma forte tempestade. Aqui e além, por entre a névoa, ainda se avistavam os picos das
rochas e as árvores pretas raquíticas. Nuvens em fiapos apareciam suspensas dos picos que se
avistavam ao longe, mas essas não o afligiam de momento. Preocupava-se agora em observar
as nuvens densas por cima dele. Poderiam mesmo esmagá-lo.
Antes de ter descolado de Elko, no Nevada, em direcção ao norte, o piloto suspeitara
que o tempo podia piorar. Presumira que não ia ser o melhor dos dias. Mas a sua missão era
transportar o correio e não era suposto acocorar-se no chão, como um canário amedrontado,
sempre que havia uma nuvem no céu. Um piloto que desse sinais de apenas gostar de voar nas
melhores condições depressa se encontraria no desemprego. Este era o seu modo de vida, e
ele sempre voara, mesmo quando os outros encontravam desculpas para não descolar.
Concentrou-se um pouco no trabalhar forte do motor Wright Whirlwind que fazia
mover o seu avião. Achava-o um belo motor e dava graças por não estar a pilotar um Liberty -
um desses restos da guerra que duraram o tempo de ele aprender a voar e se qualificar como
instrutor. Sorriu. Agora, ainda por cortesia do mesmo governo generoso dos Estados Unidos,
ele continuava a voar. Passara a maior parte dos últimos dez anos nos céus, de tal modo que a
voar se sentia quase em casa. Sabia que para se sentir completamente à vontade no ar um
homem tinha que deixar de ser mortal.
"Mesmo assim", pensou, "aqui é o único lugar onde me sinto contente."
Embora a rota estivesse traçada, todos os voos eram diferentes. O tempo mudava
com as estações do ano e de forma contrastante nesta região do continente norte- americano.
Os vôos também mudavam consoante a hora do dia e o vento. Com ventos fortes, manter o
biplano Stearman direito e nivelado assemelhava-se a um torneio de luta greco-romana. O
Stearman era um bom avião, feito com a melhor madeira, o melhor metal e de construção
muito sólida. Embora mais pequeno que os velhos De Navilland e Pitcairn, que faziam a
distribuição do correio nos estados do Leste, era mais forte, mais facilmente manobrável e
menos dado a avarias. O piloto achava que não havia motor de avião mais seguro no Mundo
que o nove cilindros Wright Whirlwind. Sabia que o seu barulho forte devia estar a ecoar lá
em baixo sobre o planalto e sentia-se tranquilo ao confiar-lhe a vida. "Até agora, a minha
única vida", pensou. Claro que muitos homens terminaram a sua única vida neste trabalho,
abruptamente. Aqueles que se supunham imortais muitas vezes provavam que a sua crença
era infundada. Era assim o mundo nas alturas.
Este voo distinguia-se da maior parte porque ele levava um passageiro. Uma
pequenita loura, que ele calculava que tivesse uns onze ou doze anos, mas era pouco
entendido nesses assuntos. Os pais haviam-na trazido à Base Aérea de Elko e tinham dito que
se chamava Heather.
O piloto comentara que era um bonito nome e a resposta da criança, fora pronta: - É
uma planta de flores rosadas e, às vezes, na Escócia serve para fazer vassouras. Os olhos dela
faiscavam como se o estivessem a desafiar e ele achou o seu sorriso desconcertante.
Quando perguntara aos pais porque a mandavam de avião para Pasco e não de
comboio, Heather nem os deixara responder.
- O meu avô, desde que tem aquela doença, não consegue ver muito bem. Por isso, os
meus pais acharam que eu teria mais para lhe contar se visse as coisas como os pássaros.
- Já alguma vez voaste? - perguntara à rapariga.
- Não. Mas às vezes eu finjo... como se fosse um pássaro a sério.
- Ainda bem. Se te portares bem durante o voo desta manhã, talvez te ensine a ver
como um pássaro a sério.
A partida estava mais que uma hora atrasada porque Probosky, o mecânico, dissera
que era melhor mudar várias velas no motor Whirlwind. Por fim, quando o trabalho estava
feito e o piloto passava os sacos do correio a Probosky, que os arrumava no receptáculo, a
rapariga bateu-lhe no braço e perguntou:
- Quando é que me dão o meu pára-quedas?
- Não te dão. - arrependeu-se do tom de aborrecimento com que lhe respondeu.
- E porque não? Você não tem um?
- Tenho. Vou sentado em cima dele. O meu assento foi feito de propósito para o ter
em cima e ele servir de almofada. Tu vais aqui por cima dos sacos do correio, por isso já tens
muitas almofadas.
- Bem, eu quero um pára-quedas. E se eu tiver de saltar?
- Consegues sempre tudo o que queres?
Desta vez admirou-se por se sentir levado a implicar com ela. Mesmo que ela fosse
uma menina mimada, não era sua obrigação reeducar meninas às onze horas da manhã. Será
que aos trinta e um anos se estava a tornar extravagante?
- Na escola, Miss Atcheson, a minha professora de Inglês, disse-me que eu levaria
um pára-quedas, por isso eu sei que devo levar um.
- Miss Atcheson está enganada. Não fornecemos pára-quedas aos passageiros,
porque saltar de um avião é muito perigoso e tem que se saber muito bem como se faz. Eu
nunca saltei de um avião e não é hoje que o vou fazer.
- É melhor que não.
A rapariga estava amuada e ele achou que ela precisava era de umas boas palmadas.
E contudo... e contudo havia algo de muito especial nela.
Era quase meio-dia, o Sol apareceu momentaneamente por entre as nuvens e ele
pensou no número de vezes em que já presenciara o mesmo espectáculo. No seu zénite, o Sol
seria visto através da parte menos densa das nuvens cerradas. Visto obliquamente a outras
horas do dia, parecia muito fraco ou desaparecido por completo.
Ou seria por timidez, pensou ele quando a sua passageira se voltou para o olhar.
Gostaria de partilhar esta interrogação com a rapariguinha, mas dito em voz alta por
um homem da sua idade podia parecer pateta. E Heather não tinha nada o aspecto de ser
pateta. Para a proteger do frio, que ele sabia que iam encontrar, pedira emprestado para ela um
fato de voo como o seu, um grande "urso", como era conhecido na profissão. Os pais de
Heather e toda a gente à volta tinham rido a bom rir ao tentarem vestir-lho.
- São precisos mais seis como tu para o encher - dissera o piloto.
Por fim, levara-a para o Stearman, porque ela não conseguia andar com o "urso"
vestido. Talvez tivesse sido o modo como ela pusera os braços à volta do seu pescoço e o
modo como os seus olhos azul-esverdeados o tinham olhado que o fizeram sentir a magia
dela. Talvez o fascínio que agora sentia por ela tivesse mais significado do que ele supunha.
Há quanto tempo ansiava pelo contacto de outro ser humano?
Agora, ao recordar-se do prazer de segurar aquela criaturinha amorosa, suspirou.
Tais recordações eram perigosas, avisou-se a si próprio. Podiam levar à
autocompaixão, que há muito conseguia evitar. Podiam levá-lo a outras recordações. Esticou
o braço no meio da deslocação de ar provocada pela hélice e bateu suavemente no capacete de
cabedal que emprestara à rapariga. Como era habitual, quando transportava ocasionalmente
um passageiro, tinha sido removida a cobertura de metal do receptáculo do correio. Ela fez-
lhe lembrar um pequeno pardal empoleirado nos sacos.
A criança voltou-se repentinamente e o piloto esperou não a ter assustado. Levantou
a sua mão enluvada num gesto que perguntava: OK?
Ela sorriu e acenou a cabeça com força. O capacete era largo demais para ela e ele
reparou que a deslocação de ar lho levantava da testa e incomodava uma madeixa do seu
cabelo louro. Achava que a faixa de sardas junto ao nariz lhe realçava a beleza e sentia-se
contente por lhe ler uma grande excitação nos olhos.
Desenhou com os lábios as palavras "Tens frio?" e tremeu para ilustrar a pergunta.
Ela abanou a cabeça e riu-se, embora não conseguisse ouvi-la com o rugido do vento. A mais
de cento e sessenta quilómetros por hora era como tentar manter uma conversa no meio de um
furacão. Estava frio. No mês de Dezembro, estava sempre frio nestas montanhas, e na sua
opinião, a esta altitude, a temperatura era inferior aos sete graus negativos marcados no
pequeno novo mostrador do seu painel de instrumentos. Porque é que não confiava nele? Por
ser novo? Confiava nos outros instrumentos dispostos à sua frente. Havia um velocímetro e a
agulha oscilava como que em alerta. O altímetro mostrava que o avião estabilizara a dois mil
e quatrocentos metros. Havia um instrumento para medir a velocidade na vertical, com a
agulha oscilando ligeiramente abaixo da horizontal, indicação de descida. O instrumento
mentia, provocado pelo seu hábito de pilotar o Stearman ligeiramente de nariz para baixo, o
que permitia aumentar a velocidade de cruzeiro.
Havia um indicador de volta constituído por uma bola que deslizava livremente,
como a bolha num nível de bolha, e um ponteiro conhecido como "o pau". Uma bússola
magnética, logo abaixo do pára-brisas, indicava a direcção e havia também um relógio que
neste Stearman não funcionava. Havia ainda instrumentos que lhe indicavam o estado do
motor, mostrando a pressão do óleo, a temperatura e as rotações por minuto.
Eram estes os instrumentos simples do seu avião, que juntamente com os comandos -
uma barra situada entre os seus joelhos (o manche) para manobrar os eixos vertical e
horizontal e dois pedais de direcção para comandar os eixos laterais - lhe permitiam levar o
aparelho a qualquer destino, desde que tivesse combustível. Como qualquer técnico
experimentado, ele confiava nos seus instrumentos, mas acima de tudo em si próprio.
A rapariga olhou de novo para ele. Viu os seus olhos inquiridores e os lábios
formando as palavras "Onde estamos?".
Desacelerou momentaneamente o motor e gritou:
- Ainda estamos sobre o Nevada. Daqui a uma hora estaremos sobre o Idaho. Ela
sorriu e olhou para baixo. Depois, olhou de novo para ele, que lhe viu o sorriso desvanecer-se.
Os olhos dela continuavam interrogadores, mas os lábios não se mexeram e pouco depois
virou a cabeça. Irritado, empurrou o manche com toda a força e alguma da sua desolação foi
abafada pelo roncar do motor. Porque é que tinha apostado tanto em convencer-se a si próprio
que, por qualquer razão, ela era diferente? Porque levara ela tanto tempo a ver o que todos
viam logo? Instintivamente, tocou com a luva no lado da face que sabia que nunca mudaria. O
lado direito mantinha os traços do jovem bem-parecido que fora há oito anos, mas o lado
esquerdo? A começar logo por baixo da linha do crânio, havia uma massa horrível de
cicatrizes tortuosas, aos altos e baixos, acentuada pela imobilidade do canto da boca. Fora o
melhor que os médicos tinham conseguido fazer a um rosto que fora esmagado até ficar uma
massa ensanguentada e depois queimado pela explosão de gasolina. Por milagre, o olho
esquerdo ficara ileso, mas não houve milagre de cirurgia que conseguisse substituir o que se
perdera no acidente naquela terrível manhã, há muito tempo atrás.
Logo depois de lhe tirarem as ligaduras, aprendera a apresentar ao mundo o lado
direito da sua face. O lado esquerdo fazia arrepiar as pessoas, e era ainda pior quando eram
excessivamente educadas. Quando isso lhe acontecia, o piloto pensava em Moravia - porque
Moravia compreendia. Fora aviador durante a Grande Guerra e também ele tinha sido
atingido. No entanto, o caso de Moravia era mais facilmente aceite. Ele apenas coxeava com
uma perna artificial. Não era como esta desgraça gerada num inferno.
Contudo, fora devido à compreensão de Moravia que o piloto tinha sido contratado.
Para Moravia, um rosto bonito e uma educação formal não eram requisitos necessários para
transportar correio aéreo. Ele queria era homens responsáveis.
Moravia era o responsável pela linha. Os Correios eram muito exigentes com as
companhias com que estabeleciam os contratos de transporte postal, e Moravia sabia que a
sua linha de correio - entre Pasco, no estado de Washington, e Elko, no Nevada - era a mais
difícil de todas. Manter os oito pilotos da linha activos e razoavelmente felizes era a missão de
Moravia. No ar, era da responsabilidade deles manterem-se vivos, mas sabia que detinha o
poder de vida ou morte sobre eles. Contratara os oito e estava consciente de que, para eles,
voar era uma necessidade vital e privá-los disso significaria a sua decadência e por fim a
morte interior. Moravia tinha relutância em usar o seu poder, mas, quando um piloto errava,
não hesitava.
- Primeiro ponto. Vocês trabalham para esta companhia e não devem meter-se em
sarilhos, nem no ar nem em terra. Segundo ponto. Seguem sempre para o vosso destino, a
menos que as condições atmosféricas o tornem absolutamente impossível. De outro modo,
serão despedidos.
Moravia era exigente, mas não era antipático. Preocupava-se quando um piloto
estava doente, comportando-se como uma mãe galinha com os sintomas e advertindo- o para
não voar se sentisse o mais pequeno arrepio.
- Voar já é suficientemente desconfortável - dizia muitas vezes. - Mas se ainda por
cima estiver a tremer com febre, como é que vai saber quando é que se deve assustar?
Moravia gostava dos seus pilotos e dos aviões em que voavam. Contudo, era
extremamente cuidadoso para não deixar transparecer os seus sentimentos. Devido à sua
deficiência, engordara. Fotografias do tempo em que pilotava os Nieuports em França
mostravam um jovem elegante, ainda que não muito alto e de olhar arguto, mas agora...
Agora, tinha uma barriga considerável. Usava óculos que, como detestava, estava
constantemente a pôr e a tirar e fumava caporals uns atrás dos outros. Cigarros de tabaco
preto, que mandava vir de França com grandes dificuldades e despesas consideráveis. Apenas
a sua voz profunda e vibrante deixava perceber que ainda era um homem novo.
Moravia nunca se referia aos pilotos em serviço pelos nomes; utilizava os números
da companhia pintados na cauda do Stearman em que voavam. Na sua cabeça, não havia uma
separação nítida entre o homem e o avião.
- O Sete muda para o Nove quando aterrar. A sua pressão do óleo está a subir.
Quando por fim o Sete aterrava, o espírito organizado de Moravia providenciava para que o
Sete se transformasse automaticamente no Nove.
Naquele momento, Moravia estudava o grande mapa de parede que representava o
território agreste e desolado sobre o qual voavam os seus pilotos. Havia grandes vales por
onde era relativamente fácil voar, mas a maior parte do percurso era sobre montanhas e
planaltos desérticos, ambos implacáveis. No Verão, o deserto era um forno e os pequenos
aviões eram sacudidos como cardos dançando no vento. No Inverno, ventos cruéis
acompanhados de nevascas saíam das ravinas ocidentais e açoitavam-nos durante todo o
percurso.
Moravia sentia-se um pouco insatisfeito com as poucas informações que acabara de
receber e tentou acalmar as suas suspeitas coxeando até à janela do seu escritório e olhando lá
para fora. Além era o aeroporto, ou "aeródromo", como ainda às vezes lhe chamava. Havia
uma manga de ar no topo do hangar adjacente à pequena construção que albergava o seu
escritório e uma sala de espera apertada para visitantes que tivessem negócios com a
companhia de aviação. Esta sala também servia para guardar o correio e de vestiário onde os
pilotos se contorciam para vestir os seus fatos de voo quando iam voar ou para os despir
quando aterravam.
Moravia compreendia que, quando um piloto acabava de chegar, passava por um
período de readaptação, um reatar necessário, e por vezes infeliz, da sua relação com a vida
em terra. Dependendo do homem, em geral levava cerca de meia hora para se libertar da
habitual euforia do voo e substituir as preocupações com o vento e as nuvens pelas
preocupações com a mulher, o dinheiro e a comida. Para mitigar os contrastes, comprara uma
máquina de café eléctrica e do seu próprio bolso comprava doces para complementar o
retemperamento. Não se preocupava muito se os pilotos apreciavam ou não o seu gesto.
Considerava ser parte do seu dever olhar pelo bem-estar deles quando cumpriam a sua missão.
Enquanto soprava fumo para a janela, Moravia olhou para o outro lado do campo,
para a torre de metal do farol rotativo, que fora recentemente instalado pelo Governo.
Assinalava a localização do aeroporto com uma luz intermitente verde seguida de outra
branca, durante a noite ou quando a visibilidade era má. Nada mais se avistava, excepto a
extensa e plana pradaria, agora oficialmente designada por Aeroporto de Pasco, e um tecto
cinzento de nuvens. Moravia concentrou a sua atenção no céu e na passagem rápida das
nuvens, que poderiam influenciar os procedimentos de voo. E lamentou dispor de tão poucas
informações.
Há uma hora recebera um telegrama avisando que o Catorze descolara de Elko com
cem quilos de correio e um passageiro. Do sexo feminino. O tempo estava bom, com algumas
nuvens altas. Um sol pálido brilhava nos intervalos. Não havia problema. Quatro graus
negativos. Demasiado frio para nevar. Nada mau, pensou. Mas que tais seriam as condições
atmosféricas ao longo da rota?
Havia sempre um vazio entre Elko e Pasco. Boise, no Idaho, era o marco de meio-de-
caminho, e aí os aviões de Moravia eram reabastecidos e o correio seleccionado e, por vezes,
mudavam-se os pilotos com destino ao Norte ou ao Sul. O tempo em Boise não se podia
considerar significativo de todo o percurso. Moravia telefonara para os Aeroportos de Boise e
de Twin Falls há duas horas para obter um relatório das condições atmosféricas. O tecto de
nuvens estava alto e a visibilidade diminuía em direcção a oeste. Viam-se rajadas de neve no
horizonte e o vento estava variável. Não era de molde a ficar descansado. Seria melhor
consultar um rancheiro em Rome, a oeste de Boise, que tinha uma boa panorâmica das
montanhas em redor e, mais importante ainda, telefone. Era solícito a fornecer informações
meteorológicas locais e em sinal de agradecimento
Moravia enviava-lhe, de vez em quando, uma garrafa de whiskey de contrabando do
Canadá. Mas esta manhã, apesar da sua insistência, ninguém atendera o telefone. "Basta de
pensar no tempo", cogitou Moravia. Depois, recordou que o Catorze era um bom piloto e
sensato. Não havia razões para se preocupar.
Ainda a fumar o seu cigarro, Moravia pensou que decididamente as coisas não lhe
cheiravam bem esta manhã. Não devia ter de mandar os seus pilotos para o desconhecido.
Assim, o fardo transferia-se deles para si próprio.
O piloto aliviou um pouco o seu peso do assento do pára-quedas e rodou o coldre um
pouco mais para a frente no cinto. Achava a pistola um incómodo, resquícios dos dias da
mala-posta, quando os bandidos supostamente perseguiam sempre o correio. Era uma 380
automática que ele nunca disparara. Mas eram obrigados a usá- la, segundo o regulamento dos
Correios, e Moravia zelava para que não houvesse infracções. Não dava ouvidos a quem dizia
que, em caso de aterragem forçada, a pistola seria quase inútil; em terreno selvagem, um
homem precisava era de uma espingarda.
- Vocês usam pistola porque os Correios assim o determinam. Não quero que os
inspectores, quando andarem por aí a rondar, descubram que vocês não os levam a sério.
Aparentemente, todos os transportadores de correio na América agiam do mesmo
modo, já que por todo o lado a pistola omnipresente se tornara o distintivo dos pilotos do
correio aéreo. A maioria achava que era ridículo andar com uma arma nos tempos que
corriam.
Os pilotos de Moravia também tinham sentimentos contraditórios relativamente aos
outros extras que ele insistia em incluir no equipamento. Para além de uma faca, ordenava que
levassem um alicate, uma chave inglesa e uma chave de parafusos.
- E se eu fosse a vocês - dizia num tom que não deixava alternativa -, levava também
comprimidos para as dores. Houve uma vez que eu teria dado a vida para ter apenas um.
Naquele momento, por qualquer razão, a pistola virara-se e espetava-se nas costelas
do piloto. Pensou que bem gostaria de a arremessar fora. "Será que vou ser assaltado? Aqui
em cima?"
Quando já estava de novo acomodado, tirou uma das luvas e meteu a mão no bolso
inferior do seu urso. Encontrou a faca e a tablete de chocolate que levava sempre para o caso
de necessitar de energias renovadas. Depois, lembrou-se de que não era naquele bolso. A
pastilha elástica estava no do outro lado, juntamente com as coisas que, no seu entender,
poderiam ser úteis numa aterragem forçada: uma caixa de fósforos, que, embora não fumasse,
trazia sempre; um pequeno fraco de iodo; um rolo de gaze; adesivo e um frasco de
analgésicos.
Cada aviador tinha a sua opinião sobre o que seria útil em caso de aterragem forçada.
Alguns levavam uma garrafa de whiskey, mas este piloto preferia reduzir ao mínimo o seu
equipamento de emergência. Utilizava o espaço livre no bolso para meter um pequeno bloco-
notas de cabedal, que actualizava cuidadosamente.
Continha diagramas dos campos e pastagens mais prováveis para aterragens de
emergência ao longo da rota e anotações meticulosas da altitude, extensão e características do
terreno.
Também anotara os acidentes circundantes: grupos de árvores, cabos eléctricos,
depósitos de água. Tinha ainda algures no bloco uma lista dos poucos aeroportos alcançáveis
dentro dos limites da rota do Stearman, com setas indicando as melhores aproximações em
condições de mau tempo. Voar ao longo do canyon até sobrevoar o lago que tem uma represa
de castores. Continuar durante um minuto e dez segundos. Voltar completamente à esquerda e
regressar à entrada do canyon. Voltar à direita e continuar a noventa graus durante oitenta
segundos. Bom prado para aterragem. Uns dezasseis quilómetros a pé até a um telefone em
Brogan.
O bloco-notas continha muitas outras indicações e esta compilação granjeara-lhe
bastante respeito entre os colegas. Sabiam o trabalho que representava e desculpavam- se
dizendo que tinham todas aquelas informações na cabeça. Alguns tinham começado a anotar
informações, mas, de uma maneira geral, eram incompletas, e o piloto julgava saber porquê.
Os outros ou eram casados ou tinham muitos amigos de ambos os sexos. Não compreendiam
a necessidade de alguém, que raramente tinha companhia, de manter as noites ocupadas.
Tirou o pacote de pastilha elástica do bolso e esticou-se outra vez no meio da
deslocação de ar. Bateu no capacete da sua passageira. Ela virou-se e sorriu quando viu a
pastilha elástica. Tirou uma e agradeceu com os lábios, e o piloto admirou-se com o prazer
que sentiu num acto tão simples. Meteu uma pastilha na boca e, enquanto mastigava, pensou
que a sua vida a bordo era muito boa. Aqui, nas alturas, tinha uma sensação de bem-estar que
não experimentava em mais nenhum lugar.
Depois do acidente e das terríveis chamas, era perseguido por uma sensação pérfida
de fracasso. O estudante morrera no acidente e não havia perdão. Desde cedo que o estudante
revelara pouco talento natural para voar. Deveria ter sido eliminado, e não encorajado por ser
um jovem simpático e ambicioso. Serviu de lição ao instrutor. Em pilotagem, a simpatia pode
ser fatal. Ainda hoje a dúvida dominava o piloto. Quantas vezes recordara todos os
pormenores do acidente e voltava sempre à mesma terrível resposta? Ele deveria ter de algum
modo evitado a tragédia. A sua culpa não desaparecia só porque um comitê de homens, que
não testemunharam a calamidade, o declarou posteriormente isento de culpa. O vento soprava
forte e o comandante da base talvez devesse ter cancelado todos os treinos, mas quem é que
de facto era responsável pelo único avião que caíra?
O avião fora apanhado por uma rajada de vento precisamente na altura em que o
estudante se preparava para a quinta aterragem do dia. A extremidade de uma asa bateu no
solo, o avião capotou e desfez-se em pedaços. Depois, só restaram as chamas, pó na sua boca
e a visão confusa de uniformes castanhos a correr. O piloto foi afectado de uma forma tão
singular que, passados quase oito anos, ainda se sentia à vontade no ar, mas uma vez em terra
parecia um falhado nato.
Esta manhã decidiu desviar-se da habitual rota norte para Boise, seguindo um pouco
mais a oeste. Havia estradas que serviam de referências de navegação ao longo do percurso,
tanto a leste como a oeste. A leste, as montanhas eram mais altas. Logo que passou sobre a
mina de Tuscarora, o piloto viu todo o horizonte coberto de nuvens densas e percebeu que as
possibilidades de as atravessar eram poucas. As montanhas de Santa Rosa, situadas a oeste do
planalto, apareciam de vez em quando por entre as nuvens; talvez ele conseguisse passar pelo
desfiladeiro a norte de Winnemucca.
Mesmo à sua frente, por cima de um planalto bastante elevado que cobria a ligação
das fronteiras de Oregon-Idaho-Nevada, o céu estava relativamente limpo e a distância entre a
terra e as nuvens era bastante razoável. O piloto estava certo de conseguir evitar as rajadas de
neve dispersas apenas com pequenos desvios. Por isso, prosseguiu sobrevoando dois ranchos,
que reconheceu. Mais longe, distinguiu uma fenda escura no planalto que sabia ter sido aberta
pelo rio Owyhee.
Se se mantivesse nesta rota, ia passar sobre o Little Owyhee e depois podia iniciar a
descida junto a Rome, no Oregon. Logo que passasse Rome, podia seguir uma estrada em
direcção a norte e por fim ir dar perto de Boise. O resto seria fácil.
Balanceou suavemente as asas do Stearman. Heather olhou para ele com os seus
olhos azul-esverdeados, perguntando se algo se passava. Ele apontou com a mão direita para
uma clareira lá em baixo. Ela espreitou pelo lado do cockpit e viu a manada de antílopes que
ele lhe apontara. O seu olhar deliciado compensou-o infinitamente. "Porque é que me sinto
tão ansioso por lhe agradar?", pensou. "Se eu pudesse estalar os dedos e chamar uma manada
de elefantes, fá-lo-ia. Faria qualquer coisa para ver de novo o calor daquele rosto."
De repente, viu-se reflectido no vidro que cobria o altímetro. Desviou de imediato o
olhar e ficou imóvel durante alguns minutos, escutando o barulho regular do motor. Em
breve, o dever interrompeu-lhe a meditação. Já passara uma hora desde que levantara voo e
agora o terreno encontrava-se coberto por uma espuma de nuvens baixas. Ele vira-as
aglomerarem-se gradualmente, formando um manto de nuvens imbricado em farrapos de
neve.
Várias alternativas se punham ao piloto. Desviar-se das rajadas de neve em direcção
a noroeste, uns cinco quilómetros, depois regressar para nordeste, pelo lado de trás, por igual
período de tempo. A seguir, voltar de novo à sua rota.
Aquele grande turbilhão, antecedente das tempestades de neve, poderia ser evitado
por um outro desvio para oeste, conquanto se mantivesse isolado. Seria preocupante se ele se
juntasse a muitos dos seus vizinhos que agora se multiplicavam no horizonte. Se se
transformassem numa parede espessa de nuvens, teria de pensar em regressar a Elko.
Moravia não ia gostar. O piloto pensou, para sua própria surpresa, que a opinião do
seu superior não era de importância crucial. A sua passageira ficaria decepcionada com o
regresso? Então! Desde quando é que uma miúda influía na rota de um avião?
Observava as rajadas que espalhavam um manto branco de neve sobre o planalto
quando começou a sentir o odor intenso de óleo sobreaquecido. Inalou o ar. Seria imaginação
sua? Tentou sorrir, lembrando-se de que os motores têm o hábito de entrar em "turbulência
automática" sob condições hostis. Pensou que esta devia ser a primeira anedota da
aeronáutica. Contudo... procurou vestígios de óleo na fuselagem e na capota do motor. Nada.
Olhou para o indicador da pressão de óleo. Estava só um bocadinho abaixo do normal. Talvez
o sistema de arrefecimento do óleo estivesse bloqueado. Esperou, inquieto. Olhou para trás,
por cima da cauda do Stearman. Havia algumas nevascas bastante dispersas e até com uns
raios de sol a penetrarem no céu nublado.
Seria fácil voltar a Elko. Probosky verificaria de novo o motor. Talvez uma válvula
tivesse colado, ou o carburador necessitasse de algum ajuste, ou fosse água no combustível
ou... qualquer coisa.
E se Probosky não encontrasse nada de errado? Daria logo a sua opinião, como só ele
sabia fazer.
- Estiveste a sonhar lá em cima? Este motor está a trabalhar como uma máquina de
costura.
Olhou para o acelerador. Tirou a luva direita para sentir melhor qualquer vibração
anormal. Sim, notava-se alguma, mas não fora sempre assim? Então, porque é que estava tão
convencido que havia mais vibração do que o normal? Moravia queria no cockpit pessoas que
pensassem objectivamente e não que fantasiassem. Observou o painel de instrumentos. A
pressão do óleo parecia a mesma, mas o vidro que cobria o painel oscilava tanto que
multiplicava os reflexos do seu capacete.
Pôs os óculos de protecção para cima e estudou os instrumentos um por um. Esticou-
se e fez pressão com a mão, tentando estabilizar o painel. Não havia dúvida. O ruído do motor
mantinha-se estável, mas a vibração aumentava. Sentiu um novelo no estômago. Todo o seu
corpo ficou hirto. Logo aqui! Um dos piores sítios.
Olhou para baixo e começou a dar uma volta. Reduziu ligeiramente o acelerador.
Talvez com o motor em menor rotação conseguisse regressar a Elko ou a qualquer outro sítio,
porque lá em baixo só se via um imenso deserto.
A rapariga, surpreendida com a pronunciada inclinação do Stearman, voltou-se para
ele.
- Não te preocupes - gritou, mas a sua voz foi abafada pelo ruído da corrente de ar e
do motor.
De repente, o Stearman estremeceu fortemente como se estivesse a lutar pela vida. O
piloto viu o painel de instrumentos desfazer-se e uma nuvem de fumo preto envolveu a
fuselagem. Cortou de imediato o combustível e desligou os magnetos. Pisou a fundo no pedal
esquerdo, inclinou a asa esquerda e apontou o nariz para baixo. O barulho da deslocação de ar
abrandou rapidamente até ficar apenas o zumbido baixo dos pendurais das asas. A seguir esta
rota sobre o planalto. De nada serviria queixar-se ao chefe principal dos Correios, nem mesmo
a um homem chamado Moravia.
Desviou os olhos dela, numa última tentativa de encontrar um outro caminho para
descer.
De súbito, gritou:
- Baixa-te o máximo que puderes entre os sacos do correio!
Sorriu como se entendesse exactamente o que se passava e de repente já só se lhe via
o topo do seu capacete.
- Cuida dela, meu Deus! - murmurou, enquanto o Stearman mergulhava nas nuvens.
Quando entrou na abertura e começou a descida final, todo o avião tremia no estranho ângulo
em que era obrigado a voar. Lembrou-se de repente da objecção habitual dos pilotos de
correio em levarem passageiros. Sozinho e em situação problemática, um piloto tem apenas
que soltar o pára-quedas e deixar-se descer suavemente até terra. Ficou satisfeito por se ter
esquecido de que trazia um pára-quedas.
Passados dois minutos, via-se claramente a encosta da montanha. A vibração dos
pendurais das asas parecia aumentar à medida que as rochas, árvores e arbustos se
aproximavam. Havia uma clareira. Não tinha comprimento suficiente para uma aterragem
normal, mas era de tentar. Havia dois pinheiros no caminho. Teria de se esgueirar por entre
eles. Bater-lhes com as asas talvez abrandasse o Stearman o suficiente para a fuselagem
conseguir sobreviver.
Aguentou a derrapagem até ver as cascatas de xisto argiloso que cobriam as rochas.
Nessa altura, elevou o nariz do Stearman, pisou a fundo o pedal da direita para sair da
derrapagem e esperou. Puxou o manche o mais para trás possível e apoiou uma das mãos na
fuselagem superior da carlinga. Os cabos das asas deram um último silvo e depois ouviu-se
apenas o som dissonante do metal contra a pedra e o som agudo de madeira a partir. O piloto
fechou os olhos e teve de imediato uma sensação de queda.
CAPÍTULO DOIS

Moravia puxava umas grandes fumaças do seu caporal enquanto revia o relatório de
voos do mês anterior. O mês de Novembro apresentava invariavelmente problemas com o
tempo, mas o relatório não era mau. Iria agradar aos Correios e à sua companhia, bem como
aos accionistas, que ficariam satisfeitos. Claro que os lucros não eram grandes. Ninguém que
fosse realista esperava grande lucro do negócio do transporte aéreo. "Pelo menos", pensou
Moravia, "de momento não temos prejuízos."
Não havia muitas companhias do sector que pudessem dizer o mesmo.
"Um negócio precário", era assim que Moravia avisava os investidores que o
abordavam com o sonho de arrancar com mais uma indústria, que em breve transportaria
enormes quantidades de carga. Na opinião de alguns, os transportadores aéreos em breve
começariam mesmo a transportar produtos como carvão e minério de ferro.
"Belo", pensava Moravia. "O nosso problema actual é conseguir uma carga de
correio suficiente para compensar os custos."
Moravia, tal como outros operadores de correio aéreo por contrato, via-se na
necessidade de transportar algumas listas telefónicas de um lado para o outro. Os Correios
pagavam ao peso. Havia que considerar o pagamento dos pilotos e dos mecânicos e não
esquecer o seu modesto salário.
O espírito de Moravia começou a derivar para assuntos mais pessoais. Qual era a sua
posição, depois de dez anos no ramo da aeronáutica. Tinha só uma perna, claro, mas nunca
lhe faltara uma refeição. Sempre tivera o conforto de um tecto e da sua divina Marsha. à parte
algumas preocupações inevitáveis, não era mau de todo.
Deu por si a pensar no Catorze, que era, em alguns aspectos, um homem de invejar,
embora o próprio discordasse disso se lhe perguntassem. Vivia sozinho, aparentemente era
um homem sem preocupações. Quando acabava o trabalho, podia fazer o que lhe apetecesse -
ir ao cinema, a um bar ou simplesmente voltar para o seu quarto e ler.
Moravia resmungou. Trocaria de lugar com ele? A resposta era sim e não. Está certo,
o Catorze era livre; deitava o trabalho para trás das costas quando ia para casa. Mas que é que
o esperava quando entrava naquele quarto, nas traseiras de um armazém de material
informático? Moravia fora lá uma vez, quando o Catorze tivera um grande ataque de
bronquite. Levara-lhe os jornais e um exemplar da revista de aeronáutica que trazia um artigo
sobre o novo plurimotor de três motores Ford.
- Um dia - dissera ao Catorze -, vamos tê-los na companhia, e pensei que gostaria de
ter a oportunidade de aprender qualquer coisa sobre eles.
Mas o Catorze voltara a cabeça para a parede, mantendo o lado bom da cara voltado
para Moravia, e dissera que esperava que ainda viesse longe o tempo em que o transporte de
passageiros fosse regular. Moravia teve a certeza de que ele estava a pensar no seu rosto e em
como lhe seria penoso exibi-lo perante qualquer grupo de pessoas. Recordou que, aqui se
aceitava o aspecto do Catorze, mas que era um problema quando enfrentava estranhos. Os
contactos mais amigáveis eram desencorajados à vista do lado acidentado da sua boca, que
aparecia permanentemente arrepanhada.
Moravia verificou que o homem vivia quase completamente isolado. O seu quarto
era tão nu que poderia ter sido a cela de um monge. A cama fazia lembrar a tarimba que
Moravia tivera em França. Havia uma secretária de madeira e um fato castanho-pardo pendia
de um varão que ia do lavatório até à porta. Havia também um par de calças largas e o
habitual blusão de cabedal coçado que quase todos os pilotos usavam como uma segunda
pele. Um telefone em cima da secretária e nada mais. O telefone era imposição da companhia,
e Moravia interrogou-se se alguma vez tocaria sem ser com as suas próprias chamadas.
Uma das poucas pistas para Moravia descobrir a personalidade dele fora-lhe dada
pela bibliotecária do bairro.
- Trata os livros como se fossem seres vivos - relatara ela. - Lê de tudo, desde Henry
James a Maugham.
Agora, olhando para o céu pesado pela janela do seu escritório, sabia que não
trocaria o seu lugar com o Catorze. Não podia haver grande prazer em ser-se livre quando se
limita a própria liberdade - ou os acontecimentos destruíram todas as esperanças de amor de
uma mulher. De facto, nada mais restava ao Catorze senão voltar o rosto, colocando-se de
modo que o mundo nunca encarasse a sua infelicidade. Um homem pode bem passar sem uma
perna, aliás o seu casamento era prova disso. Mas até a sua mulher, Marsha, inexcedível em
tolerância e simpatia,
tinha dificuldade em não se desviar quando encontrava o Catorze.
Moravia desviou o pensamento do piloto e dirigiu-se ao telefone. Esperava encontrar
o rancheiro que lhe daria as últimas notícias sobre o tempo a oeste de Boise.
O telefone tocou durante muito tempo, mas ninguém atendeu.

O Piloto lambeu os lábios e sentiu sabor a óleo. Abriu os olhos e viu o contorno
familiar do cockpit, mas com um aspecto completamente diferente. O pára-brisas estava
opaco em vez de transparente e por instantes analisou o desenho em forma de teia de aranha
das fendas do vidro. Então, percebeu o que se passava. Encontrava- se deitado com o rosto
assente num monte de xisto. Toda a fuselagem estava de lado e ele ainda estava amarrado ao
lugar.
Os seus pensamentos eram inconstantes. As faixas do pára-quedas picavam-lhe as
pernas, mas a dor era insignificante comparada com a constatação que o lado mau do seu
rosto, aquele que era a sua maldição há muito tempo, estava de novo esmagado contra o
planeta Terra. Sorriu mentalmente. "Que aterragem, velho desportista. Porque não tentas o
outro lado da próxima vez?" Então, repentinamente, lembrou-se de que não estava sozinho.
Ficou paralisado com o arrepio que lhe percorreu o corpo. Abriu rapidamente o cinto
de segurança. Com os dedos, encontrou o fecho do pára-quedas. Esgueirou-se para fora do
cockpit e ficou de joelhos. Esperou uns momentos, tentando convencer- se de que o que via
não era real. As asas amassadas do Stearman estavam abraçadas a duas árvores a mais de
cinquenta metros de distância. No meio, encontravam- se uma roda e um pneu, um bocado do
hélice e dois sacos de correio. Um dos sacos rompera-se e o seu conteúdo formava uma linha
até à cauda do Stearman,
que, à excepção do leme amassado e do estabilizador horizontal de um dos lados,
estava intacta. A fuselagem entre o cockpit e a cauda estava dobrada e enrugada, mas sem
grandes estragos.
O piloto susteve a respiração quando olhou para o receptáculo do correio, que
normalmente estava protegido por baixo da asa superior. Mal conseguia reconhecer o que via.
O bojo estava vergado para trás e jazia quase espalmado contra alguns sacos de correio.
Reparou que alguns dos sacos estavam manchados de óleo e pensou que os Correios não iam
gostar. Ele dir-lhes-ia: "Bem, que é que se pode esperar com um motor de quase quinhentos
quilos em cimadeles?"
O motor encontrava-se desmontado, virado de lado num ângulo incrível. Fora isso,
pensou, tinha bom aspecto. Bastava limpar um pouco de óleo e poderia ser vendido quase
como novo - se não fosse a má folha de serviço.
Um som que o deixou confuso perfurou-lhe os seus devaneios. A rapariga! Pelo
gemido fraco, percebeu que ela se encontrava perto dele, soterrada debaixo do bojo, algures
por baixo dos sacos e do motor.
Levantou-se, cambaleou um pouco e depois baixou-se junto ao motor. Ouviu a sua
própria voz como se fosse um ventríloquo chamando de muito longe.

- Meu Deus, faz com que ela não esteja ferida! Dou a minha vida por isso.

- Depois, dirigiu-se à sua passageira: - Não te preocupes, rapariga. Vou tirar-te daí
num abrir e fechar de olhos. É só preciso teres paciência. - Ficou furioso por não conseguir
lembrar-se do nome dela.
Como resposta, obteve apenas um grito sumido, tão baixo e débil que parecia um
pássaro ferido.
Puxando um saco do correio com toda a força, não conseguiu tirá-lo de baixo do
motor. Viu o pé dela por baixo de outro saco e pensou: "Meu Deus, por favor."

- Ouve, rapariga. - Como é que ela se chamava?

- Tenho de levantar o motor. É muito pesado e tenho de encontrar qualquer coisa


para fazer de alavanca. Por favor, espera um bocadinho, sim?

Afastou-se dos destroços aos tropeções e escorregando no xisto a tentar lembrar- se


do nome da garota. Seguiu por uma trincheira direita e pouco funda que verificou ter sido
cavada pela fuselagem ao cair. Decididamente, fizera um bom trabalho ao bater nas árvores
de tal modo que as asas foram arrancadas ao mesmo tempo. Evitara uma derrapagem, que
àquela velocidade poderia ter morto os dois.
Teriam embatido de lado na montanha. Assim, apenas tinham raspado. A trincheira
mais parecia ter sido feita com uma régua. O Stearman desacelerara relativamente devagar, e
naquela terrível confusão qualquer aterragem a que se pudesse sobreviver era preferível a um
embate descontrolado. Assim se dizia. E bem. A rapariga chamava-se Heather.
Encontrou um ramo partido pendente de uma das árvores e puxou-o até se soltar. Os
flocos suaves de neve que o acompanharam bateram-lhe no rosto e refrescaram-no. Ao
arrastar o ramo pelo xisto, evitou olhar para os destroços. A bem da verdade, pensou, infeliz,
ele não procedera correctamente. Se se tivesse mantido na rota habitual, em vez de se afastar
para oeste, teria terreno muito melhor para uma aterragem de emergência. Os outros pilotos
de Moravia teriam decerto mantido a rota regular, ou então voltariam para trás, aterravam e
explicavam a situação. Talvez até o motor tivesse dado para regressar a Elko. Agora, Moravia
tinha menos um avião.
Quando chegou perto da fuselagem, parou, tentando recuperar de uma tontura.
Congratulou- se por ter feito bem uma coisa. Ter dito à rapariga para se meter por baixo dos
sacos do correio, o que provavelmente lhe tinha salvo a vida. Provavelmente. Ele havia de lhe
sublinhar isso, porque, para conseguir explicar àqueles olhos tudo o que se passara, iria
precisar de muito crédito. Deus Todo-Poderoso, os pais dela não saberiam que voar não é
muito seguro e que uma coisa destas podia acontecer? "Meu Deus, faz com que ela não esteja
ferida!"
Combateu as vertigens e entalou a extremidade do ramo entre o xisto e o cilindro
inferior do motor. Aplicou toda a sua força e depois descansou tentando pôr os pensamentos
em ordem. Era obviamente impossível. Quatro homens podiam conseguir arredar o motor,
mas não um piloto cansado com a ajuda de um ramo de pinheiro.

"Quem é que julgas que és? Sansão?"

Fez força de novo sobre o ramo e viu o motor mover-se ligeiramente. Ou era só
imaginação? Deu a volta até à parte da frente da fuselagem, onde o motor estaria em
condições normais, e disse a si próprio para usar o cérebro, e não a força. Ajoelhou-se e
começou a escavar o xisto. Se trabalhasse bem, talvez conseguisse escavar o suficiente por
baixo dos destroços para retirar os sacos do correio. À medida que escavava, o xisto fazia um
barulho estridente ao deslizar pela encosta.

"Aqui estou eu", pensou, "esgravatando na montanha como um animal. Devia dizer-
se às pessoas que afirmam que gostam de voar que um dia, se forem estúpidas e tiverem
talento para cometer um erro na altura certa, acabam a tentar escavar um buraco na encosta de
uma montanha."
Removeu apenas alguns centímetros de xisto e parou. Chegara à rocha dura. Quando
o barulho arrepiante do xisto parou algures lá ao fundo, só se ouvia o seu respirar ofegante.

- Heather? - chamou suavemente. - Ouves-me?

O silêncio impressionou-o. Não, não. Ela estava bem. Tinha que estar. Pôs-se em pé
e dirigiu-se de mansinho até ao ramo de árvore, atento ao mínimo som vindo do receptáculo
do correio. Ocorreu-lhe um pensamento louco. Talvez ela própria conseguisse escavar para
sair, empurrar os sacos do correio. Deveria dizer-lhe, como se acreditasse nessa possibilidade:

"Ouve, Heather. Preciso da tua colaboração para te tirar daí, porque temos muito a
fazer antes de escurecer. Temos de construir qualquer coisa que sirva de abrigo para
esperarmos que o tempo melhore. Depois, podemos descer a montanha".

Ficou a olhar para o motor como se ele estivesse vivo e demorou um certo tempo a
perceber que o leve tamborilar que ouvira eram os flocos de neve a baterem na fuselagem.
Tirou o cinto com a arma. Tinha-se tomado incrivelmente pesada e esteve quase a arremessá-
la fora, mas pensou que talvez lhe viesse a ser útil. Se nevasse bastante e tivessem que ficar
aqui um dia ou dois, talvez conseguisse matar algum animal. Heather teria fome, como
acontece com todos os miúdos.
Ao colocar a arma em cima da fuselagem, ouviu um gemido fraco. Era quase um
som inumano e pensou que, se o ouvisse só mais uma vez que fosse, ficaria louco. Contudo,
detestava aquele silêncio absoluto e esperava impacientemente que ele terminasse. E quando
ouviu outro gemido, vindo da fuselagem, esqueceu de imediato o ramo e o seu próprio
equilíbrio instável sobre o xisto. Tomado de fúria, atirou-se ao motor. Segurou-o pelos dois
cilindros e, comprimindo o ombro contra o cárter, empurrou e abanou até sentir as pulsações
nas têmporas e a sua vista ficar nublada.
Não fazia ideia de há quanto tempo é que se debatia com aquela massa de metal
monstruosa, quando de repente percebeu que ela mudara de posição. Lutou ainda com mais
força, puxando para cima e empunhando, respirando penosamente o ar carregado de óleo.
Estava empenhado na acção com todos os músculos e fibras do seu corpo. Por fim, ouviu um
som metálico e percebeu que alguma coisa cedera. Empurrou com toda a força que lhe restava
e o motor saiu de cima dos sacos de correio. Caiu sobre ele, ainda incrédulo na sua vitória,
ansioso por apanhar ar. Momentos depois, levantou os sacos do correio e viu a sua passageira.
Estava deitada de costas, estranhamente torcida, mas tinha os olhos abertos. Ajoelhou-se junto
dela e limpou-lhe os flocos de neve da testa.

- Agora já estás bem?

Esperou que ela começasse a chorar, mas não. Em vez disso, fixou nele os seus olhos
inseguros e disse:

- Não me parece.

- Consegues levantar-te com a minha ajuda?

- Não sei. Se calhar... As minhas costas.

Enfiou-lhe uma das mãos por detrás do pescoço e a outra por baixo das pernas. Se ela
se conseguisse pôr em pé. Mal lhe levantara as pernas, quando ela gritou de dor.

Imediatamente a sul do deserto de Black Rock, perto do lago de Winnemucca, no


Nevada, o centro de baixas pressões adensava-se. Movia-se lentamente para nordeste,
atravessando as montanhas nuas e vales desérticos, onde muito poucos rancheiros conseguiam
viver. O mau tempo fazia-se anunciar por rajadas de neve que caíam em colunas branco-
acinzentadas.
Depois das rajadas de neve, vinham os ventos e os nevões muito fortes, que em breve
envolviam os picos das montanhas e transformavam os vales e os campos numa paisagem
quase irreconhecível. As ravinas eram as primeiras a desaparecer, seguidas dos afloramentos e
finalmente dos pequenos rios. Pouco depois, apenas se via uma vastidão branca que cobria a
natureza adormecida.

Moravia encontrava-se a uns seiscentos quilómetros a norte, em Pasco, e a


especulação inquietava o seu espírito organizado. Detestava desconhecer o que achava que
devia saber. Chocava-o que nos tempos que corriam, em Dezembro de 1928, nos Estados
Unidos da América, país supostamente civilizado, ele estivesse limitado por tanta ignorância.
Os dias da expedição de Lewis e Clark pertenciam ao passado, e os poucos índios que
habitavam as terras sobrevoadas pelos seus aviões eram pacíficos. Havia auto-estradas e
linhas de caminho de ferro, contudo ele sentia-se como um major de cavalaria preso a um
forte de madeira. Os seus companheiros de armas podiam estar mais bem instruídos com
algumas tropas a galope para lhe trazerem informações.
Há uma hora que Moravia telefonava repetidamente para o seu rancheiro favorito
sem sucesso. Era um toque desencorajante, repetitivo e monótono, que parecia escarnecer da
sua ansiedade crescente. O Catorze só devia aterrar em Boise daí a uma hora, por aí não havia
preocupações, mas o número Oito, com o correio para sul, devia levantar dentro de vinte
minutos. O Oito estava à espera da chegada do caminhão com o correio e já vestira o seu urso.
A questão era: o Oito devia levantar? Se tivesse que voltar para trás com a carga, o
chefe dos Correios ficaria muito aborrecido. Se se verificassem muitos atrasos durante o ano,
havia fortes possibilidades de cancelamento do contrato, e isso seria o fim de Moravia e de
toda a linha. A alternativa era enviar o correio pelo comboio, o que era uma confissão de
incompetência embaraçante que deixava os caminhos de ferro a rir e os burocratas a achar que
era melhor confiarem no cavalo de ferro.
Com bom tempo, o avião da manhã partia com o correio às 11 horas e não havia que
enganar. O problema era que o comboio, quando andava a horas, partia às 11 e 40. Com o
tempo incerto, se Moravia demorava a decidir, o correio podia perder o comboio. O resultado
seria uma gritaria imediata com acusações sobre todos os voos. O Chefe dos Correios ficaria
furioso com o atraso de um dia e descarregaria a sua raiva primeiro contra Moravia e depois
contra os caminhos de ferro. As pessoas dos caminhos de ferro manteriam a sua atitude
habitual de distanciamento relativamente a tudo o que tivesse a ver com os transportes aéreos,
enquanto simultaneamente censuravam os Correios por a carga chegar tão em cima da hora de
partida do seu precioso xuxu.

"Um problema enorme", pensou Moravia, acendendo outro caporal.

O fumo do tabaco áspero provocou-lhe um ataque de tosse, que no entanto o


incomodava menos que o seu actual dilema agora muito recorrente. As condições climatéricas
entre Pasco e Elko eram as verdadeiras culpadas. O rancheiro que costumava dar notícias do
tempo na sua zona devia ter ido para a Florida, mas ele necessitava mesmo de saber o estado
do tempo ao longo de todo o percurso. Quando o Catorze regressasse, faria um relatório
completo, mas nessa altura as suas informações já teriam passado à história. Podia ter estado
bom para ele no Sul, mas na altura em que o Oito alcançasse as mesmas regiões podia estar
péssimo. A solução, obviamente, era o contacto directo terra-ar. Moravia soubera que havia
algumas instalações experimentais no Leste, mas era tão raro conseguir-se uma comunicação
nos dois sentidos que não valia os custos. Talvez um dia. Talvez um dia as portas do paraíso
se abrissem e aparecesse um carola que desse mais importância ao desenvolvimento das
condições de voo que ao lucro imediato.
O mesmo carola, inteligente e imaginativo, teria estado na Europa, onde por todo o
lado os aviões transportavam o correio, e entre Londres, Paris, Berlim e Moscovo
transportavam cerca de catorze passageiros a quem serviam um almoço em toalhas brancas de
linho, com vinho e todos os requintes. Ainda estava para aparecer uma companhia americana
que pensasse nisso a sério.
Moravia viu, pela janela do seu escritório, o camião do correio chegar. Eram
precisamente 10 e 40. A hora de decisão chegara e o facto de o camião trazer uma carga
excepcionalmente pesada não facilitava a decisão. "Dinheiro!", pensou Moravia.
Uma carga que dava bom dinheiro era sempre a mais difícil de desviar.
Moravia já esperava que lhe batessem à porta. Era o número Oito, oriundo da
Carolina, gentil e bem-falante, de nome Manigault; parecia perdido no meio do seu enorme
urso. Era um perfeito cavalheiro, atributo que Moravia apreciava. Gostaria de saber que
decisão tomara Moravia, embora ambos soubessem que a decisão não era só dele. Se
Manigault não quisesse descolar e tivesse boas razões, a sua palavra era a última. Era um
código implícito, sabendo-se que não havia penalidades nem recriminações contra o piloto
relutante. Este código não se aplicava a quem arranjasse repetidas vezes razões para não voar.
Moravia sabia bem que havia alguns capazes de evocar o tempo como pretexto para poderem
ir para a cama com a última conquista. Estava convicto de nunca ter sido levado por nenhum
desses velhacos.
Manigault perguntou:

- Pego no trabalho hoje?

- É consigo. Em Elko, o tempo está bom, uns duzentos quilómetros com rajadas de
neve. Em Boise, está céu limpo e há visibilidade entre os nevões, mas não posso saber como
estará pelo caminho.

Manigault inclinou-se um pouco para olhar melhor pela janela. Então, como se
conseguisse ver para além do horizonte, disse:
- Parece-me bom. Desviar-me-ei um pouco se for necessário.

- Veja se vê o Catorze. Deve cruzar-se com ele.

Manigault enfiou o capacete e os óculos de protecção. Enquanto abotoava o urso,


disse:

- às vezes, gostava de estar de novo na Carolina. Lá, de manhã, sabe-se perfeitamente


como vai estar o resto do dia. Mas nesta região...

Manigault não chegou a acabar a frase e Moravia sabia porquê. Manigault e todos os
outros sabiam que Moravia não suportava lamentações. Para os homens da raça dos seus
pilotos, voar era quase tão necessário como respirar. Eles não sabiam o que significava perder
esse privilégio, como acontecera a Moravia, mas se resmungavam com qualquer coisa, sabiam
que os esperava uma séria repreensão. Lembrava-lhes que voar não é para bebés. Também
lhes recordava que mais de quarenta pilotos tinham morrido a transportar correio e vinte e três
haviam ficado seriamente feridos desde que o serviço começara. Mas se preferiam ser
talhantes, padeiros ou fabricantes de velas, tinha muito prazer em lhes mostrar a porta e lhes
oferecer como recordação um cabide para pendurarem o capacete e os óculos de protecção.
Instava os seus homens a conhecerem os cursos de água, montanhas e clareiras ao longo dos
seus percursos, em vez de desperdiçarem energia com queixumes.
Esses conhecimentos poderiam vir a revelar-se úteis quando os mapas que usavam se
revelavam deficientes em informação.
Este era o primeiro ano em que operadores privados estavam no transporte aéreo de
correio, e agora que o trabalho já não estava na esfera do Governo, Moravia tencionava provar
que se podia melhorar o índice de segurança.

- Se me der as suas pernas, então dou ouvidos às suas queixas - gostava ele de dizer.
- Mas se se matar por negligência, dificilmente terá a minha consideração.
Pode estar certo de que a minha carta para os seus familiares será verdadeira e não
elogiosa. Não me obrigue a dizer que estava tão preocupado em encontrar defeitos em tudo
que não conseguiu aperceber-se dos seus próprios defeitos.

Por isso, o burro embateu numa nuvem cercada de rochas.


CAPÍTULO TRÊS

Era quase noite e o piloto ainda não acabara tudo o que achava que tinha de fazer.
Nos seus ouvidos, ainda ecoava o som terrível dos gritos de Heather, e resolvera não
a tirar dos destroços até chegarem socorros. Desde que se mantivesse quieta, parecia
suficientemente confortável, mas passava-se algo de muito grave com as suas costas, e o mais
leve movimento era uma tortura óbvia.
Decidira construir o abrigo à volta de Heather e dispusera os sacos de correio em
jeito de fundação. Embora cheirassem a óleo e a gasolina, serviam de barreira contra as
cortantes rajadas de neve. Durante toda a tarde, a neve aumentara e nesta altura já lhe dava
pelos joelhos.
Arrancara grandes bocados das asas partidas do Stearman, fixara-lhes as pontas com
xisto e pedras e estendera-as sobre a fuselagem retorcida. Abrira o pára-quedas e cobrira com
ele a cauda e o motor. Daí resultou uma tenda que até podia ser considerada confortável
noutras circunstâncias. Era quase noite quando analisou o seu trabalho. Por momentos,
quando olhou para aquela estrutura tão frágil, quase desanimou. Qualquer vento moderado
levaria pelos ares aquela coisa louca e admirava-se de ter conseguido tão pouco ao fim de
tanto trabalho.
Convencera-se a si próprio de que a altitude era decerto a causa do seu cansaço. Mas
agora pensava ter descoberto a verdade. A exaustão, aquela vontade de se deitar e dormir, era
fruto dos seus medos. Agora que acabara o trabalho físico, encarou a verdadeira situação. E o
que se lhe deparou era desanimador.
Estava de pé no meio da neve, que se amontoava rapidamente. Uma montanha do
estado do Nevada completamente coberta de neve, ou seria que não estava no Nevada?
Talvez tivessem voado até mais longe do que pensava e atravessado a fronteira do
estado. Sabia que se encontrava aproximadamente a uma hora de Elko, uma informação que
agora não lhe servia de muito.
Era um estranho perdido numa terra hostil. Como companhia, tinha uma garota
indefesa, cujos olhos lhe diziam que punha o seu futuro nas mãos dele. Não havia maneira de
fugir àqueles olhos, que diziam: "Sei que estamos em grandes dificuldades, mas hás-de
encontrar uma solução."
Pelo menos, pensou, a esta hora Moravia devia ter a certeza de que ele desaparecera
e já teria organizado uma busca. Mas quem havia de vir procurar aqui, fora da rota habitual?
Olhou para as árvores que cobriam a encosta da montanha e apercebeu-se de que elas
o tornariam quase invisível do céu, a menos que o piloto voasse exactamente sobre o lugar e
olhasse para baixo no momento certo. Até os bocados do avião seriam difíceis de ver,
espalhados sobre a neve como estavam.
O piloto fez uma pausa para avaliar os seus recursos. Havia uma tablete de chocolate,
que ele daria a Heather aos bocados. No escuro, ela não ia perceber queele não comia.
Apaziguaria o seu apetite com uma pastilha elástica e ainda restavam quatro no pacote. Havia
uma caixa de fósforos cheia, mas ainda não apanhara lenha. Esperava fazer explorações no
dia seguinte.
Dera a Heather um dos comprimidos para as dores e ainda restavam nove. Gastara
metade do frasco de iodo nos golpes do rosto da pequenita e no seu braço esquerdo, que tinha
um corte medonho. Durante o impacte, a manga do seu urso tinha subido e o xisto cortara-lhe
a carne. A ferida já não sangrava e estava envolvida em gaze.
Ajoelhou-se e esgueirou-se para dentro do abrigo. Os últimos raios do dia passavam
através do tecido do pára-quedas e viu que Heather tinha os olhos abertos.

- Pensava que estavas a dormir.


Ela não respondeu, e o piloto pensou que, se ela deixasse cair uma lágrima, teria de
arranjar uma desculpa para ir até lá fora um bocado.

- Já te deste conta de que deves ser a única rapariga no Mundo a possuir uma tenda
de seda?

Ela olhou-o fixamente. Havia acusação naqueles olhos? Ou a ausência de expressão


devia-se ao comprimido?

- Tens dores?

Ela abanou a cabeça muito ligeiramente.

- Posso fazer alguma coisa para te sentires melhor?

- Tenho frio.

Despiu o seu urso e aconchegou-o à volta dela. Heather protestou, dizendo que não
queria que ele passasse frio.

- Estou cheio de calor - disse ele. - Tenho estado a organizar as nossas coisas.

- Se vamos ficar acampados toda a noite, não é possível fazer uma fogueira?

Toda a noite? Já teriam muita sorte se recebessem auxílio dentro de uma semana.

Ele explicou-lhe que não acendia uma fogueira na tenda porque o depósito de
combustível do avião ainda se encontrava no sítio e estava a pingar lentamente. Talvez de
manhã arranjasse uma maneira de separar o depósito da secção central.

- Amanhã faço uma fogueira lá fora para derreter a neve e termos água. E agora o
menu. Para entrada, temos um pudim de chocolate especial, que podemos acompanhar com
champanhe de neve. A sobremesa, se te portares bem, pode ser uma pastilha elástica.
Fez-se silêncio entre os dois. O piloto escutava o cair da neve por cima da sua cabeça
e pensou que ia ser uma noite comprida. Estava escuro no abrigo. Tirou as luvas e procurou
no bolso do seu urso a tablete de chocolate. Partiu um pedaço e colocou-o na mão de Heather.

- Aqui está o jantar. Mastiga devagar para durar mais. E no fim não te esqueças de
dobrar o guardanapo.

Ouviu-a mastigar; depois de acabar, comentou:

- Você é um bom cozinheiro.

- Não estará tão bom como a tua mãe faria, mas por agora tem de servir.

- A minha mãe deve estar preocupada. Virá alguém procurar-nos?

- Vem.

- Esta noite? Não conseguem encontrar-nos de noite, pois não?

- Não. Amanhã, logo que nascer o dia, começam a procurar.

O piloto já os estava a ver - seis aviões da companhia e alguns da Guarda Nacional.


Contudo, dirigiam-se para leste, seguindo a rota habitual. Não procurariam na zona certa.

- Possivelmente - disse ele, admirando-se por mentir tão facilmente -, possivelmente


encontram-nos amanhã.

- E depois?

É verdade. E depois?

- Alguém vem buscar-nos.


- Se eu me conseguisse mexer, podíamos descer a montanha. Eu estou bem se ficar
completamente imóvel, mas quando me mexo mesmo só um bocadinho... bem...

- Amanhã vais estar muito melhor.

- Espero que sim. Posso dizer-lhe uma coisa? Tipo confidencial?

- Eu sou o teu melhor e único ouvinte. E os meus lábios estão selados.

- Tenho de... Percebe... de ir...

- Oh! Só um momento. Devia ter pensado...

Tacteou à procura das luvas, encontrou-as e rastejou lá para fora. Lembrava-se de


que, algures nos destroços, havia uma parte da carlinga. Encontrava-se normalmente entre a
fuselagem e o motor, mas tinha sido separada e ficara bastante torcida com o impacte.
Caminhou com dificuldade pela neve em direcção às asas retorcidas e a meio do caminho
bateu com a bota numa coisa dura. Baixou-se e apanhou o bocado da carlinga.
Completamente às escuras, colocou um joelho sobre o bocado de metal e, apoiando nele todo
o seu peso, torceu-o até formar um recipiente grosseiro. Levou-o para o abrigo e entrou a
rastejar.

- Sou eu. A enfermeira de serviço. Agora faz das tripas coração e deixa-me colocar
isto debaixo de ti.

Tacteando no escuro, ouviu-a ofegar várias vezes, mas por fim ficou em silêncio e
ele perguntou se podia retirar o recipiente.

- Pode - murmurou ela. - Estou tão envergonhada.

- Não estejas. Eu sou teu amigo.

Quando rastejava para a saída, ouviu-a dizer baixinho:


- Obrigada. Você é uma pessoa muito bonita.

Ainda bem que estava tão escuro, pensou ele.


Mais tarde, deitou-se ao lado dela, sentindo a sua proximidade e tentando não pensar
na situação de ambos. Talvez amanhã não lhe doesse a cabeça. Iria concentrar- se em sair da
montanha.
Não conseguia dormir. Vinham-lhe à cabeça pensamentos em catadupa. Porque
dedicara tanto da sua vida a voar? Poucos homens de negócios morrem às secretárias e poucos
agricultores são atropelados pelos seus tractores. Voar era bem pago, mas ele não conhecia
nenhum piloto que voasse apenas pelo dinheiro. Conhecia alguns pilotos com modos um
pouco estranhos, mas não eram temerários, e se alguns deles pensavam na possibilidade de
virem a morrer num avião, nunca o referiam. Apenas Moravia mencionava essa possibilidade
de vez em quando, mas fazia parte da sua função.
Deixou de se ouvir o barulho da neve a cair, e o piloto percebeu que a fuselagem
devia estar densamente coberta. O silêncio era quase sufocante. No entanto, era saudável. Não
queria imaginar o que seria estar na montanha se se levantasse muito vento. Encontrava-se
deitado num pedaço de tecido, tendo como almofada um saco de correio. Mudou ligeiramente
de posição, só para ouvir o ranger familiar do seu blusão de cabedal. Ao menos era um
barulho. Daí a pouco, ouviu a voz abafada de Heather:

- Está acordado?

- Sim. Estás bem quente?

Não se atreveu a perguntar-lhe se tinha dores.

- Estou, estou. Tenho estado a pensar. Como é que se chama?

- Jerry.

- Mister Jerry? A minha mãe diz que eu devo tratar as pessoas mais velhas por
senhor ou senhora.

- Trata-me apenas por Jerry.


- Penso que não faz mal nenhum fingir que sou adulta.

- Porque havia de fazer? Eu começo a achar que és mesmo.

Ficaram em silêncio durante bastante tempo, e ele esperava que ela tivesse
adormecido quando ouviu de novo a sua voz, soando ainda mais fraca. "Meu Deus, ela não
pode estar a morrer", pensou. "São só as costas."

- Eu tenho a roupa toda - disse ela. - Você deve ter frio.

- Não. Já dormi centenas de vezes com este casaco.

- Como se chama a sua mulher?

- Não tenho mulher.

Seguiu-se outro silêncio, depois ela perguntou:

- Já morreu?

- Não. Nunca fui casado.

- Porquê?

Esta, decidiu ele, era uma pergunta a que não se sentia obrigado a responder.
Como é que conseguiria dizer: "Ouve, pequenina. Talvez não tenhas olhado bem
para mim. Como é que suportarias olhar para uma cara destas durante um dia inteiro? E para
se encontrar mulheres, primeiro tem que se conhecer raparigas e não é no céu que se
encontram. É nas igrejas ou nos bares, dependendo do tipo, ou em qualquer outro lugar onde
as pessoas se reúnem porque se sentem melhor acompanhadas. Bem, eu tentei algumas vezes
depois do acidente e vi o que aconteceu.
As pessoas apertavam-me a mão e até tentavam fazer conversa. Passavam o tempo
todo a olhar para todos os lados menos para mim e arranjavam outra companhia logo que
podiam. E eu não as censurava. Assim, no interesse do bem-estar público, decidi incomodá-
las o mínimo possível."
Aclarou a voz, como se estivesse a meditar a sério na pergunta de Heather, e disse:

- Não sei porque nunca me casei. Acho que foi por estar demasiado apaixonado pela
minha profissão.

- Pelo menos é bom estar apaixonado por alguma coisa.

- És muito sensata para a tua idade.

- Mas já alguma vez esteve mesmo, mesmo apaixonado por uma rapariga?

Isso era outra coisa que ele não estava interessado em discutir com um estranho, e
nos últimos oito anos, depois do acidente, parecia que toda a gente pertencia à classe dos
estranhos. Não estava disposto a pensar em Sally, e muito menos a falar sobre ela. Contudo,
só porque uma garota fizera uma pergunta que pensava ser inocente, aqui estava Sally
impondo-se mais uma vez nos seus pensamentos.
De nada valia negar que estivera profundamente apaixonado por Sally e,
independentemente do desfecho, não deixaria que nada estragasse a recordação dos tempos
felizes que tinham passado juntos. Lembrou-se de um fim-de-semana em San António em que
Sally dissera quase exactamente as mesmas palavras que ouvira ainda há pouco: "És um
homem muito bonito."
Mas agora sentia que elas tinham outro significado, porque Sally estava mesmo a
olhar para o seu rosto. Nesse fim-de-semana tinham decidido casar-se "durante o mês de
Outubro". Sally ainda andava a escolher a data quando se deu o acidente.
Já estava há um mês no hospital quando lhe disseram o pior sobre as lesões do seu
corpo e a devastação da sua cara. Era um homem feito de ferros e parafusos, e quando se
obrigou a olhar para o espelho, não reconheceu o homem artificial que viu.
Sally não fugira da calamidade. Sugeriu que se casassem mesmo no hospital. Mas os
seus olhos eram explícitos: "Vou para a frente com isto porque é a única coisa decente a
fazer." Sally merecia um homem completo. Olhou-se de novo demoradamente ao espelho e
decidiu-se com relativa facilidade. Uma mudança súbita de ideias, explicara.
- Desculpa, Sally. Pensei bem e concluí que não iria resultar agora.

Para Sally, abandonar alguém em desgraça era impensável. Dera-lhe algum trabalho
desencorajá-la. Durante uns tempos, foi ao hospital regularmente, mas ao fim de dois meses
desistiu e simplesmente desapareceu. Soube por um companheiro que ela fora para Chicago e
se casara com um repórter.
Voltou-se no escuro e disse:

- Heather, como é que uma rapariga da tua idade faz essas perguntas? Que idade tens,
afinal de contas?

- Onze, quase doze. Pensa que eu ainda brinco com bonecas?

- Bem, eu não sou muito conhecedor dos hábitos das jovens senhoras, porque a
minha vida tem sido um pouco diferente da da maioria das pessoas.

- Gostava que me falasse da sua vida.

- Porquê, meu Deus?

- Se eu o estiver a ouvir falar de qualquer coisa, talvez as minhas costas não me


doam tanto, porque o meu cérebro não será capaz de se preocupar com duas coisas ao mesmo
tempo. É o que a minha professora passa o tempo a dizer. Não sejam estouvadas. Não tentem
pensar em muitas coisas ao mesmo tempo. Ela diz que devemos aprender a concentrar-nos, e
se eu conseguir concentrar-me em si, então não penso nas minhas costas. Não sei se me fiz
entender.

- Gostava de poder ser mais útil - disse ele. - Será que era melhor se eu te voltasse de
lado? Terei muita cautela.

Ela hesitou.

- Acho que é melhor tentar, porque me parece que estou a piorar.


Movendo-se com cuidado para, no meio da escuridão, não lhe bater, esticou os
braços até encontrar a anca dela.

- Vamos lá com cuidado.

Enfiou-lhe uma das mãos devagar por trás do pescoço e disse-lhe que respirasse
fundo. Depois, virou-a com muito cuidado para si. Por instantes, pensou que tudo iria ficar
bem. Sentiu a respiração dela no seu rosto e deu-se conta, com súbito prazer, de que nesse
momento estava próximo de Heather como nunca estivera de outro ser humano nos últimos
oito anos. Ela recomeçou a respirar e deixou escapar um pequeno grito.

- Oh, não... não! Por favor, largue-me.

Pousou suavemente as costas dela na posição original e esperou que os soluços


diminuíssem.

- Deixa-te estar assim. Tenta descansar esta noite. Amanhã de manhã pensamos
numa solução.

- Dói tanto, mesmo quando me mexo só um milímetro.

Tocou-lhe no rosto e sentiu-lhe as lágrimas. Limpou-lhas e continuou a acariciar-lhe


o rosto.

- Não quero dar-te outro comprimido se conseguires passar sem ele.

- Porquê?

Ao ouvir a sua respiração entrecortada de gemidos, pensou como é que se atreveria a


dizer-lhe que amanhã podia precisar ainda mais dos comprimidos. Se não chegassem socorros
e por algum esforço milagroso conseguisse levá-la até onde pudessem ter ajuda, talvez para
isso os comprimidos fossem indispensáveis.

- Muitos comprimidos fazem-te mal.


- Quem me dera conseguir adormecer.

- Vais conseguir. Dói se eu te massajar a parte de trás do pescoço?

- Acho que não.

A voz dela era tão fraca que mesmo com aquele silêncio mal a ouvia. Com os dedos,
fez-lhe pequenas massagens em círculos no pescoço.

- É bom, Heather?

- É... É...

Enquanto os seus dedos se moviam e ela se ia acalmando, começou a falar com uma
voz baixa e suave. Algum tempo depois, percebeu que ela estava a ficar menos tensa e que a
sua respiração era regular.
Há tanto tempo que não falava longamente com alguém que agora lhe parecia
estranho.
Havia tanta coisa que gostaria de partilhar e os seus pensamentos pareciam seguir-se
em turbilhão.

- Parece-me que não há muito a dizer sobre a minha vida, Heather. Nasci, cresci e fui
fazendo amigos. Ainda vou sabendo notícias de alguns deles, mas as pessoas mudam, cada
um segue o seu caminho, e desde que ando a voar parece que as pessoas com quem andei na
escola não falam a mesma língua. Agora tenho um amigo muito especial, embora suponha
que ele não me considera como amigo. Chama-se Moravia, é o meu chefe e é muito difícil de
explicar o que sinto por ele. O facto de ele só ter uma perna deve ter contribuído para me
contratar. No dia em que ele me disse que eu ficava com o emprego... bem, nem consigo
dizer-te o que isso significou para mim. Já tinha corrido tudo o que era companhia de aviação
neste país e todos eles olhavam para mim como se eu fosse um fantasma e me diziam que
tinha muita sorte em estar vivo. Ofereciam-me trabalho em terra, mas não queriam que
voasse. Moravia não ficou assombrado com o meu aspecto, e quando se encontram pessoas
assim, apetece ficar com elas e fazer o melhor por elas. Moravia é um homem estranho.
Quanto mais o conheço, menos o conheço.

O piloto não fazia ideia de há quanto tempo estava a falar. Entrou numa espécie de
transe ao falar dos seus primeiros tempos de voo. Contou-lhe quando os seus pais o levaram a
uma feira no Nebraska, onde vira um pequeno avião amarelo a voar. Olhando para cima,
boquiaberto de espanto, ele viu a luz do Sol através das asas e pintado sobre elas, de modo
que toda a gente pudesse ver, o nome do piloto - Seechy. Achou a pequena máquina voadora a
coisa mais bonita que jamais vira e ali mesmo jurara que havia de voar um dia. Mais tarde,
um homem chamado Sloniger ensinou-o a voar num Jenny, que comprara logo a seguir à
guerra. Sloniger transportava o correio com Lindbergh, antes de este se tornar tão famoso, e
ainda hoje voava algures no Leste.

- Por todo o país havia as habituais digressões, para norte com o sol no Verão e para
sul com os pássaros no Inverno... Uma vida de ciganos, Heather, sem grande interesse.
Depois, o Exército precisou de instrutores para os treinos de iniciação de voo. Era um
trabalho seguro e bem pago e eles empregavam civis quando os achavam de confiança e
estavam sóbrios durante o dia.

O piloto compreendeu por fim que estava a falar sozinho, porque a respiração da
rapariga se tornara regular e ela estava calada há muito tempo. Retirou suavemente a mão do
pescoço dela e murmurou:

- Obrigado, garota.

Inclinou-se até a sua boca retorcida quase tocar na face dela, e toda a necessidade de
afecto que sentira durante oito longos anos ajudou os seus lábios a formarem um beijo suave.
Afastou-se de imediato, como se tivesse feito uma coisa muito errada.
CAPÍTULO QUATRO

Moravia estava admirado consigo próprio por ter decidido dormir no escritório.
Que gesto sentimental, imperdoável! Durante a noite, não podia fazer nada e os
contactos disponíveis tinham sido feitos antes de escurecer.
Todas as informações haviam sido desencorajantes. Elko: o Catorze levantara com
uma hora de atraso. Não voltara para trás, nem Elko conseguira obter qualquer informação da
parte das poucas pessoas com quem tinha conseguido contactar ao longo do percurso. Com
Boise passou-se o mesmo. O Catorze não aparecera lá e por isso devia presumir-se que
aterrara algures entre Elko e Boise. E o rancheiro que Moravia conhecia perto de Rome, que
acabara por atender o telefone, dissera que, se o Catorze tivesse aterrado na sua pastagem das
traseiras, não o conseguiria ver. Tal era a neve que caía.
Tinha alertado todos os xerifes e rancheiros ao longo do percurso sobre a possível
queda de um avião e não largara os serviços meteorológicos de Salt Lake City e são
Francisco, tentando obter uma previsão do tempo definitiva. O seu descontentamento foi
aumentando à medida que ouvia uma série de pigarreares de embaraço, "ses" e evasivas
experientes.
Agora, bebendo café requentado na sala de espera, Moravia suspirou e arrependeu-se
de ter passado a noite no sofá. Se tivesse ido para casa, Marsha tê-lo-ia acarinhado e talvez
tivesse tido uma boa noite de sono, em vez de se atormentar inutilmente com o destino do
Catorze.
O Catorze podia ter encontrado gelo e não ter conseguido escapar-lhe de imediato.
Não deve ter seguido o velho ditado da aviação segundo o qual a manobra mais
segura é uma volta de cento e oitenta graus. Bastavam dois minutos no gelo para o avião
poder ficar incontrolável.
O Catorze podia ter decidido subir acima da tempestade, em vez de andar a
esquadrinhar os vales, mas depois de estar por cima das nuvens ter descoberto, tarde demais,
que as abertas que esperava encontrar não estavam lá. Sobre uma extensa área completamente
branca, sem nada para o orientar além da sua bússola pouco segura, podia ter-se perdido.
Quando se acabou a reserva de gasolina, com certeza que teve de descer pelo meio das nuvens
para o desconhecido. Apesar do frio, o Catorze teria suado, porque sabia que no meio daquela
camada de nuvens podia
haver granito. Moravia conseguia imaginar este tipo de situação facilmente. Ele tinha
aridado por lá.
Pensou na possibilidade de o motor ter falhado, mas pô-la de parte. Os motores
falhavam por vezes com a pressão da descolagem, mas problemas durante o voo eram muito
raros.
Bastante depois do crepúsculo, já noite avançada, Moravia convenceu-se a si próprio
de que em breve o telefone ia tocar e seria o Catorze a comunicar que tinha aterrado num
campo qualquer. O Catorze era um tipo lacónico e nada mais diria, excepto que o correio
estava seguro e que, logo que as condições de tempo melhorassem, partiria. Contudo, à
medida que o tempo passava, Moravia perdeu a fé nesta hipótese.
O Catorze não era um tonto irresponsável. Era um homem extremamente sensível e
sabia que as pessoas iam ficar preocupadas com ele. Era o único piloto que Moravia conhecia
que possuía três livros de poesia naquilo que lhe servia de casa, e em Outubro passado pedira
um dia de folga extra para ir a um espectáculo de uma orquestra sinfónica em Salt Lake. O
Catorze não era homem para aterrar numa quinta qualquer, aceitar umas bebidas de
congratulações e esquecer-se de telefonar.
Quando chegou à meia-noite sem qualquer notícia, Moravia teve a certeza de que o
Catorze devia estar numa situação difícil - se ainda estivesse vivo. O facto de levar uma
passageira tornava a situação mais vexatória e complicada.
Moravia era perseguido pela cara dos avós da rapariga. Tinham chegado bastante
antes da hora do avião. Depois, à medida que a tarde passava e não se via nada no céu,
dissera-lhes que já não era provável que viessem. Tinham-se enterrado no sofá do seu
escritório e só se decidiram a partir muito depois de escurecer.
Mais difícil ainda foi a chamada obrigatória para os pais da rapariga, que viviam
perto de Elko. Pelo menos, pensou, não teve que ver a cara deles quando lhes disse que havia
fortes possibilidades de o piloto dar notícias em breve. Os pais ficaram calmos, embora
dissessem que esperavam que ele não estivesse a mentir.

- Eu não sou cruel - respondera, aborrecido na sua ansiedade. - E sou um optimista.

Por fim, pensou em telefonar à família do Catorze. Mas quem? Depois de procurar
um pouco, encontrou a ficha original de candidatura do Catorze. Indicava que os pais tinham
morrido. Havia um quadrado no fundo da página que dizia: "Contactar em caso de acidente.
Familiar mais próximo ou amigo." Não estava preenchido.
Vazio como a vida dele, pensou Moravia.
Agora, já madrugada, havia muito a fazer. Podia parar de coçar a sua barba crescida
e ir para o telefone. Por volta das 10 horas, haveria três aviões procedendo a buscas na parte
norte da rota, onde o tempo ainda estava razoável. A Guarda Nacional prometera todos os
aviões disponíveis, mas só chegariam de Spokane à tarde. E às 11, quer quisesse, quer não,
havia o correio para partir para o Sul.
Moravia estava contente por ainda haver muito a fazer. Isso atenuava a diminuição
da sua confiança em encontrar o Catorze em breve.

Primeiro, o piloto pensou que era o vento que fazia aquele assobio intermitente
algures, num dos lados do abrigo. Depois, completamente acordado, percebeu que o lamento
sumido partia da rapariga. Era um queixume agudo que acompanhava a cadência da sua
respiração. O piloto pensou quanto tempo aguentaria ouvir aquilo.

- Estás acordada? - perguntou por fim.


- Estou.

Tinha esperança que ela voltasse a adormecer, mas o barulho continuou. Esperou o
mais que conseguiu e depois perguntou:

- Como vai isso?

Certamente não o tinha ouvido, pois não deu resposta.

- Hoje, vai ser um dia longo - disse ele. - Vamos arranjar maneira de sair daqui. Que
é que queres para o pequeno-almoço? A gerência lamenta, mas já não há bacon nem ovos e a
cozinheira deixou queimar a última torrada. Que tal um belo pedaço de chocolate?

- Está bem.

A voz dela era muito fraca.

- Como é que o queres? Do lado que apanhou sol ou do outro? Se quiseres esperar
um bocadinho, vou fazer uma fogueira lá fora e faço chá de agulhas de pinheiro. Dizem que
cura todos os males.

- Doem-me as costas. Posso tomar um comprimido agora?

- Claro.

Tirou um do frasco e rastejou até à entrada. Estendeu a mão lá para fora, fez uma
bola de neve em miniatura e meteu o comprimido lá dentro.

- Aqui está. Faz de conta que é um gelado. - Continuando de joelhos, observou-a


enquanto ela engolia. Viu que tentava sorrir, mas a sua expressão era bem diferente da que já
lhe vira antes.

- Já alguém te disse que és uma rapariguinha muito bonita? - perguntou.


Viu-lhe uma estranha preocupação nos olhos. De repente, percebeu que, devido ao
tecto baixo do abrigo, estava curvado sobre ela, com a sua cara a pouco mais de um palmo da
dela. E agora a luz já entrava através da seda do pára-quedas. Afastou-se instantaneamente,
recuando como um caranguejo, horrorizado pelo choque que a visão da sua cara lhe teria
causado.

- Vou fazer a fogueira. Teremos um bom chá quente para nos animar.

Rastejou imediatamente para fora do abrigo e levantou-se. Um vento agreste bateu-


lhe no rosto; era o mesmo vento que levantava pequenos farrapos de neve e os levava em
remoinho pela montanha abaixo. Olhou para as nuvens e viu que se moviam rapidamente.
"Temos sorte de estarmos do lado de sotavento", pensou. "Vai fazer sol hoje."
O balanço do que via deprimiu-o. A neve, com uma altura até aos joelhos, tinha
tapado a vala cavada pela fuselagem, e era óbvio que encontrar lenha ia levar muito tempo.
Aterrara num extenso planalto que estava repleto de enormes pedregulhos na sua parte mais
alta. A parte de baixo era igualmente agreste. Caía quase a pique num vale gelado lá bem no
fundo. Escapar por aí parecia impossível.
Pôs-se a contar as coisas boas. O planalto era abrigado do vento, e as árvores
ofereciam protecção contra uma possível avalancha. Podia caminhar em qualquer direcção
dentro do alcance da vista e desde que se mantivesse aproximadamente ao mesmo nível do
abrigo. Caminhou penosamente à procura de lenha.
O Sol já nascera quando acabou de apanhar um braçado de ramos partidos na área
onde as asas do Stearman tinham atingido as árvores. A madeira estava verde e cheia de seiva
e sabia que assim era difícil acender um bom lume. Fez uma cova na neve a alguma distância
do abrigo, com receio de que algumas faúlhas errantes lhe pegassem fogo. Depois, lembrando
os seus tempos de escuteiro, cortou os galhos dos ramos e acamou-os cuidadosamente no
buraco. Após gastar quatro dos seus preciosos fósforos, conseguiu finalmente acender um
lume que prometia durar.
Decidiu que, mal acabasse de dar o chá a Heather, tentaria construir uma espécie de
recipiente, escoaria o óleo do motor e mergulharia aí os ramos. Talvez então conseguisse
fazer uma fogueira a sério.
Sentia-se orgulhoso dos seus dois instrumentos de cozinha. Eram os reflectores
cónicos que continham os faróis de aterragem do Stearman. Um deles estava bastante
amolgado, mas utilizou-o para derreter neve e obter água. Espantava-se com a quantidade de
neve que tinha de colocar no seu balde improvisado para obter umas gotas de água.
Abençoou o estojo de ferramentas, que lhe permitiu remover as duas coberturas
(balancim) do motor. Iriam servir de chávenas rasas, depois de as ter esfregado
cuidadosamente com neve para retirar os sedimentos de óleo. E quem sabe? Talvez que o
aroma de óleo remanescente complementasse bem as agulhas de pinheiro. Talvez o motor,
que se tinha revelado tão falso, viesse a ser a salvação deles.
Achava o crepitar do fogo tranquilizador, mas colocar tanta neve para obter tão
pouca água era desencorajante. O vento caprichoso ia mudando com frequência, ora
envolvendo-o em fumo, ora transportando os sons inquietantes vindos do abrigo.
Perguntou-se quanto tempo conseguiria suportar os gemidos de Heather.
Olhou para o Sol, que aparecia e desaparecia por trás das nuvens, como se reflectisse
a sua disposição. Disse ao fumo, à montanha e às nuvens que não era religioso e não ia pedir
ajuda para si, mas Deus, se estivesse acordado, poderia, por favor, ajudar uma criança
boazinha.

- Deve haver qualquer coisa que a faça parar de gemer - murmurou em voz alta. - Já
não aguento muito mais tempo e ela também não. Ela tem de ser distraída.

Depois, pensou que, se já estava a falar sozinho e ainda não estava há um dia na
montanha, então as coisas iriam ficar muito piores. Obrigou-se a pensar no que tinha de fazer.
Primeiro, manter o lume. Tirar óleo do motor para um receptáculo qualquer. Mantê-lo à mão
para fazer fumo negro, caso ouvisse algum avião. Depois, tratar da comida. Daí a uma ou
duas horas iam saber o que era ter fome a sério.
Onde é que pusera a sua pistola, aquele bacamarte com o coldre muito brilhante de
roçar na sua anca? Duvidava de que alguém que apenas disparara uma vez na vida
conseguisse acertar em alguma coisa que estivesse a mais de um metro de distância. "Mas
onde é que puseste a arma, meu pateta?" A diferença entre sobreviver ou não podia residir
nela. Sentia a cabeça às voltas.

"Não consegues fazer nada certo? Aterraste com uma pistola em bom estado e a
primeira coisa que fazes é perdê-la. Precisas mais de uma enfermeira que a garota! "
Mas, de repente, julgou saber onde se encontrava. Abandonou a fogueira e correu
para o abrigo. Passou a mão suavemente pela neve que cobria a parte superior da fuselagem,
procurando com cuidado para não enterrar mais a pistola na neve e não a voltar a encontrar.
"Está aqui, algures", pensou. O seu mundo parecia centrar- se nesse objecto que desprezara
durante tanto tempo. A neve amontoava-se-lhe no cotovelo e afastava-se à medida que a sua
mão ia destapando a estrutura cinzento-pálido do Stearman. Como a fuselagem se encontrava
tombada sobre o lado esquerdo, as suas escavações destapavam uma parte das letras US.
Brevemente apareceria a palavra USAF. Tinha a certeza absoluta de que pusera a pistola
algures por ali. Ou quase absoluta.
Parou ao encontrar algo sólido. Susteve a respiração até os seus dedos envolverem o
objecto. Então, de súbito, agarrou-o com toda a força, puxou a mão, espalhando a neve, e
disse alto:

- Aqui está ela.

Levou a arma aos lábios e beijou-a, pensando: "Estou a ficar louco. A beijar armas!"

Ouviu-a chamar pelo seu nome, lá debaixo do abrigo.

- Jerry?

Ainda com a arma na mão, baixou-se e rastejou lá para dentro. Apesar de a boca de
Heather se encontrar tensa, pareceu-lhe que os seus olhos já tinham de novo algum brilho.

- Ouvi-o falar com alguém. Já nos vieram buscar? - perguntou.

- Não. Estava a falar sozinho. Espero que não se torne um hábito.

- Eu própria falo muitas vezes sozinha. Todos os meus amigos o fazem.

Ela viu-o colocar a pistola debaixo do saco de correio que lhe servira de almofada.

- Que é que vai fazer com essa arma?


- Provavelmente, nada. Ocorreu-me que poderá ser útil no caso de eu querer abater
alguma coisa.

- Porque é que há-de querer abater alguma coisa? Você é uma pessoa tão boa que não
consigo imaginar que haja algum animal que não goste de si.

- Bem, eu também gosto de animais, mas...

- Se está a pensar em matar animais para comer, eu não tenho fome - disse ela.

Detectou um tom de rabugice na voz dela. Ouvira algures, talvez a sua mãe lhe
tivesse dito quando ele estava doente em criança, que as pessoas ficam geralmente rabugentas
quando estão em convalescença. Conteve-se sem lhe dizer que talvez não faltasse muito para
ela ter mesmo fome.

- Como te sentes das costas? - perguntou-lhe.

- Ainda me doem. Posso tomar outro comprimido?

- Não. Ainda é muito cedo.

- Mas tenho tantas dores. Quando é que acha que eles chegam?

"Se lhe começo a mentir agora", pensou ele, "nunca mais vou parar. E quando as
coisas se tornarem realmente graves, ela não acreditará em nada que eu lhe disser."

- Não sei ao certo quando virão - disse ele, ajustando o urso à volta das pernas dela.
Tentando evitar embaraços, disse-lhe que o chá estava quase pronto. Depois, rastejou para
fora do abrigo e ficou de pé a observar o vapor da sua respiração ser levado pelo vento.
Quando recomeçaram os queixumes, afastou-se para junto da fogueira, onde já não os ouvia.
CAPÍTULO CINCO

Nessa manhã, Stiller, um dos pilotos mais velhos da linha, não se sentia nada
satisfeito ao ver as nuvens cerradas baixas correrem pela paisagem monótona do Nevada a
uma velocidade que revelava a existência de ventos fortes nas alturas. Ia ter de certeza uma
viagem muito agitada transportando o correio para o Norte, a partir de Elko, e provavelmente
iria ter uma luta sem tréguas com o seu avião sobre as regiões mais montanhosas. Ou, pior
ainda, teria de voar imediatamente por baixo das nuvens densas, o que limitaria a sua altitude
e campo de visão.
Tinham-lhe dito para olhar com muita atenção o terreno no percurso para norte. Um
dos pilotos, Jerry, aquele tipo que ninguém conhecia muito bem - devia estar em terra algures
ao longo do percurso. Stiller não se admirava de nem sequer se lembrar do último nome de
Jerry.
Não fazia diferença. Era um tipo estranho, certamente um solitário, mas tinha-se
oferecido duas vezes para substituir Stiller quando este quisera passar um dia de folga extra
com a família. Quando se tem cinco filhos, apreciam-se gestos como este.
Probosky, o mecânico, segurava as correias do pára-quedas, enquanto Stiller se
enfiava nele. Alguns pilotos preferiam pô-lo no avião para não terem de se deslocar com o
pára-quedas a bater-lhes nas ancas, mas Stiller preferia ver bem como é que ficava posto do
que dar só uma olhadela. Com cinco crianças pensa-se assim.
Depois de apertar as correias aos ombros e de puxar as das pernas, ajustou e apertou
a tira do capacete por baixo do pescoço. E jurou pela centésima vez que, quando chegasse a
Pasco, havia de passar pelo hangar de reparações, arranjar um furador de cabedal e fazer um
novo furo na correia do capacete. Os furos estavam no sítio errado, já lá ia um ano, e ele
esquecia-se sistematicamente de fazer a alteração. No primeiro furo, o capacete ficava largo;
se usasse o segundo, ficava de tal modo apertado que quase o sufocava. Fazer um furo com
uma faca podia estragar completamente o capacete, e os capacetes eram caros.
Quando se é chefe de família, contam-se bem os tostões. Prudência era a palavra de
ordem. Prudência a voar faz a vida durar. Stiller estava convencido de que esta sua filosofia
prudente era responsável por doze anos de voo sem nunca ter feito uma beliscadura num avião
nem em si próprio.
Moravia achava que tinha sido um dos dias mais longos da sua vida. Encontrava-se
enterrado na sua cadeira de couro, por trás da secretária, e esfregava os olhos doridos. Estava
aborrecido. A luz de fim de tarde iluminava Stiller, sentado à sua frente. Tinha o urso
desabotoado e o cachecol branco pendia-lhe do pescoço.
Moravia viu-o a brincar com a tira do capacete e pensou que era imperdoável que o
homem tivesse um ar tão calmo, atendendo às circunstâncias.
Moravia olhou-o fixamente.

- Você é capaz de estar aí sentado a dizer-me que de facto viu uma asa e o que
pareciam ser bocados da fuselagem e não desceu para confirmar?

- Você não percebe que eu apenas espreitei por uma aberta. E não era uma aberta
muito grande.

- Bem, e porque diabo não desceu por essa aberta para ver melhor?
- O vento fustigava que nem um chicote. Podiam deparar-se-me ventos cruzados
perto da montanha e não ser capaz de voltar a subir. Assim, você passaria a ter dois aviões
para procurar.

- Isso era um risco que talvez não me importasse de correr em troca de obter
confirmação - murmurou Moravia.

"Porquê", perguntou a si próprio, "tinha logo que ser este filho da mãe cobardolas a
ver qualquer coisa?" Todos os pilotos que tinham voado nesse dia, e que teriam descido por
qualquer aberta que houvesse, não tinham avistado nada com o mínimo de interesse. Olhou
Stiller com atenção e pensou que, decididamente, nunca gostara do seu ar de santinho.

- Deixe ver se eu percebo - recomeçou Moravia o mais calmamente que conseguiu. -


Você descolou de Elko e encontrou mais vento do que esperava. Desviou-se uns trinta a
cinquenta quilómetros para oeste, por cima de nuvens densas dispersas. Não sabia
exactamente onde se encontrava quando reparou que o terreno que sobrevoava era bastante
mais montanhoso do que deveria. É assim, não é?

- Sim, basicamente.

- Muito bem. Depois, calhou olhar para baixo quando viu uma aberta e lá no fundo o
que parecia ser uma asa e uma fuselagem...

- Penso que foi isso que vi.

- Bem, era um avião ou não?

- Daquela altitude era muito difícil ter a certeza. E toda a encosta da montanha
encontrava-se densamente coberta de neve, o mesmo acontecendo com o que quer que seja
que eu vi; não pode imaginar como era pequeno.

- Imagino. - Moravia não conseguia esconder o sarcasmo. - Suponho que nem lhe
ocorreu descer?
- Ocorreu, sim. Cheguei mesmo a dar a volta e a sobrevoar de novo a área, mas a
aberta já desaparecera. Andei cinco minutos às voltas sobre as nuvens densas antes de desistir.

- Cinco minutos - disse Moravia com indiferença.

- Tive que pensar no combustível, com o vento a soprar daquela maneira. Se o vento
virasse para norte, talvez nem conseguisse chegar a Boise.

"E assim", pensou Moravia, "podes ter deixado um colega morrer mesmo por baixo
de ti. Se tivesses esperado um pouco mais, podia aparecer outra aberta e podias ter descido
para ver melhor e ainda restaria combustível suficiente para fazer uma aterragem de
emergência num terreno plano adequado." Moravia, porém, guardou as recriminações para si
e pousou a mão sobre o mapa colocado por baixo do vidro da sua secretária.

- Você estava algures sobre a cordilheira de Santa Rosa, no Nevada?

Stiller inclinou-se para ver melhor o mapa.

- Tenho a certeza de que era mais para nordeste. Quase de certeza que vi o pico do
Capitol através das nuvens densas.

Moravia não fez qualquer tentativa para esconder o seu azedume.

- A ser assim, o que você pensa ter visto está algures por aqui neste despovoado, o
que reduz a nossa área de busca a uns poucos milhares de quilómetros quadrados.

- Se já não tem mais nada a dizer-me - disse Stiller com ansiedade -, gostava de ir
para casa. - Tentou sorir. - A minha mulher tem uma série de coisas para eu fazer.

Moravia acendeu um caporal.

- Claro - disse ele. - Mantenha-se só perto do telefone. Posso vir a precisar de si.
Quando Stiller arrastou as suas botas pesadas para fora do gabinete, Moravia reparou
na sua postura inclinada. Não conseguiu perceber se Stiller era apenas um homem curvado
pela sua vida familiar ou um homem que sabia ter cometido uma traição não só contra um
companheiro, mas contra si próprio.

O piloto nem queria acreditar que o Sol já estivesse tão baixo. Passara todo o dia a
recordar a si próprio que, se perdesse o seu sentido de humor, então perderia decerto o
desafio, que se tornava cada vez mais inevitável. E pensou que podia morrer de tudo ali na
montanha, menos de aborrecimento, porque nunca tivera tanto que fazer.
A fogueira apagara-se por duas vezes. Reacendê-la e mantê-la tomara-lhe pelo
menos umas três horas. Tinha passado algum óleo do motor para os tampões das rodas.
Experimentara deitar um pouco na fogueira para produzir fumo negro.
Por duas vezes durante a manhã, convenceu-se de que ouvira um avião, mas o vento
soprava tão forte que facilmente se confundiam os sons. Talvez tivesse sido apenas o seu
desejo de que fosse verdade.
Cortara bocados das asas e da fuselagem. Dispusera-os sobre a neve em forma de um
X gigante e fixara as pontas com pedaços de xisto. O X seria facilmente visível se não
continuasse a nevar, embora ele gostasse que os Stearman fossem pintados de outra cor que
não cinzento-pardo.

Depois de acabar os seus afazeres e de passar o máximo de tempo que conseguiu


aguentar com Heather, já a tarde ia a meio. "Não é fácil", disse a si próprio, "manter o sentido
de humor quando uma garota está a sofrer." Considerou-se cobarde por lhe ter dado outro
comprimido e se ter escapado com o pretexto de ir caçar.
Salve o poderoso caçador! Tinha vagueado pela neve durante duas horas
extenuantes, esfolara um joelho numa rocha ao cair numa fenda invisível e assustara-se
imenso ao escorregar e quase cair de um penhasco alto.
Quando saiu das proximidades da fuselagem, deu por si apontando a pistola, como se
algum coelho, veado ou antílope estivesse disposto a saltar à sua frente e a cometer suicídio.
Mas não viu uma única criatura viva durante toda a tarde e, pior ainda, nem sequer viu
pegadas.
Quando regressou ao abrigo, a sua sombra era muito comprida. Partiu aos bocados o
que restava da tablete de chocolate e deu um a Heather. Ele tomou apenas chá de agulhas de
pinheiro. Depois de acabar o chocolate, ela começou de novo a gemer e ele pensou que teria
de começar a pensar nela simplesmente como "a rapariga". O nome Heather era demasiado
pessoal e bonito. Identificava-a como uma pessoa que podia significar muito para ele. Quando
passara aquele tempo todo deitado no hospital, com tantos traumatismos em todo o corpo que
as enfermeiras pensavam que nunca recuperaria, elas nunca se lhe referiam pelo nome.
Falavam do "aviador", evitando assim qualquer envolvimento pessoal com o seu futuro
incerto.
Agora, pensou, "a rapariga" devia ser desligada da sua objectividade. Devia
transformar-se numa garota qualquer e desse modo o sofrimento dela não o perturbaria tanto.

"Se quero manter a minha sanidade mental", pensou, "não posso pensar nela como a
querida amiga em que se está a tornar. Tenho que a forçar a manter as distâncias, senão vamos
os dois por água abaixo. Não consigo agir com eficiência se estiver a sofrer com ela."

As coisas tinham que mudar. De outro modo, a sua tolerância não ia aguentar.
Apetecia-lhe gritar: "Importas-te de parar de gemer?" Mas tinha que dominar a impaciência.
Ela voltou a gemer e ele desejou ser capaz de manter a sua promessa.

- Posso fazer alguma coisa para te sentires melhor?

Não se notava na sua voz a solicitude que ele teria gostado de ouvir. Lembrou-se da
voz de Sally durante as visitas ao Hospital de San Antonio. Houve alturas em que,
independentemente do que ela dizia, soava como se lhe estivesse a implorar que abandonasse
a imobilidade e se começasse a mexer.
Reparou que Heather não lhe respondera.

- Fiz-te uma pergunta. Perdeste a língua?

Continuou sem dizer nada. Ele esperou, escutando o quase inaudível som do vento
nas copas das árvores.

- Daqui a pouco é noite, e se há alguma coisa que eu possa fazer por ti, seria muito
mais fácil fazê-lo agora.

Por fim, ouviu-a sussurrar.


- Dói-me tanto.

Estava a culpá-lo pela sua dor? Quantas vezes é que precisava de dizer que lhe doía?
"Ouve, minha patetinha, não fui eu que fiz o raio do motor."

- Se te dou outro comprimido, podem vir a faltar precisamente quando mais


precisarmos
deles.

- Eu preciso de um comprimido agora.

- Valha-me Deus... - disse, contendo-se depois. - Vou dizer-te uma coisa. Vamos
fazer uma experiência. Já esvaziei o combustível do depósito, por isso faço a fogueira aqui
dentro para animar. Que tal?

- Seria bom.

Ele rastejou até lá fora. Havia dois bons tições na fogueira e trouxe-os para o abrigo.
Perto da entrada, cavou um buraco raso. Cortou umas aparas do melhor pedaço de madeira
que tinha e juntou-as com cuidado aos tições. Conseguiu fazer uma boa fogueira, mas com
muito fumo.

- O fumo vem-me para os olhos - disse Heather.

- Bem, eu não posso parar o fumo. - "Quando é que ela vai deixar de reclamar?" -

Queres que eu faça a fogueira outra vez lá fora? "Isso é que era bom", pensou;
mesmo se ela lhe pedisse, não o faria. É verdade que havia fumo no abrigo, mas não era o
fogo o primeiro e o melhor amigo do homem?

- Sabias? - perguntou-lhe.

- Sabia o quê?
Porque é que havia de estar preso numa montanha com uma miúda estúpida que nem
conseguia ter uma conversa inteligente? Bom, fazia parte da história da sua vida. "Fazemos
coisas pelos outros e eles nem se preocupam em agradecer."

- Perguntei se sabias que o fogo é o primeiro e o melhor amigo do homem?

- Nunca me perguntou isso.

- Não? Bem, também não vamos transformar isto num caso judicial.

- Caso judicial? De que é que está a falar?

- É apenas uma força de expressão que as pessoas costumam usar quando querem pôr
fim a um desacordo. Quer dizer, não transformemos a questão num caso de tribunal.

- Por favor, peço-lhe que não fale assim alto comigo, Jerry. Por favor.

Caramba! Que é que estava a acontecer? - Está bem, está bem - ouviu-se a si próprio
a dizer. "Não consigo por nada deste mundo disfarçar o aborrecimento na voz."

- Peço desculpa.

- Não tem nada que pedir desculpa, Jerry.

- Tenho, tenho. Mas voltemos ao princípio da conversa. Posso fazer alguma coisa por
ti antes de ser noite?

- Podia contar-me mais coisas da sua vida para me esquecer das dores nas costas.
-
Não há mais nada a contar. - Havia bastante mais, pensou, mas que sentido faria
para uma miúda pateta?
De súbito, teve uma inspiração. A ideia surgiu-lhe sem mais nem menos. Porque
não? Pelo menos era uma coisa que podia servir de distracção. Agarrou no saco do correio
que lhe servira de almofada, abriu os cordões e tirou uma mão-cheia de cartas. Dispondo
cinco na mão, como se fossem cartas de jogar, estendeu-as a Heather.

- Tira uma qualquer. Vamos ver o que é que o autor tem a dizer.

Ela hesitou.

- Não será indiscrição?

- Nesta situação, eu diria que é aceitável. - "E bastante necessário", pensou. - Vá lá.
Tira uma - instou ele.

Heather fechou os olhos, como que para ter a certeza de que a escolha era ditada pela
sorte, e tirou-lhe uma carta da mão. Ele pegou na faca e abriu-a.

- Quer que eu lha leia? - perguntou ela.

Ele fez que sim com a cabeça e esperou que ela começasse. Não estava interessado
no conteúdo da carta, a não ser para manter Heather - não, a rapariga – distraída das dores nas
costas e não o deixar pensar nos problemas de ambos. Ela continuou em silêncio e na
penumbra conseguiu ver que estava a ler a carta, mas parecia relutante em partilhá-la com ele.

- Então, não começas? - perguntou com impaciência.

- É uma carta engraçada; não é engraçada como os livros de banda desenhada ou


coisa parecida. Até é mesmo triste e eu não sei se percebo bem o que a pessoa quis dizer.

- Daqui a cinco minutos está escuro aqui e não consegues ler nada. Portanto, é
melhor despachares-te.
Ele colocou um galho no lume e tentou esquecer a dor da fome no seu estômago.
Talvez conseguisse fazer uma armadilha com uns bocados dos destroços do avião, deixava-a
lá fora e de manhã o pequeno-almoço estaria à sua espera.

- Esta carta é de um advogado e diz o seguinte: "Caro senhor Antonivich. Temos o


prazer de o informar que fizemos finalmente um acordo extrajudicial com a Empresa Mineira
do Nevada relativamente aos ferimentos que Vossa Exa. sofreu em Março de 1926. Foi
acordada a importância de mil dólares e o cheque foi passado em nosso nome, de acordo com
a nossa combinação prévia..." - Fez uma pausa e disse:

- Há aqui uma palavra que eu não compreendo. Co-in-ci-dên-cia?

- Talvez seja coincidência?

Satisfeita, prosseguiu a leitura:

- "Cativámos este montante na nossa conta, visto que, por coincidência, perfaz o
valor dos nossos honorários de advogados pelos serviços neste caso. Aproveitamos para lhe
desejar a continuação das melhoras. Atenciosamente." Está assinada por um Mr. J. K.
Monroe. Estendeu a carta ao piloto e franziu o nariz.

- Acho que não gosto de Mr. Monroe.

Ele pôs a carta no envelope e voltou a guardá-la no saco. Apeteceu-lhe dizer que
gostara de Mr. Monroe por ter feito com que ela deixasse de pensar nas dores. Abriu outra
carta.

- Agora esta.

- É difícil de ler, mas vou tentar. A letra é igual à que aprendemos na escola. Diz
assim: "Querida mãe, suponho que já não tens notícias minhas desde a morte do pai, ou talvez
antes disso. Portanto, digo-te que vou gastar o dinheiro extra e enviar-te uma carta pelo
correio aéreo. Lamento que o pai tenha morrido, apesar de nunca me ter mandado uns
dinheiros. Agora já pensei se ele não terá mudado de ideias deixando-me um dinheirito no
testamento. Embora nunca nos tenhamos dado muito bem, o sangue é sempre o sangue. Ah!
Ah! Portanto, se há algum dinheiro, manda-o para o endereço abaixo indicado. Se tu e a
minha irmã se abotoaram com a massa toda, só espero que vos apodreça nos bolsos, porque
não é justo.
Suponho que tudo vai bem convosco, senão eu já tinha sabido. Teu filho, Carl." O
piloto tentou sorrir. "E é por este género de coisas", pensou, "que eu por vezes arrisco a única
vida que tenho."
Heather pediu-lhe que lhe explicasse as cartas, mas ele não conseguia achar uma
maneira lógica de lhe explicar a astúcia e ainda menos a ganância. Depois de ter tentado
explicar, o abrigo estava apenas iluminado pelo brilho pálido da fogueira.

- É melhor fazermos por dormir - disse ele em tom aborrecido pela sua incapacidade
para explicar os impulsos básicos do comportamento humano. - Queres ir primeiro à casa de
banho?

Não houve resposta e em breve suspeitou ter dito qualquer coisa que não devia,
porque a rapariga estava outra vez a chorar. Será que ia ter que tomar atenção a cada palavra
que dizia?

- Pára, Heather - deixou ele escapar. Depois, para seu próprio espanto, acrescentou: -
Por favor, pára com a choradeira, está bem?

"Se eu morder a língua", pensou, "o nosso pequeno mundo poderá girar mais
lentamente. Mas, por todos os santos, como é que uma pessoa se consegue manter civilizada
quando está fechada num buraco com dois metros de comprimento por um de largura e um de
altura?" Aqui mesmo estava a sepultura de uma criança chorona e de um aviador destroçado
que não conseguiu achar maneira de salvar a sua pequena passageira, já para não falar de si
próprio. Que herói!

- Desculpa, Heather - disse ele. - Acho que estou cansádo. Chora o que te apetecer.
Não me importo.

Rastejou lá para fora, pôs-se em pé e olhou para o céu. Alguns flocos de neve
bateram-lhe na cara e pensou: "Tenho que arranjar uma maneira de sairmos daqui." Olhou
fixamente para o vazio escuro, como se a noite o pudesse consolar. Só se ouvia a brisa bater
suavemente na seda do pára-quedas. Considerou as poucas hipóteses que tinha, mas com a
fome não se conseguia concentrar e era-lhe difícil separar o desejo da realidade.
Podia esperar que alguém viesse, mas isso talvez levasse uma eternidade. Podia
deixar aqui a rapariga e tentar ele descer a montanha à procura de socorros. Era o que faria se
estivesse sozinho, mas até isso era uma violação da velha regra de não abandonar o avião
acidentado. Lá do alto viam-se mais facilmente destroços do que um ser humano.
Abandonou de imediato a ideia. Nem sequer podia admitir deixar a rapariga sozinha
mais do que umas horas. Deu voltas à cabeça à procura de outras saídas e só encontrou uma
familiar. Tinham que descer a montanha juntos.
Olhou de novo para a escuridão e tentou imaginar quantos dias levaria a descida. No
princípio do dia, tinha consultado o mapa de estradas, de que se serviam todos os pilotos do
correio. Com os dedos, medira a distância aproximada de trinta quilómetros desde onde
pensava estar até à pequena cidade de McDermitt, no Nevada.
A maior parte do caminho era a descer pela montanha. Os últimos dezasseis
quilómetros por um vale relativamente plano seriam mais fáceis. Porém, a neve podia ter aí
mais altura.
O tempo escoava-se juntamente com as suas energias. Se conseguisse descobrir um
modo de transportar Heather, como é que iria encontrar forças para aguentar mais de trinta
quilómetros pela neve? Ela era pequena, mas ao fim de algumas horas tornar-se-ia muito
pesada.
Outra incógnita. Quais eram as hipóteses que tinham ao deixarem a protecção de um
abrigo que os podia manter vivos por mais uma semana e arriscando-se em plena montanha?
Se o tempo piorasse ou ele caísse, seria decerto a morte para os dois.
De súbito, ouviu um grito que se transformou num choro histérico. Correu para o
abrigo e encontrou Heather a tremer e a falar de modo incoerente.

- Por favor... por favor..., Jerry, ajude-me!

Quando a tomou nos braços, ouviu-a dizer qualquer coisa sobre uma pistola e uma
série de balbuciares ininteligíveis. Por fim, disse muito claramente:

- Por favor, Jerry, mate-me, não aguento mais!


Ele tapou-lhe a boca e tentou acalmar-lhe o esbracejar. Depois, tirou o frasco do
bolso, pegou num comprimido e colocou-lho na língua juntamente com alguma neve lá de
fora.
Não fazia ideia do tempo que ela levou a sossegar, porque tentou desesperadamente
manter os seus pensamentos longe do abrigo. Esperando acalmá-la, manteve um monólogo
contínuo, falando-lhe da sua juventude no Nebraska, nos seus voos e até de Sally. Disse-lhe
que sabia o que era sofrer e que o pior dos sofrimentos era a solidão. Acariciou-lhe o rosto e,
sem se aperceber, disse-lhe como sentia a falta de qualquer tipo de amor.

- A vida nesta terra é curta e não sei se isso é bom ou mau. Mas digo-te que uma
pessoa quando não é amada é como se estivesse morta.

Quando por fim ela começou a respirar regularmente, ele inclinou-se e beijou-lhe
a testa. A garota estava a dormir.

CAPÍTULO SEIS

Moravia foi mais cedo para casa nessa noite, porque a sua frustração se tornara
opressiva e achava que um homem obcecado não pensa claramente. Precisava de um banho,
de se barbear e de pôr os óculos sobresselentes. E do carinho da sua mulher, Marsha, embora
ele não soubesse como é que lhe ia dizer que o seu marido, que ela reputava de imbatível, se
tinha descontrolado de tal maneira que arrancara bruscamente os óculos e os atirara à
secretária. O resultado da fúria fora uma lente partida - juntamente com a libertação de
alguma energia perigosa.
O deixar-se render à emoção fora o culminar de pequenas derrotas que começaram
com o medricas do Stiller, que estaria melhor a vender gravatas, e a posterior conclusão de
que Stiller fora o último piloto com hipóteses de localizar o Catorze.
Depois, as condições atmosféricas nessa área tinham-se tornado um inferno, como se
a chegada de Stiller tivesse despoletado na Natureza intuitos maléficos.
Recebera relatórios de toda a parte dentro da área concebível de alcance do avião do
Catorze.

- Quero um quadro completo - exigiu Moravia. - Todos os relatórios num perímetro


de seiscentos e cinquenta quilómetros.

Agora, pensava com amargura que podia ter pedido um único relatório, pois todos se
assemelhavam. Neve. Nuvens baixas. Má visibilidade. Nenhum avião aterrara. A oeste das
Rochosas estava tudo isolado pela neve. Moravia detestava o silêncio que o envolvia.
Cheirava demasiado a morte.
Ao fim da tarde, conseguira congregar o que deveria ter sido uma equipa de buscas
eficiente. A Pacific Air Transport pusera dois aviões Ryan M-I à disposição e todos os seus
pilotos se tinham oferecido para as buscas. Prontos a partir estavam ainda dois aviões
particulares baseados em Boise, um Waco Taperwing e um Curtiss Oriole. No hangar,
estavam três dos Stearman de Moravia, com os respectivos pilotos ansiosos por partir. Os
DH-4 da Guarda Nacional Aérea de Spokane tinham sido forçados a regressar por causa do
mau tempo. Moravia considerava-os como uma última reserva.
No entanto, tudo fora inútil. Nenhuma hélice chegou a girar e com o aproximar da
noite tornou-se evidente que nada podia ser feito naquela altura. Se as previsões
meteorológicas estivessem certas, apenas se poderia fazer um esforço limitado na manhã
seguinte.
No calor do lar, Moravia tirou a perna artificial e deixou-a cair no chão da casa de
banho numa atitude de desafio satisfeito. Enfiou-se calmamente no banho que Marsha lhe
preparara e pensou que de todos os aviadores que conhecera durante e depois da guerra o
Catorze era o mais nteressante. Seria pelo facto de ambos serem deficientes? Partilha de uma
infelicidade perpétua? Moravia achava que não. As deficiências físicas são demasiado
pessoais para serem partilhadas.
Ou se aprende a suportá-las ou é o fim.
Flutuando confortavelmente no banho quente, Moravia olhou para o seu coto e
pensou como era mais fácil as pessoas aceitarem um homem com uma só perna do que outro
com os lados do rosto diferentes. Só os muito corajosos ousavam imaginar um acontecimento
de tal modo trágico que os deixasse com um rosto como o do Catorze.
O rosto é o espelho da própria pessoa perante o mundo, e a máscara que o Catorze
era obrigado a usar só reflectia ruína. E contudo, pensou Moravia, embora as ruínas sejam
sempre tristes, são habitualmente rodeadas de mistério. Normalmente, deseja-se saber sobre
uma ruína mais do que está à vista.
Moravia lamentou saber tão pouco sobre o Catorze e decidiu que, se ele
sobrevivesse, tentaria conhecê-lo melhor. Tinha dúvidas se ia continuar a identificá-lo
simplesmente por um número. De futuro, se houvesse futuro para aquele homem, ia esforçar-
se por pensar nele como o Jerry. Convidava-o para um dos jantares especiais de Marsha, mas
não ia ser sentimentalista acerca do seu infortúnio recente, pois isso não fazia parte da
maneira de ser dos aviadores. Diria: "Jerry, eu não pensei em si um único momento. Enquanto
você congelava a carcaça, eu saboreava os prazeres de um banho quente."

O piloto passou a noite a adormecer e a acordar. Uma vez ouviu um grito, mas,
quando se voltou, verificou que a rapariga estava a dormir. Percebeu que estivera a sonhar e
depois disso ficou quase com medo de tentar adormecer. "Não consigo suportar nem mais um
grito, real ou imaginado. Tenho de dizer à rapariga para não voltar a gritar enquanto
estivermos juntos. Tenho de lhe explicar que qualquer grito me deita abaixo, porque foi o
último som produzido pelo meu aluno depois de cairmos."
Deitado na escuridão, voltou a cabeça e sentiu uma coisa dura debaixo do saco do
correio e percebeu que era a pistola. Resolveu que ia tentar caçar outra vez.
Talvez houvesse alguma coisa lá fora com que se pudesse fazer uma refeição.
Depois, pensou nos comprimidos e lembrou-se de que restavam seis. Devia ser à justa para
mais um dia e uma noite. E depois? Ela voltaria a gritar?
Obrigou-se a contar os seus haveres. Apesar das dificuldades em acender as
fogueiras, a caixa de fósforos ainda estava meia. Havia três pedaços de chocolate. Pequenos.
Havia uma quantidade ilimitada de agulhas de pinheiro para fazer chá, mas com o gosto
amargo e a ranço que tinha pensou se não seria melhor beberem água pura da neve. Se havia
bagas ou nozes nas vizinhanças, ele não vira nenhumas.
"É inacreditável", pensou, "que nos tempos que correm duas pessoas decentes
possam morrer à fome numa montanha da América." Mas era justamente o que estava a
acontecer.
A única solução era tão óbvia como assustadora. Numa das vezes em que tentou
fugir aos gemidos de Heather, fez um passeio pelo planalto até ao lado em declive da
montanha. Tinha descido aos tropeções pela neve durante uns dez minutos para testar a sua
resistência e constatou que estava em baixo. Enquanto esperava que o ritmo do seu coração
regularizasse, quase se convenceu de que seria impossível descer a montanha transportando
uma rapariga que não suportava movimentos.
Quando regressou ao abrigo, sentia-se exausto. Disse para si próprio: "Ouve,
caminhar pela neve é duro, mesmo que seja a descer. Tens de organizar os pensamentos e ser
realista. E entretanto", pensou, "devias pedir desculpa à rapariga.
Que homem és tu para nem lhe responderes quando ela perguntou o que aconteceria
se ninguém aparecesse hoje? E depois rematar dizendo que naquela altura a mãe dela devia
estar muito preocupada."

- Quem manda a filha de avião deve contar com algumas preocupações. Podias
perfeitamente ter ido de comboio. Agora cala-te - dissera ele.

Que espécie de homem era ele para dizer coisas daquelas a uma garota em
sofrimento? "Se a mãe dela", pensou, "devia ser censurada por alguma coisa, era por ter
mandado a sua querida filha num avião pilotado por um cabeçudo incompetente."
O piloto rastejou para fora do abrigo logo que os primeiros sinais de luz atravessaram
a seda do pára-quedas e viu que podia ser um bom dia. A oeste ainda se podia ver Vénus e
outras estrelas e o céu estava limpo. Não havia vento no sítio onde se encontrava, mas do
cimo da montanha caíam farrapos de neve. O vento norte habitualmente traz bom tempo. "Se
alguém aparecer", pensou, "será hoje", mas decidiu não partilhar essa esperança com a
rapariga. Se não viesse ninguém, ela não recuperaria da decepção.
Na tarde anterior, retirara a bússola magnética do Stearman. Naquele momento,
deitou um pouco do seu álcool sobre os gravetos e em breve o fogo crepitava. O conforto de
acender o lume animou-o. Estava a começar a conseguir. Apesar da bela fogueira, levou quase
uma hora a obter da neve água suficiente para o chá. E enquanto esperava interminavelmente
que a água fervesse, recordou-se da altitude a que estavam. Se alguém viesse à procura deles
hoje, tinha uma grande subida pela frente. O altímetro do Stearman marcava mil trezentos e
setenta metros, mas não confiava nele. O impacte da aterragem podia tê-lo avariado.
Espalhou umas agulhas de pinheiro na água e com um pau calcou-as no fundo dos
reflectores dos faróis de aterragem. Rastejou para dentro do abrigo e levou o chá quente com
um pedaço de chocolate à rapariga. Tirou um bocado para si; desde que tinham saído de Elko,
era a primeira coisa que comia. Duvidava conseguir explicar a Heather que, se não comesse
qualquer coisa, as suas forças não duravam até ao fim desse dia. Decidiu não o fazer. "Devo
ser o seu cavaleiro montado num cavalo branco", pensou ele, "apesar de o meu cavalo estar
morto."

- Importas-te que tome o pequeno-almoço contigo? - perguntou, sorrindo.

Percebeu que ela tentava retribuir o sorriso e as suas esperanças foram renovadas.
Desde a noite passada que não pronunciava um som. Afinal, talvez tudo m elhorasse.
Ajudou-a a levantar a cabeça para poder mais facilmente beber o chá e o desinteresse dela
quase o enervou.

- Qual é o problema? Perdeste outra vez a língua? O mínimo que podias fazer era
elogiar os meus cozinhados. Lembra-te de que todos os grandes chefes de cozinha são
sensíveis e facilmente ficam magoados.
Ela deu um gole no chá e uma trinca no chocolate, que ele segurava na mão. Por fim,
disse:

- Não acha que seria melhor deixar-me aqui e ir procurar ajuda?

- Não posso fazer isso. Nem sequer posso pensar nessa possibilidade. - Pelo menos a
sua resposta foi tão rápida como tinham sido algumas das suas observações maldosas.

- Porque não? Eu provavelmente ficava bem.

- É do provavelmente que eu não gosto. Ainda é longe até à cidade mais próxima.
Devia levar uns dois ou três dias só para lá chegar.
- Podia levar-me consigo.

- Já pensei nisso, mas não vejo como.

Ela ficou em silêncio durante um bocado, e enquanto bebia o chá olhava-o fixamente
sem desviar o olhar. E ele achou que os seus olhos pareciam muito mais velhos do que eram.
Trincou um bocado de chocolate, apreciando o sabor, mas pouco depois ficou pouco à
vontade quando se apercebeu de que ela estava a observar todos os seus movimentos. Por fim,
perguntou-lhe:

- Porque me olhas dessa maneira? Se tens alguma coisa a dizer, diz.

Lá estava ele a ser mordaz outra vez. Parvo. Porque não dizer-lhe antes que parecia
que o dia ia estar bom?

- Estou a olhar para o seu rosto. Você é um homem muito bonito.

Percebeu que por instinto mantivera a face sinistrada virada para o outro lado. No
aeroporto, o capacete cobrira parte da sua desgraça e desde então, quando a dor e a luz ténue
no abrigo lhe permitiam ver alguma coisa, ela só devia ter conseguido ver alguns lampejos do
seu infortúnio.
Voltou deliberadamente o rosto todo para ela. O chocolate dera-lhe um enorme rasgo
de força. Por instantes pensou que podia conquistar o mundo.

- Olha para mim, agora. - Nem podia acreditar na sua ousadia. - Ainda achas o
mesmo?

Observou os olhos dela procurando a mudança repentina, que tinha a certeza que iria
encontrar, mas apenas encontrou o mesmo olhar fixo, determinado e singularmente velho.

- Acho, sim, Jerry. Você é bonito, porque é. Sei tudo o que fez por mim. Queria
pedir-lhe que me faça mais uma coisa.

- Claro, o que quer que seja eu faço.


- Não me deixe morrer aqui sozinha.

Ele susteve a respiração. Devia estar com alucinações.

- Que diabo estás para aí a dizer, rapariga? Se for como eu penso, não vais morrer
nos próximos oitenta, noventa ou mais anos. Hás-de vir a ser uma velhinha com cem bisnetos.
Além disso, eles devem dar connosco hoje, ou talvez amanhã. Só temos que ficar aqui e
esperar.

- E morrer lentamente à fome, Jerry? Você não comeu nada desde que estamos aqui.

- Acabei de comer um grande bocado de chocolate. Sinto-me que nem um tigre.

- Deu duas dentadas. Isso não é, nem por sombras, suficiente para um adulto.

- Como é que sabes tão bem? És nutricionista ou quê? Como é que na Grande Guerra
alguns prisioneiros estavam sem comer durante uma semana? Desde que consigamos obter
água da neve, estaremos bem.

- Foi aviador na Grande Guerra?

- Não. Isto é, não estive além-mar onde decorria o tiroteio. Estive em treinos no
Texas, e quando acabei, a guerra também acabou.

- Portanto, nunca matou ninguém?

- Não. - "Se eu fosse totalmente honesto", pensou, "teria de dizer que sim." Havia, e
para sempre, aquele estudante que ele não conseguira salvar.

- Se não vierem hoje, quero que vá sozinho.

- Pensei que tinhas dito para eu não te deixar.


- Eu não fico aqui. - Fez uma pausa, mas os seus olhos mantiveram-se fixos nos dele.
- Você tem aquela pistola - disse baixinho.

Ele segurou-lhe o rosto entre as mãos e olhou para ela longamente sem dizer nada.
Por fim, beliscou-lhe as faces com carinho e disse:

- Ouve, minha amiguinha. Eu não sei que contos de fadas é que te contaram, mas não
tens sequer o direito de pensar isso. Se não te doessem as costas, acredita que te daria uma
sova que nunca mais esquecerias. Nunca mais quero ouvir uma palavra sobre esse assunto.
Estamos juntos nisto. Fui bem claro?

Que espécie de mundo era este em que uma rapariguinha que ainda não tinha doze
anos pedia a um tipo que pusesse cobro ao seu sofrimento com uma pistola? Viu que ela
estava a chorar e com a manga do urso limpou-lhe as lágrimas.

- E não chores!

Procurou desvairadamente no abrigo qualquer coisa que a distraísse.

- Ouve, Heather! - Rastejou até ao saco do correio. - Vamos ler mais umas cartas.
Ouviremos falar dos problemas dos outros e assim os nossos parecerão pouco importantes.
Vamos pensar que estamos em férias.

Tirou uma mão-cheia de cartas e estendeu-lhas. Ela hesitou, contudo ele percebeu
que fazia um esforço para se recompor. Escolheu uma e ele abriu-a sem desviar os olhos dela.
Distracção... qualquer coisa para pôr de novo as coisas a rodar. Ela tinha que ser forçada a
entender que o mundo continuava a existir. "E eu também", pensou. "Este abrigo é apenas um
longo pesadelo. Se for preciso, mantenho-a a ler cartas durante todo o dia. Talvez as costas
dela melhorem e o espírito não descarrile. Talvez consigamos aguentar isto."
Ela estudou a carta por momentos.

- Jesus, que letra bonita e nem sequer é o tipo de grandes letras desenhadas que
aprendemos na escola.
Estendeu-lhe uma página para ele ver. Depois, encostou-a ao nariz e cheirou-a.

- Cheira bem. É o que eu vou ter um dia, Jerry. Um papel bem-cheiroso.

"Óptimo, óptimo", pensou o piloto. "Ela está a fazer planos. Agora já tem qualquer
coisa a que se agarrar." Quem lhe dera poder sentir o mesmo.

- Cá vai - disse Heather com novo entusiasmo. - Começa assim: "Cara Mrs. Tracy.
Esta é a carta mais difícil que escrevi nos meus vinte e cinco anos de vida, contudo senti que
era imperioso partilharmos a nossa dor mútua. Suponho que não havia grandes diferenças
entre o seu Jim e o meu Jim, excepto na capacidade de amar, mas nunca terei a certeza. Sem
dúvida que ele era um homem muito extraordinário.
Perdoe-me a necessidade que tenho de lhe escrever, agora que ele partiu. Por favor,
seja tolerante com esta estranha que provavelmente despreza por ter sido durante tão pouco
tempo uma outra Mrs. Tracy.
Parece-me que ninguém pode ensinar outra pessoa a amar. Desde muito cedo que
tomamos contacto com o amor, mas onde e como aprendemos a dar amor? Devo confessar
que me sinto confusa agora que fui capaz de agarrar o meu amor por Jim, segurá-lo
ternamente na mão e olhar para ele. Não sei porque é que Jim morreu e eu sobrevivi. Tenho
tentado pensar na razão e só fico mais confusa. Com o tempo, o Jim físico talvez se apague da
minha memória, e se calhar encontro outro homem com quem quero partilhar esta vida
preciosa. Contudo, mesmo que isso aconteça, Jim estará sempre comigo através da dádiva de
amor que me deixou e ficar-lhe-ei eternamente grata por esse legado.
Não é verdade que cada pessoa cria a sua própria versão do amor? Alguns deixam-no
murchar, outros alimentam-no com todas as forças. E geralmente constroem uma fortaleza
indestrutível. Agora compreendo que o amor está disponível para quem abra os braços para o
receber. Jim ensinou-me isso, mesmo sendo eu uma aprendiz tímida e cautelosa."
Heather respirou fundo e murmurou que nessa página havia algumas palavras que
nunca vira
- nem na aula de inglês, meu Deus. Ele instou-a a continuar.

- Está bem, então lá vai... "Depois dos dois anos que passei com Jim, acho que o
amor entre um homem e uma mulher é como um daqueles ca-lei-dos-có-pios antigos...
Daqueles tubos de cartão para que se olha por uma ponta, se vai fazendo rodar e percebemos
que podemos criar padrões diferentes. Alguns até nos fazem dar gritos de satisfação, sem
nunca sequer nos ocorrer que são todos feitos com os mesmos cristais. O nosso amor era
assim - suponho que o vosso também - umas vezes alegre, encarnado e amarelo, outras mais
suave e calmo, cor de malva e verde-azulado. Dependia da maneira como virávamos os
cristais nesse dia, hora ou minuto específicos.
Precisamente na véspera daquela noite horrível, Jim perguntou-me se eu me
importava de ir viver para a Irlanda se o trabalho dele assim o exigisse e eu respondi:
“Bem, eu não me interessa o sítio onde vivemos... seja ele na Lua ou em Manitoba.”
Desde que fôssemos uma unidade, a minha felicidade não teria limites.
Nessa altura, eu não podia imaginar viver sem o Jim e decerto nunca pensei que isso
me pudesse vir a acontecer. Depois, de repente já não havia escolha.
Não se preocupe, Mrs. Tracy. Eu não vou aparecer à sua porta para chorarmos juntas.
Pelo que Jim me contou, imagino que deve ser uma pessoa muito reservada e é muito difícil
partilhar a dor com estranhos. Além disso, nesta altura, não precisa das minhas lágrimas, que
teimam em não secar. Mas eu hei-de parar de chorar, juro. Penso que as pessoas que sabem
amar são capazes de conquistar tudo o que desejam.
Mrs. Tracy, eu nem sequer penso que a senhora precise de um sermão sobre amor,
um amor recentemente descoberto por uma pessoa de vinte e cinco anos que tarde
desabrochou. Quis apenas com esta pequena epístola chegar à mulher, que nunca conheci,
mas que partilhou Jim. Sinceramente, Janet."
CAPÍTULO SETE

Moravia estava bem-disposto.


Esta manhã, aquele tipo de manhã que reforça a fé de um homem numa qualquer
espécie de administrador supremo, provava que os tipos do Serviço Meteorológico são piores
do que os economistas a fazer previsões. Maravilhoso, pensou, enquanto observava o céu
azul-pálido sem nuvens através da janela do seu escritório.
Meu Deus, agora podia procurar-se devidamente o número Catorze. Ao longo de
todo o percurso para Elko, as informações eram de céu limpo e Moravia, vendo o barômetro a
subir, sabia que iria ficar assim durante uns dias.

- Muito bem, meus amigos, vamos à obra - murmurou ele.

Observava as lâminas luminosas das hélices dos dois Stearman que aqueciam na
rampa em frente ao hangar. Os pilotos já se encontravam nos cockpits, protegidos até aos
olhos contra o frio. Eram bons homens e não ficavam bloqueados com dúvidas aeronáuticas
como o Stiller. Moravia sabia que nada os impediria de proceder a investigações se vissem
algo de significativo na área onde Stiller pensava ter visto "qualquer coisa".
Dois outros Stearman iriam procurar a sul, leste e oeste de Elko para a hipótese de o
Catorze, por razões desconhecidas, ter resolvido voar numa dessas direcções. Os restantes
dois Stearman assegurariam o correio.
Agora que o tempo estava limpo previa-se a chegada a Pasco de quatro De Havilland
da Guarda Nacional por volta do meio-dia. Moravia tencionava enviá-los para sul de Pasco.
Um rancheiro que vivia a leste de Pendleton, Oregon, tinha telefonado a informar que vira
uma coisa a brilhar num dos cumes. Seria uma rocha reflectindo o desgaste glaciário de há
cinquenta mil anos? Um pássaro com uma asa branca? Sabia-se lá. Até o mais improvável
tinha de ser investigado.
Tinham todos que se apressar, pensou. Nesta latitude, os dias eram muito curtos e o
céu limpo acarretava a sua própria maldição. Hoje à noite viriam as estrelas e, com elas, um
frio terrível para os sem tecto.
Depois de Heather acabar de ler a carta, o piloto ficou em silêncio durante um grande
bocado. Era como se estivesse à espera que ela respondesse a todas as perguntas que agora lhe
confundiam o pensamento. Olhou para o relógio. Como é que já podiam ser 10 horas? Outro
dia passado e ele sem ter conseguido nada.
Agora, onde estavam todos os seus grandes projectos? Onde estavam os bens
necessários para os manter vivos e, acima de tudo, onde estava a sua coragem para não deixar
transformar esta situação complicada em calamidade?
Heather também ficou em silêncio, revirando a carta.

- Que achas da carta? - perguntou ele por fim. Queria ouvi-la dizer que era a carta
mais intrigante que já ouvira, porque decerto fora escrita por uma mulher que ele desejava
conhecer melhor.

- Acho que ela deve ser o seu oposto - disse Heather. - Não se aborrece de falar de
coisas como o amor. Abre-se e deixa sair. Eu gosto disso.

- Diz lá outra vez qual era o nome dela.

- Janet. O que eu quero saber é quem é a outra Mrs. Tracy.

- Deduzo que seja a sogra.

Heather estudou a carta por momentos e depois disse:

- Não... Talvez não, porque ela diz que é muito difícil partilhar a dor com estranhos.

- Ela chama-lhe Mrs. Tracy, não chama?

- Pois, mas diz logo no início que nunca se conheceram. Ora, uma mulher não tem de
conhecer a mãe do marido?

- Não, necessariamente.

- Bem, que maneira engraçada de se estar casado. Quando eu me casar, quero


conhecer a mãe do meu marido. Não vá ela ser uma bruxa.

- E eu digo que tens esperteza demais para a tua idade. Quando é que me contas a
história da tua vida?
- Toda? Dos onze anos e oito meses? Quer que eu lhe conte como é que tive um
cinco em geografia sem sequer saber onde fica a Bolívia?

A luz do Sol penetrava a seda do pára-quedas e o piloto interpretou isso como um


sinal de melhoria geral. O tempo estava a clarear e, mais importante, a rapariga começava a
pensar no futuro. Se ela se pudesse envolver com esta carta, ou com qualquer coisa tangível,
então aquela sensação mesquinha de que ela lhe dizia o que pensava, que ele gostava de ouvir,
desapareceria.

- Acha - perguntou Heather - que Mr. Tracy podia ter tido duas mulheres?

- Duvido. Ela não diz que iam viver para a Irlanda? Não diria uma coisa dessas à
outra mulher e, além disso, o marido não parece ter sido bígamo.

- Que é um bígamo?

- Pode dizer-se que é um homem ou uma mulher que não sabem contar.

- Ouça isto, Jerry. Ela diz que quer apenas chegar à mulher, que nunca conheceu,
mas que partilhou Jim. - Olhou para ele por cima da carta e perguntou-lhe o que pensava
daquilo.

- Talvez fosse uma ex-mulher - disse ele.

- Quer dizer que o marido se divorciou da primeira Mrs. Tracy?

- Pode ser.

Começava a aborrecer-se com a curiosidade de Heather e a sua única preocupação


com uma das revelações da carta. Tentou recordar o que a mulher dizia sobre o amor.

- Já percebi - disse Heather em voz alta triunfante. - Diz aqui. "Por favor, seja
tolerante com esta estranha que foi durante tão pouco tempo outra Mrs. Tracy." Tem que ser a
segunda mulher a escrever à primeira. - Heather pegou no envelope. - O nome dela é Mrs.
James Tracy e vive em Portland. - Voltou a pôr a carta no envelope e disse: - Não está a tomar
atenção. Não tem piada nenhuma se não liga ao que diz a carta.
Era verdade. Não tinha estado a ouvir. Os seus ouvidos estavam sintonizados para
um som que pensou ser uma partida do vento. Com o suave sussurrar dos ramos dos
pinheiros, era quase imperceptível. Ficou sentado com a cabeça erguida, o corpo tenso, os
olhos de um lado para o outro, como se estivesse a examinar todas as costuras do pára-quedas.

- Para que é que está a olhar? - perguntou Heather.

- Para nada. Estás a ouvir o mesmo que eu?

- Não ouço nada.

Começou a rastejar lentamente até à entrada, parando muitas vezes, à escuta, com a
cabeça inclinada.

- Onde é que vai? - gritou-lhe Heather.

- Cala-te! - respondeu ele bruscamente. - Não faças barulho nenhum.

Continuando em direcção à entrada, ouviu atrás de si um gemido abafado. Ignorou-o,


tinha de o fazer, porque outro som o absorvera totalmente.

- Parece-me - murmurou ele -, é muito ao longe, mas parece-me estar a ouvir um


avião.

Moravia estava a falar para Elko e ficou relativamente satisfeito com o que ouviu.

- Tivemos problemas com o arranque de um Stearman. Foi um magneto. Por isso,


arrancámos com um velho Swallow. Eram oito horas quando ficou tudo pronto.

- Neste momento, estão todos no ar? - perguntou Moravia.


- Estão. Mas Montgomery, que vai no Swallow, nunca tinha voado num.

- Ele está nervoso? - Moravia estava preocupado com os motores Curtiss K-6 dos
Swallow. Tinham um registo de segurança desanimador.

- Ele diz que até voaria numa pá de estrume para encontrar Jerry.

- Óptimo. Há quanto tempo descolaram os aviões?

- Há cerca de uma hora. Devem vir reabastecer-se por volta do meio-dia. Eu telefono
se tiverem visto alguma coisa.

- Fale-me de qualquer das maneiras. Ponha-os de novo no ar mal se reabasteçam.

- Vão precisar de descansar um pouco. Devem estar com frio.

- Não tanto como Jerry.

Moravia ficou satisfeito por só ter hesitado ligeiramente em tratar o piloto por Jerry e
não por Catorze. No seu espírito, formava-se progressivamente uma nova imagem. Apagava-
se o simples número e começava a ver o homem a quem acabara de chamar Jerry como um
ser humano que também sabia o que era sofrer uma derrota pessoal.

- Continuem a procurar até ser escuro - disse Moravia.

Quando saiu do abrigo, o piloto percebeu que o som que ouvira não fora imaginação.
O seu instinto levou-o a concentrar-se num som que seria inaudível se não estivesse à espera
de o ouvir. Passara duas noites e quase dois dias literalmente a sonhar com este momento.
O som desvaneceu-se e só se ouvia novamente o barulho dos pinheiros. O vento
devia estar a perturbar as ondas de som e a destruir os ecos normais, pensou. A doce melodia
afastou-se dos seus ouvidos. Correu um pouco pela neve. Para quê? A música era mais clara
aqui - a dez passos do abrigo? Parou para escutar de novo, desejando intensamente ouvir o
barulho ritmado do motor de um avião. Em pensamento ouvia-o, sentia as reverberações
preguiçosas do hélice batendo no ar, porém sabia que na realidade não estava a ouvir senão o
ranger do seu blusão de
cabedal quando movia lentamente a cabeça de um lado para o outro.
A rapariga ia ficar perturbada, porque tinha de lhe dizer que fora um falso alarme. E
começaria decerto a gemer mais que nunca, e ele iria começar a pensar mais seriamente em
deixar a montanha já antes de dar em doido.
O sinal de fumo estava preparado, mas só podia ser feito uma única vez. Levaria
mais que meio-dia a apanhar boa lenha para uma segunda vez. Empilhara a melhor lenha que
tinha numa pirâmide abaixo do sítio do abrigo. O óleo para deitar por cima encontrava-se
dentro de um recipiente grosseiro que fizera de um pedaço do tubo de escape. Estava a postos
junto à pirâmide e produziria um belo fumo negro que até um cego veria a quilómetros. Isto é,
se o óleo não estivesse demasiado congelado para arder e se a gasolina que ele salvara desse
para acender a lenha verde. Eram muitos os ses.
Sim! Ali... acolá! Era mesmo. De certeza. E o som estava a aproximar-se. Não havia
dúvida.
Procurou no bolso a caixa de fósforos e lembrou-se de que os deixara no abrigo.
Dentro da sua luva. Para os manter secos. Agora que os fósforos deviam estar à mão.

Sempre que se encontrava assim sozinha, a ideia voltava. Miss Phipps, a professora
de História Universal, havia de compreender. Uma vez falara na aula de Joana d'Arc e de
como ela preferira ser queimada na fogueira a continuar a lutar.
Heather tentou lembrar-se contra quem é que Joana combatia, mas não conseguiu.
Sabia que esta dor devia ser a mesma que sentiam as pessoas que eram queimadas na
fogueira. Heather d'Arc. Ninguém no Mundo inteiro havia de dizer alguma vez que ela era
piegas.
De cada vez que a ideia voltava era mais forte. Heather olhou para o sítio onde Jerry
dormira. O tecido ainda estava amachucado da pressão do seu corpo. O saco do correio que
usara como almofada estava num canto distante e por baixo dele emergia ligeiramente um
pedaço de cabedal.
Ninguém no Mundo, por mais forte que quisesse ser, suportaria esta dor. Como
Joana d'Arc, algumas pessoas ficam melhor quando morrem. Esticou-se e puxou o tecido para
si. Deslizou facilmente sobre a neve compacta e com ele moveu-se o saco do correio com o
bocado de cabedal por baixo. Quando lhe conseguiu chegar, os seus dedos fecharam-se sobre
o coldre. Levantou-o devagar e olhou-o.
Tirou a pistola do coldre e teve um arrepio ao tocar-lhe, de tão fria que estava.
Pensou em Jerry. Nunca ninguém iria acreditar que ele era um homem tão extra-especial.
Como o príncipe de Gales ou um dos grandes homens de que falara Miss Phipps. Ele tinha
que descer a montanha enquanto era tempo. De todas as pessoas no Mundo inteiro, ele
merecia mais que ninguém saber que alguém o amava.
Como um daqueles caleidoscópios? Tudo dependia da forma como caíam os cristais.
As pessoas que sabem amar conseguem realizar qualquer coisa - como Mrs. Janet Tracy dizia
na carta.
Experimentou encostar o cano da pistola ao coração. Depois, à testa e desviou-se por
causa da frieza da arma. Um tipo de dor diferente.

Agora o barulho do motor era inconfundível e aproximava-se rapidamente. Com a


pressa, o piloto caiu duas vezes ao querer subir para chegar ao abrigo. Sabia que não tinha
mais que um minuto ou dois para ir buscar os fósforos. Depois, podia ser demasiado tarde. O
seu espírito ansioso percebeu de repente que estava a ouvir um motor de um avião militar.
Parecia um Curtiss K-6, o que significava que era um Swallow. Que diferença é que isso fazia
quando os segundos passavam?
Vai buscar os fósforos e esquece tudo o resto!
Entrou de rompante no abrigo. Uma vez lá dentro, levantou a cabeça e viu o cano da
sua pistola.

- Vá-se embora - disse Heather calmamente. - Volte lá para fora, Jerry.

Ele hesitou, incrédulo. O seu corpo permaneceu imóvel.

- Que é que pensas que estás a fazer?

- Vá-se embora, disse eu. Estou a falar a sério, Jerry.

Ele olhou-a nos olhos e percebeu que falava a sério.

- Heather. Isso é perigoso. Larga-a. - Tentou alcançar a pistola, mas viu que ela tinha
o dedo no gatilho. - Heather. Vem aí um avião. Tenho de fazer já uma fogueira. Pode ser a
nossa única hipótese. - Tentou manter a voz indiferente, mas percebeu que revelava medo.
- Eu gosto muito de si, Jerry. Quero que você viva. Vá-se embora, por favor...

Então percebeu exactamente o que tinha a fazer e forçou um sorriso.

- Muito bem. Se assim o queres. - Moveu-se como que para sair do abrigo, depois
parou. - Posso ir buscar os fósforos?

Ela fez um ligeiro aceno de cabeça. Ele alcançou a luva e tirou a caixa de fósforos.
Por momentos, voltou-se de costas para Heather. Depois, virou-se de repente, bateu
com a luva com força e arrancou-lhe a pistola da mão. Agarrou-a rapidamente, enfiou-a no
cinto e dirigiu-se para a entrada. Ofegante de esforço, olhou de relance para trás. Ia a dizer
"És uma menina muito má", mas viu que ela estava a chorar.
Saiu apressadamente do abrigo e correu colina abaixo até à pirâmide de lenha.
Tentou pensar só na fogueira, mas era assaltado por outros pensamentos. Haveria
qualquer outra coisa no abrigo com que ela se pudesse ferir?
O barulho do motor intensificava-se. Enquanto tirava um fósforo da caixa, deu uma
olhadela ao céu. Limpo, azul. Ainda havia tempo para fazer um bom fogo.
Riscou o fósforo. Faiscou, mas não se acendeu. Repetiu o gesto e ficou surpreendido
ao ver o mesmo resultado. Mas que espécie de fósforos se fabricam hoje? Viu que a mão lhe
tremia. "Acalma-te e pára de ofegar. Ainda há tempo." Esforçou-se por respirar devagar,
enquanto acendia um terceiro fósforo e colocava as mãos em concha à volta da chama fraca.
Muito bem, lá estava ela. Cá estava o primeiro e melhor amigo do homem, pronto para
acender uma fogueira que faria sinal a um verdadeiro amigo lá nas alturas. Tinha que ser
completamente cego se não visse o fogo preto que ia formar-se.
O som do motor ecoava na encosta da montanha e parecia encher toda a área com a
sua ressonância, contudo ele não ousava desviar os olhos do seu trabalho. Concentrou toda a
atenção no fósforo e segurou-o com cuidado até pegar fogo a alguns gravetos. Agarrou no
recipiente do óleo, resolvido a não o despejar cedo demais. Isso seria a coisa mais estúpida de
todos os tempos, disse a si próprio, fazer uma boa fogueira e depois apagá-la na altura errada.
Olhou o céu de relance. Era um Swallow. Vinha mesmo na sua direcção. Não podia
falhar. Aleluia!
Deitou o óleo no fogo e atirou o recipiente para o lado. Pôs-se em pé e começou aos
pulos, acenando os braços e gritando como se o piloto do Swallow o pudesse ouvir.
O avião passou pela frente do Sol e ele ficou momentaneamente cego. Depois, viu-o
de novo, tão perto que conseguia ver as manchas de óleo no bojo da fuselagem. Gritou até se
sentir tonto, batendo com as mãos e elevando-as acima da cabeça em saudação de vitória. Por
fim, esperou impaciente os primeiros sinais de descida do avião, mas o Swallow continuou
em linha recta em direcção ao cume da montanha.
O piloto olhou para a fogueira. Havia uma boa coluna de fumo castanho elevando-se
da pirâmide, embora as chamas fossem poucas. Olhou para cima, com as mãos ainda sobre a
cabeça. O Swallow agora vai dar a volta, pensou. Está apenas a verificar a possível existência
de ventos descendentes antes de iniciar a descida.
Imaginou o Swallow a inclinar-se e depois a descer graciosamente e quem quer que
estivesse a pilotar teria um voo rápido e rasteiro inesquecível. Depois, regressava a Elko e
dava a posição do Stearman na montanha e uma equipa de salvamento punha-se a caminho.
Seria tão simples como isso.
Deu por si a conter a respiração. O Swallow inclinou uma asa para a esquerda e ele
pensou que era o início da descida. Mas depois a asa direita inclinou-se e voltou à posição
inicial. Pensou que devia haver qualquer turbulência lá em cima.

"OK, amigo. Eu tenho muito tempo."

- Ei, espere aí! - O piloto começou a acenar freneticamente. Porque o Swallow


continuou em linha recta para norte. - Vá lá...!

A boca do piloto abriu-se e saiu um estranho grito quando viu que o avião continuou
o seu caminho em direcção ao cume, brilhou por instantes com o sol e depois desapareceu.
De repente, deixou de se ouvir qualquer barulho de motor. De repente, só restava o
céu imaculado, o sol e a montanha. Ficou a olhar para o cume à espera que o Swallow
reaparecesse, embora soubesse que isso não ia acontecer. Como é que alguém podia não ver
um homem em pé no meio da neve numa encosta deserta de uma montanha? Como é que
alguém podia não ver aquela grande espiral de fumo castanho?
Deixou cair as mãos e inclinou a cabeça. "Devo ser muito, muito pequeno aqui em
baixo", pensou, "...um pigmeu invisível." Olhou para o fumo e percebeu que tinha acendido o
fogo demasiado tarde. Por dois ou três preciosos minutos. Olhou de novo para o cume e
depois para baixo, para o vale. E começou a rir, baixo a princípio e depois mais
violentamente. Os seus olhos encheram-se de lágrimas enquanto brandia o punho ao céu. E
gritou com todas as forças que lhe restavam:

- Certo! Eu sei! Eu não sou ninguém, sou um raio de uma nulidade.

Continuou a rir enquanto se arrastava em direcção ao abrigo. E reparou que o seu


riso soava quase exactamente como os gemidos de Heather.

CAPÍTULO OITO

Estava deitado de costas, com o saco do correio a servir-lhe de almofada. De olhos


abertos, fixos na luz que se desvanecia sobre a seda do pára-quedas por cima de si, esforçava-
se por visualizar o que o piloto do Swallow estaria a fazer naquele momento. Se calhar, estava
a tomar café em Elko ou Boise ou até em Pasco e a explicar a Moravia ou a outra pessoa
qualquer que não tinha visto nada de especial.
Quem poderia adivinhar que o atraso de dois ou três minutos a acender uma fogueira
podia ser tão crucial? Quem é que iria imaginar que uma garota podia sequer pensar em
suicidar-se? E como é que um piloto poderia não ver tanto fumo contra um fundo de neve?
Fácil. Os pilotos não têm olhos na parte de trás da cabeça. E o Swallow talvez nem
pertencesse à companhia. Talvez fosse um avião particular ou alguém dos Serviços Florestais.
E o seu piloto provavelmente não sabia que alguém se perdera. Porque se havia de incomodar
a olhar para baixo?
Se o Swallow tivesse sido enviado por Moravia, talvez o piloto estivesse agora a
dizer: "Estive naquela área e não vi nada. Estava um dia completamente limpo, de modo que
eu conseguia ver à distância um bom par de quilómetros para cada lado."
Será que Moravia lhe perguntaria se ele tinha conseguido ver directamente para
baixo? Devido à localização da asa inferior do Swallow e ao ângulo de visão para a frente, a
partir do cockpit, a visibilidade directamente para baixo era bastante má. Moravia nunca
pilotara um Swallow. Na verdade, quando apareceram, já ele não voava. Teria perguntado se
o piloto andara em ziguezagues para não falhar nada ou simplesmente assumiria que ele não
voara em linha recta? Será que um tipo dos novos, como, por exemplo, Montgomery, que
nunca pilotara um Swallow, ficava tão preocupado que só se apercebia do que podia não ter
visto lá em baixo quando já era demasiado tarde?
Depois do relatório do piloto do Swallow, era lógico que Moravia abandonasse esta
área e passasse para outra. Pressionado pelo tempo, pelos homens e aviões, diria: "Pois bem,
continuemos com a busca, pois temos ainda uma grande área a cobrir."
O piloto murmurou para si próprio:

- Culpar uma rapariguinha não te vai tirar desta embrulhada.

Nessa altura, Heather gritou-lhe:

- Que é que disse, Jerry?

- Eu não disse nada.

- Jerry, eu quero aquele cavalo.

- Queres o quê?

Ela murmurava e gemia e pensou que com certeza não a tinha entendido bem.

- Quero aquele cavalo preto. Eu sempre quis ter um cavalo preto.

Ele arrastou-se para junto dela e olhou-a nos olhos. Tinham uma expressão vazia.

- Que é que vem a ser isso do cavalo? - perguntou.

Heather apontou e gritou:

- Aquele que vem na nossa direcção! Vai passar-nos por cima. Pare o cavalo, Jerry.
Pare-o antes...

Voltou a gritar e ele tapou-lhe a boca com a mão. Mordeu-lhe o dedo. E ele afastou a
mão de repente.
- O cavalo, o grande cavalo negro - repetia sem cessar, enquanto ele chupava o seu
dedo ensanguentado.

- Tens os dentes bem afiados - comentou. Estava tão chocado com o comportamento
dela que mal sentia a dor na mão. Como é que se faz voltar à realidade as pessoas em delírio?
Depressa, doutor.

A voz dela fez-se ouvir num outro grito. Instintivamente, ele tapou os ouvidos com
as mãos.

- Importas-te de parar de gritar? - perguntou tão calmamente quanto lhe era possível.

Heather abanou a cabeça violentamente e emitiu um som de asfixia. Ele estendeu o


braço para lhe levantar a cabeça, mas ela empurrou-o. Depois, começou a esgatanhar a cara e
a murmurar repetidamente:

- Não deixe o meu cavalo fazer-me mal.

Quando lhe afastou as mãos do rosto, ela tentou bater-lhe, mas só conseguiu atingir o
blusão de cabedal. Lutaram em silêncio e ficou espantado com a força que ela tinha. Quando
por fim se acalmou, ele tirou o cinto e atou-lhe os braços ao corpo. Quando se apercebeu de
que estava presa, começou a soluçar violentamente e por muito tempo pareceu não ouvir as
suas tentativas para a acalmar. Por fim, ela descansou aninhada nos seus braços e ele pensou
que o seu discurso para a acalmar mais parecia o resmungar de um doido.

- Se não te acalmas, os vizinhos vão queixar-se. Claro que estamos em apuros, mas
não ouviste falar de pessoas que naufragaram e ficaram a cantar até serem salvas? Canta, não
chores. Vamos fazer disto o nosso lema.

Pensou se lhe havia de dar outro comprimido. Mas talvez lhe tivessem provocado o
delírio. Viu que tinha a testa húmida e percebeu que, se ela tinha tido febre, já passara.
Acariciou-lhe o cabelo e mal podia acreditar na sua própria voz quando lhe disse:

- Heather, preciso de ti. Mais do que tu alguma vez pudeste imaginar.


Por fim, acalmou-se e voltou de novo a ser ele. Retirou-lhe o cinto dos braços e ela
sorriu.

- Mostra-me as tuas covinhas, mas não ponhas esse ar tão ajuizado - disse-lhe ele.

- Desculpe eu causar tantos problemas. - Estava a ficar ligeiramente mais animada.

- Estive a pensar em Mrs. Tracy e acho que a segunda Mrs. Tracy escreveu aquela
carta à primeira Mrs. Tracy porque ambas amavam o mesmo homem. Tentava partilhar a dor
com ela porque devia necessitar de um amigo.

- És psiquiatra ou bruxa?

- Mrs. Gooch diz que eu sou muito directa. A minha mãe disse-lhe que eu tenho
poder de dedução porque já é de família.

- Quem é Mrs. Gooch?

- A minha professora de Matemática. Posso ver a carta outra vez?

Ele sabia exactamente onde se encontrava a carta porque a colocara no bolso do seu
blusão. Pensara lê-la de novo. Considerou que era estranho esta ter passado a ser a carta,
enquanto todas as outras tinham pouco interesse. Entregou-lhe a carta, e depois de a estudar
por momentos, ela disse:

- A parte que eu gosto mais é esta quando ela fala de como vai parar de chorar. Aqui
ela diz que as pessoas que sabem amar são capazes de conquistar tudo o que desejam.

- Talvez ela tenha razão.

- Bom. E que tal se eu fingir que estou apaixonada por si, talvez deixe de ser uma
chata.
- Tu não és uma chata. Que é que eu faria sem ti?

- Se Mrs. Tracy consegue deixar de chorar, eu também consigo. E assim talvez


consigamos descer a montanha juntos.

- É demasiado arriscado por várias razões.

Ela estendeu-lhe a carta.

- Leia-a outra vez, Jerry. Aposto que na escola Mrs. Tracy teve a observação muito
directa na caderneta.

Umas horas depois, ele avaliou a sua condição física e achou-se em má forma.

Tomou consciência de que lhe restava no máximo mais um dia antes de ficar
demasiado fraco para fazer qualquer coisa que não fosse esperar. E esperar, pensou, era
morrer. Levantou-se lentamente da sua cama de tecido e os sinais da sua letargia rodearam-no
por todos os lados. Quando a fogueira lá fora se extinguira, não a reacendera. A madeira
disponível parecia estar demasiado longe. A fogueira dentro do abrigo apagara-se por duas
vezes, e de cada vez levara muito tempo a reavivá-la. Em breve, encontraria desculpas para
não sair do abrigo.
Rastejou até lá fora, levando a carta consigo. O Sol já desaparecera e à medida que
caminhava a neve rangia debaixo das suas botas. Sentia o ar muito frio, ou seria a fome que
diminuía tanto a sua resistência? Desejava tanto estar sozinho por uns momentos, sozinho
com a carta que se tinha tornado como que a voz de uma terceira pessoa na montanha.

"Instale-se, Mrs. Tracy", pensou. "Quererá a segunda Mrs. Tracy ter a amabilidade
de jantar connosco? Temos um chá de agulhas de pinheiro soberbo e posso dividir o meu
pedaço de chocolate consigo?"

Parou no meio do crepúsculo e ficou a olhar para o vale distante lá em baixo. Não
havia vento e a avaliar pelo aspecto do céu havia poucas probabilidades de vento na manhã
seguinte. Contudo, devia ter presente que a neve tinha uma crosta dura, e se ele partisse essa
crosta carregando o seu fardo, podia ser a calamidade final. Cerca de trinta quilómetros até
McDermitta, digamos, oitocentos metros por hora... serão cerca de quarenta horas. Eram
quase dois dias inteiros a sulcar a neve espessa, se tivessem sorte.
Tirou a carta do bolso do blusão e começou a ler. Agora, estava certo de poder
visualizar Janet Tracy. Devia ser pequena, impetuosa e de cabelo escuro. As suas palavras
revelavam um entusiasmo por todas as coisas. Devia conhecer a humildade porque
obviamente tinha a coragem de se censurar por autocompaixão.

- São estas coisas - comentou - que eu compreendo. - Concluiu que Mrs. Tracy
também devia saber o que era ter escapado à morte por um triz, e ele considerava que as
pessoas que têm essa experiência nunca mais voltam a ser as mesmas. Depois de reler a carta
umas dez vezes, achou que lhe agradava particularmente a parte em que ela falava em segurar
o amor do marido na mão.
Dobrou a carta com todo o cuidado, colocou-a de novo no envelope e meteu-a no
bolso. De súbito, soube o que tinha a fazer. Havia uma maneira de descer a montanha com
Heather - talvez. Continuava a ser bastante arriscado, mas pelo menos não morriam sem
tentar.
Dirigiu-se à fuselagem o mais depressa que pôde. Iria utilizar a última luminosidade
do crepúsculo para ver todas as coisas de que ia precisar na manhã seguinte.
Belvet a oeste da montanha, para lá do rio Quinn e do Desert Valley, uma cunha de
ar quente e húmido separara-se de uma faixa de baixas pressões que se estendia para leste
sobre as serras. A cunha desenvolveu-se numa pequena frente e trouxe chuva às regiões, que
até aí tinham sido cobertas por grandes neves.
O ar quente espalhou-se durante a noite, envolvendo primeiro os pontos mais altos e
depois estendendo-se pelos vales. Os antílopes e os outros animais selvagens gostavam da
chuva porque reduzia a superfície de gelo e facilitava os movimentos na procura de alimentos.
De madrugada, estes animais, que estavam esfomeados e alerta a todas as oportunidades de
comida, ficaram preocupados. Escutavam sons familiares, o sibilar de pequenas avalanchas de
neve escorregando dos picos altos e o ribombar ocasional das grandes avalanchas como
trovões montanha abaixo.
Os animais deslocavam-se com cuidado, atentos ao mínimo sinal de alarme, porque a
experiência os avisava de novos perigos. Os seus instintos bem desenvolvidos levaram-nos a
evitar o lado sul da montanha.
O piloto acordou muito antes de os primeiros raios de luz entrarem pela seda do pára-
quedas. Deu graças por a garota estar a dormir. Ainda restavam três comprimidos, o
suficiente, esperava, para descer a montanha. Pôs-se de joelhos e tremia incontrolavelmente.
Seria possível só estarem na montanha há três noites e dois dias? Parecia que não voava há
meses.
Rastejou até à fogueira e quando viu que as cinzas estavam frias pensou se havia ou
não de acendê-la de novo. Levava tanto tempo e nesse dia todos os minutos eram preciosos.
Olhou para o relógio e decidiu que não tinha alternativa. Iam precisar de água e
poderiam começar por um chá quente. Eram 6 horas. Agora não haveria mais esperas e "se o
que estou prestes a fazer é um erro", pensou, "será o meu último erro.
Mas sinto-me forte esta manhã, mais forte que nunca desde que aterrámos. Estou
com uma fome de leão, mas mesmo assim sinto-me forte".
Acendeu uma pequena fogueira com uma mão-cheia de gravetos que guardara da
tarde anterior. Fez muito fumo, pensou que a rapariga se iria queixar, mas não ouviu nenhum
som.
Rastejou até junto dela, escutou por momentos a sua respiração e beijou-a
suavemente no rosto. Depois, rastejou até lá fora e ficou desapontado com a madrugada. O
céu estava completamente coberto de nuvens escuras. Porém, estava calor, de tal modo que os
farrapos de neve que lhe batiam no rosto se derretiam instantaneamente. Ficou de novo
satisfeito. Podia trabalhar sem luvas e por isso muito mais depressa.
Regressou para junto da fogueira com o reflector do farol de aterragem cheio de
neve. Empilhou barras partidas das asas do Stearman para fazer uma boa labareda. Já não
havia necessidade de as guardar para uma emergência. Depois, acordou a rapariga. Perguntou-
lhe se ela ia ficar todo o dia na cama e chamou-lhe preguiçosa.

- Dói-te muito se te sentares?

- Dói.

- Mas tens que ir sentada quando eu te levar montanha abaixo.

Ela hesitou e, passados uns instantes, pressionou-lhe a mão com os dedos.

- Então, sento-me.

- Estás pronta para um voo experimental?


Sorriu e fez que sim com a cabeça, mas ele viu o medo nos seus olhos e pensou: "Se
ela gritar, nem que seja só uma vez, não vamos conseguir."

- Queres primeiro tomar um comprimido?

Abanou a cabeça em sinal de recusa. Viu os lábios dela comprimidos, o seu pequeno
maxilar chegado para a frente e as mãos fechadas em punhos.

- Muito bem, vamos fazer tudo com muita calma - disse ele, passando-lhe a mão por
baixo dos ombros. - Se não aguentares, pensaremos noutra coisa. - "Em quê?", interrogou-se.
Mal havia tempo e energia para o que planeara com tanto cuidado.

Enquanto a levantava pelos ombros muito lentamente, observava o seu rosto. Quando
o urso caiu de cima dela, recordou-se de como era pequenina.

- Tudo bem até aqui? - perguntou ele.

Ela acenou afirmativamente, mas os lábios tremiam-lhe e ele percebeu que lhe devia
de estar a doer.

- Não falta muito - disse, encantado por, numa altura como esta, ter instintivamente
mantido o lado bom do rosto virado para ela. Fez uma pausa. - Está quase - continuou. –
Queres experimentar o resto?

- Quero. Eu estou bem - respondeu ela com uma voz tão fraca que mal se ouvia.

Moveu-a devagar mais um centímetro para a frente.

- Aguentas? Esta é mais ou menos a posição em que irás. Se não conseguires, é


preciso sabermos já.

Ela engoliu em seco e o piloto afastou o olhar da angústia estampada nos seus olhos.
Endireitou-a de novo mais um bocadinho e esperou um pouco.
- Então?

- Eu consigo. Hei-de conseguir.

- Parabéns. - Voltou a colocá-la numa posição inclinada. - Vamos tomar um bom


pequeno-almoço e depois tenho trabalho para cerca de uma hora. Em breve, minha amiga,
iremos montanha abaixo.

Os olhos dela encheram-se de lágrimas e ele sentiu um grande desejo de lhas limpar.
Mas pensou: "Não devo dar sinais de fraqueza nas horas que se avizinham. Não
conseguiremos vencer se chorarmos os dois."
Fez um pouco de chá de agulhas de pinheiro depois de a água estar quente. A seguir,
rastejou para junto de Heather e pediu-lhe para segurar no recipiente do chá, enquanto ele
servia o prato principal. Partiu ao meio o que restava do chocolate e aconselhou-a a mastigar
devagar, uma vez que a porção era tão pequena.
Foram bebendo o chá aos goles alternadamente, passando o recipiente de um para o
outro com uma formalidade solene. Não disseram nada um ao outro senão com os olhos e isso
era o suficiente, pensou ele. Porque sabia que as pessoas prestes a arriscar a vida geralmente
eram pouco dadas a conversas.
Quando acabaram, ele disse-lhe para ter paciência e começou a arrastar-se para a
entrada. Acabara de se voltar de costas quando parou. Ficou a ouvir um ruído estrondoso fora
do abrigo. Aumentou de volume e depois parou abruptamente.

- Que foi aquilo? - perguntou Heather.

- Não sei.

- Parecia um comboio a passar. Todos os dias, às três horas, o Union Pacific passa
em Elko e o som parece tal qual este.

- Julgo que não foi isso o que ouvimos.


Prosseguiu em direcção à entrada. Nunca ouvira tal barulho e não lhe agradava nada.
Ficou animado quando saiu para a luz do dia. Que calor! E ao fim e ao cabo não parecia ser
um mau dia para a expedição. O pico da montanha estava tapado com nuvens, mas a
visibilidade nas vertentes mais baixas era bastante boa. Viu lá em baixo um monte de granito
que estivera totalmente coberto de neve e os contornos escuros dos cursos de água
distinguiam-se agora claramente.
Fez figas com os dedos quando se aproximou do cockpit de trás do Stearman.
"Agora", pensou, "vou precisar de um montão de pura sorte para levar a cabo a primeira fase
do meu plano." Limpou a neve do banco e das correias que o prendiam à fuselagem. E
cogitou: "Meu Deus, porque é que constroem o avião e todas as suas peças com tanta
solidez?" Depois, quando manuseava as porcas e os seis parafusos que seguravam o assento à
estrutura, repreendeu-se por estar a ser irracional e ingrato. "Não, decididamente, não
defenderia um avião menos sólido, mesmo que nunca me passasse pela cabeça vir a cair com
um avião na vertente de uma montanha."
Graças à previdência de Moravia, ele não estava sem recursos. Contudo, ia ser difícil
retirar o assento quando as únicas ferramentas disponíveis eram uma chave de parafusos, um
alicate e uma chave inglesa. Destinara uma hora para esta tarefa. Quase duas horas mais tarde,
com os nós dos dedos ensanguentados, retirou a última porca, desatarraxou o último parafuso
e tirou o assento para fora do cockpit. Pousou-o na neve e sentou-se nele. Lambeu as mãos e
lembrou-se de que não incluíra nos seus planos o peso do banco. Meu Deus, como era pesado.
A sua ideia era fixar as faixas do pára-quedas ao banco e depois enfiar nelas os
braços da maneira normal. As costas do banco ficariam encostadas às suas e o assento virado
para o lado oposto. Heather ficaria pelo menos razoavelmente confortável e o seu peso seria
distribuído proporcionalmente. Quando sentisse a necessidade de aliviar o peso das costas,
havia de encontrar alguma coisa de altura semelhante à do banco para o apoiar. Se Heather
quisesse deitar-se, ele podia tirar as correias dos ombros. Mas o peso do banco, mesmo sem
Heather, era impressionante.
Sentou-se na neve, tentando achar um processo de transportar a rapariga sem o
assento, mas tudo em que pensava era ainda menos prático. Decidiu dispensar o cinto de
segurança, o que poupava algum peso. Se a caminhada se tornasse turbulenta, Heather teria de
se segurar. Fixar as faixas do pára-quedas foi mais fácil do que esperava, mas já a manhã ia a
meio quando levou a sua obra para o abrigo. Do lado de fora, fez um monte de neve que lhe
dava pela cintura e colocou- lhe o banco em cima.
Cansado do esforço, prometeu a si próprio descansar uns bons cinco minutos antes
de trazer Heather para fora do abrigo. Dera por si a cambalear de vez em quando e tivera
algumas vertigens, o que o enfurecia. Se pudesse deitar-se e fechar os olhos por uns
momentos, talvez a tontura passasse.
De súbito, mudou de ideias quanto ao descanso. Porque no lado oposto do planalto,
onde sobressaía da montanha um bloco gigantesco de granito, viu uma massa enorme de neve
e pedra caindo da cobertura nublada sobre a encosta. Descia rapidamente, como uma grande
vaga de oceano encimada por espuma, e espraiou-se no vale lá em baixo. Momentos depois,
ouviu o estrondo assustador da sua passagem.
Foi logo buscar Heather.

1
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CAPÍTULO NOVE

Moravia estava de novo à janela a meditar na decepção da busca do avião número


Catorze e no homem desafortunado que fora o seu piloto.
Fora? Talvez tivesse morrido instantaneamente, o tipo de morte que qualquer piloto
preferia, caso fosse inevitável, e então não fora assim tão infeliz. Desde que Moravia voara
pela primeira vez, o seu credo tinha sido: "Se tem de acontecer, que não seja com fogo nem
com o avião a desfazer-se aos bocados, comigo a ver. Que seja contra uma montanha ou coisa
parecida, de modo que num minuto eu deixe de existir." Não era uma oração, reflectia
Moravia, mas um eco da filosofia de todos os pilotos que conhecera desde os seus dias em
França até àquela manhã agoirenta.
Havia, claro, o rosto do número Catorze, que não era propriamente decorativo para a
casa. Lá fora estava o mecânico Rohrbach, a quem faltava uma das mãos, graças ao hélice de
um Jenny. Há muito tempo, um estudante tolo que se encontrava sentado no cockpit ficara
confuso, embora alegasse depois não ter entendido a ordem de Rohrbach para se certificar de
que o magneto estava desligado. Em vez disso, deixara-o ligado, enquanto Rohrbach dava ao
hélice e o maldito motor OX-5 começava a trabalhar. O hélice decepou a mão esquerda de
Rohrbach e teve muita sorte por não lhe ter acontecido o mesmo à cabeça.
Moravia viu aparecer Carson, conhecido por Kit. Trazia vestido o seu urso e ia fazer
o transporte regular do correio da manhã, esperançosamente, até Elko. Carson era um
veterano. Tinha voado no México com os Pershing, quando o Exército ainda não sabia bem o
que fazer com os aviões e muito menos como formar aviadores.
Quando acabaram os seus biscates a sul da fronteira, fora para o Norte, para o
Canadá. Alistara-se na Royal Canadian Air Force e tinha voado nos ataques contra os
Alemães com pilotos de craveira. Tinha sido atingido, caíra entre as linhas e passara a noite
numa cratera aberta por uma bomba. A certa altura durante a noite, recebera uma lufada de
gás de mostarda sem ter máscara de protecção e, devido à longa espera até ser hospitalizado,
acabara por perder um pulmão.
Pelo menos, pensou Moravia, o problema anatómico de Carson não se notava
exteriormente e as pessoas que vinham à companhia, incluindo os inspectores dos Correios,
que metiam o nariz em tudo, não ficariam mais convencidas de que voar não era coisa que se
fizesse.
Moravia voltou à sua secretária e olhou para o mapa que a cobria. Havia grandes
áreas que riscava com o lápis. Eram as zonas que os seus pilotos tinham sobrevoado e
supostamente perscrutado minuciosamente. Mas não tinham relatado nada de interesse. Ainda
havia áreas consideráveis onde o número Catorze podia ter caído, nas montanhas Strawberry,
a sudoeste de Baker, no Oregon, por exemplo, embora não fosse muito provável que ele se
tivesse afastado tanto da rota.
Naquele momento, os De Havilland da Guarda Nacional estavam a passar revista à
região em redor de Pendleton, no Oregon, e iriam continuar para sul durante o dia.
Dois dos Stearman da base já se encontravam sobre as Montanhas Azuis e estariam
de volta em breve para reabastecimento e para receberem mais instruções - a menos, claro,
que avistassem o Catorze.
Moravia ouviu baterem discretamente à porta. Voltou-se e viu Stiller à porta com o
seu urso dobrado no braço, o capacete e as luvas na mão.

- Bom dia - disse Stiller no seu tom reservado, e Moravia pensou que este homem,
que não apresentava uma arranhadela da profissão, era possivelmente o mais seriamente
atingido.

- Não sabia que você estava escalado para voar hoje - disse Moravia.

- Não estou, mas vou, se for preciso.

Stiller entrou na sala cautelosamente, como era seu hábito em tudo, recordou
Moravia.

- Tenho estado a pensar - disse Stiller - e falei com a minha mulher, que sugeriu que
eu falasse consigo se realmente pensava assim.
"Assim como?", interrogou-se Moravia. "Agora, no meio do que pode ser uma
tragédia, a minha vida vai ser iluminada pelo que a mulher de Stiller acha que deve ser feito."
Era notável que ela tivesse aberto as correntes de seda, deixando o seu precioso companheiro
vir ao aeroporto no dia de folga.

- Qual é a ideia? - perguntou Moravia.

- Bem, não tenho dormido nas últimas noites a pensar. Contei à minha mulher aquele
voo em que penso que talvez tenha visto um bocado de um avião a norte do pico Capitol.
Bem, quanto mais discutia isso com ela, mais certo ficava de ter visto alguma coisa. A noite
passada, com as luzes apagadas, pareceu-me visualizar melhor as coisas e estou seguro a
noventa por cento de ter visto algo através daquela aberta.

Moravia conseguiu permanecer em silêncio durante um bom bocado. Resistiu


heroicamente à tentação de descrever em pormenor o que pensava do carácter de Stiller numa
série de frases coloridas. Em vez disso, inclinou-se sobre o mapa e insitou Stiller a juntar-se-
lhe.

- Mostre-me outra vez onde pensa que estava.

Stiller desenhou um círculo no mapa com o dedo.

- Algures por aqui. Tenho a certeza.

- Muito bem. Vou mandar o correio da manhã de comboio. Pegue no último avião
que aqui temos e volte lá. Durante a tarde, vai ter mais companhia porque, à medida que
ficarem disponíveis, enviarei todos os aviões ter consigo.
"E na eventualidade de voltar a ter medo de ver bem, desta vez", pensou Moravia,
"ponho-lhe um cão com asas atrás da cauda. Para desempenhar essa tarefa, mando Carson
porque ele já fez uso da maior parte das vidas que lhe cabem e não apaparica as que lhe
restam."

O piloto parou por momentos perto da extremidade do planalto e olhou para trás,
para o abrigo que construíra. Mesmo a esta curta distância, não era uma estrutura tão
imponente quanto ele supusera. Agora, parecia apenas um pequeno arranhão na encosta
coberta de neve. Ele via as dobras do pára-quedas sobre a fuselagem e uma parte da cauda do
Stearman espetada, mas as asas estavam de tal modo tapadas pelas árvores que ele teve de
olhar bem para se certificar se não eram apenas duas irregularidades na neve.

- Bem, diz adeus ao teu querido lar - disse ele por cima do ombro.

- Aloha - disse Heather.

- Onde é que foste aprender isso?

- O meu tio que vive no Havai veio visitar-nos no Verão passado e passava o tempo a
dizer isso. Significa adeus no Havai.

- Alguma vez esqueces o que te dizem?

- Não. Especialmente quando gosto.

- Que tal estás aí atrás?

- Ainda cá estou. Sou muito pesada?

- Ainda bem que estiveste a fazer dieta.

Mantiveram uma conversa ligeira durante a primeira hora e depois os silêncios entre
os dois tornaram-se mais longos. Ele sabia que com o tempo o efeito do comprimido que dera
à rapariga quando a colocara às costas estava a passar. Fora sempre assim, primeiro o silêncio,
depois os pequenos gemidos e finalmente os gritos angustiantes. Só restava um comprimido.
Enquanto o Sul esteve no zénite, a descida foi espantosamente fácil. O piloto
encontrou uma vala que saía do planalto e a marcha foi boa até ela se tomar íngreme e se
juntar ao leito de um rio. Aí havia inúmeras pedras enormes e calhaus misturados com
arbustos e bocados de árvores. Apercebeu-se com nervosismo crescente de que os escombros
deviam ter sido deixados por uma avalancha, havia pouco tempo.
Olhou para trás, para a enorme montanha. Parecia mais sinistra do que nunca.
Virando-se de novo para a frente, viu que a confusão de rochas e vegetação que
agora tinha que transpor se espalhava ao longo da parte terminal de uma ravina natural. Desde
que deixara o planalto que não descansara, mas isto não era lugar para demoras. Atravessar a
ladeira parecia, à distância, ser fácil. A menos de duzentos metros havia um declive sem
árvores com uma inclinação suave. Agora, o sol da tarde fazia brilhar a neve virgem do
declive e parecia serem apenas alguns minutos de marcha penosa para contornar a confusão
de obstáculos. Uma vez lá chegados, poderia descansar.
Passaram duas horas e eles ainda se encontravam na ravina. Parecia que sempre que
encontrava uma passagem aparecia à sua frente qualquer obstáculo intransponível que o
obrigava a recuar. O principal vilão era o rio que corria na ravina.
Receava atravessá-lo nos sítios onde era profundo, e nos baixios corria tão
rapidamente que o poderia deitar ao chão. Duvidava que se conseguisse levantar de novo com
o peso de Heather e da cadeira.
Olhou para o relógio. Eram 2 horas. Estavam três horas atrasados em relação ao
horário que esperava e calculou que teriam avançado menos de quatro quilómetros.
Ouviu o barulho de outra avalancha; já tantas tinham quebrado o silêncio que quase
deixara de as ouvir. Percebia que estava a perder as forças rapidamente, mas agora estava
empenhado em continuar, e se não o fizesse, esta medonha ravina podia transformar-se no
túmulo de ambos.

- Heather - disse calmamente -, não estamos a avançar muito.

- Está muito cansado? - perguntou ela.

- Não. Estou bem. - Não ganhava nada em dizer-lhe a verdade.

- Tenho estado a pensar na carta - disse ela. - Gosto especialmente daquela parte
onde diz que cada pessoa cria a sua própria versão de amor. Quando penso nisso, esqueço-me
completamente das costas porque... bem, se uma pessoa usar um pouco de imaginação, e Miss
Livingstone diz que eu tenho muita, pode ajustar-se a nós dois.

- Miss Livingstone deve ser uma das tuas professoras.


- Não. É a nossa vizinha do lado e não me parece que ela perceba muito de amor
porque é solteirona.

- Não estás a ser um pouco dura com Miss Livingstone?

- Pois estou. Sei que não devia ser porque ela é uma pessoa muito simpática, ainda
que o amor não seja a sua especialidade.

Baloiçou o banco fortemente ao tentar abrir caminho junto à saliência de uma rocha
que prometia possibilitar uma nova saída da ravina. Ouviu-a gritar e depois abafar o som.
Esperando distraí-la, perguntou:

- Miss Livingstone discutia a sua vida pessoal contigo?

Ela não respondeu e ele pensou: "Tenho de ignorar o que se passa lá atrás. A única
coisa que importa é sair desta ravina antes que escureça."
Daí a pouco ouviu a voz dela.

- Jerry, há pessoas especialistas em amor?

- Tu pareces uma caixinha de perguntas. Não sei o que responder. - "E mesmo que
soubesse, não tenho forças para isso", pensou ele.

- Eu não quero ser como Miss Livingstone.

- Não há hipótese. Nunca serás.

- De acordo com a carta da segunda Mrs. Tracy, julgo que há diferentes tipos de
amor e podemos escolher.

- Tenho que pensar um bocado no assunto. - Sabia que não ia pensar. Não se podia
permitir pensar noutra coisa que não fosse descer aquela maldita montanha.
À medida que abria cuidadosamente caminho de rocha para rocha e contornava as
árvores devastadas, sentiu que já não era completamente o mesmo. Embora dominasse o
corpo, o seu espírito vagueava sem controle; não conseguia avaliar com realismo a distância
que tinham de percorrer.
Movia-se automaticamente. As dores causadas pelas faixas do pára-quedas, que se
lhe enterravam nos ombros, tornavam-se quase intoleráveis. "Não posso continuar assim",
pensou. Por fim, conseguiu encontrar maneira de atravessar o rio e Heather pediu para beber
água. Por isso, ele encostou-se ao tronco caído de uma árvore de modo que este suportasse o
peso do banco. Soltou as faixas dos ombros e contornou a árvore até conseguir ver o rosto
dela. Por momentos, sentiu-se enfeitiçado pelos seus olhos azul-esverdeados.

- Está tão cansado. Tenho tanta pena de si... - disse ela.

Ele baixou-se e num impulso segurou-lhe as mãos, e embora percebesse que devia
estar alucinado, não pôde conter-se e levou-as aos lábios.

- És uma bela mulher - ouviu-se a si próprio dizer. - E eu amo-te muito.

Apercebeu-se da tentativa dela para sorrir e ouviu-a dizer:

- Eu amo-o, Jerry, e espero que fiquemos juntos para sempre.

Dirigiu-se rapidamente para o rio e apanhou alguma água com as mãos em concha.
Trouxe-a para junto dela e inclinou as mãos suavemente enquanto ela bebia.
Voltou ao rio para saciar a sede e, quando se inclinou, viu o seu rosto reflectido na
água. Recuou bruscamente. Esquecera-se da sua cara. Pensara que era igual aos outros
homens, momentaneamente.
Fechou os olhos, inclinou a cabeça para beber e levantou-se. Voltou para junto de
Heather e achou-a transformada. Agora era apenas uma rapariguinha com ar infeliz
embrulhada num fato de voo ultragrande.

- Estás pronta para mais uma caminhada? - perguntou com indiferença. Não gostava
do seu tom de irritação, mas ele lá estava.
- Posso tomar outro comprimido?

- Não. Estás a tornar-te numa drogada.

Agachou-se para conseguir enfiar as faixas nos ombros. Ergueu-se devagar até sentir
o peso dela, depois ficou de pé.

- Que é um drogado? - ouviu-a perguntar.

Ainda irritado, respondeu asperamente:

- Não é da tua conta.

Começou a descer pela encosta o mais rapidamente possível. Entre o ranger do seu
blusão de cabedal e a sua respiração ofegante, parecia-lhe ouvir a rapariga chorar.
Continuou a descer sem parar, com a sua sombra alongando-se na neve. "Nunca
mais", pensou, "nunca mais me permitirei tais devaneios."

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o acesso ao conhecimento a quem não pode pagar e também proporcionar aos Deficientes Visuais a
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CAPÍTULO DEZ

Carson foi o último piloto a sair do escritório de Moravia. Os outros tinham dado as
suas informações ou telefonado depois de aterrarem e o resultado era quase idêntico. Todos
eles tinham visto os destroços, mas foi Carson quem melhor descreveu o que vira.
De pé em frente da secretária de Moravia, massajando o nariz frio e arroxeado, ainda
de urso e botas, relatou:

- Dei umas vinte voltas aos destroços e voei tão baixo e tão próximo que teria
acordado qualquer morto... perdão, qualquer pessoa do Mundo. Passei a cerca de quinze
metros de altura e tenho a certeza absoluta de que se alguém lá estivesse me ouviria. Vi as
asas. Estavam partidas entre duas árvores. Depois, havia a fuselagem com o pára-qupdas
posto por cima, que também estava destruída. Só por milagre alguém sairia vivo dali.

- Mas não havia pegadas na neve?

- Havia muito pouca luz quando lá cheguei, por isso é um pouco difícil de dizer. Mas
vi um sítio onde parecia ter estado uma fogueira. E uma coisa é certa: agora, não há qualquer
sinal de vida nas redondezas.
- Parece-me que, se ele teve força para envolver a fuselagem com o pára-quedas, é
porque se mexia.

- Talvez, mas o pára-quedas pode ter-se solto com o impacte e ter-se aberto sozinho.
Quase que bati com a extremidade de uma asa ao tentar conseguir um ângulo de
onde pudesse verificar se ele ainda lá se encontrava, mas foi inútil porque a fuselagem estava
deitada de lado.

- Mas parecia que ele tinha feito lume?

- É verdade, mas estava tudo tão coberto de neve que, mesmo quando reduzi a
velocidade para uns cem quilómetros/hora, não consegui confirmar nada, excepto que era o
avião de Jerry. Vi o número Catorze na cauda. Sem dúvida.

Moravia acendeu um caporal, deu uma passa e tossiu ligeiramente. Agora, teria o
triste dever de falar aos avós da passageira e aos pais em Elko para dizer que o avião fora
encontrado. Que mais? Que os dois ocupantes estavam seguramente mortos?
Teria sido uma morte sem sofrimento, claro. Sempre que Moravia tinha uma
comunicação a fazer aos parentes mais próximos, nunca lhes dizia a verdade sobre o modo
como os seus entes queridos tinham morrido. Neste caso, iria fazer o mesmo.
O piloto e a passageira tinham morrido instantaneamente, sem dor.
Quanto a Jerry, o homem sem lar, nem sequer era preciso isso. Moravia pensou que o
melhor seria passar pelo quarto dele para ver se encontrava algumas pistas de pessoas que
pudessem ter algum interesse em saber que Jerry, cujo último nome Moravia se envergonhava
de ter esquecido - era Amity, um nome nada adequado a um homem tão pouco em harmonia
com o resto da Humanidade -, o homem que pilotava o avião número Catorze, como
gostariam de saber, falecera sem sofrimento. Não estava completamente bem. Sem grande
sofrimento.

- Há alturas - disse Moravia, deitando o fumo pelas narinas - em que detesto este
trabalho.

- Compreendo - disse Carson, e Moravia sabia que era verdade.


Carson partira depois, dizendo que ia até ao Fred's Place, o bar local, para beber um
whisky.
Moravia ficou sentado em silêncio, sozinho no seu escritório, até à noite. Por fim,
suspirou e acendeu a luz da secretária, pois sabia que em breve iria ter que responder a certas
perguntas e queria estar preparado. Fez uma série de telefonemas e por fim localizou um tal
Maxwell Foster em sua casa, no Reno, Nevada, e falou-lhe nos destroços.

- Visto que o senhor é o responsável pelos Serviços Florestais, gostaria de saber


quando é que pode retirar os corpos... assumindo que eles existam.

- Espere um momento. Não tenho sequer a certeza de que isso seja na minha zona.

- E se não for, está a querer dizer-me que ignora a situação?

- Não precisa de ser tão ríspido. Eu não enviaria ninguém a essa região antes da
próxima Primavera.

- Porque não?

- É demasiado perigoso. A começar pelas avalanchas.

- Os Serviços Florestais são pagos pelos contribuintes e isso inclui o seu salário, Mr.
Foster. Não podemos deixar aquelas pessoas na montanha até ser conveniente e cómodo
trazê-las para baixo. Têm família... - "Pelo menos um deles", pensou Moravia com amargura.

- Terei de obter autorização de Washington e isso leva umas duas semanas, talvez um
mês.

Moravia abanou o cigarro com tanta violência entre os lábios que a cinza se espalhou
sobre o seu casaco. Há-de chegar o dia em que o Mundo será povoado exclusivamente por
burocratas, pois as pessoas normais suicidam-se com a frustração.
- Muito bem, Mr. Foster - disse lentamente -, vamos utilizar os nossos próprios meios
para chegar aos destroços. E fica avisado que qualquer ajuda que lhe ocorra prestar será
considerada um obstáculo.

Moravia desligou o telefone e sentiu-se muito melhor. "Agora", pensou, "não fará
mal nenhum adiar. É mais fácil receber más notícias de manhã que à noite. Além disso, o
portador da má notícia deve manter a compostura para que o seu desgosto pessoal não
aumente o daqueles que a ele têm direito.
Perderam uma filha e eu perdi um filho, e isso é uma mistura explosiva. Vou esperar,
pelo menos até amanhã."
Apagou a luz, mas não se mexeu da cadeira. Ficou sentado na escuridão, limpando os
olhos frequentemente e interrogando-se porque é que depois de tantos anos ainda sentia a
perna que lhe faltava como se a tivesse e porque é que ela lhe doía quando a raiva e a tristeza
se apoderavam dele.

Embora ainda houvesse luz do crepúsculo, o piloto percebeu que estava perdido.
Parou na entrada de um desfiladeiro estreito, pois deu-se conta de que para continuar tinha
que subir. Como é que podia ser? Agora, era evidente que tinha estado a subir nos últimos
minutos...
De longe, parecia que o desfiladeiro tinha um declive suave e possibilitava um
acesso fácil aos vales lá em baixo. Obviamente que fora uma ilusão. O desfiladeiro não tinha
saída e terminava numa vertente rochosa que se elevava a uns trezentos metros. Nem uma
cabra de montanha, pensou ele, conseguiria encontrar uma saída daquele sítio.

- Qual é o problema, Jerry? - perguntou Heather.

Teve uma sensação que já há muito tempo não experimentava. Todos os aviadores a
têm pelo menos um par de vezes nas suas carreiras. E quando se encontram novamente em
terra firme, têm tendência a sorrir estupidamente, admitindo que estiveram "rodeados de
desorientação".

- Estamos num grande sarilho. - Pensou que sussurrara, mas em vez disso ouviu a sua
voz ressoar pela neve.
- Porquê? Qual é o problema?

Ainda bem que não lhe conseguia ver o rosto. Era mais fácil pensar nela apenas
como um peso nas costas, algo de que não se podia livrar.

- Diz-me tu que tal vão as coisas aí no atrelado - disse ele, esperando distraí- la o
tempo suficiente para tentar compreender como é que tinham acabado por ficar rodeados por
obstáculos impossíveis de transpor. Se fosse para a direita e evitasse o desfiladeiro,
encontrava a beira da vertente e uma queda abrupta de uns trezentos metros. Se fosse para a
esquerda, iria embrenhar-se directamente na montanha.

- Cá atrás as coisas vão bem, mas está a ficar escuro.

- Isso também eu vejo. - Não sabia como lhe havia de dizer, que não tinham outra
alternativa senão voltar para trás e voltar a fazer o caminho, o que significava uma longa
subida encosta acima. Mas para onde? Onde é que tinha errado? Mesmo se o descobrisse, não
podia subir tudo até ao abrigo e recomeçar.
Voltou-se lentamente e olhou para o trilho deixado na neve pela sua longa descida. E
viu que não andara de modo nenhum de forma normal; o trilho tinha curvas e contracurvas,
serpenteando graciosamente montanha acima e desaparecendo por fim numa elevação. "Um
bêbado conseguia andar mais a direito", pensou.
Estava atordoado com a perspectiva de voltar a subir a montanha. Ninguém
conseguiria fazê-lo, com ou sem as pernas a tremer. Talvez o melhor fosse sentar-se e
reflectir.
Mudou de ideias. Lera algures qualquer coisa sobre homens que se deitaram na neve
e nunca mais voltaram a levantar-se.

- Jerry? Que é que se passa? Porque é que não descansa um bocado?

- Tenho medo de adormecermos e não voltarmos a acordar.

Enquanto o vapor da sua respiração formava nuvens à sua frente, pensou que tinha
dito uma coisa que não devia. Mas, que diabo, precisava de partilhar as preocupações com
alguém próximo e este seu mundo só era habitado por duas pessoas.
- Ainda tem a carta? - ouviu-a perguntar. - Podíamos lê-la um ao outro e isso manter-
nos-ia acordados... especialmente se lêssemos a parte sobre a ideia que cada pessoa tem do
amor, uma espécie de...

- Minha amiga - disse ele, mantendo o tom de voz o mais natural possível -, eu não
estou apenas ensonado, estou perdido. Parece-me que temos de voltar ao rio e encontrar um
outro caminho para descer.
Ela pareceu não o ter ouvido.

- Quando você andava na escola, alguma vez fez aquele jogo de eliminar as letras do
nome de uma pessoa que são comuns ao nosso nome... e depois tentar imaginar se a outra
pessoa é a pessoa indicada para nós? Há bocado fiz isso mentalmente com o seu nome e saiu
lindamente, por isso eu acho que há uma pessoa aqui no atrelado que o ama.
"Não posso deixar-me cair noutra terra de sonhos", pensou ele, "ou nunca mais de lá
saio."

- Ouviste o que eu disse sobre termos que voltar ao sítio da partida?

- Ouvi. Talvez ajude se pensar na carta.

Levou a mão ao bolso instintivamente, depois deixou-a cair. Por qualquer razão, era
suficiente saber que a carta estava lá.
Virou-se para a montanha e deu um passo para a frente, depois outro e mais outro,
inclinando-se bem para a frente para aliviar a pressão nos ombros. O seu coração batia de
modo alarmante, respirava com muita dificuldade e tinha enxames de luzes minúsculas a
dançarem-lhe à frente dos olhos. A noite caiu enquanto ele subia a custo, e agradeceu às
estrelas a luz, ainda que pouca, que proporcionavam.
Chegaram a uma floresta, como previra, e continuando a subir ficou atentamente à
espera de ouvir o borbulhar do rio onde dera de beber a Heather. Não se ouvia senão a sua
respiração ofegante e, valha-me Deus, lá estavam de novo os gemidos abafados lá atrás. "Se
ela recomeçar a gritar", pensou, "só me resta bater nos meus ouvidos até ficar surdo."
No interior da floresta quase não havia luz e por pouco não colidia com as árvores
mesmo à sua frente. Ouviu-a dizer:
- Jerry? Acho que vai mal. Devíamos ir mais para aquele lado.

- Que lado? Eu disse-te que temos de voltar ao rio e recomeçar daí.

- É por isso. O rio é para aquele lado.

Ele parou. "Os santos me ajudem, o que me faltava agora era conselhos de um
piolho."

- Ei, tu aí no atrelado. Porque é que não dormes e deixas de fazer confusões?

- A neve aqui é mais espessa e não tem nevado. E além disso vi o antigo trilho
desviar-se por ali há bocado e até pensei que você sabia um caminho melhor para chegar onde
quer. Não é preciso ser coruja comigo, Jerry.

- Não sou coruja. Estou simplesmente cansado. E peço desculpa.

Concentrou-se na neve à sua frente e constatou, chocado, que não via trilho nenhum.
Tinha-se desviado.

- Muito bem, minha amiga - disse lentamente. - Ganhaste. Em que direcção


apontaste?

- Se virar para trás e voltar a descer, não é muito longe... eu sei, o sítio onde deixou o
trilho é onde há um grande monte de qualquer coisa por baixo da neve. O rio fica à sua direita.
Quando encontrou o trilho original, resolveu seguir o rio sem se importar com o seu
instinto.

- Vou dar-te uma medalha. Tu és um docinho muito esperto.

- Lembre-se de que a minha mãe dizia que eu tenho um espírito muito lógico.
Escorregando e tropeçando na escuridão, ele abria caminho por entre calhaus e pelo meio de
afluentes gelados que alimentavam o rio. Sempre que escorregava, ouvia Heather gritar de
dor, e quando lhe pedia desculpa e dizia que não podia evitar a sua falta de jeito, Heather
respondia que por vezes não conseguia deixar de gemer porque as costas lhe doíam imenso.

- Mas prometo, juro, que quando sairmos disto nunca mais volto a gemer.

Por fim, saíram da floresta e continuaram a descer por uma vertente mais aberta.
Chegaram a uma área plana onde a neve era mais espessa e ele pensou que talvez fosse uma
estrada. Nessa altura, com o espírito entorpecido, ouviu Heather a chamá-lo como se fosse de
muito longe.

- Jerry. Estou a ver uma coisa. Lá atrás de onde acabámos de sair. Parece do tamanho
de um elefante ou coisa do género.

Ele voltou-se e viu uma forma escura recortada na neve. Deu alguns passos e viu que
era um camião, um camião de madeira, pensou, e por instantes deixou o seu moral levantar-
se.

- Se é um camião, devemos estar numa estrada. E a estrada deve ir dar a um sitio


qualquer - disse Heather.

- Pois é, pois é... - Enquanto se dirigia penosamente para o camião, descobriu que
tinha uma tendência para reter a respiração. Suponhamos que tocava a buzina e o dono
aparecia a saber o que se passava? Suponhamos que ele vivia numa cabana seca e quente e
eles seriam levados para lá e que esta terrível noite interminável chegaria ao fim?

As suas esperanças esvaíram-se quando, ao aproximar-se do camião, viu que a janela


do lado do condutor estava partida e a cabina cheia de neve. Contudo, ainda com esperança,
enfiou o braço pela janela e carregou na buzina. Ouviu-se apenas um murmúrio de vento
através da cabina. Quando se encostou à porta, ouviu Heather dizer:

- Bem, não me importo que esteja velha e a cair aos pedaços. Se ele subiu até aqui...
nós podemos descer. É lógico.
CAPÍTULO ONZE

O piloto sabia que estavam no vale há muito tempo, um mês, um ano, possivelmente
desde sempre. Ao cair da noite, o terreno apresentou-se menos inclinado e o facto de poder
caminhar mais facilmente renovou-lhe as forças. Porém, não via a linha do horizonte e tinha
ainda mais dificuldade em manter o equilíbrio quando deixava de ver as estrelas. Estas só
apareciam de vez em quando nos intervalos das nuvens escuras, e pensou que, se as
conhecesse melhor, estaria mais seguro da direcção que seguia. Tentou manter o cinturão de
Oríon por cima do ombro esquerdo, posição que o conduziria para oeste, mas passadas
algumas horas ele estava mesmo por cima da sua cabeça e parecia praticamente igual visto de
qualquer ângulo. Dava-se por satisfeito por as poucas estrelas e planetas que apareciam por
entre as nuvens providenciarem luz suficiente para distinguir as irregularidades do terreno
coberto de neve. Sempre que se desequilibrava, quase caía de joelhos, e de cada vez tinha
menos vontade de se levantar.
- Como vai isso aí atrás? - perguntou a Heather.

- Ainda cá estou. Estamos perdidos?

- Não. Parece-me que não temos que andar muito mais. Porque não tentas dormir?

- Tenho muitas dores.

- Queres um comprimido? Ainda havia um.

- Não. Não quero ser uma drogada.

Quando Heather crescer, pensou ele, oxalá que o marido nunca lhe diga uma coisa
que queira que ela esqueça.
Com a fadiga, ia quase dobrado em dois sob a sua carga. Havia alturas em que se
convencia de que tinha adormecido e depois acordado, encontrando-se ainda a arrastar-se pela
neve. Para se manter acordado, tentou vários exercícios mentais, como, por exemplo, rezar o
padre-nosso. Calculou a distância que tinham percorrido e a que ainda faltava para a cidade de
McDermitt, mas os números baseavam-se no seu conhecimento inexacto do local do acidente
e acabavam por ser mais desencorajantes que úteis.
Quando parecia não haver fim imaginável para o seu esforço, conseguiu distrair-se
tentando recordar partes da carta. Lembrava-se de certas linhas, certos verbos e elas pareciam
estimular a sua quase completa exaustão. Porém, começou gradualmente a aperceber-se de
que os seus pensamentos sobre a carta se tornavam cada vez mais confusos. O rosto que
visualizava frequentes vezes na neve não era o rosto da autora da carta que imaginara
inicialmente. Ela agora transformara-se numa mulher que ele conhecia bem. Falava-lhe, em
frases aparentemente marcadas por um metrónomo e a sua voz era melodiosa e familiar. Mais
tarde, descobriu que a cadência dos seus passos se tornara escrava da voz dela.
Houve uma altura a meio da noite em que ele não conseguiu forçar as suas pernas a
avançar um passo sequer. Permaneceu vacilante à luz fraca das estrelas, lamentando a sua
fraqueza, tanto mais que tinham chegado a uma cerca de arame farpado que devia levar a
algum lado. Agora, havia algo para seguir, mas ele já não conseguia seguir coisa nenhuma.
Sabia que tinha de se livrar imediatamente do peso senão caía de cara no chão, e isso seria o
fim de tudo.
Por fim, caiu de joelhos e inclinou-se para um lado até aliviar o peso do banco. Tirou
as correias dos ombros e disse a Heather que iam descansar até de manhã.

- Porque é que está a sussurrar, Jerry?

- Não sei. Não consigo falar...

Ainda de joelhos, fez uma cova na neve e depois tirou Heather do banco e colocou-a
na concavidade tão suavemente quanto conseguiu.
Ela tocou-lhe no rosto e disse:

- Deve estar muito cansado, Jerry.

Apercebeu-se de súbito que ela acariciara o lado desfigurado da sua face, a parte
deteriorada onde a pele torturada estava esticada como um tambor sobre os ossos e parecia um
meio-crânio; de tal modo que ele nunca ousara supor que alguém lhe tocasse. Começou a
falar:

- Eu... - Mas foi tudo o que conseguiu dizer. Uma nova paz apoderou-se dele; sentia-
se mais sereno do que nunca, mas não conseguiu encontrar palavras para dizer a Heather a
magia que ela produzira. "Já não posso com as pernas", pensou, "mas não me importo. Pelo
menos isto é o fim da solidão. Esta é a verdadeira vida e tudo o mais foi um pesadelo..."

Aconchegou o urso protectoramente à volta de Heather, deixando de fora apenas o


nariz e os olhos. à luz das estrelas viu que os seus olhos sorriam. Por fim, deitou-se ao lado
dela, puxou-a para si para se aquecerem e pensou: "Amamo-nos um ao outro. Não vamos
morrer aqui. "

Moravia fixara o meio-dia como hora limite em que abandonaria todas as esperanças
relativamente aos ocupantes do número Catorze. Depois do meio-dia, obrigar-se-ia à triste
tarefa de telefonar aos familiares de Heather. Já ensaiara as frases de abertura... "Lamento
imenso ter de informar... se houver alguma coisa que a companhia possa fazer para ajudar...
etc."
Mas que fazer relativamente a Jerry, o homem sem lar nem família? Escrever uma
carta para a Distribuição Geral, Todo o Lado, EUA?
A ficha de candidatura do piloto estava em cima da secretária em frente a Moravia e
agora ele tinha dificuldade em perdoar o número de espaços em branco que observava. Claro
que no momento da contratação ninguém prestava atenção aos formulários.
A experiência do candidato era analisada oralmente, medida de maior fiabilidade que
as horas de voo registadas no papel. Se um piloto sabia voar, sabia; se não sabia, não devia ser
autorizado a matar-se a si próprio ou aos outros.
No entanto, Moravia constatou que em alturas como esta o papel fazia falta. De
qualquer das maneiras, maldito negócio da aviação. A guerra já acabara há muito tempo. As
pessoas não deviam morrer a tentar ganhar a vida.
Moravia olhou para o relógio de parede. Depois, verificou o seu relógio de pulso e
viu que os dois coincidiam, eram 11 e 33. Faltavam vinte e sete minutos para a hora da
tristeza. Raios! Tinha sido uma longa manhã e estava a tornar-se interminável.

Algures ao longe, o piloto ouviu a voz de Heather. A princípio, parecia quase


imperceptível, depois aumentou de volume e ele pensou: "Está de novo a delirar e eu não sei o
que fazer." Tinha voltado à mesma conversa sobre o cavalo.

- Um cavalo, Jerry! Um cavalo mesmo ali! Olhe!

Emergiu lentamente das profundezas do seu sono e abriu os olhos para a manhã
cinzenta. Sentia-se confuso, até que levantou a cabeça e percebeu que Heather o abanava.

- O cavalo. Chame por ele, Jerry! - continuava ela a gritar.

Tentou tapar-lhe a boca, interrogando o seu espírito entorpecido se desta vez teria
que lhe agarrar a língua para ela não sufocar. Tinha lido algures que havia pessoas que
sufocavam no meio do delírio.
Depois, por acaso, olhou para trás dela e convenceu-se por momentos de que ainda
estava a dormir. Porque viu um cavalo a andar numa elevação próxima com um homem
montado nele.
O piloto pôs-se rapidamente em pé e agitou os braços, gritando incoerentemente.
O cavalo parou e o piloto viu o homem voltar a cabeça. Passado um momento, o
cavaleiro tirou o chapéu de abas largas e acenou com ele. Pareceu hesitar bastante tempo
antes de virar o cavalo.
O piloto continuou a acenar e a gritar até o cavalo começar a levantar montes de neve
com os cascos ao dirigir-se para eles a grande velocidade.
Ao meio-dia, Moravia decidira adiar mais uma hora. Estava a comer uma sanduíche
de manteiga de cacau e reparou que a sua digestão já duvidosa não era melhorada vendo os
ponteiros do relógio. Lembravam-lhe implacavelmente que faltavam dezasseis minutos para a
1 hora.
Quando o telefone tocou, levantou o auscultador e disse o seu nome. Ainda a
mastigar, escutou; depois, deixou de mastigar quando ouviu um rancheiro, que se identificou
como "Moose" Taylor, explicar que estava a telefonar a pedido de um dos pilotos de Moravia
que se encontrava nesse momento "a dormir na minha cama. Está muito esgotado. Deitei a
menina no sofá no quarto da frente e o médico já vem a caminho. As costas dela não estão
bem, mas o nosso médico é bom".
Depois de Moravia entender a localização exacta do rancho de Taylor e perguntar o
que é que podia fazer de imediato, obteve a resposta:
- Para já, não pode fazer nada, suponho eu, excepto dar a este camarada uns dias de
folga. Ele disse-me que lhe dissesse que apreciaria isso, porque há uma carta que ele quer que
seja entregue ao remetente e gostava de o fazer pessoalmente.
Não sei o que ele quer dizer com isto, mas disse-me que era muito importante.
- Também não sei o que quer dizer - retorquiu Moravia. - E não me interessa.
Diga-lhe apenas... Bem-vindo a casa.

ACERCA DO AUTOR

Tudo o que Ernest Gann faz é caracterizado por uma grande energia e entusiasmo
pela vida.
Gann e sua mulher, Doddie, vivem em Red Mill Farm, um rancho na ilha de Saint
John, ao largo da costa de Washington. Aqui, cria gado, cultiva cereais e escreve os seus best-
sellérs. Mas tem muitas outras actividades. É um artista talentoso, cavaleiro, jogador de ténis
e marinheiro. E pilota o seu próprio avião - um bimotor Cessna 310.
Percorreu milhares de quilómetros em voo - em digressões, como piloto comercial e
membro do Comando Aéreo durante a Grande Guerra. Gann foi um dia convidado para ir à
base da Força Aérea em Beale, na Califórnia, e, acompanhado por um piloto da Força Aérea,
teve oportunidade de pilotar um avião-espião U-2, uma emoção que descreve como "a
máxima realização de uma vida a voar".
Numa altura em que Gann estava aos comandos, levou o seu U-2 a cerca de vinte mil
metros de altitude.

- O mais perto - diz ele jocosamente - que alguma vez hei-de estar do paraíso. As
montanhas - recorda - eram pequenos pontos, mas o que me fascinou foi a curvatura da Terra
ser vagamente visível.

Ao regressar desta aventura, os membros do Esquadrão 99 presentearam-no com as


cobiçadas asas pretas usadas pelos pilotos dos U-2 uma honra rara para um civil.

FIM DO LIVRO

http://groups.google.com/group/Viciados_em_Livros
http://groups.google.com/group/digitalsource

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