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2013, Editora Fundamento Educacional Ltda.

Editor e edição de texto: Editora Fundamento


Editoração eletrônica: Adalbacom Design Gráfico e Comunicação
CTP e impressão: Monalisa Editora e Gráfica Ltda.
Tradução: Joice Elias Costa
Publicado originalmente em 2002 por Walker Books Ltd
87 Vauxhall Walk, London SE1 1 5HJ
Copyright de texto © 2000 Stormbreaker Productions Ltd
Capa: Walker Books Ltd
Alex Rider®; Boy with Torch Logo® são marcas registradas © 2010 Stormbreaker Productions Ltd
O direito de Anthony Horowitz de ser identificado como o autor deste livro está assegurado de acordo com o Copyright, Designs
and Patents Act de 1988.
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reitos.
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Horowitz, Anthony
Alex Rider contra o tempo 03 : A ilha do esqueleto / Anthony Horowitz; [versão brasileira da editora]. — 1. ed. — São Paulo, SP:
Editora Fundamento Educacional Ltda., 2013.
Título original: Alex Rider 03 : Skeleton Key
1. Literatura infantojuvenil I. Título.
12-02437 CDD-028.5
Índices para catálogo sistemático:
1. Literatura infantojuvenil 028.5
2. Literatura juvenil 028.5
Fundação Biblioteca Nacional
Depósito Legal na Biblioteca Nacional, conforme Decreto n° 1.825, de dezembro de 1907.
Todos os direitos reservados no Brasil por Editora Fundamento Educacional Ltda.
Impresso no Brasil
Digitalização e Revisão: Yuna (Toca Digital|)
Ele tinha apenas mais alguns segundos

Alex viu os cilindros de gás comprimido e arrastou um deles para fora do


suporte de metal. Naquele instante, o guarda apareceu vindo pelo lado da
câmara frigorífica.
Alex manuseou o cilindro como um taco de beisebol, atingindo o homem
nos ombros e no pescoço com uma força incrível. O guarda não teve reação.
Nem sequer gritou ao ser levantado do chão e arremessado violentamente
para dentro da câmara frigorífica.
Alex largou o cilindro e gemeu. Andou com dificuldade e olhou para
dentro da câmara frigorífica. O guarda caíra em meio às caixas de moran‐
gos, esmagando algumas.
Deu uma última olhada no homem que tentara matá-lo.
— Frio — decidiu.
Então se esticou e girou o controle do termostato, deixando a temperatu‐
ra abaixo de zero.
Mais frio.
Fechou a porta da câmara frigorífica e foi embora, mancando e com dor.
1
NA ESCURIDÃO

A NOITE CAIU RÁPIDO sobre a Ilha do Esqueleto.


O sol pairou por alguns instantes no horizonte, depois desapareceu. Ime‐
diatamente surgiram muitas nuvens — primeiro vermelhas, depois lilases,
prateadas, verdes e pretas, como se todas as cores do mundo estivessem
sendo sugadas para dentro de um grande caldeirão. Uma gaivota solitária
planava sobre os manguezais, e suas cores se confundiam com o caos colo‐
rido do céu ao fundo. O ar estava carregado. A chuva era iminente. Seria
uma tempestade violenta.
O monomotor Cessna Skyhawk SP fez duas voltas antes de aterrissar.
Era o tipo de avião que mal seria notado voando nessa parte do mundo. Por
isso havia sido escolhido. Se alguém tivesse a curiosidade de verificar o nú‐
mero de registro impresso sob a asa, saberia que aquele avião pertencia a
uma agência fotográfica com sede na Jamaica. Não era verdade. Não existia
nenhuma agência e já estava escuro demais para tirar fotos. Mas ninguém
quis confiar na sorte.
Havia três homens na aeronave. Eram todos morenos, usavam jeans des‐
botados e camisas largas com o colarinho aberto. O piloto tinha cabelos pre‐
tos e compridos, olhos castanhos profundos e uma cicatriz fina que lhe atra‐
vessava um lado do rosto de cima a baixo. Conhecera os dois passageiros
apenas naquela tarde. Apresentaram-se como Cario e Marc, mas ele duvi‐
dou de que aqueles fossem seus nomes verdadeiros. Sabia que a viagem de‐
les começara havia muito tempo, em algum lugar do Leste Europeu. Sabia
que esse voo curto seria o trecho final da viagem. Sabia o que eles transpor‐
tavam. Aliás, sabia demais.
Olhou para os monitores do painel de controle. A tela iluminada do com‐
putador o avisava da aproximação de uma tempestade. Isso não o preocupa‐
va. As nuvens baixas e a chuva lhe dariam cobertura. As autoridades fica‐
vam menos vigilantes durante as tempestades. Mesmo assim, ele estava ner‐
voso. Voara para Cuba diversas vezes, mas nunca para o local onde estava
agora. E nessa noite ele preferiria ter ido a qualquer outro lugar.
Cayo Esqueleto. A Ilha do Esqueleto.
Lá estava a ilha, espraiando-se à sua frente, com pouco mais de 40 quilô‐
metros de comprimento e quase 10 quilômetros de largura no trecho mais
largo. O mar ao redor, que até poucos minutos antes era de um azul magní‐
fico e resplandecente, escurecera de repente, como se alguém tivesse desli‐
gado um interruptor. A oeste, o piloto pôde distinguir as luzes cintilantes de
Puerto Madre, a segunda maior cidade da ilha. O aeroporto principal ficava
mais ao norte, nos arredores da capital de Santiago. Mas não era para lá que
ele se dirigia. Empurrou o manche e o avião guinou para a direita, sobrevo‐
ando as florestas e os manguezais que cercavam o antigo aeroporto abando‐
nado na extremidade da ilha.
O Cessna estava equipado com uma câmera termográfica, semelhante à
utilizada pelos satélites-espiões americanos. O piloto ligou um interruptor e
olhou para o monitor. Ele mostrava alguns pássaros que pareciam pontinhos
vermelhos. Mais pontos apareceram no mangue: crocodilos ou, quem sabe,
peixes-bois, e um ponto isolado a uns 20 metros da pista. Ele se virou para
falar com o homem chamado Cario, mas nem teria sido necessário. Cario já
estava debruçado sobre o seu ombro, olhando para a tela.
Cario acenou a cabeça num gesto afirmativo. Apenas um homem os
aguardava, conforme o combinado. Qualquer pessoa que estivesse escondi‐
da num raio de pelo menos 800 metros da pista teria aparecido no radar. Po‐
diam aterrissar com segurança.
O piloto olhou pela janela, a pista era uma faixa de terra junto à costa,
aberta no meio da selva, que se estendia paralela ao mar. O piloto poderia
ter passado batido pela pista, não fossem as duas fileiras de lâmpadas acesas
no chão que indicavam o caminho para o avião.
O Cessna fez uma rápida descida. No último instante, o avião foi atingi‐
do por uma forte rajada de vento úmido que parecia ter sido enviada para
testar o sangue-frio do piloto. Mas ele nem piscou e, no instante seguinte, as
rodas tocaram o chão e o avião estremeceu e sacolejou, parando no meio da
pista entre as duas fileiras de luzes. O piloto agradeceu por elas estarem ali.
Os manguezais — arbustos espessos, parcialmente encobertos por água es‐
tagnada — chegavam quase até a beirada da pista. Mais alguns metros na
direção errada, e uma roda poderia ter ficado presa. Seria o suficiente para
despedaçar o avião.
O piloto desligou os interruptores. O motor morreu e as hélices duplas
foram reduzindo a velocidade até parar. Ele olhou pela janela. Havia um ji‐
pe estacionado próximo de um dos prédios, e era ali que o homem — o
ponto vermelho que aparecera na tela — aguardava. O piloto se voltou para
os passageiros:
— Lá está ele.
O mais velho dos dois homens acenou a cabeça concordando. Cario tinha
cerca de 30 anos e cabelos pretos e cacheados. Não fizera a barba. Os pelos
curtos deixavam-lhe o queixo acinzentado. Ele se voltou para o outro passa‐
geiro.
— Marc? Está pronto?
O homem que dizia se chamar Marc podia ser o irmão mais novo de Ca‐
rio. Tinha menos de 25 anos e, embora tentasse não demonstrar, estava as‐
sustado. O suor lhe escorria pelo rosto, que brilhava, refletindo a luz verde
do painel de controle. Ele se esticou para trás e pegou a arma, uma pistola
automática Glock de 10 milímetros, de fabricação alemã. Verificou se esta‐
va carregada, depois a enfiou na cintura da calça, sob a camisa.
— Estou pronto — falou.
— Ele é um só. Nós somos dois — Cario tentava tranquilizar Marc. Ou
talvez estivesse tentando tranquilizar a si mesmo. — Nós dois estamos ar‐
mados. Ele não pode fazer nada.
— Então vamos.
Cario se virou para o piloto.
— Fique com o avião preparado — ordenou. — Quando voltarmos, vou
fazer um sinal. — Levantou a mão e fez um OK usando o dedo indicador e
o polegar. — Este é o sinal de que o nosso assunto está terminado e que deu
tudo certo. Ligue o motor na mesma hora. Não queremos ficar aqui nem um
segundo além do necessário.
Os dois saíram do avião. A camada fina de areia estalou debaixo dos co‐
turnos quando fizeram a volta e abriram a porta do compartimento de carga.
Sentiam um calor carregado no ar; a intensidade do céu noturno. A ilha pa‐
recia estar prendendo a respiração. Cario se esticou e abriu uma segunda
porta. Na traseira do avião, havia uma caixa de aço. Ele e Marc a colocaram
no chão com dificuldade.
O mais jovem levantou os olhos. As luzes da pista o ofuscaram, mas ele
conseguiu distinguir uma figura em pé, imóvel como uma estátua, ao lado
do jipe, esperando que eles se aproximassem. Não se movera desde que o
avião aterrissara.
— Por que ele não vem até nós? — perguntou.
Cario cuspiu e não disse nada.
A caixa tinha duas alças laterais. Os dois homens a carregaram, um de
cada lado, caminhando desajeitados, curvados com o peso. Levaram um
bom tempo para chegar até o jipe. Mas, enfim, lá estavam. Pela segunda
vez, puseram a caixa no chão.
Cario se endireitou, esfregando as palmas da mão nas calças jeans.
— Boa noite, general — disse.
Falou em inglês. Não era a sua língua materna. Nem a do general. Mas
era a única que tinham em comum.
— Boa noite.
O general não se incomodou em saber o nome deles. Afinal, sabia que
seriam nomes falsos.
— Tiveram alguma dificuldade para chegar até aqui?
— Não, nenhuma dificuldade, general.
— Está tudo aí?
— Um quilo de urânio enriquecido. O suficiente para construir uma
bomba capaz de destruir uma cidade. Gostaria de saber que cidade o senhor
tem em mente.
O general Alexei Sarov deu um passo à frente, e as luzes da pista o ilu‐
minaram. Não era um homem grande, e mesmo assim emanava poder e
controle. Tinha um ar militar que ficava evidente com o corte rente do cabe‐
lo grisalho metálico, com os olhos azuis muito claros, com o rosto quase
desprovido de emoção. O passado militar se revelava na maneira como se
portava. Sua postura era perfeita, relaxada e alerta ao mesmo tempo. O ge‐
neral Sarov tinha 62 anos, mas aparentava ser 20 anos mais moço. Vestia
um terno escuro, camisa branca e gravata estreita azul-escura. No calor
úmido daquela noite, as roupas dele deveriam estar amarrotadas. Ele deve‐
ria estar suando. No entanto, parecia ter saído de uma sala com ar-condicio‐
nado.
Agachou-se ao lado da caixa e, ao mesmo tempo, tirou um aparelhinho
do bolso. Parecia um isqueiro de automóvel com um mostrador. Ele encon‐
trou um soquete na lateral da caixa metálica, onde encaixou o aparelho. Ra‐
pidamente, verificou o mostrador. Fez um gesto afirmativo. Estava tudo cer‐
to.
— Trouxe o resto do dinheiro? — perguntou Cario.
— É claro. — O general endireitou o corpo e andou até o jipe. Cario e
Marc se retesaram, pois era esse o momento em que ele poderia pegar uma
arma. Mas, quando se virou, o general segurava uma maleta preta de couro.
Destravou os fechos e a abriu. A maleta estava cheia de dinheiro: notas de
cem dólares impecavelmente arrumadas em pacotes de 50 cédulas. Eram
cem pacotes ao todo. Um total de meio milhão de dólares. Cario jamais vira
tanto dinheiro ao longo de toda a vida.
Mas ainda não era suficiente.
— Tivemos um problema — disse Cario.
— É mesmo? — Sarov não pareceu surpreso.
Marc pôde sentir o suor escorrer pela nuca. Um mosquito zumbia no seu
ouvido, mas ele resistiu ao impulso de estapeá-lo. Esse era o momento que
ele esperava. Estava a alguns passos de distância, com os braços soltos ao
lado do corpo. Moveu os braços lentamente para trás, deixando-os mais
próximos da arma escondida. Olhou para os prédios em ruínas. Um deles
provavelmente havia sido uma torre de controle. O outro parecia um galpão
de alfândega. Ambos estavam destruídos e vazios, os tijolos esfarelados, as
janelas despedaçadas. Será que havia alguém escondido por lá? Não. O sen‐
sor da câmera termográfica teria avisado. Estavam sozinhos.
— O preço do urânio — Cario deu de ombros. — Nosso amigo de Mia‐
mi mandou pedir desculpas. Mas há novos sistemas de segurança no mundo
todo. O contrabando... esse tipo de coisa em especial... ficou muito mais di‐
fícil. E isso significa despesas extras.
— Quanto de despesas extras?
— Duzentos e cinquenta mil dólares.
— É lamentável.
— Lamentável para o senhor, general. É o senhor quem deve pagar.
Sarov pensou um pouco.
— Tínhamos um acordo — falou.
— Nosso amigo de Miami achou que o senhor compreenderia.
Houve um longo silêncio. Marc esticou os dedos atrás das costas, fe‐
chando-os em torno da Glock Automatic. Mas então Sarov fez um sinal
afirmativo.
— Vou precisar de um tempo para levantar essa soma — disse.
— O senhor pode transferir o dinheiro para a mesma conta que usamos
antes — disse Cario. — Mas preciso adverti-lo, general. Se o dinheiro não
for depositado num prazo de três dias, os serviços secretos americanos se‐
rão informados sobre o que aconteceu aqui hoje... sobre o material que aca‐
bou de receber. O senhor deve achar que está em segurança aqui nesta ilha.
Posso lhe garantir que não estará mais seguro.
— Você está me ameaçando — murmurou Sarov. E havia um ar tranqui‐
lo e, ao mesmo tempo, mortífero no seu jeito de falar.
— Não é nada pessoal — salientou Cario.
Marc rapidamente apareceu com um saco de pano. Desdobrou-o e pas‐
sou o dinheiro da maleta para o saco. A maleta poderia conter um radio‐
transmissor ou uma bomba. Por isso ele a deixou.
— Boa noite, general — disse Cario.
— Boa noite — Sarov sorriu. — Espero que façam uma boa viagem.
Os dois homens se afastaram. Marc podia sentir o dinheiro. Sentia a
pressão dos maços de notas através do pano sobre a lateral da perna.
— O cara é um otário — sussurrou, voltando a falar em seu próprio idio‐
ma. — É um velho. Por que ficamos com medo?
— Vamos sair daqui — disse Cario. Ficou pensando no que o general ha‐
via dito: “Espero que façam uma boa viagem”. Sarov estava sorrindo ao di‐
zer isso?
Fez o sinal combinado, juntando o indicador e o polegar. O motor do
Cessna foi ligado imediatamente.
O general Sarov ainda os observava. Não se movera, mas agora voltara a
colocar a mão no bolso do casaco. Seus dedos se fecharam em torno do ra‐
diotransmissor que ali estava. Ele se perguntara se seria necessário matar os
dois homens e o piloto. Pessoalmente, teria preferido não fazer isso, até por
medida de segurança. Mas, por causa das exigências deles, tornou-se neces‐
sário. Deveria ter imaginado que seriam homens gananciosos. Com esse ti‐
po de gente, era quase inevitável.
Já dentro do avião, os dois homens afivelavam os cintos enquanto o pilo‐
to se preparava para decolar. — Cario ouviu o motor acelerar, à medida que
o avião começava a andar lentamente. Ao longe, houve um ruído baixo e
prolongado de trovão. Agora ele desejou que já tivessem deixado o avião
virado logo que pousaram. Teriam economizado preciosos segundos, e ele
estava ansioso para decolar, desejando que o avião estivesse no ar de uma
vez.
“Espero que façam uma boa viagem.”
Na voz do general não transparecia nenhuma emoção. Ele podia estar fa‐
lando sério. Mas Cario ficou se perguntando se o homem não seria capaz de
usar exatamente o mesmo tom de voz para decretar uma sentença de morte.
Próximo a ele, Marc já contava o dinheiro, passando as mãos pelas pilhas
de notas. Olhou para os prédios em ruínas, para o jipe ali estacionado. Será
que Sarov tentaria alguma coisa? Que tipo de recursos ele poderia ter na
ilha? Mas, enquanto o avião fazia a volta, nada havia se mexido. O general
continuou onde estava. Não havia mais ninguém à vista.
Então as luzes da pista se apagaram.
— Mas que droga é essa? — praguejou o piloto.
Marc parou de contar. Cario logo entendeu o que havia acontecido.
— Ele desligou as luzes da pista — disse. — Quer nos obrigar a ficar
aqui. Você consegue decolar sem as luzes?
O avião fizera um semicírculo, de modo que agora apontava para o lado
de onde viera. O piloto olhou pela janela da cabine, se esforçando para en‐
xergar, já estava muito escuro, mas havia uma luminosidade ameaçadora,
artificial, que pulsava no céu. Ele fez um gesto afirmativo e falou:
— Não vai ser fácil, mas...
As luzes voltaram.
Lá estavam, desaparecendo na distância, como uma seta que apontava
para a liberdade e um lucro extra de 250 mil dólares. O piloto relaxou um
pouco.
— Deve ter sido a tempestade que interrompeu o fornecimento de ener‐
gia — falou.
— Só nos tire daqui — murmurou Cario. — Vou ficar mais feliz quando
já estivermos voando.
O piloto fez um gesto com a cabeça concordando.
— Como preferir.
Empurrou os controles, e o Cessna começou a se movimentar, ganhando
velocidade rapidamente. As luzes da pista ficaram borradas, orientando-o.
Cario se recostou no assento. Marc ainda olhava pela janela.
E aí, segundos antes de as rodas deixarem o solo, o avião sacudiu de re‐
pente. O mundo todo girou como se uma mão invisível imensa o tivesse
agarrado e virado de lado. O Cessna atingira uma velocidade de mais de
190 quilômetros por hora. Parou numa questão de segundos, e a desacelera‐
ção brusca lançou os três homens para a frente. Se não estivessem usando
cintos de segurança, teriam sido arremessados para fora pela janela da fren‐
te — ou pelo vidro estilhaçado que restara. Ao mesmo tempo, houve uma
série de estrondos de coisas se despedaçando quando algo chicoteou a fuse‐
lagem. Uma das asas afundara. A hélice se soltou e saiu girando noite afora.
De repente, o avião ficou imóvel, estático, inclinado para um dos lados.
Por um instante, ninguém se moveu dentro da cabine. O motor do avião
fez um ruído e morreu. Marc, então, se ajeitou no assento.
— O que houve? — gritou. — O que houve?
Tinha mordido a língua. O sangue escorria-lhe pelo queixo. O saco ainda
estava aberto e o dinheiro se espalhara em seu colo.
— Não entendo...
O piloto estava atordoado demais para falar.
— Você saiu da pista! — o rosto de Cario estava contorcido de raiva.
— Não saí!
— Olhem isso! — com a mão trêmula, Marc apontava para alguma coi‐
sa, e Cario olhou naquela direção. A porta na parte de baixo do avião estava
torta. Uma água escura entrava por baixo e se empoçava em volta dos pés
deles.
Houve outra trovoada, dessa vez mais próxima.
— Foi ele que fez isso! — disse o piloto.
— O que foi que ele fez? — perguntou Cario.
— Ele mudou a pista de lugar!
Tinha sido um truque simples. Enquanto o avião dava meia-volta, Sarov
desligou as luzes da pista com o radiotransmissor que trazia no bolso. Por
um instante, o piloto ficou desorientado, perdido na escuridão. Então, o
avião terminou de fazer a volta e as luzes retornaram. Mas o que o piloto
não vira, não fora capaz de perceber, era que as luzes que então se acende‐
ram não eram as mesmas de antes — agora formavam um ângulo, afastan‐
do-se da pista segura e seguiam pela superfície do pântano.
— Ele nos fez cair no manguezal — disse o piloto.
Naquele momento Cario compreendeu o que havia acontecido com o
avião. No instante em que as rodas tocaram na água, o destino do avião es‐
tava selado. Sem terra firme por baixo, afundou e tombou. A água do pânta‐
no agora se derramava por dentro do avião, enquanto submergiam lenta‐
mente. Os galhos das árvores do manguezal, que quase destroçaram o
avião, agora os cercavam por todos os lados, como grades de uma prisão.
— O que vamos fazer? — perguntou Marc, e de repente parecia uma cri‐
ança falando: — Nós vamos afundar!
— A gente consegue sair! — Com o impacto, Cario sofrera um trauma‐
tismo na coluna. Sentindo muita dor, mexeu um dos braços, conseguindo
soltar o cinto de segurança.
— Não devíamos ter tentado enganar o cara! — gritou Marc. — Você sa‐
bia quem ele era. Contaram para você que...
— Cale a boca!
Cario também tinha uma arma. Tirou-a do coldre sob a camisa e, equili‐
brando-a sobre o joelho, continuou:
— Vamos sair daqui e matá-lo. E depois vamos dar um jeito de sair desta
ilha maldita.
— Tem alguma coisa lá fora — disse o piloto.
Algo se movera fora do avião.
— O que foi? — sussurrou Marc.
— Psiu! — Cario o interrompeu e levantou-se um pouco, com o corpo
preenchendo o espaço apertado da cabine. O avião se inclinou outra vez,
afundando ainda mais no pântano. Cario perdeu o equilíbrio, depois se fir‐
mou. Esticou-se, passando pelo piloto, como se fosse sair pela janela da
frente toda quebrada.
Algo enorme e terrível se lançou na direção dele, bloqueando o pouco de
luz que se enxergava no céu escuro. Cario gritou quando a coisa se atirou de
cabeça sobre ele, avançando para dentro do avião. Houve um clarão cinti‐
lante e um grunhido terrível. Agora os outros homens também gritavam.
O general Sarov só assistia. Ainda não chovia, mas o ar estava carregado
de umidade. De repente um relâmpago cruzou o céu em câmera lenta, como
que saboreando o trajeto. Naquele instante, Sarov viu o Cessna de lado, par‐
cialmente submerso no pântano. Meia dúzia de crocodilos se aglomerava
em volta dele. O maior deles mergulhara de cabeça na cabine. Só se via a
cauda se agitando enquanto o bicho se fartava.
Abaixou-se e apanhou a caixa metálica. Embora tivesse sido necessário o
esforço de dois homens para carregá-la até ele, parecia não pesar nada nas
mãos do general. Colocou-a no jipe e endireitou o corpo. Permitiu-se o raro
prazer de um sorriso e saboreou-o brevemente nos lábios. No dia seguinte,
quando os crocodilos tivessem terminado a refeição, mandaria os seus
peões — os macheteros — recuperarem o dinheiro. Não que o dinheiro fos‐
se importante. Agora era dono de um quilo de urânio enriquecido. Como
Cario dissera, ele agora tinha o poder de destruir uma cidadezinha qualquer.
Sarov, no entanto, não tinha nenhuma intenção de destruir uma cidade.
O alvo dele era o mundo inteiro.
2
MATCH POINT

ALEX MATOU A bola no topo do peito, lançou-a para a frente e a chutou


para o fundo da rede. Foi então que notou o homem com um cachorro bran‐
co enorme.
Fazia calor naquela bela tarde de sexta-feira de maio, o tempo caracterís‐
tico do período entre o final da primavera e o início do verão. Era apenas
um jogo-treino, mas Alex o levava a sério. O sr. Wiseman, professor de
educação física, o havia escalado para o time principal, e Alex não via a ho‐
ra de jogar contra as equipes das outras escolas da região oeste de Londres.
A escola dele — Brookland — infelizmente não tinha quadras de esportes
próprias, por isso jogavam em um campo público, no qual qualquer pessoa
podia entrar e até mesmo levar o cachorro.
Alex reconheceu o homem na hora e sentiu o coração desalentado. Ao
mesmo tempo ficou com raiva. Como ele tinha coragem de ir até a área do
treino, no meio de um jogo? Será que essa gente nunca mais o deixaria em
paz? O nome do homem era Crawley. Com o cabelo ralo, o rosto manchado
e usando roupas antiquadas, ele parecia o professor de alguma escola parti‐
cular de segunda categoria. Mas Alex sabia a verdade. Crawley era do MI6,
o serviço secreto britânico. Não era exatamente um espião, mas alguém que
estava muito envolvido naquele universo. Crawley era diretor-geral de um
dos órgãos mais secretos do país. Controlava a parte administrativa, organi‐
zava os esquemas, marcava as reuniões. Toda vez que alguém era morto
com uma facada nas costas ou uma bala no peito, era Crawley quem assina‐
va embaixo.
Quando Alex correu de volta para o meio do campo, Crawley andou até
um banco, arrastando o cachorro. O animal parecia não querer andar. Aliás,
parecia nem mesmo querer estar ali. Crawley sentou-se. Ainda continuava
sentado quando soou o apito final e o jogo chegou ao fim dez minutos de‐
pois. Alex pensou um pouco. A seguir, pegou o agasalho e foi até ele.
Crawley pareceu espantado ao vê-lo.
— Alex! — exclamou. — Que surpresa! Não o via desde... bem, desde
que você voltou da França.
Haviam se passado apenas quatro semanas desde que o MI6 forçara Alex
a investigar uma escola para milionários no sudeste da França. Usando um
nome falso, tornou-se aluno da Academia de Point Blanc, onde acabou sen‐
do capturado pelo louco do diretor, o dr. Grief. Foi perseguido pelas monta‐
nhas, alvejado e quase dissecado vivo em uma aula de biologia. O garoto
nunca quisera ser espião, e toda essa confusão o convencera de que estava
certo. Crawley era a última pessoa que ele queria encontrar.
Mas o homem do MI6 estava radiante:
— Você está no time da escola? É aqui que você joga? Fiquei admirado
por não o ter notado antes. Barker e eu passeamos bastante por aqui.
— Barker?
— Sim, o cachorro — Crawley esticou a mão e acariciou o cão. — É um
dálmata.
— Pensei que os dálmatas tivessem manchas pelo corpo.
— Não este — Crawley hesitou. — Na verdade, Alex, foi sorte encontrá-
lo. Será que eu poderia conversar um pouco com você?
Alex balançou a cabeça.
— Esqueça, sr. Crawley. Na última vez, eu avisei. Não tenho interesse no
MI6. Sou apenas um estudante. Não sou espião.
— É claro! — concordou Crawley. — Isso não tem nada a ver com a...
a... empresa. Não, não, não.
Ele pareceu um pouco constrangido.
— A questão é que... o que eu queria lhe perguntar era... o que você
acharia de uma cadeira na fileira da frente em Wimbledon?
A pergunta pegou Alex de surpresa.
— Wimbledon? O senhor se refere ao torneio de tênis?
— Exatamente — Crawley sorriu. — No Ali England Tennis Club, orga‐
nizador do famoso Torneio de Wimbledon. Sou membro do comitê.
— E o senhor está me oferecendo um ingresso?
— Sim.
— E qual é a armadilha?
— Não há nenhuma armadilha, Alex. É sério. Mas deixe-me explicar.
Alex sabia que os outros jogadores estavam se arrumando para ir embo‐
ra. Levaria dez minutos para voltar para a escola, depois tomar banho e ir
para casa. O horário da escola estava quase no fim. Ele ficou e ouviu o que
Crawley queria lhe dizer.
— A questão é que... veja só... na semana passada tivemos uma invasão.
A segurança do clube é sempre rígida, mas alguém conseguiu pular o muro
e entrar no prédio Millennium arrombando uma janela.
— O que é o prédio Millenium?
— É o prédio onde ficam os vestiários dos jogadores. Há também uma
academia de ginástica, um restaurante, alguns saguões para descanso e as‐
sim por diante. Temos um circuito interno de câmeras, mas o invasor desli‐
gou o sistema e o alarme central. Foi um serviço totalmente profissional.
Nunca teríamos descoberto a invasão, não fosse por um golpe de sorte. É
um chinês, 20 e poucos anos...
— O guarda?
— O invasor. Estava vestido de preto da cabeça aos pés e carregava uma
espécie de mochila nas costas. O guarda avisou a polícia, e depois vasculha‐
mos tudo. O Millennium, as quadras, os cafés... tudo. Levamos três dias. No
momento, graças a Deus, não existem células terroristas ativas em Londres,
mas há sempre a hipótese de algum lunático ter plantado uma bomba. Cha‐
mamos o esquadrão antiterrorista. Cães farejadores. Mas nada! Seja lá
quem for o sujeito, simplesmente desapareceu no ar, e parece que não dei‐
xou nenhuma pista.
— Mas agora é que vem a parte mais estranha, Alex. Ele não deixou na‐
da, mas também não levou nada. Na verdade, parece que nada foi tocado.
Como eu disse, se o guarda não tivesse visto o sujeito, jamais teríamos per‐
cebido a sua passagem por lá. O que você conclui disso?
Alex deu de ombros.
— É possível que o guarda o tenha interrompido antes que ele pudesse
botar as mãos no que quer que estivesse procurando.
— Não. O sujeito já estava de saída quando foi visto.
— Alguma chance de o guarda ter imaginado coisas?
— Checamos as câmeras. Há um cronômetro no vídeo, e descobrimos
que o sistema de câmeras realmente ficou desligado durante duas horas: da
meia noite às 2 horas.
— Então, o que o senhor acha, sr. Crawley? Por que está me contando is‐
so?
Crawley suspirou e esticou as pernas. Usava sapatos de camurça, já sur‐
rados e com os saltos gastos. O cachorro branco adormecera.
— Acredito que alguém esteja planejando sabotar o torneio de Wimble‐
don este ano — falou.
Alex estava prestes a interrompê-lo, mas Crawley ergueu a mão, deten‐
do-o.
— Sei que parece ridículo, e devo admitir, os outros membros do comitê
não acreditam em mim. Por outro lado, eles não têm o meu instinto. Não
trabalham no meu ramo. Mas, pense bem, Alex. Precisa haver um motivo
para uma invasão tão bem planejada e executada. Mas não existe nenhum
motivo. Tem alguma coisa errada.
— Por que alguém ia querer sabotar Wimbledon?
— Não sei. Mas precisamos ter em mente que o torneio de Wimbledon é
um evento gigantesco. Há milhões de dólares em jogo. Só a premiação em
dinheiro chega a 8,5 milhões. E há ainda os direitos de transmissão pela TV,
os direitos de merchandising, os patrocínios das empresas... Recebemos
pessoas importantes vindas do mundo todo, desde artistas de cinema a pre‐
sidentes e, como se sabe, os ingressos para a final masculina são revendidos
por milhares de dólares. Não se trata apenas de um jogo. É um evento mun‐
dial, e se acontecesse alguma coisa... bem, nem dá para imaginar.
Era óbvio que Crawley estivera pensando no assunto. Parecia cansado e
em seu olhar transparecia a preocupação.
Alex pensou um pouco.
— O senhor quer que eu dê uma olhada — falou, depois sorriu e conti‐
nuou: — Nunca estive em Wimbledon. Só vi pela TV. Adoraria ganhar um
ingresso para a quadra central. Mas, para ser sincero, não vejo como uma
visita de um dia poderia ajudar.
— Exatamente, Alex. Mas eu não estava mesmo pensando em uma visita
de um dia.
— Pensou em quê então?
— Bom... você sabe... estava pensando se você aceitaria ser gandula.
— O senhor não pode estar falando sério!
— Por que não? Você pode ficar lá durante as duas semanas do torneio.
Vai se divertir muito e estará bem no centro dos acontecimentos. Assistirá a
partidas sensacionais. E eu conseguirei relaxar um pouco por saber que vo‐
cê está lá. Se acontecer alguma coisa, há uma boa chance de que você per‐
ceba. Nesse caso, é só me chamar e cuidarei de tudo.
Acenou a cabeça, concordando. Era óbvio que Crawley conseguira con‐
vencer a si próprio, ou até mesmo a Alex.
— Não é nada perigoso ou coisa parecida. Quero dizer... é o torneio de
Wimbledon. Haverá muitos outros garotos e garotas por lá. O que você
acha?
— Vocês já não têm uma equipe de seguranças?
— É claro que já contratamos uma empresa de segurança. É muito fácil
identificar os seguranças: o que torna mais fácil evitá-los. Mas você estaria
invisível, Alex. É essa a questão.
— Alex...?
O sr. Wiseman gritou para chamá-lo. O professor o aguardava. Todos os
outros jogadores já haviam ido embora, a não ser uns dois ou três garotos
que ficaram batendo bola.
Alex gritou respondendo:
— Só um minuto, professor.

O professor hesitou. Era muito estranho um dos garotos ali conversando


com aquele homem que usava um paletó fora de moda e gravata listrada.
Por outro lado, tratava-se de Alex Rider, e toda a escola sabia que havia al‐
guma coisa esquisita com ele. Por duas vezes ele estivera afastado — sendo
que em nenhuma das ocasiões apresentara uma explicação decente — e, da
última vez, quando voltou, todo o prédio de ciências fora destruído em um
incêndio misterioso. O sr. Wiseman resolveu ignorar a situação. Alex sabia
muito bem se cuidar e certamente apareceria mais tarde. Era o que ele espe‐
rava.
— Não demore — disse.
O sr. Wiseman foi embora, e Alex se viu sozinho com Crawley.
Pensou um pouco sobre o que acabara de ouvir. Em parte, não confiava
em Crawley. Ele o teria encontrado em um campo no meio de uma partida
apenas por coincidência? No mundo do MI6, onde tudo era planejado e cal‐
culado, não havia coincidências. Esse era um dos motivos pelos quais o ga‐
roto odiava aquele universo. Eles já o haviam usado duas vezes, e, na ver‐
dade, nas duas nem se importaram se o garoto sobreviveria ou não, contanto
que lhes fosse útil. Crawley fazia parte daquele mundo e, no fundo, Alex
não gostava nem dele nem de nada naquele universo.
Só que, ao mesmo tempo, pensou consigo mesmo que poderia estar ti‐
rando conclusões precipitadas. Crawley não lhe pedira que se infiltrasse em
uma embaixada ou pulasse de paraquedas no Iraque nem nada que fosse re‐
motamente perigoso. Apenas lhe oferecera duas semanas em Wimbledon.
Era apenas isso. Uma oportunidade de assistir a um pouco de tênis e — ca‐
so tivesse azar — pegar alguém tentando roubar o clube. O que poderia dar
errado?
— Tudo bem, sr. Crawley — disse. — Não vejo por que não aceitar.
— Que maravilha, Alex! Vou organizar tudo. Vamos, Barker!
Alex olhou para o cachorro e notou que ele acabara de acordar e o olhava
fixamente com os olhos avermelhados, injetados de sangue. Seria um avi‐
so? Será que o cachorro sabia de alguma coisa que ele próprio desconhecia?
Mas então Crawley deu uma sacudida na coleira e, antes que pudesse re‐
velar algum dos segredos do dono, o cachorro foi rapidamente arrastado da‐
li.

Seis semanas depois, Alex estava na quadra central de Wimbledon, usando


o uniforme verde-escuro e lilás do Ali England Tennis Club. Estava por co‐
meçar aquela que deveria ser a última partida da fase classificatória. Um
dos dois jogadores — sentados a poucos centímetros dele — passaria para a
próxima rodada, com chance de ganhar o prêmio de 750 mil dólares que
acompanhava o troféu de campeão do torneio. O outro pegaria o próximo
ônibus para casa. Só agora, ao se ajoelhar ao lado da rede à espera do saque,
ele realmente percebia a força de Wimbledon e a razão de o torneio ter tanta
importância como evento esportivo internacional. Simplesmente não havia
competição como aquela.
Estava rodeado pela imensa magnitude do estádio, com milhares e mi‐
lhares de espectadores que erguiam uma parede humana nas arquibancadas
até desaparecerem na sombra lá bem no alto. Era difícil distinguir o rosto de
qualquer pessoa. Eram muitas e estavam bem distantes. No entanto, ele pô‐
de sentir a emoção da multidão quando os jogadores entraram na quadra,
cada qual caminhando até o seu lugar — a grama aparada com perfeição
brilhava sob os seus pés. Uma salva de palmas ecoou, depois houve um si‐
lêncio repentino. Os fotógrafos se inclinaram como urubus sobre as imensas
câmeras com teleobjetivas, enquanto, abaixo deles, em abrigos cobertos de
verde, as câmeras de TV giraram para captar as imagens do primeiro saque.
Os jogadores se encararam: dois homens que haviam conseguido chegar até
ali e cujo futuro no jogo seria decidido nos próximos minutos. Era tudo tão
inglês: a grama, os morangos com chantili, os chapéus de palha. E, ainda
assim, era um confronto sangrento, uma luta de gladiadores sem igual.
— Senhoras e senhores, silêncio, por favor.
A voz do árbitro soou pelos vários alto-falantes, e então o primeiro joga‐
dor sacou. Jacques Lefevre era francês, tinha 22 anos e era novato no tor‐
neio. Ninguém esperava que ele chegasse tão longe. Jogava contra o alemão
Jamie Blitz, um dos favoritos ao título naquele ano. Mas era Blitz quem
perdia. Dois sets a zero e, no terceiro set, cinco games a dois. Alex o obser‐
vou enquanto aguardava, equilibrando-se na ponta dos pés. Lefevre sacou.
A bola estourou perto da linha central. Um ace.
— Quinze a zero.
O garoto estava bem próximo e podia ver a derrota no olhar do alemão.
Era essa a crueldade do jogo: o lado psicológico. Quando se perde o equilí‐
brio emocional, pode-se perder tudo. Foi o que acontecera com Blitz. Alex
podia sentir o cheiro de suor do cara. Quando andou até o outro lado da
quadra para encarar o próximo saque, o corpo do jogador parecia pesado,
como se usasse toda a força apenas para se manter ali. Perdeu aquele ponto
e o seguinte. Alex correu a toda velocidade pela quadra, apanhou a bola e
só teve tempo de rolá-la para o gandula à esquerda. Não que fosse necessá‐
rio. Parecia que só haveria mais um saque no jogo.
E, é claro, Lefevre conseguiu fazer um ace final para em seguida cair de
joelhos e fechar os punhos, triunfante. Era uma pose já vista centenas de ve‐
zes nas quadras de Wimbledon, e a plateia comportou-se como devia, aplau‐
dindo de pé. No entanto, não fora uma boa partida. Blitz deveria ter ganha‐
do. Sem dúvida o jogo não poderia ter terminado em apenas três sets. Blitz
pareceu estar totalmente fora de forma, e o jovem francês conseguiu vencê-
lo com facilidade.
Alex juntou as últimas bolas e rolou-as para o canto mais distante. Ficou
de pé em posição de sentido enquanto os jogadores se cumprimentaram
com um aperto de mão, para depois cumprimentarem o árbitro. Blitz cami‐
nhou na direção do garoto e começou a arrumar o material na mochila. Alex
analisou o rosto dele. O alemão parecia tonto, como se mal pudesse acredi‐
tar que tinha perdido. Depois, pegou as suas coisas e foi embora. Deu um
último aceno para a plateia e deixou a quadra.
Lefevre ainda distribuía autógrafos para as pessoas da primeira fila. Blitz
já havia sido esquecido.
— Foi uma partida muito ruim — disse Alex. — Não sei o que houve
com o Blitz. Na maior parte do tempo ele parecia sonâmbulo.
Uma hora depois, Alex estava sentado a uma mesa do complexo, o con‐
junto de ambientes sob a sala do árbitro, no canto da quadra 1, onde os du‐
zentos garotos e garotas que trabalham durante o torneio fazem as refeições,
trocam de roupa e descansam. Ele tomava uma bebida com outros três gan‐
dulas, dois garotos e uma garota. Nas últimas semanas, fizera amizade com
a garota, tanto que ela o convidara para viajar com ela e a família quando
fossem para Cornwall, cidade situada na região sudoeste da Inglaterra, logo
após o final do torneio de Wimbledon e antes do reinicio das aulas depois
do verão. A garota tinha cabelos escuros, sardas e olhos azuis muito vivos.
Era boa na corrida e estava em plena forma. Estudava em um colégio de
freiras em Wimbledon, e seu pai era jornalista do setor de economia e atua‐
lidades, mas ela não tinha essa seriedade toda. Adorava piadas, quanto mais
pesadas melhor; e Alex tinha certeza de que a risada dela poderia ser ouvida
lá da quadra 19. Seu nome era Sabina Pleasure.
— É uma pena — disse Sabina. — Mas eu gosto do Lefevre. Ele é boni‐
tinho. E é só um pouco mais velho que eu.
— Sete anos — lembrou Alex.
— Hoje em dia isso não é nada. De qualquer forma, vou estar na quadra
central amanhã. Vai ser difícil ficar concentrada no jogo.
Alex sorriu. Realmente gostava de Sabina, ainda que ela demonstrasse
certa fixação por homens mais velhos. Agora estava feliz por ter aceitado o
convite de Crawley.
— Só certifique-se de botar a mão nas bolas certas — disse ele.
— Rider! — a voz se sobrepôs às conversas na cafeteria, e um sujeito
baixinho e com jeito de durão saiu a passos largos de uma sala lateral. Era
Wally Walfor que, após trinta anos na Royal Air Force (RAF), a força aérea
real britânica, agora organizava os gandulas.
— Pois não, senhor — respondeu.
Alex treinara com Walfor por quatro semanas e concluíra que o sujeito
era menos monstruoso do que tentava parecer.
— Preciso de alguém que fique na reserva. Você se importaria?
— Por mim, tudo bem.
Alex terminou a bebida e se levantou. Ficou contente ao perceber que
Sabina parecia chateada por ele ter sido afastado.
Ficar na reserva significava aguardar fora da sala do árbitro, para o caso
de solicitarem sua presença em uma das quadras ou em qualquer outro lugar
nas dependências do complexo. Na verdade, Alex adoraria sentar ao sol e
observar a multidão. Levou a bandeja de volta ao balcão e estava quase
saindo quando viu algo que o fez parar e pensar.
Um guarda da segurança falava num telefone público, no canto da sala.
Não havia nada de estranho na situação em si. Sempre havia guardas na en‐
trada do complexo e, de vez em quando, eles entravam para beber um copo
de água ou usar o banheiro. Mas aquele guarda falava de um jeito apressa‐
do, agitado, os olhos brilhando como se estivesse passando informações im‐
portantes. Era impossível ouvir o que ele dizia devido ao burburinho da ca‐
feteria, mas mesmo assim Alex se aproximou devagar, na esperança de ou‐
vir uma parte do que o guarda dizia. Foi então que percebeu a tatuagem.
Com tantos gandulas na sala, e os cozinheiros atarefados atrás do balcão, a
temperatura havia subido. O guarda tirara o paletó e usava uma camisa de
mangas curtas. No seu braço, bem onde terminava a manga, havia um gran‐
de círculo vermelho. Alex nunca vira nada parecido. Um círculo simples,
sem enfeites, sem nada escrito, sem indício de figura nenhuma. O que aqui‐
lo significava?
O guarda se virou de repente e percebeu que Alex olhava para ele. Tudo
aconteceu muito rápido, e Alex ficou chateado por não ter sido mais cuida‐
doso. O guarda não parou de falar, mas virou o corpo de modo que a tatua‐
gem no braço não era mais visível. Ao mesmo tempo, o homem cobriu a ta‐
tuagem com a mão que estava livre. O garoto sorriu para ele e fez um sinal,
como se estivesse esperando para usar o telefone público. O guarda murmu‐
rou mais algumas palavras e desligou. Vestiu outra vez o casaco e foi embo‐
ra.
Alex esperou que ele subisse as escadas, depois o seguiu. O guarda desa‐
parecera. O garoto sentou-se no banco do lado de fora da sala de arbitragem
e ficou pensando.
Uma conversa telefônica em uma cafeteria lotada. Não devia significar
nada. Mas o estranho era que Alex vira o guarda um pouco antes, cerca de
uma hora antes do início da partida entre Blitz e Lefevre. Haviam lhe pedi‐
do para ir até o prédio Millennium levar uma raquete para um dos jogado‐
res, e ele teve que subir a escada do salão central de recepção, para ir até o
saguão de descanso dos jogadores. Encontrou-se em uma área ampla e aber‐
ta, com monitores de TV de um lado, terminais de computador de outro e
sofás vermelhos e azuis no meio. Sabia que era um privilegiado por estar
ali, em um lugar reservado. Venus Williams estava sentada em um dos so‐
fás. Tim Henman assistia a um jogo na TV. E lá se encontrava inclusive o
próprio Jamie Blitz, pegando água mineral gelada com um copo plástico no
bebedouro junto à parede mais afastada.
O guarda também estava ali. Alex o vira em pé, um tanto sem jeito, pró‐
ximo da escada. Ele observava Blitz, mas ao mesmo tempo usava um celu‐
lar. Ou ao menos é o que parecia ser. Porém, naquele momento, Alex achara
que havia algo estranho com aquele guarda. Embora estivesse com o celular
ao ouvido, ele não falava nada. Toda a sua atenção estava voltada para
Blitz. Alex viu Blitz tomar a água e sair dali. O guarda saíra poucos segun‐
dos depois.
O que o guarda estaria fazendo dentro do prédio Millennium? Essa foi a
primeira coisa que Alex se perguntava agora, ali sentado ao sol, ao som das
batidas distantes nas bolas de tênis e dos aplausos de uma plateia remota. E
havia algo ainda mais obscuro. Se o guarda tinha celular, e se aquele telefo‐
ne estava funcionando poucas horas antes, por que ele estaria ligando de um
telefone público? É claro, a bateria podia ter acabado. Mas, mesmo assim,
por que usar especificamente aquele telefone? Havia telefones por todo o
clube, no andar térreo.
E por que o guarda tinha um círculo vermelho tatuado no braço? Não
queria que a tatuagem fosse vista. Alex tinha certeza de que o sujeito tenta‐
ra escondê-la.
Havia ainda outra coisa, senão Alex jamais teria ficado tão intrigado. Pa‐
ra começar, nunca teria notado o guarda a não ser por um pequeno detalhe:
assim como o homem que invadira o Ali England Tennis Club e levantara
as suspeitas de Crawley, o guarda era chinês.
3
SANGUE E MORANGOS

ALEX NÃO TOMARA a decisão de vigiar o guarda, mas nos dias que se
seguiram parecia ser atraído para perto do sujeito, como que por acaso. Ele
o vira mais duas vezes: uma quando inspecionava bolsas na entrada do Por‐
tão 5, e outra quando dava orientação a dois espectadores. É claro que havia
muitos outros homens e mulheres chineses trabalhando em Wimbledon, e
não havia nada de sinistro ou suspeito neles. Mas o guarda era diferente, seu
comportamento estranho e aquele círculo vermelho no braço o haviam dei‐
xado desconfiado.
Infelizmente, era impossível segui-lo o tempo todo. Essa era a única fa‐
lha no plano de Crawley. O trabalho de Alex o mantinha quase o dia todo
na quadra central. Os gandulas estavam organizados num sistema de reve‐
zamento, com turnos alternados de duas horas. Na melhor das hipóteses, ele
só podia ser espião durante meio período. E quando estava de fato na qua‐
dra, absorvido pela emoção do jogo, logo esquecia o guarda, o telefone e to‐
da a história da invasão.
No entanto, dois dias após Blitz ter deixado Wimbledon, o garoto se viu
mais uma vez seguindo os passos do sujeito. Faltava meia hora para o início
da partida da tarde, e Alex estava prestes a se apresentar no complexo quan‐
do viu o guarda entrar outra vez no prédio Millennium. Só isso já era estra‐
nho. O prédio era muito bem patrulhado. Sem ingresso, o público não pas‐
sava da recepção. Então, o que o guarda estava fazendo lá dentro? Alex
olhou para o relógio. Caso se atrasasse, Walfor gritaria com ele e talvez até
o mandasse para uma das quadras menos interessantes. Mas ainda tinha
tempo. E precisou admitir: estava curioso.
Entrou no Millennium. Como de costume, ninguém questionou sua pre‐
sença ali, seu uniforme de gandula era suficiente. Subiu a escada, atraves‐
sou o saguão de descanso dos jogadores e entrou no restaurante, do outro
lado. Lá estava o guarda na frente dele, outra vez com o celular na mão.
Mas não falava ao telefone. Estava simplesmente parado, observando os jo‐
gadores e os jornalistas terminarem o almoço.
O restaurante era amplo e moderno, com um longo bufê de pratos quen‐
tes e uma mesa central com saladas, bebidas geladas e frutas. Devia haver
umas cem pessoas sentadas almoçando, e Alex reconheceu ali um ou dois
rostos famosos. Olhou rapidamente para o guarda, que estava em pé em um
canto, tentando passar despercebido. Ao mesmo tempo, parecia estar focado
na mesa próxima a uma das janelas. O garoto acompanhou a direção do
olhar do guarda. Havia dois homens sentados à mesa. Um estava de paletó e
gravata. O outro vestia uma roupa esportiva. Alex não conhecia o primeiro,
mas o segundo era Sam Raymond, outro tenista de primeira linha, america‐
no, que jogaria naquela tarde.
Talvez o outro homem fosse o treinador ou o empresário do tenista. Os
dois conversavam em voz baixa, mas a conversa era intensa. O homem de
paletó falou, e Raymond riu. Alex avançou mais para dentro do restaurante,
mantendo-se perto da parede. Queria observar o que o guarda faria, mas
sem ser visto. Era ótimo que o restaurante estivesse lotado. Havia um nú‐
mero suficiente de pessoas circulando para encobri-lo.
Raymond se levantou. Alex viu o guarda estreitar os olhos e em seguida
levar o celular ao ouvido. Mas não digitou nenhum número. Raymond foi
até um bebedouro e puxou um copo do cilindro plástico. O guarda pressio‐
nou um botão no celular. Raymond serviu-se de água. O garoto viu quando
uma bolha de ar subiu, parecendo um cogumelo dentro do garrafão plástico.
O jogador levou o copo com água até a mesa e sentou-se. O homem de pa‐
letó disse algo. Raymond bebeu a água. E foi isso. Alex tinha visto tudo.
Mas o que ele vira? Não houve tempo para responder à pergunta. O guar‐
da já estava se deslocando em direção à saída. Alex decidiu o que faria. A
porta principal ficava entre ele e o guarda. Então se dirigiu também para a
porta, de cabeça baixa, como se não estivesse olhando para onde ia.
Calculou o tempo exato. Assim que o guarda chegou à porta, Alex esbar‐
rou nele. No mesmo instante, balançou o braço como que por descuido, ba‐
tendo na mão do guarda. O celular caiu no chão.
— Ah... me desculpe! — disse Alex.
Antes que o guarda pudesse detê-lo, Alex se abaixou e pegou o telefone.
Antes de devolvê-lo, sentiu na mão o peso do aparelho.
— Aí está — disse, entregando-o.
O guarda não disse nada. Por um instante os olhos dele fitaram os do ga‐
roto, que se sentiu sendo inspecionado por aquelas pupilas muito escuras e
completamente sem vida. O homem tinha a pele pálida e esburacada, com
um brilho de suor acima do lábio superior. O rosto não tinha nenhuma ex‐
pressão. Alex sentiu o telefone ser arrancado da sua mão, e em seguida o
guarda já havia ido embora, e a porta de mola se fechou às suas costas.
A mão de Alex ainda estava parada no ar. Olhou para a palma da mão.
Ficou com medo de ter entregado o jogo, mas pelo menos agora conseguira
alguma informação. O celular era falso. Leve demais. Não havia nada na te‐
la. E não se via nenhum logotipo de marca conhecida: Nokia, Panasonic,
Virgin... nada.
Ele se virou para os dois homens à mesa. Raymond terminara de beber a
água e amassara o copo plástico na mão. Ele estava cumprimentando o ami‐
go, prestes a sair.
A água...
Uma ideia passou pela cabeça de Alex. Era uma ideia completamente ab‐
surda, mas ainda assim fazia algum sentido com base em tudo o que vira.
Atravessou o restaurante outra vez e se abaixou ao lado do bebedouro. Vira
máquinas iguais àquela por todo o clube de tênis. Pegou um copo e, com a
borda, pressionou a torneira abaixo do garrafão. A água, filtrada e gelada,
foi despejada no copo. Ele sentiu a sensação do líquido gelado na palma da
mão.
— Que diabo você pensa que está fazendo?
Ao olhar para cima, formando uma muralha ao seu redor, Alex viu um
homem de rosto vermelho que usava um paletó do torneio de Wimbledon.
— Estava só pegando água — explicou.
— Isso eu sei! É óbvio. O que eu quero saber é o que você está fazendo
neste restaurante? É reservado para tenistas, autoridades e imprensa.
— Eu sei disso — falou Alex.
Procurou não perder a calma. Não tinha o direito de estar ali e, se o fun‐
cionário — fosse ele quem fosse — fizesse queixa dele, Alex poderia per‐
der a vaga como gandula.
— Perdão, senhor — disse. — Trouxe uma raquete para o sr. Raymond.
Acabei de entregá-la. Como estava com sede, parei para pegar um copo de
água.
O funcionário amoleceu. A história de Alex soara perfeitamente razoá‐
vel. E o funcionário gostara de ser chamado de “senhor”. Ele balançou a ca‐
beça em sinal de concordância e falou:
— Tudo bem. Mas não apareça mais por aqui.
Ele estendeu a mão e pegou o copo.
— Agora volte para o seu lugar.
Alex chegou ao complexo cerca de dez minutos antes do início da parti‐
da. Walfor olhou para ele carrancudo, mas não disse nada.
Naquela tarde, Sam Raymond perdeu a partida para Jacques Lefevre, o
mesmo francês desconhecido que dois dias antes, inesperadamente, derrota‐
ra Jamie Blitz. O placar final foi 6 a 7, 6 a 4, 6 a 2, 6 a 0. Embora Raymond
tivesse vencido o primeiro set, seu jogo foi se deteriorando ao longo da tar‐
de. Foi outro resultado surpreendente. Como Blitz, Raymond era outro
grande favorito ao título.
Vinte minutos depois, Alex estava de volta ao restaurante do subsolo,
sentado ao lado de Sabina, que bebia uma Coca Light.
— Minha mãe e meu pai estão aqui hoje — dizia ela. — Consegui in‐
gressos para eles. Em troca, eles me prometeram uma prancha de surfe no‐
va. Você já surfou, Alex?
— O quê? — O pensamento de Alex estava a quilômetros dali.
— Eu estava falando de Cornwall, surfe...
— Ah, sim. Já surfei — Alex aprendera a surfar com o tio, Ian Rider, o
espião cuja morte mudara a sua vida tão abruptamente. Os dois haviam pas‐
sado uma semana juntos em San Diego, Califórnia. Isso acontecera muitos
anos antes. Anos que, às vezes, pareciam séculos.
— Tem alguma coisa errada com a sua bebida? — Sabina perguntou.
Alex percebeu que segurava a Coca à sua frente, balançando o copo e
olhando fixamente para ele.
— Não, está boa... — começou a dizer.
Mas aí, pelo canto do olho, viu o guarda. Ele descera de novo para o
complexo. Outra vez, usava o telefone público do canto. Alex o viu inserir
uma moeda e discar um número.
— Já volto — disse Alex.
Levantou-se e foi até o telefone. O guarda estava em pé, de costas para
ele. Dessa vez, o garoto conseguiu chegar perto a ponto de conseguir ouvir
o que ele dizia:
— ... vai ser totalmente bem-sucedido.
O guarda falava em inglês, mas com forte sotaque. Ainda estava de cos‐
tas para Alex, mas falava num tom de voz surpreendentemente alto. Houve
uma pausa. Depois continuou:
— Vou encontrá-lo agora. Sim, em seguida. Ele vai me entregar e levo
para você.
Houve outra pausa. Alex sentiu que a conversa ia terminar. Deu alguns
passos para trás.
— Tenho que ir antes que alguém me veja — disse o guarda. — Tchau.
Botou o telefone de volta no lugar e foi embora.
— Alex? — Sabina o chamou. Sozinha, continuava sentada no mesmo
lugar onde os dois estavam antes. Alex percebeu que a garota devia ter visto
o que ele acabara de fazer. Ele ergueu a mão e acenou. Teria que achar um
jeito, mais tarde, de dar alguma explicação para tudo aquilo.
O guarda não subiu de volta para o andar térreo. Em vez disso, entrou
por uma porta que dava para um longo corredor, desaparecendo ao longe.
Alex abriu a porta e foi atrás dele.
O Ali England Tennis Club é um complexo imenso. No nível do solo,
lembra um parque temático, ainda que seu único tema seja o tênis. Milhares
de pessoas andam pelos caminhos e passarelas cobertas, num fluxo ininter‐
rupto de camisetas brancas radiantes, óculos escuros e chapéus de palha.
Além das quadras, há salões de chá, cafés, restaurantes, lojas, guichês de in‐
formações turísticas, bilheterias e centrais de segurança.
Há, porém, abaixo de tudo isso, outro mundo não tão conhecido. Todo o
clube é interligado por um labirinto de corredores, túneis e ruas, alguns tão
grandes a ponto de comportar a passagem de carros. Se é fácil se perder no
térreo, é ainda mais fácil no subsolo. Há muito pouca sinalização, e não tem
ninguém na esquina para dar informações. É o mundo dos cozinheiros e dos
garçons, dos lixeiros e dos entregadores. De algum modo eles conseguem se
movimentar e sair à luz do dia exatamente nos lugares onde devem sair e
depois desaparecem outra vez.
O corredor em que Alex se encontrava se chamava Caminho Real e liga‐
va o prédio Millennium à quadra 1, o que permitia aos jogadores chegar à
quadra sem serem vistos. O Caminho estava limpo e vazio, com um carpete
azul muito vivo. O guarda encontrava-se a pouco menos de 20 metros de
Alex, e de repente ele achou estranho se ver sozinho naquele lugar. Havia
apenas os dois ali. Acima deles, uma multidão de pessoas estaria andando
de um lado para o outro à luz do sol. Embaixo não havia ninguém, e Alex
achou bom que o carpete abafasse o barulho dos seus passos. O guarda pa‐
recia apressado. Até então, não parara nem se virara.
O guarda chegou a uma porta de madeira em que estava escrito “Acesso
restrito”. Sem parar, entrou. Alex parou por um instante, depois o seguiu.
Nesse momento, se viu num ambiente de um modo geral bem mais grotes‐
co. Era um corredor de concreto com placas de sinalização em amarelo, e
grossos tubos de ventilação na parte de cima. O ar cheirava a óleo e lixo, e
Alex sabia que chegara ao Caminho dos Carrinhos, uma rota de serviço que
forma um grande círculo sob o clube. Dois adolescentes usando jeans e
avental verde passaram por ele, empurrando lixeiras plásticas. Uma garço‐
nete foi no sentido oposto, levando uma bandeja com pratos sujos. Não ha‐
via sinal do guarda e, por um instante, Alex pensou que o havia perdido.
Mas então viu uma figura sumir por trás de várias tiras de plástico transpa‐
rente que pendiam do teto até o chão. Conseguiu apenas identificar o uni‐
forme do homem do outro lado, apressou-se e atravessou a cortina de tiras.
Alex se deu conta de duas coisas ao mesmo tempo: já não fazia a menor
ideia de sua localização e estava totalmente só.
Encontrou-se em uma câmara subterrânea que tinha o formato de uma
banana, curva e com pilares de concreto que sustentavam o teto. Mais pare‐
cia um estacionamento subterrâneo e, na verdade, havia três ou quatro car‐
ros estacionados em vagas próximas à passarela suspensa onde ele estava.
Mas a maior parte do espaço era recoberta por sucata. Havia caixas de pa‐
pelão vazias, estrados de madeira, uma betoneira enferrujada, pedaços de
grades velhas e máquinas de café quebradas, jogadas fora e abandonadas no
chão úmido de cimento. O ar tinha um cheiro ruim, e Alex ouvia um zumbi‐
do constante, como o de uma serra elétrica, vindo de um compactador de li‐
xo que não estava à vista. Ainda assim, o lugar era usado para estocar ali‐
mentos e bebidas. Havia barris de cerveja, centenas de garrafas de refrige‐
rantes, cilindros de gás e, agrupados num canto, oito ou nove caixas brancas
gigantescas — câmaras frigoríficas — cada qual com o rótulo da marca
“Refrigeração Rawlings”.
Alex olhou para o teto que se inclinava para cima e cujo formato lem‐
brou-lhe alguma coisa. Mas é claro! A arquibancada ao redor da quadra 1!
Era onde ele estava: no compartimento de carga que ficava sob a quadra de
tênis. Sem dúvida, ali era o ventre de Wimbledon. Era ali que chegavam to‐
dos os suprimentos, e para onde todo o lixo era levado. E, nesse exato mo‐
mento, dez mil pessoas estavam sentadas poucos metros acima de sua cabe‐
ça, apreciando o jogo, sem saber que tudo o que consumiam ao longo do dia
começava e terminava ali.
Mas onde estava o guarda? Por que viera até ali e com quem ia se encon‐
trar? Alex avançou com cuidado, lembrando-se, outra vez, de que não con‐
tava com ninguém. Estava em uma plataforma suspensa, na qual uma única
palavra — “Perigo” — era repetida em letras amarelas ao longo da beirada.
Ninguém precisava lhe dizer isso. Chegou a uma escada e desceu para a
parte principal daquele compartimento, no mesmo patamar das câmaras fri‐
goríficas. Passou por um monte de cilindros de gás — gás carbônico com‐
primido. Não tinha a menor ideia da utilidade daquilo. A maior parte das
coisas daquele lugar parecia ter sido atirada ali sem nenhuma razão.
Agora, tinha certeza absoluta de que o guarda fora embora. Por que que‐
reria encontrar alguém ali embaixo? Pela primeira vez desde que deixara o
complexo, Alex repassou mentalmente a conversa telefônica.
“Vou encontrá-lo agora. Sim, em seguida. Ele vai me entregar...”
Parecia ridículo, falso, como uma daquelas falas que se ouve em filmes
ruins que passam na TV. No momento em que percebeu isso e admitiu que
fora enganado, ouviu um som estridente e viu uma figura escura sair rápido
das sombras. Estava num espaço aberto, bem no centro do piso de concreto.
O guarda dirigia uma empilhadeira cujos garfos metálicos se projetavam na
direção de Alex, como os chifres de um touro gigantesco. Movido por um
motor elétrico de 88 volts, o veículo acelerava sobre os pneus. O garoto
olhou para o alto e viu os estrados pesados, uns doze, equilibrados lá em ci‐
ma dos garfos. Viu o sorriso do guarda, um vislumbre dos dentes feios num
rosto ainda mais feio.
Alex correu em direção a uma parede, buscando uma saída, mas o veícu‐
lo percorreu a distância entre eles numa velocidade impressionante, depois
parou de repente quando o guarda pisou no freio. O garoto caíra em uma ar‐
madilha: gritou e se jogou para um lado. Os estrados de madeira, lançados
para frente pela força cinética do veículo, deslizaram dos garfos e foram ar‐
remessados com um estrondo. Teria sido esmagado, não fossem os barris de
cerveja. De alguma forma, ele conseguira se proteger por trás dos barris
que, enfileirados, suportaram o peso dos estrados, deixando um espaço tri‐
angular minúsculo. Ouviu a madeira se despedaçar poucos centímetros aci‐
ma de sua cabeça. Os estilhaços o atingiram no pescoço e nas costas. A po‐
eira e a sujeira o sufocaram. Mas ele ainda estava vivo. Engasgado e sem
conseguir enxergar muito bem, rastejou para frente enquanto a empilhadeira
dava a ré e se preparava para atacá-lo outra vez.
Como podia ter sido tão idiota? O guarda o vira naquela primeira vez no
complexo, enquanto dava o telefonema. Alex ficara ali parado olhando fixa‐
mente para a tatuagem no braço do sujeito e pensara que o uniforme de gan‐
dula seria suficiente para protegê-lo. E depois, no segundo encontro, no pré‐
dio Millennium, quando esbarrara nele desajeitadamente, para pegar o celu‐
lar. É óbvio que o guarda descobrira quem ele era e o que estava fazendo.
Não importava que se tratasse de um adolescente. Sabia demais. Era perigo‐
so. Precisava ser eliminado.
Então o guarda preparara uma armadilha tão óbvia que não enganaria
nem um... bem, nem um colegial. Alex gostaria de ver a si próprio como o
mesmo superespião que salvara o mundo inteiro por duas vezes. Mas isso
era bobagem. O guarda fingira que telefonara fazendo com que ele o seguis‐
se até aquela área deserta. E agora estava prestes a matá-lo. Quando estives‐
se morto, não importaria quem ele era ou o que descobrira.
Sufocado e com enjoo, ele cambaleou no instante em que a empilhadeira
investiu em sua direção pela segunda vez. Virou-se e correu. O guarda esta‐
va ridículo, todo encurvado dentro daquela cabine minúscula. Porém, a má‐
quina que ele dirigia era veloz, potente e incrivelmente manobrável, capaz
de fazer um círculo ao redor de uma moeda de dez centavos. Alex tentou
mudar de direção, correndo a toda velocidade para um lado. O veículo fez a
volta e o seguiu.
Nesse instante, o guarda se esticou e apertou um botão. Os garfos de me‐
tal sacudiram e foram abaixados, de modo que já não pareciam chifres, pa‐
reciam duas espadas empunhadas por um apavorante cavaleiro medieval.
Para que direção Alex deveria correr? Esquerda ou direita? Mal teve
tempo de decidir, e o veículo já estava em cima dele. Mergulhou para a di‐
reita e saiu rolando pelo piso de concreto. O guarda puxou a alavanca, e a
máquina girou outra vez. O garoto desviou-se de novo e, por poucos centí‐
metros, as pesadas rodas não o atingiram. Depois, bateram em um dos pila‐
res.
Houve um silêncio. Alex se levantou, sua cabeça girava. Por um segun‐
do, torceu para que a colisão tivesse deixado o guarda desacordado, mas,
sentindo o estômago embrulhado, viu o homem descer da cabine do veícu‐
lo, espanando um pouco a poeira da manga do casaco. O sujeito andava de‐
vagar, com a confiança de quem sabe que está no controle da situação. E
Alex já percebera o motivo. Quase automaticamente, o guarda assumira a
postura de um perito em artes marciais — os pés ligeiramente separados, o
centro de gravidade baixo. Com as mãos curvadas no ar, aguardava o mo‐
mento do ataque. Ainda sorria. Tudo o que via diante de si era um garoto
indefeso, um garoto já debilitado pelos dois ataques da empilhadeira.
Com um grito repentino, o guarda partiu para o ataque com a mão pare‐
cendo uma lâmina na direção da garganta do adversário. Se o golpe o tives‐
se acertado, ele estaria morto com a traqueia esmagada. Mas, no último ins‐
tante, ergueu os pulsos e cruzou os braços no ar, formando uma barreira. O
guarda foi pego de surpresa, e o garoto aproveitou para chutar com o pé di‐
reito, mirando a virilha do homem. No entanto, o guarda não estava mais
ali, já havia girado o corpo para o lado. Nesse instante, Alex percebeu que
estava diante de um lutador mais forte, mais rápido e mais experiente do
que ele.
O guarda rodopiou, e dessa vez a costa da mão dele atingiu o lado da ca‐
beça de Alex, que ouviu um estalo. Ficou cego por alguns instantes. Cam‐
baleou para trás e bateu contra uma superfície metálica. Era a porta de uma
das câmaras frigoríficas. Deu um jeito de agarrar a maçaneta e, quando con‐
seguiu andar aos tropeços para frente, a porta se abriu. Sentiu um golpe de
ar gelado na nuca, e talvez tenha sido o que o reanimou e lhe deu forças pa‐
ra se lançar à frente e se abaixar diante de um chute malsucedido do guarda,
que pretendia atingi-lo na garganta.
Alex estava em uma situação ruim e tinha consciência disso. O nariz san‐
grava. Podia sentir o sangue quente pingar sobre o canto da boca. Sua cabe‐
ça girava, e as lâmpadas em volta pareciam piscar diante de seus olhos. O
guarda, porém, não estava nem ofegante. E não era a primeira vez que o ga‐
roto se perguntava em que havia se metido. O que poderia ser tão importan‐
te a ponto de o guarda estar disposto a matar um garoto de 14 anos a san‐
gue-frio, sem ao menos fazer uma pergunta? Limpou o sangue da boca e
amaldiçoou Crawley por ter ido procurá-lo no campo de futebol, e xingou a
si próprio por ter lhe dado ouvidos. Um lugar na primeira fila em Wimble‐
don? Só se fosse no cemitério de Wimbledon.
O guarda caminhava em sua direção. Alex se retesou e mergulhou para o
lado, evitando o duplo golpe frontal de pé e mão. Caiu sobre uma lixeira
que transbordava. Usando todas as suas forças, pegou a lixeira e a arremes‐
sou, dando um sorriso forçado com os dentes cerrados quando a lata de lixo
atingiu o agressor, espalhando sobre ele os restos de comida apodrecida. O
guarda praguejou e cambaleou para trás. O garoto correu para trás do refri‐
gerador, tentando recobrar o fôlego e procurando uma saída.
Ele tinha apenas mais alguns segundos. Sabia que o guarda logo viria
atrás dele e, na próxima vez, acabaria o serviço. Já estava farto daquilo.
Alex viu os cilindros de gás comprimido e arrastou um deles para fora do
suporte de metal. O cilindro parecia pesar uma tonelada, mas ele estava de‐
sesperado. Arrancou com força a tampa e ouviu o gás vazando num jato.
Então, seguiu adiante segurando o cilindro à sua frente com as duas mãos.
Naquele instante, o guarda apareceu vindo pelo lado da câmara frigorífica.
O garoto avançou aos trancos, sentia os músculos gritando no limite, e
apontou o cilindro para o rosto do homem. O jato de gás explodiu nos olhos
dele, cegando-o temporariamente.
Abaixou o cilindro, retesou as pernas, e voltou a erguê-lo. A borda metá‐
lica bateu na cabeça do guarda, bem acima do nariz. Alex sentiu o impacto
do aço maciço contra o osso. O guarda cambaleou para trás. O garoto deu
mais um passo à frente. Dessa vez, manuseou o cilindro como um taco de
beisebol atingindo o homem nos ombros e no pescoço com uma força incrí‐
vel. O guarda não teve reação. Nem sequer gritou ao ser levantado do chão
e arremessado violentamente para dentro do frigorífico.
Alex largou o cilindro e gemeu. Os braços pareciam ter sido arrancados
do lugar onde se encaixavam no corpo. A cabeça ainda girava, e ele ficou
imaginando se não havia quebrado o nariz. Andou com dificuldade e olhou
para dentro da câmara frigorífica.
Havia uma cortina plástica que ocultava uma pilha de caixas de papelão,
cada uma delas cheia de morangos até a borda. Alex não pôde deixar de
sorrir. Os morangos com chantili eram uma das maiores tradições de Wim‐
bledon. Era ali que ficavam armazenados. O guarda caíra em meio às caixas
de morangos, esmagando algumas. Estava inconsciente, mergulhado num
monte de morangos, com a cabeça enfiada no que parecia ser um travessei‐
ro vermelho formado pelas frutas. O garoto ficou parado na entrada, encos‐
tado no batente da porta, deixando que o ar gelado passasse por ele. Havia
um termostato perto dele. Do lado de fora estava quente. Os morangos pre‐
cisavam permanecer refrigerados.
Deu uma última olhada no homem que tentara matá-lo.
— Frio — decidiu.
Então se esticou e girou o controle do termostato, deixando a temperatu‐
ra abaixo de zero.
Mais frio.
Fechou a porta da câmara frigorífica e foi embora, mancando e com dor.
4
CRIBBER, A ONDA

O TÉCNICO LEVOU apenas alguns minutos para desmontar o bebedou‐


ro. Enfiou a mão lá dentro e retirou cuidadosamente um frasco estreito de
vidro do meio de um emaranhado de fios e placas de circuitos.
— Embutido no filtro — disse — há um sistema de válvula. Muito enge‐
nhoso.
Passou o frasco para uma mulher de ar severo que o colocou contra a luz
para examinar o conteúdo. O frasco continha um líquido transparente. Ela o
agitou, cheirou e, por fim, botou um pouco do líquido no dedo e provou.
Seus olhos se contraíram.
— Librium — anunciou ela.
Ela tinha um jeito prático e conciso de falar.
— Droguinha asquerosa. Uma colherada é suficiente para deixar uma
pessoa desacordada. No entanto, algumas gotas... provocam apenas confu‐
são mental. Basicamente, fazem com que a pessoa perca o equilíbrio.
O restaurante, e, aliás, todo o prédio Millennium, fora fechado naquela
noite. Havia mais três homens por lá. Crawley era um deles. Próximo a ele
estava um policial uniformizado, obviamente um profissional experiente. O
terceiro homem, de cabelo branco e aparentando ser mais idoso, usava uma
gravata de Wimbledon. Alex sentou-se em um canto, sentindo-se repentina‐
mente cansado e deslocado. Ninguém, exceto Crawley, sabia que ele traba‐
lhava para o serviço secreto britânico. Até onde se sabia, ele era apenas um
gandula que por acaso deparara com a verdade.
Agora, Alex já tirara o uniforme e usava suas próprias roupas. Ligara pa‐
ra Crawley, tomara um banho e se trocara, deixando o uniforme de gandula
no armário. Por algum motivo, sabia que o usara pela última vez. Imaginou
se o deixariam ficar com o calção, a camiseta e os tênis com o logotipo das
raquetes cruzadas bordado na lingueta. O uniforme é o único pagamento
que os gandulas de Wimbledon recebem.
— Ficou muito claro o que estava acontecendo — disse Crawley. — Co‐
mo o senhor deve lembrar, eu estava preocupado com a invasão que tive‐
mos, sr. Norman.
Norman era o homem com a gravata do clube.
— Bem, parece que eu estava certo. Ninguém queria roubar nada. Entra‐
ram aqui para mexer nos bebedouros. No restaurante, no saguão e provavel‐
mente em todo o prédio. Controle remoto... é isso, Henderson?
Henderson era o homem que desmontara o bebedouro. Outro especialista
do MI6.
— Está certo, senhor — respondeu. — O bebedouro funcionava normal‐
mente, servindo água gelada. Mas, quando recebia um sinal de rádio (e era
isso o que o nosso amigo fazia com o celular falso), injetava alguns milili‐
tros dessa droga na água. Não o suficiente para aparecer no exame de san‐
gue aleatório caso o jogador precisasse fazê-lo. Porém, o bastante para aca‐
bar com o jogo do tenista.
Alex se lembrou do jogador alemão, Blitz, quando ele saía da quadra
após ter perdido a partida. Parecia tonto e confuso. No entanto, havia algo
mais. Havia sido dopado.
— É transparente — acrescentou a mulher. — E praticamente não tem
gosto de nada. Não seria percebido num copo de água gelada.
— Mas eu não compreendo! — disse o sr. Norman. — Qual era o objeti‐
vo?
— Acho que posso responder à sua pergunta — disse o policial. — Co‐
mo o senhor sabe, o guarda não pode falar, mas a tatuagem no braço dele
indica que ele é, ou era, membro do Grande Círculo.
— E o que seria isso? — balbuciou o sr. Norman.
— É uma tríade, senhor. É uma gangue chinesa. As tríades, como se sa‐
be, estão envolvidas em diversas atividades criminosas: drogas, prostitui‐
ção, imigração ilegal e jogatina. Suponho que essa operação esteja ligada à
questão do jogo. Assim como qualquer outro evento esportivo, o torneio de
Wimbledon atrai milhões de dólares gastos em apostas. Agora, no meu en‐
tender, o jovem francês, Lefevre, começou o torneio com uma probabilida‐
de de 300 a 1 de perder.
— Mas aí ele vai e vence Blitz e Raymond — disse Crawley.
— Exato. Tenho certeza de que o próprio Lefevre não fazia a menor
ideia do que estava acontecendo. Porém, se todos os seus adversários fos‐
sem dopados antes de entrar na quadra... Bem, aconteceu duas vezes; e po‐
deria ter continuado acontecendo até a partida final. O Grande Círculo ga‐
nharia uma bolada! Uma aposta de cem mil dólares no francês lhes teria
rendido uns 30 milhões.
O sr. Norman se levantou.
— O mais importante agora é que ninguém saiba disso — disse ele. —
Seria um escândalo nacional e um incidente desastroso para a nossa reputa‐
ção. Na verdade, talvez tivéssemos que iniciar todo o torneio de novo!
Ele olhou para Alex, mas falou com Crawley:
— Podemos confiar que o garoto não vai falar nada? — perguntou.
— Não vou contar para ninguém o que aconteceu — disse Alex.
— Bom. Muito bom.
O policial acenou com a cabeça, concordando.
— Você fez um ótimo trabalho — acrescentou. — Primeiro, encontrando
esse sujeito, depois o seguindo e tudo mais. Embora deva dizer que foi um
tanto irresponsável trancá-lo naquele frio congelante.
— Ele tentou me matar — disse Alex.
— Mesmo assim! Ele poderia ter morrido congelado. E, de fato, poderá
até perder alguns dedos por causa do enregelamento.
— Espero que isso não o impeça de jogar tênis.
— Bom, isso eu não sei...
O policial tossiu. Estava claro que não conseguira entender muito bem
quem era Alex.
— De qualquer maneira, foi um bom trabalho. Mas da próxima vez tente
pensar melhor no que vai fazer. Tenho certeza de que você não gostaria que
ninguém saísse machucado.

Que vão todos para o inferno!


Alex observava ao luar as ondas negras e prateadas que quebravam na
extensa curva da praia de Fistral. Tentava tirar da cabeça o policial, o sr.
Norman e todo o torneio de Wimbledon. Ele praticamente salvara todo o
torneio do Ali England Tennis e, embora não esperasse ganhar um ingresso
permanente para o camarote real nem ser convidado a tomar chá com a du‐
quesa de Kent, também não imaginara ser mandado embora do complexo
tão às pressas. Assistiu às finais, sozinho, pela TV. Ao menos o deixaram fi‐
car com o uniforme do torneio de Wimbledon.
E outra coisa boa acontecera: Sabina não se esquecera do convite.
Alex estava na varanda da casa que os pais dela haviam alugado, uma ca‐
sa que seria feia em qualquer outro lugar do mundo, mas que parecia encai‐
xar com perfeição no lugar que ocupava ali à beira de um penhasco na costa
de Cornwall. Era antiquada, quadrada, em parte feita de tijolos, em parte de
madeira pintada de branco. Tinha cinco quartos, três escadarias e portas em
excesso. O jardim estava mais morto que vivo, destruído pelo sal e pelos
borrifos das ondas do mar. A casa se chamava Brooks Leap (salto de Bro‐
ok), embora ninguém soubesse quem fora Brook nem por que saltara ou ao
menos se sobrevivera. Alex já estava ali havia três dias. Tinha sido convida‐
do para passar uma semana.
Percebeu um movimento às suas costas. A porta se abriu, e Sabina Plea‐
sure apareceu envolta em um roupão grosso atoalhado e trazendo dois co‐
pos. Estava quente ali fora. Embora chovesse quando Alex chegara — pare‐
cia estar sempre chovendo em Cornwall — o tempo abrira, e de repente sur‐
giu uma bela noite de verão. Sabina o deixara fora da casa enquanto tomava
banho. Seu cabelo ainda estava molhado. O roupão amarrado bem solto caía
até os pés descalços. Alex pensou que ela aparentava bem mais que 15
anos.
— Trouxe uma Coca para você — disse ela.
— Obrigado.
A varanda era ampla, com uma sacada baixa, um banco de balanço e
uma mesa. Sabina largou os copos e sentou-se. Alex sentou-se ao seu lado.
A madeira do banco de balanço estalava enquanto eles se balançavam,
olhando a vista. Ninguém disse nada por um bom tempo. Então, de repen‐
te...
— Por que você não me conta a verdade? — perguntou Sabina.
— Do que você está falando?
— Eu me lembrei de Wimbledon. Por que você foi embora antes das
quartas de final? Num momento você estava lá... na quadra central! E de‐
pois...
— Já falei — interrompeu Alex, sentindo-se pouco à vontade com a situ‐
ação. — Eu não estava me sentindo bem...
— Não é o que eu ouvi dizer. Houve um rumor de que você se meteu em
uma briga. E outra coisa, eu vi você de calção de banho. Nunca tinha visto
ninguém com tantos cortes e contusões.
— É que eu vivo tendo que brigar na escola.
— Não acho que seja isso. Tenho uma amiga na Brookland. Ela disse
que você nunca está lá, que sempre some. Você se afastou duas vezes no úl‐
timo período letivo e, no dia que voltou, metade da escola pegou fogo.
Alex se inclinou para a frente e pegou a Coca, girando o copo gelado en‐
tre as mãos. Um avião cruzava o céu, minúsculo naquela escuridão imensa,
com as luzes piscando.
— Está bem, Sab — disse ele. — Não sou realmente apenas um estudan‐
te. Sou um espião, um James Bond adolescente. Às vezes tenho que faltar à
escola para salvar o mundo. Até hoje já fiz isso duas vezes. A primeira foi
aqui em Cornwall, a segunda, na França. O que mais você quer saber?
Sabina sorriu.
— Tudo bem, Alex. Uma resposta idiota para uma pergunta idiota...
Ela encolheu as pernas, aconchegando-se no calor do roupão.
— Mas você tem alguma coisa diferente. Você não é como os outros ga‐
rotos que conheci até hoje.
— Crianças? — a mãe de Sabina chamava da cozinha. — Já não está na
hora de pensarem em dormir?
Eram 22 horas. Os dois acordariam às 5 horas para surfar.
— Cinco minutos! — respondeu Sabina.
— Estou contando!
Sabina suspirou:
— Mães!

Alex nem chegara a conhecer a própria mãe.


Vinte minutos depois, ao ir para a cama, pensou em Sabina Pleasure e
nos pais dela: o pai, com um ar meio livresco, usava óculos e tinha longos
cabelos grisalhos; a mãe, gorducha e alegre, era mais parecida com Sabina.
Eram apenas os três. Talvez por isso fossem tão próximos. Moravam na re‐
gião oeste de Londres e, todo verão, alugavam aquela casa por quatro sema‐
nas. Sabina dissera que não tinham muito dinheiro. Era o tipo de família
que não precisava mesmo ter muito dinheiro.
Apagou a luz e deitou-se no escuro. O quarto, que ficava no alto, perto
do telhado da casa, tinha apenas uma janela pequena através da qual se via a
Lua branca e brilhante. Desde que chegara, os pais de Sabina o tratavam co‐
mo se fosse um velho conhecido. Toda família tem a sua rotina, e Alex fi‐
cou surpreso com a rapidez com que se adaptara à rotina deles, acompa‐
nhando-os nas longas caminhadas pelos penhascos, ajudando nas compras e
na cozinha, ou simplesmente compartilhando o silêncio — lendo e olhando
o mar.
Por que não podia ter uma família assim? Alex sentiu aquela velha e co‐
nhecida tristeza chegando. Seus pais morreram quando tinha apenas poucas
semanas de vida. Não tinha irmãos ou irmãs e só soubera a verdade sobre o
tio que o criara após sua morte. Ian Rider fora um espião. Como Alex pode‐
ria ter desconfiado? Não importava, pois agora estava só. Às vezes se sentia
tão solitário como o avião que ele vira da varanda, fazendo sua longa via‐
gem pelo céu noturno.
Alex ajeitou os travesseiros sob a cabeça aborrecido consigo mesmo. Ti‐
nha amigos. Aproveitava a vida. Dera um jeito de superar o atraso na escola
e estava passando férias fantásticas. E, com um pouco de sorte, em função
dos acontecimentos em Wimbledon, o MI6 o deixaria em paz. Então, por
que se deixava dominar por esse baixo-astral?
A porta se abriu. Alguém entrou no quarto. Alex reconheceu o perfume
suave de Sabina. Ela se inclinou e ele pôde sentir os cabelos dela lhe toca‐
rem o rosto. Os lábios de Sabina roçaram os seus.
— Você é muito mais bonito que o James Bond — disse ela.
E então saiu. A porta se fechou. Alex se virou e, sem sucesso, tentou dor‐
mir.
Cinco e quinze da manhã seguinte.
Se fosse dia de aula, Alex dormiria mais duas horas e, mesmo assim, te‐
ria se arrastado da cama sem a menor disposição. Apesar de ter demorado
muito para conseguir dormir na noite anterior, despertara num instante e,
após descer para a praia de Fistral com a luz rosada do sol nascente no céu,
sentia a energia e a excitação fluírem em seu corpo. O mar chamava, desafi‐
ava-o a entrar.
— Olhe essas ondas! — disse Sabina.
— São grandes — murmurou Alex.
— São imensas. É incrível!
Era verdade. Alex surfara duas vezes antes — uma em Norfolk, outra
com o tio, na Califórnia —, mas nunca vira nada como aquilo. Não havia
vento. O rádio avisara das rajadas repentinas em alto-mar e de uma maré al‐
ta fora-do comum. Juntos, esses fenômenos criavam ondas de tirar o fôlego.
Tinham pelo menos uns três metros de altura e avançavam lentamente para
a praia, como se carregassem o peso de todo o oceano nas costas. Quando
quebravam, faziam um ruído muito alto e assustador. Alex sentia o coração
bater forte. Olhou para aquelas paredes movediças feitas de água, o azul-es‐
curo, o branco espumante. Será que conseguiria pegar uma onda monstruo‐
sa daquelas com uma prancha frágil, feita apenas de fibra de vidro e espuma
de poliuretano?
Sabina percebeu a hesitação dele.
— O que você acha? — perguntou.
— É, não sei... — respondeu, percebendo que gritava para se fazer ouvir,
por causa do estrondo das ondas.
— As ondas estão grandes demais!
Sabina era uma ótima surfista. Na manhã do dia anterior, Alex observara
a habilidade dela ao manobrar pelos perigosos recifes de coral até a beira da
praia. Mas agora ela também parecia hesitar.
— Talvez fosse melhor a gente voltar para a cama!
Alex avaliou a situação como um todo. Havia uns seis surfistas na praia
e, bem ao longe, um homem que aprontava um jet ski no raso. Sabia que ele
e Sabina eram os mais jovens ali. Assim como ela, ele usava roupas e botas
de neoprene de três milímetros, que o protegiam do frio. Então, por que ele
estava tremendo? Não tinha prancha, mas alugara uma Ocean Magic com
propulsor. Sabina escolhera uma mais larga, mais grossa, mais estável e me‐
nos veloz. Alex preferira a com propulsor pelo domínio e pela sensação de
controle proporcionada pelas três quilhas. Também estava contente por ter
escolhido uma prancha de 2,5 metros. Para pegar ondas imensas como
aquelas, precisaria de uma prancha um pouco mais longa.
Se fosse pegar...
Alex não se decidia entre entrar ou não na água. As ondas pareciam ter o
dobro ou quem sabe o triplo da sua altura, e ele sabia que, se cometesse um
erro, poderia facilmente morrer afogado. Os pais de Sabina a proibiam de
entrar na água quando o mar estava muito violento, e Alex tinha que reco‐
nhecer que jamais o vira tão bravo. Observou outra onda quebrar e teria ido
embora se não tivesse ouvido um surfista gritar para o outro, com as pala‐
vras ecoando pelas areias vazias:
— A Cribber!
Não podia ser verdade. A Cribber estava na praia de Fistral! Alex ouvira
aquele nome várias vezes. A Cribber era uma lenda não apenas em
Cornwall, mas em todo o mundo do surfe. Os primeiros registros de sua
aparição datam de setembro de 1966, e, com pouco mais de seis metros de
altura, era a maior onda que já chegara ao litoral inglês. Desde então, fora
vista raramente e por poucas pessoas, e um número ainda menor de pessoas
conseguira surfar nela.
— A Cribber! A Cribber!
Os outros surfistas repetiam esse nome berrando e gritando de empolga‐
ção. Alex os observou correndo pela areia, com as pranchas acima da cabe‐
ça. De repente percebeu que tinha que entrar na água. Na verdade, ele era
jovem demais. E as ondas eram imensas demais. Mas jamais se perdoaria se
perdesse aquela oportunidade.
— Vou entrar! — gritou, e correu, levando à frente a prancha cuja extre‐
midade traseira estava presa ao seu tornozelo por um leash de uretano. Pelo
canto do olho, viu Sabina erguer a mão, como que lhe desejando boa sorte.
Ele já alcançara a beira do mar e sentia a água gelada bater nos tornozelos.
Jogou a prancha na água e lançou o corpo sobre ela, sendo levado para fren‐
te pela força do impulso. E lá estava ele, deitado de barriga para baixo, com
as pernas esticadas e as mãos remando furiosamente na frente da prancha.
Era a parte mais exaustiva da empreitada. Alex se concentrou nos braços e
nos ombros, mantendo o resto do corpo imóvel. Ainda precisava percorrer
boa parte do caminho. Precisava poupar energia.
Ouviu um som mais alto que o barulho do mar e observou um jet ski se
distanciando da costa. Ficou intrigado. Aquele tipo de embarcação privada
era raro em Cornwall, e ele nunca tinha visto um desses por ali. Em geral
eram usados para rebocar surfistas até as ondas maiores, mas aquele jet ski
seguia sozinho. Ele viu o piloto, encapuzado e usando um traje de mergulho
preto. Será que ele — ou ela — planejava pegar a Cribber com uma máqui‐
na?
Esqueceu aquilo. Os braços agora já estavam cansando, e ele ainda nem
percorrera a metade do caminho. As mãos fechadas em concha puxavam a
água, e ele sentia o corpo ser impulsionado adiante. Os outros surfistas já
estavam muito à frente. Podia ver, a cerca de 20 metros de distância, o pon‐
to onde a água se erguia para formar as cristas das ondas. A montanha de
água surgiu na frente dele, e Alex a atravessou. Por alguns instantes, não
enxergava nada. Sentiu o gosto do sal, e o frio da água lhe martelava o crâ‐
nio. Mas saiu do outro lado. Fixou os olhos no horizonte e redobrou a força.
A prancha com propulsor o levava como se, de alguma forma, tivesse ad‐
quirido vida própria.
Alex parou e tomou fôlego. De repente, houve um silêncio sinistro. Ele
continuava deitado de barriga para baixo, subindo e descendo à medida que
as ondas passavam. Olhou para trás, viu a praia e ficou surpreso com a dis‐
tância. Sentada, parecendo apenas um pontinho ao longe, Sabina olhava pa‐
ra ele. O surfista mais próximo estava a quase 30 metros dele — longe de‐
mais para socorrê-lo caso algo saísse errado. Com medo, Alex sentia um nó
no estômago, e se perguntou se não se precipitara entrando na água sozinho.
Mas já era tarde demais.
Ele a sentiu antes de vê-la. Era como se o mundo tivesse escolhido aque‐
le momento para chegar ao fim e toda a natureza tomasse um último fôlego.
Alex se virou, e lá estava ela. A Cribber se movia depressa e com violência
na sua direção.
Por alguns segundos, ele olhou perplexo para a água que se enrolava e se
encurvava num estrondo. Era como ver um prédio de quatro andares surgir
sozinho do chão e depois se lançar por cima da rua. Tudo era feito de água,
mas uma água com vida. Alex sentiu aquela força incrível. Lenta e assusta‐
doramente, a onda se ergueu diante dele. E continuou subindo até encobrir
o céu.
As técnicas que ele aprendera havia muito tempo entraram automatica‐
mente em ação. Alex agarrou a borda da prancha, sentou-se e deu meia-vol‐
ta, de modo a ficar outra vez de frente para a praia. Esforçou-se para esperar
até o último segundo. Se saísse tarde demais, perderia tudo. Se, no entanto,
saísse cedo demais, simplesmente seria esmagado. Seus músculos enrijece‐
ram. Os dentes batiam. O corpo todo parecia ter ficado eletrizado.
Agora! Essa era a parte mais difícil de aprender, porém impossível de es‐
quecer: a subida. Alex podia sentir a prancha se mover com a energia da on‐
da. A velocidade dele e a da água eram agora uma só. Levou as mãos para
trás, apoiou-se na prancha, arqueou as costas e se levantou. Ao mesmo tem‐
po, colocou a perna direita à frente. Com os pés trocados. Quando praticou
snowboarding, fizera exatamente a mesma coisa. Mas não importava, con‐
tanto que conseguisse se manter de pé sem perder o equilíbrio, o que já ha‐
via conseguido fazer, ao compensar as duas forças principais — velocidade
e gravidade —, enquanto a prancha com propulsor cortava a onda na diago‐
nal.
Ficou ereto, com os braços para cima, dentes à mostra, perfeitamente no
centro da prancha. Conseguira! Estava surfando na Cribber. Foi tomado por
uma sensação de euforia pura. Sentia a força da onda. Sentia-se integrado a
ela. Estava ligado ao mundo e, embora estivesse a uma velocidade de 60 ou
70 quilômetros por hora, o tempo parecia ter reduzido a marcha até quase
parar, e ele estava congelado nesse momento único e perfeito. Gritou muito
alto, um grito animal que ele nem conseguia ouvir. A água batia-lhe no ros‐
to, explodindo à sua volta. Mal sentia a prancha sob os pés. Estava voando.
Nunca se sentira tão vivo.
Então, ouviu um barulho que se aproximava rapidamente por um dos la‐
dos: o ronco de um motor. Era tão improvável ouvir qualquer ruído mecâni‐
co ali, naquele momento, que Alex pensou que o tivesse imaginado. Foi en‐
tão que se lembrou do jet ski, que provavelmente saíra para o mar e dera
meia-volta por trás das ondas. E agora vinha em alta velocidade.
Seu primeiro pensamento foi que o piloto estivesse fazendo um drop-in
— uma manobra em que um surfista desce uma onda cortando a trajetória
de outros surfistas. Alex estava de pé e surfando: a onda era dele. Esta era
uma das regras tácitas do surfe: o condutor do jet ski não tinha o direito de
se intrometer no seu espaço. Mas ao mesmo tempo o garoto percebeu que
havia algo estranho. A praia de Fistral estava praticamente deserta, não ha‐
via necessidade de disputar espaço. E, de qualquer forma, um jet ski perse‐
guir um surfista... nunca ouvira falar disso.
O ruído do motor agora ficara mais alto. Alex não conseguia ver o jet
ski. Toda a sua concentração estava voltada para a Cribber, para manter o
equilíbrio, e não ousava se virar. De repente, sentiu nitidamente a água, mi‐
lhares de litros estrondosos de água sob seus pés. Se caísse, morreria estra‐
çalhado antes de se afogar. O que o sujeito do jet ski estava fazendo? Por
que chegava tão perto?
Num instante, Alex teve certeza de que corria perigo. O que estava acon‐
tecendo ali não tinha nada a ver com Cornwall nem com o surfe nas férias.
Sua outra vida, com o MI6, o alcançara. Lembrou-se de quando fora perse‐
guido nas montanhas de Point Blanc e sentiu que aquilo estava se repetindo.
Não importava quem viera atrás dele nem o motivo. Ele tinha poucos se‐
gundos para fazer alguma coisa antes que o jet ski o atingisse.
Alex virou ligeiramente a cabeça e viu o jet ski por um instante. Nariz
preto, como um torpedo. Vidro e cromado brilhante. Um homem curvado
sobre o painel, com os olhos fixos nele. Eram olhos carregados de ódio.
Só havia uma coisa que ele podia fazer, e a fez prontamente, sem pensar.
O aéreo é uma manobra que exige uma noção de tempo perfeita e total au‐
toconfiança. Alex fez um giro e se lançou da crista da onda para o ar. Ao
mesmo tempo, agachou-se e agarrou a prancha, com uma mão de cada lado.
Agora estava realmente voando, suspenso no ar, enquanto a onda rolava
abaixo dele. Viu o jet ski passar em alta velocidade, cruzando o local onde
Alex estivera até poucos segundos antes. Fez um giro, descrevendo quase
um círculo completo no ar. No último instante, lembrou-se de pôr o pé di‐
reito bem no centro da prancha. Isso faria com que a prancha suportasse to‐
do o seu peso no impacto na água.
A água avançou para recebê-lo: uma aterrissagem perfeita. O mar explo‐
diu ao seu redor, mas ele se manteve ereto e agora estava atrás do jet ski. O
piloto virou para trás e Alex pôde ver o seu olhar perplexo. Era um chinês.
Parecia impossível, inacreditável, mas ele segurava uma arma. O garoto a
viu surgir, com água pingando pelo cano. Dessa vez não havia como esca‐
par, pois ele não tinha mais forças para tentar outro aéreo. Soltando um gri‐
to, arremessou-se da prancha em direção ao jet ski. Sentiu um tranco e a
perna sendo quase arrancada pela prancha que era destruída pela violência
da água.
Houve uma explosão. O homem atirara. Mas a bala errou o alvo. Alex
achou que ela passara por sobre o ombro. No mesmo instante, suas mãos
agarraram o pescoço do piloto. Seus joelhos bateram contra as laterais do
jet ski. Depois, o mundo inteiro girou quando homem e máquina perderam
o controle e mergulharam num turbilhão de água. A perna de Alex foi puxa‐
da outra vez, e ele sentiu o leash se soltar. Ouviu um grito.
De repente, o homem não estava mais ali. Alex ficou sozinho e não con‐
seguia respirar. A água desabava sobre ele. Sentiu-se incontrolavelmente
sugado para dentro dela. Não podia mais lutar. Seus braços e pernas não
respondiam. Não tinha mais forças. Abriu a boca para gritar, e a água o co‐
briu.
Então, seu ombro bateu em uma coisa dura, e Alex percebeu que chegara
ao fundo do mar e que ali deveria ser o seu túmulo. Ousara divertir-se com
a Cribber, e a Cribber se vingara. Em algum lugar, muito acima dele, outra
onda se quebrou, mas Alex não a viu. Ficou onde estava, em paz.
5
DUAS SEMANAS AO SOL

ALEX NÃO SABIA o que era mais surpreendente: ainda estar vivo ou se
ver outra vez no centro de operações da Divisão de Operações Especiais do
MI6, em Londres.
Sabia que o fato de ele ainda estar respirando se devia inteiramente a Sa‐
bina. Sentada na praia, assustada, ela assistira Alex surfar na Cribber na sua
direção. Vira a perseguição do jet ski antes mesmo que o garoto tivesse per‐
cebido que algo estava errado. Começara a correr no momento em que ele
girou no ar e já estava na água quando ele se espatifara perto do jet ski e de‐
pois afundara. Mais tarde, ela contou que ocorrera uma colisão, um acidente
terrível. Daquela distância, era impossível saber o que realmente acontece‐
ra.
Sabina era uma ótima nadadora e tinha a sorte ao seu lado. Ainda que a
água estivesse turva e as ondas continuassem imensas, ela sabia precisa‐
mente o lugar onde Alex afundara e conseguiu chegar lá em menos de um
minuto. Encontrou-o no segundo mergulho, puxou o corpo desmaiado para
a superfície e o arrastou até a praia. Sabina aprendera na escola a fazer res‐
piração boca a boca e usou naquele momento esse conhecimento, pressio‐
nando seus lábios nos de Alex, forçando a entrada de ar para os pulmões.
Mesmo então, estava certa de que ele tinha morrido. Ele não respirava. Os
olhos estavam fechados. Sabina pressionou-lhe o peito — uma, duas vezes
— e, por fim, foi recompensada com um espasmo súbito e um acesso de
tosse, quando Alex voltou a si. Naquela altura, outros surfistas haviam che‐
gado. Um deles tinha um celular e chamou uma ambulância. Não houve ne‐
nhum sinal do homem do jet ski.
Alex também tivera sorte. Como se soube depois, ele pegara a Cribber já
no final do seu percurso, quando a onda estava no seu ponto mais fraco.
Uma tonelada de água desabara sobre ele, mas, caso tudo aquilo tivesse
acontecido cinco minutos antes, teriam sido dez toneladas. Além disso, ele
não estava tão distante da praia quando Sabina o encontrou. Se estivesse um
pouco mais adiante, Sabina nunca o teria encontrado.
Cinco dias se passaram desde então.
Era uma manhã de segunda-feira, o começo de uma nova semana. Alex
se encontrava na sala 1605, no décimo sexto andar do prédio anônimo na
Liverpool Street. Ele jurara que nunca mais voltaria àquele lugar. O homem
e a mulher que estavam com ele na sala eram as últimas pessoas que ele
queria ver. Mesmo assim, lá estava ele. Fora apanhado com a mesma facili‐
dade com que se pega um peixe em uma rede.
Como de costume, Alan Blunt não parecia especialmente satisfeito em
vê-lo, preferindo se concentrar na pasta sobre a mesa à sua frente a concen‐
trar-se no próprio garoto. Era a quinta ou sexta vez que Alex encontrava o
homem que comandava essa divisão do serviço secreto britânico, e mesmo
assim ainda não sabia nada sobre ele. Blunt tinha uns 50 anos, era um sujei‐
to comum de terno num escritório. Aparentemente, não fumava, e Alex não
conseguia imaginá-lo bebendo qualquer coisa. Era casado? Tinha filhos?
Passava os fins de semana caminhando no parque, pescando, vendo fute‐
bol? Por algum motivo, Alex duvidava disso. Perguntava-se se Blunt de fa‐
to existia fora daquelas quatro paredes. Era um homem circunscrito pelo
trabalho. Toda a sua vida era dedicada a segredos e, por fim, ela própria se
transformara em um segredo.
Levantou os olhos do relatório impecavelmente impresso.
— Crawley não tinha o direito de envolver você nesse assunto — falou.
Alex não disse nada. Dessa vez, não estava certo se discordava dele ou
não.
— Esse torneio de tênis de Wimbledon. Você quase morreu — olhou in‐
terrogativamente para Alex. — E o acontecimento em Cornwall. Não gosto
que os meus agentes se envolvam com esportes perigosos.
— Não sou um dos seus agentes — disse Alex.
— O trabalho em si já é suficientemente perigoso, não há necessidade de
acrescentar mais riscos — prosseguiu Blunt, ignorando o comentário do ga‐
roto. — O que aconteceu com o homem do jet ski?
— Está sendo interrogado neste momento — respondeu a sra. Jones.
A chefe de Operações Especiais usava um terninho cinza, com uma bolsa
preta de couro que combinava com os seus olhos. Levava na lapela um bro‐
che prateado em forma de uma adaga em miniatura.
Ela fora a primeira pessoa a visitar Alex enquanto ele se recuperava no
hospital de Newquay e, pelo menos, se preocupara com o que havia aconte‐
cido. Demonstrara, é claro, pouca ou nenhuma emoção. Se alguém lhe ti‐
vesse perguntado, responderia que não gostaria de perder alguém que havia
sido tão útil e poderia voltar a sê-lo. Alex, porém, suspeitava de que isso
fosse apenas parte da história. Ela era mulher, e ele, apenas um garoto de 14
anos. Se a sra. Jones tivesse um filho, ele podia muito bem ter a mesma ida‐
de. Era algo que tinha certo peso, e ela não conseguia ignorar isso totalmen‐
te.
— Encontramos uma tatuagem no braço do homem — continuou ela. —
Parece que ele também era membro da gangue do Grande Círculo. — Ela se
virou para Alex e explicou: — O Grande Círculo é uma tríade relativamente
nova. Infelizmente, é também uma das mais violentas.
— Já pude perceber — disse Alex.
— O homem que você nocauteou e congelou em Wimbledon era um sai-
lo, que significa “irmão menor”. É preciso compreender o modo como essas
pessoas atuam. Você acabou com a operação deles e os fez de idiotas. É a
última coisa que podem permitir que aconteça. Então, mandaram alguém
atrás de você: o cara do jet ski. Ele ainda não disse nada, mas acreditamos
que seja um dai-lo, ou “irmão maior”. Ele deve ter grau 438... um abaixo do
Dragão Chefe, o líder da tríade. E agora esse dai-lo também falhou. É um
pouco de falta de sorte, Alex, que você, além de quase afogá-lo, tenha que‐
brado o nariz dele. A tríade vai considerar isso como outra humilhação.
— Eu não fiz nada — disse Alex. E era verdade. Ele se lembrou de como
a prancha acabara sendo arrancada de seu tornozelo. Não era culpa sua que
ela tivesse atingido o rosto do chinês.
— Não é o que eles vão achar — continuou a sra. Jones. Ela parecia uma
professora falando. — Estamos lidando com um guan-shi.
Alex aguardou que ela explicasse.
— O guan-shi é o que dá poder ao Grande Círculo — disse ela. — É um
sistema de respeito mútuo que interliga todos os membros. Basicamente, is‐
so significa que, se você fizer mal a um deles, estará fazendo mal a todos.
E, se um deles se tornar seu inimigo, todos se tornarão.
— Você atacou um homem deles em Wimbledon — grunhiu Blunt. —
Então, mandaram outro para Cornwall. Você elimina o homem deles em
Cornwall, e os outros membros da tríade recebem a ordem para matá-lo.
— Quantos membros tem a tríade? — perguntou Alex.
— Cerca de dezenove mil, de acordo com a última contagem — respon‐
deu Blunt.
Houve um longo silêncio, atenuado apenas pelo ruído distante do tráfego
dezesseis andares abaixo.
— Você correrá perigo a cada minuto que permanecer no país — falou a
sra. Jones. — E não há muito que possamos fazer. É claro, temos algum po‐
der sobre as tríades. Se as pessoas certas souberem que você tem a nossa
proteção, é possível que suspendam a ordem. Mas isso leva tempo, e a
questão é que é muito provável que eles estejam, neste instante, elaborando
o próximo plano de ataque.
— Você não pode voltar para casa — disse Blunt. — Não pode voltar pa‐
ra a escola. Não pode ir a nenhum lugar sozinho. Aquela mulher que cuida
de você, a governanta... já demos um jeito de tirá-la de Londres. Não pode‐
mos correr riscos.
— Então o que eu devo fazer? — perguntou Alex.
A sra. Jones olhou para Blunt, que acenou a cabeça em sinal afirmativo.
Nenhum deles parecia de fato preocupado, e Alex em seguida sentiu que as
coisas tinham corrido exatamente como eles queriam. Sem perceber, de al‐
gum modo estava nas mãos deles. Mais uma vez.
— Por coincidência, Alex — começou a sra. Jones —, alguns dias atrás
recebemos uma solicitação dos seus serviços. Veio do serviço de inteligên‐
cia americano: a Agência Central de Inteligência — ou CIA, como você de‐
ve conhecê-la. Eles precisam de um jovem para uma operação que estão
montando e perguntaram se você está disponível.
Alex ficou surpreso. O MI6 o usara duas vezes, e nas duas eles enfatiza‐
ram que ninguém saberia de nada. Agora, parecia que haviam andado se ga‐
bando do seu único espião adolescente. Pior ainda, estavam prontos para
emprestá-lo, como se ele fosse um livro de biblioteca.
A sra. Jones, como se tivesse lido a mente de Alex, levantou a mão.
— Dissemos a eles, é claro, que você não tem intenção de continuar nes‐
se tipo de trabalho — afirmou ela. — Afinal, foi isso o que nos disse: que
era estudante, não espião. Foi o que você disse. Mas agora parece que tudo
mudou. Lamento muito, Alex, mas, seja qual for o motivo, você decidiu
voltar a campo e, infelizmente, agora corre perigo: precisa desaparecer. Esta
pode ser a melhor maneira.
— Vocês querem que eu vá para os Estados Unidos? — perguntou Alex.
— Não exatamente para os Estados Unidos — interrompeu Blunt. —
Queremos que vá para Cuba. Ou, pelo menos, para uma ilha a poucos quilô‐
metros ao sul de Cuba. Chama-se Cayo Esqueleto, que, em espanhol, signi‐
fica...
— Ilha do Esqueleto — disse Alex.
— Exatamente. Claro, há inúmeras ilhas ao longo da costa dos Estados
Unidos. Você já deve ter ouvido falar de lugares como Key Largo e Key
West. A Ilha do Esqueleto foi descoberta por Sir Francis Drake. Diz a lenda
que, quando ele aportou por lá, o lugar era desabitado. Mas ele encontrou o
esqueleto de um conquistador espanhol, de armadura completa, sentado na
praia. É daí que vem o nome da ilha. Enfim, independentemente do nome
como é chamada, é na verdade um lugar muito lindo. Um ponto turístico.
Hotéis de luxo, mergulhar, velejar... Não estamos pedindo que faça nada pe‐
rigoso, Alex. Muito pelo contrário. Podemos até pensar em termos de umas
férias pagas. Duas semanas ao sol.
— Vocês não me pagam nada — disse Alex, sem conseguir evitar um
tom sarcástico em sua voz.
— Bom, seja como for... — Blunt tossiu. — A CIA está interessada em
Cayo Esqueleto por causa de um homem que mora lá. Ele é russo. Tem uma
casa imensa, alguns até chamariam de palácio, em um istmo, que é um bra‐
ço estreito de terra bem no extremo norte da ilha. O nome dele é general
Alexei Sarov.
Blunt puxou uma foto da pasta e a virou de modo que Alex pudesse vê-
la. A foto mostrava um homem que parecia estar em boa forma e usava uni‐
forme militar. A fotografia fora tirada na Praça Vermelha, em Moscou. Alex
pôde ver, por trás do homem, as torres do Kremlin com suas cúpulas em
forma de bulbo.
— Sarov é de outra época — disse a sra. Jones, tomando a palavra. —
Foi comandante do Exército russo nos tempos em que eles eram nossos ini‐
migos e a Rússia ainda fazia parte da União Soviética. Não faz tanto tempo,
Alex. Foi em 1990 que o comunismo acabou e o Muro de Berlim foi derru‐
bado.
Ela fez uma pausa, depois prosseguiu:
— Suponho que nada disso signifique muita coisa para você.
— É, na verdade, não — disse Alex. — Eu só tinha 3 anos.
— Sim, é claro. Mas você precisa entender que Sarov era um herói da
antiga Rússia. Tornou-se general quando tinha apenas 38 anos, no mesmo
ano em que o país dele invadiu o Afeganistão. Lutou lá durante dez anos,
chegando a ocupar o posto de número dois na hierarquia do Exército Ver‐
melho. Tinha um filho, que foi morto no Afeganistão. Sarov nem foi ao fu‐
neral. Isso significaria abandonar os seus homens, e ele não faria isso... nem
por um só dia.
Alex olhou outra vez para a fotografia. Pôde observar a rigidez no olhar
do homem. Era um rosto sem nenhum traço de calor humano.
— A guerra do Afeganistão terminou quando os soviéticos se retiraram,
em 1989 — continuou a sra. Jones. — Ao mesmo tempo, todo o país estava
se reduzindo a nada. O comunismo chegou ao fim, e Sarov foi embora. Não
fez segredo de que não gostava da nova Rússia com seus jeans da Levi's, tê‐
nis da Nike e um McDonald's em cada esquina. Abandonou o Exército, ain‐
da que continue se intitulando general, e foi viver...
— Na Ilha do Esqueleto — Alex terminou a frase.
— Sim. Está por lá há dez anos. E aqui chegamos ao ponto central, Alex.
O presidente russo planeja encontrá-lo lá daqui a duas semanas, o que não é
nada surpreendente. Os dois são velhos amigos. Até cresceram na mesma
região de Moscou. Mas a CIA está preocupada. Querem saber o que Sarov
pretende. Por que esses dois vão se encontrar? A velha Rússia e a nova Rús‐
sia. O que está acontecendo afinal?
— A CIA quer espionar Sarov.
— Exato. É uma simples operação de vigilância. Eles querem enviar pa‐
ra lá uma equipe disfarçada, para dar uma olhada geral antes da chegada do
presidente.
— Muito bem — disse Alex, dando de ombros. — Mas por que eles pre‐
cisam de mim?
— Porque a Ilha do Esqueleto é um território comunista — explicou
Blunt. — Pertence a Cuba, um dos últimos lugares do mundo ocidental em
que o comunismo ainda persiste. É extremamente difícil entrar e sair desse
lugar. Há um aeroporto em Santiago, a capital. Mas todos os aviões são vi‐
giados. Todos os passageiros são revistados. Eles estão sempre à espreita
em busca de espiões americanos, e qualquer pessoa que desperte a mais le‐
ve suspeita é barrada e mandada de volta.
— E foi por isso que a CIA recorreu a nós — prosseguiu a sra. Jones. —
Um homem sozinho pode parecer suspeito. Um homem e uma mulher pode
ser uma equipe. Mas um homem e uma mulher viajando com uma criança...
só podem ser uma família!
— É só o que querem de você, Alex — disse Blunt. — Que você entre
na ilha com eles, que fique com eles no hotel. Você vai nadar, mergulhar e
curtir o sol. Eles farão todo o serviço. Você vai estar lá apenas como peça
integrante do disfarce deles.
— E eles não podem usar um garoto americano? — questionou Alex.
Blunt tossiu, nitidamente desconcertado com a pergunta.
— Os americanos nunca usariam um jovem deles em uma operação des‐
sas — falou. — Sabe, eles têm normas diferentes das nossas.
— O senhor quer dizer que eles têm medo de que o garoto acabe morren‐
do.
— Não chamaríamos você se fosse esse o caso, Alex — falou a sra. Jo‐
nes, quebrando aquele silêncio incômodo. — Mas você precisa sair de Lon‐
dres. Na verdade, precisa sair da Inglaterra. Não queremos que você morra.
Estamos tentando protegê-lo, e essa é a melhor maneira. O sr. Blunt tem ra‐
zão. Cayo Esqueleto é uma ilha linda, e você tem muita sorte de ir para lá.
Você pode considerar isso tudo como umas férias.
Alex pensou bem. Olhou para Alan Blunt e para a sra. Jones, mas obvia‐
mente nenhum deles deixou transparecer nada. Quantos agentes já teriam
sentado nessa sala com esses dois, ouvindo o mesmo discurso encantador?
“É um serviço simples. Não é nada de mais. Você estará de volta dentro
de duas semanas.”
O tio de Alex fora um deles, enviado para verificar a segurança de uma
fábrica de computadores na costa sul da Inglaterra. Mas Ian Rider jamais
voltara.
Alex não queria nada daquilo. Ainda restavam sete semanas das férias de
verão, e ele queria ver Sabina outra vez. Os dois haviam falado sobre o nor‐
te da França e o vale do Loire, albergues para jovens e longas caminhadas.
Ele tinha amigos em Londres. Jack Starbright, sua governanta e melhor
amiga, o convidara a ir com ela quando fosse visitar os pais em Chicago.
Sete semanas de normalidade. Seria pedir muito?
Ainda assim, lembrou-se do que acontecera na Cribber quando o sujeito
do jet ski o alcançara. Viu os olhos dele apenas por alguns segundos, o sufi‐
ciente para não se enganar sobre a crueldade e o fanatismo que havia neles.
Era um homem que fora preparado para persegui-lo em uma onda de seis
metros de altura e matá-lo pelas costas... e chegara muito próximo de conse‐
guir. Alex sabia, com uma triste certeza, que as tríades tentariam outra vez.
Ele os humilhara, não apenas uma vez, mas duas. Blunt tinha razão quanto
a isso. Qualquer expectativa de ter um verão normal, agora não passava de
um sonho.
— Se eu ajudar os seus amigos da CIA, vocês vão fazer com que as tría‐
des me deixem em paz? — perguntou.
A sra. Jones balançou a cabeça afirmativamente.
— Temos contatos no submundo chinês. Mas isso leva tempo, Alex.
Aconteça o que acontecer, você precisará se esconder, ao menos durante al‐
gumas semanas. Então, por que não se esconder ao sol?
Exausto, Alex assentiu.
— Está bem — falou. — Parece que não tenho mesmo alternativa. Quan‐
do vocês querem que eu vá?
Blunt tirou um envelope da pasta.
— Está aqui a sua passagem de avião — disse. — Há um voo hoje à tar‐
de.
É claro, já sabiam que ele aceitaria.
— Queremos permanecer em contato com você enquanto estiver fora —
murmurou a sra. Jones.
— Vou mandar um cartão-postal — propôs Alex.
— Não, Alex. Não era bem isso o que eu tinha em mente. Por que você
não vai conversar com o Smithers?
Smithers tinha um escritório no décimo primeiro andar do prédio, e Alex
teve que admitir que a princípio ficou desapontado.
Fora Smithers quem criara os vários equipamentos eletrônicos que Alex
tinha usado nas missões anteriores, e Alex esperava encontrá-lo em algum
porão, cercado de carros e motos, armas altamente sofisticadas e homens e
mulheres de jaleco branco. Porém, a sala era um tédio: ampla, toda certinha
e impessoal. Podia pertencer ao executivo-chefe de praticamente qualquer
empresa — uma seguradora, talvez, ou um banco. Havia uma escrivaninha
de aço e vidro com telefone, computador, bandejas de entrada e saída e uma
longa luminária metálica de braço articulado. Um sofá de couro ficava en‐
costado em uma parede. No outro lado da sala, havia um arquivo prateado
com seis gavetas. Atrás da escrivaninha, um quadro na parede: uma paisa‐
gem marinha. Mas, para desapontamento de Alex, não havia aparelhos em
lugar nenhum. Nem mesmo um apontador elétrico para lápis.
O próprio Smithers estava atrás da escrivaninha, digitando no computa‐
dor com dedos um tanto grandes demais para as teclas. Era um dos sujeitos
mais gordos que Alex conhecia. Estava vestido com um terno preto de três
peças e sua gravata antiga, que parecia ter pertencido a um uniforme esco‐
lar, repousava sobre o imenso volume da barriga. Ao ver Alex, parou de di‐
gitar e se virou girando a cadeira de couro que devia ter sido reforçada para
suportar o peso dele.
— Meu caro garoto! — exclamou. — Que prazer em vê-lo! Entre, entre!
Como tem passado? Soube que você teve problemas... aquele negócio na
França. Você precisa mesmo se cuidar, Alex. Eu não poderia me conformar
se alguma coisa lhe acontecesse. Porta!
Alex virou-se para ver com quem Smithers havia falado e ficou surpreso
quando a porta se fechou sozinha atrás dele.
— Ativada por comando de voz — explicou Smithers. — Sente-se, por
favor.
Alex sentou-se em uma cadeira de couro, do lado oposto da escrivani‐
nha. Assim que se acomodou na cadeira, ouviu um ruído baixinho, e a lumi‐
nária articulada girou e se curvou na direção dele, como se fosse um pássa‐
ro metálico que quisesse olhá-lo mais de perto. Ao mesmo tempo, a tela do
computador piscou e apareceu um esqueleto humano. Alex mexeu a mão. A
mão do esqueleto se mexeu. Arrepiado, percebeu que olhava para si mesmo
— ou melhor, através de si mesmo.
— Você parece estar muito bem — falou Smithers. — Uma boa estrutura
óssea!
— O que...? — Alex começou a perguntar.
— É só uma coisa em que tenho trabalhado. Um aparelho simples de rai‐
os X. É útil se a pessoa estiver portando uma arma.
Smithers apertou um botão e a tela se apagou.
— Bom, o sr. Blunt me disse que você vai se encontrar com os nossos
amigos da CIA. São ótimos profissionais. Muito, muito bons... exceto, é
claro, pelo fato de que não se pode confiar neles e de que eles não têm ne‐
nhum senso de humor. Cayo Esqueleto, certo?
Inclinou-se para a frente e apertou outro botão na escrivaninha. Alex
olhou para o quadro na parede. As ondas estavam se mexendo! Ao mesmo
tempo, a imagem mudou, distanciando-se, e ele percebeu que olhava para
uma tela de cristal líquido com uma imagem transmitida por satélite de al‐
gum lugar sobre o oceano Atlântico. Apareceu uma ilha de formato irregu‐
lar cercada de água azul-turquesa. A imagem tinha um relógio, e ele perce‐
beu que aquilo era uma transmissão ao vivo para a sala.
— Clima tropical — murmurou Smithers. — Não pegarão muita chuva
nesta época do ano, o que é uma pena, pois estou criando um poncho que se
transforma em paraquedas. Bom, mas não acho que precisaremos disso. Te‐
nho também um repelente maravilhoso contra mosquitos. Na verdade, os
mosquitos são praticamente a única coisa que ele não elimina. Mas você
também não vai precisar disso! Aliás, fiquei sabendo que a única coisa de
que você de fato vai precisar é algum dispositivo que o ajude a se comuni‐
car.
— Um transmissor escondido — disse Alex.
— Por que tem que ficar escondido? — Smithers abriu uma gaveta, tirou
um objeto e colocou-o diante de Alex.
Era um celular.
— Obrigado, mas já tenho celular — murmurou Alex.
— Não igual a este — retrucou Smithers. — Liga direto para este escri‐
tório, mesmo que você esteja na América. Funciona debaixo da água... e no
espaço. As teclas são sensíveis a impressões digitais, logo, só você pode
usá-lo. Este é o modelo cinco. Temos também o modelo sete: se você o se‐
gurar de cabeça para baixo ao discar, ele explode na sua mão.
— Nossa! Por que não posso ficar com esse? — perguntou Alex.
— O sr. Blunt proibiu — disse Smithers, curvando-se para frente, como
se contasse um segredo. — Mas incluí algo mais para você. Está vendo esta
anteninha bem aqui? Ao discar 999, ela dispara como uma agulha. Envene‐
nada, é claro. Deixa qualquer pessoa desacordada num raio de quase 20 me‐
tros.
— Está certo — Alex pegou o celular. — Mais alguma coisa?
— Como de praxe, soube que você não pode levar nenhuma arma... —
Smithers suspirou. Depois inclinou-se para frente e falou a uma planta no
vaso. — Poderia trazê-los até aqui em cima, srta. Pickering?
Alex começava a ficar desconfiado daquele escritório — e isso se confir‐
mou pouco depois, quando o sofá de couro de repente se dividiu ao meio e
as duas extremidades se afastaram uma da outra. Ao mesmo tempo, uma
parte do chão deslizou para o lado, permitindo que outra parte do sofá en‐
caixasse tranquilamente naquele espaço, e o sofá de dois lugares transfor‐
mou-se num de três. Uma jovem surgiu junto com a nova peça. Estava sen‐
tada de pernas cruzadas e com as mãos sobre os joelhos. Levantou-se e foi
até Smithers.
— São os itens que o senhor pediu — disse ela, entregando-lhe um paco‐
te. Pegou uma folha de papel e colocou-a diante dele. — E este relatório
acabou de chegar do Cairo.
— Obrigado, srta. Pickering.
Smithers esperou que a mulher tivesse saído — dessa vez, pela porta —
e deu uma rápida olhada no relatório.
— Não é boa notícia — murmurou. — Nem um pouco. Mas, bem... —
enfiou o relatório na bandeja de saída. Houve uma faísca elétrica enquanto
o papel se autodestruía. Um segundo depois, restavam apenas cinzas. — Es‐
tou obedecendo às regras ao fazer isso — prosseguiu ele. — Mas tenho al‐
gumas coisas que eu estava preparando para você e não vejo por que não
deva levá-las. É melhor prevenir do que remediar.
Virou o pacote, e uma caixinha cor-de-rosa de chicletes deslizou para fo‐
ra.
— O lado divertido de trabalhar com você, Alex — disse Smithers —, é
adaptar coisas que se espera encontrar nos bolsos de um garoto da sua ida‐
de. Fiquei extremamente satisfeito com esta.
— Chiclete?
— Ele faz bolas muito especiais. Basta mastigá-lo por 30 segundos que
as substâncias químicas presentes na saliva reagem com o composto da fór‐
mula, fazendo com que o chiclete se expanda. E, ao se expandir, pode des‐
pedaçar praticamente qualquer coisa. Coloque-o em uma arma, ou na fecha‐
dura de uma porta, por exemplo, e ele vai despedaçá-las.
Alex virou a caixinha ao contrário. Estava escrito “Chiclete 0-7” em le‐
tras amarelas na lateral da caixa.
— De que sabor o senhor fez? — perguntou ele.
— Morango. Agora, este outro dispositivo é ainda mais perigoso, e tenho
certeza de que não vai precisar dele. Eu o chamo de “Atacante” e ficaria
muito feliz se você pudesse me devolvê-lo.
Smithers sacudiu o pacote, um chaveiro deslizou e caiu perto do chiclete,
na escrivaninha, com um boneco de plástico pendurado, um jogador de gol‐
fe usando calças pretas, camiseta vermelha e boné preto. Alex inclinou-se
para frente e virou-o. Olhava para um boneco do famoso campeão Tiger
Woods, com cinco centímetros de altura.
— Obrigado, sr. Smithers — disse ele. — Mas nunca dei bola para o jo‐
go de golfe.
— Não é necessário que você goste de golfe, Alex, para que tenha um
pouco de paz de espírito. Esta estatueta pode simplesmente salvar a sua vi‐
da. O mais importante é a cabeça. Lembre-se disto, Alex: gire-a duas vezes
no sentido horário e uma no sentido anti-horário, e o dispositivo ficará ar‐
mado.
— Explode?
— Ê uma granada de efeito moral. Faz um clarão e um estrondo. Um de‐
tonador de dez segundos. Não tem o poder de matar, mas, em um ambiente
não muito grande, ela incapacita o adversário por alguns minutos, o que po‐
de lhe dar a oportunidade de escapar.
Alex enfiou no bolso o boneco do Tiger Woods, os chicletes e o celular.
Quando se levantou, sentia-se mais confiante. Podia ser uma simples mis‐
são de vigilância, umas férias, como Blunt chamara, mas mesmo assim ele
não queria ir de mãos abanando.
— Boa sorte, Alex — falou Smithers. — Espero que se dê bem com a
CIA. E só Deus sabe o que vão fazer com você.
— Tchau, sr. Smithers.
— Se você vai descer, tenho um elevador privativo.
Enquanto Smithers falava, as seis gavetas do arquivo se abriram — fo‐
ram três para um lado e três para o outro —, revelando um cubículo muito
iluminado.
Alex balançou a cabeça.
— Se não faz diferença para o senhor, vou pela escada.
— Como quiser, garotão. Só se cuide. E, aconteça o que acontecer, não
engula o chiclete!
6
AGENTES NEM TÃO ESPECIAIS

EM PÉ, Alex olhava pela janela, tentando entender o mundo no qual agora
se encontrava. As sete horas dentro do avião haviam sugado dele algo que
nem mesmo a surpresa de um lugar na primeira classe conseguira superar.
Sentia-se deslocado, como se o corpo tivesse chegado, mas metade do cére‐
bro ficara para trás.
Olhava para o oceano Atlântico, situado do outro lado de uma faixa ofus‐
cante de areia branca, estendendo-se ao longe, com cadeiras de praia e guar‐
da-sóis dispostos milimetricamente. Miami fica no extremo sul dos Estados
Unidos, e parecia que metade das pessoas que tinham vindo para a cidade
preferia aproveitar o sol. Ele via centenas delas deitadas de costas, com
biquínis minúsculos e calções de banho, coxas e bíceps esculpidos nas aca‐
demias, expostos para serem bronzeados. Idólatras do sol? Não. Aquelas
pessoas estavam ali porque idolatravam a si mesmas.
Era fim de tarde e o calor ainda estava intenso. Mas, na Inglaterra, a qua‐
se sete mil quilômetros dali, era noite — e Alex lutava contra o sono. Tam‐
bém sentia frio. O ar-condicionado do prédio estava ligado no máximo. O
sol podia brilhar do outro lado do vidro, mas naquele escritório elegante e
sofisticado, Alex tremia de frio. Miami Ice, pensou. Aquelas não eram as
boas-vindas que imaginara.
Um motorista o aguardava quando havia chegado ao aeroporto — um
homem alto, de terno, segurando um cartaz no qual estava escrito o nome
de Alex. O homem usava uns óculos escuros que lhe escondiam os olhos,
fazendo com que Alex visse o próprio reflexo duplo.
— Você é Rider?
— Sim.
— O carro está logo ali.
O carro era nada menos que uma limusine comprida. Alex sentiu-se ridí‐
culo sentado sozinho no compartimento longo e estreito com dois bancos de
couro, um de frente para o outro, bar com um estoque completo e TV. Não
se parecia em nada com um carro — e ele ficou feliz que os vidros fossem
escuros como os óculos do motorista. Ninguém o veria. Observou quando
as lojas e prédios de escritórios nos arredores do aeroporto passaram e de‐
pois, de repente, o carro cruzou a água por uma ponte que atravessava a
baía em direção a Miami Beach. Agora os prédios eram baixos, só um pou‐
co mais altos que as palmeiras que os cercavam, e lançavam surpreendentes
sombras rosadas e azul-claras. As ruas eram amplas, mas parecia haver
mais gente caminhando do que andando de carro, ou mais gente seminua
andando de patins pela faixa central.
A limusine parou diante de um prédio branco de dez andares, com linhas
tão retas que poderiam ter sido recortadas de uma gigantesca folha de papel.
Deixaram a bagagem de Alex no carro, entraram pelo saguão e pegaram o
elevador até o décimo andar. As portas se abriram direto na recepção do que
parecia ser um escritório bem comum, com duas moças competentes atrás
de um balcão curvo de mogno. Em uma placa lia-se: “Centurion Internatio‐
nal Advertising”. CIA, deduziu Alex. Bem pensado!
— Alex Rider, para falar com o sr. Byrne — disse o motorista.
— Por aqui.
Uma das moças fez um gesto apontando para uma porta. Alex nem a te‐
ria notado, não fosse a indicação dela.
Do outro lado da área de recepção, tudo era diferente.
Alex deu de cara com dois tubos de vidro com duas portas deslizantes —
uma de entrada, outra de saída. O motorista apontou, e Alex entrou. A porta
se fechou automaticamente, e ouviu-se um ruído enquanto ele passava por
um escâner — capaz de identificar tanto armas tradicionais como biológi‐
cas. Então, a porta se abriu do outro lado, Alex seguiu o motorista por um
corredor liso e vazio, e entraram num escritório onde ele estava agora.
O motorista foi embora e, sozinho, Alex olhava pela janela.

Dez minutos depois, um homem entrou na sala. Aparentava uns 60 anos.


Era negro, tinha cabelo grisalho e bigode. Parecia em boa forma, mas se
movia lentamente, como se tivesse acabado de sair da cama — ou talvez
como se precisasse ir direto para ela. Usava terno escuro, o que parecia ina‐
dequado para Miami, camisa branca e gravata estreita. Apresentou-se como
Joe Byrne, vice-diretor de operações da Divisão de Atividades Secretas da
CIA.
— Espero que ainda não esteja sentindo saudades de casa — disse para o
garoto.
— Não — respondeu Alex. — Estou bem.
Não era verdade. Já estava começando a se arrepender de ter ido até lá.
Preferiria estar em Londres, mesmo que isso significasse esconder-se das
tríades. Mas ele não diria isso ao Byrne.
— Você tem uma reputação e tanto — disse Byrne.
— Tenho?
— Pode apostar que sim — confirmou Byrne, balançando a cabeça. — O
dr. Grief e aquele cara lá da Inglaterra... Herod Sayle. Não se preocupe,
Alex! Não deveríamos saber dessas coisas, mas hoje em dia... nada aconte‐
ce neste mundo sem que alguém fique sabendo. Não se pode tossir em Ca‐
bul sem ser gravado em Washington — disse, e sorriu satisfeito. — Tenho
que cumprimentar vocês, britânicos. Aqui na CIA, já usamos gatos e ca‐
chorros. Tentamos colocar na embaixada da Coréia um gato com um micro‐
fone na coleira. Foi uma operação perfeita e teria funcionado, mas infeliz‐
mente eles comeram o gato.
Alex olhou para o sujeito com mais atenção, tentando saber se aquilo era
ou não uma piada. Era impossível dizer.
— Mas nunca usamos um garoto antes — Byrne continuou. — Sem dú‐
vida, não um garoto como você.
Alex deu de ombros. Sabia que Byrne tentava ser cordial, mas ao mesmo
tempo dava para perceber que o velho estava apreensivo.
— Você presta ótimos serviços ao seu país — concluiu Byrne.
— Não sei se foi pelo meu país — disse Alex. — O meu país não me deu
opção.
— Bem, estamos agradecidos por ter concordado em nos ajudar. Como
sabe, os Estados Unidos e a Grã-Bretanha sempre tiveram uma relação es‐
pecial. Gostamos de nos ajudar mutuamente.
Houve um silêncio incômodo.
— Encontrei-me com o seu tio certa vez — disse Byrne. — Ian Rider.
— Ele esteve aqui em Miami?
— Não. Foi em Washington. Era um bom homem, Alex. Um bom agen‐
te. Lamentei saber...
— Obrigado — interrompeu Alex.
Byrne tossiu.
— Você deve estar cansado. Reservamos um quarto para você num hotel
a poucas quadras daqui. Mas primeiro quero que conheça os agentes especi‐
ais Carver e Troy. Devem chegar em seguida.
Carver e Troy seriam os pais de Alex. Como eram sobrenomes, ele se
perguntava qual deles seria o pai e qual seria a mãe.
— Vocês três viajarão para Cayo Esqueleto depois de amanhã — falou
Byrne, sentando no braço de uma cadeira. Seus olhos vidrados em Alex. —
Você precisa de um pouco de tempo para se recuperar da viagem e da dife‐
rença de fuso horário e, mais importante, precisa conhecer os seus novos
pais.
Hesitou um pouco, depois prosseguiu:
— Devo lhe dizer, Alex, que a agente Troy tem algumas restrições quan‐
to à sua participação nesta operação. Ela ficou grata por você ter vindo, mas
está preocupada com a sua segurança pessoal. Afinal, você tem apenas 14
anos...
— Catorze anos e três meses — disse Alex.
— Sim, é claro — dessa vez foi Byrne quem não soube dizer se Alex fi‐
zera aquele comentário a sério. — De qualquer forma, já conversei com ela
sobre isso. E concordamos que, depois de tê-los ajudado a entrar na ilha,
você deverá sair de cena. Tenho certeza de que Alan Blunt já lhe disse isso.
Você só precisa ficar no hotel e aproveitar. Tudo deve levar apenas uma se‐
mana. No máximo, duas.
— O que eles esperam conseguir exatamente? — perguntou Alex.
— Bem, eles precisam entrar na Casa de Oro, ou Casa de Ouro. É uma
velha casa de fazenda que o general Sarov tem em uma ponta da ilha. Mas
não vai ser fácil, Alex. A ilha se estreita, e há uma única estrada de terra,
com água dos dois lados, que leva até a entrada. O lugar em si mais parece
um castelo do que uma casa. Seja como for, isso não é problema seu. Temos
gente na ilha que pode nos ajudar a entrar lá. E, uma vez dentro, poderemos
implantar os nossos dispositivos. Temos câmeras do tamanho de um alfine‐
te.
— Vocês querem descobrir o que o general Sarov está planejando.
— Exatamente — Byrne mirou os seus sapatos muito bem engraxados e,
de repente, Alex se perguntou se o cara da CIA não estava lhe escondendo
alguma coisa. Tudo parecia certinho demais — e o que Smithers dissera?
“Não se pode confiar neles.” Alex já aprendera a não confiar nos chefões do
MI6. Byrne pareceu ser um sujeito bem agradável, mas agora Alex ficara
desconfiado.
Bateram na porta. Sem esperar resposta, um homem e uma mulher entra‐
ram. Byrne se levantou.
— Alex — disse ele —, quero lhe apresentar Glen Carver e Belinda
Troy. Pessoal... este é Alex Rider.
Glen Carver foi o primeiro a entrar na sala, comportando-se como se ti‐
vesse aguardado o dia todo para conhecer Alex. Tinha uns 40 anos, era um
homem elegante, de cabelo claro cortado bem rente, olhos azuis e com um
rosto que conseguia ser ao mesmo tempo durão e jovial. Estava de jeans,
camisa branca aberta no colarinho e uma jaqueta folgada. Ao cumprimentar
Alex, apertou-lhe a mão com tanta força que seus ossos estalaram.
— Muito prazer em conhecê-lo, Alex — exclamou.
Deu um tapinha no ombro do garoto e concluiu:
— É muito bom tê-lo na nossa equipe!
Belinda Troy não dissera nada. Apenas observava Alex com seus atentos
olhos negros, analisando-o. Alex pôde perceber que ela era uns cinco anos
mais velha que Carver. Também trajava roupa esportiva: uma saia larga e
camiseta, com uma bolsa muito colorida pendurada no ombro e um folgado
colar de contas no pescoço. Estava sem maquiagem. Era esbelta e seu cabe‐
lo castanho cacheado lhe caía sobre os ombros. Mais parecia uma professo‐
rinha de escola do que uma agente da CIA. Alex imaginou que talvez fosse
essa a intenção dela.
— Como vai, Alex? — disse ela. Sua voz não era hostil, mas também
não pareceu nada acolhedora.
— Ouvi falar tanto sobre você, Alex! — Carver não conseguia parar de
falar. — O jeito como você acabou com Herod Sayle! E depois com o dr.
Grief! Simplesmente fantástico!
Apontou na direção de Alex e concluiu:
— E agora seremos nós três na Ilha do Esqueleto. Vai ser uma missão in‐
crível!
Troy ainda analisava Alex.
— Como foi a viagem? — perguntou ela. — Imagino que tenha sido as‐
sustador viajar sozinho.
— Tive que fechar os olhos durante a decolagem — disse Alex. — Mas
parei de tremer quando chegamos a 35 mil pés de altura.
— Você tem medo de andar de avião? — Carver ficou espantado.
Troy virou-se para Byrne.
— Era a isso que eu me referia. O senhor colocou um menino em uma
operação da CIA e de cara já descobrimos que ele tem medo de avião!
— Não, não, Belinda! Glen! — Byrne ficara constrangido. — Acho que
Alex estava brincando.
— Brincando?
— É isso mesmo. Ele tem um senso de humor diferente. Não é isso,
Alex?
Carver riu.
— Ah, sim! É claro! Ele só fez uma piada!
Mas Troy apertou os lábios.
— Bom, eu não achei nenhuma graça — disse ela. — Desculpe, senhor.
Sei que Alex tem uma ótima reputação. Mas ainda assim fico apreensiva.
Não é só o fato de ele ser menor de idade, temos também que pensar na
nossa própria segurança. Imagine se ele decidir fazer uma piadinha dessas
quando estivermos em campo? Pode acabar com o nosso disfarce! E ainda
tem outro detalhe: e a questão do sotaque britânico? Ninguém vai acreditar
que ele é americano!
— Sim, você tem razão, Troy — Carver pareceu hesitante pela primeira
vez. — Ele realmente não fala como um garoto americano.
— Alex não vai precisar falar — disse Byrne. — E, se precisar, tenho
certeza de que consegue imitar o sotaque.
— Não precisamos de um garoto — Troy insistiu. — Não podemos cor‐
rer o risco de estragar essa missão. É possível que o Alex tenha tido sorte
duas vezes, mas ele não tem o nosso treinamento. Ele não é da CIA.
— Que droga! — Byrne ficou furioso de repente. — Já discutimos sobre
tudo isso. Vocês sabem como a segurança na ilha é rígida e, com o presiden‐
te russo a caminho, vai estar pior do que nunca. Se forem sozinhos ao aero‐
porto de Santiago, não conseguirão passar pelo controle. Não se lembram
do que aconteceu com o Johnson? Foi sozinho, disfarçado de observador de
pássaros. Isso foi há três meses, e até agora não se teve notícias dele!
— Bom, então encontre um garoto americano!
— Chega, Troy. Alex viajou milhares de quilômetros para nos ajudar, e
acho que você poderia pelo menos demonstrar um pouco de gratidão.
— Tudo bem, senhor — Carver assentiu. — Por mim, tudo bem, Alex.
Posso pedir alguma coisa para você? Quer beber alguma coisa? Uma Coca?
— Não, estou bem — disse Alex, sentando-se.
Byrne abriu a gaveta da escrivaninha e tirou um maço de papéis e docu‐
mentos oficiais. Alex reconheceu a capa azul dos passaportes americanos.
— Agora é assim que vamos trabalhar — começou ele. — Primeiro vo‐
cês três precisarão de identidades falsas para ir a Cayo Esqueleto. Pensei
que seria mais fácil se mantivéssemos os primeiros nomes. Assim, será
Alex Gardiner viajando com o pai e a mãe, Glen e Belinda Gardiner. Aliás,
cuidem bem desses documentos. A agência é proibida de falsificar passa‐
portes e tive que mexer uns pauzinhos para consegui-los. Quando tudo esti‐
ver terminado, quero que sejam devolvidos.
Alex abriu o passaporte. Ficou impressionado ao ver sua foto já no lugar.
A idade era a mesma, porém, de acordo com o passaporte, ele nascera na
Califórnia. Ele se perguntou como aquilo fora feito. E quando.
— Você mora em Los Angeles — explicou Byrne para Alex. — Fre‐
quenta o primeiro ano do ensino médio em uma escola de West Hollywood.
Seu pai trabalha na área de cinema, e essa viagem são férias de uma semana
para mergulhar e conhecer novos lugares. Vou lhe passar uns arquivos com
um material para que você leia hoje à noite, e é claro que já está tudo arran‐
jado para dar veracidade a essa versão.
— O que quer dizer com isso? — perguntou Alex.
— Se alguém quiser se informar sobre a família Gardiner que mora em
Los Angeles, tudo poderá ser confirmado: a escola, a vizinhança, tudo. Há
pessoas que confirmarão que o conhecem desde que você nasceu.
Byrne fez uma pausa. Depois prosseguiu:
— Escute, Alex. Você precisa entender. Os Estados Unidos não estão em
guerra com Cuba. É claro, temos as nossas diferenças, mas de um modo ge‐
ral sempre damos um jeito de conviver. Mas eles fazem as coisas ao modo
deles. Cuba, e isso inclui Cayo Esqueleto, é um país soberano. Se descobri‐
rem que você é um espião, vão colocá-lo na cadeia. Vão interrogá-lo. Tal‐
vez até o matem, e não há nada que possamos fazer para impedi-los. Já faz
três meses que tivemos as últimas notícias de Johnson, e meu instinto me
diz que nunca mais saberemos dele.
Houve um longo silêncio.
Byrne percebeu que fora longe demais.
— Mas não vai acontecer nada com você — falou. — Você não faz parte
desta operação. Só ficará observando de fora.
Ele se voltou para os dois agentes.
— O importante é começarem a agir como um núcleo familiar. Vocês
têm apenas dois dias até a partida. A ideia é que passem esse tempo juntos.
Imagino que Alex esteja cansado demais para jantar hoje com vocês, mas
comecem amanhã, tomando o café da manhã. Passem o dia juntos. Pensem
como se fossem uma família. É isso que vocês devem ser. E, Alex, vá trei‐
nando o sotaque americano, certo?
Alex balançou a cabeça concordando. Era estranho. Quando estava deita‐
do em sua cama em Cornwall, Alex desejava fazer parte de uma família. E
agora o desejo se realizara — só que não da maneira que ele sonhara.
— Alguma pergunta? — falou Byrne.
— Sim, senhor. Tenho uma — disse Carver. — E aquele negócio ama‐
nhã? Acredito que o senhor esqueceu que tenho um encontro marcado com
o Vendedor. Não acho que ele espere que eu leve um adolescente comigo.
— O Vendedor... — Byrne pareceu aborrecido.
— Vou encontrá-lo ao meio-dia.
— E Troy?
— Estarei lá como apoio — disse Troy. — Procedimento padrão.
— Bem, não vejo problemas — disse Byrne. — O Vendedor está num
barco, certo? Carver, você irá até o barco. Alex pode ficar com você, Troy,
em terra. Tudo na maior segurança.
— Está certo! — Carver balançou a cabeça e sorriu. — Não tinha pensa‐
do nisso. É exatamente o que vamos fazer.
Byrne se levantou. A reunião terminara. Alex sentiu outra onda de cansa‐
ço se abater sobre ele e teve que lutar para segurar um bocejo. Byrne pare‐
ceu ter notado.
— Vá descansar, Alex — disse. — Tenho certeza de que nos reencontra‐
remos em breve. E estou realmente agradecido por você ter concordado em
colaborar.
Estendeu a mão. Alex o cumprimentou.
Mas Belinda Troy continuava emburrada, como se ainda culpasse Alex
por estar ali.
— Tomaremos o café da manhã às 9 horas — disse ela. — Assim, você
terá tempo de ler toda a papelada. Não que vá dormir tanto assim. Onde está
hospedado?
Alex encolheu os ombros e se virou para Byrne.
— Eu o hospedei no Delano — disse ele.
Carver assobiou:
— Uau, que chique!
— Tudo bem — Troy assentiu, e deu uma última olhada para Alex. Os
olhos dela ainda o avaliavam. — Nós o pegaremos lá.
Carver e Troy se viraram e saíram da sala.
— Não ligue para a Troy — disse Byrne. — É uma situação nova para
ela. Mas ela e Carver são bons agentes. Ele entrou para as Forças Armadas
logo depois da faculdade, e os dois já trabalharam juntos muitas vezes. São
agentes altamente treinados e cuidarão de você enquanto estiverem em
campo. Tenho certeza de que tudo sairá bem.
Alex ainda estava confuso. Essa operação implicava muito trabalho,
muita organização. Documentos falsos — com a fotografia dele — haviam
sido preparados bem antes de ele saber que participaria. Inventaram toda
uma identidade para ele em Los Angeles. Ao mesmo tempo, era muito pro‐
vável que o outro agente, Johnson, estivesse morto.
Uma simples operação de vigilância? Alex achava que não. O que quer
que estivesse acontecendo na Ilha do Esqueleto, nenhum deles lhe dissera
toda a verdade. Ele teria que encontrar um jeito de descobrir sozinho.

Era uma sala que realmente não se parecia nem um pouco com uma sala.
Era grande demais. Tinha portas demais — e não apenas portas, mas arca‐
das, recantos e um amplo terraço ao sol. O piso de mármore parecia um gi‐
gantesco tabuleiro de xadrez com quadrados em verde e branco. A mobília
era antiga, ornamentada — e estava espalhada por todos os cantos. Mesas e
cadeiras muito polidas. Pedestais com vasos e estatuetas. Espelhos imensos
em molduras douradas. Candelabros espetaculares. Um gigantesco crocodi‐
lo empalhado ficava diante de uma lareira grandiosa. O homem que o mata‐
ra estava sentado no lado oposto.
O general Sarov bebia café em uma xícara pequena de porcelana. Como
a cafeína vicia, ele só se permitia tomar um pouquinho de café por dia. Era
o seu único vício, e ele o saboreava. Naquele dia, usava um terno de linho
informal — porém, nele, parecia quase formal —, sem nenhuma ruga. A ca‐
misa estava aberta no colarinho, revelando um pescoço que poderia ter sido
esculpido em pedra. Um ventilador de teto girava devagar, a uns três metros
acima da escrivaninha diante da qual estava sentado. Sarov saboreou o res‐
tinho de café, depois pousou a xícara e o pires na mesa. A porcelana não fez
nenhum ruído ao tocar na superfície polida.
Bateram na porta — em uma das portas —, e um homem entrou cami‐
nhando pela sala. “Caminhando”, no entanto, não era a palavra certa. Não
havia palavra que descrevesse com precisão o jeito com que aquele homem
se movia.
Tudo nele estava errado. A cabeça ficava como que pendurada obliqua‐
mente nos ombros, que em si já eram tortos e corcundas. O braço direito era
mais curto que o esquerdo. A perna esquerda, no entanto, era vários centí‐
metros mais comprida que a direita. Os pés calçavam sapatos de couro pre‐
to, sendo um maior e mais pesado que o outro. Usava um casaco de couro
preto e calças jeans e, enquanto se aproximava de Sarov, seus músculos se
retesaram por baixo da roupa, como se tivessem vida própria. Nada no cor‐
po dele era coordenado, de maneira que, quando se movia para a frente, pa‐
recia que tentava andar para trás ou para o lado.
O rosto do homem era ainda pior. Parecia ter sido despedaçado e recom‐
posto por uma criança que tivesse apenas uma vaga ideia sobre a forma hu‐
mana. Havia umas doze cicatrizes no pescoço e nas bochechas. Um dos
olhos era vermelho, permanentemente injetado. O cabelo, longo e sem vida,
cobria-lhe apenas metade da cabeça. A outra metade era totalmente careca.
Embora fosse impossível adivinhar ao olhar para ele, o homem tinha
apenas 28 anos e, até alguns anos antes, fora o terrorista mais temido da Eu‐
ropa. Seu nome era Conrad. Sabia-se muito pouco sobre ele, embora se dis‐
sesse que era turco, que nascera em Istambul, que era filho de um açouguei‐
ro, e que, aos 9 anos de idade, explodira a escola com uma bomba construí‐
da na aula de química quando recebera uma punição por ter chegado atrasa‐
do.
Ninguém sabia quem treinara Conrad ou para quem trabalhara ao longo
dos anos. Era um vira-casaca — um criminoso independente, que não tinha
nenhuma ideologia política e atuava simplesmente por dinheiro. Acredita‐
va-se que fora responsável por atentados em Boston, Madri, Atenas e Lon‐
dres. Uma coisa era certa: os serviços de segurança de nove países estavam
à procura dele. Ele era o quarto da “Lista dos Mais Procurados” da CIA, e
havia uma recompensa oficial de dois milhões de dólares para quem o en‐
contrasse.
A carreira dele chegara a um fim repentino e inesperado no inverno de
1998, quando uma bomba que ele transportava — que deveria ser levada
para uma base militar — explodiu antes da hora. A bomba literalmente o
deixou despedaçado, mas não conseguiu matá-lo. Foi todo costurado por
uma equipe de médicos albaneses, num centro de pesquisas próximo de El‐
basan. O que se via agora era o trabalho artesanal deles.
Havia dois anos que Conrad trabalhava como secretário e assistente pes‐
soal de Sarov. Em outros tempos, esse tipo de trabalho estaria aquém da sua
capacidade, mas não tivera muita escolha. E, de qualquer forma, compreen‐
dia o alcance das ideias de Sarov. No novo mundo que o russo pretendia cri‐
ar, Conrad seria recompensado.
— Bom dia, camarada — disse Sarov, falando com seu inglês fluente. —
Espero que tenhamos conseguido recuperar o resto das cédulas no pântano.
Conrad fez um gesto afirmativo com a cabeça. Preferia não falar.
— Excelente. É claro que precisaremos fazer a lavagem do dinheiro. De‐
pois ele poderá ser depositado na minha conta.
Sarov se esticou e abriu uma agenda com capa de couro. Havia vários
itens, todos eles escritos com uma caligrafia perfeita.
— Está tudo acontecendo de acordo com o que foi programado — conti‐
nuou. — A construção da bomba...?
— Concluída.
Conrad parecia ter dificuldade de fazer com que as palavras saíssem da
boca. Tinha que retorcer todo o rosto para fazer com que a fala acontecesse.
— Sabia que podia contar com você. O presidente russo chegará aqui
dentro de cinco dias. Recebi hoje um e-mail dele com a confirmação. Boris
falou do quanto está ansioso por essa viagem — Sarov deu um breve sorri‐
so. — E será, é claro, uma viagem da qual é pouco provável que ele se es‐
queça. Os quartos já estão preparados?
Conrad fez que sim com a cabeça.
— As câmeras?
— Sim, general.
— Muito bem.
Sarov passou o dedo pelas páginas da agenda. Parou em uma palavra que
fora marcada com um sinal de interrogação.
— Ainda falta resolver a questão do urânio — disse ele. — Sabia que a
compra e a entrega do material nuclear seriam perigosas e delicadas. Os
dois homens que vieram no avião me ameaçaram, e pagaram o preço por is‐
so. No entanto, obviamente estavam a serviço de terceiros.
— O Vendedor — disse Conrad.
— Certamente. A esta altura o Vendedor já deve saber o que aconteceu
com os seus entregadores. Ao não receber mais nenhum pagamento meu,
talvez decida cumprir a ameaça e alertar as autoridades. É pouco provável,
mas ainda assim é um risco que não estou disposto a correr. Temos menos
de duas semanas para que a bomba seja detonada e o mundo adquira a for‐
ma que decidi dar a ele. Não podemos correr riscos. E, portanto, meu caro
Conrad, você deve ir a Miami e eliminar o Vendedor da nossa vida, o que,
receio, significará removê-lo deste mundo.
— Onde ele está?
— Ele trabalha em num barco, um iate transatlântico chamado Mayfair
Lady. Em geral fica atracado no Mercado da Baía. O Vendedor se sente
mais seguro na água. Pessoalmente, me sentirei mais seguro quando ele es‐
tiver debaixo da água.
Sarov fechou a agenda. A reunião terminara.
— Você pode partir imediatamente. Avise-me quando o serviço estiver
concluído.
Conrad assentiu pela terceira vez. Os pinos de metal do pescoço se me‐
xeram um pouco quando ele moveu a cabeça para cima e para baixo. De‐
pois ele se virou e, mancando, se arrastou para fora da sala.
7
A MORTE DE VENDEDOR

TOMARAM TARDE o café da manhã em um café do Mercado da Baía,


bem junto ao cais, onde se viam barcos atracados por todo lado e aonde
chegavam e de onde partiam as lanchas de traslados, de um amarelo e verde
muito vivos. Glen Carver e Belinda Troy tinham batido na porta do quarto
de Alex às 9 da manhã. Na verdade, Alex já estava acordado havia horas.
Adormecera rapidamente, dormira pesado e acordara cedo demais... o pa‐
drão clássico dos efeitos de uma longa viagem aérea. Mas pelo menos tivera
tempo suficiente para estudar a papelada que Joe Byrne lhe passara. Agora
sabia tudo sobre a sua nova identidade — os melhores amigos que nunca
conhecera; o cachorro de estimação que nunca vira, até mesmo as notas es‐
colares que nunca recebera.
E agora encontrava-se ali sentado com sua nova mãe e seu novo pai, e
olhava os turistas no calçadão de madeira, entrando e saindo das belas buti‐
ques de fachadas brancas que se amontoavam no local. O sol já estava alto,
e o brilho refletido pela água era quase de cegar. Alex colocou óculos escu‐
ros Oakley X-Metal, e o mundo do outro lado das lentes escuras de irídio fi‐
cou mais suave e mais suportável. Os óculos tinham sido presente de Jack.
Alex não imaginara que precisaria deles tão cedo.
Havia, sobre a mesa, uma caixa de fósforos com o nome “The
Snackyard” impresso. Alex a pegou e virou-a nos dedos. Os fósforos esta‐
vam quentes. Ficou surpreso que o sol forte de Miami não os tivesse acen‐
dido. O garçom, usando traje a rigor completo, até com gravata-borboleta,
veio até a mesa. Troy pediu uma salada de frutas. Carver salivou e escolheu
o serviço completo: panquecas, bacon e ovos mexidos. Alex deu uma olha‐
da no cardápio.
— Vou querer só um suco de laranja e uma torrada — falou.
— Pão branco ou integral?
— Branco. Com manteiga e doce de fruta.
— Você quer dizer geleia! — disse Troy, interrompendo-se assim que o
garçom se afastou.
E continuou:
— Nenhum garoto americano pede doce de fruta — falou, olhando de
cara feia outra vez. — Se você pedir isso em Santiago, nós vamos direto pa‐
ra a cadeia, ou coisa pior, num piscar de olhos.
— Calma aí, Belinda — Carver a cortou. — É cedo. Tenho certeza de
que Alex não estava pensando muito bem ainda.
— Se ele não pensar, vai acabar morto. Ou, pior ainda, acabaremos mor‐
rendo também.
Ela voltou a olhar para Alex.
— Como vai Lucky? — perguntou ela.
A cabeça de Alex girou. Do que ela estava falando? Então se lembrou.
Lucky era o labrador que a família Gardiner supostamente tinha em Los
Angeles.
— Vai bem — disse Alex. — A sra. Beach está cuidando dele.
A sra. Beach era a vizinha.
— É isso aí, Alex! — Carver sorriu.
Mas Troy ainda não ficara impressionada.
— Não foi rápido o suficiente na resposta — disse ela. — Se você tiver
que parar para pensar, o inimigo vai saber que está mentindo. Você precisa
falar do seu cachorro e dos seus vizinhos como se os conhecesse a vida to‐
da.
Não era justo, é claro. Belinda Troy não o prevenira. Ele não tinha perce‐
bido que ela resolvera testá-lo. Nos últimos meses, essa era a terceira vez
que Alex usava uma identidade nova. Tinha sido Felix Lester, quando fora
enviado a Cornwall, e Alex Friend — o filho de um multimilionário —
quando trabalhara nos Alpes franceses. Nas duas vezes conseguira desem‐
penhar bem o papel, e sabia que podia fazer o mesmo agora como Alex
Gardiner.
— E então, há quanto tempo vocês estão na CIA? — perguntou Alex.
— A vida toda — respondeu Carver. — Eu fazia parte dos Fuzileiros Na‐
vais. Era o que eu sempre quis ser, desde menino... quando era ainda mais
jovem que você.
— Não deveríamos falar sobre nós mesmos — disse Belinda. — Deve‐
mos ser uma família. Então, vamos falar da família!
— Está bem, mamãe — murmurou Alex.
Enquanto esperavam a refeição, ela lhe fez mais algumas perguntas so‐
bre Los Angeles. Alex respondeu automaticamente. Viu dois adolescentes
passarem de skate e desejou poder juntar-se a eles. Era o que um garoto de
14 anos deveria estar fazendo no sol de Miami. E não ficar brincando de es‐
pionagem com dois adultos que não estavam dispostos a lhe dizer do que
aquilo realmente se tratava.
A refeição chegou. Alex não se surpreendeu ao ver Carver se atirar no
prato como se não comesse há uma semana. Troy comia com mais serenida‐
de, remexendo as frutas com o garfo, como se estivesse desconfiada até da
comida. Alex pegou uma torrada. A manteiga era batida e branca e parecia
desaparecer depois de espalhada. Sentiu saudade de casa. E não era a pri‐
meira vez que sentia isso naquela manhã.
— Então, quem é o Vendedor? — perguntou Alex.
— Você não precisa saber disso — respondeu Troy.
Alex concluiu que aquilo já era demais. Pousou a faca.
— Tudo bem — disse. — Vocês já deixaram muito claro que não querem
trabalhar comigo. Bom, perfeito. Porque eu também não quero trabalhar
com vocês. E, nem com todo o esforço do mundo, ninguém jamais acredita‐
ria que você é minha mãe porque nenhuma mãe se comportaria como você.
— Alex... — Carver começou a falar.
— Esqueçam! Vou voltar para Londres. E se o sr. Byrne perguntar o que
aconteceu, podem dizer a ele que não gostei da geleia e voltei para casa pa‐
ra comer doce de fruta.
Ele se levantou. Belinda ficou em pé ao mesmo tempo.
— Sente-se, Alex — disse ela, encolhendo os ombros. — Tudo bem. Re‐
conheço que passei dos limites... eu sinto muito. Mas acredite: não tenho
nada pessoal contra você. Só acho que está errado. É uma missão arriscada
e tenho sobrinhos da sua idade. Se eles estivessem aqui, não gostaria de en‐
volvê-los nisso. Não quis ser grosseira. É que é assim que as coisas são.
Alex olhou-a nos olhos. Sentou-se devagar.
— Só precisamos de um pouco de tempo para nos acostumarmos à situa‐
ção — disse Carver, tentando ajudar. — Belinda levou um bom tempo até
se acostumar comigo, mas hoje em dia nem saberia viver sem mim.
Troy assentiu.
— Só não quero me sentir responsável caso você morra — disse ela.
— Disseram que não haveria perigo nenhum — disse Alex. — De qual‐
quer forma, eu sei me cuidar.
Comeram em silêncio. Carver foi o primeiro a terminar — largou o garfo
no prato e se espreguiçou satisfeito.
— Você perguntou sobre o Vendedor — disse ele. — Vou lhe dizer,
Alex. É um canalha. Vive aqui em Miami. É um sujeito asqueroso.
— É mexicano — acrescentou Troy.
— Isso mesmo. É da Cidade do México.
— E o que ele faz?
— Faz exatamente o que o nome diz: ele vende coisas — Carver usou os
dedos para enumerá-las. — Drogas, armas, identidades falsas, informações.
Se alguém precisar de qualquer coisa ilegal, o Vendedor consegue. Tudo
tem um preço, é claro.
— Pensei que vocês estivessem investigando Sarov.
— Estamos — Carver assentiu. — É possível que o Vendedor tenha ven‐
dido uma coisa para Sarov. Essa é a ligação.
— O que ele vendeu?
— Não temos certeza — Troy interrompeu, e de repente parecia nervosa
outra vez. — Só sabemos que dois dos agentes do Vendedor viajaram há
cerca de um mês para a Ilha do Esqueleto. Chegaram de avião, mas não re‐
tornaram. Estamos tentando descobrir o que Sarov comprou.
— E o que tudo isso tem a ver com o presidente russo? — Alex ainda
não tinha certeza de que estavam lhe contando a verdade.
— Não saberemos enquanto não descobrirmos o que Sarov comprou —
disse Troy.
— Já faz algum tempo que trabalho com o Vendedor usando um disfarce
— Carver continuou. — Estou comprando drogas. Meio milhão de dólares
de cocaína, que será trazida de avião da Colômbia. Pelo menos, é o que ele
pensa.
Carver sorriu, e Alex sabia que ele estava gostando de tudo aquilo.
— Temos um ótimo relacionamento — prosseguiu Carver. — Ele confia
em mim. E acontece que hoje é aniversário do Vendedor, e ele me convidou
para beber alguma coisa no barco dele.
Alex olhou para o mar.
— Qual destes é o barco dele?
— Aquele — Carver apontou para um barco atracado no final de um píer
a uns 30 metros dali. Alex respirou fundo.
Era um dos barcos mais bonitos que ele já vira. Não era um barco desses
comuns, brancos, de fibra de vidro, como muitas das lanchas ancoradas por
toda a orla de Miami. Não era nem mesmo moderno. Chamava-se Myfair
Lady, e tratava-se de um iate eduardiano clássico, que devia ter uns 80 anos
e parecia saído de um filme em preto e branco. Media mais de 30 metros de
comprimento, com um tubo de ventilação bem no centro. O salão principal
ficava na altura do convés, logo atrás da ponte de comando. Abaixo, uma li‐
nha curva de quinze ou mais escotilhas arredondadas parecia indicar as ca‐
bines e sala de jantar. O iate era cor de creme, com ornamentos e luminárias
em madeira natural, o convés também de madeira e tinha luminárias de
bronze sob os toldos. O mastro alto e fino com radar na parte da frente, era
a única ligação perceptível da embarcação com o século 21. O lugar certo
para o Mayfair Lady não era Miami — era um museu. E qualquer barco que
chegasse perto dele ficava feio.
— É um barco bacana — disse Alex. — O Vendedor deve estar se dando
muito bem.
— O Vendedor devia estar na cadeia — murmurou Troy, que notara o
olhar de admiração de Alex e não o aprovara. — É para lá que um dia ire‐
mos mandá-lo.
— Pode apostar — concordou Carver. — Vai pegar de trinta anos a pri‐
são perpétua.
Troy terminara a salada de frutas.
— Está bem, Alex — disse ela. — Vamos começar de novo. A sua pro‐
fessora de matemática. Qual é o nome dela?
Alex olhou em volta.
— O nome dela é sra. Hazeldene. E boa tentativa de me pegar, mas na
Inglaterra aprendemos maths. Os americanos aprendem math.
Carver achou divertido, mas Troy não sorriu.
— Já melhorou — disse ela.
Pelos quinze minutos seguintes, os dois agentes da CIA se revezaram pa‐
ra testar Alex em mais alguns detalhes, depois ficaram em silêncio. Alex
deixou que seus olhos absorvessem o cenário que o cercava, sob o sol alto
ainda resplandecente. Os adolescentes haviam parado de andar de skate e
estavam atirados na calçada de madeira, bebendo Coca-Cola.
Carver olhou para o relógio.
— Está na hora — murmurou.
— Vou ficar com o Alex — disse Troy.
— Está bem. Fique tranquila. Isso deve levar apenas alguns minutos.
— Boa sorte — disse Alex.
Glen Carver se levantou e foi embora. Enquanto ele se afastava, Alex
percebeu um homem de camisa havaiana e calças brancas se aproximar,
vindo na direção oposta. Era impossível ver o rosto do sujeito. Ele usava
óculos escuros e chapéu de palha. Mas devia ter sofrido algum acidente ter‐
rível, pois as pernas se arrastavam de um jeito estranho e os braços pareci‐
am não ter vida. Por um instante, ficou bem perto de Carver na calçada de
madeira. Carver não o notou. Depois, o homem desapareceu, andando sur‐
preendentemente rápido.
Alex e Troy observaram Carver percorrer todo o trajeto até o iate. No fi‐
nal do píer, havia uma rampa que ia até o convés. A rampa permitia que a
tripulação subisse os mantimentos com carrinhos. Dois homens tinham aca‐
bado de carregar o barco quando Carver chegou. Falou com eles. Um deles
apontou na direção da cabine do salão. Carver subiu a rampa e desapareceu
a bordo.
— E agora? — perguntou Alex.
— Agora esperamos.
Por cerca de quinze minutos, nada aconteceu. Alex tentou conversar com
Troy, porém ela estava com toda a atenção voltada para o barco. Ela não di‐
zia nada, e dessa vez Alex sabia que ela não estava sendo grosseira de pro‐
pósito. Já trabalhara antes com Carver e estava preocupada com ele. Isso
era visível nos olhos dela, em seu corpo rígido. O Vendedor devia ser mais
perigoso do que eles afirmaram. Ela não ficaria tranquila até que o agente
retornasse à praia.
Então, Alex viu Troy se levantar. Seguiu o olhar dela até o barco. Saía
fumaça pela chaminé. O motor havia sido ligado. Os dois homens com
quem Carver falara estavam no píer. Um deles soltou o barco, depois em‐
barcou. O outro ficou em terra e saiu caminhando. Lentamente, o Mayfair
Lady começou a se afastar do cais.
— Tem coisa errada — sussurrou Troy.
— O que você quer dizer com isso?
— Era para ser uma reunião de dez minutos. Glen não pretendia ir a lu‐
gar nenhum.
Glen. Era a primeira vez que ela se referia a ele pelo primeiro nome.
— Talvez tenha mudado de ideia — sugeriu Alex. — Talvez o Vendedor
o tenha convidado para um passeio de barco.
— Ele não teria ido. Não sem mim. Não sem cobertura. É contra o pro‐
cedimento.
— Então...
— Ele foi desmascarado — o rosto de Troy ficou pálido. — Devem ter
descoberto que ele é agente. Eles o estão levando para o mar com eles...
Agora ela estava de pé, mas sem se mexer, paralisada de indecisão. Gra‐
cioso, o barco continuava a se afastar. Metade da sua extensão já se projeta‐
va para fora do píer. Mesmo que corresse, ela nunca o alcançaria a tempo.
— O que você vai fazer? — perguntou Alex.
— Não sei.
— Eles vão...
— Se sabem quem ele é, vão matá-lo.
A julgar pela sua experiência, Troy sabia que estava tudo acabado. Alex
sentira o tom de desesperança na voz dela — e foi o que o levou a se deci‐
dir. Ela não conseguiria chegar lá a tempo, mas talvez ele conseguisse. An‐
tes que ele mesmo percebesse o que fazia, já estava correndo.
— Alex! — gritou Troy.
Ele a ignorou. Já chegara à calçada de madeira. Os dois adolescentes que
ele vira antes estavam sentados ao sol, terminando a bebida, e nem o viram
agarrar um dos skates e subir nele. Foi só quando Alex o empurrou, pegan‐
do impulso pela superfície de madeira em direção ao barco, que um deles
gritou, mas já era tarde demais.
Alex tinha um equilíbrio perfeito. Snowboard, surfe, skate... para ele, era
tudo a mesma coisa. E aquele skate era uma beleza: um Flexdex Downhill
Racer, ou seja, próprio para ladeiras, com rolamentos de corrida Abec5 e ro‐
das Kryptonic. O garoto fez a troca de peso nas pernas e, de repente, se deu
conta de que não estava usando nem capacete nem joelheiras. Se caísse, po‐
deria se machucar. Mas isso era o que menos o preocupava. O barco se
afastava. Quando Alex olhou, só viu a popa com as hélices barulhentas pas‐
sando pelo final do píer. Agora, o barco saíra para o mar. Ele viu o nome
Mayfair Lady ficar cada vez menor à medida que se afastava. Em poucos
segundos, o barco estaria longe demais para ser alcançado.
Alex alcançou a rampa que servia para carregar e descarregar o barco.
Subiu por ela e, de repente, estava no ar, voando. Sentiu o skate cair dos pés
e ouviu o ruído que fez ao bater na água do mar. Ao mesmo tempo, seu pró‐
prio impulso o levou para a frente. Não ia conseguir! O barco andava rápido
demais. Ele se lançava agora, descrevendo um arco que erraria a popa por
poucos centímetros. Acabaria se espatifando na água — e depois? As héli‐
ces! Seria despedaçado por elas. Esticou os braços e, de alguma forma, seus
dedos tateantes conseguiram encontrar o parapeito afixado em toda a volta
da parte traseira do barco. Seu corpo se chocou contra o metal da popa, e os
pés afundaram na água, bem acima das hélices. Mesmo tendo conseguido se
segurar, foi como se todo o ar lhe tivesse sido arrancado do peito. E alguém
dentro do barco podia ter ouvido a batida, mas não era o caso de se preocu‐
par com isso agora, e sim de esperar que o barulho do motor lhe tivesse da‐
do cobertura.
Alex usou toda a sua força, ergueu-se e passou o corpo por cima do para‐
peito. Por fim, chegou ao convés, com o corpo todo dolorido do impacto.
Mas estava a bordo. E, por um milagre, não fora visto.
Agachou-se, avaliando o que havia ao redor. O convés da popa era uma
área pequena e semifechada, em formato de ferradura. Logo adiante ficava
a cabine do salão, com uma só janela que dava para trás e uma porta lateral.
Havia uma pilha de suprimentos sob uma lona encerada e dois barris gran‐
des. Alex destampou um deles e cheirou: estava cheio de gasolina. O Ven‐
dedor obviamente planejava navegar por um bom tempo.
Todo o convés — a bombordo e a estibordo — era sombreado por um
toldo que pendia por ambos os lados do salão principal. Acima de sua cabe‐
ça havia um bote salva-vidas de madeira suspenso por duas polias. Recosta‐
do no parapeito para descansar um pouco, Alex teve certeza de que estaria
em segurança desde que ninguém entrasse pela parte de trás da embarcação.
Quantos tripulantes haveria a bordo? Provavelmente havia um capitão ao ti‐
mão. Devia haver alguém com ele. Ao olhar para cima, Alex viu de relance
dois pés passarem pelo convés acima do teto do salão. Já eram três pessoas.
Poderia haver mais duas ou três lá dentro. Ao todo seis, talvez?
Olhou para trás. O porto de Miami já estava distante. Alex se levantou e
tirou os tênis e as meias. Então, seguiu agachado, movendo-se em total si‐
lêncio e ainda nervoso com receio de ser visto do convés superior. As pri‐
meiras duas janelas do salão estavam fechadas, porém a terceira estava
aberta. Agachado embaixo dela, ouviu uma voz. Era um homem. Tinha um
forte sotaque mexicano e, toda vez que pronunciava a letra S, emitia um as‐
sobio baixinho.
— Você é um tolo. Seu nome é Glen Carver. Você trabalha para a CIA. E
eu vou matá-lo.
Outro homem falou brevemente.
— Você entendeu tudo errado, Vendedor. Juro por Deus que não sei do
que você está falando.
Era Carver.
Alex olhou para a esquerda e para a direita. Nisso, com os ombros contra
a parede da cabine, foi erguendo o corpo até a cabeça chegar à altura da ja‐
nela, de modo que ele pudesse espiar para dentro da cabine.
A cabine do salão era retangular, com um piso de madeira coberto por
um tapete que fora enrolado... para evitar que ficasse manchado de sangue,
imaginou Alex. Ao contrário do barco, a mobília era moderna, semelhante à
de um escritório. Mas não havia muitas peças. Carver estava sentado em
uma cadeira com as mãos para trás. Alex pôde perceber que haviam usado
uma espécie de fita adesiva para amarrar os braços e os pés dele. Já tinha si‐
do surrado, o cabelo estava úmido e todo desajeitado. E escorria sangue pe‐
lo canto da boca.
Havia dois homens com ele na cabine. Um, o criado de bordo, vestia je‐
ans e camiseta preta, e sua barriga saliente cobria o cinto. O outro só podia
ser o Vendedor. Era um homem de rosto redondo, com o cabelo muito escu‐
ro e um pequeno bigode. Usava terno branco com colete, de corte imacula‐
do, e sapatos de couro impecavelmente lustrados. O criado segurava a arma,
uma automática grande e pesada. O Vendedor estava sentado em uma cadei‐
ra de vime, segurando uma taça de vinho tinto. Balançou o vinho diante do
nariz, apreciou o aroma e tomou um gole.
— Que vinho delicioso! — murmurou. — É chileno. Um Cabernet Sau‐
vignon cultivado na minha propriedade. Como pode ver, meu amigo, sou
muito bem-sucedido. Tenho negócios no mundo todo. As pessoas querem
beber vinho? Vendo vinho. Querem usar drogas? São malucas, mas não te‐
nho nada a ver com o assunto e, portanto, vendo drogas. O que há de errado
nisso? Vendo qualquer coisa que qualquer um queira comprar. Mas, veja
você, sou um homem cuidadoso. Não engoli a sua historinha. Fiz umas in‐
vestigações, e a CIA foi mencionada. É por isso que você está aqui.
— O que você quer saber? — disse Carver, ruidosamente.
— Quero saber quando chegaremos longe o suficiente de Miami para es‐
tarmos em águas internacionais, porque é quando vou matá-lo e jogá-lo do
convés — o Vendedor sorriu. — Nada mais.
Alex se abaixou outra vez. Não havia por que continuar ouvindo. Não
podia entrar na cabine. Eram dois homens — e ele, um só. E Alex não tinha
a menor chance contra uma arma. Precisava dar um jeito de desviar a aten‐
ção deles.
Nisso, lembrou-se da gasolina. Olhando rápido para o convés superior,
preparou-se para voltar à popa, mas ficou imóvel quando a porta da ponte
se abriu e um homem saiu. Não havia nada que Alex pudesse fazer, não ha‐
via onde se esconder. Mas ele teve sorte. O homem, vestindo um uniforme
desbotado de capitão de navio, estivera fumando um cigarro. Só ficou ali
tempo suficiente para jogar a bituca do cigarro no mar, depois voltou para
dentro, sem virar a cabeça. Escapara por pouco, mas Alex sabia que seria
apenas uma questão de tempo até que fosse descoberto. Tinha que agir rápi‐
do.
Correu na ponta dos pés até os barris que vira antes. Tentou inclinar um
deles, mas era pesado demais. Olhou em volta à procura de um pano. Como
não encontrou, tirou a camisa e rasgou-a com as mãos. Enfiou depressa a
manga dentro do barril, encharcando-a de gasolina. Depois, puxou-a para
fora, deixando apenas uma ponta pendurada pelo lado de dentro — um pa‐
vio improvisado. Alex imaginou que a explosão bastaria para atrair a aten‐
ção de todos a bordo, mas que não seria tão forte a ponto de matar alguém
ou afundar o barco. Já que ele mesmo estava a bordo, tudo o que podia fa‐
zer era torcer para que desse certo.
Enfiou a mão no bolso e pegou a caixa de fósforos com que brincara no
restaurante. Por sorte, ainda estavam secos. Fazendo uma concha com a
mão para proteger a chama do vento, acendeu primeiro um fósforo e depois
toda a caixa. Encostou a chama no pano que fora a sua camisa. Em um se‐
gundo, todo o pano pegou fogo.
Correndo de novo para a frente do barco, Alex voltou à cabine do salão.
Pôde ouvir o Vendedor, que ainda falava lá dentro.
— Outra taça, eu acho. Sim... depois, sinto muito, mas terei que deixá-lo.
Preciso trabalhar.
Alex olhou para dentro. O Vendedor estava de pé junto a uma mesa, ser‐
vindo outra taça de vinho. O garoto olhou para trás, por sobre o ombro. Não
havia ninguém. Não acontecera nada. Por que a gasolina não incendiara?
Será que o vento tinha apagado o pavio improvisado?
Foi naquele instante que a explosão aconteceu. Um imenso cogumelo de
chamas e fumaça preta se ergueu no ar na popa do barco e foi levado instan‐
taneamente pelo vento. Alguém gritou. Alex viu que a gasolina se espalhara
por todo o convés. O fogo tomara conta do barco inteiro. O teto, bem acima
de sua cabeça, estava em chamas. Tudo o que estava sob o toldo também se
incendiava. Mais gritos. Ouviram-se passos fortes e apressados em direção
ao convés da popa — felizmente, do outro lado da embarcação. Era o mo‐
mento de agir.
— Vá ver o que está acontecendo!
Alex ouviu o Vendedor, irritado, gritar a ordem e, um segundo depois, o
criado saiu correndo. Desapareceu pelo outro lado. Isso deixou o Vendedor
sozinho com Carver. O garoto esperou alguns segundos, passou pela porta e
outra vez enfiou a mão no bolso da calça. Carver o viu antes do Vendedor.
Seus olhos se esbugalharam, e ele mal pôde conter um risinho. O Vendedor
notou e se virou. Pousou o copo e pegou uma arma. Por um instante, ne‐
nhum dos dois se moveu. O Vendedor via um garoto de 14 anos, descalço e
sem camisa. Ainda não lhe ocorrera que ele poderia ser uma ameaça, que
fora aquele garoto quem ateara fogo no barco. E, nesse momento de hesita‐
ção, Alex decidiu agir.
Quando ergueu a mão à frente, segurava um celular. Já digitara dois no‐
ves antes de entrar na cabine. Apertou o botão pela terceira vez ao fazer mi‐
ra com o telefone.
— É para você — disse ele.
Sentiu o telefone estremecer na mão e a antena sair pela parte de cima si‐
lenciosamente: o plástico se abriu mostrando uma agulha brilhante, que
atravessou a curta distância dentro da cabine e atingiu o peito do Vendedor.
O homem reagira rápido, já empunhando a arma. Porém, antes que pudesse
atirar, revirou os olhos e desabou no chão. Alex pulou por cima dele e foi
até Carver.
— Isso foi incrível, Alex! — exclamou o homem da CIA.
Alex logo pôde ver que ele não estava muito ferido. Na verdade, seu sor‐
riso ia de uma orelha à outra. Os olhos de Carver foram do celular para o
corpo inerte do Vendedor.
— O que você fez com ele? — perguntou.
— Era engano — disse Alex, cortando a fita adesiva.
Carver riu. Levantou-se e apanhou a arma que o Vendedor largara. Veri‐
ficou o pente. Estava totalmente carregado.
— E a explosão? — perguntou. — Foi coisa sua também?
— É, foi. Botei fogo no barco.
— Você fez isso?
— Fiz.
— Mas, Alex... nós estamos no barco.
— É, eu sei.
Antes que Alex pudesse dizer mais alguma coisa, o agente entrou em
ação. Girou o corpo, assumindo posição de combate, braços para cima, per‐
nas afastadas. Havia um vão com uma escadaria na ponta mais distante da
cabine. Alex não o notara antes. Alguém subiu a escada e apareceu no bura‐
co. Carver atirou duas vezes. A pessoa despencou pela mesma escada que
subira. Carver parou. A fumaça preta começava a entrar na cabine. Houve
uma segunda explosão, e o barco inteiro sacudiu como se tivesse sido apa‐
nhado por uma ventania forte e repentina. Ouviram-se gritos vindos do con‐
vés. Ao olhar pela janela, Alex viu as chamas. Muitas chamas.
— Deve ter sido o segundo barril de gasolina — disse ele.
— Quantos barris são?
— Só dois.
Carver parecia confuso. Forçou-se a tomar uma decisão.
— Tudo bem — disse ele. — Vamos ter que nadar.
O agente da CIA foi primeiro, saindo de lado da cabine. O convés estava
cheio de gente — havia pelo menos sete homens. Alex se perguntou de on‐
de todos eles teriam saído. Dois deles, de camisa branca e jeans imundos,
combatiam as chamas com extintores. Havia dois no teto e mais um no con‐
vés. Todos gritavam.
A fumaça se espalhava no ar atrás do barco. O bote salva-vidas estava
em chamas. Parte do toldo também queimava. Pelo menos ninguém sabia
exatamente o que acontecera. Ninguém vira Alex subir a bordo. As explo‐
sões pegaram todos de surpresa, e a tripulação só estava preocupada em
controlar o fogo. No entanto, assim que Carver saiu da cabine, um dos ho‐
mens no convés superior o viu e berrou em espanhol:
— Lá estão eles! São dois!
Carver gritou:
— Chegou a hora de darmos o fora daqui!
Correu para a borda do barco. Alex o seguiu. Ao mesmo tempo, a vibra‐
ção ensurdecedora de uma metralhadora despedaçou o que restara do toldo
que estava acima de sua cabeça. As balas se estilhaçavam no convés, fazen‐
do voar lascas de madeira. Uma lâmpada a gás explodiu. Alex nem sabia ao
certo quem atirava. Só sabia que estava encurralado em meio a fumaça,
chamas, balas e um monte de homens que queriam matá-lo. Viu Carver
mergulhar por sobre o parapeito do barco. Houve outra rajada de metralha‐
dora, e Alex sentiu o convés se abrir alguns centímetros sob os seus pés
descalços. Deu um grito. Estilhaços cortaram-lhe o tornozelo e os calcanha‐
res. Ele lançou o corpo para frente e se jogou por sobre o parapeito. Era um
caos que parecia durar uma eternidade. Sentiu o vento bater nos seus om‐
bros nus. Ouviu mais tiros. Depois, mergulhou de cabeça no oceano Atlân‐
tico e desapareceu sob a superfície.
Alex deixou que o oceano o envolvesse. Após aquele campo de batalha
em que o Mayfair Lady se transformara, sentiu a água morna e reconfortan‐
te. Com uma braçada forte, nadou ainda mais para o fundo. Algo passou zu‐
nindo, e ele percebeu que alguém atirava nele. Quanto mais fundo mergu‐
lhasse, mais seguro estaria.
Abriu os olhos. Eles ardiam por causa da água do mar, mas ele precisava
saber a distância que percorria. Olhou para cima. A luz brilhava na superfí‐
cie, e não havia sinal do barco. Seus pulmões começavam a doer. Precisava
respirar. Mesmo assim, esperou mais um pouco. Ficaria feliz se pudesse
permanecer na água por uma hora.
Não podia. Com o corpo implorando por oxigênio, Alex subiu relutante
até a superfície. Saiu da água arquejando, com água escorrendo pelo rosto.
Carver estava perto dele. O agente da CIA deu um riso forçado, como se tu‐
do aquilo não passasse de um grande jogo. Alex ficou se perguntando se ele
não estaria em choque.
— Você está bem? — perguntou Alex.
— Estou, e graças a você — respondeu Carver. — Garoto, você é um
grande companheiro de equipe! Nem acredito no que acabei de ver! Só é
uma pena que você não tenha pensado em tudo.
— O que você quer dizer com isso? — perguntou Alex com uma súbita
sensação de terror.
— Olhe atrás de você.
Alex se virou na água. O Mayfair Lady não fora destruído. O fogo pare‐
cia ter sido apagado. O barco vinha na direção deles.
Alex permanecera na água por talvez noventa segundos. Nesse meio-
tempo, o barco seguira em frente enquanto todos combatiam as chamas do
incêndio e ninguém comandava o leme. O motor estava a toda velocidade, e
o barco agora encontrava-se a uns 500 metros de distância. Mas o capitão
obviamente voltara para a ponte de comando. O iate dava meia-volta. Alex
pôde ver quatro ou cinco homens na proa, todos armados. Haviam visto os
dois na água. Um deles apontava e gritava. Ele e Carver não tinham como
se defender, flutuando na água com, talvez, uma só arma. Logo o barco os
alcançaria. Eram alvos fixos, prestes a serem apanhados como patinhos de
tiro ao alvo.
O que Alex podia fazer? Olhou para Carver, na esperança de que o agen‐
te tivesse alguma ideia, que tirasse algum coelho da cartola. Será que a CIA
não tinha aparelhos eletrônicos especiais? Onde estava a lancha rápida in‐
flável ou o equipamento de mergulho escondido? Mas Carver continuava
impotente. Conseguira até perder a arma.
O Mayfair Lady completou a volta.
Carver murmurou alguma coisa baixinho.
O barco se aproximava cortando a água.
E então explodiu. Dessa vez, as explosões foram imensas, definitivas.
Houve três explosões simultâneas — na proa, no meio e na popa. O Mayfair
Lady se partiu em três pedaços, com a chaminé e o salão principal erguen‐
do-se do oceano como se tentassem escapar do restante do barco. Alex sen‐
tiu a onda de choque percorrer a água. O barulho da explosão foi ensurdece‐
dor. A água o acertou com violência, deixando-o quase desmaiado. Pedaços
de madeira, alguns em chamas, choveram por toda parte. Ele concluiu pron‐
tamente que ninguém tinha sobrevivido. E, com isso, ocorreu-lhe um pensa‐
mento terrível.
Fora tudo culpa sua? Ele havia matado todo mundo?
Carver deve ter pensado a mesma coisa. Olhou para Alex, mas não disse
nada. Os dois apenas observaram as três partes daquilo que fora um iate
clássico afundarem e desaparecerem.
Nesse momento, em meio ao silêncio ruidoso após as explosões, ouviram
o som de um motor de popa. Alex virou-se e viu que uma lancha se aproxi‐
mava em alta velocidade, pilotada por Belinda Troy. Ela tinha confiscado a
lancha e vindo atrás deles. Estava sozinha.
Primeiro ajudou Alex a sair da água, depois o outro agente. Pela primeira
vez, Alex percebeu que não avistava terra. Achou que tudo acontecera tão
rápido. E, mesmo assim, o Mayfair Lady conseguira se afastar vários quilô‐
metros da costa antes de ser destruído.
— O que aconteceu? — perguntou Troy.
O vento lhe espalhava o longo cabelo. O rosto era uma combinação de
alívio com perplexidade.
— Vi o barco explodir. Achei que vocês estavam... — parou e tomou fô‐
lego. — O que aconteceu? — repetiu.
— Foi o Alex! — Carver se deitou na lancha, com um sorriso bobo. —
Você não iria acreditar, Belinda. Ele estava lá bem na hora! Eliminou o Ven‐
dedor e depois me soltou...
— Você estava amarrado?
— Estava. O Vendedor sabia que eu era um agente. Ia me matar. Alex o
deixou desacordado usando uma coisa que parecia um celular e depois... —
Carver parou para tomar fôlego. A lancha balançou suavemente. — Alex
explodiu o barco. Ele matou todo mundo.
— Não — Alex balançou a cabeça, sem querer assumir aquela responsa‐
bilidade. — O incêndio já tinha sido apagado. Você viu. Eles já haviam con‐
trolado a situação. Estavam fazendo a volta, prontos para retornar...
— Não sei, Alex — o agente da CIA estava cansado demais para discu‐
tir. — O que você acha que aconteceu? Acha que uma das lâmpadas quei‐
mou e fez com que o iate explodisse? Foi você, sim, meu amigo. Você pôs
fogo na gasolina! E foi isso o que aconteceu.
— Você os matou! — Belinda Troy balançou a cabeça, e Alex sabia o
que ela estava pensando. Ele ainda era uma criança. E crianças não deviam
se comportar daquela forma.
— Ele salvou a minha vida — disse Carver. — Não fosse por ele... — A
voz dele foi ficando baixinha.
Belinda Troy se posicionou no leme e ligou o motor. A lancha fez a volta
e eles seguiram de volta para a costa.
8
CONTROLE DE PASSAPORTE

ALEX PEGOU UM ASSENTO com janela perto da parte dianteira do


avião. Troy sentou-se perto dele, com Carver sentado também ao seu lado,
porém junto ao corredor. Eram uma família em férias. Troy lia uma revista;
Carver, um roteiro de cinema. Ele estava se passando por um produtor e,
durante a viagem, ficou fazendo anotações na margem das páginas, só para
o caso de alguém estar observando. Alex jogava em um videogame portátil
da Nintendo. Ficou pensando sobre isso. Troy lhe dera o videogame pouco
antes de decolarem de Miami. Parecera-lhe algo muito natural, quando esta‐
vam na sala de embarque.
— Tome, Alex — dissera ela. — Uma coisa para você se distrair no
avião.
Alex ficara desconfiado. Lembrou-se de que, da última vez que segurara
um videogame daqueles, o aparelho estava cheio de dispositivos inventados
por Smithers, do MI6. Mas pelo que pôde perceber esse era totalmente nor‐
mal. Pelo menos, chegara à quinta fase do jogo “Zelda” e, até então, o vide‐
ogame não explodira na sua mão.
Olhou pela janela. Estavam no ar havia cerca de uma hora. Era o segun‐
do voo deles naquele dia. Já tinham voado de Miami para Kingston, na Ja‐
maica, onde pegaram o segundo avião. Haviam servido aquele tipo de lan‐
che que as pessoas esperam receber em um voo: um sanduíche, um quadra‐
dinho de bolo e um copinho plástico de água mineral. Agora as comissárias
de bordo voltavam, recolhendo as bandejas às pressas.
— Aqui quem fala é o comandante. Por favor, mantenham os cintos de
segurança afivelados e voltem os seus assentos à posição vertical. Aterrissa‐
remos em instantes...
Alex olhou pela janela outra vez. O mar era de um tom azul-turquesa ex‐
traordinário. Nem parecia água, na verdade. Em seguida, o avião mergu‐
lhou, e de repente ele viu a ilha. Ambas as ilhas. Cuba ficava ao norte. A
Ilha do Esqueleto ficava logo abaixo. Não havia nenhuma nuvem no céu, e
por um instante a massa de terra ficou perfeitamente nítida, esparramada
como se fosse a superfície do mundo, duas manchas verde-esmeralda com
um litoral que parecia cintilar um azul carregado.
O avião se inclinou. As ilhas sumiram e, quando Alex voltou a vê-las, o
avião já voava baixo, em alta velocidade em direção a uma pista que pare‐
cia quase inatingível, espremida entre prédios de escritórios, hotéis, estradi‐
nhas e palmeiras. Havia uma torre de controle, feia e disforme, e um termi‐
nal baixo feito de concreto e vidro. Dois outros aviões, já em terra, estavam
cercados por caminhões de serviço. Houve um solavanco quando as rodas
traseiras tocaram a pista. Haviam aterrissado.
Alex soltou o cinto de segurança.
— Espere um instante, Alex — disse Troy. — A luz do cinto de seguran‐
ça ainda está acesa.
Ele sabia que ela estava apenas representando. Fazia o papel de uma mãe
preocupada com o filho, que poderia cair e se machucar caso o avião fizesse
uma parada brusca. Ele assentiu e encaixou o cinto de volta.
As coisas haviam mudado desde os acontecimentos em Miami. No que
se referia a Carver, Alex agora era um deles. Até mesmo Troy passara a tra‐
tá-lo com certo respeito. Porém, ao mesmo tempo, o garoto tinha que admi‐
tir que os dois agentes da CIA se mostravam pouco à vontade, e ele se per‐
guntava se o que acontecera não teria mexido com o orgulho profissional
deles. Ele era um garoto de 14 anos e inglês. E, ainda assim, não fosse por
ele, a missão teria terminado antes mesmo de começar. E insistiam que ele
explodira o Mayfair Lady e matara a todos a bordo — e até mesmo Alex co‐
meçara a achar que eles tinham razão. Era verdade que ele pusera fogo na
gasolina. Qual teria sido o motivo da explosão que aconteceu depois?
Tentou evitar esse pensamento. O avião estacionara e todos se levanta‐
ram, acotovelando-se no compartimento apertado para alcançar o bagageiro
na parte de cima da cabine. Quando Alex se esticou para pegar sua bolsa de
viagem, o console de videogame quase lhe caiu da mão. Troy virou rápido a
cabeça. Alex percebeu o temor nos olhos dela.
— Tome cuidado com isso! — disse ela.
Então ele estava certo. Havia mesmo alguma coisa escondida no console
de videogame. Era um traço característico do comportamento de Belinda
Troy deixá-lo sem saber das coisas. Isso, porém, não a impedira de lhe pedir
que carregasse o aparelho.
Era meio-dia, o pior horário para chegar. Logo que saíram do avião, Alex
sentiu o calor refletir da pista. Era difícil respirar. O ar estava pesado e chei‐
rava a óleo diesel. Ele já suava antes mesmo de chegar ao final da escada, e
o saguão de desembarque não ofereceu nenhum alívio. O ar-condicionado
não funcionava, e logo Alex se viu espremido em um ambiente confinado
com duzentas ou trezentas pessoas, e sem nenhuma janela. O terminal mais
parecia um galpão grande do que um prédio de aeroporto moderno. As pa‐
redes eram de um verde-oliva sombrio, exibiam pôsteres desbotados com
fotos da ilha que pareciam ter uns vinte anos. Os passageiros do voo de
Alex se misturaram com os do voo anterior, que ainda não haviam sido libe‐
rados — o resultado era uma multidão imensa e amorfa de pessoas e baga‐
gens de mão, que se arrastava devagar em direção às cabines de vidro onde
estavam três funcionários da alfândega uniformizados. Não havia filas. Tão
logo um passaporte era carimbado e outra pessoa tomava o lugar na cabine,
a multidão simplesmente empurrava para frente, lutando para chegar aos
fiscais.
Uma hora depois, Alex continuava lá. Estava todo sujo, amarrotado e
morrendo de sede. Ao olhar para um lado, viu duas portas velhas e despeda‐
çadas que davam para o banheiro masculino e o banheiro feminino. Devia
haver uma torneira lá dentro, mas será que a água era potável?
Encostado na parede, ao lado de um espelho que ia do chão até o teto,
um guarda de camisa e calças marrons observava com uma metralhadora
apoiada nos braços. Alex queria esticar os braços, mas estava muito espre‐
mido. Havia uma velha de pé, bem ao lado dele, que tinha o cabelo grisalho
e o rosto flácido. Cheirava a perfume barato. Quando se virou um pouco,
foi quase abraçado por ela e recuou, sem conseguir esconder a repulsa.
Olhou para cima e viu que havia uma única câmera de segurança no teto.
Lembrou-se de como Joe Byrne estava preocupado com a segurança no ae‐
roporto de Santiago. No entanto, Alex teve a impressão de que qualquer um
poderia entrar ali sem que ninguém percebesse. O guarda parecia entediado
e semiadormecido. A câmera provavelmente estava fora de foco.
Enfim, chegaram ao controle de passaportes. O funcionário, atrás de uma
janela de vidro, era jovem, usava óculos e tinha o cabelo preto ensebado.
Carver entregou os três passaportes e três formulários de imigração preen‐
chidos. O funcionário abriu os documentos.
— Não fique nervoso, Alex — disse Troy. — Só um instante e já vai ter‐
minar tudo aqui.
— Sim, mamãe.
O encarregado do controle de passaportes olhou para eles. Não era um
olhar de boas-vindas.
— Sr. Gardiner? Qual é o objetivo da sua visita a Cayo Esqueleto? —
perguntou.
— Férias — respondeu Carver.
Os olhos do homem passaram rapidamente pelos passaportes e depois
pelas pessoas a que pertenciam. Colocou os documentos em um escâner e
bocejou ao mesmo tempo. O guarda que Alex notara não estava por perto.
Estava na janela, observando os aviões.
— Onde moram? — perguntou o funcionário.
— West Hollywood — Carver sorriu. — Trabalho com cinema.
— E a sua esposa?
— Não trabalho — disse Troy.
O funcionário pegou o passaporte de Alex. Abriu-o e comparou a foto
com o garoto.
— Alex Gardiner — falou.
— Opa, tudo bem? — disse Alex, na esperança de que seu sotaque pare‐
cesse convincente.
— É a sua primeira viagem a Cayo Esqueleto?
— É, sim. E espero que não seja a última.
O funcionário olhou bem para ele, com os olhos aumentados pelas len‐
tes. Parecia totalmente desinteressado.
— Em que hotel ficarão hospedados? — perguntou.
— No Valencia — disse Carver com tranquilidade. Já escrevera aquele
nome nos três formulários de imigração.
Outra pausa. Então, o funcionário pegou um carimbo e bateu três vezes.
No ambiente confinado da cabine, pareceram três tiros. Devolveu os passa‐
portes e disse:
— Aproveitem a visita a Cayo Esqueleto.
Alex e os dois agentes da CIA passaram da sala de imigração para o sa‐
guão de bagagens, onde as malas já estavam rolando infinitamente em uma
esteira antiga e barulhenta. E era isso, pensou Alex. Não poderia ter sido
mais fácil! Todo aquele alvoroço e a presença dele nem tinha sido tão ne‐
cessária.
Alex pegou a mala.
Naquele mesmo instante, embora ele não soubesse disso, a sua foto e as
informações constantes do seu passaporte já haviam sido transmitidas para
a central de polícia em Havana, Cuba, junto com as de Carver e Troy. Na
verdade, a “família” já fora fotografada três vezes. Uma vez, pela câmera
vista por Alex no saguão de desembarque, a qual era muito mais sofisticada
do que ele pensara. Apesar da aparência antiga, a câmera conseguia focali‐
zar o buraco de um botão ou uma única palavra escrita em uma agenda e
ampliá-los cinquenta vezes, se necessário. Alex fora fotografado pela se‐
gunda vez por uma câmera que ficava atrás do espelho próximo aos toale‐
tes. E, por fim, seu rosto havia sido fotografado por uma câmera escondida
no broche usado pela velha que cheirava a perfume barato e que, na verda‐
de, não chegara em nenhum voo, mas estava sempre ali, misturada aos pas‐
sageiros que desembarcavam, aproximando-se de qualquer um que provo‐
casse suspeita naqueles que a empregavam. Os formulários de imigração
que Carver preenchera também haviam sido enviados, lacrados em um saco
plástico. As respostas às perguntas padronizadas interessavam menos às au‐
toridades do que os formulários em si. O papel fora fabricado especialmente
para reter impressões digitais e, em menos de uma hora, elas seriam escane‐
adas e verificadas em um imenso banco de dados da polícia, que ficava no
mesmo prédio.
O aparelho policial invisível que operava no aeroporto de Santiago se
concentrara em Carver e Troy antes mesmo que tivessem chegado. Eram
americanos. Disseram que estavam em viagem de férias, e sua bagagem
(que, é claro, fora vasculhada antes de chegar ao avião) continha o protetor
solar, as toalhas de praia e os remédios mais essenciais que se espera que
uma família americana comum leve na mala. As etiquetas das roupas indi‐
cavam que todas haviam sido compradas em Los Angeles. Porém, uma nota
fiscal enfiada no bolso superior de uma das camisas de Carver sugeria outra
história. Ele recentemente comprara um livro em uma loja de Langley, no
Estado da Virgínia. Langley é a cidade onde se encontra a sede da CIA.
Aquele papelzinho fora suficiente para dar o alarme. E esse foi o resultado.
O chefe da segurança do aeroporto os observava com atenção. Estava
sentado em um escritório pequeno, sem janelas, com a imagem dos agentes
bem diante dele, em uma bancada com monitores de TV. Ele viu quando
saíram da sala de bagagens e entraram no saguão de desembarque. Seu dedo
pairou brevemente perto de um botão vermelho ao lado do painel de contro‐
les. Não era tarde demais. Podia mandar trazê-los de volta antes que che‐
gassem ao ponto de táxi. Possuíam muitas celas construídas ali no porão do
prédio. E, quando o interrogatório normal não funcionava, sempre podiam
contar com drogas.
Mesmo assim...
O chefe da segurança, que se chamava Rodriguez, era muito bom naque‐
le trabalho. Interrogara tantos espiões americanos que se gabava afirmando
que podia reconhecer um deles a cem metros de distância. Avistara “o sr. e a
sra. Gardiner” antes mesmo de terem atravessado a porta e mandara o seu
subordinado dar uma olhada de perto. Esse subordinado era o guarda com
cara de entediado que Alex havia visto.
Mas dessa vez Rodriguez não teve certeza — e não podia correr o risco
de cometer erros. Afinal, Cayo Esqueleto precisava dos turistas. Precisava
do dinheiro que eles traziam. Podia até suspeitar dos dois adultos, mas eram
dois adultos que viajavam com uma criança. Ouvira a breve conversa entre
Alex e o fiscal de passaportes. Havia microfones escondidos por todo o sa‐
guão de imigração. Qual seria a idade do garoto? Catorze? Quinze? Era só
mais um garoto americano que ganhara duas semanas de férias na praia.
Rodrigues chegara a essa conclusão. Afastou a mão do botão do alarme.
Era melhor evitar publicidade negativa. Viu a família desaparecer na multi‐
dão.
Ainda assim, as autoridades continuariam atentas a eles. Mais tarde, na‐
quele mesmo dia, só por precaução, Rodriguez faria um relatório que seria
enviado com as fotografias e impressões digitais à polícia local. Enviaria
também uma cópia para o senhor muito importante que morava na Casa de
Oro. E talvez mandassem alguém ao Hotel Valencia para ficar de olho nos
recém-chegados.
Rodriguez acomodou-se na cadeira e acendeu um cigarro. Outro avião
aterrissara. O policial se inclinou para frente e começou a examinar a multi‐
dão que chegava.
O Valencia era um daqueles hotéis fantásticos que Alex não se surpreen‐
deria de ver naqueles programas de TV que oferecem estadias como prê‐
mio. Escondido em uma enseada em forma de meia-lua, consistia em pe‐
quenos chalés espalhados pela praia e a recepção ficava quase perdida em
uma selva em miniatura de arbustos e flores exóticas. Tinha uma piscina em
forma de anel com um bar no disco central e banquetas logo acima do nível
da água. O lugar todo parecia estar adormecido. Era isso o que, certamente,
faziam os poucos hóspedes que Alex viu deitados imóveis em espreguiça‐
deiras.
Alex e os “pais” dividiam um chalé de dois quartos e varanda, protegido
do sol por um telhado de palha inclinado. Havia várias palmeiras, a areia
branca e o azul incrível do mar do Caribe. Alex sentou-se um pouco na ca‐
ma. Estava coberta apenas com um lençol branco. Um ventilador girava de‐
vagar no teto. Um pássaro amarelo e verde, em tons muito vivos, pousou
brevemente no parapeito da janela do quarto, depois voou para o mar, como
se o convidasse.
— Posso ir nadar? — perguntou Alex. Normalmente não pediria a per‐
missão deles, mas achou que combinaria com o seu papel de filho.
— É claro, querido — Troy desfazia as malas. Já avisara Alex que ele
deveria representar o seu papel enquanto estivessem no hotel, pois ali podia
haver escutas. — Mas tenha cuidado!
Alex vestiu o calção e atravessou a areia correndo até o mar.
A água estava perfeita: morna e transparente. Não havia pedras, apenas o
mais macio tapete de areia. Peixinhos minúsculos nadavam em volta dele e
se dispersavam rápido quando ele estendia a mão. Pela primeira vez na vi‐
da, Alex estava contente por ter conhecido Alan Blunt. Estar naquele lugar
era por certo muito melhor do que ficar dando tempo na zona oeste de Lon‐
dres. Pelo menos dessa vez, as coisas pareciam acontecer do jeito que ele
queria.
Mais tarde, Alex deitou-se em uma rede estendida entre duas árvores e
relaxou. Eram quase 16h30, e o calor da tarde parecia igual ao do momento
em que chegaram. Um garçom se aproximou, e Alex pediu uma limonada,
mandando pôr na conta do chalé. Mamãe e papai pagariam.
Mamãe e papai.
Ao balançar-se suavemente de um lado para o outro, com a água pingan‐
do do cabelo e secando no peito, Alex imaginou como seriam os seus pais
verdadeiros, se não tivessem morrido num acidente de avião logo após ele
ter nascido. Como teria sido, para ele, crescer em um lar normal, com uma
mãe para socorrê-lo quando se machucasse? E com um pai para brincar de
luta, para pedir dinheiro emprestado ou, às vezes, evitar? Será que isso o te‐
ria tornado um garoto diferente? Jamais teria sido enviado para morar com
o seu tio, Ian Rider. Seria um colegial normal, preocupado com as provas...
e não com espiões nem com vendedores e bombas explodindo em barcos.
Seria uma pessoa mais agradável. Provavelmente teria mais amigos. Alex
em geral costumava evitar esse tipo de pensamento, porém, por algum moti‐
vo, agora ao deitar ali sozinho sob o sol caribenho, cedeu a eles.
Ficou onde estava até que o cabelo secasse e percebeu que era hora de
sair do sol. Carver e Troy não tinham saído para procurá-lo, e Alex imagi‐
nou que estivessem ocupados com as suas coisas. Continuava certo de que
havia muitas coisas que eles não lhe contaram. Lembrou-se do console de
videogame. Só o mencionaram no último instante, bem quando já estavam
para entrar no avião. Será que fizeram isso para que ele o levasse até a ilha,
por saberem que um garoto de 14 anos teria menos chances de ser revista‐
do?
Alex se levantou da rede e percorreu a pequena distância até o chalé. O
videogame ainda estava na sua bagagem de mão. Troy não o pedira de vol‐
ta. Pegou o brinquedo e o examinou outra vez. Não parecia ter nada fora do
normal. Era de um azul vivo, com um só jogo, Zelda, encaixado na parte de
trás. Alex o pesou na mão. Até onde sabia, não era nem mais pesado nem
mais leve do que deveria ser.
Então se lembrou. O videogame portátil que o MI6 lhe dera era ativado
pressionando três vezes o botão play. Talvez esse modelo funcionasse da
mesma forma. Alex virou o brinquedo e apertou o botão. Uma, duas, três
vezes. Não aconteceu nada. Olhou por um instante para a tela vazia, chatea‐
do consigo mesmo. Estava enganado. Era só um jogo que lhe deram para
que ficasse quieto no avião. Estava na hora de se vestir. Botou o videogame
sobre a mesinha de cabeceira e se levantou.
O videogame chiou.
Alex virou a cabeça para um lado e para o outro, reconhecendo o som,
porém ainda sem saber o que era. O brinquedo continuava chiando com um
som estranho, metálico, como se fosse uma batida. Ao mesmo tempo, de re‐
pente a tela se acendeu. Pulsava em verde e branco. O que significava aqui‐
lo? Pegou o aparelho de novo. No mesmo instante, o som sumiu e as luzes
se apagaram. Moveu o videogame de volta em direção à mesinha de cabe‐
ceira. Ficou aceso outra vez.
Alex olhou para a mesinha. Não havia nada nela a não ser um desperta‐
dor antigo, do próprio hotel. Abriu a gaveta. Dentro dela havia uma Bíblia
com texto em espanhol e inglês. Nada mais. Então, o que estava fazendo
acontecer aquilo com o videogame? Afastou-o outra vez. O aparelho silen‐
ciou. Aproximou-o da mesa. Ligou de novo.
O despertador...
Alex olhou o relógio mais de perto. Tinha um mostrador luminoso. En‐
costou o videogame no vidro e de repente o chiado ficou muito mais alto
que antes. De imediato, Alex compreendeu tudo. Os números do mostrador
do relógio eram um pouco radioativos. Era isso o que o brinquedo estava
captando.
O videogame tinha um medidor Geiger escondido. Alex deu um sorriso
carrancudo. O que significaria aquilo? Carver e Troy não tinham ido para a
ilha em uma simples operação de vigilância. Ele tinha razão. Tanto Blunt,
em Londres, quanto Byrne, em Miami, haviam mentido para ele desde o
início. Alex sabia que estava a poucos quilômetros ao sul de Cuba. Veio-lhe
à mente uma coisa que aprendera em história. Cuba. Anos 1960. A crise dos
mísseis cubanos. Armas nucleares apontadas para os Estados Unidos...
Alex não tinha como ter certeza. Podia ser uma conclusão precipitada.
Mas o fato é que a CIA contrabandeara um medidor Geiger para a Ilha do
Esqueleto e, por mais maluca que parecesse essa ideia, eles só podiam ter
um motivo para fazer isso.
A CIA procurava uma bomba nuclear.
9
A PRAÇA DA FRATERNIDADE

ALEX FALOU POUCO no jantar naquela noite. Embora o hotel tivesse


dado a impressão de estar vazio durante a tarde, ele ficou surpreso com a
quantidade de hóspedes bronzeados, de saias esvoaçantes e camisetas bri‐
lhosas que apareceram para jantar, e percebeu que seria impossível falar
abertamente. Estavam sentados no terraço do restaurante, de frente para o
mar, comendo peixe — o mais fresco que Alex já provara — com arroz, sa‐
lada e feijão-preto. Após o calor intenso da tarde, o ar estava fresco e aco‐
lhedor. À luz de velas, dois violonistas tocavam música latina suave. Milha‐
res de cigarras crepitavam ruidosas, escondidas no mato.
Os três conversavam como qualquer família. Falaram das cidades que vi‐
sitariam, das praias onde gostariam de se banhar. Troy contou uma piada, e
Carver soltou uma risada tão barulhenta que as pessoas ao redor voltaram a
cabeça para eles. Mas era tudo de mentira. Não iriam a lugar nenhum, e a
piada não teve a menor graça. Apesar da comida e do ambiente, Alex odia‐
va cada minuto do papel que fora forçado a representar. A última vez que
jantara com uma família fora com Sabina e os pais dela, em Cornwall. Pare‐
cia ter sido há muito tempo, e esse jantar, com essas pessoas, de alguma for‐
ma estragava aquela lembrança.
Mas pelo menos já acabara e Alex conseguiu dar uma desculpa e ir dor‐
mir. Voltou para o quarto e bateu a porta. Permaneceu imóvel por um ins‐
tante com os ombros apoiados na madeira. Olhou em volta. Alguma coisa
estava errada. Entrou devagar, os nervos à flor da pele. Alguém estivera ali.
O zíper de sua mala, que havia deixado aberto quando saíra, agora estava
fechado. Será que alguém do hotel entrara e vasculhara o quarto enquanto
ele havia saído para o jantar? Será que ainda estava ali? Olhou no banheiro
e atrás das cortinas. Nada. Foi até a mala. Levou só alguns instantes para
perceber que estava faltando apenas o console de videogame. Então era isso
o que acontecera! Lembrou-se de Troy ter saído da mesa enquanto jantavam
para ir “retocar a maquiagem”. Na verdade, ela tinha entrado no quarto. O
videogame, com o medidor Geiger escondido, era essencial para a missão.
Ela o pegara de volta.
Alex tirou a roupa depressa e se enfiou na cama, mas de repente já não se
sentia cansado. Ficou deitado no escuro, ouvindo as ondas quebrarem na
areia. Conseguia ver milhares de estrelas pela janela aberta. Nunca percebe‐
ra que havia tantas, nem que brilhavam com tamanha intensidade. Carver e
Troy voltaram para o quarto cerca de meia hora depois. Alex ouviu que
conversavam em voz baixa, mas não conseguiu entender o que diziam. Pu‐
xou o lençol para cobrir a cabeça e tentou dormir.
Na manhã seguinte, a primeira coisa que viu ao acordar foi um bilhete
passado por baixo da porta. Levantou da cama e o apanhou. Estava todo es‐
crito em letras maiúsculas.

FOMOS CAMINHAR.
ACHAMOS QUE VOCÊ QUERIA DESCANSAR.
MAIS TARDE NOS ENCONTRAMOS.
BEIJOS. MAMÃE.

Alex rasgou o bilhete ao meio duas vezes, jogou os pedacinhos no cesto


de lixo e foi tomar o café da manhã. Achou estranho os pais saírem para ca‐
minhar e deixarem o filho, mas imaginou que provavelmente muitas famíli‐
as — que tinham acompanhantes ou babás — faziam a mesma coisa.
Passou a manhã na praia, lendo. Havia outros garotos da sua idade brin‐
cando no mar, e Alex pensou em se juntar a eles. Mas eles não falavam in‐
glês e pareciam muito reservados. Às 11 horas, os seus “pais” ainda não ha‐
viam voltado. De repente, Alex estava cheio de ficar sozinho na área do ho‐
tel. Estava em uma ilha do outro lado do mundo. Devia, então, sair para co‐
nhecê-la melhor! Vestiu-se e foi para a cidade.
Foi atingido pelo forte calor assim que pisou fora do hotel. A estrada fa‐
zia uma curva para dentro, afastando-se do mar. De um lado, havia mato fe‐
chado e do outro, o que parecia ser uma plantação de tabaco — um aglome‐
rado de grandes folhas verdes que subiam à altura do peito. A paisagem era
plana, mas não soprava nenhuma brisa do mar. O ar estava pesado e imóvel.
Alex logo começou a suar e teve que espantar as moscas que pareciam de‐
terminadas a persegui-lo por todo o caminho. Ao redor, apareciam poucas
construções de zinco e madeira ressecada pelo sol. Uma mosca zumbiu no
ouvido dele. Alex a espantou com um tapa.
Levou vinte minutos para chegar a Puerto Madre, um vilarejo de pesca‐
dores que crescera e se transformara em uma cidade populosa e desordena‐
da. Os prédios eram uma impressionante mistura de estilos distintos: frágeis
quiosques de madeira, casas de mármore e tijolo, imensas igrejas de pedra.
Tudo fora fragilizado e cozido pelo sol — e a luz do sol estava em toda par‐
te: na poeira, nas cores vivas, no cheiro dos temperos e das frutas maduras
demais.
O barulho era ensurdecedor. Música de rádio — jazz e salsa — irrompia
pelas janelas abertas. Carros americanos maravilhosos — antigos Chevro‐
lets e Studebakers que pareciam brinquedos de cores muito vivas — passa‐
vam nas ruas apertadas e tocavam a buzina na tentativa de ultrapassar cava‐
los, carroças, riquixás motorizados, vendedores de cigarros e meninos en‐
graxates. Velhos de camisas estavam sentados nas portas dos cafés, com os
olhos semicerrados por conta do sol. Mulheres de vestidos apertados encos‐
tavam-se, lânguidas, na entrada das casas. Alex jamais estivera num lugar
tão barulhento, tão sujo e, muito menos, tão animado.
De algum jeito, conseguiu chegar à praça central, que tinha uma grande
estátua ao centro — um soldado revolucionário, com o fuzil ao lado e uma
granada pendurada no cinto. Devia haver pelo menos uma centena de ban‐
cas de feira aglomeradas na praça, e vendiam frutas e verduras, café em
grão, lembranças, livros antigos e camisetas. E, por todo lado, multidões en‐
travam e saíam de lojas de câmbio e sorveterias, sentavam-se às mesas jun‐
to a vastas fileiras de colunas e faziam fila nos fast-foods e nos paladares
— pequenos restaurantes que funcionam em casas particulares.
Havia uma placa de rua presa à parede que dizia: “Plaza de Fraternidad”.
Alex sabia o suficiente de espanhol para traduzi-la: Praça da Fraternidade.
De certa forma, duvidava de que pudesse encontrar muita fraternidade por
ali.
Um homem gordo, usando um terno de linho velho e sujo, de repente
cambaleou até ele.
— Quer charutos? Os melhores charutos de Havana. Mas a preços muito,
muito baixos.
Nisso, apareceu outro homem.
— Ei, amigo! Compre uma camiseta...
E mais outro.
— Muchacho! Traga os seus pais para o meu bar.
Antes que percebesse, Alex já estava cercado. Percebeu o quanto devia
se sobressair naquela multidão de gente morena, tropical, que circulava de
camisas de cores vivas e chapéus de palha. Ele estava com calor e com se‐
de. Olhou em volta à procura de um lugar onde pudesse beber alguma coisa.
Foi quando viu Carver e Troy. Os dois agentes especiais estavam senta‐
dos a uma mesa redonda de ferro fundido, diante de um dos restaurantes
mais belos, à sombra de uma imensa videira que se espalhava e se inclinava
por sobre a parede esburacada. Acima deles, pendia um letreiro de neon,
anunciando charutos Montecristo. Estavam com um homem, um habitante
da ilha, obviamente envolvidos na conversa. Os três bebiam. Alex se apro‐
ximou deles, imaginando se conseguiria ouvir o que diziam.
O homem com quem eles conversavam aparentava ter uns 70 anos e usa‐
va uma camisa escura, calças largas também escuras e boina. Fumava um
cigarro que parecia lhe ter sido enfiado nos lábios, levando a pele junto.
Rosto, braços e pescoço haviam sido castigados pelo sol e ficado cheios de
rugas. Porém, ao se aproximar, Alex viu o brilho e a força nos olhos do ve‐
lho homem. Troy disse alguma coisa e o homem riu, ergueu o copo com a
mão que era só osso e bebeu o conteúdo de uma vez só. Esfregou as costas
da mão na boca, disse alguma coisa e foi embora. Alex chegara tarde de‐
mais para bisbilhotar a conversa. Resolveu deixar que o vissem.
— Alex! — como sempre, Carver parecia contente em vê-lo, mas Troy
mal conseguiu fingir um breve sorriso.
— Oi, mãe — Alex sentou-se sem ser convidado. — Será que dá para
pedir uma bebida?
— O que você está fazendo aqui? — perguntou Troy. — Dissemos que
você devia ficar no hotel.
— Pensei que fossem férias de família — disse Alex. — E, de qualquer
forma, terminei de vasculhar o hotel hoje pela manhã. Não há nenhuma ar‐
ma nuclear por lá, caso queiram saber...
Carver o olhou fixamente. Troy olhou em volta, nervosa.
— Fale baixo! — disse ela, rispidamente, como se alguém pudesse ouvi-
lo em meio ao barulho da praça.
— Vocês mentiram — disse Alex. — Seja qual for o motivo de estarem
aqui, não é apenas para espionar o general Sarov. Por que não me dizem do
que se trata?
Houve um longo silêncio.
— O que você quer beber? — perguntou Carver.
Alex olhou para o copo dele. Continha um líquido amarelo clarinho que
parecia gostoso.
— O que você está bebendo? — perguntou.
— Um mojito. É uma especialidade daqui. Uma mistura de rum, suco de
limão, gelo picado, água com gás e hortelã.
— Parece bom. Quero um desses. Mas sem o rum.
Carver chamou o garçom e falou rapidamente em espanhol. O garçom
assentiu e saiu apressado. Carver se voltou para Alex.
— Tudo bem, Alex — disse ele. — Vamos lhe contar o que você quer sa‐
ber.
— É contra as ordens! — disse Troy.
Pela primeira vez, Carver repreendeu sua parceira.
— Pelo amor de Deus, Belinda, deixe o garoto em paz! — disse ele. —
Por que você tem que pegar tão pesado com ele o tempo todo?
— Eu já disse que... — começou ela.
— Ah, está certo — Carver interrompeu. — Mas o Alex está aqui! E, se
não fosse por ele, eu não estaria aqui! E ele obviamente já sabe sobre o vi‐
deogame.
— O medidor Geiger, você quer dizer? — disse Alex.
Carver balançou a cabeça confirmando.
— Sim, é exatamente isso. E é esse o motivo de estarmos aqui.
Ele ergueu o copo e tomou um gole. Depois continuou:
— Imagino que o sr. Byrne não queria que você soubesse disso porque
não queria assustá-lo.
— Quanta gentileza dele.
— E Belinda tem razão. Tínhamos ordem de não lhe contar! Mas, de
qualquer forma, agora que você já descobriu, deve também saber do resto.
Acreditamos que exista um dispositivo nuclear escondido nesta ilha.
— O general Sarov? Acham que ele tem uma bomba atômica?
— Não deveríamos fazer isso — murmurou Troy.
Carver a ignorou.
— Está acontecendo alguma coisa aqui, na Ilha do Esqueleto — continu‐
ou. — Não sabemos o quê, mas, se você quer saber a verdade, isso realmen‐
te me assusta. Em poucos dias, Boris Kiriyenko, o presidente russo, chegará
para passar férias de duas semanas. Isso não é lá tão importante. Ele conhe‐
ceu Sarov há muito tempo. Passaram a infância juntos. E não é que os rus‐
sos ainda sejam nossos inimigos.
Alex já sabia de tudo isso. Foi o que Blunt lhe contara em Londres.
— No entanto, recentemente, e por uma grande coincidência, Sarov des‐
pertou a nossa atenção. Belinda e eu estávamos investigando o Vendedor. E
descobrimos que, entre outras coisas que ele vendia, conseguira um quilo de
urânio enriquecido, contrabandeado do Leste Europeu. Pode não parecer al‐
go tão importante, mas esse é hoje um dos maiores pesadelos enfrentados
pelos serviços de segurança: a venda de urânio. No entanto, ele vendeu, e,
como se não bastasse, a pessoa para quem ele vendeu...
— É Sarov — Alex completou a frase.
— Sim. Um avião pousou na Ilha do Esqueleto e nunca voltou. Sarov es‐
tava lá para aguardá-lo. — Carver fez uma pausa. — E agora, de repente,
temos o encontro entre esses dois homens: o general e o novo presidente, e
pode haver uma bomba atômica nesse cenário. Logo, não se surpreenda ao
ouvir que há um monte de gente preocupada em Washington. É por isso que
estamos aqui.
Aos poucos, Alex assimilou o que ouvia. Por dentro, estava fervilhando.
Blunt lhe prometera duas semanas ao sol. No entanto, parecia que ele fora
enviado para a linha de frente da Terceira Guerra Mundial.
— Se é uma bomba, o que Sarov planeja fazer com ela? — perguntou
Alex.
— Se soubéssemos, não estaríamos aqui! — disse Troy asperamente.
E, de repente, Alex compreendeu algo que deveria ter percebido desde o
início. Ela estava com medo. Tentava não demonstrar, mas ele pôde ver que
ela estava apavorada.
— O nosso trabalho é encontrar o material nuclear — disse Carver.
— Com o medidor Geiger.
— Sim. Precisamos entrar na Casa de Oro e procurar por lá. Era sobre is‐
so que conversávamos agora há pouco.
— Quem era ele? O sujeito que estava com vocês.
Carver deu de ombros. Já dera tantas informações que não fazia sentido
parar agora.
— O nome dele é Garcia. Ele é um dos nossos trunfos.
— Trunfos?
— Isso significa que ele trabalha para nós — Troy explicou. — Nós o
pagamos há anos para nos manter informados e nos ajudar quando estamos
aqui.
— Ele tem um barco — continuou Carver. — Demos uma olhada e só
existe um jeito de entrar na Casa de Oro, e é pelo mar. A casa foi construída
em uma espécie de patamar bem na ponta da ilha. É um antigo canavial.
Costumavam cultivar cana-de-açúcar, e há um engenho antigo que ainda
funciona. De qualquer forma, só há uma estrada que leva até lá, bem estrei‐
ta e ladeada por um precipício que dá para o mar. Há seguranças e um por‐
tão. Jamais conseguiríamos entrar por ela.
— Mas de barco... — Alex começou a falar.
— Não de barco... — Carver hesitou, pensando se devia ou não continu‐
ar. Olhou para Troy, e dessa vez ela balançou a cabeça concordando.
Carver prosseguiu.
— Vamos usar equipamento de mergulho. Veja, Alex, nós sabemos de al‐
go que Sarov pode não saber. Há um caminho que leva até a propriedade,
além dos pontos controlados pela segurança dele. É uma falha geológica,
um fosso por dentro do penhasco que vai do topo até a base.
— Vocês vão escalá-lo?
— Há grampos de metal. A família de Garcia está na ilha há séculos e
conhece cada centímetro do litoral. Ele jura que a escada ainda está no lu‐
gar. Trezentos anos atrás, ela era usada por contrabandistas, que iam escon‐
didos da fazenda até a costa. Havia uma caverna na parte de baixo. O fosso,
que eles chamam de Chaminé do Diabo, vai até o topo e sai em algum lugar
no jardim. É por ali que vamos entrar.
— Espere aí — Alex estava confuso. — Vocês disseram que vão usar
equipamento de mergulho.
Troy assentiu.
— O nível da água subiu ao redor de toda a ilha, e a entrada da caverna
agora está submersa. Está a cerca de nove metros de profundidade. Mas isso
é ótimo para nós. A maior parte das pessoas já esqueceu que a caverna exis‐
te. Certamente, não é vigiada. Mergulharemos com o equipamento. Depois,
subiremos a escada e chegaremos ao solo. Então, vasculharemos o lugar.
— E se acharem a bomba?
— Não será problema nosso, Alex. O nosso serviço estará terminado.
O garçom chegou com a bebida. Alex pegou o copo. Só a sensação do
gelado na pele já lhe deu um alívio. Bebeu um pouco. Era doce e surpreen‐
dentemente refrescante. Pousou o copo.
— Quero ir com vocês — disse o garoto.
— Esqueça! De jeito nenhum! — Troy parecia incrédula. — Olhe, Alex,
me desculpe. Talvez estivesse errada a seu respeito, mas ainda assim prefe‐
riria você fora disso. Não quero que se machuque. E se lhe acontecer algu‐
ma coisa? Seja lá o que o Glen possa pensar, você é apenas um garoto e eu
não poderia lidar com isso pelo resto da vida. Essa operação pode ser muito
perigosa, e você não vai entrar com a gente naquele barco!
— Pode ser até mais perigoso se me deixarem aqui sozinho — Alex in‐
sistiu. — Talvez tenham esquecido, mas devemos parecer uma família em
férias. Se me largarem sozinho no hotel pela segunda vez, talvez alguém
note. Talvez comecem a perguntar onde é que vocês estão.
Carver ficou dedilhando o colarinho da camisa. Troy desviou o olhar.
— Não vou atrapalhar a vida de vocês — suspirou Alex. — Não estou
pedindo para mergulharmos juntos. Nem para escalar. Só quero estar com
vocês lá. Pensem um pouco. Se nós três formos juntos, parecerá mais um
passeio em família.
Carver balançou a cabeça devagar.
— Até que ele tem razão.
Troy pegou a bebida e olhou para dentro do copo, com cara de mau hu‐
mor, como se tentasse encontrar ali uma resposta.
— Está bem — disse ela.
Ela parecia triste, quase derrotada. Alex sabia que ela estava indo contra
os próprios princípios.
— Mas, por favor, Alex, me prometa. Depois disso, você ficará fora do
nosso caminho.
— Como quiser — retrucou Alex. Conseguira o que tanto queria, mas te‐
ve que se perguntar por que, afinal, quisera aquilo. Se lhe dessem escolha,
preferiria pegar o primeiro avião que saísse da ilha e ficar o mais longe pos‐
sível da CIA, de Sarov e de toda aquela gente.
No entanto, não tivera essa alternativa. Tudo o que Alex sabia era que
não queria ficar sozinho no hotel se preocupando. Se realmente havia uma
bomba em algum lugar naquela ilha, ele queria ser o primeiro a receber a
notícia. E ainda tinha outra coisa: Carver e Troy pareciam muito confiantes
com essa Chaminé do Diabo. Presumiam que não era vigiada e que os leva‐
ria até o topo. Mas também estavam bastante confiantes quando foram à
festa de aniversário do Vendedor. E aquilo quase levou Carver à morte.
Alex terminou a bebida.
— Muito bem — disse. — E então, quando partimos?
Carver tirou a carteira e pagou a conta.
— Não há o que esperar, Alex — falou. — Vamos hoje à noite.
10
A CHAMINÉ DO DIABO

ERA FIM DE TARDE quando partiram de Puerto Madre, deixando para


trás o porto com seu mercado de peixe e suas lanchas de turismo. Carver e
Troy iam mergulhar enquanto ainda houvesse luz do dia. Encontrariam a
caverna, aguardariam o pôr do sol, e depois subiriam para a Casa de Oro,
protegidos pela escuridão. Esse era o plano.
O tal sujeito chamado Garcia tinha um barco que já conhecia o mar até
demais. Saiu do ancoradouro rangendo e fazendo uns estouros, deixando
um rastro de fumaça preta fedorenta. A ferrugem aparecera e se propagara
por todo lado como se fosse uma doença de pele terrível. O barco não tinha
nenhum nome visível. Algumas bandeiras tremulavam no mastro, mas não
passavam de trapos tão desbotados que não guardavam nenhum traço de su‐
as cores originais. Havia seis cilindros de ar atados a um banco sob um tol‐
do. Era o único equipamento novo à vista.
Garcia cumprimentara o garoto com um misto de hostilidade e desconfi‐
ança. Depois conversou bastante com Carver, em espanhol. Alex passara
boa parte de um ano com o tio em Barcelona, e entendia o idioma o sufici‐
ente para acompanhar o que os homens diziam.
— Você nunca mencionou um garoto. O que você acha que é isto aqui?
Uma excursão turística? Quem é ele? Por que o trouxe?
— Não é da sua conta, Garcia. Vamos embora...
— Você pagou para dois passageiros — Garcia ergueu dois dedos franzi‐
dos, deixando à mostra cada osso e cada tendão. — Dois passageiros... foi o
que combinamos.
— Você está sendo muito bem pago. Não há o que discutir. O Alex vai
conosco e o assunto está encerrado.
Depois disso, Garcia ficou em silêncio e mal-humorado. Não que pudes‐
se conversar muito, de qualquer maneira. O barulho do motor era alto de‐
mais. Se alguém quisesse falar, teria que ser aos gritos.
Alex observou o litoral de Cayo Esqueleto passar. Teve que reconhecer
que Blunt estava certo: a ilha era exoticamente bela com suas cores inten‐
sas, vibrantes, e lotes de palmeiras separados do mar por uma faixa resplan‐
decente de areia branca. O sol, um círculo perfeito, pairava sobre o horizon‐
te. Um pelicano marrom, desengonçado e até mesmo cômico enquanto pou‐
sado, alçou voo de um pinheiro e passou gracioso sobre o barco. Alex sen‐
tiu uma tranquilidade fora do comum. Até o barulho do motor parecia ter
desaparecido.
Após meia hora, a ilha começou a se elevar, e ele percebeu que haviam
chegado à extremidade ao norte da ilha. A vegetação ficara para trás e, de
repente, ele olhava para uma parede de rocha lisa que ia, sem interrupção,
direto até o mar. Devia ser o istmo do qual lhe falaram, com a estrada que
levava à Casa de Oro em algum lugar no topo. Não havia sinal da casa e, ao
esticar o pescoço, Alex conseguiu apenas distinguir a cúpula de uma torre,
branca e elegante, com telhado gótico de telha vermelha. Era uma torre de
vigia. Mal se distinguia uma figura, sozinha, parada em uma arcada: ela não
passava de um ponto. Por algum motivo, Alex percebeu que se tratava de
um guarda e que estava armado.
Garcia desligou o motor e foi para a parte de trás do barco. Parecia muito
ágil para um homem da sua idade. Pegou a âncora e a lançou pela lateral.
Em seguida, hasteou uma bandeira — esta mais facilmente identificável do
que as outras. Tinha uma listra branca diagonal sobre um fundo vermelho.
Alex reconheceu o símbolo internacional de mergulho.
Troy se aproximou dele.
— É aqui que você fica — disse ela. — Vamos pular aqui, descer a trinta
pés de profundidade e chegar até a costa.
Alex olhou para a figura na torre. A luz do sol refletiu em algo. Binócu‐
los?
— Acho que estamos sendo observados — disse ele.
Troy balançou a cabeça concordando.
— É. Mas não tem importância. Essa área não é permitida para barcos de
mergulho, mas às vezes eles aparecem mesmo assim. Os guardas estão
acostumados. O litoral é estritamente vetado, mas há restos de um naufrágio
em algum lugar... e as pessoas mergulham atrás disso. Estaremos bem, des‐
de que não chamemos a atenção. Você não vai ficar nervoso aqui sozinho e
acabar fazendo alguma bobagem, não é, Alex?
Pela primeira vez ela pareceu falar em um tom autenticamente amigo.
Alex assentiu.
— Vou ficar bem.
Carver já estava sem camisa, mostrando o peito musculoso e sem pelos.
Alex o observou tirar a roupa e ficar só de calção, depois vestir o traje de
mergulho que pegara em uma pequena cabine sob o convés. Rapidamente,
os dois agentes da CIA se aprontaram, prendendo os cilindros por cima do
colete de flutuação — BCD —, e colocando pés de pato, cintos com os pe‐
sos, máscaras e tubos de respiração. Garcia fumava imóvel, sentado em um
dos bordos do barco e observava entretido, sem dizer nada, como se aquilo
não tivesse nenhuma relação com ele.
Enfim, estavam prontos. Carver trouxera uma bolsa à prova de água.
Abriu o zíper. Alex viu o console de videogame dentro de um saco plástico
fechado. Havia também mapas, tochas, facas e um arpão de pesca submari‐
na.
— Deixe tudo aqui, Carver — disse Troy.
— O videogame...?
— Voltaremos para buscá-lo — Troy se voltou para Alex. — Vamos fa‐
zer um mergulho exploratório para começar. Deve levar uns vinte minutos.
Não mais que isso. Precisamos encontrar a entrada da caverna e ter certeza
de que não existem dispositivos de segurança instalados.
Ela olhou para o relógio. Eram apenas 18h30.
— O sol só vai se pôr daqui a uma hora — continuou ela. — Não quere‐
mos ficar todo esse tempo na caverna. Portanto, voltaremos ao barco para
buscar o resto do equipamento, trocar os cilindros e depois faremos outra
viagem. Não precisa se preocupar com nada. Para as pessoas que vivem no
lugar, somos apenas turistas mergulhando ao pôr do sol.
— Se acontecer alguma coisa, fiz curso de mergulho — disse Alex.
Troy sorriu.
— Ficaria surpresa se não tivesse feito — disse ela. — Mas estou falan‐
do sério, Alex. Aconteça o que acontecer, fique no barco com o Garcia.
Os dois agentes fizeram a checagem indispensável, cada qual conferindo
o equipamento do outro. Não havia tubos torcidos. Havia ar nos tanques.
Pesos e escapes. Por fim, foram até a borda do barco e sentaram de costas
para o mar. Carver fez para Troy o sinal de OK: o indicador e o polegar for‐
mando um O, com os outros dedos erguidos. Baixaram as máscaras e rola‐
ram para trás, desparecendo no mar imediatamente.
Foi a última vez que Alex viu os dois com vida.
Ficou sentado com Garcia no barco, que balançava com suavidade. O sol
estava quase tocando o horizonte, e surgiram no céu algumas nuvens de um
vermelho intenso. O ar era morno e agradável. Garcia tragou o cigarro e a
ponta brilhou.
— Você é americano? — perguntou de repente, falando em inglês.
— Não. Sou inglês.
Pela primeira vez desde que chegara a Cayo Esqueleto, Alex não se pre‐
ocupara em imitar o acento americano.
— Por que você está aqui? — Garcia sorriu como se estivesse contente
de estar sozinho no mar com um garoto inglês.
— Não sei — respondeu Alex, encolhendo os ombros. — E o senhor?
— Dinheiro — só essa palavra já bastava.
O barco rangeu. Surgiu uma brisa que fazia tremular as bandeiras. O sol
estava se pondo rápido, e agora todo o céu se tingia de um vermelho san‐
gue. Alex olhou para o relógio. Dez para as sete. Os 20 minutos passaram
depressa. O garoto percorreu com os olhos a superfície do mar, mas não ha‐
via nem sinal de Carver e Troy.
Mais cinco minutos se passaram. Alex estava começando a ficar inquie‐
to. Não conhecia bem os dois agentes, mas imaginava que fossem pessoas
que sempre seguiam as regras. Tinham os seus procedimentos próprios e, se
disseram que seriam 20 minutos, deveriam ser 20 minutos. Estavam debai‐
xo da água havia 25 minutos. É claro, tinham oxigênio suficiente para uma
hora. Mesmo assim, Alex se perguntava por que demoravam tanto.
Quinze minutos depois, ainda não haviam retornado. Alex não conseguia
disfarçar o temor. Andava pelo convés, olhando para a esquerda e para a di‐
reita, procurando bolhas que indicariam que eles estavam vindo à tona, na
expectativa de ver seus braços e pernas emergirem cortando a superfície da
água. Garcia não se mexera. Alex achava que o velho nem estava acordado.
Haviam-se passado exatamente 40 minutos desde que Carver e Troy tinham
submergido.
— Tem alguma coisa errada — disse Alex.
Garcia não respondeu.
— O que vamos fazer?
Garcia continuou calado, e Alex começou a se enfurecer.
— Eles não tinham um plano alternativo? O que lhe disseram que fizes‐
se?
— Eles me disseram para esperar — Garcia abriu os olhos. — Espero
uma hora. Espero duas horas. Espero a noite toda...
— Mas dentro de dez ou quinze minutos eles vão ficar sem oxigênio!
— Talvez eles entrem na Chaminé do Diabo. Talvez até subam!
— Não. O plano não era esse. E, de qualquer forma, deixaram todo o
equipamento aqui.
De repente, Alex tomou uma decisão. Não importava o que Troy dissera.
Ele não podia simplesmente ficar ali sentado esperando.
— O senhor tem mais equipamento de mergulho? Outro colete de flutua‐
ção?
Garcia olhou surpreso para Alex. Depois, lentamente fez que sim com a
cabeça.
Cinco minutos depois, Alex estava em pé no convés, só de calção e ca‐
miseta, com um cilindro de oxigênio preso às costas e dois respiradores —
um para usar, outro de reserva — pendendo ao lado. Teria preferido vestir
uma roupa de mergulho, mas não conseguira encontrar uma do seu tama‐
nho. Só podia torcer para que a água não estivesse muito fria. O colete de
flutuação que usava era velho e grande demais, mas o testara, e ele ao me‐
nos funcionava. Olhou para o painel de instrumentos: medidor de pressão,
medidor de profundidade e bússola. Tinha três mil psi (que é a sigla em in‐
glês para pounds per square inch, ou libras por polegada quadrada) no tan‐
que de ar. Era mais do que precisaria. E, para completar, o garoto levava
uma faca amarrada à perna. Provavelmente não a usaria, nem precisaria de‐
la em uma situação normal. Mas era bom se garantir. Foi até a borda da em‐
barcação e sentou-se.
Garcia balançou a cabeça em sinal de desaprovação. Alex sabia que o ve‐
lho tinha razão. Estava prestes a desobedecer a regra mais essencial do uni‐
verso dos mergulhadores: nunca mergulhar sozinho. Aprendera a mergulhar
com o tio quando tinha 11 anos e, se Ian Rider estivesse ali agora, teria fica‐
do sem palavras de tanta raiva e incredulidade. Se acontecer algum proble‐
ma — um tubo de ar dobrado ou uma válvula com defeito — e o mergulha‐
dor não tiver um parceiro, é morte certa. Simples assim. Mas era uma emer‐
gência. Carver e Troy haviam mergulhado 45 minutos atrás. Alex tinha que
socorrê-los.
— Leve isto — disse Garcia, de repente.
Ele segurava um computador de mergulho antiquado, que Alex poderia
usar. O aparelho diria a que profundidade e por quanto tempo o garoto esta‐
va submerso.
— Obrigado — disse Alex. Pegou o aparelho e colocou-o no pulso.
Baixou a máscara, colocou o bocal do respirador entre os lábios e respi‐
rou fundo. Sentiu a mistura de oxigênio e nitrogênio entrar rápido no fundo
da garganta. Tinha um leve gosto de mofo, mas sabia que não estava conta‐
minado. Cruzou as mãos, segurando a máscara e o respirador no lugar, de‐
pois rolou para trás. Sentiu o braço bater em alguma coisa na beirada do
barco logo que o mundo virou de cabeça para baixo. A dor da pancada no
braço logo aliviou à medida que a água o acolheu rapidamente, e depois sua
visão se dividiu, como se uma cortina se abrisse enquanto ele sentia o corpo
afundar.
Deixara ar suficiente no colete para que o mantivesse flutuando e deu
uma última olhada para conferir a sua localização em relação à costa, pois
assim saberia para onde nadar e, ainda mais importante, como voltar. Ao
menos a água do mar ainda estava morna, embora Alex soubesse que, com
o sol se pondo rapidamente, não ficaria morna por muito tempo. O frio é
um inimigo perigoso dos mergulhadores, pois prejudica a força e a concen‐
tração. Quanto mais profundo ele mergulhasse, mais frio ficaria. Não podia
perder tempo. Soltou o ar do colete de flutuação. Imediatamente os pesos
começaram a puxá-lo para baixo. O mar ser ergueu e o engoliu.
Alex mergulhou direto para baixo, apertando as narinas e soprando forte
— “equalizando” — para atenuar a dor nos ouvidos. Pela primeira vez, con‐
seguiu olhar em volta. Ainda havia luz solar suficiente para iluminar a água
do mar. Conteve a respiração, maravilhado com a beleza sempre extraordi‐
nária do mundo submarino. A água era azul-escura e totalmente transparen‐
te. Havia algumas formações de corais salpicadas ao redor dele, de formas e
cores muito distintas de tudo o que se possa encontrar em terra firme. Sen‐
tiu uma paz intensa, com o som da própria respiração que lhe ecoava nos
ouvidos e a cada expiração soltava uma cascata de bolhas prateadas. Com
os braços cruzados soltos sobre o peito, Alex se deixou impulsionar pelos
pés de pato em direção à costa. Estava a pouco mais de doze metros de pro‐
fundidade, e a uns cinco metros acima do fundo do mar. Uma família de ga‐
roupas de cores bem vivas passou nadando por ele: lábios grossos, olhos es‐
bugalhados e corpos estranhos de cores estranhas. Horrendas e belas ao
mesmo tempo. Já fazia um ano desde a última vez que Alex mergulhara e
desejou ter tempo para curtir aquilo. Impulsionou-se para frente. As garou‐
pas dispararam assustadas.
Não demorou muito para alcançar a beirada do penhasco. A encosta no
mar era, é claro, muito mais que uma encosta — era uma massa de rocha,
coral, vegetação e vida marinha efervescente. Era algo vivo. Imensas gorgô‐
nias — seres que são como leques, compostos de milhares de pequenos es‐
queletos — balançavam lentamente de um lado para o outro. Aglomerados
de corais explodiam em cores brilhantes à sua volta. Um cardume de uns
mil peixinhos prateados passou tremeluzindo. Viu um movimento deslizan‐
te quando uma moreia se escondeu atrás de uma rocha. Alex olhou para o
computador de mergulho em seu pulso. Pelo menos, parecia estar funcio‐
nando. Mostrou-lhe que estava submerso havia sete minutos.
Precisava encontrar a entrada da caverna. Era para isso que estava ali.
Esforçou-se para ignorar as cores e paisagens do reino submarino e se con‐
centrar na parede de rocha. O tempo que gastara, antes de mergulhar, para
se localizar em relação à costa tinha valido a pena. Ele sabia mais ou menos
onde ficava a torre da Casa de Oro e nadou naquela direção, mantendo a pa‐
rede de rocha à sua esquerda. Alguma coisa comprida e escura passou rápi‐
do acima dele. Alex a viu pelo canto do olho, mas, quando virou a cabeça,
ela já desaparecera. Desceu mais alguns metros. Onde estaria a caverna?
Afinal, não foi difícil encontrá-la. A entrada era arredondada como uma
boca escancarada. Essa impressão se intensificou quando Alex nadou mais
para perto e olhou para dentro. A gruta não estivera sempre submersa e, du‐
rante um período — milhões de anos —, formaram-se estalactites e estalag‐
mites, que pareciam lanças afiadas pendendo do teto ou brotando do chão.
Como sempre, Alex não conseguiu se lembrar de quais eram as estalactites
e quais eram as estalagmites. No entanto, mesmo a uma boa distância, havia
algo de ameaçador naquele lugar. Era como olhar para dentro da boca aber‐
ta de um monstro submarino gigantesco. Ele quase conseguia imaginar as
estalactites e estalagmites se fechando em uma mordida, engolindo-o.
Mas ele precisava entrar. A caverna não era muito profunda e, exceto pe‐
las formações rochosas, estava vazia, revelando um amplo chão de areia.
Ficou satisfeito com isso. Seria realmente uma loucura entrar muito fundo
em uma caverna submersa, ao pôr do sol e sozinho. Da entrada, pôde enxer‐
gar a parede do fundo — e lá estavam os primeiros degraus metálicos! Ti‐
nham agora uma cor vermelho-escuro e estavam cobertos de limo verde e
coral, mas claramente haviam sido produzidos por mãos humanas. Subiam
por toda a parede e presumivelmente continuavam por toda a Chaminé do
Diabo. Nem sinal de Carver e Troy. Afinal, será que os dois agentes tinham
decidido subir? E será que Alex devia subir para tentar encontrá-los?
Estava prestes a seguir em frente quando notou outro movimento quase
fora do seu campo de visão. A coisa que ele avistara, fosse o que fosse, ago‐
ra estava voltando pelo outro lado. Surpreso, Alex olhou para cima. E ficou
petrificado. Na verdade, sentiu o ar parar no fundo da garganta. As últimas
bolhas de ar saíram em perseguição umas às outras até a superfície. Ele per‐
maneceu imóvel, lutando para se controlar. Queria gritar. Mas é impossível
gritar debaixo da água.
O garoto olhava para um tubarão-branco de no mínimo três metros de
comprimento, circulando acima dele. Aquela visão era tão irreal, tão abso‐
lutamente chocante, que a princípio Alex quase não acreditou no que seus
olhos viam. Tinha que ser uma ilusão de óptica, uma espécie de truque. O
próprio fato de o bicho estar tão próximo dele já parecia algo impossível de
acontecer. Olhou para o ventre branco, os dois pares de nadadeiras, a boca
em forma de meia-lua voltada para baixo com seus dentes serrilhados e afi‐
ados como uma navalha. E lá estavam os mortíferos olhos redondos, mais
pretos e diabólicos do que qualquer coisa neste planeta. Será que eles já o
tinham visto?
Alex se forçou a respirar. O coração pulsava forte. Não só o coração — o
corpo todo. Podia ouvir a própria respiração dentro da cabeça, como se esti‐
vesse amplificada. Suas pernas pendiam inertes sob o corpo, recusando-se a
fazer qualquer movimento. Estava aterrorizado. Essa era a mais pura verda‐
de. Nunca estivera tão apavorado em toda a vida.
O que ele sabia sobre tubarões? Será que o tubarão-branco iria atacá-lo?
O que ele podia fazer? Desesperado, Alex tentou se lembrar do pouco co‐
nhecimento que tinha.
Havia 350 espécies de tubarão conhecidas, mas sabia-se que apenas al‐
gumas atacavam pessoas. O grande tubarão-branco era sem dúvida uma de‐
las, o que não era nada bom. Mas ataques de tubarão são muito raros. Ape‐
nas uma centena de pessoas morre nesses ataques a cada ano, muito menos
do que em acidentes de carro. Por outro lado, as águas de Cuba eram notori‐
amente perigosas. O tubarão estava sozinho...
...fazendo círculos em volta dele, como se escolhesse o melhor momen‐
to...
...e podia não tê-lo visto. Não. Isso era impossível. Os olhos do tubarão
são dez vezes mais sensíveis que os do homem. Mesmo na mais completa
escuridão, conseguem enxergar a mais de seis metros de distância. E, de
qualquer forma, o tubarão nem precisa dos olhos, pois possui receptores no
focinho capazes de detectar a mais insignificante corrente elétrica. Um co‐
ração pulsante, por exemplo.
Alex tentou se obrigar a ficar calmo. Seu coração gerava pequenas quan‐
tidades de eletricidade. O terror que sentia atrairia a criatura até ele. Ele pre‐
cisava se acalmar!
O que mais? Não se debater. Não fazer movimentos bruscos. Os conse‐
lhos dados por Ian Rider vieram ecoando pelo tempo. O tubarão é atraído
por objetos metálicos brilhantes, por roupas de cores vibrantes e por sangue
fresco. Alex virou a cabeça bem devagar. O cilindro de oxigênio fora pinta‐
do de preto. Sua camiseta era branca. Não havia sangue. Havia?
Virou as mãos, para se examinar. E foi aí que viu. No braço esquerdo, lo‐
go acima do pulso. Havia um corte pequeno. Não o notara até aquele mo‐
mento, mas agora se lembrava de ter batido o braço na borda do barco
quando rolou de costas para mergulhar. Uma pequena quantidade de san‐
gue, mais marrom do que vermelha, saía do ferimento e subia sendo levada
pela água.
Era uma quantidade pequena, porém suficiente. O tubarão é capaz de fa‐
rejar uma gota de sangue em uma centena de litros de água. Quem lhe ensi‐
nara isso? Alex esquecera, mas sabia que era verdade. O tubarão o fareja‐
ra...
...e ainda o farejava, e se aproximava lentamente...
Os círculos iam ficando menores. As nadadeiras do tubarão estavam para
baixo. O dorso arqueado. E os movimentos dele tinham um padrão estra‐
nho, irregular. Segundo os livros, eram os três indícios de um ataque imi‐
nente. Alex sabia que tinha apenas poucos segundos entre a vida e a morte.
Devagar, tentando não provocar nenhuma agitação na água, estendeu a mão
para baixo. A faca ainda estava ali, amarrada à perna, e ele a desprendeu
com todo o cuidado. A arma era pequena para o volume do grande tubarão-
branco, e a lâmina parecia patética se comparada àqueles dentes odiosos.
Mas Alex sentiu-se melhor com ela na mão. Ao menos era alguma coisa.
Olhou em volta. Com exceção da caverna, não havia onde se esconder —
e a caverna seria inútil. A entrada era grande demais. Se entrasse, o tubarão
simplesmente o seguiria. Mas, mesmo assim, se conseguisse chegar até a
escada, poderia tentar subir. Isso o tiraria da água — pela Chaminé do Dia‐
bo — e o levaria até a superfície. Era verdade que sairia no meio da Casa de
Oro. Mas, por mais maligno que fosse o general Sarov, não podia ser pior
que o tubarão.
Estava decidido. Devagar, mantendo o tubarão no seu campo de visão,
começou a se mover em direção à entrada da caverna. Por um instante,
achou que o tubarão perdera o interesse por ele. Parecia estar se afastando.
Mas então percebeu que fora enganado. A criatura se virou e, como que lan‐
çada por uma arma, moveu-se muito rápido na água, investindo direto con‐
tra ele. Alex mergulhou para baixo, com o ar explodindo para fora dos pul‐
mões. Havia uma pedra em um dos lados da entrada da caverna e ele tentou
se enfiar no canto, por trás da pedra, deixando a pedra entre ele e o animal.
E funcionou. O tubarão fez uma volta para desviar. Naquele instante, Alex
arremeteu o corpo para frente com a faca. Sentiu o braço estremecer quando
a lâmina penetrou a pele grossa do animal, bem abaixo das duas nadadeiras
dianteiras. No momento em que o tubarão se afastou, Alex viu que ele esta‐
va deixando um rastro que parecia de uma fumaça marrom. Era sangue.
Mas ele sabia que mal o havia ferido. Foi como se tivesse lhe dado uma pi‐
cada, nada mais que isso. E provavelmente deixara o animal furioso, o que
o tornaria ainda mais determinado.
E, o que era pior, ele próprio sangrava mais. Na tentativa de escapar, ba‐
tera no coral, cortando a camiseta e ferindo as costas. Alex não sentia dor,
essa só viria mais tarde. Mas agora já estava feito. Conseguira chamar a
atenção para si: jantar fresco e sangrento. Era um milagre que uma dúzia de
amigos ainda não tivessem se juntado ao grande tubarão-branco.
Ele precisava entrar na caverna. O tubarão estava a alguma distância,
mais afastado. A entrada da caverna ficava poucos metros à esquerda de on‐
de ele estava. Com dois ou três movimentos ele conseguiria entrar — de‐
pois, passaria pelas estalactites e estalagmites para chegar à escada. Conse‐
guiria fazer tudo isso a tempo?
Alex deu o impulso com toda a força. Ao mesmo tempo, agitava as mãos
e praguejou em silêncio quando acabou deixando a faca cair acidentalmen‐
te. Bom, não serviria para nada mesmo. Deu o impulso pela segunda vez. A
entrada da caverna se agigantou à sua frente. Estava agora diante dela, mas
não dentro...
E ele demorara demais! O tubarão investiu violentamente na direção de‐
le. Os olhos pareciam ter aumentado. A boca se escancarava num esgar que
continha todo o ódio do mundo, com os dentes apavorantes cortando a
água. Alex deu um solavanco para trás, dobrando a coluna. Por poucos cen‐
tímetros, o tubarão não conseguiu atingi-lo. Ele sentiu o turbilhão de água
empurrá-lo para longe da caverna, que era sua única chance. Agora nem im‐
portava muito, porque o tubarão estava na caverna e se virava para atacá-lo
outra vez. E, dessa vez, o bicho não se confundiria com a parede de rocha e
as pedras. Dessa vez, Alex ficaria bem diante dele.
E então aconteceu. Alex ouviu um zunido metálico e, diante dos seus
olhos, as estalagmites se ergueram do chão e as estalactites baixaram do te‐
to, como dentes metálicos espetando o tubarão, não apenas uma vez, mas
cinco ou seis. O sangue se espalhou pela água. Alex viu aqueles olhos terrí‐
veis chicoteando de um lado para o outro. Quase podia imaginar a criatura
urrando de dor. Estava completamente presa, como que apanhada pelas
mandíbulas de um monstro ainda mais apavorante do que ela própria. Como
aquilo acontecera? Alex ficou inerte na água, chocado e sem entender nada.
Aos poucos, o sangue foi se dissipando. E então ele compreendeu.
Pela segunda vez, Carver e Troy haviam se enganado. Sarov sabia da
Chaminé do Diabo e dera um jeito de garantir que ninguém conseguisse
chegar lá a nado através da caverna. As estalagmites e estalactites eram fal‐
sas. Feitas de metal, não de pedra, estavam montadas sobre uma espécie de
mola hidráulica. Ao entrar nadando na caverna, o tubarão teria ativado um
raio infravermelho, que, por sua vez, disparou a armadilha. Enquanto ele
ainda olhava, as lanças mortais se retraíram, deslizando de volta para o chão
e para o teto. Houve outro zunido, o corpo do tubarão foi sugado para den‐
tro da caverna e desapareceu. O lugar tinha até um sistema de remoção!
Alex começava a entender o caráter do homem que vivia na Casa de Oro.
Uma coisa era certa: Sarov não corria riscos.
Agora Alex sabia o que acontecera aos dois agentes da CIA. Sentiu-se
nauseado. Só queria sair dali. Não só da água, mas do país. Desejou nunca
ter vindo.
Ainda havia muito sangue na água. Alex nadou depressa, com medo de
que o sangue atraísse mais tubarões. Ao mesmo tempo, controlou o ritmo,
calculando com cuidado o momento de atingir a superfície. Quando o mer‐
gulhador sobe rápido demais, o nitrogênio fica retido na corrente sanguínea,
provocando uma doença dolorosa e potencialmente fatal chamada embolia
gasosa. Era tudo o que Alex não precisava naquele momento. Ficou durante
cinco minutos a três metros de profundidade — um nível final de segurança
—, e depois subiu para respirar. O mundo todo mudara enquanto ele estive‐
ra debaixo da água. O sol se escondera atrás do horizonte, e o céu, o mar, e
o próprio ar se cobriram com o mais intenso carmesim. Alex conseguiu ver
o barco de Garcia, um vulto escuro a uns vinte metros de distância, e nadou
até ele. De repente, sentiu frio. Seus dentes batiam — embora provavelmen‐
te já estivessem batendo desde o momento em que vira o tubarão.
Alex alcançou a borda lateral do barco. Garcia continuava sentado no
convés, com um cigarro entre os lábios, mas não se ofereceu para ajudá-lo a
subir.
— Muitíssimo obrigado, hein? — murmurou Alex.
Tirou o colete de flutuação e o tanque de oxigênio e atirou-os no barco.
Depois saiu da água. Contraiu-se todo. Fora da água, sentiu os ferimentos
que o coral lhe fizera nas costas. Mas não havia tempo para tratar disso ago‐
ra. Assim que ficou em pé no convés, soltou o cinto de lastro e se desfez de‐
le, junto com a máscara e o respirador. Havia uma toalha na bolsa de Car‐
ver. Alex pegou-a e se secou com ela. Depois foi até Garcia.
— Temos que ir embora — disse ele. — Carver e Troy estão mortos. A
caverna é uma cilada. O senhor tem que me levar de volta para o hotel.
Garcia ainda não dissera nada. Pela primeira vez, Alex notou algo estra‐
nho no cigarro que pendia na boca do homem. Não estava aceso. Subita‐
mente aflito, Alex estendeu o braço. Garcia caiu para frente. Tinha uma faca
enfiada nas costas.
Ao mesmo tempo, Alex sentiu alguma coisa dura tocá-lo entre as escápu‐
las, e uma voz que parecia ter dificuldade para pronunciar as palavras sus‐
surrou de algum lugar por trás dele.
— Acho que está um pouco tarde para nadar. Sugiro que agora fique bem
quietinho.
Do outro lado do barco, uma lancha escondida na escuridão ligou o mo‐
tor e as luzes ofuscantes. Alex ficou onde estava. Dois outros homens subi‐
ram a bordo, ambos falando espanhol. Ele só teve tempo de ver de relance o
rosto moreno e sorridente de um dos macheteros de Sarov antes que lhe en‐
fiassem um saco na cabeça. Algo lhe tocou o braço, e ele sentiu uma picada
e percebeu que era uma injeção. Quase no mesmo instante, perdeu as forças
nas pernas e teria caído não fossem as mãos invisíveis que o seguraram.
Foi, então, levantado e carregado. E começou a imaginar se afinal teria
feito alguma diferença se o tubarão tivesse conseguido pegá-lo. Os homens
que o seguraram e agora o tiravam do barco o tratavam como se já estivesse
morto.
11
O TRITURADOR

ALEX NÃO CONSEGUIA se mexer.


Estava deitado de costas sobre uma superfície dura e pegajosa. Tentou
erguer os ombros, mas sentiu a camiseta prender naquilo que havia sob o
corpo dele. Era como se o tivessem colado ali; e a substância que haviam
injetado nele acabara com toda a força que tinha nos braços e nas pernas. O
saco ainda lhe cobria a cabeça, deixando-o no escuro.
Sabia que fora carregado para a lancha e levado de volta à costa. Uma es‐
pécie de furgão viera buscá-lo e o deixara ali. Ouviu passos, e mãos rudes o
agarraram, carregando-o como se fosse um saco de batatas. Imaginava que
três ou quatro homens estivessem envolvidos na viagem, mas mal falaram.
Ouvira uma vez a mesma voz que falara com ele no barco. Murmurou algu‐
mas palavras em espanhol. Mas a dicção era tão complicada, as palavras
saíam tão distorcidas, que Alex não conseguia entender o que a pessoa di‐
zia.
Sentiu dedos roçarem-lhe o pescoço e, de repente, o saco foi retirado.
Alex piscou. Estava deitado em um ambiente muito iluminado, que parecia
um armazém ou uma fábrica. A primeira coisa que viu foi uma armação de
metal que sustentava o teto do qual pendiam lâmpadas de arco voltaico. As
paredes eram feitas de tijolos sem revestimento, pintadas de branco; o chão
era revestido com lajotas de cerâmica. Máquinas ocupavam ambos os lados.
A maior parte parecia ser maquinário agrícola do século passado. Havia
correntes, baldes e um complexo sistema de roldanas que passavam por
uma série de rodas de metal, as quais pareciam ter saído de um relógio anti‐
go gigantesco, e, perto delas, viam-se dois caldeirões de cerâmica. Alex vi‐
rou o corpo e viu mais caldeirões do outro lado e, ao longe, uma espécie de
sistema de filtragem, com canos saindo para todo lado. Percebeu que estava
deitado em uma longa esteira rolante. Tentou mais uma vez se levantar ou
ao menos rolar para fora, mas seu corpo não obedecia.
Um homem entrou no seu campo de visão.
Alex viu um par de olhos que, na verdade, não formavam um par — de‐
salinhados, não ocupavam no rosto do homem as posições que supostamen‐
te deveriam. E um deles era tão injetado que ele se perguntou se aquele olho
realmente enxergava alguma coisa. O sujeito sofrera algum ferimento terrí‐
vel. Era careca de um lado da cabeça, mas não do outro. A boca pendia in‐
clinada. A pele não tinha vida. Em um concurso de beleza, o tubarão-branco
não seria páreo para ele.
Havia dois trabalhadores morenos e muito sérios atrás do homem. Ti‐
nham bigode e usavam roupas surradas e bandanas. Nenhum deles disse na‐
da. Pareciam muito interessados no que ia acontecer.
— Seu nome? — os movimentos da boca do homem não eram compatí‐
veis com o que ele dizia, de modo que vê-lo falando era como assistir a um
filme mal dublado.
— Alex Gardiner — respondeu ele, cuidando para manter o sotaque
americano.
— Seu nome verdadeiro?
— Acabei de dizer.
— É mentira. Seu nome é Alex Rider.
— Por que perguntou se acha que sabe?
O homem concordou com a cabeça, como se Alex tivesse realmente feito
uma pergunta.
— Meu nome é Conrad — disse ele. — Já nos encontramos antes.
— É mesmo? — Alex pensou um pouco. Depois se lembrou. O sujeito
que ele vira mancando no calçadão de madeira em Miami, de óculos escu‐
ros e chapéu de palha! Era ele!
Conrad inclinou-se para frente.
— Por que você está aqui? — perguntou.
— Estou em férias com a minha mãe e o meu pai — Alex achou que era
melhor continuar fingindo que era apenas um garoto normal de 14 anos. —
Onde eles estão? — insistiu. — Por que me trouxeram aqui? O que aconte‐
ceu com o homem do barco? Quero ir para casa!
— E onde fica a sua casa? — perguntou Conrad.
— Moro em L. A. Em Los Angeles, De Flores Street, West Hollywood...
— Não — não havia nenhuma dúvida na voz de Conrad. — Seu sotaque
é até bem convincente, mas você não é americano. É inglês. As pessoas
com quem você veio se chamavam Glen Carver e Belinda Troy. Eram agen‐
tes da CIA. E agora estão mortos.
— Não sei do que você está falando. Pegaram o cara errado.
Conrad sorriu. Pelo menos um lado da boca dele sorriu. O outro só con‐
seguiu dar uma leve retorcida.
— Mentir para mim é burrice e uma tremenda perda de tempo. Preciso
saber por que você está aqui — disse. — É uma experiência incomum inter‐
rogar uma criança. Mas acho que vou gostar. Só sobrou você. Então me di‐
ga, Alex Rider: por que vocês vieram a Cayo Esqueleto? O que planejavam
fazer aqui?
— Eu não planejava fazer nada! — apesar de tudo, Alex achou que valia
a pena fazer uma última tentativa. — Meu pai é produtor de cinema, não
tem nada a ver com a CIA. Quem é você? E por que me trouxe para cá?
— Estou perdendo a paciência! — Conrad parou e respirou fundo, como
se o esforço para falar fosse demais para ele. — Diga o que eu quero saber!
— Estou de férias! — disse Alex. — Já disse!
— O que você disse é mentira. Agora vai me dizer a verdade.
Conrad abaixou-se e pegou uma caixa metálica grande com dois botões
— um vermelho e um verde — ligada a um cabo grosso. Apertou o botão
verde. Imediatamente, Alex sentiu um solavanco sob o seu corpo. Um alar‐
me soou. Em algum lugar, ao longe, houve um zumbido alto quando uma
máquina foi ligada. Após alguns segundos, a esteira rolante começou a se
mover.
Fazendo toda a força, Alex lutou contra a droga que estava no seu orga‐
nismo, forçando o peito para cima para que pudesse ver por cima dos pés. O
que viu o fez sentir um espasmo de pavor por todo o corpo. A esteira rolan‐
te o transportava em direção a duas imensas pedras de moer que giravam a
cerca de seis metros de distância. Eram tão próximas uma da outra que qua‐
se se tocavam. Uma ficava na parte de baixo e a outra, logo acima. A esteira
terminava no ponto exato em que elas se encontravam. Alex estava total‐
mente indefeso sobre a esteira. Não havia nada que ele pudesse fazer. Diri‐
gia-se para as pedras a uma velocidade de uns três centímetros por segundo.
Levaria pouco mais de um minuto para chegar até elas. Quando finalmente
chegasse, seria triturado. Era essa a morte que aquele homem reservara para
ele.
— Sabe como se produzia o açúcar? — perguntou Conrad. — Este lugar
em que você está agora é um engenho de açúcar. As máquinas eram movi‐
das a vapor, mas hoje em dia é tudo elétrico. A cana-de-açúcar era entregue
aqui pelos colonos, os agricultores. Era cortada e depois colocada em uma
esteira para ser triturada e, a seguir, filtrada. Deixava-se a água evaporar e o
melaço que restava era colocado em caldeirões e aquecido até cristalizar.
Conrad fez uma pausa para tomar fôlego.
— Você, Alex, está no início desse processo. Está prestes a alimentar o
triturador. Peço que imagine a dor que sentirá. Os dedos dos pés entrarão
primeiro. Então, você será sugado poucos centímetros de cada vez. Depois
dos dedos, os pés. As pernas e os joelhos. Quanto tempo vai levar até que
você sinta o alívio da morte? Pense nisso! Seja como for, posso lhe garantir
que não será nada agradável.
Conrad levantou a caixa com os dois botões.
— Diga o que eu quero saber e apertarei o botão vermelho. É ele que
desliga a máquina.
— Você está enganado! — gritou Alex. — Não pode fazer isso!
— Já estou fazendo. E nunca me engano. Por favor, não perca mais tem‐
po. Já lhe resta tão pouco...
Alex ergueu a cabeça outra vez. As pedras se aproximavam a cada se‐
gundo. Podia sentir a vibração delas transmitida para a esteira rolante.
— O que os agentes sabiam? — insistiu Conrad. — Por que estavam
aqui?
Alex deixou o corpo cair de novo na esteira. O som do choque entre as
duas pedras o envolveu. Ele olhou para os outros homens, atrás de Conrad.
Permitiriam que ele fizesse aquilo? Mas os rostos deles estavam impassí‐
veis.
— Por favor! — gritou ele.
Depois se conteve. Não havia compaixão naquele homem. Percebera isso
imediatamente. Cerrou os dentes na tentativa de dominar o medo. Queria
chorar. Na verdade, já sentia as lágrimas nos olhos. Não era o que ele que‐
ria. Nunca pedira para ser espião. Por que tinha que morrer como espião?
— Talvez você tenha mais uns sessenta segundos — disse Conrad.
Foi então que Alex se decidiu. Não havia por que seguir em silêncio para
aquela morte sangrenta e indescritível. Aquilo não era um filme da Segunda
Guerra Mundial em que ele era o herói. Era apenas um estudante e todos —
o sr. Blunt, a sra. Jones, a CIA — mentiram para ele e lhe pregaram uma
peça para levá-lo até ali. De qualquer forma, Conrad já sabia quem ele era.
Por duas vezes o chamara pelo seu nome verdadeiro. Conrad sabia que Troy
e Carver eram espiões americanos. Só havia mais uma informação que ele
poderia fornecer. A CIA estava à procura de uma bomba atômica. E por que
não contaria isso a Conrad? Talvez fosse o suficiente para fazê-lo desistir
daquilo.
— Eles estavam procurando uma bomba! — gritou. — Uma bomba nu‐
clear. Sabiam que Sarov tinha comprado urânio do Vendedor. Vieram para
cá com um medidor Geiger. Pretendiam entrar na propriedade e procurar a
bomba!
— Como sabiam?
— Não sei.
— Quarenta e cinco segundos.
O estrondo do choque entre as pedras ficou mais alto que nunca. Alex se
ergueu e olhou para a frente: viu as pedras a menos de um metro de distân‐
cia. Podia sentir a corrente de ar gelado na pele. O fato de que não estava
amarrado, de ter os braços e as pernas soltos, só piorava as coisas. Ele não
conseguia se mexer! A droga o transformara em um pedaço de carne viva a
caminho de um moedor de carne. O suor escorria pelo seu rosto, descia pela
linha do queixo e contornava a nuca.
— Foi o Carver! — berrou Alex. — Ele soube pelo Vendedor. Estava
trabalhando disfarçado. Descobriram que ele vendera urânio para vocês e
vieram até aqui à procura da bomba.
— Eles sabiam para que a bomba seria usada?
— Não! Não sei! Não me disseram. Agora, pare a máquina e me deixe ir
embora.
Conrad refletiu um pouco. A caixa ainda estava na sua mão.
— Não — disse ele. — Acho que não.
— O quê? — gritou Alex. Ele mal conseguia ouvir a própria voz por
causa do barulho das pedras.
— Você é um garoto muito mau — disse Conrad. — E garotos maus pre‐
cisam ser castigados.
— Mas você disse...
— Eu menti. Igualzinho a você. Mas é claro que vou ter que matá-lo. Vo‐
cê já não serve para mais nada...
Alex enlouqueceu. Abriu a boca e gritou, tentando encontrar forças para
se livrar da esteira rolante. Seu cérebro sabia o que queria, mas o corpo se
recusava a obedecer. Estava incapacitado. Sacudiu o corpo para cima. Os
pés estavam cada vez mais próximos das pedras. Conrad deu um passo para
trás. Ia assistir à entrada de Alex no triturador. Os dois trabalhadores que es‐
tavam atrás dele limpariam tudo quando terminasse.
— Não! — urrou Alex.
— Adeus, Alex — disse Conrad.
E então — outra voz. Em outro idioma. Um idioma que Alex não enten‐
dia.
Conrad disse alguma coisa. Alex já não conseguia ouvir mais nada. Os
lábios do homem se moviam, mas o som era abafado pelo ruído da máqui‐
na.
As pedras se transformaram em uma imagem indistinta. Os dedos dos
pés descalços de Alex estavam a cinco centímetros de serem triturados.
Quatro centímetros, três centímetros, dois centímetros...
Houve um tiro.
Faíscas. Cheiro de fumaça.
As pedras ainda giravam. Mas a esteira rolante havia parado. Os pés de
Alex estavam projetados para fora da esteira. Ele quase podia sentir a pedra
roçando nos seus dedos.
Então, a tal voz surgiu outra vez, agora falando em inglês.
— Meu caro Alex, sinto muito. Você está bem?
Alex tentou responder com o pior palavrão que conhecia. Mas não saiu
nada. Não conseguia nem respirar.
Com um sentimento de gratidão, o garoto desmaiou.

— Você precisa desculpar o Conrad. Ele é um assistente incrível e útil de


muitas formas. Mas às vezes também consegue ser um pouco... entusiasma‐
do demais.
Alex acordara no quarto mais magnífico que já vira. Estava deitado em
uma cama de dossel, diante de um espelho decorado com uma moldura dou‐
rada que ia do chão até o teto. Toda a mobília do quarto era antiga e ficaria
muito bem em um museu. Ao pé da cama havia uma arca inteiramente pin‐
tada, um imenso guarda-roupa com portas cuidadosamente entalhadas e um
candelabro com cinco braços curvos. As venezianas das janelas haviam sido
abertas, mostrando uma sacada de ferro fundido que dava para um pátio.
O homem, que se apresentara como general Alexei Sarov, estava sentado
em uma cadeira ao lado do espelho. Ele usava um terno preto, camisa bran‐
ca e gravata. Mantinha as pernas cruzadas e as costas totalmente eretas.
Alex examinou esse rosto, com cabelos grisalhos e olhos azuis muito inteli‐
gentes. Reconheceu a voz que ouvira no engenho e percebeu — sem saber o
motivo — que fora o general quem o salvara.
Estava escuro lá fora. Alex imaginou que era mais de meia-noite. Al‐
guém o vestira com um camisolão branco que passava dos joelhos. Ele se
perguntou quanto tempo teria dormido. E quanto tempo o russo esperara até
que ele acordasse?
— Quer comer alguma coisa? — foi a primeira pergunta dele.
— Não, obrigado. Não estou com fome.
— Uma bebida, então?
— Um pouco de água...
— Está aqui.
A água estava em uma jarra de prata, e foi servida em um reluzente copo
de cristal. O próprio general Sarov o encheu e entregou ao garoto. Alex esti‐
cou-se para pegá-lo e ficou contente ao perceber que o efeito da droga que
lhe fora injetada por Conrad tinha passado enquanto dormia e que já conse‐
guia mover os braços de novo. Bebeu um gole. A água estava gelada. Foi
então que Sarov começou a pedir desculpas, falando em um inglês impecá‐
vel.
— Conrad não tinha ordem para matá-lo. Ao contrário, quando eu soube
quem você era, quis muito conhecê-lo.
Alex pensou um pouco e resolveu deixar o assunto de lado naquele mo‐
mento.
— Como o senhor descobriu quem eu era? — perguntou.
Agora parecia já não haver nenhuma razão para negar a própria identida‐
de.
— Temos um sistema de segurança muito sofisticado, tanto aqui como
em Havana.
O general não demonstrou interesse em explicar mais.
— Imagino que você tenha vivido uma experiência terrível.
— As pessoas que vieram comigo tiveram uma experiência bem pior.
O general fez um gesto erguendo a mão como que para deixar os deta‐
lhes de lado.
— Seus amigos estão mortos. Eram seus amigos, Alex?
Fez uma pausa breve.
— É claro que eu sabia muito bem da Chaminé do Diabo quando me mu‐
dei para a Casa de Oro. Mandei construir um mecanismo simples de defesa.
É proibido mergulhar neste lado da ilha, de modo que, quando algum even‐
tual mergulhador é tolo a ponto de entrar na caverna, está apenas pagando o
preço da curiosidade. Contaram-me que um tubarão foi morto lá...
— Um tubarão-branco.
— Você o viu?
Alex não disse nada. Sarov ergueu as mãos e pousou o queixo na ponta
dos dedos.
— Você é mesmo notável, como me falaram — continuou ele. — Li os
seus arquivos, Alex. Você não tem pais. Foi criado por um tio que era es‐
pião. Foi treinado pelo Serviço Aéreo Especial, o SAS, e enviado para a sua
primeira missão no sul da Inglaterra. E então, poucas semanas depois, foi
enviado para uma segunda missão na França. Alguns poderiam dizer que
você tem uma sorte dos diabos, mas eu particularmente não acredito no Di‐
abo — nem em Deus, aliás. Mas acredito em você, Alex. Você é realmente
extraordinário.
Alex já começava a se cansar daquela bajulação toda. E não conseguia
evitar a sensação de que havia algo muito sinistro naquilo.
— Por que estou aqui? — perguntou. — O que o senhor quer de mim?
— O motivo pelo qual você está aqui deveria ser evidente — respondeu
Sarov. — Conrad queria matá-lo. Eu o impedi. Mas não posso permitir que
volte para o hotel e, sem dúvida, nem que saia da ilha. Você terá que se con‐
siderar meu prisioneiro, embora eu espere que, se a Casa de Oro tiver que
se tornar uma prisão, você a ache confortável. Quanto ao que eu quero de
você... — Sarov sorriu, com um olhar repentinamente distante. — Está tar‐
de — anunciou de repente. — Podemos conversar sobre isso amanhã.
O homem se levantou.
— É verdade que o senhor tem uma bomba nuclear? — perguntou Alex.
— Sim.
Parte do quebra-cabeça começava a se encaixar.
— O senhor comprou urânio de um homem chamado Vendedor. Mas de‐
pois mandou Conrad matá-lo! O senhor explodiu o barco dele!
— Está correto.
Então Alex estivera certo o tempo todo. Vira Conrad em Miami. Conrad
colocara algum tipo de dispositivo explosivo no Mayfair Lady — e tinha si‐
do isso, não o incêndio, que provocara a destruição do barco e a morte da‐
quelas pessoas. Carver e Troy o acusaram injustamente.
— A bomba nuclear... — disse Alex. — O que o senhor vai fazer com
ela?
— Está com medo?
— Quero saber.
O general refletiu.
— Por enquanto, é só isso que vou lhe contar — disse ele. — Não imagi‐
no que você saiba muito sobre o meu país, Alex. A União das Repúblicas
Socialistas Soviéticas, como costumava se chamar a URSS. Ou, nos dias de
hoje, a Rússia. Imagino que não ensinem essas coisas nas escolas ociden‐
tais.
— Sei que o comunismo acabou, se é isso o que quer dizer — disse
Alex. — E já está um pouco tarde para uma aula de história.
— Houve uma época em que meu país era uma potência mundial — con‐
tinuou Sarov, ignorando-o. — Chegou a ser uma das rações mais poderosas
do planeta. Quem colocou o primeiro homem no espaço? Nós! Quem obte‐
ve os maiores avanços em ciência e tecnologia? Quem era temido pelo resto
do mundo? — Ele fez uma pausa. — Você está certo. Sim. O comunismo
foi derrubado. E o que se vê no lugar dele? — Surgiu uma faísca de ódio no
rosto dele, mas foi só por um segundo. — A Rússia se tornou um país de
segunda classe. Não há lei nem ordem. As prisões estão vazias e os crimi‐
nosos controlam as ruas. Milhões de russos são viciados em drogas. Outros
milhões têm aids. Mulheres e crianças se prostituem. E tudo isso para que
as pessoas possam comer no McDonald's e comprar calças Levi's e falar nos
seus celulares na Praça Vermelha!
O general Sarov caminhou até a porta.
— Você me pergunta o que eu vou fazer — falou. — Vou voltar a página
e desfazer os danos dos últimos trinta anos. Vou devolver ao meu país o seu
orgulho e a sua posição no cenário mundial. Não sou um homem mau,
Alex. Seja o que for que os seus superiores tenham lhe dito, o meu único
desejo é acabar com a dor e construir um mundo melhor. Espero que acredi‐
te nisso. É muito importante para mim que você veja as coisas da maneira
que eu vejo.
— O senhor tem uma bomba nuclear — disse Alex, falando bem deva‐
gar. — Não entendo. Como ela vai ajudar a conseguir o que o senhor quer?
— Isso será revelado na hora certa. Vamos tomar o café da manhã jun‐
tos... às 9 horas, está bem? Depois, eu lhe mostrarei a propriedade.
O general acenou com a cabeça e saiu do quarto.
Alex esperou um minuto antes de sair da cama. Olhou para o pátio, de‐
pois foi até a porta e tentou abri-la. Não se surpreendeu com o que desco‐
briu. Sarov descrevera a Casa de Oro como uma prisão e estava certo. Alex
não tinha como descer pela sacada até o pátio. E a porta do quarto estava
trancada.
12
A SENZALA

NA MANHÃ SEGUINTE, pouco depois das 8 horas, Alex foi acordado


por uma batida na porta. Quando se sentou na cama, uma mulher vestida de
preto e com um avental branco entrou, trazendo uma mala que Alex reco‐
nheceu como sua. Sarov devia ter mandado alguém buscá-la no Hotel Va‐
lencia. Esperou que a mulher saísse para pular da cama e abrir a mala. To‐
das as roupas estavam lá, assim como o boneco do Tiger Woods e os chicle‐
tes que Smithers lhe dera. Só o celular fora retirado. Obviamente, Sarov não
queria que ele ligasse para casa.
Depois do que Sarov dissera na noite anterior, Alex decidira deixar as
calças Levis na mala. Em vez disso, preferiu pegar um calção largo, uma
camiseta lisa e as sandálias que usara pela última vez quando tinha surfado
em Cornwall. Vestiu-se e foi até a janela. O pátio que vira na noite anterior
estava agora ensolarado. De formato retangular, era cercado por um cami‐
nho de mármore e uma série de fileiras de colunas com arcos. Dois funcio‐
nários varriam a areia fina que cobria o chão. Outros dois regavam as plan‐
tas. Alex olhou para cima e viu a torre de vigilância que avistara do barco.
O guarda ainda estava lá, com a arma agora bem visível.
Às 8h50, a porta se abriu de novo. Dessa vez foi Conrad quem entrou,
usando camisa preta abotoada até o pescoço, calças pretas e sandálias que
deixavam à mostra quatro dedos em um pé e três no outro.
— Desayuno!
Alex reconheceu a palavra em espanhol para dizer “café da manhã”.
Conrad expelira a palavra, como se fosse para ele uma ofensa ter que pro‐
nunciá-la. Estava visivelmente descontente em rever Alex — que, então, é
claro, já tinha outros planos.
— Bom dia, Conrad! — Alex forçou um sorriso. Após o que acontecera
na noite anterior, estava determinado a mostrar àquele homem que ele não o
assustava. Apontou com o dedo e falou: — Parece que você esqueceu al‐
guns dedos dos pés.
Caminhou até a porta. Quando passou para o corredor, Conrad ficou bem
perto dele.
— Ainda não terminou — sussurrou Conrad. — O general ainda pode
mudar de ideia.
Alex seguiu em frente. Viu-se em um corredor amplo, acima de outro pá‐
tio. Olhou para baixo e viu uma fonte de pedra, cercada por pilares brancos.
Sentia um perfume no ar. O barulho da água se espalhava pela casa. Conrad
indicou o caminho e o garoto desceu uma escadaria que levava à sala onde
o café da manhã já fora servido.
O general Sarov estava sentado diante de uma mesa grande e lustrosa,
comendo mamão fatiado. Usava roupa esportiva. Sorriu quando Alex en‐
trou, e indicou uma cadeira vazia. Havia uma dúzia delas para escolher.
— Bom dia, Alex. Desculpe-me pelo traje. Sempre corro antes do café
da manhã. Três vezes em volta da plantação. Uma distância de 38 quilôme‐
tros. Vou me trocar depois. Dormiu bem?
— Sim, obrigado.
— Sirva-se, por favor. Há frutas, cereais, pão fresco, ovos. Prefiro ovos
crus. É um hábito que venho mantendo a vida toda. Cozinhar é como remo‐
ver a metade das qualidades dos alimentos. São levadas com a fumaça! —
ele ergueu a mão no ar. — O homem é a única criatura do planeta que preci‐
sa assar ou cozinhar a carne e os vegetais para consumi-los. No entanto, se
quiser, posso mandar preparar ovos da maneira como você preferir.
— Não, general, obrigado. Vou ficar com as frutas e o cereal.
Sarov percebeu a presença de Conrad. Ele estava em pé, perto da porta.
— Não preciso de você agora, Conrad. Obrigado. Nós nos encontrare‐
mos ao meio-dia.
O olho bom de Conrad se estreitou. Fez que sim com a cabeça e saiu da
sala.
— Tenho impressão de que Conrad não gosta de você — disse Sarov.
— Tudo bem. Não morro de amores pelo Conrad.
Alex olhou para a porta e perguntou:
— Qual é exatamente o problema do Conrad? Ele não parece estar bem.
— Pela lógica, era para ele ter morrido. Envolveu-se na explosão de uma
bomba que ele próprio carregava. Conrad é algo como um milagre da ciên‐
cia. Tem mais de trinta pinos de metal pelo corpo. E uma placa de metal no
crânio. Tem fios de metal no maxilar e na maior parte das articulações.
— Ele deve disparar um monte de alarmes nos aeroportos — murmurou
Alex.
— Aconselho você a não fazer piada dele, Alex. Conrad ainda tem espe‐
rança de poder matá-lo. — Sarov tocou os lábios com um guardanapo. —
Não permitirei que isso aconteça, mas, já que estamos tratando desses as‐
suntos desagradáveis, talvez deva apresentar algumas normas da casa, por
assim dizer. Retirei o celular que encontrei na sua mala, e devo lhe informar
que todos os telefones da casa precisam de um código para dar linha. Você
não terá nenhum contato com o mundo lá fora.
— Meus amigos podem ficar preocupados comigo — disse Alex.
— Pelo que conheço do sr. Blunt e dos seus colegas de Londres, é impro‐
vável. Mas não importa. Quando começarem a se questionar, será tarde de‐
mais.
“Tarde demais?” Por quê? Alex percebeu que continuava totalmente no
escuro.
— A Casa de Oro é cercada por todos os lados. A cerca é eletrificada. Há
só uma entrada e é muito bem vigiada. Não tente fugir, Alex. Se tentar, po‐
derá levar um tiro, e isso não é realmente o que planejei. Depois de hoje, re‐
ceio que terei de transferi-lo para outro quarto. Como deve saber, receberei
hóspedes importantes que já estão para chegar, e será melhor para você “ter
o seu espaço”, como vocês dizem. Pode continuar à vontade para usar a ca‐
sa, a piscina, o terreno. Mas eu lhe pediria que ficasse invisível. Meus con‐
vidados mal falam inglês, portanto não há motivo para você se aproximar
deles. Se você me causar qualquer problema, mandarei espancá-lo.
O general Sarov esticou-se para frente e espetou a última fatia de ma‐
mão.
— Mas chega de coisas desagradáveis — disse ele. — Passaremos a ma‐
nhã toda juntos. Você monta?
Alex hesitou. Não gostava de cavalos.
— Já montei — respondeu.
— Excelente.
Alex serviu-se de melão.
— Ontem à noite, lhe perguntei o que o senhor queria de mim — disse
ele. — Ainda não me respondeu.
— Tudo a seu tempo, Alex. Tudo a seu tempo.

Após o café da manhã, caminharam ao ar livre. Agora, Alex compreendia


por que a casa recebera aquele nome: Casa de Oro. Era feita de tijolos de
um amarelo pálido que, quando iluminados pelo sol, realmente pareciam
feitos de ouro. Embora tivesse apenas dois andares, a casa ocupava uma
área ampla, com largos degraus de pedra que levavam para um jardim per‐
feitamente simétrico. Blunt a descrevera como um palácio, mas era mais
elegante do que majestosa, com portas e janelas altas, além de arcadas e sa‐
cadas finamente entalhadas. Ao olhar para a casa, era como se nada tivesse
mudado desde o início do século 19, quando tinha sido construída. Mas
também havia guardas armados fazendo ronda. E havia campainhas de alar‐
me e uma série de holofotes montados em suportes de metal — feios indíci‐
os da era contemporânea.
Continuaram caminhando até um bloco com a estrebaria, onde um ho‐
mem os aguardava com dois cavalos magníficos: um garanhão branco para
Sarov e um menor e cinzento para Alex. Equitação era um esporte do qual
Alex nunca gostara. Da última vez que montara, quase tinha morrido, e foi
com relutância que pegou as rédeas e subiu na sela. Pelo canto do olho, viu
Sarov fazer o mesmo e de imediato percebeu que o russo era um perito,
com domínio total do cavalo.
Saíram juntos, enquanto Alex tentava manter o equilíbrio e não demons‐
trar falta total de controle da situação. Felizmente, parecia que o cavalo dele
sabia aonde ir.
— Há muitos anos, isto aqui era um engenho — explicou Sarov, repetin‐
do o que Troy lhe dissera. — Os trabalhadores eram escravos. Havia cerca
de um milhão deles em Cuba e em Cayo Esqueleto. — Ele apontou para a
torre. — Aquela era a torre de vigilância. Era lá que tocavam um sino às
4h30 da manhã para que os escravos começassem a trabalhar. Eram trazidos
da África Ocidental. Trabalhavam aqui. E morriam aqui.
Passaram perto de um prédio baixo e retangular, construído a certa dis‐
tância da casa-grande. Alex notou que a única porta e todas as janelas eram
gradeadas.
— Este é o barracón — disse Sarov. — A senzala. Duzentos escravos
dormiam aí, confinados como animais. Se tivermos tempo, eu lhe mostrarei
o pelourinho. Ainda temos os postes originais. Consegue imaginar, Alex, fi‐
car preso pelos tornozelos durante semanas inteiras, ou mesmo durante me‐
ses? Incapaz de se mexer. Com fome e com sede...
— Não quero nem imaginar — disse Alex.
— É claro que não. O mundo ocidental prefere esquecer os crimes que o
enriqueceram.
Alex ficou aliviado quando começaram a andar a meio galope. Ao menos
isso significava que não precisaria mais conversar. Seguiram por uma trilha
de terra que os levou até a beira do mar. Ao olhar para baixo, Alex pôde ver
o local em que o barco de Garcia estivera ancorado no dia anterior. Aquilo
fez com que se lembrasse do verdadeiro caráter do homem. Sarov se mos‐
trava simpático. Evidentemente, gostava de ter Alex como hóspede. Mas
era um assassino. E um assassino que tinha uma bomba nuclear.
Chegaram ao final da trilha e continuaram andando mais devagar, com o
mar à direita. De onde estavam, já não se via mais a Casa de Oro.
— Gostaria de lhe contar uma coisa a meu respeito — disse Sarov, de re‐
pente. — Na verdade, eu lhe contarei mais do que jamais contei a qualquer
outra pessoa.
Continuou cavalgando em silêncio por mais alguns instantes.
— Nasci em 1940 — começou a falar. — Foi durante a Segunda Guerra
Mundial, um ano antes de o meu país ser atacado pelos alemães. Talvez seja
por isso que eu sempre tenha sido patriota, e que sempre achei que o meu
país devia estar em primeiro lugar. Passei a maior parte da vida servindo o
meu país. No Exército, lutando por aquilo em que eu acreditava. E ainda
acredito estar servindo o meu país.
Puxou as rédeas e virou-se para Alex, que parou ao lado dele.
— Eu me casei quando tinha 31 anos. Um ano depois, minha mulher me
deu algo que eu sempre desejara: um filho. O nome dele era Vladimir e,
desde o momento em que respirou pela primeira vez, ele foi a melhor coisa
da minha vida. Cresceu e se tornou um belo garoto, e preciso lhe dizer que
nenhum outro pai teve mais orgulho do que eu tive dele. Saía-se bem na es‐
cola, era o primeiro da turma em quase todas as disciplinas. E um atleta de
primeira. Acho que teria conseguido um dia competir nos jogos olímpicos.
Mas não era para ser...
Alex já sabia o final daquela história. Lembrou-se do que Blunt lhe con‐
tara.
— Eu acreditava que era certo Vladimir servir o seu país, assim como eu
servia — continuou Sarov. — Queria que ele entrasse para o Exército. A
mãe discordava. Lamentavelmente, essa discordância pôs fim ao nosso ca‐
samento.
— O senhor pediu a ela que fosse embora?
— Não, não pedi. Ordenei. Ela foi embora da minha casa e nunca mais a
vi. E Vladimir entrou para o Exército. Isso aconteceu em 1988, quando ele
tinha 16 anos. Foi enviado para o Afeganistão, onde lutávamos em uma
guerra dura, difícil. Estava lá havia apenas três semanas quando partiu em
missão de reconhecimento, como parte de uma patrulha, em um vilarejo.
Foi baleado por um franco-atirador, e morreu.
A voz de Sarov falhou um pouco, e ele parou de falar. Mas um instante
depois continuou a história, agora em um tom mais cuidadoso e calculado.
— A guerra terminou um ano depois. O nosso governo, fraco e covarde,
havia perdido a determinação de lutar. Batemos em retirada. Tudo aquilo
não servira para nada. Você precisa compreender esta verdade: para um pai,
não há nada mais terrível no mundo do que perder um filho — ele parou pa‐
ra tomar fôlego. — Acreditava que tinha perdido Vladimir para sempre. Até
que conheci você.
— Eu? — Alex ficou tão assustado que mal conseguiu falar.
— Você tem apenas dois anos a menos do que Vladimir tinha quando
morreu. Mas tem tanto em comum com ele, Alex, muito embora tenha sido
criado do outro lado do mundo! Em primeiro lugar, há uma ligeira seme‐
lhança. Mas não se trata apenas da sua aparência física. Você também está
servindo o seu país. Com 14 anos já é um espião! Como é raro encontrar
um jovem que esteja preparado para lutar por aquilo em que acredita!
— Bem, eu não iria tão longe — murmurou Alex.
— Você tem coragem. Aquilo que aconteceu no triturador e na caverna o
comprova, mesmo que o seu histórico já não falasse por si só. Você conhece
vários idiomas e, um dia, em breve, poderá aprender russo. Cavalga, nada,
luta e não é medroso. Nunca conheci um garoto como você. Exceto um. Vo‐
cê é como o meu Vladimir, Alex, e é isso que eu espero que você se torne.
— Aonde o senhor quer chegar? — perguntou Alex. Ainda estavam pa‐
rados e ele começava a se sentir desconfortável sob o sol quente. O cavalo
suava e atraía moscas. O mar estava muito abaixo deles e nenhuma brisa
chegava até eles.
— Não é óbvio? Li a sua ficha. Você cresceu sozinho. Tinha um tio, mas
só depois da morte dele você soube que ele era espião. Você não tem pai
nem mãe. Eu não tenho filho. Ambos somos sozinhos.
— Somos de mundos diferentes, general.
— Não precisamos ser. Estou planejando algo que mudará o mundo para
sempre. Quanto tudo estiver terminado, o mundo será um lugar melhor,
mais forte e mais saudável. Você veio aqui para impedir que isso aconteces‐
se. Mas, quando compreender o que estou fazendo, perceberá que não pre‐
cisamos ser inimigos. Ao contrário! Alex, eu quero adotar você.
Alex ficou imóvel olhando para ele. Não sabia o que dizer.
— Você será meu filho, Alex, e continuará do ponto em que Vladimir pa‐
rou. Serei como um pai para você, e compartilharemos o novo mundo que
eu criar. Não diga nada agora! Apenas pense. Se eu realmente acreditasse
que você é meu inimigo, teria apenas assistido à sua execução por Conrad.
Porém, no momento em que descobri quem você era, percebi que não pode‐
ria permitir que aquilo acontecesse. Temos até o mesmo nome, você e eu.
Alexei e Alex. Vou adotá-lo, Alex. E me tornarei o pai que você perdeu.
— E se eu recusar?
— Você não vai recusar! — a violência de repente tomou conta dos olhos
do general, como fumaça por trás de um vidro. O rosto dele se contorceu
como se sentisse dor. Sarov respirou fundo e, de imediato, ficou calmo. —
Quando você conhecer o plano, vai querer se unir a mim.
— Então por que o senhor não me conta o plano? Diga o que vai fazer!
— Ainda não, Alex. Você ainda não está preparado. Mas vai estar. E isso
acontecerá em breve.
O general Alexei Sarov puxou as rédeas. O cavalo deu a volta, e ele saiu
galopando, deixando o mar para trás. Alex balançou a cabeça, espantado.
Depois, cutucou os flancos do cavalo e o seguiu.
Naquela noite, o garoto jantou sozinho. Sarov se desculpara, dizendo que
tinha trabalho a fazer. Alex, porém, não estava com muito apetite. Conrad
ficou em pé na sala, observando cada garfada, e, embora não dissesse nada,
transpirava raiva e hostilidade. Quando o jantar terminou, Conrad fez um si‐
nal com a mão para apontar a porta.
Alex seguiu Conrad para fora da casa-grande, desceu os degraus e foi pa‐
ra a senzala, o barracón que Sarov lhe mostrara mais cedo. Ao que tudo in‐
dicava, o seu novo quarto ficava ali. O interior do prédio era dividido em
diversas celas de tijolo aparente e portas grossas, cada qual com um quadra‐
do gradeado no centro. Mas pelo menos as celas haviam sido reformadas.
Havia eletricidade, água encanada e — felizmente, em função do calor da
noite — ar-condicionado. Alex sabia que tinha muito mais sorte do que as
centenas de criaturas aprisionadas que um dia estiveram confinadas ali.
Havia uma pia e uma privada atrás de um biombo. A mala de Alex fora
trazida e colocada sobre a cama, que tinha uma estrutura de metal e um col‐
chão fino. Sarov também providenciara livros para ele. Alex passou os
olhos nas capas. Eram traduções inglesas de clássicos russos: Tolstoi e Dos‐
toievski. O garoto imaginou que deviam ter sido os autores preferidos de
Vladimir.
Conrad fechou e trancou a porta.
— Boa noite, Conrad — Alex falou alto. — Vou chamá-lo se precisar de
alguma coisa.
Conseguiu ver de relance um olho injetado espiando pela grade e sabia
que marcara um ponto. Depois, Conrad se foi.
Alex ficou durante algum tempo deitado na cama pensando no que Sarov
dissera. Adoção! Aquilo era demais para ele assimilar. Apenas uma semana
antes, ele imaginara como seria ter um pai. Agora, haviam aparecido dois
de uma vez só: primeiro Glen Carver, e agora Sarov. As coisas iam definiti‐
vamente de mal a pior.
Viu um clarão lá fora pela janela. A noite foi substituída por uma luz elé‐
trica forte. Alex rolou da cama e foi até a janela gradeada. Dava para o pátio
principal, diante da casa. As luzes elétricas que ele notara antes estavam to‐
das acesas, e muitas pessoas ocupavam o pátio. Os guardas — uma dúzia
deles — formavam uma fileira, com as metralhadoras encostadas no peito.
Funcionários e lavradores se aglomeravam ao redor da porta. O próprio Sa‐
rov estava lá, de uniforme verde-escuro, com várias medalhas penduradas
no peito. Conrad ficava logo atrás dele.
Enquanto Alex observava, apareceram quatro limusines pretas andando
devagar pelo caminho que vinha do portão. Eram escoltadas por duas moto‐
cicletas; os motociclistas, como Sarov, usavam uniforme militar. A poeira
se espiralava atrás do comboio e subia até a luz.
O comboio parou. As portas dos carros se abriram e uns quinze homens
desceram. Alex mal conseguia distinguir o rosto deles. Eram apenas silhue‐
tas. Mas prestou atenção em um homem, baixo, magro e careca, de terno.
Sarov adiantou-se para encontrá-lo. Os dois homens trocaram um aperto de
mão e se abraçaram. Foi o sinal para todos relaxarem. Sarov fez um gesto, e
o grupo foi em direção da casa, deixando para trás os dois motociclistas.
Alex tinha certeza de que vira o careca antes, nos jornais. Agora entendia
por que fora trancado na senzala, para não representar risco. Fosse qual fos‐
se o plano de Sarov, a fase seguinte acabara de começar.
O presidente russo chegara.
13
PULSAÇÃO

DEIXARAM QUE ALEX saísse da senzala na manhã seguinte. Parecia


que lhe permitiriam passar o dia em liberdade na Casa de Oro... ainda que
não sozinho — designaram um guarda armado para vigiá-lo. O guarda tinha
20 e poucos anos e parecia mal barbeado. Não falava inglês.
Primeiro levou Alex para o café da manhã, que ele tomou sozinho na co‐
zinha, e não na sala de jantar em que comera com Sarov. Enquanto Alex co‐
mia, o guarda ficou em pé à porta, observando-o, como se o garoto fosse
um rojão que acabara de falhar.
— Como se llama usted? — perguntou Alex. — Como você se chama?
— Juan — o guarda se mostrou relutante em dar até mesmo aquela infor‐
mação, e respondeu às outras perguntas de Alex com monossílabos ou ficou
em silêncio.
Era outro dia de calor intenso. A ilha parecia ter ficado presa sob o domí‐
nio de um verão interminável. Alex acabou o café da manhã e saiu para o
salão principal, onde alguns funcionários, como sempre, varriam o chão ou
levavam mantimentos para a cozinha. Os guardas continuavam em seus lu‐
gares, no alto da torre e no perímetro da propriedade. Alex foi até a estreba‐
ria. Ele se perguntava se o deixariam cavalgar outra vez e ficou agradavel‐
mente surpreso quando o homem lhe trouxe o mesmo cavalo cinzento, já
selado e pronto para ele.
Saiu a cavalo pela segunda vez, com Juan alguns passos atrás dele em
uma égua alazã. Alex não queria particularmente cavalgar. As coxas e as
costas ainda estavam doloridas da véspera. Mas tinha interesse na cerca pe‐
rimetral que Sarov mencionara. Ele dissera que a cerca era eletrificada.
Muitas vezes, porém, mesmo as cercas eletrificadas passam por árvores em
que se pode subir. Alex já decidira que precisava achar um jeito de sair dali.
Ele ainda não tinha a menor ideia do que Sarov planejava. Falara em mu‐
dar o mundo. Torná-lo melhor, mais forte, mais saudável. Obviamente se
considerava uma espécie de herói... mas era um herói armado com uma
bomba nuclear. Enquanto cavalgava pelo capinzal, Alex se perguntava o
que Sarov pretendia fazer. Seu primeiro pensamento foi que o russo ia ex‐
plodir uma cidade americana. Os Estados Unidos não tinham sido os maio‐
res inimigos da Rússia? Mas não fazia sentido. Milhões de pessoas morreri‐
am, porém aquilo não mudaria o mundo. Certamente não para melhor. O al‐
vo seria algum lugar da Europa? Ou ele usaria a bomba para chantagear go‐
vernos do mundo todo até que lhe dessem o que queria? Essa ideia fazia
mais sentido. No entanto, ao mesmo tempo, Alex duvidava de que fosse is‐
so. Uma coisa era certa: o plano do general, de alguma maneira, envolvia o
presidente russo.
“Vou voltar a página e desfazer os danos dos últimos trinta anos.”
De repente, Alex concluiu que, apesar da amizade de infância, Sarov odi‐
ava o presidente russo e queria pegar o lugar dele. Esse é que era o plano.
Uma nova Rússia que voltaria a ser uma potência mundial. Com Sarov no
comando.
E ele queria conseguir isso com uma única explosão nuclear.
Alex precisava fugir. Tinha que contar à CIA que Carver e Troy estavam
mortos e que Sarov tinha mesmo uma bomba. Assim que soubessem, eles
assumiriam o controle. E Alex queria estar o mais distante possível da Casa
de Oro. O sentimento de Sarov por ele, o seu desejo de adotá-lo o incomo‐
davam tanto quanto todo o resto. O velho era maluco. Apesar do calor da‐
quela manhã, Alex sentiu um arrepio. Aquela aventura se transformara em
uma coisa que estava rapidamente fugindo do controle.
Chegaram ao limite da propriedade, dessa vez pelo lado mais distante do
mar. E lá estava a cerca, com uns cinco metros de altura, de aço puro, com
uma cerca menor que subia até a altura do peito, de ambos os lados. Havia
placas grandes e vermelhas com a palavra “peligro” impressa em letras
brancas. Mesmo sem o aviso, a cerca passava uma sensação de perigo. Ou‐
via-se um zunido baixo o tempo todo. Alex notou um esqueleto de pássaro
carbonizado e despedaçado, dependurado no cabo espiralado no topo da
cerca. Devia ter batido na cerca e morrido instantaneamente. Bom, uma coi‐
sa era certa: ele não tentaria escalar. A cerca prosseguia pelo capinzal, sem
nenhuma árvore à vista.
Alex virou o cavalo em direção aos fundos da propriedade e ao portão de
entrada. Talvez conseguisse encontrar uma saída por lá. Ele e o guarda leva‐
ram quase meia hora para chegar, cavalgando a passo. A cerca continuava
por todo o caminho. A entrada era sinalizada com uma guarita de pedra,
sem vidros nas janelas e com uma porta pendurada com as dobradiças sol‐
tas. Havia dois homens dentro da guarita, e outro, com uma metralhadora,
estava em pé ao lado da cancela. Quando Alex se aproximava, passou um
carro. Uma das limusines que ele vira na noite anterior deixava a proprieda‐
de. Aquilo lhe deu uma ideia. Só havia uma maneira de sair dali, e era de
carro. Presumia-se que os assessores do presidente fariam várias viagens, e
isso poderia lhe dar alguma chance...
Cavalgaram de volta para a estrebaria e desmontaram. Com Juan sempre
alguns passos atrás dele, Alex caminhou até a casa. Quase ao mesmo tem‐
po, ouviu vozes vindas do outro lado, e um barulho de água. Atravessou o
pátio interno, passando pela fonte e por uma arcada. No outro lado, havia
uma piscina comprida e retangular, cercada por palmeiras que lançavam
sombras sobre as mesas e espreguiçadeiras. Ao longe, viu uma quadra de
tênis recém-construída. Havia vestiários, sauna e um bar externo. Nos fun‐
dos, a Casa de Oro parecia o playground de um multimilionário.
Sarov estava sentado a uma mesa com o presidente, e os dois seguravam
suas bebidas: água para Sarov, coquetel para o convidado. O presidente usa‐
va calção vermelho e uma camisa florida de manga curta, muito folgada no
corpo magro. Quatro homens estavam em pé, próximos a ele — obviamen‐
te, eram os guarda-costas do presidente. Eram imensos, vestidos de preto,
com óculos escuros iguais e um fio espiralado enfiado no ouvido. Havia al‐
go de cômico naquela cena. O homenzinho usando roupas de praia. Três
mulheres muito atraentes sentadas de um lado, balançando os pés na água.
Todas aparentavam ter 20 e poucos anos e estavam de biquíni. Pareciam ser
nativas da ilha. Alex ficou surpreso ao vê-las. Achara Sarov frio demais pa‐
ra apreciar a companhia feminina. Ou elas teriam sido convidadas só por
causa do presidente?
Alex se perguntou se sua presença era permitida naquela parte da casa, e
já estava para ir embora quando Sarov o viu e o chamou com um aceno de
mão. Com a curiosidade ainda mais aguçada, Alex foi até lá. O general fa‐
lou rapidamente com o presidente, que balançou a cabeça e sorriu.
— Bom dia, Alex! — Sarov parecia estar mais alegre que de costume. —
Soube que você andou a cavalo outra vez. Por favor, deixe-me apresentá-lo
ao meu velho amigo Boris Kiriyenko, o presidente da Rússia. Boris, este é o
rapaz de que falava.
O presidente russo estendeu a mão e cumprimentou Alex, que pôde sen‐
tir o cheiro de álcool no hálito do homem. Independentemente do tipo de
bebida que havia naquele coquetel, ele já bebera demais.
— É um prazer — disse o homem, em inglês, com um forte sotaque.
Apontou com o dedo para Alex e falou em russo. Alex ouviu o nome Vladi‐
mir ser mencionado duas vezes.
Sarov respondeu rapidamente, depois traduziu para Alex.
— Ele disse que você lembra o meu filho — falou, depois sorriu. —
Quer tomar banho de piscina, Alex? Parece estar com vontade.
Alex olhou para as três mulheres.
— Salva-vidas pouco comuns.
Sarov riu.
— Um pouco de companhia para o presidente. Afinal, ele está de férias.
Embora infelizmente tenhamos que cumprir um pequeno compromisso. A
emissora de TV daqui, é claro, está interessada no nosso convidado ilustre,
e Boris concordou em conceder uma breve entrevista. A equipe deve chegar
a qualquer momento.
O presidente concordou, mas Alex não teve certeza de que ele de fato en‐
tendera.
— Pode ficar com a piscina. Vamos a Santiago após o almoço, mas espe‐
ro que você venha jantar conosco, Alex. O chef planejou uma surpresa es‐
pecial para o prato principal.
Houve um movimento perto da arcada que dava passagem para a casa.
Conrad apareceu e, com ele, uma mulher baixinha com um jeito sério, de
vestido verde-oliva. Atrás dela, dois homens com câmeras e equipamentos
de iluminação.
— Ah! Aí estão! — Sarov virou-se para o presidente e, de repente, es‐
queceu Alex.
O garoto ficou de calção e mergulhou na piscina. Após a longa cavalga‐
da, a água estava gostosa e refrescante. Ele notou que as três mulheres o ob‐
servavam enquanto ele nadava. Uma piscou para ele, outra deu uma risadi‐
nha.
Enquanto isso, a equipe de TV preparava o equipamento à sombra das
palmeiras. O presidente russo fez sinal com a mão, e um dos guarda-costas
lhe trouxe mais um coquetel. Alex estava surpreso que um homem com
uma aparência tão insignificante pudesse ser o dirigente de um país imenso.
Mas então pensou que em sua maioria os políticos eram baixinhos e deca‐
dentes — o tipo de gente que é alvo de piada na escola. É por isso que se
tornam políticos.
Alex tirou o homem dos seus pensamentos e concentrou-se na natação.
Ao mesmo tempo, ficou pensando no que Sarov acabara de dizer. Eles iam
à cidade depois do almoço. Isso significava que os carros sairiam da propri‐
edade. Era a sua única chance. Sabia que não havia como sair da ilha. No
momento em que sua ausência fosse percebida, seria dado o alerta. Cada
guarda do aeroporto estaria à sua procura, e ele duvidava de que fosse pos‐
sível pegar um barco. Mas, se ao menos pudesse encontrar um telefone que
funcionasse e não precisasse de um código de acesso, entraria em contato
com os Estados Unidos, e eles enviariam alguém para buscá-lo.
Terminou a oitava volta na piscina e se virou para iniciar a nona. O presi‐
dente russo estava sentado em uma cadeira, e colocavam-lhe os fios do mi‐
crofone. Juan, o guarda particular de Alex, esperava por ele na outra ponta
da piscina. O garoto suspirou. Teria que fazer alguma coisa para se livrar de
Juan.
A entrevista começou. Sarov observava atentamente, e mais uma vez
Alex teve a impressão de que havia algo mais por trás daquilo.
Saiu da piscina e voltou ao quarto para se vestir.

Vestiu outro calção e uma camiseta de algodão, ambos escolhidos em fun‐


ção de suas cores neutras, o que lhe permitiria mesclar-se à paisagem e pas‐
sar despercebido. Colocou no bolso os chicletes que Smithers lhe dera. Se
tudo corresse conforme planejava, iria precisar deles.
Juan estava em pé fora do quarto. De repente, Alex ficou nervoso com o
que estava prestes a fazer. Afinal, Sarov já o avisara do que aconteceria se
tentasse fugir. Seria morto — ou, no mínimo, espancado. Mas então se lem‐
brou da bomba nuclear. Sarov precisava ser detido. A decisão já estava to‐
mada.
De repente, o garoto ficou imóvel e gemeu. Seu rosto se contorceu de
dor, e ele cambaleou para o lado, estendendo a mão para apoiar o corpo. Ju‐
an se adiantou e entrou no quarto com um jeito preocupado. Naquele instan‐
te, Alex endireitou o corpo. Deu um chute circular frontal, calculado com
perfeição, que acertou a barriga flácida do sujeito. O homem nem gritou.
Com a respiração interrompida, desabou no chão, imóvel. Não era a primei‐
ra vez que Alex se sentia grato pelos cinco anos de treinamento que lhe ren‐
deram a faixa-preta — primeiro Dan — de caratê. Aprontou-se depressa.
Tirou o lençol da cama e o rasgou em tiras. Amarrou os pés e as mãos de
Juan, e o amordaçou. Por fim, saiu do quarto e trancou a porta. Levariam
horas até encontrar o guarda. Quando o encontrassem, Alex já estaria bem
longe.
Saiu do barracón. As limusines pretas ainda estavam estacionadas diante
da casa, aguardando que o presidente e seus homens saíssem. Não havia
ninguém à vista. Alex correu. Sarov lhe permitira andar por toda a proprie‐
dade, mas só se estivesse acompanhado. Se alguém o visse sem o guarda,
poderia adivinhar o que acontecera. Alex alcançou a casa e parou, sem fôle‐
go, com as costas contra a parede. O calor da tarde era tanto que a corrida,
ainda que curta, o fez suar. Analisou os carros. Eram três. O que saíra pela
manhã ainda não tinha voltado. A dúvida era: quando o presidente fosse a
Santiago, em que carro iria? Ou será que os três o acompanhariam?
Alex estava prestes a começar a correr quando ouviu passos se aproxi‐
mando pela lateral da casa. Eram guardas ou trabalhadores que vinham na
direção dele. Quando dobrassem a esquina, o veriam. Havia uma porta es‐
treita de um lado. Não a vira antes. Tateou procurando a maçaneta. Feliz‐
mente, não estava trancada. Assim que os dois homens de uniforme militar,
ambos armados, apareceram a poucos metros, ele entrou e fechou a porta.
Sentiu o frio do ar-condicionado envolver seu corpo. Olhou em volta. Es‐
tava em uma parte da casa que parecia totalmente diferente do resto. Ali, o
piso de madeira e a mobília antiga davam lugar a um ambiente moderno e
de alta tecnologia. Lâmpadas de halogênio iluminavam o caminho para um
corredor curto com portas de vidro dos dois lados. Intrigado, Alex foi um
pouco mais adiante. Chegou à primeira porta e olhou para dentro.
Dois técnicos estavam sentados olhando para uma bancada onde havia
monitores de TV. A sala não era grande e parecia uma ilha de edição de um
estúdio televisivo. Destravou a porta. Os técnicos não tinham como ouvi-lo.
Os dois usavam fones de ouvido ligados às máquinas na frente deles. Alex
examinou as telas.
Todas as peças da casa principal estavam sob vigilância. Ele reconheceu
imediatamente o quarto em que dormira. E lá estavam a cozinha, a sala do
café da manhã e o pátio principal, onde caminhavam dois dos homens do
presidente. Virou-se para outra tela e ficou olhando espantado. Viu a si mes‐
mo nadando na piscina. Aquilo também fora gravado. E lá estava Sarov,
sentado com o copo de água na mão enquanto, na tela ao lado, o presidente
dava a entrevista à equipe de TV que Alex vira chegar.
O garoto levou um tempo para entender exatamente o que via. Tudo esta‐
va sendo gravado e editado. Era o que os técnicos faziam naquele momento.
A chegada de Boris Kiriyenko passava em uma tela. Logo adiante, o presi‐
dente esvaziava uma taça de conhaque, provavelmente na noite anterior. Em
uma terceira tela, as moças que Alex vira na piscina eram apresentadas ao
presidente russo. Davam sorrisinhos afetados e usavam vestidos tão curtos
que não deixavam nada à imaginação. Será que ele as levara para o quarto?
Caso tivesse levado, sem dúvida isso também tinha sido gravado.
Uma imagem piscou. E lá estava o presidente dando a sua entrevista. Um
dos técnicos deve ter recebido a filmagem feita pela mulher de vestido ver‐
de. Kiriyenko falava direto para a câmera, totalmente sério — embora pare‐
cesse um pouco ridículo com aquela camisa florida. Na tela ao lado, o presi‐
dente nadava na piscina com uma das mulheres.
O que significava tudo aquilo? Para que Sarov queria aquelas gravações?
Será que a Casa de Oro nada mais era que uma armadilha elaborada e atrati‐
va em que o presidente da Rússia caíra sem perceber?
Alex não podia mais ficar ali. Depois de tudo o que acabara de ver, ele ti‐
nha de fugir e avisar os americanos com a maior urgência. Estava com re‐
ceio de perder a saída dos carros — e não teria uma segunda chance.
Abriu a porta e olhou para fora. Os carros ainda estavam lá, mas os guar‐
das haviam sumido. Olhou o relógio. Eram 14 horas. Se o almoço ainda não
tivesse terminado, não demoraria nada. Tinha que ser agora! Correu para o
carro mais próximo e procurou a trava do porta-malas. Estaria trancado?
Com o polegar, achou o botão prateado e pressionou-o. Para seu alívio, a
tampa se abriu. Era um carro grande e tinha bastante espaço. Jogou-se lá
dentro, esticou a mão e puxou a tampa para trancá-la. No mesmo instante,
se viu na mais completa escuridão e foi difícil não entrar em pânico. Era co‐
mo ser enterrado vivo. Tentou relaxar. Ia dar tudo certo. Desde que ninguém
abrisse o porta-malas para colocar bagagens, ele não seria visto. A limusine
o tiraria da propriedade e, quando estacionasse em Santiago, Alex poderia
fugir.
É claro que a parte mais difícil ainda estava por vir. Alex não enxergava
o que havia fora do carro. Não enxergava nem a própria mão diante do ros‐
to. Estava totalmente cego. Precisaria ouvir com atenção e adivinhar quan‐
do o motorista e os passageiros tivessem ido embora e depois torcer que
desse tudo certo. Seria impossível abrir a tampa do porta-malas pelo lado de
dentro. Alex sabia disso, e por esse motivo trouxera o chiclete. Escolheria o
momento certo e o usaria para estourar o trinco. Com um pouco de sorte,
conseguiria misturar-se à multidão antes que alguém percebesse o que havia
acontecido.
Mas já se perguntava se aquilo fora mesmo uma boa ideia. Estava quente
dentro do porta-malas. Ele podia sentir o sol batendo no carro e constatou
que se trancara dentro de um forno. Transpirava por todos os poros. Suas
roupas já estavam encharcadas, e ele podia ouvir o suor pingar na superfície
de metal abaixo dele. Quanto ar haveria no porta-malas? Meu Deus! Se Sa‐
rov não aparecesse logo, Alex teria que explodir a tampa ainda dentro da fa‐
zenda e encarar as consequências.
Fez de tudo para controlar o pânico e tentou respirar o mínimo possível.
Seus próprios batimentos cardíacos ressoavam nos ouvidos. Sentia o cora‐
ção bater forte no peito, bombeando o sangue pelo corpo. As veias do pes‐
coço e dos pulsos acompanhavam o ritmo. Alex queria esticar as pernas,
mas não se atrevia a se mexer para não correr o risco de sacudir o carro. Os
minutos se arrastavam — e de repente ele ouviu vozes. Ouviu também o ba‐
rulho metálico das portas do carro se abrindo e sentiu todo o veículo balan‐
çar, de um lado para o outro, quando os passageiros entraram. Encolhido em
posição fetal, Alex esperava o porta-malas ser aberto, mas o presidente, ou
outros passageiros, não levava nenhuma bagagem. O motor foi ligado. Alex
sentiu a vibração, o carro começou a andar e, quando pegou a estrada de
terra, fez com que Alex sacolejasse para cima e para baixo.
Cerca de um minuto depois, o carro diminuiu a velocidade outra vez, e
Alex imaginou que se aproximavam do portão e da guarita. Era outro moti‐
vo de preocupação. Os guardas revistariam o carro? Mas já tinha visto uma
limusine sair da propriedade naquela manhã, sem que o porta-malas fosse
revistado, embora os guardas estivessem lá.
O carro parou. Alex não se moveu. Estava tudo escuro. Alguém gritou
alguma coisa, mas ele não conseguiu entender nada. O carro parecia estar
parado há horas. Por que demorava tanto? Andem logo! Alex sentia cada
vez mais dificuldade para respirar. Parecia que o ar já estava acabando.
Então, o carro começou a andar, e Alex soltou um suspiro de alívio. Po‐
dia até imaginar a cancela subindo para deixar a limusine passar. A Casa de
Oro devia ter ficado para trás. Qual seria a distância até Santiago? Como ele
poderia ter certeza de que haviam chegado?
O carro parou outra vez. Alex ouviu o barulho de um trinco.
A luz intensa do sol entrou. Alex piscou e ergueu a mão para se proteger.
— Saia! — disse uma voz em inglês.
Todo encharcado de suor, Alex saiu. Sarov estava em pé à sua frente.
Conrad, ao lado do general, segurava uma pistola automática e nem tentava
disfarçar seu olhar de satisfação. O garoto olhou em volta. O carro nem ti‐
nha saído da fazenda. Simplesmente andara para frente e dera meia-volta.
Esse fora o movimento que ele sentira. Dois guardas o observavam com
uma cara inexpressiva. Um deles segurava um aparelho um pouco parecido
com um megafone, desses que os professores usam na escola na hora do re‐
creio. Estava ligado por um longo fio até uma caixa logo na entrada do pré‐
dio.
— Se você queria visitar Santiago, era só pedir — disse Sarov. — Mas
não acho que fosse essa a sua intenção. Acho que estava fugindo.
Alex não disse nada.
— Onde está Juan? — perguntou Sarov.
Alex continuou em silêncio.
Sarov olhou fixamente para o garoto. Parecia estar sentindo dor, como se
não entendesse o motivo de Alex ter lhe desobedecido e não soubesse muito
bem o que fazer.
— Você me decepcionou, Alex — falou ele, depois de algum tempo.
— Já esteve na caverna. Viu como os meus sistemas de segurança são
sofisticados. Você realmente pensou, por um único minuto, que eu permiti‐
ria que um carro saísse ou entrasse na propriedade sem saber exatamente
quem ou o que ele transportava?
De repente, o general estendeu a mão e pegou o aparelho parecido com
um megafone que estava com o guarda. Apontou-o para o peito do Alex e
apertou um botão. De imediato, ouviu-se um som de pulsação que ecoava
pelo ar. O garoto levou um ou dois segundos para perceber que se tratava do
seu próprio batimento cardíaco, amplificado e transmitido para um sistema
de alto-falantes oculto em algum lugar dentro da guarita.
— O carro foi examinado ao passar pela cancela — explicou Sarov.
— Todos os carros são examinados ali, com este aparelho que estou se‐
gurando. É um sensor sofisticado. A ideia é muito simples, na verdade. Foi
isso o que o guarda ouviu. E você pode ouvir agora.
“Tum... tum... tum...”
Alex ouvia o próprio coração batendo.
De repente, Sarov ficou furioso. Nada se alterara em seu rosto, mas seus
olhos azuis muito claros se transformaram em pedras de gelo, e havia nele
uma terrível indiferença, como se de uma hora para a outra a sua própria vi‐
da lhe tivesse sido arrancada.
— Você não se lembra do que eu lhe falei? — sussurrou o general. — Se
tentasse fugir, seria morto a tiros. Conrad quer muito matá-lo. Ele acha que
sou um tolo por tê-lo aqui como hóspede. E, aparentemente, ele tem razão.
Conrad deu um passo à frente, com a arma apontada.
“Tum... tum... tum... tum...”
O coração do Alex parecia um animal dentro dele, fora de controle, rea‐
gindo ao medo que sentia. Não havia nada que pudesse fazer para disfarçar.
Seu coração batia cada vez mais alto e mais rápido, ecoando pelos alto-fa‐
lantes.
— Não entendo você, Alex. Não tem ideia do que estou lhe oferecendo?
Não escutou uma só palavra do que eu falei? Eu lhe ofereço a minha prote‐
ção, e você me trata como inimigo! Quero que seja meu filho, mas em vez
disso você me obriga a exterminá-lo.
Conrad encostou a arma no coração de Alex.
“Tum, tum, tum, tum, tum, tum, tum, tum...”
— Ouça o som do seu próprio pavor. Está ouvindo? E quando ouvir o si‐
lêncio, o que pode ser daqui a alguns segundos, saberá que está morto.
O dedo de Conrad contraiu-se no gatilho.
Então Sarov desligou o sensor.
A pulsação parou.
Alex sentiu como se tivesse sido baleado. O silêncio súbito o atingiu co‐
mo se fosse uma martelada. A bala de uma arma. Caiu de joelhos e afundou
na terra, mal conseguindo respirar. Ficou ali ajoelhado na poeira, com as
mãos pendendo ao lado do corpo. Não tinha mais forças para se levantar.
Sarov olhou para ele, e agora só havia tristeza em seu rosto.
— Ele aprendeu a lição — disse ele. — Levem-no de volta para o quarto.
O general baixou o sensor e, virando as costas para o garoto ainda ajoe‐
lhado, subiu devagar no carro.
14
O LIXO NUCLEAR

ÀS 19 HORAS daquela mesma noite, a porta da cela de Alex se abriu, e


Conrad apareceu, usando terno e gravata. As roupas elegantes enfeiavam
ainda mais a cabeça com a metade careca, o rosto destruído e o olho contor‐
cido.
— Você está convidado para o jantar — disse Conrad.
— Não, obrigado, Conrad — respondeu Alex. — Não estou com fome.
— Não é o tipo de convite que você possa recusar.
Conrad inclinou a mão para olhar o relógio. A mão dele fora religada ao
pulso de forma errada. Para conseguir ver o mostrador do relógio, ele tinha
que fazer um longo movimento.
— Você tem cinco minutos — disse ele. — Deverá estar vestido a rigor.
— Tenho a impressão de que deixei o meu paletó na Inglaterra.
Conrad o ignorou e fechou a porta.
Alex impulsionou as pernas para fora do beliche em que estivera deitado.
Tinha ficado na cela desde que fora capturado no portão, tentando imaginar
vagamente o que aconteceria a seguir. Um convite para jantar era a última
coisa que esperava receber. Não vira nem sinal de Juan desde que retornara.
Era possível que o jovem guarda tivesse sido repreendido ou mandado em‐
bora por sua falha ao vigiar Alex. Ou talvez o teriam matado. Já não fazia a
menor ideia do que Sarov tinha em mente para ele naquela noite, mas sabia
que, na última vez que se encontraram, conseguira escapar com vida. Sarov
ainda mantinha aquela fantasia de adotá-lo. Não fosse por isso, ele já estaria
morto.
Resolveu que, de um modo geral, seria melhor cooperar e aceitar o con‐
vite para o jantar. No mínimo, isso lhe permitiria descobrir um pouco mais
sobre o que estava acontecendo. Ele ficou se perguntando se o jantar seria
filmado. Caso fosse, a filmagem seria usada para quê? Alex pegou uma ca‐
misa limpa e calças pretas na mala. Lembrou-se de que o diretor maluco de
Point Blanc, o dr. Grief, usara câmeras ocultas na academia para espionar os
garotos. Mas isso era diferente. O filme que ele vira na ilha de edição estava
sendo cortado, remontado e manipulado. Seria usado para alguma coisa. O
que poderia ser?
Conrad voltou exatamente cinco minutos depois. Alex estava pronto.
Mais uma vez, foi escoltado da senzala até a casa-grande. Ouviu o som de
música clássica vindo lá de dentro. Chegou ao pátio e viu um trio — dois
violinistas idosos e uma senhora gorducha com um violoncelo — tocando
algo que parecia Bach, com a fonte jorrando suavemente por trás. Havia
uma dúzia de pessoas ali reunidas, bebendo champanhe e comendo canapés
que eram servidos em bandejas de prata por garçonetes de avental branco.
Os quatro guarda-costas estavam juntos em pé, formando um círculo fecha‐
do e atento. Outros cinco homens da delegação russa conversavam com as
mulheres da piscina, que agora brilhavam com suas bijuterias e vestidos de
lantejoulas.
O presidente, com um copo em uma das mãos e um charuto enorme na
outra, conversava com Sarov. O general disse alguma coisa, e o presidente
riu alto, com a fumaça ondulada saindo-lhe por entre os lábios. Sarov perce‐
beu Alex chegar e sorriu.
— Ah, Alex! Aí está você! O que vai beber?
Parecia que o que acontecera à tarde havia sido esquecido. Pelo menos,
não voltaria a ser mencionado. Alex pediu um suco de laranja, que lhe trou‐
xeram prontamente.
— Estou contente que esteja aqui, Alex — disse Sarov. — Não quis co‐
meçar sem você.
Alex se lembrou de algo que Sarov dissera na piscina. Algo sobre uma
surpresa. O garoto começava a ter um pressentimento ruim sobre o jantar,
mas sem saber por quê.
O trio terminou de tocar uma música e ouviram-se alguns aplausos dis‐
persos. Nisso, as portas da casa se abriram, e os convidados passaram para a
sala de jantar. Era a mesma onde Alex e Sarov haviam tomado o café da
manhã, mas fora transformada para o banquete. Os copos eram de cristal, os
pratos, de porcelana branca e garfos e facas brilhavam de tão polidos. A to‐
alha de mesa, também branca, parecia nova. Havia treze lugares à mesa —
seis de cada lado e um na cabeceira. Alex notou aquele número com uma
sensação ainda maior de inquietação. Treze, o azarão.
Todos tomaram seus lugares. Sarov sentou-se à cabeceira, com Alex de
um lado e Kiriyenko do outro. As garçonetes entraram na sala, dessa vez
trazendo tigelas cheias até a borda de minúsculos ovinhos pretos, que Alex
reconheceu como caviar. Sarov importara direto do Mar Negro e deviam ter
custado vários milhares de dólares. Os russos tradicionalmente comem ca‐
viar bebendo vodca e, tão logo as tigelas foram distribuídas ao longo da me‐
sa, cada um dos convidados recebeu um copinho quase transbordando.
Então, Sarov se levantou.
— Meus amigos — começou ele. — Espero que me perdoem por me di‐
rigir a vocês falando em inglês. Infelizmente, há aqui um convidado que
ainda não aprendeu o nosso glorioso idioma.
Houve sorrisos pela mesa, e algumas cabeças acenaram na direção de
Alex. Sem saber o que fazer, o garoto olhou para a toalha.
— Esta noite é muito significativa para mim. O que posso lhes dizer a
respeito de Boris Nikita Kiriyenko? Ele tem sido o meu amigo mais íntimo
e mais querido por mais de cinquenta anos! É estranho pensar que ainda
consigo me lembrar dele como a criança que provocava os animais, que
chorava quando havia briga e que nunca dizia a verdade!
Alex olhou para Kiriyenko. O presidente estava de cara fechada. Tudo
indicava que Sarov estivesse brincando, mas a piada não o agradara.
Ele continuou.
— É ainda mais difícil acreditar que esse é o mesmo homem a quem se
confiou o privilégio, a honra sagrada de governar o nosso grande país nestes
tempos difíceis. Bem, Boris veio aqui para descansar. Tenho certeza de que
ele precisa de descanso após tanto trabalho duro. E é a isso que desejo brin‐
dar nesta noite: às férias dele! Espero que sejam longas e memoráveis como
ele nunca sonhou!
Houve um breve silêncio. Alex sentiu que os convidados estavam confu‐
sos. Talvez tivessem achado difícil entender o inglês de Sarov. Mas ele des‐
confiava de que fora o que o general dissera, e não o seu jeito de dizê-lo,
que os deixara impressionados. Vieram na expectativa de um jantar agradá‐
vel. Porém, em vez disso, Sarov estava insultando o presidente da Rússia!
— Alexei, meu velho amigo! — disse o presidente. Boris concluíra que
aquilo fora uma brincadeira. Sorriu e acenou com a cabeça apontando o co‐
po de Sarov, que permanecia vazio sobre a mesa ao lado dele. — Por que
não bebe conosco? — perguntou.
— Você sabe que não tomo bebida alcoólica — respondeu Sarov. — E
imagino que concorde: com 14 anos, meu filho é jovem demais para beber
vodca.
— Tomei a minha primeira vodca aos 12 anos — resmungou o presiden‐
te.
Por algum motivo, Alex não se surpreendeu.
Kiriyenko ergueu o copo.
— Na zdarovie! — falou.
Eram praticamente as únicas palavras russas que Alex entendia: “à sua
saúde!”
— Na zdarovie! — as pessoas à mesa brindaram em coro.
Todos juntos, beberam de um só gole a vodca gelada, conforme a tradi‐
ção.
Sarov voltou-se para Alex.
— Agora vai começar — falou baixinho.
Um dos guarda-costas foi o primeiro a ter uma reação. Estava se estican‐
do para se servir de caviar quando, de repente, suas mãos deram uma sacu‐
dida e deixaram cair o garfo e o prato, fazendo um barulho. Todos se vira‐
ram para ele. Um segundo depois, no extremo oposto, um dos outros ho‐
mens se jogou para a frente de cabeça, por cima da mesa, e a cadeira dele
caiu para trás. Enquanto Alex assistia, com os olhos arregalados, todas as
pessoas à mesa começaram a ter reações semelhantes. Uma caiu para trás,
levando junto a toalha, e os copos e os talheres caíram sobre seu colo. Mui‐
tas simplesmente afundaram no assento. Outro guarda-costas conseguiu fi‐
car em pé e procurava a arma sob o paletó, mas seus olhos se petrificaram, e
ele desabou. Boris Kiriyenko foi o último. Estava em pé, cambaleando co‐
mo um touro ferido. Seu punho estava cerrado como se ele soubesse que fo‐
ra traído e quisesse atacar o homem que fizera aquilo. Depois, caiu sentado.
A cadeira se inclinou, e ele foi atirado no chão.
Sarov murmurou algumas palavras em russo.
— O que o senhor fez? — perguntou Alex, ofegante. — Eles estão...?
— Estão inconscientes, não mortos — disse Sarov. Ele sorriu, e o garoto
percebeu que fora convidado para testemunhar aquela demonstração de for‐
ça. Sarov queria que Alex soubesse que ele tinha o controle total da situa‐
ção. — Serão levados para a senzala e ficarão lá trancados até que não me
sejam mais úteis.
— O que o senhor está pretendendo fazer? — perguntou Alex. — O que
o senhor vai fazer?
— Temos uma longa viagem pela frente — disse Sarov. — Eu lhe conta‐
rei no caminho.

Todos os prédios da propriedade estavam iluminados. Homens — guardas e


macheteros — corriam para todos os lados. Alex ainda estava vestindo as
roupas que usara no jantar. Sarov se trocara e agora vestia um uniforme mi‐
litar verde-escuro, dessa vez sem as medalhas. Uma das limusines pretas
aguardava. Conrad estava ao volante de um caminhão militar. Enquanto
Alex observava, mais dois guardas apareceram na entrada principal da Casa
de Oro e começaram a descer os degraus largos. Andavam bem devagar,
carregando algo entre eles. No momento em que apareceram, todos em vol‐
ta pararam.
Era um baú grande e prateado, do tamanho de uma máquina de lavar rou‐
pas. Alex conseguiu ver que a parte de cima era de metal liso, mas continha
diversos interruptores e mostradores, e ainda uma espécie de dispositivo
com uma ranhura na lateral. Sarov observava enquanto o baú era carregado
e colocado no caminhão. Todos os outros homens faziam o mesmo, como se
os dois guardas tivessem acabado de sair de uma igreja e aquilo que carre‐
gavam fosse a imagem de um santo. Alex estremeceu. Sabia exatamente o
que era aquilo e não precisava de nenhum medidor Geiger para confirmar.
Era a bomba nuclear.
— Alex? — Sarov segurava a porta do carro para ele.
Estupefato, Alex entrou. Sabia que chegara ao fim. Sarov mostrara o jo‐
go e iniciara uma série de eventos, e já não havia possibilidade de voltar
atrás. E mesmo naquele momento, naquela etapa já avançada, o garoto não
fazia a menor ideia do que o general pretendia fazer.
Sarov sentou-se ao lado dele. O motorista entrou, e eles partiram, com
Conrad seguindo atrás, no caminhão. No último instante, quando passaram
pela cancela, Sarov olhou muito rapidamente para trás, e Alex percebeu o
olhar dele e entendeu que o general não pretendia voltar ali nunca mais. Ha‐
via uma centena de perguntas que o garoto queria fazer, mas não disse nada.
Não era a hora. O general estava calado, com as mãos sobre os joelhos. Mas
até ele não conseguia disfarçar a tensão. Deviam ter sido anos de planeja‐
mento para chegar até ali.
Andaram por estradas escuras, com apenas algumas luzes aqui e ali, pro‐
vando que a ilha era realmente desabitada. Nenhum carro cruzou com eles.
Porém, depois de uns dez minutos, começaram a passar por outros prédios.
Olhando pela janela, Alex viu homens e mulheres sentados em frente às ca‐
sas, bebendo rum, jogando cartas, fumando cigarros e charutos sob o céu
noturno. Estavam na periferia de Santiago e, de repente, dobraram uma rua
que Alex reconheceu. Passara por ela na chegada. Iam em direção ao aero‐
porto.
Dessa vez, não havia seguranças nem filas para o controle de passapor‐
tes. Sarov nem mesmo precisou entrar no prédio do terminal principal. Dois
guardas do aeroporto o aguardavam em um portão, que estava aberto para
permitir que ele seguisse direto para a pista. O caminhão o acompanhou.
Alex olhou por cima do ombro do motorista e viu um avião, um Learjet, es‐
tacionado sozinho. Pararam.
— Vamos — disse Sarov.
Uma brisa soprava pela pista do aeroporto, trazendo o cheiro de combus‐
tível de aviação. Alex ficou em pé no chão de concreto, observando o baú
prateado ser carregado para dentro do avião, enquanto Conrad dava as ins‐
truções aos gritos. Achou difícil acreditar que uma coisa aparentemente tão
banal fosse capaz de provocar uma destruição em massa. Lembrou-se dos
filmes a que assistira. Nuvens de cogumelo. Chamas e ventos fortíssimos
varrendo e destruindo cidades inteiras. Arranha-céus desmoronando. Pesso‐
as virando cinzas em questão de segundos. Carros e ônibus parecendo brin‐
quedos sendo desmanchados por um simples peteleco. Como podia uma
bomba tão terrível e poderosa ser tão pequena?
O próprio Conrad fechou a porta do compartimento de carga. Virou-se
para Sarov e acenou afirmativamente a cabeça. Sarov respondeu com o
mesmo gesto. A contragosto, Alex subiu a escada do avião. Sarov foi logo
atrás. Conrad e os dois homens que transportavam a bomba os seguiram. A
porta do avião foi fechada e travada.
O garoto se viu em um compartimento luxuoso, um avião diferente de
todos os que já conhecera. Havia apenas doze poltronas, todas estofadas em
couro. O chão era coberto por um carpete bem espesso. Alex observou o bar
bem abastecido, a cozinha e, junto à cabine do piloto, a TV de sessenta po‐
legadas. Não perguntou que filme passaria. Escolheu uma poltrona perto da
janela — se bem que todas ficavam na janela. Sarov sentou-se do lado
oposto do corredor. Conrad ficou na poltrona atrás do general. Os dois guar‐
das acomodaram-se no fundo do compartimento. Alex se perguntou qual se‐
ria o motivo de estarem viajando com eles. Mantê-lo sob vigilância?
E que viagem era aquela exatamente? Iriam para os Estados Unidos ou
atravessariam o Atlântico?
Sarov pareceu ter lido a mente do garoto.
— Eu lhe explicarei dentro de poucos minutos — disse. — Assim que
decolarmos.
Na verdade, demorou uns quinze minutos até que o Learjet desse a volta
na pista e decolasse como se não precisasse fazer nenhum esforço. As luzes
da cabine haviam diminuído, porém, assim que o avião alcançou a altitude
de 30 mil pés, elas voltaram ao normal. Os guardas se levantaram e servi‐
ram um chá quente que fora preparado na cozinha. Sarov se permitiu outro
breve sorriso. Apertou um botão no braço da poltrona, virando-a, de modo
que ficou de frente para Alex.
— Talvez você esteja se perguntando por que decidi não o matar — co‐
meçou dizendo. — Hoje à tarde, quando o encontrei no carro... estive muito
perto disso. Conrad continua zangado comigo. Ele não me entende. Acha
que estou cometendo um erro. Mas vou lhe dizer o motivo de você ainda es‐
tar vivo, Alex. Você trabalha para o serviço secreto britânico. Você é um es‐
pião. E está apenas fazendo o seu trabalho. Admiro isso e, por esse motivo,
o perdoei. Você é leal ao seu país, da mesma forma que sou leal ao meu. O
meu filho, Vladimir, morreu pelo país dele. Estou orgulhoso de que você es‐
teja pronto para fazer o mesmo pelo seu.
Alex só assimilou o que o general dizia.
— Para onde estamos indo? — perguntou.
— Para a Rússia. Para ser mais exato, estamos indo para Murmansk, que
é um porto na península de Kola.
Murmansk! Alex tentou lembrar se já ouvira aquele nome antes. Parecia
mesmo familiar. Teria sido no noticiário? Ou talvez em alguma aula? Um
porto na Rússia! Mas por que estavam indo para lá... e transportando uma
bomba nuclear?
— Você deve querer saber sobre a nossa rota de voo — continuou Sarov.
— Atravessaremos o Atlântico pelo norte. Isso significa cruzar o círculo ár‐
tico. Resumindo, estamos pegando um atalho ao seguir a curvatura da Terra.
Teremos que fazer duas paradas para abastecer. Uma em Gander, na costa
leste do Canadá. Outra nas ilhas britânicas, em Edimburgo.
Sarov deve ter percebido a expressão de esperança nos olhos de Alex.
Ele continuou:
— Sim. Amanhã você estará na sua terra por uma hora ou duas. Mas, por
favor, não fique imaginando coisas. Não permitirei que você desça do
avião.
— Vai demorar tudo isso para chegar lá? — perguntou Alex.
— Com a primeira parada e a diferença de fuso horário, sim. Talvez te‐
nhamos que fazer algumas cortesias diplomáticas com as autoridades cana‐
denses e britânicas. Este é o avião particular de Kiriyenko. Registramos o
nosso plano de voo junto ao controle aéreo europeu e eles, naturalmente, re‐
conheceram o nosso número de série. Acreditam que o presidente está a
bordo. Suponho que os embaixadores do Canadá e da Inglaterra estarão dis‐
postos a nos oferecer a sua hospitalidade.
— Quem está pilotando o avião?
— O piloto de Kiriyenko. No entanto, ele é leal a mim. Um grande nú‐
mero de cidadãos russos acredita em mim, Alex. Eles conseguem enxergar
o futuro... o futuro que eu vejo. Preferem esse futuro àquele que lhes foi
oferecido antes.
— O senhor ainda não me disse que futuro é esse. Por que estamos indo
para Murmansk?
— Vou lhe contar agora. E depois, teremos que dormir. Temos uma longa
noite pela frente.
Sarov cruzou as pernas. Havia uma luz bem acima dele que apontava pa‐
ra baixo, de modo que os olhos e a boca faziam sombras. Naquele momen‐
to, ele parecia tanto muito velho como muito jovem. Não havia nenhuma
expressão no seu rosto.
— Murmansk — começou ele — é a base de submarinos da Frota Seten‐
trional Russa. Ou era. Hoje em dia, é simplesmente o maior depósito de lixo
nuclear do mundo. O fim da Rússia como potência mundial levou ao rápido
declínio do Exército, da Força Aérea e da Marinha. Já tentei lhe explicar o
que aconteceu ao meu país nos últimos vinte anos. A forma como deixaram
que ele se desintegrasse, com a pobreza, a criminalidade e a corrupção es‐
gotando o povo. Bem, esse processo de decadência pode ser visto claramen‐
te em Murmansk. Uma frota de submarinos nucleares está atracada lá.
Quando digo “atracada”, quero dizer “abandonada”. Um deles, o Lepse,
tem mais de sessenta anos e contém 642 pacotes de barras de combustível.
Esses submarinos estão apodrecendo e se desintegrando. Ninguém se im‐
porta. Ninguém consegue dinheiro para fazer alguma coisa. É um fato bem
documentado, Alex, que esses velhos submarinos representam hoje a maior
ameaça para o mundo. São cem submarinos! Estou falando de um quinto do
combustível nuclear mundial. Cem bombas-relógio, só esperando para ex‐
plodir. Um acidente pronto para acontecer. Um acidente que eu resolvi pro‐
vocar.
Alex abriu a boca para interrompê-lo, mas Sarov ergueu a mão para que
continuasse em silêncio.
— Deixe-me explicar o que aconteceria se apenas um desses submarinos
explodisse — continuou. — Em primeiro lugar, um número imenso de cida‐
dãos russos da península de Kola e no norte morreria. Muitas outras pessoas
morreriam em países vizinhos como a Noruega e a Finlândia. Nesta época
do ano, o vento sopra para o oeste, de modo que as partículas radioativas re‐
sultantes da explosão nuclear se espalhariam por toda a Europa, até pelo seu
país. É bem possível que Londres se torne um lugar inabitável. Com o pas‐
sar dos anos, outros milhares de pessoas adoeceriam e teriam mortes lentas
e dolorosas.
— Então por que fazer isso? — gritou Alex. — Por que vai provocar a
explosão? Que bem isso poderá causar?
— Se preferir assim, digamos que darei um alerta ao mundo — explicou
Sarov. — Amanhã à noite, aterrissarei em Murmansk e colocarei a bomba
que você viu entre os submarinos.
O general enfiou a mão no bolso de cima e tirou um cartãozinho plástico.
Parecia um cartão de crédito, com uma tarja magnética de um lado.
— Esta é a chave que detonará a bomba — disse. — Todos os códigos e
dados necessários estão nesta tarja magnética. Tudo o que preciso fazer é
inserir o cartão na bomba. No momento da explosão, estarei a caminho de
Moscou, ao sul, fora de perigo.
— A explosão será sentida em todos os países do mundo — continuou
ele. — Você pode imaginar o impacto e o horror que vou provocar. E nin‐
guém saberá que foi causado por uma bomba levada propositalmente até
Murmansk. Acharão que foi um dos submarinos. O Lepse, talvez. Ou um
dos outros. Como disse, é um acidente sempre prestes a acontecer. E, quan‐
do acontecer, ninguém vai suspeitar da verdade.
— Eles vão suspeitar, sim! — disse Alex. — A CIA sabe que o senhor
comprou urânio. Vai descobrir que os agentes morreram.
— Isso pode até ser verdade. Mas, quando tiverem conseguido reunir
provas contra mim, já será tarde demais.
— Não entendo! — exclamou Alex. — O senhor já disse... que vai matar
milhares de pessoas do seu próprio país. Que sentido faz uma coisa dessas?
— Você é jovem. Não sabe nada sobre o meu povo. Mas me ouça, Alex,
eu vou explicar. Quando esse desastre acontecer, o mundo inteiro vai se unir
para condenar a Rússia. Seremos odiados. E o povo russo ficará envergo‐
nhado. Ah, se ao menos fôssemos menos descuidados, menos burros, me‐
nos pobres, menos corruptos... se ao menos ainda fôssemos a superpotência
que um dia fomos... E será nesse momento que todos — na Rússia e no res‐
to do mundo — procurarão a liderança de Boris Kiriyenko. O presidente
russo! E o que verão?
— O senhor fez um filme com ele — murmurou Alex.
— Divulgaremos o filme que o mostra bêbado ao lado da piscina. De
calção vermelho e camisa florida. Brincando com três jovens seminuas que
poderiam ser filhas dele. E nós o entrevistamos. E divulgaremos isso tam‐
bém.
— O senhor editou a entrevista!
— Exatamente! — Sarov concordou com a cabeça, os olhos brilhando
sob a luz. — Nossa entrevistadora perguntou a ele sobre a greve de trens em
Moscou, e Kiriyenko, que já estava bem bêbado, respondeu: “Estou de féri‐
as. Estou ocupado demais para pensar nisso.” Então, vamos mudar a per‐
gunta para: “O que o senhor vai fazer com relação ao acidente em Mur‐
mansk?” E Kiriyenko responderá...
— ...“Estou de férias. Estou ocupado demais para pensar nisso” — Alex
completou a frase.
— O povo russo verá Kiriyenko como ele é: um imbecil fraco e bêbado.
Rapidamente vão culpá-lo pelo desastre em Murmansk, e com toda razão. A
Frota Setentrional um dia foi o orgulho de toda a nação. Como podem ter
permitido que ficasse lá enferrujando, vazando, e se transformasse em um
lixo nuclear letal?
— O que vai acontecer com Kiriyenko? — perguntou Alex.
— Será encontrado morto pouco depois — Sarov sorriu. — Terá um ata‐
que cardíaco fatal.
O motor do avião continuava roncando. Com a cabeça balançando torta
sobre o pescoço, Conrad ouvia atentamente o que Sarov dizia. Os dois guar‐
das que estavam no fundo da cabine haviam adormecido.
— O senhor disse que estaria em Moscou — murmurou Alex.
— Levará menos de 24 horas para que o governo seja deposto — respon‐
deu Sarov. — Haverá tumulto nas ruas. Muitos russos acham que a vida do
povo era melhor, bem melhor, nos velhos tempos. Ainda acreditam no co‐
munismo. Bem, agora a raiva deles terá voz. Será impossível detê-la. E eu
estarei lá para aproveitá-la, para usá-la para tomar o poder. Tenho seguido‐
res aguardando que isso aconteça. Antes que a nuvem de radiação assente,
terei o controle total do país. E isso é só o começo, Alex. Vou reconstruir o
Muro de Berlim. Teremos novas guerras. Não descansarei até que o meu re‐
gime de governo, o governo comunista, seja a única força dominante no
mundo.
Houve um longo silêncio.
— O senhor está preparado para matar milhões de pessoas para conse‐
guir isso? — perguntou Alex.
Sarov encolheu os ombros.
— Há milhões de pessoas morrendo na Rússia neste momento. Não con‐
seguem comprar comida. Não conseguem comprar remédios.
— E o que vai acontecer comigo?
— Já respondi a essa pergunta, Alex. Não acredito que tenha sido coinci‐
dência você aparecer desse jeito. Acho que aconteceu por algum motivo.
Nunca pretendi fazer tudo isso sozinho. Você estará comigo amanhã e,
quando a bomba estiver preparada e pronta, partiremos juntos. Primeiro,
Murmansk. Depois, Moscou. Não percebe o que estou lhe oferecendo? Vo‐
cê não será apenas meu filho. Você terá poder, Alex. Será uma das pessoas
mais poderosas do mundo.
O avião já chegara à costa dos Estados Unidos e virara, iniciando o cami‐
nho para o norte. Alex afundou na poltrona, sua cabeça girava. Quase que
distraidamente, enfiou a mão no bolso das calças. Conseguira trazer um dos
chicletes do MI6. Trouxera também o boneco que, na verdade, era uma gra‐
nada de efeito moral.
Fechou os olhos e tentou imaginar o que precisaria fazer.
15
O PESADELO DA SEGURANÇA

PASSOU HORAS SOB UMA LUZ crepuscular: não era nem dia nem noi‐
te. Preso no topo do mundo, totalmente parado e, mesmo assim, mais inqui‐
eto do que nunca. Alex dormiu durante a primeira parte da viagem, sabendo
que estava cansado e que precisaria de todas as suas forças. Aceitara o que
tinha que fazer. Antes, quando estava na Ilha do Esqueleto, ficara em parte
tentado a largar tudo e não fazer nada. Afinal, jamais pedira para estar ali.
Aquilo tudo não tinha nada a ver com ele.
Mas agora a situação mudara. Ele conseguia vislumbrar a explosão nu‐
clear na península de Kola. Aquele cenário já estava ali, na sua imaginação.
Milhares de pessoas morreriam instantaneamente; depois, dezenas de mi‐
lhares, quando as partículas radioativas fatais se espalhassem pela Europa.
A Inglaterra seria um dos países que sofreriam. Alex precisava impedir
aquilo. Não tinha opção.
Dessa vez, seria muito mais difícil. Sarov podia tê-lo desculpado pela
tentativa fracassada de fuga no carro, mas Alex sabia que agora não teria
mais a confiança dele. E não podia se permitir cometer outro erro. Se fosse
pego tentando fugir mais uma vez, não haveria nenhum adiamento, nenhu‐
ma possibilidade de perdão. No fundo, Alex realmente duvidava de que fos‐
se capaz de conseguir passar por cima do general russo e do seu companhei‐
ro torto. Sarov estava totalmente alerta, como se tivesse ficado ali sentado
apenas dez minutos, e não dez horas. Conrad ainda o observava também.
Como um gato à espreita do rato, estava sentado do outro lado do avião,
com aquele olho vermelho piscando à meia-luz.
Ainda assim...
Alex estava com os dois dispositivos que Smithers lhe dera. E iam ater‐
rissar na Grã-Bretanha! A simples ideia de estar no seu próprio país pareceu
renovar as forças do garoto. O seu plano ia funcionar. Tinha que funcionar.
Devia estar dormindo durante a parada para reabastecimento em Gander
e durante várias horas de voo, porque a primeira coisa que percebeu foi a
claridade lá fora e os dois guardas se aproximando com o café da manhã,
iogurte e frutas, que fora preparado na pequena cozinha do avião. Olhou pe‐
la janela. Só conseguia ver nuvens.
Sarov percebeu que ele acordara.
— Alex! Está com fome?
— Não, obrigado.
— Mesmo assim, você deve beber alguma coisa. É muito fácil ficar desi‐
dratado nessas viagens longas.
Sarov disse algumas palavras em russo a um dos guardas, que desapare‐
ceu e voltou com um copo de suco de toranja. Alex hesitou em levá-lo à bo‐
ca, ao lembrar-se do que acontecera com Kiriyenko. Sarov notou a hesita‐
ção do garoto e sorriu.
— Não precisa se preocupar — disse ele —, é só suco de toranja. Não
tem ingredientes adicionais.
Alex bebeu. O suco desceu gelado e refrescante após tantas horas de so‐
no.
— Vamos aterrissar em Edimburgo dentro de uns trinta minutos — disse
Sarov. — Já estamos dentro do espaço aéreo britânico. É bom sentir-se em
casa?
— Se quiser me deixar por aqui mesmo, posso pegar um trem para Lon‐
dres.
Sarov balançou a cabeça.
— Acho melhor não.
Poucos minutos depois, começaram a descida. O piloto se comunicara
por rádio com o aeroporto e confirmara que seria uma parada de rotina para
reabastecimento. Não deixaria nem pegaria passageiros e, portanto, não pre‐
cisaria de autorização operacional. Tudo havia sido acertado com as autori‐
dades do aeroporto, era tão simples quanto parar o carro em um posto de
combustível. E, apesar dos temores de Sarov, as autoridades britânicas não
convidaram os supostos passageiros VIPs para um café da manhã diplomá‐
tico em Edimburgo!
O avião atravessou a nuvem e, com o rosto encostado na janela, Alex viu
de repente a região rural, pontilhada por cavalos, carros e casas que pareci‐
am miniaturas. O sol brilhante do Caribe dera lugar à luz cinzenta e ao tem‐
po incerto de um dia de verão inglês. Teve uma sensação de alívio. Estava
de volta! Mas ao mesmo tempo sabia que Sarov jamais o deixaria sair da‐
quele avião. De certo modo, teria sido menos cruel se tivessem reabastecido
na Groenlândia ou na Noruega. Deram-lhe uma última oportunidade de ver
o seu país. Na próxima vez que o visse, estaria todo contaminado. Alex en‐
fiou a mão no bolso. Segurou o boneco do Tiger Woods. Estava chegando a
hora...
Ligaram o aviso para afivelar o cinto de segurança. Um instante depois,
Alex sentiu a pressão nos ouvidos quando o avião mergulhou. Viu uma pon‐
te, que parecia bastante delicada daquela altura, transpondo um grande vo‐
lume de água. A ponte Forth Road, só podia ser ela. E lá estava Edimburgo,
a oeste, com o seu castelo dominando a linha do horizonte. O aeroporto se
aproximou rápido. Alex viu de relance um terminal moderno e brilhoso,
com aviões aguardando parados no pátio, cercados por furgões e carrinhos
de bagagem. O avião sacolejou quando as rodas tocaram a pista, e depois
veio o estrondo dos motores em reversão. A velocidade foi diminuindo. Já
haviam aterrissado.
Orientado pela torre de controle, o Learjet foi até o final da pista e entrou
em uma área conhecida como “pátio de abastecimento”, distante do termi‐
nal principal. Alex olhou pela janela com uma sensação de amortecimento
quando viu os prédios públicos passando. Para cada segundo que andavam,
mais se distanciavam e mais ele teria que correr para dar o alarme — pres‐
supondo que ele conseguiria sair do avião.
O boneco estava agora na mão dele. O que Smithers lhe dissera? Vire a
cabeça duas vezes para um lado e uma para o outro. Espere dez segundos,
depois largue o boneco e corra. O espaço apertado da cabine do avião pare‐
cia perfeito para usá-lo. A única dúvida era: o que Alex faria para não ficar
ele próprio desacordado também?
O avião parou. Quase de imediato, um caminhão-tanque foi em sua dire‐
ção. Sarov obviamente preparara tudo com bastante antecedência. Havia um
carro seguindo o caminhão e, olhando pela janela, Alex viu que colocavam
uma escada junto à porta do Learjet. Isso era interessante. Alguém desejava
subir a bordo.
Sarov observava o garoto.
— Você não vai falar nada, Alex — disse o general. — Nem uma única
palavra. Antes que pense em abrir a boca, sugiro que dê uma olhada para
trás.
Conrad agora estava sentado na poltrona logo atrás da de Alex. Tinha um
jornal no colo. Quando Alex se virou, Conrad o levantou para mostrar uma
grande pistola preta com silenciador, apontada bem na direção dele.
— Ninguém ouvirá nada — disse Sarov. — Se Conrad só achar que você
vai tentar alguma coisa, ele apertará o gatilho. A bala vai atravessar o en‐
costo e se alojará na sua espinha. Será uma morte instantânea, mas parecerá
que você simplesmente pegou no sono.
Alex sabia que não seria assim tão fácil. Quando alguém leva um tiro nas
costas, não parece ter adormecido. Sarov estava se arriscando muito. Mas
toda aquela operação envolvia um grande risco. O risco não podia ser mais
alto. Alex não duvidava de que seria morto imediatamente caso tentasse di‐
zer a qualquer pessoa o que estava acontecendo.
A porta do avião se abriu, e um homem de cabelo avermelhado entrou
carregando uma pilha de papéis. Sarov levantou-se para cumprimentá-lo.
— O senhor fala inglês? — perguntou o homem, com sotaque escocês.
— Sim.
— Trouxe uns papéis para o senhor assinar.
Alex virou ligeiramente a cabeça. O homem o viu e o cumprimentou
com a cabeça. O garoto retribuiu o aceno. Podia quase sentir Conrad pressi‐
onar o encosto da poltrona com a arma. O garoto não disse nada.
E logo estava tudo pronto. Sarov assinara os papéis e devolvera a caneta
ao escocês.
— Aqui está o seu recibo — disse o homem, entregando uma folha de
papel a Sarov. — E o senhor poderá decolar em seguida.
— Obrigado.
— O senhor não vai descer para esticar as pernas? Está um dia lindo em
Edimburgo. Podemos lhe oferecer um chá com biscoitos, caso queira vir até
o escritório.
— Não, obrigado. Estamos todos um pouco cansados. Ficaremos aqui.
— Como quiser. Se tem certeza, vou mandar retirar a escada.
Com isso, o homem foi embora.
Iam tirar a escada — e, assim que o homem saísse, Sarov trancaria a por‐
ta! Alex tinha apenas alguns segundos para agir. Esperou o homem sair da
cabine e se levantou. Estava com as mãos à frente, com o boneco do Tiger
Woods escondido na palma da mão.
— Sente-se! — disse Conrad.
— Está tudo bem, Conrad — disse Alex. — Não vou a lugar nenhum.
Estou só esticando as pernas.
Sarov sentou-se outra vez. Examinava a papelada que o homem lhe dera.
Alex passou por ele. Estava com a boca seca e deu graças aos céus que o
sensor usado na Casa de Oro não estivesse no avião.
Se fosse ligado naquele instante, sua pulsação estaria ensurdecedora. Era
sua última chance. Calculou com cuidado cada passo. Se estivesse a cami‐
nho da forca, talvez não estivesse tão tenso.
— Aonde você vai, Alex? — perguntou Sarov.
Alex virou a cabeça de Tiger Woods duas vezes.
— Não vou a lugar nenhum.
— O que é isso que você tem na mão?
Alex hesitou. Porém, se tentasse fingir que não tinha nada na mão, Sarov
ficaria ainda mais desconfiado. Alex mostrou o boneco.
— É o meu amuleto da sorte — disse o garoto. — Tiger Woods.
Deu outro passo à frente. Ao mesmo tempo, deu o giro final na cabeça
do boneco.
Dez... nove... oito... sete...
— Sente-se, Alex — disse Sarov.
— Estou com dor de cabeça — disse o garoto. — Só quero pegar um
pouco de ar fresco.
— Você não vai sair do avião!
— Não vou a lugar nenhum, general.
Mas Alex já havia chegado até a porta e sentiu a fresca brisa escocesa no
rosto. O caminhão-reboque estava recolhendo a escada. O garoto viu au‐
mentar a distância entre a escada e a porta.
Quatro... três... dois...
— Alex! Volte para o seu lugar!
Alex deixou o boneco cair e se jogou para a frente com toda a força.
Conrad saltou como uma serpente enfurecida, com a arma na mão.
O boneco explodiu.
Alex sentiu a explosão atrás de si. Houve um clarão e um estouro incri‐
velmente alto, mas nenhuma janela se quebrou e não havia chamas nem fu‐
maça. Sentiu um zumbido nos ouvidos e, por um instante, não conseguiu
enxergar nada. Mas havia saído do avião. Já estava do lado de fora quando
a granada de efeito moral explodiu. A escada ainda se afastava, desapare‐
cendo diante dele. Não ia conseguir alcançá-la! O chão de concreto estava
quase cinco metros abaixo. Se caísse daquela altura, quebraria uma perna.
Ou poderia até morrer.
Mas conseguiu pular no momento certo. Caiu de barriga sobre o topo da
escada com as pernas pendendo no ar. Rapidamente, colocou-se de pé. O
homem de cabelo avermelhado o olhava estupefato. Alex desceu pela esca‐
da, que ainda se movia. Assim que seus pés tocaram o chão, ele sentiu uma
empolgação de triunfo. Estava em casa. E parecia que a granada de efeito
moral funcionara. Não havia nenhum movimento no avião. Ninguém atira‐
va nele.
— Que diabos você pensa que está fazendo? — perguntou o homem.
Alex o ignorou. Aquela não era a pessoa certa para falar — e ele precisa‐
va ficar o mais distante possível do avião. Smithers dissera que a granada
era capaz de neutralizar o inimigo apenas por alguns minutos. Sarov e Con‐
rad logo acordariam. E não perderiam tempo para ir atrás dele.
Alex correu. Pelo canto do olho, viu o homem tirar um rádio do bolso e
falar — mas aquilo não importava. Havia outros homens em volta do avião,
prontos para iniciar o reabastecimento. Certamente tinham ouvido a explo‐
são. Mesmo que Alex fosse capturado, o avião não receberia permissão para
decolar.
Ele não tinha nenhuma intenção de ser recapturado. Já notara uma série
de prédios da administração no perímetro do pátio de aeronaves e correu
para eles, com o ar lhe raspando a garganta.
Chegou a uma porta e a puxou. Estava trancada! Olhou pela janela. No
outro lado, havia um saguão com um telefone público, mas, por algum mo‐
tivo, o prédio estava fechado. Por um instante, sentiu-se tentado a arreben‐
tar o vidro, mas isso levaria muito tempo. Praguejando baixinho, deixou a
ideia da porta para lá e correu uns vinte metros até o prédio seguinte.
Esse estava aberto. Ele abriu a porta e se viu em um corredor com salas
de depósito e escritórios em ambos os lados. Não parecia haver ninguém
por ali. Tudo o que ele precisava agora era achar um telefone. Experimen‐
tou uma porta. Dava para uma sala cheia de prateleiras, com uma fotocopia‐
dora e suprimentos de artigos de escritório. A porta seguinte estava tranca‐
da. Alex começava a ficar cada vez mais desesperado. Tentou outra porta e
dessa vez teve sorte. Era um escritório com uma escrivaninha e, sobre ela,
um telefone. Não havia ninguém na sala. O garoto correu e agarrou o telefo‐
ne.
Foi só então que Alex se deu conta de que não fazia ideia do número pa‐
ra o qual devia ligar. O celular que Smithers lhe entregara tinha uma tecla
de emergência — ligação direta com o serviço secreto britânico. Mas nin‐
guém lhe dera um número direto. O que fazer? Ligar para a telefonista e pe‐
dir para falar com o MI6? Achariam que era louco.
Ele não tinha tempo a perder. Sarov já devia estar recuperado. Naquele
momento, estaria vindo atrás dele. O escritório tinha uma janela que dava
para os fundos. Não havia sinal do avião ou da pista. Alex decidiu ligar para
o 999, número para o qual se liga em caso emergências no Reino Unido.
O telefone tocou duas vezes antes de atenderem.
Era uma voz de mulher:
— Você ligou para o serviço de emergência. Que deseja?
— Polícia — disse Alex.
— Já vou transferir a ligação...
Ele ouviu o som de chamada.
E depois apareceu uma mão que lhe arrancou o telefone. Alex se virou,
sem fôlego, esperando ver Sarov diante dele ou, pior ainda, Conrad e sua
arma.
Mas não era nenhum dos dois. Era um guarda da segurança do aeroporto
que entrara no escritório enquanto Alex fazia a ligação. Tinha uns 50 anos,
cabelo grisalho e um queixo que afundava no pescoço. A barriga pulava por
cima do cinto e as pernas das calças paravam uns cinco centímetros acima
dos tornozelos. Levava um rádio preso ao casaco. Seu nome — John Pres‐
cott — estava escrito no distintivo fixado sobre o bolso de cima. Ele fitava
Alex com um olhar duro e, com o coração apertado, Alex reconheceu um
verdadeiro pesadelo: um homem com a presunção arrogante de um guarda
de trânsito, de um diretor de escola... de qualquer autoridade de menor im‐
portância.
— O que está fazendo aqui, garoto? — indagou Prescott.
— Preciso dar um telefonema — disse Alex.
— Estou vendo — disse, desligando o telefone. — Mas isto aqui não é
um telefone público. Nem este escritório é um lugar público. Toda esta área
é restrita. Você não pode ficar aqui.
— Não, o senhor não entendeu. É uma emergência.
— Ah é? E que tipo de emergência? — Prescott obviamente não acredi‐
tara nele.
— Não posso explicar agora. Só me deixe telefonar.
O segurança sorriu. Estava se divertindo com aquilo. Passava cinco dias
toda semana zanzando de um escritório para o outro, verificando as portas,
apagando as luzes. Era bom bancar o chefão com alguém.
— Você não vai telefonar para lugar nenhum enquanto não me disser o
que está fazendo aqui! — disse ele. — Este escritório é particular — seus
olhos se estreitaram. — Abriu as gavetas? Pegou alguma coisa?
Alex era pura tensão, mas fazia força para ficar calmo.
— Não peguei nada, sr. Prescott — respondeu. — Acabei de sair de um
avião que pousou há poucos minutos...
— Que avião?
— Um avião particular.
— Você tem passaporte?
— Não...
— Isso é muito grave. Você não pode entrar no país sem passaporte.
— O meu passaporte está no avião!
— Então vou levá-lo até lá para pegar o passaporte.
— Não!
Alex podia sentir os segundos voarem. O que ele poderia dizer àquele
homem para que ele o deixasse telefonar? A cabeça dele girava e, de repen‐
te, pela primeira vez na vida, ele se viu, sem pensar, revelando a verdade.
— Ouça — disse Alex. — Sei que é difícil acreditar, mas trabalho para o
governo — o governo britânico. Se o senhor me deixar telefonar, eles pode‐
rão confirmar. Sou um espião.
— Espião? — Prescott abriu um sorriso, mas não era bem um sorriso
bem-humorado. — Quantos anos você tem?
— Catorze.
— Um espião de 14 anos? Acho que você andou vendo TV demais, mo‐
cinho.
— Mas é verdade!
— Acho que não.
— Escute, por favor. Um homem acabou de tentar me matar. Ele está
dentro de um avião na pista, e, a menos que o senhor me deixe telefonar,
muitas pessoas vão morrer.
— O quê?
— Pelo amor de Deus, ele tem uma bomba nuclear!
Foi um erro. Prescott se irritou.
— Peço-lhe que não use o nome do Senhor em vão, se não se importar
— já tomara uma decisão. — Não quero saber como chegou aqui nem do
que está brincando, mas você vai comigo até a Central de Segurança e Con‐
trole de Passaporte, no terminal principal.
Ele estendeu o braço para Alex.
— Venha agora! Já estou cansado das suas bobagens.
— Não é bobagem. Há um homem chamado Sarov. Ele está transportan‐
do uma bomba nuclear. Pretende detoná-la em Murmansk. Sou a única pes‐
soa que pode detê-lo. Por favor, sr. Prescott. Só me deixe ligar para a polí‐
cia. Só vai levar alguns segundos, e o senhor pode ficar aí e me vigiar. Dei‐
xe que eu fale com a polícia e, depois disso, o senhor pode me levar para
onde quiser.
Mas o guarda não ia voltar atrás.
— Você não vai fazer ligação nenhuma e vai comigo agora — disse ele.
Alex tomou sua decisão. Tentou implorar e dizer a verdade. Nada funcio‐
nara, então ele ia precisar tirar o guarda do seu caminho.
Prescott deu a volta na mesa, aproximando-se dele. O garoto se retesou,
equilibrando-se na ponta dos pés, com os punhos prontos. Sabia que o ho‐
mem estava apenas fazendo o trabalho dele e não queria machucá-lo, mas
não havia outro jeito.
Então, a porta se abriu.
— Aí está você, Alex! Estava preocupado com você.
Era Sarov.
Conrad estava com ele. Ambos pareciam doentes, com a pele pálida e os
olhos ainda sem muito foco. Não havia nenhuma expressão no rosto dos
dois.
— Quem é o senhor? — indagou Prescott.
— Sou o pai do Alex — respondeu Sarov. — Não é mesmo, Alex?
Alex hesitou. Percebeu que ainda estava em posição de combate, prestes
a atacar. Bem devagar, abaixou os braços. Sabia que era o fim e sentiu o
gosto amargo da derrota. Não podia fazer mais nada. Se discutisse diante de
Prescott, Sarov simplesmente mataria os dois. Se tentasse lutar, o resultado
seria exatamente o mesmo. Alex ainda tinha uma esperança. Se saísse dali
com Sarov e Conrad, e o guarda continuasse vivo, haveria a chance de Pres‐
cott contar a história a alguém, que a transmitiria ao MI6. Sem dúvida, seria
tarde demais para salvá-lo. Mas o mundo ainda poderia ser salvo.
— Não é mesmo, Alex? — Sarov esperava uma resposta.
— Sim — disse Alex. — Olá, papai.
— Então que história era aquela de bombas e espiões? — perguntou
Prescott.
Alex lamentou-se em silêncio. “Por que esse sujeito não ficou de boca
fechada?”
— Foi isso o que Alex andou lhe dizendo? — perguntou Sarov.
— É, isso e um monte de outras coisas.
— Ele ligou para algum lugar?
— Não — Prescott endireitou o corpo. — Esse espertinho estava telefo‐
nando quando cheguei. Mas desliguei em seguida.
Sarov balançou a cabeça devagar. Estava satisfeito.
— Bem, ele tem mesmo uma imaginação muito fértil — explicou. —
Alex não tem passado muito bem. Ele tem problemas mentais. Às vezes,
tem dificuldade de distinguir o que é fantasia e o que é realidade.
— Como ele chegou aqui? — indagou Prescott.
— Deve ter saído escondido do avião quando não havia ninguém olhan‐
do. Ele, naturalmente, não tem permissão para estar em solo britânico.
— Ele é britânico?
— Não — Sarov agarrou o braço do Alex. — E agora precisamos voltar
para o avião. Ainda temos uma viagem muito longa pela frente.
— Espere um pouco! — o guarda não os deixaria ir embora assim tão fá‐
cil. — Desculpe, senhor. Mas o seu filho estava em uma área proibida.
Aliás, o senhor também. Vocês não podem ficar vagando pelo aeroporto de
Edimburgo dessa maneira! Terei que informar as autoridades.
— Entendo perfeitamente — Sarov não parecia nem um pouco perturba‐
do. — Preciso levar o garoto de volta para o avião. Mas deixarei meu assis‐
tente com o senhor, ele lhe dará os detalhes que precisar. Se necessário, ele
o acompanhará até o escritório do seu chefe. E devo agradecê-lo por ter im‐
pedido que meu filho telefonasse, sr. Prescott. Teria sido muito mais cons‐
trangedor para todos nós.
Sem esperar a resposta, Sarov virou-se e, ainda segurando o braço de
Alex, levou-o para fora da sala.
Uma hora depois, o Learjet 45 decolou para o último trecho da viagem.
Alex estava sentado na mesma poltrona de antes — só que, agora, algema‐
do a ela. Sarov não o machucara nem parecia estar ciente da presença dele
no avião. De certo modo, esse comportamento era o que parecia mais assus‐
tador nele. O garoto esperara uma reação de raiva, violência, talvez até uma
morte súbita nas mãos de Conrad. Mas Sarov não fizera nada. Desde que
haviam voltado para o avião, o general russo nem olhara mais para ele.
Naturalmente, houve alguns problemas. A explosão dentro do avião e a
fuga de Alex levantaram uma série de questões. O piloto teve que ficar em
contato constante com a torre de controle. Explicou que a explosão fora
causada por um forno de micro-ondas que estava com defeito. E o garoto?
O general Alexei Sarov, que integrava a comitiva do presidente russo, viaja‐
va com um sobrinho. O garoto era muito desequilibrado e fez algo muito
idiota, mas já estava tudo sob controle.
Se fosse um jato particular comum, teriam chamado a polícia. Porém, o
avião estava registrado em nome de Boris Kiriyenko. Tinha imunidade di‐
plomática. Afinal de contas, concluíram as autoridades, era mais fácil fe‐
char os olhos para aquele incidente e deixar que partissem.
O corpo de John Prescott foi descoberto quatro horas depois. Estava sen‐
tado e curvado dentro de um armário de artigos de escritório. Seu rosto ti‐
nha uma expressão de surpresa e apenas um buraco redondo feito à bala en‐
tre os olhos.
A essa altura, o Learjet já estava em espaço aéreo russo. No momento
em que foi dado o alarme e finalmente chamaram a polícia, as luzes da ca‐
bine diminuíam e o avião fazia uma curva sobre a península de Kola, prepa‐
rando-se para a sua descida final.
16
O FIM DO MUNDO

OS AEROPORTOS SÃO IGUAIS no mundo todo, mas o de Murmansk


conseguira inaugurar uma nova categoria em matéria de feiura. Construído
no meio do nada, visto do ar parecia um engano. Visto de terra, não oferecia
mais que um único terminal baixo, feito de vidro e concreto cinza, triste,
com oito letras brancas colocadas na cobertura.

MYPMAHCK

Alex não conhecia o alfabeto russo, mas pôde imaginar o que estava es‐
crito: Murmansk. Era uma cidade com milhares de habitantes. Ele se per‐
guntou quantas delas continuariam vivas dentro de doze horas.
Ainda algemado a um dos dois guardas que viajavam com eles desde a
Ilha do Esqueleto, Alex foi levado pela pista vazia, tremendo com o vento
que cortava como vidro. Ele realmente parecia ter aterrissado em outro
mundo! Chovera fazia pouco. O asfalto estava molhado e oleoso, com po‐
ças de água suja por todo lado. Não havia outros aviões à vista. Na verdade,
o aeroporto nem parecia estar de fato funcionando. Umas poucas luzes bri‐
lhavam, num tom amarelo pálido, por trás do vidro. Mas não havia nin‐
guém. A única porta de desembarque estava trancada e acorrentada, como
se o aeroporto tivesse perdido as esperanças de que alguém um dia fosse
chegar.
Eles eram esperados. Três caminhões do Exército e um sedã todo sujo de
lama os aguardavam. Uma fileira de homens, com uniforme cáqui, cinto e
botas pretas de cano alto, se perfilou. Cada um deles portava uma metralha‐
dora atravessada no peito, presa a uma correia. O comandante, que usava o
mesmo uniforme que Sarov, deu um passo à frente e bateu continência. Ele
e Sarov trocaram um aperto de mão e depois se abraçaram. Conversaram
por alguns minutos. Então o comandante gritou uma ordem. Dois dos solda‐
dos correram para o avião e começaram a remoção do baú prateado que
continha a bomba nuclear. Alex viu o baú ser retirado da traseira do avião e
colocado em um dos caminhões. Os soldados eram muito disciplinados. Ha‐
via ali potência suficiente para destruir um continente, mas nenhum deles
virou a cabeça quando a bomba passou.
Uma vez a bomba colocada no lugar, os soldados deram meia-volta e,
marchando no mesmo passo, dirigiram-se aos outros dois caminhões e subi‐
ram. Alex estava com as mãos algemadas, preso ao banco da frente, ao lado
do motorista. Ninguém olhava para ele. Ninguém parecia curioso em saber
quem ele era. Sarov devia ter avisado pelo rádio sobre a sua chegada. O ga‐
roto examinou o homem que dirigia o caminhão. Era fortão, bem barbeado,
e tinha olhos azul-claros. Seu rosto não tinha nenhuma expressão. Era um
soldado profissional.
Alex virou-se e olhou pela janela a tempo de ver Sarov e Conrad entra‐
rem no carro.
Partiram. Não havia praticamente nada fora do aeroporto, apenas uma
paisagem plana e descampada, onde até as árvores pareciam atrofiadas e
embotadas. Alex tremeu de frio e tentou cruzar os braços para se aquecer.
As algemas fizeram barulho, e o motorista olhou para ele com uma cara fu‐
riosa.
Andaram uns quarenta minutos por uma estrada toda esburacada. Surgi‐
ram alguns prédios, modernos e sem estilo. E, de repente, já estavam em
Murmansk propriamente dita. Era noite ou dia? O céu ainda era claro, mas
as luzes dos postes estavam acesas. Embora houvesse pessoas nas calçadas,
elas não pareciam ir a lugar nenhum, apenas vagavam como sonâmbulas.
Ninguém olhou para eles quando seguiram por uma avenida de quatro pis‐
tas. Era uma avenida larga, bem no centro da cidade, absolutamente reta e
que parecia não dar em lugar nenhum, com prédios inexpressivos e padroni‐
zados de ambos os lados. Murmansk parecia ser constituída de filas e filas
de blocos de apartamentos idênticos, como se fossem muitas caixas de fós‐
foros. Aparentemente, não havia cinemas, restaurantes, lojas — nada que fi‐
zesse a vida valer a pena.
Não havia subúrbios. A cidade simplesmente terminava e, de repente, já
estavam atravessando a tundra deserta, em direção a um horizonte que nada
tinha a oferecer. Estavam a pouco mais de mil quilômetros do polo Norte, e
ali não havia nada. Uma população sem vida e um sol sem calor. Alex pen‐
sou na viagem que fizera. De Wimbledon até Cornwall. Depois, Londres,
Miami e a Ilha do Esqueleto. E, por fim, aquele lugar. Seria ali o fim? Que
lugar horrível para a vida dele terminar! Ele chegara literalmente ao fim do
mundo.
Não havia nenhum outro carro na estrada, nem placas de trânsito. Alex
até parou de tentar observar para onde iam. Após mais trinta minutos, redu‐
ziram a velocidade, depois saíram da estrada. Ouviu-se um som de algo
sendo triturado por baixo das rodas quando saíram da superfície de asfalto e
seguiram sobre o cascalho.
Era ali que os russos guardavam os submarinos deles? Tudo o que conse‐
guia ver era uma tela de arame e uma cabana de madeira toda despedaçada
que tentava se passar por uma guarita militar. Pararam diante de uma cance‐
la vermelha e branca. Apareceu um homem de azul-marinho, com um so‐
bretudo largo e esvoaçante, e, por baixo, via-se uma túnica e uma camiseta
listrada. Era um marinheiro russo. Não podia ter mais que 20 anos e parecia
confuso. Correu até o carro e falou alguma coisa em russo.
Conrad atirou nele. Alex viu a mão sair da janela e o clarão produzido
pela arma, mas tudo aconteceu tão rápido que ele mal conseguiu acreditar
que aquilo de fato acontecera. O jovem russo foi lançado para trás. Conrad
atirou mais uma vez. O garoto nem observara, mas havia outro marinheiro
na guarita, que gritou e caiu de costas. Ninguém disse nenhuma palavra.
Dois soldados desceram do caminhão da frente e foram até a cancela que
bloqueava a entrada. Seria mesmo aquela a entrada para uma base de sub‐
marinos? Alex já vira uma segurança bem mais sofisticada em um mero es‐
tacionamento de shopping.
Os soldados simplesmente levantaram a cancela. O comboio passou.
Seguiram por uma estrada sinuosa e acidentada, descendo um morro, e lá
estava, enfim, o mar. A primeira coisa que Alex viu foi uma frota de navios
quebra-gelo atracada a uns 800 metros de distância, imensos blocos de me‐
tal — silenciosos e inacreditáveis — parados na água do mar. Parecia ser
contra as leis da natureza que aquelas coisas monstruosas pudessem flutuar.
Não havia luzes a bordo nem nenhum movimento. No outro lado da água,
erguia-se mais um trecho sinistro da costa litorânea, listrado de branco, em‐
bora Alex não soubesse dizer se aquilo era sal ou algum tipo de neve per‐
manente.
Os caminhões sacolejaram estrada abaixo e, num instante, chegaram a
um porto cercado de guindastes, guindastes sobre trilhos, armazéns e gal‐
pões. Parecia um parque de diversões dos infernos, feito de aço retorcido e
concreto, ganchos e correntes, roldanas e cabos, tonéis, paletes de madeira e
imensos contêineres de aço. Havia navios enferrujados parados na água, ou
em terra, suspensos sobre uma rede de estacas de madeira. Carros, guindas‐
tes e tratores, alguns obviamente abandonados, encontravam-se ociosos na
beira da água. De um lado, havia uma fileira de longas cabanas de madeira,
cada qual numerada com tinta amarela e cinza. Aquilo fez com que Alex se
lembrasse dos prédios que vira nos filmes sobre a Segunda Guerra Mundial,
em campos de prisioneiros de guerra. Será que era ali que os outros mari‐
nheiros dormiam? Se fosse, ainda deviam estar dormindo. O porto encon‐
trava-se deserto. Nada se movia.
O caminhão parou, depois sacolejou quando os soldados desembarcaram
da traseira. Um momento depois, ele os viu, com as metralhadoras erguidas,
e se perguntou se deveria fazer o mesmo, mas o motorista balançou a cabe‐
ça, indicando que ficasse onde estava. O garoto observou os homens se es‐
palharem rapidamente pela área das cabanas. Não havia sinal de Sarov. Ele
ainda devia estar no carro.
Uma longa pausa. Nisso, alguém deu um sinal. Ouviu-se um ruído de
madeira se quebrando, de uma porta sendo arrombada e depois o barulho e
a vibração de uma rajada de metralhadora. Alguém gritou. Uma campainha
começou a tocar, mas o som era baixo demais e inútil. Três homens seminus
apareceram pela lateral das cabanas e correram, tentando encontrar abrigo
entre os contêineres. Mais tiros. Alex viu dois deles caindo, e depois o ter‐
ceiro, com as mãos se debatendo no ar quando foi atingido nas costas.
Um único tiro foi disparado de uma janela. Alguém estava tentando re‐
sistir. Uma granada descreveu um arco no ar e bateu no telhado de um dos
prédios. Houve uma explosão e metade da parede se despedaçou, transfor‐
mando-se em lenha para fogueira. Quando Alex olhou de novo, a janela e
provavelmente o homem que estava por trás dela tinham sido destruídos.
O ataque acontecera sem nenhum aviso. Os homens de Sarov estavam
bem armados e bem preparados. Havia apenas alguns marinheiros no porto,
e todos dormiam. Tudo terminou muito rápido. A campainha parou de tocar.
Saíam rolos de fumaça do prédio destruído. Um corpo passou boiando, com
o rosto voltado para a água. O porto estava tomado. Sarov assumira o co‐
mando total.
O motorista desceu do caminhão, deu a volta depressa pela frente e abriu
a porta para Alex. O garoto desceu desajeitado, com as mãos ainda algema‐
das. Os homens de Sarov já executavam a segunda etapa da operação. Alex
viu os corpos serem levados. O outro caminhão deu a ré e se aproximou da
beirada da água. O oficial que estava no aeroporto gritou uma ordem, e os
soldados se espalharam, assumindo as posições que deviam ter sido planeja‐
das meses antes. Era pouco provável que alguém pudesse ter dado o alerta
sobre o ataque, mas quem quer que se aproximasse vindo de Murmansk já
encontraria o porto bem defendido.
Sarov estava em pé em um dos lados, com Conrad logo atrás dele. Olha‐
va para alguma coisa. Alex seguiu o olhar dele.
Os submarinos!
Alex suspirou. Ali estava o verdadeiro motivo de tudo aquilo! Havia ape‐
nas quatro imensos monstros de aço submersos até a metade no mar, amar‐
rados com cordas tão grossas quanto a cintura de uma pessoa. Cada um era
do tamanho de um prédio comercial virado na horizontal. Os submarinos
não tinham identificação nem bandeiras. Pareciam estar cobertos por um
óleo escuro ou alcatrão. Suas torres, situadas bem na popa, eram fechadas e
compactas. Alex estremeceu. Nunca imaginara que uma máquina pudesse
realmente emanar maldade, mas essas conseguiam. Eram tão escuras e frias
como a água que os cercava. Pareciam de fato as bombas em que se haviam
transformado.
Três dos submarinos estavam enfileirados, atracados ao lado do cais. O
quarto ficava em um vão próprio, um pouco mais adiante. Alex notou um
guindaste no final de um cais, bem junto à água. Anos antes, devia ter sido
amarelo, mas a maior parte da tinta descascara. A cabine de controle ficava
apenas a uns dez metros do chão, e havia uma escada para chegar até ela. O
braço do guindaste virava para cima, depois se dobrava para baixo, imitan‐
do o pescoço e a cabeça de um pássaro. Era um guindaste sem gancho. Em
vez disso, havia um disco de metal que parecia um imenso tampão de ralo
de banheiro pendurado sob o braço do guindaste, e que ficava suspenso por
uma corrente e por vários cabos elétricos.
Conrad gritou alguma coisa e o motorista levou Alex até um parapeito
maciço, na beira do cais. Preso com segurança no chão, o parapeito fora ob‐
viamente colocado ali para que ninguém caísse na água. O guarda soltou
uma das mãos do garoto e o puxou pela corrente, levando-o como se fosse
um cachorro. Deixou-o junto ao parapeito e o algemou a ele. Alex ficou ali
em pé, sozinho, no meio de tudo aquilo. Forçou a corrente, mas era inútil.
Ele não podia ir a lugar nenhum.
Alex teve que ficar ali e observar enquanto os dois soldados levantavam
a bomba com todo o cuidado para tirá-la do caminhão. Viu o esforço no ros‐
to deles quando a colocaram no chão, bem na beirada do cais, a poucos me‐
tros do guindaste. Sarov se aproximou com Conrad mancando ao seu lado.
Conrad olhou para Alex, e um canto da sua boca se retorceu em um sorriso.
O general pôs a mão no bolso do casaco e tirou o cartão plástico que
mostrara a Alex no avião. Segurou-o um pouco e então o enfiou na fenda
lateral da bomba nuclear. No mesmo instante, o baú prateado ganhou vida.
Uma série de luzes vermelhas começou a piscar em um painel. Alex viu
uma linha de oito dígitos em um mostrador de cristal líquido: horas, minu‐
tos e segundos. Já começara a contagem regressiva. A faixa magnética do
cartão ativara a bomba. Em algum lugar dentro do baú, o circuito eletrônico
girava. A sequência de detonação estava iniciada.
Nesse momento, Sarov se dirigiu até onde o garoto estava. Ficou diante
dele, examinando-o como se fosse a primeira e a última vez. Como sempre,
seu rosto não revelava nada, mas Alex notou algo no olhar do homem. Algo
que Sarov teria negado e ficaria irado caso alguém o sugerisse. Mas a triste‐
za estava ali. Era impossível ignorá-la.
— E então chegamos ao fim — disse. — Você está no Estaleiro de Ma‐
nutenção de Submarinos Nucleares de Murmansk. Talvez esteja interessado
em saber que todos os soldados que encontramos no aeroporto serviram co‐
migo no passado e ainda hoje são leais a mim. Agora todo o complexo está
sob o meu comando e, como você viu, a bomba foi ativada. Infelizmente
não posso ficar aqui com você. Tenho que voltar ao aeroporto e garantir que
tudo esteja pronto para o nosso voo para Moscou. Conrad ficará para colo‐
car a bomba em posição no submarino, bem em cima do reator nuclear que
continua lá dentro. É possível que o detonador da bomba também detone o
reator, duplicando ou triplicando a força da explosão. Isso não fará muita
diferença para você, que se tornará vapor instantaneamente: antes mesmo
que o seu cérebro consiga entender o que aconteceu. Conrad está muito de‐
sapontado. Esperava que eu o deixasse matá-lo.
Alex não disse nada.
— Sinto muito, Alex, que no final você é muito mais idiota do que eu
pensei, embora, talvez, eu devesse ter imaginado isso. Um garoto do Oci‐
dente, criado e educado na Inglaterra... um país que é ele próprio apenas
uma sombra do que já foi. Por que não conseguiu compreender o que eu lhe
ofereci? Por que não conseguiu aceitar o seu lugar neste mundo novo? Você
poderia ter sido meu filho. Mesmo assim, optou por ser meu inimigo. E foi
isso que o trouxe até aqui.
Houve outro longo silêncio. Sarov estendeu a mão e acariciou suavemen‐
te a bochecha de Alex. Olhou o garoto nos olhos pela última vez. Depois,
girou o corpo e saiu andando.
Alex o viu entrar no carro e ir embora.
Os outros soldados estavam um pouco distantes, ainda nos seus postos,
cercando a área. Mas ali, bem no centro, com o guindaste, os submarinos e
a bomba nuclear, só estavam Alex e Conrad. Era como se o porto todo fosse
só deles.
Conrad deu uns passos à frente e parou bem perto de Alex.
— Tenho um serviço a fazer — grunhiu. — Mas depois vamos passar
um tempinho juntos. Embora possa ser estranho, Sarov ainda se importa
com você. Ele me disse para deixá-lo em paz. Mas acho que, desta vez, vou
desobedecer ao general. Você é meu. E pretendo fazê-lo sofrer.
— Só de olhar para você, já sofro — disse Alex.
Conrad o ignorou. Foi caminhando todo torto até o guindaste e subiu a
curta escada até a cabine. Alex o viu ligar os controles. Pouco depois, o dis‐
co de metal girou de modo a ficar bem acima da bomba e em seguida come‐
çou a descer. Conrad manejava o guindaste com habilidade. O disco desceu
rápido, parou, depois foi tocando suavemente a superfície do baú prateado.
O garoto ouviu um clique alto e, um pouco depois, de repente, o baú balan‐
çou e se ergueu do chão. Agora ele entendera. O disco de metal era um ele‐
troímã potente. Conrad estava operando um guincho magnético para levar a
bomba por sobre a água e colocá-la no submarino. A operação toda levaria
cerca de três minutos. Depois, cuidaria do garoto.
Alex não tinha mais tempo. Precisava agir agora.
O chiclete que Smithers lhe dera estava no bolso direito. Alex tinha ape‐
nas a mão esquerda livre e demorou preciosos segundos para pegá-lo, tirar
da caixa e colocá-lo na boca. Imaginou o que Conrad pensaria se o visse.
Certamente, Sarov não acharia nada divertido. Um garoto do Ocidente que
estava prestes a morrer e só conseguia pensar em chiclete!
Começou a mascar. Smithers conseguira acertar pelo menos em parte na
fórmula. O chiclete realmente tinha gosto de morango. Alex se perguntou
quanto tempo devia deixá-lo na boca. A ideia era que a saliva dele o ativas‐
se, mas não parecia ter acontecido nada. Mascou até que o chiclete ficasse
macio e maleável e o gosto de morango desaparecesse. Depois, cuspiu-o na
mão e pressionou-o depressa na algema, forçando para que entrasse na fe‐
chadura.
O baú prateado passara sobre a água. Alex o viu balançar levemente aci‐
ma do submarino. Na cabine de controle, Conrad inclinou-se para a frente.
Devagar, baixou o baú até que pousasse na superfície metálica. Os cabos e
as correntes ligados ao guindaste ficaram soltos e depois voltaram a se es‐
tender. A lança do guindaste já deixara a bomba no submarino e começou a
voltar para o cais.
Havia alguma coisa de fato acontecendo dentro da algema. Alex ouviu
um assobio fraco. O chiclete cor-de-rosa se expandia. Estava vazando para
fora da fechadura, e havia muito mais chiclete do que ele colocara. Houve
um ruído súbito. O metal se partira. Alex sentiu uma picada dolorida quan‐
do um estilhaço de metal entrou no seu pulso. Mas a algema se abriu. Ele
estava livre!
Conrad viu o que acontecera. Já descia do guindaste, gritando alguma
coisa que Alex não conseguiu entender. Não desligara os controles do guin‐
daste, e o ímã continuava a se mover sozinho, a poucos metros da água. A
bomba estava do outro lado, fora de alcance.
Alex olhou em volta em busca de alguma coisa que pudesse usar como
arma. Havia uma pilha de escombros, algumas hastes metálicas... mas esta‐
vam longe demais. Conrad chegou ao pé da escada e se moveu pesadamente
na direção dele. De repente, estavam cara a cara.
Conrad sorriu. O sorriso ficou repuxado no lado do rosto que se mexia.
O outro lado, o da careca, continuou imóvel. Alex logo notou que, apesar
das deficiências terríveis, Conrad estava absolutamente confiante. Um ins‐
tante depois, soube por quê.
Conrad se movia com uma velocidade fantástica. Em um momento, esta‐
va em posição de combate. No outro, era um borrão. Alex sentiu um chute
no peito. O mundo girou, e ele foi jogado no chão, sufocado e machucado.
Enquanto isso, Conrad pousara com leveza sobre os pés. A respiração dele
nem se alterara.
Dolorido, Alex conseguiu se levantar. Conrad foi na direção dele e chu‐
tou mais uma vez. O pé errou por muito pouco, pois o garoto mergulhou no
chão e rolou várias vezes até a beira da água. Uma mão o alcançou e agar‐
rou sua camisa. Viu as cicatrizes horríveis no lugar que a parte de cima da
mão havia sido costurada de volta ao pulso. Foi arrastado até ficar em pé.
Conrad deu-lhe um tapa usando uma força tremenda. Alex sentiu gosto de
sangue. A mão o soltou. Ele ficou em pé, cambaleando, tentando encontrar
algum jeito de se defender.
Mas não havia como. Apesar de toda a força e habilidade de Alex, Con‐
rad conseguira vencê-lo. E agora ia matá-lo. Alex viu isso no rosto dele.
E então, do nada, ouviu-se um som estridente. A campainha do alarme
disparara outra vez. Ouviram-se tiros e uma explosão. Alguém jogara outra
granada. Conrad ficou imóvel onde estava, olhando em volta. Mais tiros.
Embora parecesse impossível, o porto parecia estar sendo atacado.
Com as forças revigoradas, Alex correu para a frente. Tinha visto uma
das hastes de metal no chão, em meio aos escombros. Sentiu o peso da has‐
te nas mãos, contente por ter achado algo que lhe serviria como arma. Con‐
rad virou-se para encará-lo. O tiroteio se intensificava. Agora, parecia vir de
dois lados, pois os homens de Sarov se defendiam de um inimigo que apa‐
recera do nada. Ouviu-se uma derrapagem de pneus, e Alex avistou ao lon‐
ge um jipe atravessando uma das cercas de arame. O veículo parou de re‐
pente. Três homens saltaram e buscaram abrigo. Todos usavam uniformes
azuis. O que estava acontecendo? A Marinha russa contra o Exército russo?
E, afinal, quem dera o alerta?
Mas ainda que os planos de Sarov tivessem sido descobertos e que, de al‐
guma forma, estivesse ocorrendo uma operação de resgate, Alex ainda cor‐
ria grave perigo. Conrad se colocara na ponta dos pés, procurando uma ma‐
neira de se desviar da haste de metal. E a bomba nuclear? Alex não sabia se
Sarov a deixara pronta para explodir em cinco horas ou em cinco minutos.
Sabendo quanto ele era maluco, tanto podia ser uma coisa como outra.
Conrad deu um salto para a frente. Alex arremeteu com a barra de metal
e sentiu que ela bateu no ombro do homem. Mas o seu sorriso de satisfação
se desfez quando Conrad agarrou a haste com as duas mãos. Ele simples‐
mente permitira que Alex o atacasse para conseguir assim alcançar a barra.
O garoto puxou-a de volta, mas Conrad era forte demais para ele. A haste
foi arrancada das mãos dele e lhe cortou as palmas. Ele largou a barra e gri‐
tou quando Conrad a girou com violência, como se fosse uma foice. O me‐
tal bateu ao lado do tornozelo de Alex, que caiu outra vez, de costas, inca‐
paz de se mover.
Mais tiros. Embora com o campo de visão reduzido, Alex viu mais duas
granadas cruzarem o ar. Caíram perto de um dos navios e explodiram for‐
mando uma imensa bola de fogo. Dois dos homens de Sarov foram lança‐
dos pelos ares. Ao mesmo tempo, duas ou três metralhadoras dispararam si‐
multaneamente. Ouviram-se gritos. Mais chamas.
Conrad aproximou-se de Alex.
Parecia ter esquecido o que estava acontecendo no estaleiro. Ou talvez
não se importasse. Jogou a haste de metal para o lado, depois arregaçou as
mangas bem devagar. Por fim, agachou-se até ficar sentado sobre o peito do
garoto, com um joelho de cada lado. Fechou as mãos em volta do pescoço
dele.
Bem devagar, apreciando o que fazia, começou a apertar.
Alex sentiu os dedos do homem se fecharem como um grampo de aço
em sua garganta. Não conseguia respirar. Já enxergava pontos negros diante
dos olhos. Por trás de Conrad, viu algo que se movia na direção dele. Era o
disco magnético. Na pressa de pegar Alex, o homem deixara os controles da
cabine ligados, e o braço do guindaste ainda girava. De repente, houve um
barulho estridente. A haste de metal rolara pelo chão e batera no guindaste.
Conrad não percebera. Estava concentrado demais no que fazia. Mas Alex
viu tudo e de repente voltou a ter esperança.
O garoto se lembrou do que Sarov lhe dissera sobre o seu assistente.
Conrad tinha pinos de metal por todo o corpo, fios metálicos no queixo e
uma placa de metal na cabeça. Seria possível que...?
Alex se esticou e agarrou os pulsos de Conrad, tentando soltá-los. O
mundo todo girava. Podia sentir o próprio peito explodindo. Sabia que só
lhe restavam poucos segundos. Mas lá estava ele! O disco magnético se
aproximava cada vez mais.
Usando as poucas forças que ainda lhe restavam, Alex de repente socou
o homem com os dois punhos e, ao mesmo tempo, ergueu o corpo. Pego de
surpresa, Conrad foi lançado para trás, e suas mãos se afrouxaram. O disco
estava bem acima dele. Alex viu o assombro no rosto dele quando todas as
placas, pinos e fios do seu corpo entraram no campo magnético.
Conrad deu um berro. E depois desapareceu, içado para cima, agarrado
por mãos invisíveis. Suas costas se chocaram contra o disco fazendo um
ruído brusco. No mesmo instante, ele ficou imóvel, preso ao disco pelos
ombros, com os braços e as pernas suspensos. O guindaste continuou o mo‐
vimento, levando o corpo inerte e fazendo uma curva suave por cima do
cais.
Alex ainda tentava recuperar o fôlego. O mundo voltava a entrar em fo‐
co.
— Que homem atraente — murmurou.
Devagar, ficou em pé, depois andou aos trancos até o corrimão do para‐
peito ao qual fora algemado. Escorou-se nele, incapaz de ficar mais tempo
em pé sem apoio. Ouviu mais um tiroteio, mais demorado e mais intenso do
que os anteriores. Aparecera um helicóptero voando baixo sobre o mar. Viu
um tripulante sentado na abertura da porta, com as pernas suspensas e uma
arma imensa encaixada cuidadosamente no colo. Um dos caminhões de Sa‐
rov foi arrancado das rodas, girou duas vezes e depois explodiu em chamas.
A bomba...
Mais tarde, Alex tentaria entender o que havia acontecido ali. Ninguém
estaria seguro até que a bomba fosse desativada. A garganta dele ainda
queimava. Ele precisou usar toda a força que tinha para conseguir respirar.
E então correu e subiu no guindaste. Já operara um guindaste antes. Sabia
que não podia ser tão difícil. Esticou o corpo e assumiu os controles. No
mesmo instante, um dos homens de Sarov atirou nele. A bala atingiu a car‐
caça de metal da cabine. Alex se esquivou instintivamente e empurrou uma
alavanca.
O disco magnético parou e balançou no ar com Conrad ainda preso a ele
como um boneco quebrado. Alex empurrou a alavanca para frente e o disco
começou a descer para o mar. Não! Não era isso que ele queria. Puxou a
alavanca e o disco parou bruscamente. O que tinha que fazer para desligar o
ímã? Alex olhou em volta e viu um interruptor. Apertou-o. Uma luz se
acendeu acima de sua cabeça. Não era aquele interruptor! Havia um botão
embutido na alavanca de controle que ele estava segurando, e ele o pressio‐
nou. Na mesma hora, Conrad foi largado. Bateu na água cinzenta e gelada e
afundou imediatamente. Com todo o metal que o homem tinha no corpo,
não era de surpreender, pensou Alex.
Puxou a alavanca, e o disco magnético subiu outra vez. Um soldado cor‐
reu pelo cais na direção dele. Veio uma rajada de tiros do helicóptero e o
homem caiu imobilizado. Agora... concentração! Alex tentou outra alavan‐
ca, e dessa vez o disco magnético começou a voltar até o submarino. Pare‐
ceu levar uma eternidade. Estava apenas em parte ciente da batalha que ain‐
da era travada ao seu redor. As autoridades russas haviam chegado com for‐
ça total. Os homens de Sarov eram agora muito menos numerosos, mas ain‐
da tinham poder de reação. Sabiam que não tinham nada a perder.
O ímã chegou ao submarino. Alex o abaixou em direção ao baú prateado,
lembrando-se da delicadeza com que o homem de Sarov fizera essa opera‐
ção. O garoto tinha menos habilidade — e se encolheu todo quando o disco
pesado bateu na tampa da caixa. Minha nossa! Se não tomasse cuidado, ele
mesmo detonaria aquela coisa. Apertou outra vez o botão no manche, e de
fato sentiu o ímã ganhar vida: havia pegado a bomba nuclear. Puxou a ala‐
vanca, elevando o braço e retirou o baú prateado do submarino.
Então, centímetro por centímetro, ele movimentou o braço do guindaste
sobre a água, levando a bomba nuclear de volta para o porto. Outra bala
atingiu o guindaste, estourando uma janela bem ao lado da cabeça do garo‐
to. Alex gritou. Choveram estilhaços de vidro sobre ele, que sentiu medo de
ficar cego. Mas, quando levantou os olhos, a bomba nuclear ainda pairava
sobre o cais, e ele viu que estava quase conseguindo.
Baixou-a. No instante exato em que ela tocou o chão, houve outra explo‐
são, mais alta e mais próxima que as anteriores. Mas não era uma explosão
nuclear. Um dos armazéns fora despedaçado. Outro estava em chamas.
Mais um helicóptero chegara e castigava a área com tiros, levantando a po‐
eira e os escombros. Era difícil dizer com certeza, mas Alex achava que os
homens de Sarov estavam perdendo terreno. Pareciam reagir bem menos
aos tiros. Bem, nos próximos poucos segundos, isso não faria diferença. Tu‐
do o que o garoto tinha que fazer era retirar o cartão plástico.
Desativou o disco magnético, desceu do guindaste e correu até o baú. Po‐
dia ver uma parte do cartão para fora da fenda em que Sarov o inserira. As
luzes ainda piscavam e os números giravam. Agora o tiroteio diminuíra em
volta dele. Olhando por cima do ombro, Alex avistou mais homens de azul
avançando devagar pelo porto, vindos de todos os lados. Esticou-se e puxou
o cartão. As luzes da bomba nuclear se apagaram. Os números desaparece‐
ram. Ele conseguira!
— Coloque-o de volta, por favor.
As palavras foram ditas com suavidade, porém cada sílaba continha uma
ameaça. Alex olhou para cima e viu Sarov. De alguma forma, o general fi‐
cara sabendo que o complexo estava sendo atacado e voltara. Quanto tempo
se passara desde a última vez que os dois tinham se visto? Trinta minutos?
Uma hora? Não importa o espaço de tempo, Sarov estava diferente. Ele pa‐
recia mais baixo, encolhera. O brilho dos seus olhos desaparecera, e a pouca
cor que havia na sua pele parecia ter desbotado. Havia um rasgo no casaco e
uma mancha de sangue que aumentava lentamente. Ele fora ferido ao tentar
retornar até o porto. A mão esquerda pendia inútil.
No entanto, a mão direita segurava uma arma.
— Acabou, general — disse Alex. — Conrad está morto. O Exército rus‐
so está aqui. Alguém deve tê-los avisado.
Sarov balançou a cabeça.
— Ainda posso detonar a bomba. Ela pode ser acionada outra vez. Você
e eu morreremos. Mas o resultado final será o mesmo.
— Um mundo melhor?
— É só o que eu sempre quis, Alex. Tudo isso! Fiz apenas aquilo em que
acreditava.
Alex foi invadido por um cansaço intenso. O cartão parecia pesar na sua
mão. Era realmente estranho. Tudo o que acontecera desde a Ilha do Esque‐
leto até ali...para no fim chegar a essa situação.
Sarov levantou a arma. O sangue se espalhava mais depressa agora. O
general cambaleou.
— Se não me der o cartão, eu o mato — falou.
Alex ergueu o cartão. Depois, deu-lhe um peteleco. O cartão girou duas
vezes no ar e desapareceu na água.
— Vá em frente, então, se é o que o senhor quer — disse ele. — Atire.
Os olhos de Sarov piscaram na direção do cartão perdido, depois se vol‐
taram para Alex.
— Por que...? — sussurrou.
— Prefiro morrer a ter um pai como você — respondeu.
Ouviram-se vozes que gritavam. Passos se aproximavam.
— Adeus, Alex — disse Sarov.
Levantou a arma e disparou um só tiro.
17
DEPOIS DE ALEX

— PERDEMOS ALEX RIDER — disse a sra. Jones. — Sinto muito,


Alan. Sei que não é o que você queria ouvir. Mas é isso, acabou.
O presidente da Divisão de Operações Especiais do MI6 e sua principal
assistente almoçavam juntos em um restaurante próximo da estação ferro‐
viária da Liverpool Street. Costumavam comer lá, porém nem sempre jun‐
tos. O restaurante ficava no subsolo e tinha o teto baixo e abobadado, uma
iluminação suave e paredes de tijolo aparente. Blunt gostava das toalhas de
mesa brancas e engomadas e do serviço à moda antiga. Além disso, a comi‐
da não era tão boa, de modo que poucas pessoas o frequentavam. E isso era
uma coisa boa quando ele queria conversar sobre um assunto como aquele.
— Alex se saiu muito bem — murmurou.
— Ah, sim. Recebi um e-mail de Joe Byrne, do Estado americano da
Virgínia. Estava, naturalmente, aborrecido com a perda dos seus dois agen‐
tes na caverna submarina, mas fez muitos elogios ao Alex. Sem dúvida, ele
nos deve um favor, o que no mínimo poderá ser útil no futuro.
A sra. Jones pegou um pãozinho e o partiu em dois. Depois continuou:
— Não me surpreenderia que agora a CIA começasse a treinar o seu pró‐
prio espião adolescente. Os americanos estão sempre copiando as nossas
ideias.
— Quando não somos nós que copiamos as deles — comentou Blunt.
— É verdade.
Pararam de falar quando o garçom chegou com a entrada. Sardinhas gre‐
lhadas para a sra. Jones, sopa para Blunt. Os pratos não pareciam particular‐
mente apetitosos, mas isso não importava. Nenhum deles estava mesmo
com muito apetite.
— Dei uma olhada nos arquivos e acho que entendi o quadro geral —
disse Blunt. — Mas talvez você possa me dar mais alguns detalhes. Em es‐
pecial, gostaria de saber como as autoridades russas descobriram tudo a res‐
peito de Sarov a tempo.
— Foi por causa do que aconteceu no aeroporto de Edimburgo — expli‐
cou a sra. Jones.
Ela olhou para o prato. Havia quatro sardinhas colocadas lado a lado,
completas, com cabeça e cauda. Se fosse possível aos peixes expressar tris‐
teza, aqueles haviam conseguido. A sra. Jones espremeu o limão sobre eles.
O sumo formou lágrimas abaixo dos olhos inertes.
— Alex deparou com um guarda da segurança chamado John Prescott —
continuou ela. — O garoto conseguiu escapar do avião de Sarov usando um
aparelhinho que Smithers lhe dera.
— Não me lembro de ter autorizado Smithers... — Blunt começou a di‐
zer.
— Alex queria telefonar — a sra. Jones o interrompeu. — Ele obviamen‐
te ia nos avisar sobre os planos de Sarov e sobre Murmansk. Esse sujeito,
Prescott, o impediu de usar o telefone.
— Que pena.
— É. Deve ter sido muito frustrante. Alex lhe disse que era espião e que
trabalhava para nós, mas logo Sarov conseguiu encontrá-lo. Prescott foi as‐
sassinado, e tudo terminou aí. Ou teria terminado, mas tivemos uma sorte
incrível. O guarda arrancou o fone da mão do garoto, mas na verdade não
chegou a desligá-lo. Alex já havia ligado para a polícia e eles estavam ou‐
vindo do outro lado da linha. Ouviram tudo. É claro que, no início, também
não acreditaram no que Alex dissera. Mas depois ouviram Conrad matar
Prescott e, é claro, entraram em contato conosco o mais rápido possível. Fui
eu quem alertou as autoridades de Murmansk, e devo dizer que os russos
agiram muito prontamente, pelo menos dessa vez. Reuniram uma força na‐
val e dois helicópteros de ataque e invadiram o porto.
— O que aconteceu com a bomba?
— Ficaram com ela. Segundo disseram, tinha potência suficiente para
abrir um buraco razoável na península de Kola. A radiação teria contamina‐
do a Noruega, a Finlândia e a maior parte da Grã-Bretanha. E realmente
acho que a reação adversa teria sido suficiente para tirar Kiriyenko do po‐
der. De qualquer forma, ninguém gosta muito dele.
— Onde está Kiriyenko? — a sopa de Blunt estava quase fria. Ele até es‐
quecera que sopa havia pedido.
— As autoridades cubanas o encontraram preso na Ilha do Esqueleto. Ele
estava aos gritos e culpando a todos, menos a si próprio.
A sra. Jones balançou a cabeça, depois prosseguiu.
— Voltou para Moscou. Sarov o deixou profundamente chocado, assim
como a todos nós. Não fosse o Alex, só Deus sabe o que teria acontecido.
— O que os cubanos dizem de tudo isso?
— Repudiaram Sarov e disseram que não têm nada a ver com ele. Não
faziam a menor ideia do que ele estava planejando. O mais assustador é que
ele quase conseguiu escapar impune!
— Não fosse Alex Rider...
Os dois terminaram de comer em silêncio.
— Onde Alex está agora? — Blunt, por fim, perguntou. — Está em ca‐
sa? Como ele está?
— Está perturbado. Sarov se matou bem na frente do garoto.
A sra. Jones suspirou.
— Seu problema, Alan, é que você nunca teve filhos e se recusa a aceitar
o fato de que, no final das contas, Alex é apenas uma criança. Ele já passou
por muito mais do que qualquer garoto de 14 anos poderia imaginar. E essa
última missão! Eu diria que foi a mais difícil que ele já teve e, no último
instante, ele ainda presenciou o que Sarov fez...
— Imagino que Sarov não quisesse ser apanhado com vida — murmurou
Blunt.
— Gostaria que fosse simples assim. Parece que Sarov tinha uma espécie
de... ligação com Alex. Ele o via como o filho que perdera. Alex o rejeitou,
o que o levou ao extremo. Esse foi o motivo pelo qual ele se matou. Não
poderia conviver com isso.
Blunt fez sinal, e o garçom foi até a mesa e lhe serviu mais vinho. Não
era comum que os dois chefes de espionagem bebessem durante o almoço,
mas Blunt escolhera meia garrafa de Chablis, que estava em um balde de
gelo ao lado da mesa. Outro garçom serviu os pratos principais. A comida
ficou na mesa, intocada.
— Como ficou aquela história das tríades? — perguntou Blunt.
— Ah, já resolvi tudo. Consegui soltar duas pessoas da gangue deles que
havíamos prendido. Foram mandadas de volta para Hong Kong. Foi o que
bastou. Vão deixar o Alex em paz.
— Então por que você disse que o perdemos?
— A verdade é que, desde o início, nem devíamos tê-lo usado.
— Não o usamos. Foi a CIA.
— Você sabe muito bem que isso não faz diferença — a sra. Jones pro‐
vou o vinho. — A questão é que fui eu quem ouviu o relatório dele, e tudo o
que posso dizer é que... ele não é mais o mesmo. É, eu sei. Sei que já disse
isso antes. Mas estou seriamente preocupada com ele, Alan. Ele ficou tão
quieto e fechado. Ficou muito ferido.
— Quebrou alguma coisa?
— Pelo amor de Deus, Alan! As crianças podem se ferir de outras ma‐
neiras! Lamento ter que dizer, mas fico profundamente perturbada com isso.
Não podemos mais usá-lo. Não é justo.
— A vida não é justa — Blunt pegou a taça. — Acho que você está es‐
quecendo que o Alex acabou de salvar o mundo. Mais uma vez. Esse garoto
está rapidamente se tornando um dos nossos agentes mais eficazes. Ele é a
melhor arma secreta que nós temos. Não podemos nos dar o luxo de ser
muito sensíveis em relação a ele. Vamos deixá-lo descansar. Mas você sabe
tão bem quanto eu que, quando a necessidade surgir, não haverá o que dis‐
cutir. Vamos usá-lo muitas e muitas vezes...
A sra. Jones pousou o garfo e a faca.
— De repente, perdi a fome — falou.
Blunt olhou de relance para ela.
— Espero que não esteja começando a se sentir culpada — disse ele. —
Se está realmente preocupada com o Alex, traga-o aqui para termos uma
conversinha de coração aberto.
A sra. Jones olhou bem nos olhos do chefe.
— Talvez ele encontre dificuldades para achar o seu coração, Alan —
disse ela.

O dia seguinte era sábado. Alex acordou tarde, tomou banho, vestiu-se e
desceu para tomar o café da manhã que a governanta, Jack Starbright, lhe
preparara. Ela fizera as coisas de que ele mais gostava. Alex, porém, ficou
em silêncio e comeu pouco. Jack estava muito preocupada com ele. No dia
anterior, tentara levá-lo a um médico e, pela primeira vez na vida, ele a tra‐
tara mal. Agora ela já não sabia o que fazer. Se as coisas não melhorassem,
ia falar com aquela mulher, a sra. Jones. Teoricamente, Jack não podia saber
o que estava acontecendo, mas podia muito bem imaginar. Ela faria com
que alguém tomasse alguma providência. As coisas não podiam continuar
como estavam.
— O que você vai fazer hoje? — perguntou.
Alex encolheu os ombros. Estava com uma atadura enrolada na mão que
fora cortada pela barra de metal, e tinha vários cortes no rosto. Mas os he‐
matomas em volta do pescoço eram muito piores. Conrad certamente deixa‐
ra sua marca.
— Quer ver um filme?
— Não. Pensei em sair para dar uma volta.
— Vou com você, se quiser.
— Não. Obrigado, Jack. Ficarei bem sozinho.
Dez minutos depois, Alex saiu de casa. De acordo com a previsão do
tempo, seria um dia lindo, mas estava cinzento e nublado. Começou a andar
em direção à famosa e movimentada Kings Road, querendo se misturar à
multidão. Não tinha a menor ideia de aonde iria. Só precisava pensar.
Sarov estava morto. Alex virara o rosto quando viu o homem colocar a
arma no próprio coração — não conseguiria ver mais nada. Minutos depois,
estava tudo acabado. O estaleiro fora protegido e a bomba retirada. O pró‐
prio Alex fora colocado em um helicóptero, primeiramente levado para um
hospital em Moscou, depois para Londres. Alguém lhe dissera que Kiriyen‐
ko queria vê-lo. Ouviu uma conversa de que lhe dariam uma medalha. Alex
recusou. Só queria voltar para casa.
E era onde estava agora. Tudo dera certo. Ele era um herói! Então, por
que se sentia assim? E o que exatamente ele sentia? Depressão? Exaustão?
Sentia as duas coisas, mas, o que era ainda pior, sentia-se vazio. Era quase
como se tivesse morrido no Estaleiro de Manutenção de Submarinos Nucle‐
ares de Murmansk e voltado para Londres como um fantasma. A vida se
passava à sua volta, mas ele não fazia parte dela. Mesmo quando estava dei‐
tado na cama, dentro de sua própria casa, ele se sentia deslocado.
Tanta coisa acontecera na vida dele, mas ele não tinha autorização para
comentar sobre nada daquilo com ninguém. Não podia nem contar para a
Jack. Ficaria horrorizada e chateada — e, de qualquer forma, ela não pode‐
ria fazer nada. Ele perdera mais duas semanas de aula e sabia que não teria
que dar conta de se atualizar apenas na matéria da escola. As amizades tam‐
bém mudam. As pessoas já o achavam estranho. Não levaria muito tempo e
ninguém mais falaria com ele.
Ele nunca teria um pai. Agora tinha certeza disso. Nunca teria uma vida
normal. De certa forma, caíra em uma armadilha. Um fantasma — era isso
o que ele se tornara.
Alex não ouviu um carro parar atrás dele. Nem ouviu a porta se abrir e se
fechar. Mas de repente ouviu passos apressados na sua direção e, antes que
pudesse se mover, sentiu uma mão abraçar-lhe o peito por trás.
— Alex!
Ele se virou.
— Sabina!
Sabina Pleasure estava na frente dele, arfando após a curta corrida, e ves‐
tia uma camiseta com a figura de Robbie Williams, calça jeans e uma bolsa
de palha colorida pendurada no ombro. Seu rosto estava iluminado de ale‐
gria.
— Nossa! Que bom que o encontrei! Estou há semanas tentando achá-lo.
Você não me deu o número do seu telefone, mas por sorte eu sabia o seu en‐
dereço. Minha mãe e meu pai me trouxeram de carro.
Ela fez um gesto apontando para os pais, sentados dentro do carro. Os
dois acenaram para Alex por trás do para-brisa.
— Eu ia dar um pulo até lá para ver se você estava em casa. E encontro
você aqui!
Ela olhou para o pescoço dele e viu os hematomas.
— Você está horrível! O que aconteceu? Foi acidente de carro?
— Não exatamente...
— Seja como for, Alex — ela interrompeu —, estou muito chateada com
você. Caso você não se lembre, salvei a sua vida em Cornwall. Embora eu
deva admitir que o beijo-respiração-boca-a-boca que lhe dei tenha sido o
ponto alto das férias. De qualquer maneira, depois disso, soube que você
simplesmente desapareceu e não recebi nem ao menos um cartão de agrade‐
cimento.
— Bem, é que eu estive um pouco... ocupado.
— Sendo o James Bond, imagino.
— Bem... — Alex não sabia o que dizer.
Sabina pegou-o pelo braço.
— Você pode me falar tudo mais tarde. Minha mãe e meu pai o convida‐
ram para almoçar e queremos conversar sobre o sul da França.
— O que tem o sul da França?
— É para lá que vamos dentro de algumas semanas, assim que terminar
o período letivo. E você vai também. Temos uns amigos que nos empresta‐
ram uma casa com piscina, e vai ser ótimo!
Ela o olhava nos olhos, bem próxima dele.
— Não me diga que você já tem outros planos?
Alex sorriu.
— Não, Sabina, não tenho.
— Então, está combinado. E então, o que você quer almoçar? Estou de
olho em um italiano, mas, como ele só me ignora, acho que vou ficar com
você mesmo.
Alex e Sabina desceram a rua juntos. Ele olhou para cima. As nuvens se
abriram e o sol apareceu.
Afinal, parecia que seria mesmo um lindo dia.

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