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ALEX NÃO TOMARA a decisão de vigiar o guarda, mas nos dias que se
seguiram parecia ser atraído para perto do sujeito, como que por acaso. Ele
o vira mais duas vezes: uma quando inspecionava bolsas na entrada do Por‐
tão 5, e outra quando dava orientação a dois espectadores. É claro que havia
muitos outros homens e mulheres chineses trabalhando em Wimbledon, e
não havia nada de sinistro ou suspeito neles. Mas o guarda era diferente, seu
comportamento estranho e aquele círculo vermelho no braço o haviam dei‐
xado desconfiado.
Infelizmente, era impossível segui-lo o tempo todo. Essa era a única fa‐
lha no plano de Crawley. O trabalho de Alex o mantinha quase o dia todo
na quadra central. Os gandulas estavam organizados num sistema de reve‐
zamento, com turnos alternados de duas horas. Na melhor das hipóteses, ele
só podia ser espião durante meio período. E quando estava de fato na qua‐
dra, absorvido pela emoção do jogo, logo esquecia o guarda, o telefone e to‐
da a história da invasão.
No entanto, dois dias após Blitz ter deixado Wimbledon, o garoto se viu
mais uma vez seguindo os passos do sujeito. Faltava meia hora para o início
da partida da tarde, e Alex estava prestes a se apresentar no complexo quan‐
do viu o guarda entrar outra vez no prédio Millennium. Só isso já era estra‐
nho. O prédio era muito bem patrulhado. Sem ingresso, o público não pas‐
sava da recepção. Então, o que o guarda estava fazendo lá dentro? Alex
olhou para o relógio. Caso se atrasasse, Walfor gritaria com ele e talvez até
o mandasse para uma das quadras menos interessantes. Mas ainda tinha
tempo. E precisou admitir: estava curioso.
Entrou no Millennium. Como de costume, ninguém questionou sua pre‐
sença ali, seu uniforme de gandula era suficiente. Subiu a escada, atraves‐
sou o saguão de descanso dos jogadores e entrou no restaurante, do outro
lado. Lá estava o guarda na frente dele, outra vez com o celular na mão.
Mas não falava ao telefone. Estava simplesmente parado, observando os jo‐
gadores e os jornalistas terminarem o almoço.
O restaurante era amplo e moderno, com um longo bufê de pratos quen‐
tes e uma mesa central com saladas, bebidas geladas e frutas. Devia haver
umas cem pessoas sentadas almoçando, e Alex reconheceu ali um ou dois
rostos famosos. Olhou rapidamente para o guarda, que estava em pé em um
canto, tentando passar despercebido. Ao mesmo tempo, parecia estar focado
na mesa próxima a uma das janelas. O garoto acompanhou a direção do
olhar do guarda. Havia dois homens sentados à mesa. Um estava de paletó e
gravata. O outro vestia uma roupa esportiva. Alex não conhecia o primeiro,
mas o segundo era Sam Raymond, outro tenista de primeira linha, america‐
no, que jogaria naquela tarde.
Talvez o outro homem fosse o treinador ou o empresário do tenista. Os
dois conversavam em voz baixa, mas a conversa era intensa. O homem de
paletó falou, e Raymond riu. Alex avançou mais para dentro do restaurante,
mantendo-se perto da parede. Queria observar o que o guarda faria, mas
sem ser visto. Era ótimo que o restaurante estivesse lotado. Havia um nú‐
mero suficiente de pessoas circulando para encobri-lo.
Raymond se levantou. Alex viu o guarda estreitar os olhos e em seguida
levar o celular ao ouvido. Mas não digitou nenhum número. Raymond foi
até um bebedouro e puxou um copo do cilindro plástico. O guarda pressio‐
nou um botão no celular. Raymond serviu-se de água. O garoto viu quando
uma bolha de ar subiu, parecendo um cogumelo dentro do garrafão plástico.
O jogador levou o copo com água até a mesa e sentou-se. O homem de pa‐
letó disse algo. Raymond bebeu a água. E foi isso. Alex tinha visto tudo.
Mas o que ele vira? Não houve tempo para responder à pergunta. O guar‐
da já estava se deslocando em direção à saída. Alex decidiu o que faria. A
porta principal ficava entre ele e o guarda. Então se dirigiu também para a
porta, de cabeça baixa, como se não estivesse olhando para onde ia.
Calculou o tempo exato. Assim que o guarda chegou à porta, Alex esbar‐
rou nele. No mesmo instante, balançou o braço como que por descuido, ba‐
tendo na mão do guarda. O celular caiu no chão.
— Ah... me desculpe! — disse Alex.
Antes que o guarda pudesse detê-lo, Alex se abaixou e pegou o telefone.
Antes de devolvê-lo, sentiu na mão o peso do aparelho.
— Aí está — disse, entregando-o.
O guarda não disse nada. Por um instante os olhos dele fitaram os do ga‐
roto, que se sentiu sendo inspecionado por aquelas pupilas muito escuras e
completamente sem vida. O homem tinha a pele pálida e esburacada, com
um brilho de suor acima do lábio superior. O rosto não tinha nenhuma ex‐
pressão. Alex sentiu o telefone ser arrancado da sua mão, e em seguida o
guarda já havia ido embora, e a porta de mola se fechou às suas costas.
A mão de Alex ainda estava parada no ar. Olhou para a palma da mão.
Ficou com medo de ter entregado o jogo, mas pelo menos agora conseguira
alguma informação. O celular era falso. Leve demais. Não havia nada na te‐
la. E não se via nenhum logotipo de marca conhecida: Nokia, Panasonic,
Virgin... nada.
Ele se virou para os dois homens à mesa. Raymond terminara de beber a
água e amassara o copo plástico na mão. Ele estava cumprimentando o ami‐
go, prestes a sair.
A água...
Uma ideia passou pela cabeça de Alex. Era uma ideia completamente ab‐
surda, mas ainda assim fazia algum sentido com base em tudo o que vira.
Atravessou o restaurante outra vez e se abaixou ao lado do bebedouro. Vira
máquinas iguais àquela por todo o clube de tênis. Pegou um copo e, com a
borda, pressionou a torneira abaixo do garrafão. A água, filtrada e gelada,
foi despejada no copo. Ele sentiu a sensação do líquido gelado na palma da
mão.
— Que diabo você pensa que está fazendo?
Ao olhar para cima, formando uma muralha ao seu redor, Alex viu um
homem de rosto vermelho que usava um paletó do torneio de Wimbledon.
— Estava só pegando água — explicou.
— Isso eu sei! É óbvio. O que eu quero saber é o que você está fazendo
neste restaurante? É reservado para tenistas, autoridades e imprensa.
— Eu sei disso — falou Alex.
Procurou não perder a calma. Não tinha o direito de estar ali e, se o fun‐
cionário — fosse ele quem fosse — fizesse queixa dele, Alex poderia per‐
der a vaga como gandula.
— Perdão, senhor — disse. — Trouxe uma raquete para o sr. Raymond.
Acabei de entregá-la. Como estava com sede, parei para pegar um copo de
água.
O funcionário amoleceu. A história de Alex soara perfeitamente razoá‐
vel. E o funcionário gostara de ser chamado de “senhor”. Ele balançou a ca‐
beça em sinal de concordância e falou:
— Tudo bem. Mas não apareça mais por aqui.
Ele estendeu a mão e pegou o copo.
— Agora volte para o seu lugar.
Alex chegou ao complexo cerca de dez minutos antes do início da parti‐
da. Walfor olhou para ele carrancudo, mas não disse nada.
Naquela tarde, Sam Raymond perdeu a partida para Jacques Lefevre, o
mesmo francês desconhecido que dois dias antes, inesperadamente, derrota‐
ra Jamie Blitz. O placar final foi 6 a 7, 6 a 4, 6 a 2, 6 a 0. Embora Raymond
tivesse vencido o primeiro set, seu jogo foi se deteriorando ao longo da tar‐
de. Foi outro resultado surpreendente. Como Blitz, Raymond era outro
grande favorito ao título.
Vinte minutos depois, Alex estava de volta ao restaurante do subsolo,
sentado ao lado de Sabina, que bebia uma Coca Light.
— Minha mãe e meu pai estão aqui hoje — dizia ela. — Consegui in‐
gressos para eles. Em troca, eles me prometeram uma prancha de surfe no‐
va. Você já surfou, Alex?
— O quê? — O pensamento de Alex estava a quilômetros dali.
— Eu estava falando de Cornwall, surfe...
— Ah, sim. Já surfei — Alex aprendera a surfar com o tio, Ian Rider, o
espião cuja morte mudara a sua vida tão abruptamente. Os dois haviam pas‐
sado uma semana juntos em San Diego, Califórnia. Isso acontecera muitos
anos antes. Anos que, às vezes, pareciam séculos.
— Tem alguma coisa errada com a sua bebida? — Sabina perguntou.
Alex percebeu que segurava a Coca à sua frente, balançando o copo e
olhando fixamente para ele.
— Não, está boa... — começou a dizer.
Mas aí, pelo canto do olho, viu o guarda. Ele descera de novo para o
complexo. Outra vez, usava o telefone público do canto. Alex o viu inserir
uma moeda e discar um número.
— Já volto — disse Alex.
Levantou-se e foi até o telefone. O guarda estava em pé, de costas para
ele. Dessa vez, o garoto conseguiu chegar perto a ponto de conseguir ouvir
o que ele dizia:
— ... vai ser totalmente bem-sucedido.
O guarda falava em inglês, mas com forte sotaque. Ainda estava de cos‐
tas para Alex, mas falava num tom de voz surpreendentemente alto. Houve
uma pausa. Depois continuou:
— Vou encontrá-lo agora. Sim, em seguida. Ele vai me entregar e levo
para você.
Houve outra pausa. Alex sentiu que a conversa ia terminar. Deu alguns
passos para trás.
— Tenho que ir antes que alguém me veja — disse o guarda. — Tchau.
Botou o telefone de volta no lugar e foi embora.
— Alex? — Sabina o chamou. Sozinha, continuava sentada no mesmo
lugar onde os dois estavam antes. Alex percebeu que a garota devia ter visto
o que ele acabara de fazer. Ele ergueu a mão e acenou. Teria que achar um
jeito, mais tarde, de dar alguma explicação para tudo aquilo.
O guarda não subiu de volta para o andar térreo. Em vez disso, entrou
por uma porta que dava para um longo corredor, desaparecendo ao longe.
Alex abriu a porta e foi atrás dele.
O Ali England Tennis Club é um complexo imenso. No nível do solo,
lembra um parque temático, ainda que seu único tema seja o tênis. Milhares
de pessoas andam pelos caminhos e passarelas cobertas, num fluxo ininter‐
rupto de camisetas brancas radiantes, óculos escuros e chapéus de palha.
Além das quadras, há salões de chá, cafés, restaurantes, lojas, guichês de in‐
formações turísticas, bilheterias e centrais de segurança.
Há, porém, abaixo de tudo isso, outro mundo não tão conhecido. Todo o
clube é interligado por um labirinto de corredores, túneis e ruas, alguns tão
grandes a ponto de comportar a passagem de carros. Se é fácil se perder no
térreo, é ainda mais fácil no subsolo. Há muito pouca sinalização, e não tem
ninguém na esquina para dar informações. É o mundo dos cozinheiros e dos
garçons, dos lixeiros e dos entregadores. De algum modo eles conseguem se
movimentar e sair à luz do dia exatamente nos lugares onde devem sair e
depois desaparecem outra vez.
O corredor em que Alex se encontrava se chamava Caminho Real e liga‐
va o prédio Millennium à quadra 1, o que permitia aos jogadores chegar à
quadra sem serem vistos. O Caminho estava limpo e vazio, com um carpete
azul muito vivo. O guarda encontrava-se a pouco menos de 20 metros de
Alex, e de repente ele achou estranho se ver sozinho naquele lugar. Havia
apenas os dois ali. Acima deles, uma multidão de pessoas estaria andando
de um lado para o outro à luz do sol. Embaixo não havia ninguém, e Alex
achou bom que o carpete abafasse o barulho dos seus passos. O guarda pa‐
recia apressado. Até então, não parara nem se virara.
O guarda chegou a uma porta de madeira em que estava escrito “Acesso
restrito”. Sem parar, entrou. Alex parou por um instante, depois o seguiu.
Nesse momento, se viu num ambiente de um modo geral bem mais grotes‐
co. Era um corredor de concreto com placas de sinalização em amarelo, e
grossos tubos de ventilação na parte de cima. O ar cheirava a óleo e lixo, e
Alex sabia que chegara ao Caminho dos Carrinhos, uma rota de serviço que
forma um grande círculo sob o clube. Dois adolescentes usando jeans e
avental verde passaram por ele, empurrando lixeiras plásticas. Uma garço‐
nete foi no sentido oposto, levando uma bandeja com pratos sujos. Não ha‐
via sinal do guarda e, por um instante, Alex pensou que o havia perdido.
Mas então viu uma figura sumir por trás de várias tiras de plástico transpa‐
rente que pendiam do teto até o chão. Conseguiu apenas identificar o uni‐
forme do homem do outro lado, apressou-se e atravessou a cortina de tiras.
Alex se deu conta de duas coisas ao mesmo tempo: já não fazia a menor
ideia de sua localização e estava totalmente só.
Encontrou-se em uma câmara subterrânea que tinha o formato de uma
banana, curva e com pilares de concreto que sustentavam o teto. Mais pare‐
cia um estacionamento subterrâneo e, na verdade, havia três ou quatro car‐
ros estacionados em vagas próximas à passarela suspensa onde ele estava.
Mas a maior parte do espaço era recoberta por sucata. Havia caixas de pa‐
pelão vazias, estrados de madeira, uma betoneira enferrujada, pedaços de
grades velhas e máquinas de café quebradas, jogadas fora e abandonadas no
chão úmido de cimento. O ar tinha um cheiro ruim, e Alex ouvia um zumbi‐
do constante, como o de uma serra elétrica, vindo de um compactador de li‐
xo que não estava à vista. Ainda assim, o lugar era usado para estocar ali‐
mentos e bebidas. Havia barris de cerveja, centenas de garrafas de refrige‐
rantes, cilindros de gás e, agrupados num canto, oito ou nove caixas brancas
gigantescas — câmaras frigoríficas — cada qual com o rótulo da marca
“Refrigeração Rawlings”.
Alex olhou para o teto que se inclinava para cima e cujo formato lem‐
brou-lhe alguma coisa. Mas é claro! A arquibancada ao redor da quadra 1!
Era onde ele estava: no compartimento de carga que ficava sob a quadra de
tênis. Sem dúvida, ali era o ventre de Wimbledon. Era ali que chegavam to‐
dos os suprimentos, e para onde todo o lixo era levado. E, nesse exato mo‐
mento, dez mil pessoas estavam sentadas poucos metros acima de sua cabe‐
ça, apreciando o jogo, sem saber que tudo o que consumiam ao longo do dia
começava e terminava ali.
Mas onde estava o guarda? Por que viera até ali e com quem ia se encon‐
trar? Alex avançou com cuidado, lembrando-se, outra vez, de que não con‐
tava com ninguém. Estava em uma plataforma suspensa, na qual uma única
palavra — “Perigo” — era repetida em letras amarelas ao longo da beirada.
Ninguém precisava lhe dizer isso. Chegou a uma escada e desceu para a
parte principal daquele compartimento, no mesmo patamar das câmaras fri‐
goríficas. Passou por um monte de cilindros de gás — gás carbônico com‐
primido. Não tinha a menor ideia da utilidade daquilo. A maior parte das
coisas daquele lugar parecia ter sido atirada ali sem nenhuma razão.
Agora, tinha certeza absoluta de que o guarda fora embora. Por que que‐
reria encontrar alguém ali embaixo? Pela primeira vez desde que deixara o
complexo, Alex repassou mentalmente a conversa telefônica.
“Vou encontrá-lo agora. Sim, em seguida. Ele vai me entregar...”
Parecia ridículo, falso, como uma daquelas falas que se ouve em filmes
ruins que passam na TV. No momento em que percebeu isso e admitiu que
fora enganado, ouviu um som estridente e viu uma figura escura sair rápido
das sombras. Estava num espaço aberto, bem no centro do piso de concreto.
O guarda dirigia uma empilhadeira cujos garfos metálicos se projetavam na
direção de Alex, como os chifres de um touro gigantesco. Movido por um
motor elétrico de 88 volts, o veículo acelerava sobre os pneus. O garoto
olhou para o alto e viu os estrados pesados, uns doze, equilibrados lá em ci‐
ma dos garfos. Viu o sorriso do guarda, um vislumbre dos dentes feios num
rosto ainda mais feio.
Alex correu em direção a uma parede, buscando uma saída, mas o veícu‐
lo percorreu a distância entre eles numa velocidade impressionante, depois
parou de repente quando o guarda pisou no freio. O garoto caíra em uma ar‐
madilha: gritou e se jogou para um lado. Os estrados de madeira, lançados
para frente pela força cinética do veículo, deslizaram dos garfos e foram ar‐
remessados com um estrondo. Teria sido esmagado, não fossem os barris de
cerveja. De alguma forma, ele conseguira se proteger por trás dos barris
que, enfileirados, suportaram o peso dos estrados, deixando um espaço tri‐
angular minúsculo. Ouviu a madeira se despedaçar poucos centímetros aci‐
ma de sua cabeça. Os estilhaços o atingiram no pescoço e nas costas. A po‐
eira e a sujeira o sufocaram. Mas ele ainda estava vivo. Engasgado e sem
conseguir enxergar muito bem, rastejou para frente enquanto a empilhadeira
dava a ré e se preparava para atacá-lo outra vez.
Como podia ter sido tão idiota? O guarda o vira naquela primeira vez no
complexo, enquanto dava o telefonema. Alex ficara ali parado olhando fixa‐
mente para a tatuagem no braço do sujeito e pensara que o uniforme de gan‐
dula seria suficiente para protegê-lo. E depois, no segundo encontro, no pré‐
dio Millennium, quando esbarrara nele desajeitadamente, para pegar o celu‐
lar. É óbvio que o guarda descobrira quem ele era e o que estava fazendo.
Não importava que se tratasse de um adolescente. Sabia demais. Era perigo‐
so. Precisava ser eliminado.
Então o guarda preparara uma armadilha tão óbvia que não enganaria
nem um... bem, nem um colegial. Alex gostaria de ver a si próprio como o
mesmo superespião que salvara o mundo inteiro por duas vezes. Mas isso
era bobagem. O guarda fingira que telefonara fazendo com que ele o seguis‐
se até aquela área deserta. E agora estava prestes a matá-lo. Quando estives‐
se morto, não importaria quem ele era ou o que descobrira.
Sufocado e com enjoo, ele cambaleou no instante em que a empilhadeira
investiu em sua direção pela segunda vez. Virou-se e correu. O guarda esta‐
va ridículo, todo encurvado dentro daquela cabine minúscula. Porém, a má‐
quina que ele dirigia era veloz, potente e incrivelmente manobrável, capaz
de fazer um círculo ao redor de uma moeda de dez centavos. Alex tentou
mudar de direção, correndo a toda velocidade para um lado. O veículo fez a
volta e o seguiu.
Nesse instante, o guarda se esticou e apertou um botão. Os garfos de me‐
tal sacudiram e foram abaixados, de modo que já não pareciam chifres, pa‐
reciam duas espadas empunhadas por um apavorante cavaleiro medieval.
Para que direção Alex deveria correr? Esquerda ou direita? Mal teve
tempo de decidir, e o veículo já estava em cima dele. Mergulhou para a di‐
reita e saiu rolando pelo piso de concreto. O guarda puxou a alavanca, e a
máquina girou outra vez. O garoto desviou-se de novo e, por poucos centí‐
metros, as pesadas rodas não o atingiram. Depois, bateram em um dos pila‐
res.
Houve um silêncio. Alex se levantou, sua cabeça girava. Por um segun‐
do, torceu para que a colisão tivesse deixado o guarda desacordado, mas,
sentindo o estômago embrulhado, viu o homem descer da cabine do veícu‐
lo, espanando um pouco a poeira da manga do casaco. O sujeito andava de‐
vagar, com a confiança de quem sabe que está no controle da situação. E
Alex já percebera o motivo. Quase automaticamente, o guarda assumira a
postura de um perito em artes marciais — os pés ligeiramente separados, o
centro de gravidade baixo. Com as mãos curvadas no ar, aguardava o mo‐
mento do ataque. Ainda sorria. Tudo o que via diante de si era um garoto
indefeso, um garoto já debilitado pelos dois ataques da empilhadeira.
Com um grito repentino, o guarda partiu para o ataque com a mão pare‐
cendo uma lâmina na direção da garganta do adversário. Se o golpe o tives‐
se acertado, ele estaria morto com a traqueia esmagada. Mas, no último ins‐
tante, ergueu os pulsos e cruzou os braços no ar, formando uma barreira. O
guarda foi pego de surpresa, e o garoto aproveitou para chutar com o pé di‐
reito, mirando a virilha do homem. No entanto, o guarda não estava mais
ali, já havia girado o corpo para o lado. Nesse instante, Alex percebeu que
estava diante de um lutador mais forte, mais rápido e mais experiente do
que ele.
O guarda rodopiou, e dessa vez a costa da mão dele atingiu o lado da ca‐
beça de Alex, que ouviu um estalo. Ficou cego por alguns instantes. Cam‐
baleou para trás e bateu contra uma superfície metálica. Era a porta de uma
das câmaras frigoríficas. Deu um jeito de agarrar a maçaneta e, quando con‐
seguiu andar aos tropeços para frente, a porta se abriu. Sentiu um golpe de
ar gelado na nuca, e talvez tenha sido o que o reanimou e lhe deu forças pa‐
ra se lançar à frente e se abaixar diante de um chute malsucedido do guarda,
que pretendia atingi-lo na garganta.
Alex estava em uma situação ruim e tinha consciência disso. O nariz san‐
grava. Podia sentir o sangue quente pingar sobre o canto da boca. Sua cabe‐
ça girava, e as lâmpadas em volta pareciam piscar diante de seus olhos. O
guarda, porém, não estava nem ofegante. E não era a primeira vez que o ga‐
roto se perguntava em que havia se metido. O que poderia ser tão importan‐
te a ponto de o guarda estar disposto a matar um garoto de 14 anos a san‐
gue-frio, sem ao menos fazer uma pergunta? Limpou o sangue da boca e
amaldiçoou Crawley por ter ido procurá-lo no campo de futebol, e xingou a
si próprio por ter lhe dado ouvidos. Um lugar na primeira fila em Wimble‐
don? Só se fosse no cemitério de Wimbledon.
O guarda caminhava em sua direção. Alex se retesou e mergulhou para o
lado, evitando o duplo golpe frontal de pé e mão. Caiu sobre uma lixeira
que transbordava. Usando todas as suas forças, pegou a lixeira e a arremes‐
sou, dando um sorriso forçado com os dentes cerrados quando a lata de lixo
atingiu o agressor, espalhando sobre ele os restos de comida apodrecida. O
guarda praguejou e cambaleou para trás. O garoto correu para trás do refri‐
gerador, tentando recobrar o fôlego e procurando uma saída.
Ele tinha apenas mais alguns segundos. Sabia que o guarda logo viria
atrás dele e, na próxima vez, acabaria o serviço. Já estava farto daquilo.
Alex viu os cilindros de gás comprimido e arrastou um deles para fora do
suporte de metal. O cilindro parecia pesar uma tonelada, mas ele estava de‐
sesperado. Arrancou com força a tampa e ouviu o gás vazando num jato.
Então, seguiu adiante segurando o cilindro à sua frente com as duas mãos.
Naquele instante, o guarda apareceu vindo pelo lado da câmara frigorífica.
O garoto avançou aos trancos, sentia os músculos gritando no limite, e
apontou o cilindro para o rosto do homem. O jato de gás explodiu nos olhos
dele, cegando-o temporariamente.
Abaixou o cilindro, retesou as pernas, e voltou a erguê-lo. A borda metá‐
lica bateu na cabeça do guarda, bem acima do nariz. Alex sentiu o impacto
do aço maciço contra o osso. O guarda cambaleou para trás. O garoto deu
mais um passo à frente. Dessa vez, manuseou o cilindro como um taco de
beisebol atingindo o homem nos ombros e no pescoço com uma força incrí‐
vel. O guarda não teve reação. Nem sequer gritou ao ser levantado do chão
e arremessado violentamente para dentro do frigorífico.
Alex largou o cilindro e gemeu. Os braços pareciam ter sido arrancados
do lugar onde se encaixavam no corpo. A cabeça ainda girava, e ele ficou
imaginando se não havia quebrado o nariz. Andou com dificuldade e olhou
para dentro da câmara frigorífica.
Havia uma cortina plástica que ocultava uma pilha de caixas de papelão,
cada uma delas cheia de morangos até a borda. Alex não pôde deixar de
sorrir. Os morangos com chantili eram uma das maiores tradições de Wim‐
bledon. Era ali que ficavam armazenados. O guarda caíra em meio às caixas
de morangos, esmagando algumas. Estava inconsciente, mergulhado num
monte de morangos, com a cabeça enfiada no que parecia ser um travessei‐
ro vermelho formado pelas frutas. O garoto ficou parado na entrada, encos‐
tado no batente da porta, deixando que o ar gelado passasse por ele. Havia
um termostato perto dele. Do lado de fora estava quente. Os morangos pre‐
cisavam permanecer refrigerados.
Deu uma última olhada no homem que tentara matá-lo.
— Frio — decidiu.
Então se esticou e girou o controle do termostato, deixando a temperatu‐
ra abaixo de zero.
Mais frio.
Fechou a porta da câmara frigorífica e foi embora, mancando e com dor.
4
CRIBBER, A ONDA
ALEX NÃO SABIA o que era mais surpreendente: ainda estar vivo ou se
ver outra vez no centro de operações da Divisão de Operações Especiais do
MI6, em Londres.
Sabia que o fato de ele ainda estar respirando se devia inteiramente a Sa‐
bina. Sentada na praia, assustada, ela assistira Alex surfar na Cribber na sua
direção. Vira a perseguição do jet ski antes mesmo que o garoto tivesse per‐
cebido que algo estava errado. Começara a correr no momento em que ele
girou no ar e já estava na água quando ele se espatifara perto do jet ski e de‐
pois afundara. Mais tarde, ela contou que ocorrera uma colisão, um acidente
terrível. Daquela distância, era impossível saber o que realmente acontece‐
ra.
Sabina era uma ótima nadadora e tinha a sorte ao seu lado. Ainda que a
água estivesse turva e as ondas continuassem imensas, ela sabia precisa‐
mente o lugar onde Alex afundara e conseguiu chegar lá em menos de um
minuto. Encontrou-o no segundo mergulho, puxou o corpo desmaiado para
a superfície e o arrastou até a praia. Sabina aprendera na escola a fazer res‐
piração boca a boca e usou naquele momento esse conhecimento, pressio‐
nando seus lábios nos de Alex, forçando a entrada de ar para os pulmões.
Mesmo então, estava certa de que ele tinha morrido. Ele não respirava. Os
olhos estavam fechados. Sabina pressionou-lhe o peito — uma, duas vezes
— e, por fim, foi recompensada com um espasmo súbito e um acesso de
tosse, quando Alex voltou a si. Naquela altura, outros surfistas haviam che‐
gado. Um deles tinha um celular e chamou uma ambulância. Não houve ne‐
nhum sinal do homem do jet ski.
Alex também tivera sorte. Como se soube depois, ele pegara a Cribber já
no final do seu percurso, quando a onda estava no seu ponto mais fraco.
Uma tonelada de água desabara sobre ele, mas, caso tudo aquilo tivesse
acontecido cinco minutos antes, teriam sido dez toneladas. Além disso, ele
não estava tão distante da praia quando Sabina o encontrou. Se estivesse um
pouco mais adiante, Sabina nunca o teria encontrado.
Cinco dias se passaram desde então.
Era uma manhã de segunda-feira, o começo de uma nova semana. Alex
se encontrava na sala 1605, no décimo sexto andar do prédio anônimo na
Liverpool Street. Ele jurara que nunca mais voltaria àquele lugar. O homem
e a mulher que estavam com ele na sala eram as últimas pessoas que ele
queria ver. Mesmo assim, lá estava ele. Fora apanhado com a mesma facili‐
dade com que se pega um peixe em uma rede.
Como de costume, Alan Blunt não parecia especialmente satisfeito em
vê-lo, preferindo se concentrar na pasta sobre a mesa à sua frente a concen‐
trar-se no próprio garoto. Era a quinta ou sexta vez que Alex encontrava o
homem que comandava essa divisão do serviço secreto britânico, e mesmo
assim ainda não sabia nada sobre ele. Blunt tinha uns 50 anos, era um sujei‐
to comum de terno num escritório. Aparentemente, não fumava, e Alex não
conseguia imaginá-lo bebendo qualquer coisa. Era casado? Tinha filhos?
Passava os fins de semana caminhando no parque, pescando, vendo fute‐
bol? Por algum motivo, Alex duvidava disso. Perguntava-se se Blunt de fa‐
to existia fora daquelas quatro paredes. Era um homem circunscrito pelo
trabalho. Toda a sua vida era dedicada a segredos e, por fim, ela própria se
transformara em um segredo.
Levantou os olhos do relatório impecavelmente impresso.
— Crawley não tinha o direito de envolver você nesse assunto — falou.
Alex não disse nada. Dessa vez, não estava certo se discordava dele ou
não.
— Esse torneio de tênis de Wimbledon. Você quase morreu — olhou in‐
terrogativamente para Alex. — E o acontecimento em Cornwall. Não gosto
que os meus agentes se envolvam com esportes perigosos.
— Não sou um dos seus agentes — disse Alex.
— O trabalho em si já é suficientemente perigoso, não há necessidade de
acrescentar mais riscos — prosseguiu Blunt, ignorando o comentário do ga‐
roto. — O que aconteceu com o homem do jet ski?
— Está sendo interrogado neste momento — respondeu a sra. Jones.
A chefe de Operações Especiais usava um terninho cinza, com uma bolsa
preta de couro que combinava com os seus olhos. Levava na lapela um bro‐
che prateado em forma de uma adaga em miniatura.
Ela fora a primeira pessoa a visitar Alex enquanto ele se recuperava no
hospital de Newquay e, pelo menos, se preocupara com o que havia aconte‐
cido. Demonstrara, é claro, pouca ou nenhuma emoção. Se alguém lhe ti‐
vesse perguntado, responderia que não gostaria de perder alguém que havia
sido tão útil e poderia voltar a sê-lo. Alex, porém, suspeitava de que isso
fosse apenas parte da história. Ela era mulher, e ele, apenas um garoto de 14
anos. Se a sra. Jones tivesse um filho, ele podia muito bem ter a mesma ida‐
de. Era algo que tinha certo peso, e ela não conseguia ignorar isso totalmen‐
te.
— Encontramos uma tatuagem no braço do homem — continuou ela. —
Parece que ele também era membro da gangue do Grande Círculo. — Ela se
virou para Alex e explicou: — O Grande Círculo é uma tríade relativamente
nova. Infelizmente, é também uma das mais violentas.
— Já pude perceber — disse Alex.
— O homem que você nocauteou e congelou em Wimbledon era um sai-
lo, que significa “irmão menor”. É preciso compreender o modo como essas
pessoas atuam. Você acabou com a operação deles e os fez de idiotas. É a
última coisa que podem permitir que aconteça. Então, mandaram alguém
atrás de você: o cara do jet ski. Ele ainda não disse nada, mas acreditamos
que seja um dai-lo, ou “irmão maior”. Ele deve ter grau 438... um abaixo do
Dragão Chefe, o líder da tríade. E agora esse dai-lo também falhou. É um
pouco de falta de sorte, Alex, que você, além de quase afogá-lo, tenha que‐
brado o nariz dele. A tríade vai considerar isso como outra humilhação.
— Eu não fiz nada — disse Alex. E era verdade. Ele se lembrou de como
a prancha acabara sendo arrancada de seu tornozelo. Não era culpa sua que
ela tivesse atingido o rosto do chinês.
— Não é o que eles vão achar — continuou a sra. Jones. Ela parecia uma
professora falando. — Estamos lidando com um guan-shi.
Alex aguardou que ela explicasse.
— O guan-shi é o que dá poder ao Grande Círculo — disse ela. — É um
sistema de respeito mútuo que interliga todos os membros. Basicamente, is‐
so significa que, se você fizer mal a um deles, estará fazendo mal a todos.
E, se um deles se tornar seu inimigo, todos se tornarão.
— Você atacou um homem deles em Wimbledon — grunhiu Blunt. —
Então, mandaram outro para Cornwall. Você elimina o homem deles em
Cornwall, e os outros membros da tríade recebem a ordem para matá-lo.
— Quantos membros tem a tríade? — perguntou Alex.
— Cerca de dezenove mil, de acordo com a última contagem — respon‐
deu Blunt.
Houve um longo silêncio, atenuado apenas pelo ruído distante do tráfego
dezesseis andares abaixo.
— Você correrá perigo a cada minuto que permanecer no país — falou a
sra. Jones. — E não há muito que possamos fazer. É claro, temos algum po‐
der sobre as tríades. Se as pessoas certas souberem que você tem a nossa
proteção, é possível que suspendam a ordem. Mas isso leva tempo, e a
questão é que é muito provável que eles estejam, neste instante, elaborando
o próximo plano de ataque.
— Você não pode voltar para casa — disse Blunt. — Não pode voltar pa‐
ra a escola. Não pode ir a nenhum lugar sozinho. Aquela mulher que cuida
de você, a governanta... já demos um jeito de tirá-la de Londres. Não pode‐
mos correr riscos.
— Então o que eu devo fazer? — perguntou Alex.
A sra. Jones olhou para Blunt, que acenou a cabeça em sinal afirmativo.
Nenhum deles parecia de fato preocupado, e Alex em seguida sentiu que as
coisas tinham corrido exatamente como eles queriam. Sem perceber, de al‐
gum modo estava nas mãos deles. Mais uma vez.
— Por coincidência, Alex — começou a sra. Jones —, alguns dias atrás
recebemos uma solicitação dos seus serviços. Veio do serviço de inteligên‐
cia americano: a Agência Central de Inteligência — ou CIA, como você de‐
ve conhecê-la. Eles precisam de um jovem para uma operação que estão
montando e perguntaram se você está disponível.
Alex ficou surpreso. O MI6 o usara duas vezes, e nas duas eles enfatiza‐
ram que ninguém saberia de nada. Agora, parecia que haviam andado se ga‐
bando do seu único espião adolescente. Pior ainda, estavam prontos para
emprestá-lo, como se ele fosse um livro de biblioteca.
A sra. Jones, como se tivesse lido a mente de Alex, levantou a mão.
— Dissemos a eles, é claro, que você não tem intenção de continuar nes‐
se tipo de trabalho — afirmou ela. — Afinal, foi isso o que nos disse: que
era estudante, não espião. Foi o que você disse. Mas agora parece que tudo
mudou. Lamento muito, Alex, mas, seja qual for o motivo, você decidiu
voltar a campo e, infelizmente, agora corre perigo: precisa desaparecer. Esta
pode ser a melhor maneira.
— Vocês querem que eu vá para os Estados Unidos? — perguntou Alex.
— Não exatamente para os Estados Unidos — interrompeu Blunt. —
Queremos que vá para Cuba. Ou, pelo menos, para uma ilha a poucos quilô‐
metros ao sul de Cuba. Chama-se Cayo Esqueleto, que, em espanhol, signi‐
fica...
— Ilha do Esqueleto — disse Alex.
— Exatamente. Claro, há inúmeras ilhas ao longo da costa dos Estados
Unidos. Você já deve ter ouvido falar de lugares como Key Largo e Key
West. A Ilha do Esqueleto foi descoberta por Sir Francis Drake. Diz a lenda
que, quando ele aportou por lá, o lugar era desabitado. Mas ele encontrou o
esqueleto de um conquistador espanhol, de armadura completa, sentado na
praia. É daí que vem o nome da ilha. Enfim, independentemente do nome
como é chamada, é na verdade um lugar muito lindo. Um ponto turístico.
Hotéis de luxo, mergulhar, velejar... Não estamos pedindo que faça nada pe‐
rigoso, Alex. Muito pelo contrário. Podemos até pensar em termos de umas
férias pagas. Duas semanas ao sol.
— Vocês não me pagam nada — disse Alex, sem conseguir evitar um
tom sarcástico em sua voz.
— Bom, seja como for... — Blunt tossiu. — A CIA está interessada em
Cayo Esqueleto por causa de um homem que mora lá. Ele é russo. Tem uma
casa imensa, alguns até chamariam de palácio, em um istmo, que é um bra‐
ço estreito de terra bem no extremo norte da ilha. O nome dele é general
Alexei Sarov.
Blunt puxou uma foto da pasta e a virou de modo que Alex pudesse vê-
la. A foto mostrava um homem que parecia estar em boa forma e usava uni‐
forme militar. A fotografia fora tirada na Praça Vermelha, em Moscou. Alex
pôde ver, por trás do homem, as torres do Kremlin com suas cúpulas em
forma de bulbo.
— Sarov é de outra época — disse a sra. Jones, tomando a palavra. —
Foi comandante do Exército russo nos tempos em que eles eram nossos ini‐
migos e a Rússia ainda fazia parte da União Soviética. Não faz tanto tempo,
Alex. Foi em 1990 que o comunismo acabou e o Muro de Berlim foi derru‐
bado.
Ela fez uma pausa, depois prosseguiu:
— Suponho que nada disso signifique muita coisa para você.
— É, na verdade, não — disse Alex. — Eu só tinha 3 anos.
— Sim, é claro. Mas você precisa entender que Sarov era um herói da
antiga Rússia. Tornou-se general quando tinha apenas 38 anos, no mesmo
ano em que o país dele invadiu o Afeganistão. Lutou lá durante dez anos,
chegando a ocupar o posto de número dois na hierarquia do Exército Ver‐
melho. Tinha um filho, que foi morto no Afeganistão. Sarov nem foi ao fu‐
neral. Isso significaria abandonar os seus homens, e ele não faria isso... nem
por um só dia.
Alex olhou outra vez para a fotografia. Pôde observar a rigidez no olhar
do homem. Era um rosto sem nenhum traço de calor humano.
— A guerra do Afeganistão terminou quando os soviéticos se retiraram,
em 1989 — continuou a sra. Jones. — Ao mesmo tempo, todo o país estava
se reduzindo a nada. O comunismo chegou ao fim, e Sarov foi embora. Não
fez segredo de que não gostava da nova Rússia com seus jeans da Levi's, tê‐
nis da Nike e um McDonald's em cada esquina. Abandonou o Exército, ain‐
da que continue se intitulando general, e foi viver...
— Na Ilha do Esqueleto — Alex terminou a frase.
— Sim. Está por lá há dez anos. E aqui chegamos ao ponto central, Alex.
O presidente russo planeja encontrá-lo lá daqui a duas semanas, o que não é
nada surpreendente. Os dois são velhos amigos. Até cresceram na mesma
região de Moscou. Mas a CIA está preocupada. Querem saber o que Sarov
pretende. Por que esses dois vão se encontrar? A velha Rússia e a nova Rús‐
sia. O que está acontecendo afinal?
— A CIA quer espionar Sarov.
— Exato. É uma simples operação de vigilância. Eles querem enviar pa‐
ra lá uma equipe disfarçada, para dar uma olhada geral antes da chegada do
presidente.
— Muito bem — disse Alex, dando de ombros. — Mas por que eles pre‐
cisam de mim?
— Porque a Ilha do Esqueleto é um território comunista — explicou
Blunt. — Pertence a Cuba, um dos últimos lugares do mundo ocidental em
que o comunismo ainda persiste. É extremamente difícil entrar e sair desse
lugar. Há um aeroporto em Santiago, a capital. Mas todos os aviões são vi‐
giados. Todos os passageiros são revistados. Eles estão sempre à espreita
em busca de espiões americanos, e qualquer pessoa que desperte a mais le‐
ve suspeita é barrada e mandada de volta.
— E foi por isso que a CIA recorreu a nós — prosseguiu a sra. Jones. —
Um homem sozinho pode parecer suspeito. Um homem e uma mulher pode
ser uma equipe. Mas um homem e uma mulher viajando com uma criança...
só podem ser uma família!
— É só o que querem de você, Alex — disse Blunt. — Que você entre
na ilha com eles, que fique com eles no hotel. Você vai nadar, mergulhar e
curtir o sol. Eles farão todo o serviço. Você vai estar lá apenas como peça
integrante do disfarce deles.
— E eles não podem usar um garoto americano? — questionou Alex.
Blunt tossiu, nitidamente desconcertado com a pergunta.
— Os americanos nunca usariam um jovem deles em uma operação des‐
sas — falou. — Sabe, eles têm normas diferentes das nossas.
— O senhor quer dizer que eles têm medo de que o garoto acabe morren‐
do.
— Não chamaríamos você se fosse esse o caso, Alex — falou a sra. Jo‐
nes, quebrando aquele silêncio incômodo. — Mas você precisa sair de Lon‐
dres. Na verdade, precisa sair da Inglaterra. Não queremos que você morra.
Estamos tentando protegê-lo, e essa é a melhor maneira. O sr. Blunt tem ra‐
zão. Cayo Esqueleto é uma ilha linda, e você tem muita sorte de ir para lá.
Você pode considerar isso tudo como umas férias.
Alex pensou bem. Olhou para Alan Blunt e para a sra. Jones, mas obvia‐
mente nenhum deles deixou transparecer nada. Quantos agentes já teriam
sentado nessa sala com esses dois, ouvindo o mesmo discurso encantador?
“É um serviço simples. Não é nada de mais. Você estará de volta dentro
de duas semanas.”
O tio de Alex fora um deles, enviado para verificar a segurança de uma
fábrica de computadores na costa sul da Inglaterra. Mas Ian Rider jamais
voltara.
Alex não queria nada daquilo. Ainda restavam sete semanas das férias de
verão, e ele queria ver Sabina outra vez. Os dois haviam falado sobre o nor‐
te da França e o vale do Loire, albergues para jovens e longas caminhadas.
Ele tinha amigos em Londres. Jack Starbright, sua governanta e melhor
amiga, o convidara a ir com ela quando fosse visitar os pais em Chicago.
Sete semanas de normalidade. Seria pedir muito?
Ainda assim, lembrou-se do que acontecera na Cribber quando o sujeito
do jet ski o alcançara. Viu os olhos dele apenas por alguns segundos, o sufi‐
ciente para não se enganar sobre a crueldade e o fanatismo que havia neles.
Era um homem que fora preparado para persegui-lo em uma onda de seis
metros de altura e matá-lo pelas costas... e chegara muito próximo de conse‐
guir. Alex sabia, com uma triste certeza, que as tríades tentariam outra vez.
Ele os humilhara, não apenas uma vez, mas duas. Blunt tinha razão quanto
a isso. Qualquer expectativa de ter um verão normal, agora não passava de
um sonho.
— Se eu ajudar os seus amigos da CIA, vocês vão fazer com que as tría‐
des me deixem em paz? — perguntou.
A sra. Jones balançou a cabeça afirmativamente.
— Temos contatos no submundo chinês. Mas isso leva tempo, Alex.
Aconteça o que acontecer, você precisará se esconder, ao menos durante al‐
gumas semanas. Então, por que não se esconder ao sol?
Exausto, Alex assentiu.
— Está bem — falou. — Parece que não tenho mesmo alternativa. Quan‐
do vocês querem que eu vá?
Blunt tirou um envelope da pasta.
— Está aqui a sua passagem de avião — disse. — Há um voo hoje à tar‐
de.
É claro, já sabiam que ele aceitaria.
— Queremos permanecer em contato com você enquanto estiver fora —
murmurou a sra. Jones.
— Vou mandar um cartão-postal — propôs Alex.
— Não, Alex. Não era bem isso o que eu tinha em mente. Por que você
não vai conversar com o Smithers?
Smithers tinha um escritório no décimo primeiro andar do prédio, e Alex
teve que admitir que a princípio ficou desapontado.
Fora Smithers quem criara os vários equipamentos eletrônicos que Alex
tinha usado nas missões anteriores, e Alex esperava encontrá-lo em algum
porão, cercado de carros e motos, armas altamente sofisticadas e homens e
mulheres de jaleco branco. Porém, a sala era um tédio: ampla, toda certinha
e impessoal. Podia pertencer ao executivo-chefe de praticamente qualquer
empresa — uma seguradora, talvez, ou um banco. Havia uma escrivaninha
de aço e vidro com telefone, computador, bandejas de entrada e saída e uma
longa luminária metálica de braço articulado. Um sofá de couro ficava en‐
costado em uma parede. No outro lado da sala, havia um arquivo prateado
com seis gavetas. Atrás da escrivaninha, um quadro na parede: uma paisa‐
gem marinha. Mas, para desapontamento de Alex, não havia aparelhos em
lugar nenhum. Nem mesmo um apontador elétrico para lápis.
O próprio Smithers estava atrás da escrivaninha, digitando no computa‐
dor com dedos um tanto grandes demais para as teclas. Era um dos sujeitos
mais gordos que Alex conhecia. Estava vestido com um terno preto de três
peças e sua gravata antiga, que parecia ter pertencido a um uniforme esco‐
lar, repousava sobre o imenso volume da barriga. Ao ver Alex, parou de di‐
gitar e se virou girando a cadeira de couro que devia ter sido reforçada para
suportar o peso dele.
— Meu caro garoto! — exclamou. — Que prazer em vê-lo! Entre, entre!
Como tem passado? Soube que você teve problemas... aquele negócio na
França. Você precisa mesmo se cuidar, Alex. Eu não poderia me conformar
se alguma coisa lhe acontecesse. Porta!
Alex virou-se para ver com quem Smithers havia falado e ficou surpreso
quando a porta se fechou sozinha atrás dele.
— Ativada por comando de voz — explicou Smithers. — Sente-se, por
favor.
Alex sentou-se em uma cadeira de couro, do lado oposto da escrivani‐
nha. Assim que se acomodou na cadeira, ouviu um ruído baixinho, e a lumi‐
nária articulada girou e se curvou na direção dele, como se fosse um pássa‐
ro metálico que quisesse olhá-lo mais de perto. Ao mesmo tempo, a tela do
computador piscou e apareceu um esqueleto humano. Alex mexeu a mão. A
mão do esqueleto se mexeu. Arrepiado, percebeu que olhava para si mesmo
— ou melhor, através de si mesmo.
— Você parece estar muito bem — falou Smithers. — Uma boa estrutura
óssea!
— O que...? — Alex começou a perguntar.
— É só uma coisa em que tenho trabalhado. Um aparelho simples de rai‐
os X. É útil se a pessoa estiver portando uma arma.
Smithers apertou um botão e a tela se apagou.
— Bom, o sr. Blunt me disse que você vai se encontrar com os nossos
amigos da CIA. São ótimos profissionais. Muito, muito bons... exceto, é
claro, pelo fato de que não se pode confiar neles e de que eles não têm ne‐
nhum senso de humor. Cayo Esqueleto, certo?
Inclinou-se para a frente e apertou outro botão na escrivaninha. Alex
olhou para o quadro na parede. As ondas estavam se mexendo! Ao mesmo
tempo, a imagem mudou, distanciando-se, e ele percebeu que olhava para
uma tela de cristal líquido com uma imagem transmitida por satélite de al‐
gum lugar sobre o oceano Atlântico. Apareceu uma ilha de formato irregu‐
lar cercada de água azul-turquesa. A imagem tinha um relógio, e ele perce‐
beu que aquilo era uma transmissão ao vivo para a sala.
— Clima tropical — murmurou Smithers. — Não pegarão muita chuva
nesta época do ano, o que é uma pena, pois estou criando um poncho que se
transforma em paraquedas. Bom, mas não acho que precisaremos disso. Te‐
nho também um repelente maravilhoso contra mosquitos. Na verdade, os
mosquitos são praticamente a única coisa que ele não elimina. Mas você
também não vai precisar disso! Aliás, fiquei sabendo que a única coisa de
que você de fato vai precisar é algum dispositivo que o ajude a se comuni‐
car.
— Um transmissor escondido — disse Alex.
— Por que tem que ficar escondido? — Smithers abriu uma gaveta, tirou
um objeto e colocou-o diante de Alex.
Era um celular.
— Obrigado, mas já tenho celular — murmurou Alex.
— Não igual a este — retrucou Smithers. — Liga direto para este escri‐
tório, mesmo que você esteja na América. Funciona debaixo da água... e no
espaço. As teclas são sensíveis a impressões digitais, logo, só você pode
usá-lo. Este é o modelo cinco. Temos também o modelo sete: se você o se‐
gurar de cabeça para baixo ao discar, ele explode na sua mão.
— Nossa! Por que não posso ficar com esse? — perguntou Alex.
— O sr. Blunt proibiu — disse Smithers, curvando-se para frente, como
se contasse um segredo. — Mas incluí algo mais para você. Está vendo esta
anteninha bem aqui? Ao discar 999, ela dispara como uma agulha. Envene‐
nada, é claro. Deixa qualquer pessoa desacordada num raio de quase 20 me‐
tros.
— Está certo — Alex pegou o celular. — Mais alguma coisa?
— Como de praxe, soube que você não pode levar nenhuma arma... —
Smithers suspirou. Depois inclinou-se para frente e falou a uma planta no
vaso. — Poderia trazê-los até aqui em cima, srta. Pickering?
Alex começava a ficar desconfiado daquele escritório — e isso se confir‐
mou pouco depois, quando o sofá de couro de repente se dividiu ao meio e
as duas extremidades se afastaram uma da outra. Ao mesmo tempo, uma
parte do chão deslizou para o lado, permitindo que outra parte do sofá en‐
caixasse tranquilamente naquele espaço, e o sofá de dois lugares transfor‐
mou-se num de três. Uma jovem surgiu junto com a nova peça. Estava sen‐
tada de pernas cruzadas e com as mãos sobre os joelhos. Levantou-se e foi
até Smithers.
— São os itens que o senhor pediu — disse ela, entregando-lhe um paco‐
te. Pegou uma folha de papel e colocou-a diante dele. — E este relatório
acabou de chegar do Cairo.
— Obrigado, srta. Pickering.
Smithers esperou que a mulher tivesse saído — dessa vez, pela porta —
e deu uma rápida olhada no relatório.
— Não é boa notícia — murmurou. — Nem um pouco. Mas, bem... —
enfiou o relatório na bandeja de saída. Houve uma faísca elétrica enquanto
o papel se autodestruía. Um segundo depois, restavam apenas cinzas. — Es‐
tou obedecendo às regras ao fazer isso — prosseguiu ele. — Mas tenho al‐
gumas coisas que eu estava preparando para você e não vejo por que não
deva levá-las. É melhor prevenir do que remediar.
Virou o pacote, e uma caixinha cor-de-rosa de chicletes deslizou para fo‐
ra.
— O lado divertido de trabalhar com você, Alex — disse Smithers —, é
adaptar coisas que se espera encontrar nos bolsos de um garoto da sua ida‐
de. Fiquei extremamente satisfeito com esta.
— Chiclete?
— Ele faz bolas muito especiais. Basta mastigá-lo por 30 segundos que
as substâncias químicas presentes na saliva reagem com o composto da fór‐
mula, fazendo com que o chiclete se expanda. E, ao se expandir, pode des‐
pedaçar praticamente qualquer coisa. Coloque-o em uma arma, ou na fecha‐
dura de uma porta, por exemplo, e ele vai despedaçá-las.
Alex virou a caixinha ao contrário. Estava escrito “Chiclete 0-7” em le‐
tras amarelas na lateral da caixa.
— De que sabor o senhor fez? — perguntou ele.
— Morango. Agora, este outro dispositivo é ainda mais perigoso, e tenho
certeza de que não vai precisar dele. Eu o chamo de “Atacante” e ficaria
muito feliz se você pudesse me devolvê-lo.
Smithers sacudiu o pacote, um chaveiro deslizou e caiu perto do chiclete,
na escrivaninha, com um boneco de plástico pendurado, um jogador de gol‐
fe usando calças pretas, camiseta vermelha e boné preto. Alex inclinou-se
para frente e virou-o. Olhava para um boneco do famoso campeão Tiger
Woods, com cinco centímetros de altura.
— Obrigado, sr. Smithers — disse ele. — Mas nunca dei bola para o jo‐
go de golfe.
— Não é necessário que você goste de golfe, Alex, para que tenha um
pouco de paz de espírito. Esta estatueta pode simplesmente salvar a sua vi‐
da. O mais importante é a cabeça. Lembre-se disto, Alex: gire-a duas vezes
no sentido horário e uma no sentido anti-horário, e o dispositivo ficará ar‐
mado.
— Explode?
— Ê uma granada de efeito moral. Faz um clarão e um estrondo. Um de‐
tonador de dez segundos. Não tem o poder de matar, mas, em um ambiente
não muito grande, ela incapacita o adversário por alguns minutos, o que po‐
de lhe dar a oportunidade de escapar.
Alex enfiou no bolso o boneco do Tiger Woods, os chicletes e o celular.
Quando se levantou, sentia-se mais confiante. Podia ser uma simples mis‐
são de vigilância, umas férias, como Blunt chamara, mas mesmo assim ele
não queria ir de mãos abanando.
— Boa sorte, Alex — falou Smithers. — Espero que se dê bem com a
CIA. E só Deus sabe o que vão fazer com você.
— Tchau, sr. Smithers.
— Se você vai descer, tenho um elevador privativo.
Enquanto Smithers falava, as seis gavetas do arquivo se abriram — fo‐
ram três para um lado e três para o outro —, revelando um cubículo muito
iluminado.
Alex balançou a cabeça.
— Se não faz diferença para o senhor, vou pela escada.
— Como quiser, garotão. Só se cuide. E, aconteça o que acontecer, não
engula o chiclete!
6
AGENTES NEM TÃO ESPECIAIS
EM PÉ, Alex olhava pela janela, tentando entender o mundo no qual agora
se encontrava. As sete horas dentro do avião haviam sugado dele algo que
nem mesmo a surpresa de um lugar na primeira classe conseguira superar.
Sentia-se deslocado, como se o corpo tivesse chegado, mas metade do cére‐
bro ficara para trás.
Olhava para o oceano Atlântico, situado do outro lado de uma faixa ofus‐
cante de areia branca, estendendo-se ao longe, com cadeiras de praia e guar‐
da-sóis dispostos milimetricamente. Miami fica no extremo sul dos Estados
Unidos, e parecia que metade das pessoas que tinham vindo para a cidade
preferia aproveitar o sol. Ele via centenas delas deitadas de costas, com
biquínis minúsculos e calções de banho, coxas e bíceps esculpidos nas aca‐
demias, expostos para serem bronzeados. Idólatras do sol? Não. Aquelas
pessoas estavam ali porque idolatravam a si mesmas.
Era fim de tarde e o calor ainda estava intenso. Mas, na Inglaterra, a qua‐
se sete mil quilômetros dali, era noite — e Alex lutava contra o sono. Tam‐
bém sentia frio. O ar-condicionado do prédio estava ligado no máximo. O
sol podia brilhar do outro lado do vidro, mas naquele escritório elegante e
sofisticado, Alex tremia de frio. Miami Ice, pensou. Aquelas não eram as
boas-vindas que imaginara.
Um motorista o aguardava quando havia chegado ao aeroporto — um
homem alto, de terno, segurando um cartaz no qual estava escrito o nome
de Alex. O homem usava uns óculos escuros que lhe escondiam os olhos,
fazendo com que Alex visse o próprio reflexo duplo.
— Você é Rider?
— Sim.
— O carro está logo ali.
O carro era nada menos que uma limusine comprida. Alex sentiu-se ridí‐
culo sentado sozinho no compartimento longo e estreito com dois bancos de
couro, um de frente para o outro, bar com um estoque completo e TV. Não
se parecia em nada com um carro — e ele ficou feliz que os vidros fossem
escuros como os óculos do motorista. Ninguém o veria. Observou quando
as lojas e prédios de escritórios nos arredores do aeroporto passaram e de‐
pois, de repente, o carro cruzou a água por uma ponte que atravessava a
baía em direção a Miami Beach. Agora os prédios eram baixos, só um pou‐
co mais altos que as palmeiras que os cercavam, e lançavam surpreendentes
sombras rosadas e azul-claras. As ruas eram amplas, mas parecia haver
mais gente caminhando do que andando de carro, ou mais gente seminua
andando de patins pela faixa central.
A limusine parou diante de um prédio branco de dez andares, com linhas
tão retas que poderiam ter sido recortadas de uma gigantesca folha de papel.
Deixaram a bagagem de Alex no carro, entraram pelo saguão e pegaram o
elevador até o décimo andar. As portas se abriram direto na recepção do que
parecia ser um escritório bem comum, com duas moças competentes atrás
de um balcão curvo de mogno. Em uma placa lia-se: “Centurion Internatio‐
nal Advertising”. CIA, deduziu Alex. Bem pensado!
— Alex Rider, para falar com o sr. Byrne — disse o motorista.
— Por aqui.
Uma das moças fez um gesto apontando para uma porta. Alex nem a te‐
ria notado, não fosse a indicação dela.
Do outro lado da área de recepção, tudo era diferente.
Alex deu de cara com dois tubos de vidro com duas portas deslizantes —
uma de entrada, outra de saída. O motorista apontou, e Alex entrou. A porta
se fechou automaticamente, e ouviu-se um ruído enquanto ele passava por
um escâner — capaz de identificar tanto armas tradicionais como biológi‐
cas. Então, a porta se abriu do outro lado, Alex seguiu o motorista por um
corredor liso e vazio, e entraram num escritório onde ele estava agora.
O motorista foi embora e, sozinho, Alex olhava pela janela.
Era uma sala que realmente não se parecia nem um pouco com uma sala.
Era grande demais. Tinha portas demais — e não apenas portas, mas arca‐
das, recantos e um amplo terraço ao sol. O piso de mármore parecia um gi‐
gantesco tabuleiro de xadrez com quadrados em verde e branco. A mobília
era antiga, ornamentada — e estava espalhada por todos os cantos. Mesas e
cadeiras muito polidas. Pedestais com vasos e estatuetas. Espelhos imensos
em molduras douradas. Candelabros espetaculares. Um gigantesco crocodi‐
lo empalhado ficava diante de uma lareira grandiosa. O homem que o mata‐
ra estava sentado no lado oposto.
O general Sarov bebia café em uma xícara pequena de porcelana. Como
a cafeína vicia, ele só se permitia tomar um pouquinho de café por dia. Era
o seu único vício, e ele o saboreava. Naquele dia, usava um terno de linho
informal — porém, nele, parecia quase formal —, sem nenhuma ruga. A ca‐
misa estava aberta no colarinho, revelando um pescoço que poderia ter sido
esculpido em pedra. Um ventilador de teto girava devagar, a uns três metros
acima da escrivaninha diante da qual estava sentado. Sarov saboreou o res‐
tinho de café, depois pousou a xícara e o pires na mesa. A porcelana não fez
nenhum ruído ao tocar na superfície polida.
Bateram na porta — em uma das portas —, e um homem entrou cami‐
nhando pela sala. “Caminhando”, no entanto, não era a palavra certa. Não
havia palavra que descrevesse com precisão o jeito com que aquele homem
se movia.
Tudo nele estava errado. A cabeça ficava como que pendurada obliqua‐
mente nos ombros, que em si já eram tortos e corcundas. O braço direito era
mais curto que o esquerdo. A perna esquerda, no entanto, era vários centí‐
metros mais comprida que a direita. Os pés calçavam sapatos de couro pre‐
to, sendo um maior e mais pesado que o outro. Usava um casaco de couro
preto e calças jeans e, enquanto se aproximava de Sarov, seus músculos se
retesaram por baixo da roupa, como se tivessem vida própria. Nada no cor‐
po dele era coordenado, de maneira que, quando se movia para a frente, pa‐
recia que tentava andar para trás ou para o lado.
O rosto do homem era ainda pior. Parecia ter sido despedaçado e recom‐
posto por uma criança que tivesse apenas uma vaga ideia sobre a forma hu‐
mana. Havia umas doze cicatrizes no pescoço e nas bochechas. Um dos
olhos era vermelho, permanentemente injetado. O cabelo, longo e sem vida,
cobria-lhe apenas metade da cabeça. A outra metade era totalmente careca.
Embora fosse impossível adivinhar ao olhar para ele, o homem tinha
apenas 28 anos e, até alguns anos antes, fora o terrorista mais temido da Eu‐
ropa. Seu nome era Conrad. Sabia-se muito pouco sobre ele, embora se dis‐
sesse que era turco, que nascera em Istambul, que era filho de um açouguei‐
ro, e que, aos 9 anos de idade, explodira a escola com uma bomba construí‐
da na aula de química quando recebera uma punição por ter chegado atrasa‐
do.
Ninguém sabia quem treinara Conrad ou para quem trabalhara ao longo
dos anos. Era um vira-casaca — um criminoso independente, que não tinha
nenhuma ideologia política e atuava simplesmente por dinheiro. Acredita‐
va-se que fora responsável por atentados em Boston, Madri, Atenas e Lon‐
dres. Uma coisa era certa: os serviços de segurança de nove países estavam
à procura dele. Ele era o quarto da “Lista dos Mais Procurados” da CIA, e
havia uma recompensa oficial de dois milhões de dólares para quem o en‐
contrasse.
A carreira dele chegara a um fim repentino e inesperado no inverno de
1998, quando uma bomba que ele transportava — que deveria ser levada
para uma base militar — explodiu antes da hora. A bomba literalmente o
deixou despedaçado, mas não conseguiu matá-lo. Foi todo costurado por
uma equipe de médicos albaneses, num centro de pesquisas próximo de El‐
basan. O que se via agora era o trabalho artesanal deles.
Havia dois anos que Conrad trabalhava como secretário e assistente pes‐
soal de Sarov. Em outros tempos, esse tipo de trabalho estaria aquém da sua
capacidade, mas não tivera muita escolha. E, de qualquer forma, compreen‐
dia o alcance das ideias de Sarov. No novo mundo que o russo pretendia cri‐
ar, Conrad seria recompensado.
— Bom dia, camarada — disse Sarov, falando com seu inglês fluente. —
Espero que tenhamos conseguido recuperar o resto das cédulas no pântano.
Conrad fez um gesto afirmativo com a cabeça. Preferia não falar.
— Excelente. É claro que precisaremos fazer a lavagem do dinheiro. De‐
pois ele poderá ser depositado na minha conta.
Sarov se esticou e abriu uma agenda com capa de couro. Havia vários
itens, todos eles escritos com uma caligrafia perfeita.
— Está tudo acontecendo de acordo com o que foi programado — conti‐
nuou. — A construção da bomba...?
— Concluída.
Conrad parecia ter dificuldade de fazer com que as palavras saíssem da
boca. Tinha que retorcer todo o rosto para fazer com que a fala acontecesse.
— Sabia que podia contar com você. O presidente russo chegará aqui
dentro de cinco dias. Recebi hoje um e-mail dele com a confirmação. Boris
falou do quanto está ansioso por essa viagem — Sarov deu um breve sorri‐
so. — E será, é claro, uma viagem da qual é pouco provável que ele se es‐
queça. Os quartos já estão preparados?
Conrad fez que sim com a cabeça.
— As câmeras?
— Sim, general.
— Muito bem.
Sarov passou o dedo pelas páginas da agenda. Parou em uma palavra que
fora marcada com um sinal de interrogação.
— Ainda falta resolver a questão do urânio — disse ele. — Sabia que a
compra e a entrega do material nuclear seriam perigosas e delicadas. Os
dois homens que vieram no avião me ameaçaram, e pagaram o preço por is‐
so. No entanto, obviamente estavam a serviço de terceiros.
— O Vendedor — disse Conrad.
— Certamente. A esta altura o Vendedor já deve saber o que aconteceu
com os seus entregadores. Ao não receber mais nenhum pagamento meu,
talvez decida cumprir a ameaça e alertar as autoridades. É pouco provável,
mas ainda assim é um risco que não estou disposto a correr. Temos menos
de duas semanas para que a bomba seja detonada e o mundo adquira a for‐
ma que decidi dar a ele. Não podemos correr riscos. E, portanto, meu caro
Conrad, você deve ir a Miami e eliminar o Vendedor da nossa vida, o que,
receio, significará removê-lo deste mundo.
— Onde ele está?
— Ele trabalha em num barco, um iate transatlântico chamado Mayfair
Lady. Em geral fica atracado no Mercado da Baía. O Vendedor se sente
mais seguro na água. Pessoalmente, me sentirei mais seguro quando ele es‐
tiver debaixo da água.
Sarov fechou a agenda. A reunião terminara.
— Você pode partir imediatamente. Avise-me quando o serviço estiver
concluído.
Conrad assentiu pela terceira vez. Os pinos de metal do pescoço se me‐
xeram um pouco quando ele moveu a cabeça para cima e para baixo. De‐
pois ele se virou e, mancando, se arrastou para fora da sala.
7
A MORTE DE VENDEDOR
FOMOS CAMINHAR.
ACHAMOS QUE VOCÊ QUERIA DESCANSAR.
MAIS TARDE NOS ENCONTRAMOS.
BEIJOS. MAMÃE.
PASSOU HORAS SOB UMA LUZ crepuscular: não era nem dia nem noi‐
te. Preso no topo do mundo, totalmente parado e, mesmo assim, mais inqui‐
eto do que nunca. Alex dormiu durante a primeira parte da viagem, sabendo
que estava cansado e que precisaria de todas as suas forças. Aceitara o que
tinha que fazer. Antes, quando estava na Ilha do Esqueleto, ficara em parte
tentado a largar tudo e não fazer nada. Afinal, jamais pedira para estar ali.
Aquilo tudo não tinha nada a ver com ele.
Mas agora a situação mudara. Ele conseguia vislumbrar a explosão nu‐
clear na península de Kola. Aquele cenário já estava ali, na sua imaginação.
Milhares de pessoas morreriam instantaneamente; depois, dezenas de mi‐
lhares, quando as partículas radioativas fatais se espalhassem pela Europa.
A Inglaterra seria um dos países que sofreriam. Alex precisava impedir
aquilo. Não tinha opção.
Dessa vez, seria muito mais difícil. Sarov podia tê-lo desculpado pela
tentativa fracassada de fuga no carro, mas Alex sabia que agora não teria
mais a confiança dele. E não podia se permitir cometer outro erro. Se fosse
pego tentando fugir mais uma vez, não haveria nenhum adiamento, nenhu‐
ma possibilidade de perdão. No fundo, Alex realmente duvidava de que fos‐
se capaz de conseguir passar por cima do general russo e do seu companhei‐
ro torto. Sarov estava totalmente alerta, como se tivesse ficado ali sentado
apenas dez minutos, e não dez horas. Conrad ainda o observava também.
Como um gato à espreita do rato, estava sentado do outro lado do avião,
com aquele olho vermelho piscando à meia-luz.
Ainda assim...
Alex estava com os dois dispositivos que Smithers lhe dera. E iam ater‐
rissar na Grã-Bretanha! A simples ideia de estar no seu próprio país pareceu
renovar as forças do garoto. O seu plano ia funcionar. Tinha que funcionar.
Devia estar dormindo durante a parada para reabastecimento em Gander
e durante várias horas de voo, porque a primeira coisa que percebeu foi a
claridade lá fora e os dois guardas se aproximando com o café da manhã,
iogurte e frutas, que fora preparado na pequena cozinha do avião. Olhou pe‐
la janela. Só conseguia ver nuvens.
Sarov percebeu que ele acordara.
— Alex! Está com fome?
— Não, obrigado.
— Mesmo assim, você deve beber alguma coisa. É muito fácil ficar desi‐
dratado nessas viagens longas.
Sarov disse algumas palavras em russo a um dos guardas, que desapare‐
ceu e voltou com um copo de suco de toranja. Alex hesitou em levá-lo à bo‐
ca, ao lembrar-se do que acontecera com Kiriyenko. Sarov notou a hesita‐
ção do garoto e sorriu.
— Não precisa se preocupar — disse ele —, é só suco de toranja. Não
tem ingredientes adicionais.
Alex bebeu. O suco desceu gelado e refrescante após tantas horas de so‐
no.
— Vamos aterrissar em Edimburgo dentro de uns trinta minutos — disse
Sarov. — Já estamos dentro do espaço aéreo britânico. É bom sentir-se em
casa?
— Se quiser me deixar por aqui mesmo, posso pegar um trem para Lon‐
dres.
Sarov balançou a cabeça.
— Acho melhor não.
Poucos minutos depois, começaram a descida. O piloto se comunicara
por rádio com o aeroporto e confirmara que seria uma parada de rotina para
reabastecimento. Não deixaria nem pegaria passageiros e, portanto, não pre‐
cisaria de autorização operacional. Tudo havia sido acertado com as autori‐
dades do aeroporto, era tão simples quanto parar o carro em um posto de
combustível. E, apesar dos temores de Sarov, as autoridades britânicas não
convidaram os supostos passageiros VIPs para um café da manhã diplomá‐
tico em Edimburgo!
O avião atravessou a nuvem e, com o rosto encostado na janela, Alex viu
de repente a região rural, pontilhada por cavalos, carros e casas que pareci‐
am miniaturas. O sol brilhante do Caribe dera lugar à luz cinzenta e ao tem‐
po incerto de um dia de verão inglês. Teve uma sensação de alívio. Estava
de volta! Mas ao mesmo tempo sabia que Sarov jamais o deixaria sair da‐
quele avião. De certo modo, teria sido menos cruel se tivessem reabastecido
na Groenlândia ou na Noruega. Deram-lhe uma última oportunidade de ver
o seu país. Na próxima vez que o visse, estaria todo contaminado. Alex en‐
fiou a mão no bolso. Segurou o boneco do Tiger Woods. Estava chegando a
hora...
Ligaram o aviso para afivelar o cinto de segurança. Um instante depois,
Alex sentiu a pressão nos ouvidos quando o avião mergulhou. Viu uma pon‐
te, que parecia bastante delicada daquela altura, transpondo um grande vo‐
lume de água. A ponte Forth Road, só podia ser ela. E lá estava Edimburgo,
a oeste, com o seu castelo dominando a linha do horizonte. O aeroporto se
aproximou rápido. Alex viu de relance um terminal moderno e brilhoso,
com aviões aguardando parados no pátio, cercados por furgões e carrinhos
de bagagem. O avião sacolejou quando as rodas tocaram a pista, e depois
veio o estrondo dos motores em reversão. A velocidade foi diminuindo. Já
haviam aterrissado.
Orientado pela torre de controle, o Learjet foi até o final da pista e entrou
em uma área conhecida como “pátio de abastecimento”, distante do termi‐
nal principal. Alex olhou pela janela com uma sensação de amortecimento
quando viu os prédios públicos passando. Para cada segundo que andavam,
mais se distanciavam e mais ele teria que correr para dar o alarme — pres‐
supondo que ele conseguiria sair do avião.
O boneco estava agora na mão dele. O que Smithers lhe dissera? Vire a
cabeça duas vezes para um lado e uma para o outro. Espere dez segundos,
depois largue o boneco e corra. O espaço apertado da cabine do avião pare‐
cia perfeito para usá-lo. A única dúvida era: o que Alex faria para não ficar
ele próprio desacordado também?
O avião parou. Quase de imediato, um caminhão-tanque foi em sua dire‐
ção. Sarov obviamente preparara tudo com bastante antecedência. Havia um
carro seguindo o caminhão e, olhando pela janela, Alex viu que colocavam
uma escada junto à porta do Learjet. Isso era interessante. Alguém desejava
subir a bordo.
Sarov observava o garoto.
— Você não vai falar nada, Alex — disse o general. — Nem uma única
palavra. Antes que pense em abrir a boca, sugiro que dê uma olhada para
trás.
Conrad agora estava sentado na poltrona logo atrás da de Alex. Tinha um
jornal no colo. Quando Alex se virou, Conrad o levantou para mostrar uma
grande pistola preta com silenciador, apontada bem na direção dele.
— Ninguém ouvirá nada — disse Sarov. — Se Conrad só achar que você
vai tentar alguma coisa, ele apertará o gatilho. A bala vai atravessar o en‐
costo e se alojará na sua espinha. Será uma morte instantânea, mas parecerá
que você simplesmente pegou no sono.
Alex sabia que não seria assim tão fácil. Quando alguém leva um tiro nas
costas, não parece ter adormecido. Sarov estava se arriscando muito. Mas
toda aquela operação envolvia um grande risco. O risco não podia ser mais
alto. Alex não duvidava de que seria morto imediatamente caso tentasse di‐
zer a qualquer pessoa o que estava acontecendo.
A porta do avião se abriu, e um homem de cabelo avermelhado entrou
carregando uma pilha de papéis. Sarov levantou-se para cumprimentá-lo.
— O senhor fala inglês? — perguntou o homem, com sotaque escocês.
— Sim.
— Trouxe uns papéis para o senhor assinar.
Alex virou ligeiramente a cabeça. O homem o viu e o cumprimentou
com a cabeça. O garoto retribuiu o aceno. Podia quase sentir Conrad pressi‐
onar o encosto da poltrona com a arma. O garoto não disse nada.
E logo estava tudo pronto. Sarov assinara os papéis e devolvera a caneta
ao escocês.
— Aqui está o seu recibo — disse o homem, entregando uma folha de
papel a Sarov. — E o senhor poderá decolar em seguida.
— Obrigado.
— O senhor não vai descer para esticar as pernas? Está um dia lindo em
Edimburgo. Podemos lhe oferecer um chá com biscoitos, caso queira vir até
o escritório.
— Não, obrigado. Estamos todos um pouco cansados. Ficaremos aqui.
— Como quiser. Se tem certeza, vou mandar retirar a escada.
Com isso, o homem foi embora.
Iam tirar a escada — e, assim que o homem saísse, Sarov trancaria a por‐
ta! Alex tinha apenas alguns segundos para agir. Esperou o homem sair da
cabine e se levantou. Estava com as mãos à frente, com o boneco do Tiger
Woods escondido na palma da mão.
— Sente-se! — disse Conrad.
— Está tudo bem, Conrad — disse Alex. — Não vou a lugar nenhum.
Estou só esticando as pernas.
Sarov sentou-se outra vez. Examinava a papelada que o homem lhe dera.
Alex passou por ele. Estava com a boca seca e deu graças aos céus que o
sensor usado na Casa de Oro não estivesse no avião.
Se fosse ligado naquele instante, sua pulsação estaria ensurdecedora. Era
sua última chance. Calculou com cuidado cada passo. Se estivesse a cami‐
nho da forca, talvez não estivesse tão tenso.
— Aonde você vai, Alex? — perguntou Sarov.
Alex virou a cabeça de Tiger Woods duas vezes.
— Não vou a lugar nenhum.
— O que é isso que você tem na mão?
Alex hesitou. Porém, se tentasse fingir que não tinha nada na mão, Sarov
ficaria ainda mais desconfiado. Alex mostrou o boneco.
— É o meu amuleto da sorte — disse o garoto. — Tiger Woods.
Deu outro passo à frente. Ao mesmo tempo, deu o giro final na cabeça
do boneco.
Dez... nove... oito... sete...
— Sente-se, Alex — disse Sarov.
— Estou com dor de cabeça — disse o garoto. — Só quero pegar um
pouco de ar fresco.
— Você não vai sair do avião!
— Não vou a lugar nenhum, general.
Mas Alex já havia chegado até a porta e sentiu a fresca brisa escocesa no
rosto. O caminhão-reboque estava recolhendo a escada. O garoto viu au‐
mentar a distância entre a escada e a porta.
Quatro... três... dois...
— Alex! Volte para o seu lugar!
Alex deixou o boneco cair e se jogou para a frente com toda a força.
Conrad saltou como uma serpente enfurecida, com a arma na mão.
O boneco explodiu.
Alex sentiu a explosão atrás de si. Houve um clarão e um estouro incri‐
velmente alto, mas nenhuma janela se quebrou e não havia chamas nem fu‐
maça. Sentiu um zumbido nos ouvidos e, por um instante, não conseguiu
enxergar nada. Mas havia saído do avião. Já estava do lado de fora quando
a granada de efeito moral explodiu. A escada ainda se afastava, desapare‐
cendo diante dele. Não ia conseguir alcançá-la! O chão de concreto estava
quase cinco metros abaixo. Se caísse daquela altura, quebraria uma perna.
Ou poderia até morrer.
Mas conseguiu pular no momento certo. Caiu de barriga sobre o topo da
escada com as pernas pendendo no ar. Rapidamente, colocou-se de pé. O
homem de cabelo avermelhado o olhava estupefato. Alex desceu pela esca‐
da, que ainda se movia. Assim que seus pés tocaram o chão, ele sentiu uma
empolgação de triunfo. Estava em casa. E parecia que a granada de efeito
moral funcionara. Não havia nenhum movimento no avião. Ninguém atira‐
va nele.
— Que diabos você pensa que está fazendo? — perguntou o homem.
Alex o ignorou. Aquela não era a pessoa certa para falar — e ele precisa‐
va ficar o mais distante possível do avião. Smithers dissera que a granada
era capaz de neutralizar o inimigo apenas por alguns minutos. Sarov e Con‐
rad logo acordariam. E não perderiam tempo para ir atrás dele.
Alex correu. Pelo canto do olho, viu o homem tirar um rádio do bolso e
falar — mas aquilo não importava. Havia outros homens em volta do avião,
prontos para iniciar o reabastecimento. Certamente tinham ouvido a explo‐
são. Mesmo que Alex fosse capturado, o avião não receberia permissão para
decolar.
Ele não tinha nenhuma intenção de ser recapturado. Já notara uma série
de prédios da administração no perímetro do pátio de aeronaves e correu
para eles, com o ar lhe raspando a garganta.
Chegou a uma porta e a puxou. Estava trancada! Olhou pela janela. No
outro lado, havia um saguão com um telefone público, mas, por algum mo‐
tivo, o prédio estava fechado. Por um instante, sentiu-se tentado a arreben‐
tar o vidro, mas isso levaria muito tempo. Praguejando baixinho, deixou a
ideia da porta para lá e correu uns vinte metros até o prédio seguinte.
Esse estava aberto. Ele abriu a porta e se viu em um corredor com salas
de depósito e escritórios em ambos os lados. Não parecia haver ninguém
por ali. Tudo o que ele precisava agora era achar um telefone. Experimen‐
tou uma porta. Dava para uma sala cheia de prateleiras, com uma fotocopia‐
dora e suprimentos de artigos de escritório. A porta seguinte estava tranca‐
da. Alex começava a ficar cada vez mais desesperado. Tentou outra porta e
dessa vez teve sorte. Era um escritório com uma escrivaninha e, sobre ela,
um telefone. Não havia ninguém na sala. O garoto correu e agarrou o telefo‐
ne.
Foi só então que Alex se deu conta de que não fazia ideia do número pa‐
ra o qual devia ligar. O celular que Smithers lhe entregara tinha uma tecla
de emergência — ligação direta com o serviço secreto britânico. Mas nin‐
guém lhe dera um número direto. O que fazer? Ligar para a telefonista e pe‐
dir para falar com o MI6? Achariam que era louco.
Ele não tinha tempo a perder. Sarov já devia estar recuperado. Naquele
momento, estaria vindo atrás dele. O escritório tinha uma janela que dava
para os fundos. Não havia sinal do avião ou da pista. Alex decidiu ligar para
o 999, número para o qual se liga em caso emergências no Reino Unido.
O telefone tocou duas vezes antes de atenderem.
Era uma voz de mulher:
— Você ligou para o serviço de emergência. Que deseja?
— Polícia — disse Alex.
— Já vou transferir a ligação...
Ele ouviu o som de chamada.
E depois apareceu uma mão que lhe arrancou o telefone. Alex se virou,
sem fôlego, esperando ver Sarov diante dele ou, pior ainda, Conrad e sua
arma.
Mas não era nenhum dos dois. Era um guarda da segurança do aeroporto
que entrara no escritório enquanto Alex fazia a ligação. Tinha uns 50 anos,
cabelo grisalho e um queixo que afundava no pescoço. A barriga pulava por
cima do cinto e as pernas das calças paravam uns cinco centímetros acima
dos tornozelos. Levava um rádio preso ao casaco. Seu nome — John Pres‐
cott — estava escrito no distintivo fixado sobre o bolso de cima. Ele fitava
Alex com um olhar duro e, com o coração apertado, Alex reconheceu um
verdadeiro pesadelo: um homem com a presunção arrogante de um guarda
de trânsito, de um diretor de escola... de qualquer autoridade de menor im‐
portância.
— O que está fazendo aqui, garoto? — indagou Prescott.
— Preciso dar um telefonema — disse Alex.
— Estou vendo — disse, desligando o telefone. — Mas isto aqui não é
um telefone público. Nem este escritório é um lugar público. Toda esta área
é restrita. Você não pode ficar aqui.
— Não, o senhor não entendeu. É uma emergência.
— Ah é? E que tipo de emergência? — Prescott obviamente não acredi‐
tara nele.
— Não posso explicar agora. Só me deixe telefonar.
O segurança sorriu. Estava se divertindo com aquilo. Passava cinco dias
toda semana zanzando de um escritório para o outro, verificando as portas,
apagando as luzes. Era bom bancar o chefão com alguém.
— Você não vai telefonar para lugar nenhum enquanto não me disser o
que está fazendo aqui! — disse ele. — Este escritório é particular — seus
olhos se estreitaram. — Abriu as gavetas? Pegou alguma coisa?
Alex era pura tensão, mas fazia força para ficar calmo.
— Não peguei nada, sr. Prescott — respondeu. — Acabei de sair de um
avião que pousou há poucos minutos...
— Que avião?
— Um avião particular.
— Você tem passaporte?
— Não...
— Isso é muito grave. Você não pode entrar no país sem passaporte.
— O meu passaporte está no avião!
— Então vou levá-lo até lá para pegar o passaporte.
— Não!
Alex podia sentir os segundos voarem. O que ele poderia dizer àquele
homem para que ele o deixasse telefonar? A cabeça dele girava e, de repen‐
te, pela primeira vez na vida, ele se viu, sem pensar, revelando a verdade.
— Ouça — disse Alex. — Sei que é difícil acreditar, mas trabalho para o
governo — o governo britânico. Se o senhor me deixar telefonar, eles pode‐
rão confirmar. Sou um espião.
— Espião? — Prescott abriu um sorriso, mas não era bem um sorriso
bem-humorado. — Quantos anos você tem?
— Catorze.
— Um espião de 14 anos? Acho que você andou vendo TV demais, mo‐
cinho.
— Mas é verdade!
— Acho que não.
— Escute, por favor. Um homem acabou de tentar me matar. Ele está
dentro de um avião na pista, e, a menos que o senhor me deixe telefonar,
muitas pessoas vão morrer.
— O quê?
— Pelo amor de Deus, ele tem uma bomba nuclear!
Foi um erro. Prescott se irritou.
— Peço-lhe que não use o nome do Senhor em vão, se não se importar
— já tomara uma decisão. — Não quero saber como chegou aqui nem do
que está brincando, mas você vai comigo até a Central de Segurança e Con‐
trole de Passaporte, no terminal principal.
Ele estendeu o braço para Alex.
— Venha agora! Já estou cansado das suas bobagens.
— Não é bobagem. Há um homem chamado Sarov. Ele está transportan‐
do uma bomba nuclear. Pretende detoná-la em Murmansk. Sou a única pes‐
soa que pode detê-lo. Por favor, sr. Prescott. Só me deixe ligar para a polí‐
cia. Só vai levar alguns segundos, e o senhor pode ficar aí e me vigiar. Dei‐
xe que eu fale com a polícia e, depois disso, o senhor pode me levar para
onde quiser.
Mas o guarda não ia voltar atrás.
— Você não vai fazer ligação nenhuma e vai comigo agora — disse ele.
Alex tomou sua decisão. Tentou implorar e dizer a verdade. Nada funcio‐
nara, então ele ia precisar tirar o guarda do seu caminho.
Prescott deu a volta na mesa, aproximando-se dele. O garoto se retesou,
equilibrando-se na ponta dos pés, com os punhos prontos. Sabia que o ho‐
mem estava apenas fazendo o trabalho dele e não queria machucá-lo, mas
não havia outro jeito.
Então, a porta se abriu.
— Aí está você, Alex! Estava preocupado com você.
Era Sarov.
Conrad estava com ele. Ambos pareciam doentes, com a pele pálida e os
olhos ainda sem muito foco. Não havia nenhuma expressão no rosto dos
dois.
— Quem é o senhor? — indagou Prescott.
— Sou o pai do Alex — respondeu Sarov. — Não é mesmo, Alex?
Alex hesitou. Percebeu que ainda estava em posição de combate, prestes
a atacar. Bem devagar, abaixou os braços. Sabia que era o fim e sentiu o
gosto amargo da derrota. Não podia fazer mais nada. Se discutisse diante de
Prescott, Sarov simplesmente mataria os dois. Se tentasse lutar, o resultado
seria exatamente o mesmo. Alex ainda tinha uma esperança. Se saísse dali
com Sarov e Conrad, e o guarda continuasse vivo, haveria a chance de Pres‐
cott contar a história a alguém, que a transmitiria ao MI6. Sem dúvida, seria
tarde demais para salvá-lo. Mas o mundo ainda poderia ser salvo.
— Não é mesmo, Alex? — Sarov esperava uma resposta.
— Sim — disse Alex. — Olá, papai.
— Então que história era aquela de bombas e espiões? — perguntou
Prescott.
Alex lamentou-se em silêncio. “Por que esse sujeito não ficou de boca
fechada?”
— Foi isso o que Alex andou lhe dizendo? — perguntou Sarov.
— É, isso e um monte de outras coisas.
— Ele ligou para algum lugar?
— Não — Prescott endireitou o corpo. — Esse espertinho estava telefo‐
nando quando cheguei. Mas desliguei em seguida.
Sarov balançou a cabeça devagar. Estava satisfeito.
— Bem, ele tem mesmo uma imaginação muito fértil — explicou. —
Alex não tem passado muito bem. Ele tem problemas mentais. Às vezes,
tem dificuldade de distinguir o que é fantasia e o que é realidade.
— Como ele chegou aqui? — indagou Prescott.
— Deve ter saído escondido do avião quando não havia ninguém olhan‐
do. Ele, naturalmente, não tem permissão para estar em solo britânico.
— Ele é britânico?
— Não — Sarov agarrou o braço do Alex. — E agora precisamos voltar
para o avião. Ainda temos uma viagem muito longa pela frente.
— Espere um pouco! — o guarda não os deixaria ir embora assim tão fá‐
cil. — Desculpe, senhor. Mas o seu filho estava em uma área proibida.
Aliás, o senhor também. Vocês não podem ficar vagando pelo aeroporto de
Edimburgo dessa maneira! Terei que informar as autoridades.
— Entendo perfeitamente — Sarov não parecia nem um pouco perturba‐
do. — Preciso levar o garoto de volta para o avião. Mas deixarei meu assis‐
tente com o senhor, ele lhe dará os detalhes que precisar. Se necessário, ele
o acompanhará até o escritório do seu chefe. E devo agradecê-lo por ter im‐
pedido que meu filho telefonasse, sr. Prescott. Teria sido muito mais cons‐
trangedor para todos nós.
Sem esperar a resposta, Sarov virou-se e, ainda segurando o braço de
Alex, levou-o para fora da sala.
Uma hora depois, o Learjet 45 decolou para o último trecho da viagem.
Alex estava sentado na mesma poltrona de antes — só que, agora, algema‐
do a ela. Sarov não o machucara nem parecia estar ciente da presença dele
no avião. De certo modo, esse comportamento era o que parecia mais assus‐
tador nele. O garoto esperara uma reação de raiva, violência, talvez até uma
morte súbita nas mãos de Conrad. Mas Sarov não fizera nada. Desde que
haviam voltado para o avião, o general russo nem olhara mais para ele.
Naturalmente, houve alguns problemas. A explosão dentro do avião e a
fuga de Alex levantaram uma série de questões. O piloto teve que ficar em
contato constante com a torre de controle. Explicou que a explosão fora
causada por um forno de micro-ondas que estava com defeito. E o garoto?
O general Alexei Sarov, que integrava a comitiva do presidente russo, viaja‐
va com um sobrinho. O garoto era muito desequilibrado e fez algo muito
idiota, mas já estava tudo sob controle.
Se fosse um jato particular comum, teriam chamado a polícia. Porém, o
avião estava registrado em nome de Boris Kiriyenko. Tinha imunidade di‐
plomática. Afinal de contas, concluíram as autoridades, era mais fácil fe‐
char os olhos para aquele incidente e deixar que partissem.
O corpo de John Prescott foi descoberto quatro horas depois. Estava sen‐
tado e curvado dentro de um armário de artigos de escritório. Seu rosto ti‐
nha uma expressão de surpresa e apenas um buraco redondo feito à bala en‐
tre os olhos.
A essa altura, o Learjet já estava em espaço aéreo russo. No momento
em que foi dado o alarme e finalmente chamaram a polícia, as luzes da ca‐
bine diminuíam e o avião fazia uma curva sobre a península de Kola, prepa‐
rando-se para a sua descida final.
16
O FIM DO MUNDO
MYPMAHCK
Alex não conhecia o alfabeto russo, mas pôde imaginar o que estava es‐
crito: Murmansk. Era uma cidade com milhares de habitantes. Ele se per‐
guntou quantas delas continuariam vivas dentro de doze horas.
Ainda algemado a um dos dois guardas que viajavam com eles desde a
Ilha do Esqueleto, Alex foi levado pela pista vazia, tremendo com o vento
que cortava como vidro. Ele realmente parecia ter aterrissado em outro
mundo! Chovera fazia pouco. O asfalto estava molhado e oleoso, com po‐
ças de água suja por todo lado. Não havia outros aviões à vista. Na verdade,
o aeroporto nem parecia estar de fato funcionando. Umas poucas luzes bri‐
lhavam, num tom amarelo pálido, por trás do vidro. Mas não havia nin‐
guém. A única porta de desembarque estava trancada e acorrentada, como
se o aeroporto tivesse perdido as esperanças de que alguém um dia fosse
chegar.
Eles eram esperados. Três caminhões do Exército e um sedã todo sujo de
lama os aguardavam. Uma fileira de homens, com uniforme cáqui, cinto e
botas pretas de cano alto, se perfilou. Cada um deles portava uma metralha‐
dora atravessada no peito, presa a uma correia. O comandante, que usava o
mesmo uniforme que Sarov, deu um passo à frente e bateu continência. Ele
e Sarov trocaram um aperto de mão e depois se abraçaram. Conversaram
por alguns minutos. Então o comandante gritou uma ordem. Dois dos solda‐
dos correram para o avião e começaram a remoção do baú prateado que
continha a bomba nuclear. Alex viu o baú ser retirado da traseira do avião e
colocado em um dos caminhões. Os soldados eram muito disciplinados. Ha‐
via ali potência suficiente para destruir um continente, mas nenhum deles
virou a cabeça quando a bomba passou.
Uma vez a bomba colocada no lugar, os soldados deram meia-volta e,
marchando no mesmo passo, dirigiram-se aos outros dois caminhões e subi‐
ram. Alex estava com as mãos algemadas, preso ao banco da frente, ao lado
do motorista. Ninguém olhava para ele. Ninguém parecia curioso em saber
quem ele era. Sarov devia ter avisado pelo rádio sobre a sua chegada. O ga‐
roto examinou o homem que dirigia o caminhão. Era fortão, bem barbeado,
e tinha olhos azul-claros. Seu rosto não tinha nenhuma expressão. Era um
soldado profissional.
Alex virou-se e olhou pela janela a tempo de ver Sarov e Conrad entra‐
rem no carro.
Partiram. Não havia praticamente nada fora do aeroporto, apenas uma
paisagem plana e descampada, onde até as árvores pareciam atrofiadas e
embotadas. Alex tremeu de frio e tentou cruzar os braços para se aquecer.
As algemas fizeram barulho, e o motorista olhou para ele com uma cara fu‐
riosa.
Andaram uns quarenta minutos por uma estrada toda esburacada. Surgi‐
ram alguns prédios, modernos e sem estilo. E, de repente, já estavam em
Murmansk propriamente dita. Era noite ou dia? O céu ainda era claro, mas
as luzes dos postes estavam acesas. Embora houvesse pessoas nas calçadas,
elas não pareciam ir a lugar nenhum, apenas vagavam como sonâmbulas.
Ninguém olhou para eles quando seguiram por uma avenida de quatro pis‐
tas. Era uma avenida larga, bem no centro da cidade, absolutamente reta e
que parecia não dar em lugar nenhum, com prédios inexpressivos e padroni‐
zados de ambos os lados. Murmansk parecia ser constituída de filas e filas
de blocos de apartamentos idênticos, como se fossem muitas caixas de fós‐
foros. Aparentemente, não havia cinemas, restaurantes, lojas — nada que fi‐
zesse a vida valer a pena.
Não havia subúrbios. A cidade simplesmente terminava e, de repente, já
estavam atravessando a tundra deserta, em direção a um horizonte que nada
tinha a oferecer. Estavam a pouco mais de mil quilômetros do polo Norte, e
ali não havia nada. Uma população sem vida e um sol sem calor. Alex pen‐
sou na viagem que fizera. De Wimbledon até Cornwall. Depois, Londres,
Miami e a Ilha do Esqueleto. E, por fim, aquele lugar. Seria ali o fim? Que
lugar horrível para a vida dele terminar! Ele chegara literalmente ao fim do
mundo.
Não havia nenhum outro carro na estrada, nem placas de trânsito. Alex
até parou de tentar observar para onde iam. Após mais trinta minutos, redu‐
ziram a velocidade, depois saíram da estrada. Ouviu-se um som de algo
sendo triturado por baixo das rodas quando saíram da superfície de asfalto e
seguiram sobre o cascalho.
Era ali que os russos guardavam os submarinos deles? Tudo o que conse‐
guia ver era uma tela de arame e uma cabana de madeira toda despedaçada
que tentava se passar por uma guarita militar. Pararam diante de uma cance‐
la vermelha e branca. Apareceu um homem de azul-marinho, com um so‐
bretudo largo e esvoaçante, e, por baixo, via-se uma túnica e uma camiseta
listrada. Era um marinheiro russo. Não podia ter mais que 20 anos e parecia
confuso. Correu até o carro e falou alguma coisa em russo.
Conrad atirou nele. Alex viu a mão sair da janela e o clarão produzido
pela arma, mas tudo aconteceu tão rápido que ele mal conseguiu acreditar
que aquilo de fato acontecera. O jovem russo foi lançado para trás. Conrad
atirou mais uma vez. O garoto nem observara, mas havia outro marinheiro
na guarita, que gritou e caiu de costas. Ninguém disse nenhuma palavra.
Dois soldados desceram do caminhão da frente e foram até a cancela que
bloqueava a entrada. Seria mesmo aquela a entrada para uma base de sub‐
marinos? Alex já vira uma segurança bem mais sofisticada em um mero es‐
tacionamento de shopping.
Os soldados simplesmente levantaram a cancela. O comboio passou.
Seguiram por uma estrada sinuosa e acidentada, descendo um morro, e lá
estava, enfim, o mar. A primeira coisa que Alex viu foi uma frota de navios
quebra-gelo atracada a uns 800 metros de distância, imensos blocos de me‐
tal — silenciosos e inacreditáveis — parados na água do mar. Parecia ser
contra as leis da natureza que aquelas coisas monstruosas pudessem flutuar.
Não havia luzes a bordo nem nenhum movimento. No outro lado da água,
erguia-se mais um trecho sinistro da costa litorânea, listrado de branco, em‐
bora Alex não soubesse dizer se aquilo era sal ou algum tipo de neve per‐
manente.
Os caminhões sacolejaram estrada abaixo e, num instante, chegaram a
um porto cercado de guindastes, guindastes sobre trilhos, armazéns e gal‐
pões. Parecia um parque de diversões dos infernos, feito de aço retorcido e
concreto, ganchos e correntes, roldanas e cabos, tonéis, paletes de madeira e
imensos contêineres de aço. Havia navios enferrujados parados na água, ou
em terra, suspensos sobre uma rede de estacas de madeira. Carros, guindas‐
tes e tratores, alguns obviamente abandonados, encontravam-se ociosos na
beira da água. De um lado, havia uma fileira de longas cabanas de madeira,
cada qual numerada com tinta amarela e cinza. Aquilo fez com que Alex se
lembrasse dos prédios que vira nos filmes sobre a Segunda Guerra Mundial,
em campos de prisioneiros de guerra. Será que era ali que os outros mari‐
nheiros dormiam? Se fosse, ainda deviam estar dormindo. O porto encon‐
trava-se deserto. Nada se movia.
O caminhão parou, depois sacolejou quando os soldados desembarcaram
da traseira. Um momento depois, ele os viu, com as metralhadoras erguidas,
e se perguntou se deveria fazer o mesmo, mas o motorista balançou a cabe‐
ça, indicando que ficasse onde estava. O garoto observou os homens se es‐
palharem rapidamente pela área das cabanas. Não havia sinal de Sarov. Ele
ainda devia estar no carro.
Uma longa pausa. Nisso, alguém deu um sinal. Ouviu-se um ruído de
madeira se quebrando, de uma porta sendo arrombada e depois o barulho e
a vibração de uma rajada de metralhadora. Alguém gritou. Uma campainha
começou a tocar, mas o som era baixo demais e inútil. Três homens seminus
apareceram pela lateral das cabanas e correram, tentando encontrar abrigo
entre os contêineres. Mais tiros. Alex viu dois deles caindo, e depois o ter‐
ceiro, com as mãos se debatendo no ar quando foi atingido nas costas.
Um único tiro foi disparado de uma janela. Alguém estava tentando re‐
sistir. Uma granada descreveu um arco no ar e bateu no telhado de um dos
prédios. Houve uma explosão e metade da parede se despedaçou, transfor‐
mando-se em lenha para fogueira. Quando Alex olhou de novo, a janela e
provavelmente o homem que estava por trás dela tinham sido destruídos.
O ataque acontecera sem nenhum aviso. Os homens de Sarov estavam
bem armados e bem preparados. Havia apenas alguns marinheiros no porto,
e todos dormiam. Tudo terminou muito rápido. A campainha parou de tocar.
Saíam rolos de fumaça do prédio destruído. Um corpo passou boiando, com
o rosto voltado para a água. O porto estava tomado. Sarov assumira o co‐
mando total.
O motorista desceu do caminhão, deu a volta depressa pela frente e abriu
a porta para Alex. O garoto desceu desajeitado, com as mãos ainda algema‐
das. Os homens de Sarov já executavam a segunda etapa da operação. Alex
viu os corpos serem levados. O outro caminhão deu a ré e se aproximou da
beirada da água. O oficial que estava no aeroporto gritou uma ordem, e os
soldados se espalharam, assumindo as posições que deviam ter sido planeja‐
das meses antes. Era pouco provável que alguém pudesse ter dado o alerta
sobre o ataque, mas quem quer que se aproximasse vindo de Murmansk já
encontraria o porto bem defendido.
Sarov estava em pé em um dos lados, com Conrad logo atrás dele. Olha‐
va para alguma coisa. Alex seguiu o olhar dele.
Os submarinos!
Alex suspirou. Ali estava o verdadeiro motivo de tudo aquilo! Havia ape‐
nas quatro imensos monstros de aço submersos até a metade no mar, amar‐
rados com cordas tão grossas quanto a cintura de uma pessoa. Cada um era
do tamanho de um prédio comercial virado na horizontal. Os submarinos
não tinham identificação nem bandeiras. Pareciam estar cobertos por um
óleo escuro ou alcatrão. Suas torres, situadas bem na popa, eram fechadas e
compactas. Alex estremeceu. Nunca imaginara que uma máquina pudesse
realmente emanar maldade, mas essas conseguiam. Eram tão escuras e frias
como a água que os cercava. Pareciam de fato as bombas em que se haviam
transformado.
Três dos submarinos estavam enfileirados, atracados ao lado do cais. O
quarto ficava em um vão próprio, um pouco mais adiante. Alex notou um
guindaste no final de um cais, bem junto à água. Anos antes, devia ter sido
amarelo, mas a maior parte da tinta descascara. A cabine de controle ficava
apenas a uns dez metros do chão, e havia uma escada para chegar até ela. O
braço do guindaste virava para cima, depois se dobrava para baixo, imitan‐
do o pescoço e a cabeça de um pássaro. Era um guindaste sem gancho. Em
vez disso, havia um disco de metal que parecia um imenso tampão de ralo
de banheiro pendurado sob o braço do guindaste, e que ficava suspenso por
uma corrente e por vários cabos elétricos.
Conrad gritou alguma coisa e o motorista levou Alex até um parapeito
maciço, na beira do cais. Preso com segurança no chão, o parapeito fora ob‐
viamente colocado ali para que ninguém caísse na água. O guarda soltou
uma das mãos do garoto e o puxou pela corrente, levando-o como se fosse
um cachorro. Deixou-o junto ao parapeito e o algemou a ele. Alex ficou ali
em pé, sozinho, no meio de tudo aquilo. Forçou a corrente, mas era inútil.
Ele não podia ir a lugar nenhum.
Alex teve que ficar ali e observar enquanto os dois soldados levantavam
a bomba com todo o cuidado para tirá-la do caminhão. Viu o esforço no ros‐
to deles quando a colocaram no chão, bem na beirada do cais, a poucos me‐
tros do guindaste. Sarov se aproximou com Conrad mancando ao seu lado.
Conrad olhou para Alex, e um canto da sua boca se retorceu em um sorriso.
O general pôs a mão no bolso do casaco e tirou o cartão plástico que
mostrara a Alex no avião. Segurou-o um pouco e então o enfiou na fenda
lateral da bomba nuclear. No mesmo instante, o baú prateado ganhou vida.
Uma série de luzes vermelhas começou a piscar em um painel. Alex viu
uma linha de oito dígitos em um mostrador de cristal líquido: horas, minu‐
tos e segundos. Já começara a contagem regressiva. A faixa magnética do
cartão ativara a bomba. Em algum lugar dentro do baú, o circuito eletrônico
girava. A sequência de detonação estava iniciada.
Nesse momento, Sarov se dirigiu até onde o garoto estava. Ficou diante
dele, examinando-o como se fosse a primeira e a última vez. Como sempre,
seu rosto não revelava nada, mas Alex notou algo no olhar do homem. Algo
que Sarov teria negado e ficaria irado caso alguém o sugerisse. Mas a triste‐
za estava ali. Era impossível ignorá-la.
— E então chegamos ao fim — disse. — Você está no Estaleiro de Ma‐
nutenção de Submarinos Nucleares de Murmansk. Talvez esteja interessado
em saber que todos os soldados que encontramos no aeroporto serviram co‐
migo no passado e ainda hoje são leais a mim. Agora todo o complexo está
sob o meu comando e, como você viu, a bomba foi ativada. Infelizmente
não posso ficar aqui com você. Tenho que voltar ao aeroporto e garantir que
tudo esteja pronto para o nosso voo para Moscou. Conrad ficará para colo‐
car a bomba em posição no submarino, bem em cima do reator nuclear que
continua lá dentro. É possível que o detonador da bomba também detone o
reator, duplicando ou triplicando a força da explosão. Isso não fará muita
diferença para você, que se tornará vapor instantaneamente: antes mesmo
que o seu cérebro consiga entender o que aconteceu. Conrad está muito de‐
sapontado. Esperava que eu o deixasse matá-lo.
Alex não disse nada.
— Sinto muito, Alex, que no final você é muito mais idiota do que eu
pensei, embora, talvez, eu devesse ter imaginado isso. Um garoto do Oci‐
dente, criado e educado na Inglaterra... um país que é ele próprio apenas
uma sombra do que já foi. Por que não conseguiu compreender o que eu lhe
ofereci? Por que não conseguiu aceitar o seu lugar neste mundo novo? Você
poderia ter sido meu filho. Mesmo assim, optou por ser meu inimigo. E foi
isso que o trouxe até aqui.
Houve outro longo silêncio. Sarov estendeu a mão e acariciou suavemen‐
te a bochecha de Alex. Olhou o garoto nos olhos pela última vez. Depois,
girou o corpo e saiu andando.
Alex o viu entrar no carro e ir embora.
Os outros soldados estavam um pouco distantes, ainda nos seus postos,
cercando a área. Mas ali, bem no centro, com o guindaste, os submarinos e
a bomba nuclear, só estavam Alex e Conrad. Era como se o porto todo fosse
só deles.
Conrad deu uns passos à frente e parou bem perto de Alex.
— Tenho um serviço a fazer — grunhiu. — Mas depois vamos passar
um tempinho juntos. Embora possa ser estranho, Sarov ainda se importa
com você. Ele me disse para deixá-lo em paz. Mas acho que, desta vez, vou
desobedecer ao general. Você é meu. E pretendo fazê-lo sofrer.
— Só de olhar para você, já sofro — disse Alex.
Conrad o ignorou. Foi caminhando todo torto até o guindaste e subiu a
curta escada até a cabine. Alex o viu ligar os controles. Pouco depois, o dis‐
co de metal girou de modo a ficar bem acima da bomba e em seguida come‐
çou a descer. Conrad manejava o guindaste com habilidade. O disco desceu
rápido, parou, depois foi tocando suavemente a superfície do baú prateado.
O garoto ouviu um clique alto e, um pouco depois, de repente, o baú balan‐
çou e se ergueu do chão. Agora ele entendera. O disco de metal era um ele‐
troímã potente. Conrad estava operando um guincho magnético para levar a
bomba por sobre a água e colocá-la no submarino. A operação toda levaria
cerca de três minutos. Depois, cuidaria do garoto.
Alex não tinha mais tempo. Precisava agir agora.
O chiclete que Smithers lhe dera estava no bolso direito. Alex tinha ape‐
nas a mão esquerda livre e demorou preciosos segundos para pegá-lo, tirar
da caixa e colocá-lo na boca. Imaginou o que Conrad pensaria se o visse.
Certamente, Sarov não acharia nada divertido. Um garoto do Ocidente que
estava prestes a morrer e só conseguia pensar em chiclete!
Começou a mascar. Smithers conseguira acertar pelo menos em parte na
fórmula. O chiclete realmente tinha gosto de morango. Alex se perguntou
quanto tempo devia deixá-lo na boca. A ideia era que a saliva dele o ativas‐
se, mas não parecia ter acontecido nada. Mascou até que o chiclete ficasse
macio e maleável e o gosto de morango desaparecesse. Depois, cuspiu-o na
mão e pressionou-o depressa na algema, forçando para que entrasse na fe‐
chadura.
O baú prateado passara sobre a água. Alex o viu balançar levemente aci‐
ma do submarino. Na cabine de controle, Conrad inclinou-se para a frente.
Devagar, baixou o baú até que pousasse na superfície metálica. Os cabos e
as correntes ligados ao guindaste ficaram soltos e depois voltaram a se es‐
tender. A lança do guindaste já deixara a bomba no submarino e começou a
voltar para o cais.
Havia alguma coisa de fato acontecendo dentro da algema. Alex ouviu
um assobio fraco. O chiclete cor-de-rosa se expandia. Estava vazando para
fora da fechadura, e havia muito mais chiclete do que ele colocara. Houve
um ruído súbito. O metal se partira. Alex sentiu uma picada dolorida quan‐
do um estilhaço de metal entrou no seu pulso. Mas a algema se abriu. Ele
estava livre!
Conrad viu o que acontecera. Já descia do guindaste, gritando alguma
coisa que Alex não conseguiu entender. Não desligara os controles do guin‐
daste, e o ímã continuava a se mover sozinho, a poucos metros da água. A
bomba estava do outro lado, fora de alcance.
Alex olhou em volta em busca de alguma coisa que pudesse usar como
arma. Havia uma pilha de escombros, algumas hastes metálicas... mas esta‐
vam longe demais. Conrad chegou ao pé da escada e se moveu pesadamente
na direção dele. De repente, estavam cara a cara.
Conrad sorriu. O sorriso ficou repuxado no lado do rosto que se mexia.
O outro lado, o da careca, continuou imóvel. Alex logo notou que, apesar
das deficiências terríveis, Conrad estava absolutamente confiante. Um ins‐
tante depois, soube por quê.
Conrad se movia com uma velocidade fantástica. Em um momento, esta‐
va em posição de combate. No outro, era um borrão. Alex sentiu um chute
no peito. O mundo girou, e ele foi jogado no chão, sufocado e machucado.
Enquanto isso, Conrad pousara com leveza sobre os pés. A respiração dele
nem se alterara.
Dolorido, Alex conseguiu se levantar. Conrad foi na direção dele e chu‐
tou mais uma vez. O pé errou por muito pouco, pois o garoto mergulhou no
chão e rolou várias vezes até a beira da água. Uma mão o alcançou e agar‐
rou sua camisa. Viu as cicatrizes horríveis no lugar que a parte de cima da
mão havia sido costurada de volta ao pulso. Foi arrastado até ficar em pé.
Conrad deu-lhe um tapa usando uma força tremenda. Alex sentiu gosto de
sangue. A mão o soltou. Ele ficou em pé, cambaleando, tentando encontrar
algum jeito de se defender.
Mas não havia como. Apesar de toda a força e habilidade de Alex, Con‐
rad conseguira vencê-lo. E agora ia matá-lo. Alex viu isso no rosto dele.
E então, do nada, ouviu-se um som estridente. A campainha do alarme
disparara outra vez. Ouviram-se tiros e uma explosão. Alguém jogara outra
granada. Conrad ficou imóvel onde estava, olhando em volta. Mais tiros.
Embora parecesse impossível, o porto parecia estar sendo atacado.
Com as forças revigoradas, Alex correu para a frente. Tinha visto uma
das hastes de metal no chão, em meio aos escombros. Sentiu o peso da has‐
te nas mãos, contente por ter achado algo que lhe serviria como arma. Con‐
rad virou-se para encará-lo. O tiroteio se intensificava. Agora, parecia vir de
dois lados, pois os homens de Sarov se defendiam de um inimigo que apa‐
recera do nada. Ouviu-se uma derrapagem de pneus, e Alex avistou ao lon‐
ge um jipe atravessando uma das cercas de arame. O veículo parou de re‐
pente. Três homens saltaram e buscaram abrigo. Todos usavam uniformes
azuis. O que estava acontecendo? A Marinha russa contra o Exército russo?
E, afinal, quem dera o alerta?
Mas ainda que os planos de Sarov tivessem sido descobertos e que, de al‐
guma forma, estivesse ocorrendo uma operação de resgate, Alex ainda cor‐
ria grave perigo. Conrad se colocara na ponta dos pés, procurando uma ma‐
neira de se desviar da haste de metal. E a bomba nuclear? Alex não sabia se
Sarov a deixara pronta para explodir em cinco horas ou em cinco minutos.
Sabendo quanto ele era maluco, tanto podia ser uma coisa como outra.
Conrad deu um salto para a frente. Alex arremeteu com a barra de metal
e sentiu que ela bateu no ombro do homem. Mas o seu sorriso de satisfação
se desfez quando Conrad agarrou a haste com as duas mãos. Ele simples‐
mente permitira que Alex o atacasse para conseguir assim alcançar a barra.
O garoto puxou-a de volta, mas Conrad era forte demais para ele. A haste
foi arrancada das mãos dele e lhe cortou as palmas. Ele largou a barra e gri‐
tou quando Conrad a girou com violência, como se fosse uma foice. O me‐
tal bateu ao lado do tornozelo de Alex, que caiu outra vez, de costas, inca‐
paz de se mover.
Mais tiros. Embora com o campo de visão reduzido, Alex viu mais duas
granadas cruzarem o ar. Caíram perto de um dos navios e explodiram for‐
mando uma imensa bola de fogo. Dois dos homens de Sarov foram lança‐
dos pelos ares. Ao mesmo tempo, duas ou três metralhadoras dispararam si‐
multaneamente. Ouviram-se gritos. Mais chamas.
Conrad aproximou-se de Alex.
Parecia ter esquecido o que estava acontecendo no estaleiro. Ou talvez
não se importasse. Jogou a haste de metal para o lado, depois arregaçou as
mangas bem devagar. Por fim, agachou-se até ficar sentado sobre o peito do
garoto, com um joelho de cada lado. Fechou as mãos em volta do pescoço
dele.
Bem devagar, apreciando o que fazia, começou a apertar.
Alex sentiu os dedos do homem se fecharem como um grampo de aço
em sua garganta. Não conseguia respirar. Já enxergava pontos negros diante
dos olhos. Por trás de Conrad, viu algo que se movia na direção dele. Era o
disco magnético. Na pressa de pegar Alex, o homem deixara os controles da
cabine ligados, e o braço do guindaste ainda girava. De repente, houve um
barulho estridente. A haste de metal rolara pelo chão e batera no guindaste.
Conrad não percebera. Estava concentrado demais no que fazia. Mas Alex
viu tudo e de repente voltou a ter esperança.
O garoto se lembrou do que Sarov lhe dissera sobre o seu assistente.
Conrad tinha pinos de metal por todo o corpo, fios metálicos no queixo e
uma placa de metal na cabeça. Seria possível que...?
Alex se esticou e agarrou os pulsos de Conrad, tentando soltá-los. O
mundo todo girava. Podia sentir o próprio peito explodindo. Sabia que só
lhe restavam poucos segundos. Mas lá estava ele! O disco magnético se
aproximava cada vez mais.
Usando as poucas forças que ainda lhe restavam, Alex de repente socou
o homem com os dois punhos e, ao mesmo tempo, ergueu o corpo. Pego de
surpresa, Conrad foi lançado para trás, e suas mãos se afrouxaram. O disco
estava bem acima dele. Alex viu o assombro no rosto dele quando todas as
placas, pinos e fios do seu corpo entraram no campo magnético.
Conrad deu um berro. E depois desapareceu, içado para cima, agarrado
por mãos invisíveis. Suas costas se chocaram contra o disco fazendo um
ruído brusco. No mesmo instante, ele ficou imóvel, preso ao disco pelos
ombros, com os braços e as pernas suspensos. O guindaste continuou o mo‐
vimento, levando o corpo inerte e fazendo uma curva suave por cima do
cais.
Alex ainda tentava recuperar o fôlego. O mundo voltava a entrar em fo‐
co.
— Que homem atraente — murmurou.
Devagar, ficou em pé, depois andou aos trancos até o corrimão do para‐
peito ao qual fora algemado. Escorou-se nele, incapaz de ficar mais tempo
em pé sem apoio. Ouviu mais um tiroteio, mais demorado e mais intenso do
que os anteriores. Aparecera um helicóptero voando baixo sobre o mar. Viu
um tripulante sentado na abertura da porta, com as pernas suspensas e uma
arma imensa encaixada cuidadosamente no colo. Um dos caminhões de Sa‐
rov foi arrancado das rodas, girou duas vezes e depois explodiu em chamas.
A bomba...
Mais tarde, Alex tentaria entender o que havia acontecido ali. Ninguém
estaria seguro até que a bomba fosse desativada. A garganta dele ainda
queimava. Ele precisou usar toda a força que tinha para conseguir respirar.
E então correu e subiu no guindaste. Já operara um guindaste antes. Sabia
que não podia ser tão difícil. Esticou o corpo e assumiu os controles. No
mesmo instante, um dos homens de Sarov atirou nele. A bala atingiu a car‐
caça de metal da cabine. Alex se esquivou instintivamente e empurrou uma
alavanca.
O disco magnético parou e balançou no ar com Conrad ainda preso a ele
como um boneco quebrado. Alex empurrou a alavanca para frente e o disco
começou a descer para o mar. Não! Não era isso que ele queria. Puxou a
alavanca e o disco parou bruscamente. O que tinha que fazer para desligar o
ímã? Alex olhou em volta e viu um interruptor. Apertou-o. Uma luz se
acendeu acima de sua cabeça. Não era aquele interruptor! Havia um botão
embutido na alavanca de controle que ele estava segurando, e ele o pressio‐
nou. Na mesma hora, Conrad foi largado. Bateu na água cinzenta e gelada e
afundou imediatamente. Com todo o metal que o homem tinha no corpo,
não era de surpreender, pensou Alex.
Puxou a alavanca, e o disco magnético subiu outra vez. Um soldado cor‐
reu pelo cais na direção dele. Veio uma rajada de tiros do helicóptero e o
homem caiu imobilizado. Agora... concentração! Alex tentou outra alavan‐
ca, e dessa vez o disco magnético começou a voltar até o submarino. Pare‐
ceu levar uma eternidade. Estava apenas em parte ciente da batalha que ain‐
da era travada ao seu redor. As autoridades russas haviam chegado com for‐
ça total. Os homens de Sarov eram agora muito menos numerosos, mas ain‐
da tinham poder de reação. Sabiam que não tinham nada a perder.
O ímã chegou ao submarino. Alex o abaixou em direção ao baú prateado,
lembrando-se da delicadeza com que o homem de Sarov fizera essa opera‐
ção. O garoto tinha menos habilidade — e se encolheu todo quando o disco
pesado bateu na tampa da caixa. Minha nossa! Se não tomasse cuidado, ele
mesmo detonaria aquela coisa. Apertou outra vez o botão no manche, e de
fato sentiu o ímã ganhar vida: havia pegado a bomba nuclear. Puxou a ala‐
vanca, elevando o braço e retirou o baú prateado do submarino.
Então, centímetro por centímetro, ele movimentou o braço do guindaste
sobre a água, levando a bomba nuclear de volta para o porto. Outra bala
atingiu o guindaste, estourando uma janela bem ao lado da cabeça do garo‐
to. Alex gritou. Choveram estilhaços de vidro sobre ele, que sentiu medo de
ficar cego. Mas, quando levantou os olhos, a bomba nuclear ainda pairava
sobre o cais, e ele viu que estava quase conseguindo.
Baixou-a. No instante exato em que ela tocou o chão, houve outra explo‐
são, mais alta e mais próxima que as anteriores. Mas não era uma explosão
nuclear. Um dos armazéns fora despedaçado. Outro estava em chamas.
Mais um helicóptero chegara e castigava a área com tiros, levantando a po‐
eira e os escombros. Era difícil dizer com certeza, mas Alex achava que os
homens de Sarov estavam perdendo terreno. Pareciam reagir bem menos
aos tiros. Bem, nos próximos poucos segundos, isso não faria diferença. Tu‐
do o que o garoto tinha que fazer era retirar o cartão plástico.
Desativou o disco magnético, desceu do guindaste e correu até o baú. Po‐
dia ver uma parte do cartão para fora da fenda em que Sarov o inserira. As
luzes ainda piscavam e os números giravam. Agora o tiroteio diminuíra em
volta dele. Olhando por cima do ombro, Alex avistou mais homens de azul
avançando devagar pelo porto, vindos de todos os lados. Esticou-se e puxou
o cartão. As luzes da bomba nuclear se apagaram. Os números desaparece‐
ram. Ele conseguira!
— Coloque-o de volta, por favor.
As palavras foram ditas com suavidade, porém cada sílaba continha uma
ameaça. Alex olhou para cima e viu Sarov. De alguma forma, o general fi‐
cara sabendo que o complexo estava sendo atacado e voltara. Quanto tempo
se passara desde a última vez que os dois tinham se visto? Trinta minutos?
Uma hora? Não importa o espaço de tempo, Sarov estava diferente. Ele pa‐
recia mais baixo, encolhera. O brilho dos seus olhos desaparecera, e a pouca
cor que havia na sua pele parecia ter desbotado. Havia um rasgo no casaco e
uma mancha de sangue que aumentava lentamente. Ele fora ferido ao tentar
retornar até o porto. A mão esquerda pendia inútil.
No entanto, a mão direita segurava uma arma.
— Acabou, general — disse Alex. — Conrad está morto. O Exército rus‐
so está aqui. Alguém deve tê-los avisado.
Sarov balançou a cabeça.
— Ainda posso detonar a bomba. Ela pode ser acionada outra vez. Você
e eu morreremos. Mas o resultado final será o mesmo.
— Um mundo melhor?
— É só o que eu sempre quis, Alex. Tudo isso! Fiz apenas aquilo em que
acreditava.
Alex foi invadido por um cansaço intenso. O cartão parecia pesar na sua
mão. Era realmente estranho. Tudo o que acontecera desde a Ilha do Esque‐
leto até ali...para no fim chegar a essa situação.
Sarov levantou a arma. O sangue se espalhava mais depressa agora. O
general cambaleou.
— Se não me der o cartão, eu o mato — falou.
Alex ergueu o cartão. Depois, deu-lhe um peteleco. O cartão girou duas
vezes no ar e desapareceu na água.
— Vá em frente, então, se é o que o senhor quer — disse ele. — Atire.
Os olhos de Sarov piscaram na direção do cartão perdido, depois se vol‐
taram para Alex.
— Por que...? — sussurrou.
— Prefiro morrer a ter um pai como você — respondeu.
Ouviram-se vozes que gritavam. Passos se aproximavam.
— Adeus, Alex — disse Sarov.
Levantou a arma e disparou um só tiro.
17
DEPOIS DE ALEX
O dia seguinte era sábado. Alex acordou tarde, tomou banho, vestiu-se e
desceu para tomar o café da manhã que a governanta, Jack Starbright, lhe
preparara. Ela fizera as coisas de que ele mais gostava. Alex, porém, ficou
em silêncio e comeu pouco. Jack estava muito preocupada com ele. No dia
anterior, tentara levá-lo a um médico e, pela primeira vez na vida, ele a tra‐
tara mal. Agora ela já não sabia o que fazer. Se as coisas não melhorassem,
ia falar com aquela mulher, a sra. Jones. Teoricamente, Jack não podia saber
o que estava acontecendo, mas podia muito bem imaginar. Ela faria com
que alguém tomasse alguma providência. As coisas não podiam continuar
como estavam.
— O que você vai fazer hoje? — perguntou.
Alex encolheu os ombros. Estava com uma atadura enrolada na mão que
fora cortada pela barra de metal, e tinha vários cortes no rosto. Mas os he‐
matomas em volta do pescoço eram muito piores. Conrad certamente deixa‐
ra sua marca.
— Quer ver um filme?
— Não. Pensei em sair para dar uma volta.
— Vou com você, se quiser.
— Não. Obrigado, Jack. Ficarei bem sozinho.
Dez minutos depois, Alex saiu de casa. De acordo com a previsão do
tempo, seria um dia lindo, mas estava cinzento e nublado. Começou a andar
em direção à famosa e movimentada Kings Road, querendo se misturar à
multidão. Não tinha a menor ideia de aonde iria. Só precisava pensar.
Sarov estava morto. Alex virara o rosto quando viu o homem colocar a
arma no próprio coração — não conseguiria ver mais nada. Minutos depois,
estava tudo acabado. O estaleiro fora protegido e a bomba retirada. O pró‐
prio Alex fora colocado em um helicóptero, primeiramente levado para um
hospital em Moscou, depois para Londres. Alguém lhe dissera que Kiriyen‐
ko queria vê-lo. Ouviu uma conversa de que lhe dariam uma medalha. Alex
recusou. Só queria voltar para casa.
E era onde estava agora. Tudo dera certo. Ele era um herói! Então, por
que se sentia assim? E o que exatamente ele sentia? Depressão? Exaustão?
Sentia as duas coisas, mas, o que era ainda pior, sentia-se vazio. Era quase
como se tivesse morrido no Estaleiro de Manutenção de Submarinos Nucle‐
ares de Murmansk e voltado para Londres como um fantasma. A vida se
passava à sua volta, mas ele não fazia parte dela. Mesmo quando estava dei‐
tado na cama, dentro de sua própria casa, ele se sentia deslocado.
Tanta coisa acontecera na vida dele, mas ele não tinha autorização para
comentar sobre nada daquilo com ninguém. Não podia nem contar para a
Jack. Ficaria horrorizada e chateada — e, de qualquer forma, ela não pode‐
ria fazer nada. Ele perdera mais duas semanas de aula e sabia que não teria
que dar conta de se atualizar apenas na matéria da escola. As amizades tam‐
bém mudam. As pessoas já o achavam estranho. Não levaria muito tempo e
ninguém mais falaria com ele.
Ele nunca teria um pai. Agora tinha certeza disso. Nunca teria uma vida
normal. De certa forma, caíra em uma armadilha. Um fantasma — era isso
o que ele se tornara.
Alex não ouviu um carro parar atrás dele. Nem ouviu a porta se abrir e se
fechar. Mas de repente ouviu passos apressados na sua direção e, antes que
pudesse se mover, sentiu uma mão abraçar-lhe o peito por trás.
— Alex!
Ele se virou.
— Sabina!
Sabina Pleasure estava na frente dele, arfando após a curta corrida, e ves‐
tia uma camiseta com a figura de Robbie Williams, calça jeans e uma bolsa
de palha colorida pendurada no ombro. Seu rosto estava iluminado de ale‐
gria.
— Nossa! Que bom que o encontrei! Estou há semanas tentando achá-lo.
Você não me deu o número do seu telefone, mas por sorte eu sabia o seu en‐
dereço. Minha mãe e meu pai me trouxeram de carro.
Ela fez um gesto apontando para os pais, sentados dentro do carro. Os
dois acenaram para Alex por trás do para-brisa.
— Eu ia dar um pulo até lá para ver se você estava em casa. E encontro
você aqui!
Ela olhou para o pescoço dele e viu os hematomas.
— Você está horrível! O que aconteceu? Foi acidente de carro?
— Não exatamente...
— Seja como for, Alex — ela interrompeu —, estou muito chateada com
você. Caso você não se lembre, salvei a sua vida em Cornwall. Embora eu
deva admitir que o beijo-respiração-boca-a-boca que lhe dei tenha sido o
ponto alto das férias. De qualquer maneira, depois disso, soube que você
simplesmente desapareceu e não recebi nem ao menos um cartão de agrade‐
cimento.
— Bem, é que eu estive um pouco... ocupado.
— Sendo o James Bond, imagino.
— Bem... — Alex não sabia o que dizer.
Sabina pegou-o pelo braço.
— Você pode me falar tudo mais tarde. Minha mãe e meu pai o convida‐
ram para almoçar e queremos conversar sobre o sul da França.
— O que tem o sul da França?
— É para lá que vamos dentro de algumas semanas, assim que terminar
o período letivo. E você vai também. Temos uns amigos que nos empresta‐
ram uma casa com piscina, e vai ser ótimo!
Ela o olhava nos olhos, bem próxima dele.
— Não me diga que você já tem outros planos?
Alex sorriu.
— Não, Sabina, não tenho.
— Então, está combinado. E então, o que você quer almoçar? Estou de
olho em um italiano, mas, como ele só me ignora, acho que vou ficar com
você mesmo.
Alex e Sabina desceram a rua juntos. Ele olhou para cima. As nuvens se
abriram e o sol apareceu.
Afinal, parecia que seria mesmo um lindo dia.