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DADOS DE ODINRIGHT

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Ficha Técnica 
Título: O Espião e o Traidor: A Maior História de Espionagem da Guerra Fria 
Título original: The Spy and the Traitor: The Greatest Espionage Story of the Cold War 
Autor: Ben Macintyre 
Tradução: Isabel Veríssimo 
Edição: Duarte Bárbara 
Revisão: Rui Augusto 
Capa: Rui Rosa, sobre design de gray318 
Fotos da capa: © Shutterstock; © Topoto; © Getty Images 
Foto do autor: © Justine Stoddart 
ISBN: 9789722067706 
  
Publicações Dom Quixote 
uma editora do grupo Leya 
Rua Cidade de Córdova, n.º 2 
2610-038 Alfragide – Portugal 
Tel. (+351) 21 427 22 00 
Fax. (+351) 21 427 22 01 
  
© 2018, Ben Macintyre 
© 2019, Publicações Dom Quixote 
Todos os direitos reservados de acordo com a legislação em vigor 
www.dquixote.leya.com
www.leya.pt 
 
 
 
 
 
 
Este livro segue o acordo ortográfico de 1990.
Ben Macintyre 

O Espião e o Traidor 
A Maior História de Espionagem da
Guerra Fria 

Tradução:
Isabel Veríssimo 
Em memória de Joanna Macintyre (1934-2015) 
«Ele tinha duas vidas: uma pública, conhecida e vista por
todos
os que estivessem interessados… e a outra vivia-a em
segredo.» 
Anton Chekhov, «A Dama do Cachorrinho» 
Nomes de código e pseudónimos 

 
ABLE ARCHER
Manobras militares da NATO
83
BOOTCO Michael Foot (KGB)
COE Caso Bettaney (MI5)
DANICEK Stanislaw Kaplan (MI6)
DARIO Ilegal não identificado do KGB (KGB)
DISARRANGE Exfiltração de agente dos serviços secretos checos (MI6)
DRIM Jack Jones (KGB)
ELLI Leo Long (KGB)
Operação conjunta MI5-MI6 de contraespionagem de Bettaney
ELMEN
(MI5/MI6)
Expulsão de funcionários do KGB/GRU após a detenção de
EMBASE
Gordievsky (RU)
Vladimir Vetrov (Direction Générale de la Surveillance du
FAREWELL
Territoire)
FAUST Yevgeni Ushakov (KGB)
FOOT Expulsão de funcionários do KGB/GRU (MI5/MI6)
FREED Agente dos serviços secretos checos (MI6)
GLYPTIC Estaline (MI5)
GOLDFINCH Oleg Lyalin (MI5/MI6)
GOLFPLATZ Grã-Bretanha (serviços secretos alemães)
GORMSSON Oleg Gordievsky (PET)
GORNOV Oleg Gordievsky (KGB)
GROMOV Vasili Gordievsky (KGB)
GRETA Gunvor Galtung Haavik (KGB)
GROUND Transferência de dinheiro para DARIO (KGB)
GUARDIYETSEV Oleg Gordievsky (KGB)
HETMAN Campanha para a libertação de Leila Gordievsky e das filhas
(MI6)
INVISIBLE Exfiltração de cientistas checos (MI6)
KOBA Michael Bettaney
KORIN Mikhail Lyubimov (KGB)
KRONIN Stanislav Androsov (KGB)
LAMPAD Ligação conjunta MI5-MI6 (MI5/MI6)
NOCTON Oleg Gordievsky (MI6)
OVATION Oleg Gordievsky (MI6)
PIMLICO Operação de exfiltração de Gordievsky (MI6)
PUCK Michael Bettaney (MI5)
RON Richard Gott (KGB)
RYAN Raketno-Yadernoye Napadeniye (União Soviética)
SUNBEAM Oleg Gordievsky (MI6)
TICKLE Oleg Gordievsky (CIA)
UPTIGHT MI6 (CIA)
ZEUS Gert Petersen (KGB)
ZIGZAG Eddie Chapman (MI5)
Introdução
18 de maio de 1985 

Para a Divisão K, o departamento de contraespionagem


do KGB, tratava-se de um rotineiro trabalho de colocação
de escutas. 
As fechaduras da porta principal do apartamento no
oitavo andar no número 103 da Leninsky Prospekt, um
prédio de apartamentos em Moscovo ocupado por
funcionários do KGB e pelas suas famílias, foram abertas
em menos de um minuto. Enquanto dois homens com
luvas e fatos-macaco começavam a revistar
metodicamente o apartamento, dois técnicos colocaram
escutas em toda a casa, depressa e sem deixar rasto,
implantando os dispositivos atrás do papel de parede e dos
rodapés, inserindo um microfone no auscultador do
telefone e câmaras de vídeo nos candeeiros da sala de
jantar, do quarto e da cozinha. Quando terminaram, uma
hora mais tarde, quase não havia um recanto no
apartamento onde o KGB não tivesse olhos e ouvidos. Por
fim, colocaram máscaras e polvilharam pó radioativo na
roupa e nos sapatos que estavam no roupeiro, com uma
concentração bastante baixa para evitar envenenamento,
mas suficiente para permitir que os contadores Geiger do
KGB controlassem os movimentos da pessoa que os usava.
Abandonaram então o apartamento, trancando a porta
com todo o cuidado. 
Passadas algumas horas, um alto funcionário dos
serviços secretos russos aterrou no aeroporto de Moscovo,
vindo de Londres num voo da Aeroflot. 
O coronel Oleg Antonyevich Gordievsky do KGB estava no
auge da carreira. Considerado um prodígio dos serviços de
informações soviéticos, tinha subido diligentemente na
hierarquia e servira na Escandinávia, em Moscovo e na
Grã-Bretanha sem nenhuma mácula de relevo na folha de
serviços. Então, aos 46 anos, fora promovido a chefe da
estação do KGB em Londres, um cargo invejável, e
convidado a regressar a Moscovo para ser formalmente
empossado pelo diretor-geral. Espião de carreira,
Gordievsky era um dos favoritos a ascender ao topo da
hierarquia daquela vasta e implacável rede de segurança e
informações que outrora controlava a União Soviética. 
Entroncado e atlético, Gordievsky caminhou com
confiança por entre a multidão no aeroporto. No entanto,
no seu íntimo borbulhava um insidioso terror. Pois Oleg
Gordievsky, veterano do KGB e fiel funcionário dos serviços
secretos da União Soviética, era um espião britânico. 
Recrutado uma dúzia de anos antes pelo MI6, a agência
britânica de serviços secretos internacionais, o agente com
o nome de código NOCTON revelara-se um dos espiões
mais valiosos da história. A incomensurável quantidade de
informações que fornecera aos seus contactos britânicos
tinha mudado o curso da Guerra Fria, desmantelando redes
de espiões soviéticos, ajudando a evitar a guerra nuclear e
proporcionando ao Ocidente uma perspetiva única da
forma de pensar do Kremlin durante um período
crucialmente perigoso para as relações mundiais. Ronald
Reagan e Margaret Thatcher tinham sido informados sobre
o extraordinário tesouro que eram os segredos fornecidos
pelo espião russo, embora nem o presidente americano
nem a primeira-ministra britânica conhecessem a sua
verdadeira identidade. Até a jovem mulher de Gordievsky
desconhecia por completo a sua vida dupla. 
A nomeação de Gordievsky para rezident do KGB (o
termo russo usado para um diretor de estação, conhecida
como rezidentura) encheu de alegria o minúsculo círculo
dos funcionários do MI6 que estavam ao corrente do caso.
Na qualidade de operacional mais graduado dos serviços
secretos soviéticos a operar na Grã-Bretanha, doravante
Gordievsky teria acesso aos segredos mais exclusivos da
espionagem russa e poderia informar o Ocidente a respeito
dos planos do KGB antes de as coisas acontecerem; o KGB
seria neutralizado na Grã-Bretanha. Porém, a ordem
abrupta para se apresentar em Moscovo abalou a equipa
NOCTON. Houve quem pressentisse que era uma
armadilha. Numa reunião convocada à pressa numa casa
segura em Londres com os seus controladores do MI6, foi-
lhe oferecida a possibilidade de desertar e permanecer na
Grã-Bretanha com a família. Todos os presentes na reunião
compreendiam o que estava em causa: se Gordievsky
regressasse como rezident oficial do KGB, o MI6, a CIA e os
aliados ocidentais ganhariam o jackpot dos serviços
secretos, mas se ele caísse numa armadilha, perderia tudo,
incluindo a vida. Gordievsky refletiu durante muito tempo
antes de decidir: «Vou voltar.» 
Os funcionários do MI6 recapitularam mais uma vez o
plano de fuga de emergência, que tinha o nome de código
PIMLICO e fora elaborado sete anos antes com a esperança
de nunca ter de ser ativado. O MI6 nunca exfiltrara
ninguém da URSS, muito menos um oficial do KGB.
Complexo e perigoso, o plano de fuga só poderia ser
desencadeado como último recurso. 
Gordievsky fora treinado para detetar o perigo. Enquanto
percorria o aeroporto de Moscovo, com os nervos em franja
dado o estado de stresse em que se encontrava, viu sinais
de perigo por toda a parte. O funcionário do controlo de
passaportes pareceu observar os seus documentos
durante um tempo excessivo antes de lhe fazer sinal para
avançar. Onde se metera o funcionário que devia ir buscá-
lo, uma cortesia básica para um coronel do KGB que
regressava do estrangeiro? O aeroporto estava sempre sob
vigilância apertada, porém, naquele dia, o número de
homens e mulheres comuns que andavam de um lado para
o outro sem fazer nada pareceu-lhe ainda maior do que o
habitual. Gordievsky entrou num táxi, dizendo a si mesmo
que, se o KGB porventura soubesse a verdade, teria sido
logo detido no momento em que pisara solo russo e já
estaria a caminho das celas do KGB para enfrentar duras
sessões de interrogatório e tortura, e o fim inevitável da
sua execução. 
Tanto quanto percebeu, ninguém o seguiu quando entrou
no familiar prédio de habitação na Leninsky Prospekt e
apanhou o elevador para o oitavo andar. Não entrava no
apartamento da família desde janeiro. 
A primeira fechadura da porta principal foi aberta com
facilidade, e depois a segunda. Mas a porta não se mexeu.
A terceira fechadura, um antiquado canhão que remontava
à época da construção do prédio, fora trancada. 
Porém, Gordievsky nunca usava a terceira fechadura. A
verdade é que nunca possuíra a chave. Aquilo significava
que alguém com uma chave-mestra estivera no interior do
apartamento e, ao sair, trancara as três fechaduras da
porta. Esse alguém só podia pertencer ao KGB. 
Os receios da semana anterior materializaram-se com
uma intensidade paralisante, com a arrepiante e gélida
certeza de que alguém tinha entrado, revistado e
provavelmente posto sob escuta o seu apartamento.
Estava sob suspeita. Alguém o traíra. O KGB vigiava-o. O
espião a ser espiado pelos seus colegas espiões. 
PRIMEIRA PARTE 
1. O KGB 

Oleg Gordievsky nasceu no seio do KGB e foi moldado,


amado, deturpado, danificado e quase destruído por
aquela organização. O serviço de espionagem soviético
estava-lhe no coração e no sangue. O pai trabalhou a vida
inteira para os serviços de informações e usava o uniforme
do KGB todos os dias, mesmo aos fins de semana. Os
Gordievsky viviam entre uma espécie de confraria de
espiões num prédio de habitação exclusivo, consumiam
comida especial reservada aos funcionários e passavam os
tempos livres a socializar com outras famílias de espiões.
Gordievsky foi uma criança do KGB. 
O KGB, Komitet Gosudarstvennoy Bezopasnosti, ou
Comité de Segurança do Estado, foi a agência de serviços
secretos mais complexa e de maior envergadura jamais
criada. Sucessor direto da rede de espionagem de Estaline,
combinava os papéis de recolha de informações
internacionais e nacionais, de implementação da
segurança interna e de polícia do Estado. Opressivo,
misterioso e ubíquo, o KGB infiltrava-se e controlava todos
os aspetos da vida soviética. Erradicou a dissidência
interna, protegeu o comando comunista, montou
operações de espionagem e contraespionagem tendo por
alvo potências inimigas e intimidou os povos da URSS,
impondo uma abjeta obediência. Recrutou agentes e
plantou espiões no mundo inteiro, recolhendo, comprando
e roubando segredos militares, políticos e científicos em
toda a parte. No auge do seu poder, com mais de um
milhão de funcionários, agentes e informadores, o KGB
moldou a sociedade soviética mais profundamente do que
qualquer outra instituição. 
Para o Ocidente, aquelas iniciais eram sinónimo de terror
interno e agressão e subversão externa, uma abreviatura
de toda a crueldade de um regime totalitário dirigido por
uma máfia oficial sem rosto. Contudo, o KGB não era visto
dessa forma pelas pessoas que viviam sob o seu rígido
domínio. Certamente, inspirava medo e obediência, mas
também era admirado como uma guarda pretoriana, um
baluarte contra a agressão imperialista e capitalista do
Ocidente, e o guardião do comunismo. Fazer parte daquela
elitista e privilegiada força era motivo de admiração e
orgulho. As pessoas que entravam para o serviço faziam-
no para a vida inteira. «Um ex-oficial do KGB é uma coisa
que não existe»1, declarou uma vez um antigo funcionário
– Vladimir Putin. O KGB era um clube exclusivo, de onde
não havia meio de sair. Entrar para os seus quadros
constituía uma honra e um dever para quem tinha talento
e ambição em doses suficientes. 
Oleg Gordievsky nunca pensou a sério na possibilidade
de fazer outra coisa. 
O pai, Anton Lavrentyevich Gordievsky, filho de um
trabalhador dos caminhos de ferro, tinha sido professor
antes de a revolução de 1917 o transformar num dedicado
e incondicional comunista, um rígido executor da ortodoxia
ideológica. «O Partido era Deus», escreveria mais tarde o
filho, e a devoção do Gordievsky mais velho nunca vacilou,
mesmo quando a sua convicção exigiu que participasse em
crimes inqualificáveis. Em 1932, ajudou a implementar a
«sovietização» do Cazaquistão, organizando a
expropriação de alimentos aos agricultores para alimentar
os exércitos e as cidades da União Soviética. Cerca de um
milhão e meio de pessoas pereceram em resultado da
carestia que daí resultou. Anton assistiu de perto à fome
provocada pelo Estado. Nesse ano, entrou para o gabinete
de segurança do Estado, e depois para o NKVD (Narodniy
komissariat vnutrennikh diel), o Comissariado do Povo para
os Assuntos Internos, que era a polícia secreta de Estaline,
e seria a instituição precursora do KGB. Membro da direção
política, era responsável pela disciplina e a doutrinação
política. Anton casou-se com Olga Nikolayevna Gornova,
uma estaticista de 24 anos, e o casal mudou-se para um
edifício de apartamentos em Moscovo reservado à elite dos
serviços de informações. O primeiro filho, Vasili, nasceria
em 1932. Os Gordievsky prosperaram durante o período
estalinista. 
Quando o camarada Estaline anunciou que a revolução
enfrentava uma ameaça letal a partir do interior, Anton
Gordievsky estava pronto para ajudar a eliminar os
traidores. A Grande Purga de 1936-1938 viu a liquidação
generalizada dos «inimigos do Estado»: suspeitos de
serem a quinta-coluna2 e trotskistas escondidos, terroristas
e sabotadores, espiões contrarrevolucionários, oficiais do
partido e do governo, camponeses, judeus, professores,
generais, membros dos serviços secretos, cidadãos
polacos, soldados do Exército Vermelho e muitos mais. A
maioria era totalmente inocente. No paranoico Estado
policial de Estaline, a forma mais segura de garantir a
sobrevivência era denunciar alguém. «É preferível que dez
pessoas inocentes sofram a que um espião escape»3, diria
Nikolai Yezhov, o diretor do NKVD. «Quando cortamos
lenha, saltam lascas.» Os delatores sussurraram, os
torturadores e os carrascos atiraram-se ao trabalho e os
gulags4 siberianos encheram-se até quase rebentar pelas
costuras. Todavia, como em todas as revoluções, os
próprios executores tornaram-se, inevitavelmente,
suspeitos. O NKVD começou a investigar e a expurgar os
seus membros. No auge do derramamento de sangue, o
prédio onde os Gordievsky viviam foi alvo de mais de uma
dúzia de rusgas durante um período de seis meses. As
detenções eram efetuadas à noite: o homem da família era
levado primeiro, e em seguida todos os outros habitantes
da casa. 
Parece provável que alguns desses inimigos do Estado
tivessem sido identificados por Anton Gordievsky. «O NKVD
tem sempre razão», declararia ele: uma conclusão ao
mesmo tempo completamente sensata e inteiramente
errada. 
O segundo filho, Oleg Antonyevich Gordievsky, nasceria
no dia 10 de outubro de 1938, quando o Grande Terror
começava a chegar ao fim e a guerra era iminente. Para os
amigos e vizinhos, os Gordievsky pareciam ser cidadãos
soviéticos ideais, ideologicamente puros, leais ao Partido e
ao Estado, e agora pais de dois robustos rapazes. Uma
filha, Marina, nasceria sete anos depois de Oleg. Os
Gordievsky estavam bem alimentados, eram privilegiados
e sentiam-se em segurança. 
Porém, uma inspeção mais atenta detetaria fissuras na
fachada da família e camadas de engano abaixo da
superfície. Anton Gordievsky nunca falava sobre o que
tinha feito durante as fomes, as purgas e o terror. O
Gordievsky mais velho foi um exemplo perfeito da espécie
Homo sovieticus, um obediente funcionário do Estado
criado pela repressão comunista. No entanto, no seu
íntimo sentia medo, estava horrorizado e talvez consumido
pela culpa. Mais tarde, Oleg passaria a ver o pai como «um
homem assustado». 
Olga Gordievsky, a mãe, era feita de uma fibra menos
dócil. Nunca aderiu ao Partido e não acreditava que o
NKVD fosse infalível. Os comunistas tinham confiscado a
azenha ao pai, o irmão fora mandado para o gulag da
Sibéria Oriental por criticar a agricultura coletiva e vira
muitos amigos serem arrastados das suas casas e levados
pela calada da noite. Com o profundo senso comum de
uma camponesa, ela compreendia a fantasia e o espírito
vingativo do terror do Estado, mas mantinha a boca
fechada. 
Oleg e Vasili, que tinham uma diferença de seis anos,
cresceram durante a guerra. Uma das primeiras
recordações de Gordievsky é de ver filas de enlameados
prisioneiros alemães serem exibidos pelas ruas de
Moscovo, «amarrados, vigiados e levados como animais».
Anton costumava estar ausente durante longos períodos, a
dar palestras às tropas sobre a ideologia do Partido. 
Oleg Gordievsky aprendeu respeitosamente as bases da
ortodoxia comunista: frequentou a Escola 130, onde
revelou uma aptidão precoce para história e línguas;
aprendeu tudo sobre os heróis do comunismo, no país e no
estrangeiro. Apesar do denso véu de desinformação em
tudo o que dizia respeito ao Ocidente, os países
estrangeiros fascinavam-no. Aos seis anos, começou a ler o
British Ally, um panfleto de propaganda editado em russo
pela embaixada britânica para encorajar o conhecimento
anglo-russo. Estudou alemão. Como se esperava de todos
os adolescentes, aderiu ao Komsomol, a Liga da Juventude
Comunista. 
O pai trazia para casa três jornais oficiais e declamava a
propaganda comunista que continham. O NKVD
transformou-se no KGB, e Anton Gordievsky acompanhou
obedientemente a transição. A mãe de Oleg manifestava
uma discreta resistência, que só se revelava uma vez por
outra em irascíveis e meio sussurrados apartes. O culto
religioso era ilegal no regime comunista e os rapazes
foram criados ateus, mas a avó materna batizou Vasili em
segredo na Igreja Ortodoxa russa, e também teria batizado
Oleg se o horrorizado pai dos rapazes não tivesse
descoberto e proibido. 
Oleg Gordievsky cresceu numa família muito unida e
carinhosa, cheia de duplicidade. Anton Gordievsky
venerava o Partido e proclamava-se um destemido
defensor do comunismo, mas no seu íntimo era um
pequeno homem aterrorizado que assistira a coisas
terríveis. Olga Gordievsky, a mulher ideal do KGB,
acalentava um desdém secreto pelo sistema. A avó de
Oleg adorava em segredo um Deus ilegal e proscrito.
Nenhum dos adultos da família revelava o que sentia na
verdade – uns aos outros ou a outra pessoa qualquer. Na
sufocante submissão da Rússia de Estaline era possível
acreditar noutra coisa em segredo, mas a honestidade
acarretava perigos até na própria família. Desde a infância,
Oleg percebeu que era possível viver uma vida dupla,
amar as pessoas que o rodeavam enquanto escondia o seu
verdadeiro eu interior, parecer uma pessoa para o mundo
exterior e ser outra no íntimo. 
Oleg Gordievsky terminou a escolaridade com uma
medalha de prata e feito chefe do Komsomol, um produto
competente, inteligente, incondicional e igual a tantos
outros no sistema soviético. Mas também tinha aprendido
a compartimentar. De diferentes formas, o pai, a mãe e a
avó eram pessoas que usavam um disfarce. O jovem
Gordievsky cresceu rodeado de segredos. 
Estaline morreu em 1953. Três anos mais tarde, seria
denunciado pelo seu sucessor, Nikita Khrushchev, no
Vigésimo Congresso do Partido. Anton Gordievsky ficou
chocado. O filho acreditava que a condenação oficial de
Estaline «contribuiu muito para destruir as bases
ideológicas e filosóficas da sua vida». Anton não gostava
da forma como a Rússia estava a mudar. Mas o filho sim. 
O «Degelo de Khrushchev» seria breve e limitado, mas
foi um período de genuína liberalização, em que houve um
afrouxamento da censura e a libertação de milhares de
presos políticos. Foram tempos empolgantes para ser
jovem, russo e otimista. 
Aos 17 anos, Oleg matriculou-se no prestigiado Instituto
Estatal de Relações Internacionais de Moscovo. Aí,
entusiasmado com a nova atmosfera, envolveu-se em
grandes discussões com os seus pares a respeito de como
criar um «socialismo com um rosto humano». E foi longe
demais. O não-conformismo da mãe passara para ele. Um
dia, escreveu um ingénuo discurso em defesa da liberdade
e da democracia, conceitos que quase não compreendia.
Gravou-o no laboratório de línguas e passou a gravação a
alguns colegas. Estes ficaram estupefactos. «Tens de
destruir isto imediatamente, Oleg, e nunca mais falar sobre
estas coisas.» Vendo-se subitamente amedrontado,
perguntou a si mesmo se um dos seus colegas de turma
teria informado as autoridades a respeito das suas
opiniões «radicais». O KGB tinha espiões dentro do
Instituto. 
Os limites do reformismo de Khrushchev foram
brutalmente demonstrados em 1956, quando tanques
soviéticos entraram na Hungria para reprimir uma revolta
nacional contra o domínio soviético. Apesar da abrangente
censura e da propaganda soviética, notícias da revolta
esmagada chegaram à Rússia. «Todo o calor desapareceu»,
recordou Oleg sobre as medidas repressivas que se
seguiram. «Instalou-se um vento gelado.» 
O Instituto de Relações Internacionais era a universidade
mais prestigiada da União Soviética, descrita por Henry
Kissinger como «a Harvard russa»5. Dirigido pelo Ministério
dos Negócios Estrangeiros, era o principal campo de treino
de diplomatas, cientistas, economistas, políticos – e
espiões. Gordievsky estudou história, geografia, economia
e relações internacionais, tudo através do deformado
prisma da ideologia comunista. O Instituto providenciava
instrução em 56 línguas, mais do que qualquer outra
universidade no mundo. A aptidão para línguas oferecia-
lhe um caminho claro para ingressar no KGB e para as
viagens internacionais com que ele sonhava. Já fluente em
alemão, candidatou-se ao estudo de inglês, mas os cursos
estavam lotados. «Aprende sueco», sugeriu-lhe o irmão
mais velho, que já trabalhava para o KGB. «É a porta de
entrada para a Escandinávia.» Gordievsky aceitou o
conselho. 
A biblioteca do Instituto tinha alguns jornais e periódicos
estrangeiros, que, apesar de muito censurados, ofereciam
um vislumbre do mundo mais vasto. Gordievsky começou a
lê-los discretamente, pois evidenciar um interesse
manifesto pelo Ocidente era por si só um motivo de
suspeita. Por vezes, à noite, ouvia em segredo a BBC World
Service ou a Voice of America, apesar do sistema de
interferência de rádio imposto pelos censores soviéticos, e
começou a ter um «primeiro leve contacto com a
verdade». 
Como todos os seres humanos, Gordievsky tinha
tendência, próximo do fim da vida, para ver o seu passado
através da lente da experiência, para imaginar que
albergara sempre em segredo as sementes da
insubordinação, para acreditar que aquele destino estava
de certa forma programado no seu carácter. Não estava.
Enquanto estudante, era um comunista convicto, ansioso
para servir o Estado soviético no KGB, como o pai e o
irmão. A revolta húngara cativou a sua jovem imaginação,
mas ele não era um revolucionário. «Eu ainda estava no
sistema, mas os sentimentos de desilusão começavam a
crescer.» Neste aspeto, não era diferente de muitos dos
seus colegas estudantes. 
Aos 19 anos, Gordievsky começou a praticar corta-mato.
A natureza solitária daquele desporto agradava-lhe de
alguma maneira, um ritmo de intensa exaustão durante
muito tempo, em competição privada consigo mesmo, a
testar os seus limites. Oleg podia ser sociável, atraente
para as mulheres e sedutor. Tinha um forte carisma, com o
cabelo penteado para trás e feições francas e bastante
suaves. Em repouso, a sua expressão parecia austera, mas
o rosto iluminava-se quando os olhos brilhavam com um
humor negro. Se estava acompanhado, era muitas vezes
jovial e sociável, mas havia alguma coisa dura e escondida
no seu íntimo. Não estava sozinho, nem era um solitário,
mas sentia-se bem a sós consigo mesmo. Raramente
revelava os seus sentimentos. Tipicamente sedento de
desenvolvimento pessoal, Oleg acreditava que a corrida de
corta-mato servia para «formar a personalidade». Passava
horas a correr pelas ruas e pelos parques de Moscovo,
sozinho com os seus pensamentos. 
Um dos poucos estudantes de quem ficou amigo foi
Stanislaw Kaplan, seu colega de corrida da equipa de
atletismo da universidade. «Standa» Kaplan era
checoslovaco e já tinha uma licenciatura da Universidade
Carolina de Praga quando chegou ao Instituto, a par de
centenas de outros alunos sobredotados do Bloco de Leste.
A exemplo de outras pessoas de países que só
recentemente tinham sido subjugados ao comunismo,
Gordievsky escreveria anos mais tarde em relação a
Kaplan que a sua «individualidade não tinha sido
reprimida». Um ano mais velho, estudava para ser tradutor
militar. Os dois jovens descobriram que tinham ambições
compatíveis e ideias semelhantes. «Ele tinha uma mente
liberal e opiniões fortemente céticas a respeito do
comunismo», escreveria Gordievsky, que considerava
empolgantes e um pouco alarmantes as audazes opiniões
de Kaplan. Com a sua beleza morena, Standa era um íman
para as mulheres. Os dois estudantes tornaram-se bons
amigos e corriam juntos, conversavam com raparigas e
comiam num restaurante checo ao fundo do Parque Gorky. 
Uma influência igualmente importante exercia-a o seu
idolatrado irmão mais velho, Vasili, que agora treinava
para ser «ilegal» e fazer parte do vasto exército global de
agentes profundamente infiltrados da União Soviética. 
O KGB tinha duas espécies diferentes de espião em
países estrangeiros. O primeiro trabalhava sob disfarce
formal, como membro da equipa diplomática ou consular
soviética, adido cultural ou militar, jornalista acreditado ou
representante comercial. A proteção diplomática
significava que estes espiões «legais» não podiam ser
condenados por espionagem se as suas atividades fossem
descobertas, sendo apenas declarados persona non grata
e expulsos do país. Pelo contrário, um espião «ilegal»
(nelegal, em russo), homem ou mulher, não tinha uma
posição oficial. Regra geral, viajava com nome e
documentos falsos e integrava-se de forma invisível no
país onde era colocado. (No Ocidente, estes espiões são
conhecidos como NOC, de non official cover, ou sem
cobertura oficial). O KGB plantou agentes ilegais no mundo
inteiro, que se faziam passar por cidadãos comuns,
submersos e subversivos. A exemplo dos espiões legais,
recolhiam informações, recrutavam agentes e realizavam
diversas formas de espionagem. Por vezes, como agentes
«adormecidos», podiam permanecer escondidos durante
longos períodos antes de serem ativados. Também eram
potenciais membros de uma quinta-coluna, preparados
para lutar se começasse uma guerra entre o Leste e o
Ocidente. Os ilegais operavam fora do radar oficial e, por
conseguinte, não podiam ser financiados de formas que
fossem detetáveis nem comunicar através de canais
diplomáticos seguros. Porém, ao contrário dos espiões
acreditados numa embaixada, deixavam muito poucos
vestígios para os investigadores da contraespionagem
seguirem. Havia uma estação permanente do KGB, ou
rezidentura, em todas as embaixadas soviéticas, com uma
série de agentes do KGB em diversos disfarces oficiais,
todos sob o comando de um rezident (diretor de estação
em gíria do MI6, ou chefe de estação para a CIA). Uma
tarefa da contraespionagem ocidental era descobrir quais
os funcionários soviéticos que eram genuínos diplomatas e
quais os que eram verdadeiros espiões. Encontrar os
ilegais era uma tarefa muito mais difícil. 
O Primeiro Diretório Principal (PDP) era o departamento
do KGB responsável pelas informações internacionais.
Dentro dele, a Divisão S (de «special», especial) treinava,
colocava e geria os ilegais. Vasili Gordievsky foi
formalmente recrutado para a Divisão S em 1960. 
O KGB mantinha um gabinete no Instituto de Relações
Internacionais com dois agentes atentos a potenciais
recrutas. Vasili referiu aos chefes na Divisão S que o seu
irmão mais novo, que tinha um grande domínio de línguas,
poderia estar interessado no mesmo tipo de trabalho que
ele levava a cabo. 
No início de 1961, Oleg Gordievsky foi convidado para
uma conversa, e a seguir mandaram-no ir a um edifício
próximo da sede do KGB na Praça Dzerzhinsky, onde teve
uma agradável entrevista em alemão com uma mulher de
meia-idade, que o elogiou pela fluência na língua. A partir
daquele momento, passou a fazer parte do sistema.
Gordievsky não pediu para ingressar no KGB; não era um
clube a que as pessoas se candidatassem. O KGB escolhia
quem queria. 
O tempo de Gordievsky na universidade estava a
aproximar-se do fim quando ele foi mandado para Berlim,
para um estágio de seis meses como tradutor na
embaixada russa. Encantado com a perspetiva da primeira
viagem ao estrangeiro, o entusiasmo de Gordievsky atingiu
os píncaros quando foi chamado à Divisão S para um
briefing sobre a Alemanha Oriental. A República
Democrática Alemã, governada por um regime comunista,
era um satélite soviético, mas isso não a tornava imune às
atenções do KGB. Vasili já ali vivia como ilegal. Oleg
aceitou de boa vontade estabelecer contacto com o irmão
e realizar algumas «pequenas tarefas» para o seu novo
patrão oficioso. Gordievsky chegou a Berlim Oriental no dia
12 de agosto de 1961 e dirigiu-se a um albergue de
estudantes no interior do enclave do KGB no subúrbio de
Karlshorst. 
Durante os meses anteriores, o fluxo de alemães
orientais que fugiam para o Ocidente através de Berlim
Ocidental tomara as proporções de uma torrente. Em
1961, cerca de 3,5 milhões de alemães orientais,
aproximadamente 20 por cento da população total,
tinham-se juntado ao êxodo em massa do jugo comunista. 
Gordievsky acordou na manhã seguinte e constatou que
Berlim Oriental tinha sido invadida por buldózeres. O
Governo da Alemanha Oriental, incitado por Moscovo,
estava a tomar medidas radicais para estancar o fluxo: o
Muro de Berlim, uma barreira física para separar o mundo
ocidental de Berlim Oriental e do resto da República
Democrática Alemã, começou a ser construído. Na
realidade, o «Muro de Proteção Antifascista» foi um
perímetro prisional erigido pela Alemanha Oriental para
impedir a fuga dos seus cidadãos. Mais de 240 quilómetros
de betão armado, com bunkers, trincheiras para impedir a
passagem de veículos e vedações metálicas, o Muro de
Berlim foi a manifestação física da Cortina de Ferro e uma
das estruturas mais terríveis jamais construídas pelos
seres humanos. 
Num horrorizado espanto, Gordievsky viu operários
alemães orientais rasgarem as ruas ao longo da fronteira
para as tornar intransitáveis a veículos, enquanto soldados
iam desenrolando quilómetros de arame farpado. Alguns
alemães orientais, ao perceberem que a sua rota de fuga
estava a fechar-se depressa, fizeram tentativas
desesperadas para chegar à liberdade escalando as
barricadas ou tentando atravessar a nado os canais que
separavam as duas partes da cidade. Os guardas
alinharam-se ao longo da fronteira com ordens para alvejar
quem tentasse atravessar do Leste para o Ocidente. O
novo muro teve um forte impacto em Gordievsky, que na
altura tinha 22 anos: «Apenas uma barreira física,
reforçada por guardas armados nas suas torres de vigia,
conseguia impedir que os alemães orientais, no seu
paraíso socialista, fugissem para o Ocidente.» 
Mas o choque que Gordievsky sentiu com a construção
inesperada do Muro de Berlim não impediu que cumprisse
fielmente as ordens do KGB. O medo da autoridade era
instintivo e o hábito de obediência estava enraizado. A
Divisão S tinha fornecido o nome de uma mulher alemã,
uma antiga informadora do KGB; Gordievsky devia sondá-
la e perceber se estava disposta a continuar a fornecer
informações. Encontrou a morada da mulher através de
uma esquadra de polícia. A mulher de meia-idade que
abriu a porta pareceu impávida e serena com a súbita
chegada de um jovem com um ramo de flores. Enquanto
tomavam uma chávena de chá, ela deixou claro que
estava disposta a continuar a colaborar com o KGB.
Entusiasmado, Gordievsky escreveu o seu primeiro
relatório. Passar-se-iam meses antes de perceber o que
tinha acontecido na realidade: «Era eu que estava a ser
testado, não ela.» 
Nesse Natal encontrou-se com Vasili, que vivia sob
identidade falsa em Leipzig. Oleg não revelou ao irmão o
horror que sentira ao ver a construção do Muro de Berlim.
O irmão mais velho já era um agente profissional do KGB e
não teria aprovado aquela hesitação ideológica. Assim
como a mãe escondera os seus verdadeiros sentimentos
do marido, os irmãos também escondiam segredos um do
outro: Oleg não fazia ideia do que o irmão estava a fazer
na realidade, e Vasili não fazia ideia do que o irmão
pensava de verdade. Os dois irmãos assistiram a um
concerto do Christmas Oratorio que deixou Oleg
«intensamente comovido». Em comparação, a Rússia
parecia «um deserto espiritual», onde só era possível ouvir
compositores aprovados e a música sacra «hostil às
classes», como a de Bach, era considerada decadente e
burguesa, sendo desde logo proibida. 
Os poucos meses que Gordievsky passou na Alemanha
Oriental afetaram-no profundamente: testemunhara a
grande divisão física e simbólica da Europa em ideologias
rivais, provara frutos culturais que lhe tinham sido negados
em Moscovo e começara a espiar. «Foi empolgante ter
uma amostra precoce do que poderia fazer se ingressasse
no KGB.» Na realidade, ele já fazia parte da organização. 
Em Moscovo, Gordievsky apresentou-se ao serviço no
KGB no dia 31 de julho de 1962. Porque ingressou ele
numa organização que impunha uma ideologia que já tinha
começado a questionar? O trabalho no KGB era glamoroso
e oferecia a promessa de viagens ao estrangeiro. O
secretismo é sedutor. E Gordievsky também era ambicioso.
O KGB poderia mudar. Ele poderia mudar. A Rússia poderia
mudar. E o salário e os privilégios eram bons. 
Olga Gordievsky ficou consternada ao saber que o filho
mais novo seguiria os passos do pai e do irmão nos
serviços de informações. Desta vez, expressou sem rodeios
a raiva que sentia do regime e do aparelho de opressão
que o sustentava. Oleg referiu que não trabalharia para o
KGB interno, mas na secção internacional, o Primeiro
Diretório Principal, uma organização de elite onde
trabalhavam intelectuais que falavam línguas estrangeiras
e faziam um trabalho sofisticado que requeria perícia e
educação. «Não é como o KGB», disse-lhe. «No fundo, é
um trabalho de informações e diplomático.» Olga virou-lhe
as costas e saiu da sala.  
Anton Gordievsky não disse nada. Oleg não detetou
orgulho na postura do pai. Anos mais tarde, quando
percebeu a verdadeira dimensão da repressão estalinista,
perguntaria a si mesmo se o pai, que se aproximava da
idade da reforma, sentia «vergonha de todos os crimes e
atrocidades cometidos pelo KGB e tinha medo de discutir o
trabalho daquela organização com o próprio filho». Ou
talvez Anton Gordievsky estivesse a tentar manter a sua
vida dupla; era um pilar do KGB demasiado aterrorizado
para alertar o filho contra aquilo em que ia meter-se. 
No seu último verão como civil, Gordievsky foi com
Standa Kaplan para o campo de férias do Instituto na costa
do mar Negro. Kaplan decidira ficar mais um mês, antes de
voltar para ingressar no StB (Státní bezpec ˇ nost), a
formidável agência de serviços secretos da
Checoslováquia. Em breve, os dois amigos seriam colegas,
aliados na espionagem para o Bloco de Leste. Durante um
mês, acamparam sob os pinheiros. Corriam todos os dias,
nadavam, apanhavam banhos de sol e falavam sobre
mulheres, música e política. Kaplan era cada vez mais
crítico do sistema comunista. Gordievsky sentia-se
lisonjeado por ser o recetor de confidências tão perigosas:
«Havia um acordo tácito entre nós, havia confiança.» 
Pouco depois de regressar à Checoslováquia, Kaplan
escreveu uma carta a Gordievsky. Entre coscuvilhices
sobre as raparigas que tinha conhecido e o quanto iam
divertir-se se o amigo fosse visitá-lo («Vamos esvaziar
todos os bares e adegas de Praga»), Kaplan fez um pedido
extremamente importante: «Oleg, por acaso tens um
exemplar do Pravda com o poema do Yevtushenko sobre o
Estaline?» O poema em questão era Herdeiros de Estaline,
de Yevgeny Yevtushenko, um ataque direto ao estalinismo
por um dos poetas mais frontais e influentes da Rússia. O
poema era uma exigência para que o Governo soviético
garantisse que Estaline «nunca mais voltaria» e um aviso
de que alguns líderes ainda sonhavam com o brutal
passado estalinista: «Quando falo em passado, refiro-me à
negligência do bem-estar do povo, às falsas acusações, à
prisão dos inocentes [...] “O que importa?”, dizem alguns,
mas eu não posso ficar inativo / Enquanto os herdeiros de
Estaline estiverem neste mundo.» O poema causara
celeuma quando tinha sido publicado no jornal oficial do
Partido Comunista, e também fora divulgado na
Checoslováquia. «Teve um forte efeito numa parte do
nosso povo que resultou em alguns sinais de
descontentamento», escreveu Kaplan a Gordievsky. Disse-
lhe que queria comparar a tradução checa com o russo
original. Porém, na realidade, Kaplan estava a enviar uma
mensagem codificada de cumplicidade ao amigo, um
reconhecimento de que partilhavam os sentimentos
manifestados por Yevtushenko e, a exemplo do poeta, não
ficariam impassíveis perante o legado de Estaline. 
A academia de treino de elite «Bandeira Vermelha» do
KGB, no meio de uma floresta 80 quilómetros a norte de
Moscovo, tinha o nome de código «Escola 101», uma
reminiscência irónica e inteiramente inconsciente do
Quarto 101 de George Orwell em 1984, a câmara de
tortura subterrânea onde o Partido quebra a resistência de
um preso sujeitando-o ao seu pior pesadelo. 
Aí, Gordievsky e outros 120 agentes estagiários do KGB
seriam iniciados nos segredos mais profundos da arte da
espionagem soviética: espionagem e contraespionagem,
recrutamento e gestão de espiões, legais e ilegais, agentes
e agentes duplos, armas, combate corpo a corpo e
vigilância, as misteriosas artes e linguagem deste estranho
ofício. Uma das partes mais importantes do treino era a
deteção e evasão de vigilância, conhecida como «limpeza
a seco», ou «proverka» na gíria do KGB: como perceber
quando estavam a ser seguidos e escapar à vigilância de
uma forma que parecesse acidental, não intencional, já
que um alvo que está notoriamente «consciente da
vigilância» é quase de certeza um operacional altamente
qualificado dos serviços secretos. «O comportamento do
agente dos serviços secretos não deve levantar
suspeitas»6, declaravam os instrutores do KGB. «Se um
serviço de vigilância notar que um estrangeiro verifica
ostensivamente se está a ser seguido, passará a trabalhar
com maior secretismo, maior tenacidade e mais
engenho.» 
Ser capaz de estabelecer contacto com um agente sem
ser detetado – ou mesmo quando se está a ser vigiado – é
crucial para todas as operações clandestinas. Na gíria
ocidental de espionagem, diz-se de um oficial ou agente
que opera sem ser detetado que entrou na clandestinidade
ou desapareceu, que «ficou negro»7. Em inúmeros testes,
os alunos do KGB eram mandados encontrar-se com uma
determinada pessoa num local definido, deixar ou recolher
informações, tentar identificar se e como estavam a ser
seguidos, despistar as pessoas que os vigiavam sem dar
nas vistas e chegar ao local designado impecavelmente
«limpos a seco». A vigilância era da responsabilidade da
Sétima Divisão do KGB. Vigilantes profissionais, altamente
qualificados na arte de seguir um suspeito, participavam
nos exercícios, e no fim do dia o aluno estagiário e a
equipa de vigilância comparavam notas. A proverka era
esgotante, competitiva, morosa e angustiante; Gordievsky
descobriu que tinha um grande talento nessa área. 
Oleg aprendeu a criar um «local de sinal», um sinal
secreto deixado num local público – uma marca de giz num
candeeiro de iluminação pública, por exemplo – que não
significava nada para um observador casual, mas servia
para marcar encontro com um espião num determinado
local e hora; aprendeu ainda a estabelecer um «contacto
de raspão», passando fisicamente uma mensagem ou
objeto a outra pessoa sem ser detetado; a fazer uma
entrega numa «caixa postal», deixando uma mensagem ou
dinheiro num determinado lugar para ser recolhido por
outra pessoa sem estabelecer contacto direto. Aprendeu
códigos e cifras, sinais de reconhecimento, escrita secreta,
preparação de micropontos, fotografia e disfarce. Havia
aulas de economia e política, bem como ensino ideológico
para reforçar a dedicação dos jovens espiões ao marxismo-
leninismo. Como um dos colegas de Oleg diria, «aquelas
fórmulas e conceitos cheios de clichés tinham o carácter
de encantamentos rituais, como afirmações de lealdade
feitas todos os dias, a todas as horas». Oficiais veteranos,
que já tinham servido no estrangeiro, davam palestras
sobre cultura e etiqueta nos países ocidentais, preparando
os recrutas para compreenderem e combaterem o
capitalismo burguês. 
Gordievsky adotou o seu primeiro nome de espião. Os
serviços de informações soviéticos e ocidentais usavam o
mesmo método para escolher um pseudónimo – devia
assemelhar-se ao nome verdadeiro, com a mesma letra
inicial, porque, se alguém se dirigisse à pessoa pelo seu
verdadeiro nome, quem só o conhecesse pelo nome de
espião podia partir do princípio de que ele ou ela tinha
percebido mal. Gordievsky escolheu o nome
«Guardiyetsev». 
Como todos os outros alunos, jurou lealdade eterna ao
KGB: «Comprometo-me a defender o meu país até à última
gota de sangue e a guardar os segredos do Estado.» Fez o
juramento sem escrúpulos. Também se filiou no Partido
Comunista, outro requisito de admissão. Gordievsky podia
ter as suas dúvidas – muitos tinham –, mas isso não o
impediu de ingressar no KGB e no Partido com
incondicional empenho e sinceridade. E, além disso, o KGB
era empolgante. Assim, longe de ser um pesadelo
orwelliano, o curso de treino de um ano na Escola 101 foi o
período mais agradável da sua jovem vida, um tempo de
entusiasmo e expectativa. Os seus colegas recrutas eram
selecionados pela inteligência e a sua conformidade
ideológica, mas também pelo espírito de aventura comum
a todos os serviços de informações. «Tínhamos escolhido
fazer carreira no KGB porque nos davam a perspetiva de
ação.» O secretismo cria laços intensos. Nem sequer os
pais de Oleg sabiam muito bem onde ele se encontrava,
nem o que estava a fazer. «O sonho secreto e conhecido
da maioria dos jovens funcionários da segurança do Estado
era trabalhar para o PDP, mas apenas alguns eram dignos
dessa honra»8, escreveria Leonid Shebarshin, que
frequentou a Escola 101 aproximadamente ao mesmo
tempo que Oleg e que acabaria por chegar a general do
KGB. «O [...] trabalho unia os funcionários dos serviços
secretos numa camaradagem única com tradições,
disciplina e convenções muito próprias, e com uma
linguagem profissional especial.» No verão de 1963,
Gordievsky tinha sido plenamente adotado na irmandade
do KGB. Quando jurou defender a pátria até ao último
suspiro e ao último segredo, estava a falar a sério. 
Vasili Gordievsky trabalhava afincadamente para a
Divisão S, a secção de ilegais do PDP. Também começara a
beber muito – não necessariamente um inconveniente num
serviço que valorizava a capacidade de consumir grandes
quantidades de vodca depois do trabalho sem cair para o
lado. Especialista em ilegais, andava de um lado para o
outro com diferentes identidades, ao serviço da rede
clandestina, a passar mensagens e dinheiro a outros
agentes escondidos. Vasili nunca disse ao irmão mais novo
o que fazia, mas aludia veladamente a locais exóticos
como Moçambique, Vietname, Suécia e África do Sul. 
Oleg esperava seguir o irmão naquele empolgante
mundo clandestino no estrangeiro. Em vez disso,
mandaram-no apresentar-se na Divisão S em Moscovo,
onde prepararia documentação para outros ilegais.
Tentando disfarçar o desapontamento, no dia 20 de agosto
de 1963 Gordievsky vestiu o seu melhor fato e apresentou-
se ao serviço na sede do KGB, o complexo de edifícios que
se ergue próximo do Kremlin, parte prisão, parte arquivo, o
concorrido centro nevrálgico dos serviços secretos
soviéticos. No seu centro estava o sinistro Lubyanka, um
palácio neobarroco originalmente construído para a
Companhia de Seguros All-Russia, em cuja cave se
situavam as celas de tortura do KGB. Entre os funcionários
do KGB, o centro de controlo da organização era conhecido
como «O Mosteiro» ou, mais simplesmente, «O Centro». 
Em vez de trabalhar como agente secreto num
glamoroso local num país estrangeiro, Gordievsky estava a
tratar de papelada, um «condenado às galés» a preencher
impressos. Cada ilegal necessitava de uma personalidade
falsa, incluindo uma história e uma nova identidade com
uma biografia completa e documentos falsos. Cada ilegal
tinha de ser mantido, instruído e financiado, num complexo
sistema de locais para deixar sinais, «caixas postais» e
contactos de raspão. A Grã-Bretanha era considerada um
terreno particularmente fértil para plantar ilegais, pois o
país não possuía um sistema de bilhetes de identidade
nem um gabinete central de registos. A Alemanha
Ocidental, a América, a Austrália, o Canadá e a Nova
Zelândia eram alvos de importância primordial. Colocado
na secção alemã, Oleg passava os dias a criar pessoas que
não existiam. Durante dois anos, viveu num mundo de
vidas duplas, a mandar espiões falsificados para o mundo
exterior e a encontrar-se com os que tinham regressado. 
O Centro era um lugar de fantasmas vivos, heróis da
espionagem soviética nos seus últimos anos de vida. Nos
corredores da Divisão S, Gordievsky foi apresentado a
Konon Trofimovich Molody, também conhecido por «Gordon
Lonsdale», um dos mais bem-sucedidos ilegais da história.
Em 1943, o KGB apropriou-se da identidade de uma
criança canadiana falecida chamada Gordon Arnold
Lonsdale e atribuiu-a a Molody, que fora criado na América
do Norte e falava um inglês impecável. Molody/Lonsdale
radicou-se em Londres em 1954 e, como um jovial
vendedor de jukeboxes e máquinas de pastilhas elásticas,
recrutou o chamado Anel de Espiões de Portland, uma rede
de informadores que roubavam segredos navais. (Um
dentista do KGB fizera-lhe vários buracos desnecessários
nos dentes antes de ele sair de Moscovo, o que significava
que podia abrir a boca e mostrar as cáries criadas pelo
KGB para confirmar a sua identidade a outros espiões
soviéticos.) Uma dica de uma toupeira da CIA levou à
detenção e condenação de Molody por espionagem, se
bem que, mesmo durante o julgamento, o tribunal
britânico não tivesse a certeza de qual era o seu
verdadeiro nome. Quando Gordievsky o conheceu, Molody
acabara de regressar a Moscovo depois de ser trocado por
um empresário britânico detido em Moscovo, acusado de
espionagem. Uma figura igualmente lendária era Vilyam
Genrikhovich Fisher, também conhecido por Rudolf Abel, o
ilegal cujos atos de espionagem nos Estados Unidos lhe
valeram uma condenação a 30 anos de prisão antes de ser
trocado pelo piloto do avião espião U2 abatido em 1962. 
Porém, o espião soviético mais famoso em situação de
semirreforma era britânico. Kim Philby fora recrutado pelo
NKVD em 1933, subira na hierarquia do MI6 enquanto
passava uma grande quantidade de segredos ao KGB, e
por fim desertara para a União Soviética em janeiro de
1963, para profundo e duradouro embaraço do Governo
britânico. Passou a viver num confortável apartamento em
Moscovo, vigiado por guarda-costas, «um inglês até à
ponta dos dedos»9, como diria um funcionário do KGB, que
lia os resultados do críquete em exemplares antigos do The
Times, comia doce de laranja de Oxford e bebia muitas
vezes até cair de bêbedo. Philby era reverenciado como
uma lenda no KGB e continuava a colaborar
esporadicamente com os serviços secretos soviéticos,
incluindo administrar um curso de treino para oficiais de
língua inglesa, analisar casos ocasionais e até ajudar a
motivar a equipa soviética de hóquei no gelo. 
Como Molody e Fisher, Philby dava palestras a jovens
espiões deslumbrados. Porém, a realidade da vida após a
espionagem para o KGB era tudo menos feliz. Molody
começou a beber e morreu em circunstâncias misteriosas
durante uma expedição para apanhar cogumelos. Fisher
ficou profundamente desiludido. Philby tentou suicidar-se.
Os três acabariam homenageados em selos de correio
soviéticos. 
Para quem se desse ao trabalho de observar com mais
atenção (e poucos russos faziam isso), o contraste entre o
mito e a realidade do KGB era evidente. No Centro reinava
uma burocracia imaculadamente limpa, muito iluminada e
amoral, um lugar ao mesmo tempo implacável, afetado e
puritano onde eram arquitetados crimes internacionais
com uma meticulosa atenção aos pormenores. Desde o
primeiro momento, os serviços secretos soviéticos
operaram sem limites éticos. Para além da recolha e
análise de informações, o KGB organizava guerra política,
manipulação dos meios de comunicação, desinformação,
falsificação, intimidação, rapto e homicídio. O Décimo
Terceiro Departamento, ou «Divisão de Tarefas Especiais»,
era especializado em sabotagem e homicídio. A
homossexualidade era ilegal na URSS, mas o KGB
recrutava homossexuais para apanhar estrangeiros
homossexuais, que podiam depois ser chantageados. O
KGB não tinha escrúpulos. No entanto, era um lugar
pudico, hipócrita e moralista. Os funcionários estavam
proibidos de beber durante as horas de serviço, embora
muitos bebessem prodigiosamente em todos os outros
momentos. As coscuvilhices a respeito da vida privada dos
colegas corriam o KGB, como acontece na maioria dos
escritórios, com a diferença de que no Centro o escândalo
e o falatório podiam destruir a carreira de alguém e pôr fim
à sua vida. O KGB tinha um interesse indiscreto na vida
pessoal dos seus funcionários, pois na União Soviética
nenhuma vida era privada. Era esperado que os
funcionários se casassem, tivessem filhos e
permanecessem casados. Havia premeditação e controlo
nisto: considerava-se que era menos provável um
funcionário do KGB casado desertar enquanto estava no
estrangeiro, pois a mulher e a família poderiam ficar
reféns. 
Dois anos depois de ingressar na Divisão S, Gordievsky
concluiu que não seguiria os passos do irmão como agente
infiltrado no estrangeiro. Todavia, o próprio Vasili pode ter
sido a razão principal para Oleg ser rejeitado para o
trabalho como ilegal: segundo a lógica do KGB, ter mais de
um membro de uma família no estrangeiro, e sobretudo ter
dois no mesmo país, poderia ser um incitamento à
deserção. 
Gordievsky estava entediado e frustrado. Um trabalho
que parecia prometer aventura e excitação transformara-
se numa profunda monotonia. O mundo para lá da Cortina
de Ferro sobre o qual lera em jornais ocidentais parecia
desesperadamente fora do seu alcance. Assim, decidiu
casar-se. «Eu queria ir para o estrangeiro o mais depressa
possível, e o KGB nunca mandava homens solteiros para
fora do país. Estava com pressa de encontrar uma
mulher.» Uma mulher que fosse fluente na língua alemã
seria ideal, pois poderiam ser colocados na Alemanha
juntos. 
Yelena Akopian andava a estudar para ser professora de
alemão. Era uma jovem de 21 anos, de ascendência
arménia por um lado da família, inteligente, com olhos
escuros e muito arguta. Yelena tinha respostas irónicas na
ponta da língua para tudo, o que Oleg considerou atraente
e encantador durante algum tempo. Conheceram-se em
casa de um amigo comum. O que os atraiu um para o
outro teve menos a ver com paixão e mais com uma
ambição partilhada. A exemplo de Oleg, Yelena sonhava
viajar para o estrangeiro e imaginava uma vida para além
dos confins do atravancado apartamento onde vivia com
os pais e cinco irmãos. As poucas relações anteriores de
Gordievsky tinham sido breves e nada satisfatórias. Yelena
parecia oferecer um vislumbre do que seria uma mulher
soviética moderna, menos convencional do que as
estudantes que ele conhecera antes, com um sentido de
humor imprevisível. Ela declarava-se feminista, se bem
que na Rússia da década de 1960 o termo fosse
estritamente limitado. Gordievsky disse a si mesmo que a
amava. Mais tarde, reconheceria que ficaram noivos «sem
grande reflexão ou ponderação de ambos os lados» e
casaram-se, sem pompa e circunstância, passados alguns
meses, por motivos que não eram nada românticos: ela
reforçaria as hipóteses de Oleg ser promovido e ele era o
seu passaporte para fora de Moscovo. Foi um casamento
de conveniência no KGB, embora nenhum deles admitisse
isso ao outro.  
No fim de 1965 chegou a oportunidade que Gordievsky
esperava. Abriu uma vaga para um cargo de gestão de
ilegais na Dinamarca. Como disfarce, assumiria o papel de
um funcionário consular que tratava de vistos e heranças;
na realidade, trabalharia para a «Linha N» (que significava
«nelegalniy», ou «ilegais») e seria o responsável pelo
trabalho de campo operacional da Divisão S. 
Gordievsky foi convidado para o cargo de gestão de uma
rede de espiões clandestinos na Dinamarca e aceitou com
alegria e entusiasmo. Como Kim Philby observou depois de
ser recrutado para o KGB em 1933: «Não hesitei. Uma
pessoa não pensa duas vezes quando lhe é oferecida a
possibilidade de ingressar numa força de elite.»10 

2Conjunto de indivíduos de um país em guerra que atuam em segredo no


próprio país ao serviço do inimigo. (N. da T.)

4Rede de prisões e campos de trabalhos forçados na antiga União Soviética. (N.


da T.)

7 «Gone black», no original. (N. da T.)


2. O Tio Gormsson 

Oleg e Yelena Gordievsky aterraram em Copenhaga num


dia gelado, porém soalheiro, em janeiro de 1966 e
entraram num conto de fadas. 
Como diria mais tarde um funcionário do MI6: «Se
tivéssemos de escolher uma cidade para demonstrar as
vantagens da democracia ocidental em relação ao
comunismo russo, não havia melhor do que Copenhaga.» 
A capital da Dinamarca era linda, limpa, moderna, rica e,
aos olhos do casal recém-saído da pesada opressão da
vida soviética, quase impossivelmente tentadora. Havia
carros elegantes, reluzentes prédios de escritórios, lindos
móveis de designers e sorridentes nórdicos com dentes
magníficos. Havia muitos cafés, luminosos restaurantes
que serviam pratos exóticos e lojas que vendiam uma
desconcertante variedade de produtos. Para os olhos
famintos dos Gordievsky, os dinamarqueses pareciam não
apenas mais alegres e mais vivos, mas também muito
cultos. Oleg ficou espantado com a diversidade de livros
disponíveis na primeira biblioteca onde entrou, e mais
surpreendido ainda por poder requisitar a quantidade que
quisesse e ficar com o saco de plástico onde os levava.
Parecia haver muito poucos polícias. 
A embaixada soviética funcionava em três moradias de
estuque em Kristianiagade, na zona norte da cidade, e
parecia mais um grandioso hotel murado do que um
enclave soviético, com extensos jardins bem tratados, um
centro desportivo e um clube social. Os Gordievsky foram
viver para um apartamento novo, com tetos altos, soalho
de madeira e uma cozinha equipada. Oleg recebeu um
Volkswagen Carocha e tinha um subsídio de 250 libras em
numerário todos os meses para despesas com contactos.
Copenhaga parecia estar repleta de música: Bach,
Haendel, Haydn, Telemann, compositores que nunca
pudera ouvir na Rússia soviética. Gordievsky pensou que
havia um bom motivo para os cidadãos soviéticos comuns
não poderem viajar para o estrangeiro: quem, a não ser
um funcionário do KGB plenamente doutrinado,
conseguiria desfrutar de tais liberdades e resistir à
tentação de ficar? 
Dos 20 funcionários da embaixada soviética, apenas seis
eram genuínos diplomatas, enquanto os restantes
trabalhavam para o KGB ou para o GRU (Glavnoye
razvedyvatel’noye upravleniye), a agência de serviços
secretos militares soviética. Leonid Zaitsev, o rezident, era
um homem encantador e consciencioso, que parecia não
se aperceber de que os seus subalternos, na sua maioria,
eram incompetentes, preguiçosos ou corruptos – regra
geral, as três coisas. Os agentes da rezidentura gastavam
muito mais energia a falsificar as suas despesas do que a
espiar. O objetivo geral do KGB era dedicar-se aos
contactos dinamarqueses, recrutar informadores e
procurar possíveis agentes. Gordievsky depressa percebeu
que isso significava «um convite à corrupção», uma vez
que a maioria dos agentes inventava interações com
dinamarqueses, falsificava contas, inventava relatórios e
embolsava as ajudas de custo. O Centro não parecia achar
estranho que poucos dos seus funcionários em Copenhaga
falassem bem dinamarquês, e alguns nem sequer falassem
a língua. 
Gordievsky estava determinado a mostrar que não era
igual aos outros. Já fluente em sueco, começou a aprender
dinamarquês. As suas manhãs eram passadas a processar
pedidos de vistos, para fazer o trabalho de dissimulação no
consulado; a espionagem começava à hora do almoço. 
A rede de ilegais do KGB na Escandinávia era irregular.
Uma grande parte do trabalho de Gordievsky era
administrativo: deixar dinheiro ou mensagens em «caixas
postais», monitorizar os locais onde eram deixados sinais e
manter contacto clandestino com espiões infiltrados, a
maioria dos quais nunca conheceu pessoalmente nem
sabia os seus nomes. Se um ilegal deixasse uma casca de
laranja debaixo de um determinado banco de um parque,
significava: «Estou em perigo», enquanto um caroço de
maçã indicava: «Vou sair do país amanhã.» Por vezes,
aquelas complexas combinações transformavam-se em
verdadeiras farsas. Oleg deixou um prego torto no
parapeito de uma janela numa casa de banho pública para
indicar a um ilegal que devia ir buscar dinheiro a uma
determinada «caixa postal». O sinal de resposta do agente
infiltrado, para confirmar que a mensagem fora recebida,
seria uma carica de uma garrafa de cerveja deixada no
mesmo sítio. Ao voltar ao local, Oleg encontrou a carica de
uma garrafa de cerveja… de gengibre. Em sinalização de
espionagem, uma cerveja de gengibre era igual a uma
cerveja comum? Ou teria outro significado? Após uma
intensa discussão que durou a noite inteira com colegas na
rezidentura, chegou à conclusão de que o espião não via
qualquer diferença entre uma carica e a outra. 
Na Dinamarca, os nascimentos e os óbitos eram
registados pelas instituições da Igreja Protestante e
anotados à mão em grandes livros-mestres. Com a ajuda
de um hábil falsificador de Moscovo, era possível criar
novas identidades do nada, adulterando os registos
existentes. Gordievsky começou a cultivar amizade com
clérigos para conseguir ter acesso aos registos e a
organizar roubos em diversas igrejas. «Eu estava a
explorar terra virgem», diria mais tarde. Os registos das
igrejas da Dinamarca contêm uma grande quantidade de
nomes dinamarqueses inteiramente inventados por Oleg
Gordievsky. 
Entretanto, começou a recrutar informadores, agentes e
correios clandestinos. «É o principal objetivo da nossa vida
aqui», disse-lhe Zaitsev. Após meses a desenvolver
relações, trabalhando sob o nome de «Gornov» (o nome de
solteira da mãe), persuadiu um professor e a mulher a
serem uma «caixa de correio viva», passando mensagens
para e de ilegais. Tornou-se amigo de um polícia
dinamarquês; porém, após alguns encontros, ficou na
dúvida se era ele que estava a recrutar o homem ou o
contrário.  
Menos de um ano após a sua chegada a Copenhaga,
Gordievsky passou a ter a companhia de um funcionário do
KGB de uma índole muito diferente dos outros. Mikhail
Petrovich Lyubimov era um ucraniano de voz tonitruante,
alegre e extremamente inteligente cujo pai tinha
trabalhado na Tcheka (Tchresvitcháinaia), a polícia secreta
bolchevique. Lyubimov licenciara-se no Instituto Estatal de
Relações Internacionais de Moscovo quatro anos antes de
Gordievsky e escrevera uma tese para o KGB intitulada A
Personalidade Nacional Inglesa e a Sua Utilização no
Trabalho Operacional. Em 1957, cumprindo ordens do KGB,
seduziu uma rapariga americana no Festival Mundial da
Juventude em Moscovo. Quatro anos mais tarde, foi
destacado para a Grã-Bretanha como adido de imprensa
soviético, enquanto recrutava informadores em sindicatos,
grupos estudantis e instituições inglesas. Falava inglês com
um bem timbrado sotaque da alta sociedade, adornado
com antiquados anglicismos (What ho! Pip!) que o faziam
parecer um Bertie Wooster11 russo. Lyubimov sentia um
grande fascínio por tudo o que era inglês ou, mais
especificamente, pelos aspetos da cultura inglesa de que
gostava: uísque, charutos, críquete, clubes masculinos,
fatos de tweed feitos por medida, bilhar e mexericos. Os
serviços secretos britânicos deram-lhe o nome de «Smiley
Mike». Os britânicos eram o inimigo, e ele adorava-os. Em
1965 tinha tentado sem sucesso recrutar um técnico de
cifras britânico, e os serviços secretos não perderam
tempo a tentar recrutá-lo a ele. Tendo recusado a oferta
para espiar para a Grã-Bretanha, foi declarado persona
non grata e mandado para Moscovo – uma experiência que
não contribuiu em nada para apoucar a sua exuberante
anglofilia. 
No fim de 1966, Lyubimov foi colocado em Copenhaga
para chefiar os serviços secretos políticos (a «Linha PR»,
na nomenclatura do KGB). 
Gordievsky de imediato simpatizou com Lyubimov. «Não
é a vitória que importa, mas jogar o jogo», disse Lyubimov,
encantando o homem mais novo com histórias da sua vida
na Grã-Bretanha, a recrutar espiões enquanto bebia
Glenlivet em salas de clubes cujas paredes estavam
forradas com painéis de madeira. Lyubimov adotou
Gordievsky como seu protegido e diria sobre o homem
mais jovem: «Impressionou-me com o seu esplêndido
conhecimento de história. Adorava Bach e Haydn com
inspirado respeito, sobretudo em comparação com os
restantes membros da colónia soviética na Dinamarca,
passando estes o tempo todo em viagens de pesca,
compras e a acumular o máximo de bens materiais que
conseguiam.» 
Do mesmo modo que Lyubimov se tinha apaixonado pela
Grã-Bretanha, Gordievsky ficou encantado com a
Dinamarca, com o seu povo, os parques e a música, e com
a liberdade, incluindo a liberdade sexual, que os
dinamarqueses consideravam um dado adquirido. Os
dinamarqueses tinham uma atitude aberta em relação ao
sexo, progressista até mesmo pelos padrões europeus. Um
dia, Oleg visitou o bairro de prostituição da cidade e, por
impulso, entrou numa loja que vendia revistas
pornográficas, brinquedos sexuais e outro material erótico.
Ali, comprou três revistas pornográficas homossexuais e
levou-as para casa para mostrá-las a Yelena. «Eu estava
apenas intrigado. Não tinha ideia do que os homossexuais
faziam.» Colocou as revistas na prateleira da lareira, uma
clara manifestação de uma liberdade impossível na Rússia
soviética. 
«Desabrochei como ser humano», escreveu. «Havia tanta
beleza, tanta música alegre, tantas escolas excelentes,
tanta abertura e alegria nas pessoas, que eu só podia
recordar o vasto e estéril campo de concentração da União
Soviética como uma forma de inferno.» Começou a jogar
badminton e descobriu que adorava aquele jogo, gostando
particularmente do seu elemento ilusório. «Ao abrandar no
fim do voo, o volante dá ao jogador a possibilidade de usar
a inteligência e mudar a trajetória da pancada no último
momento.» Oleg aperfeiçoaria com o tempo a habilidade
de executar essa pancada. Assistia a concertos de música
clássica, devorava livros da biblioteca e viajou para todos
os cantos da Dinamarca, por vezes em trabalho de
espionagem, mas sobretudo pelo puro prazer de poder
fazê-lo. 
Pela primeira vez na vida, Gordievsky sentiu que não
estava a ser observado. Mas estava. 
O serviço dinamarquês de segurança e informações, o
Politiets Efterretningstjeneste, ou PET, era minúsculo, mas
extremamente eficiente. A sua missão era «prevenir,
investigar e combater operações e atividades que
constituam uma ameaça para a preservação da Dinamarca
como um país livre, democrático e seguro». O PET
desconfiava que Oleg Gordievsky representava uma
ameaça desse tipo e começou a vigiar o jovem diplomata
apreciador de música clássica desde o dia em que ele
chegou a Copenhaga. 
Os dinamarqueses monitorizavam de forma rotineira os
funcionários da embaixada soviética, mas não tinham
recursos para uma vigilância permanente. Alguns dos
telefones no edifício da embaixada estavam sob escuta.
Entretanto, técnicos do KGB tinham-se infiltrado com
sucesso nas redes de rádio do PET e um posto de escuta
no interior da embaixada captava as mensagens trocadas
entre as equipas de vigilância dinamarquesas. Nessa
altura, Yelena Gordievsky trabalhava para o KGB com o
marido, a escutar essas mensagens e a traduzi-las para
russo. Em resultado disso, o KGB conhecia muitas vezes o
posicionamento dos carros de vigilância do PET e podia
determinar quando os seus agentes não estavam a ser
vigiados. Quem era suspeito de ser um agente do KGB
tinha um nome de código: nas mensagens de rádio do PET,
Gordievsky era o «Tio Gormsson», uma referência a um rei
da Dinamarca do século X, Haroldo «Dente Azul»
Gormsson. 
O serviço de segurança dinamarquês tinha poucas
dúvidas de que Gordievsky (também conhecido como
Gornov, Guardiyetsev e Tio Gormsson) era um espião do
KGB a trabalhar com cobertura diplomática. 
Uma noite, Oleg e Yelena foram convidados para jantar
pelo amigo polícia e pela mulher. Na sua ausência, o PET
entrou no apartamento deles e plantou dispositivos de
escuta. Gordievsky ficou um pouco desconfiado com o
convite do casal dinamarquês e, seguindo o treino que
recebera na Escola 101, tomou a precaução de colocar um
pouco de cola entre a porta da entrada e o respetivo
caixilho. Quando voltaram do jantar, o selo invisível de cola
tinha sido quebrado. A partir daquele momento,
Gordievsky tinha cuidado com o que dizia em casa. 
A espionagem mútua era errática e fragmentada dos dois
lados. Os agentes do KGB, treinados na arte da «limpeza a
seco», escapavam com frequência ao radar dinamarquês.
Mas também era frequente Gordievsky e os colegas
pensarem que tinham conseguido «ficar negros», quando
não era verdade. 
Ou o PET estava a monitorizar o bairro de prostituição em
Copenhaga, ou seguia Gordievsky quando ele foi avistado
a entrar na sex shop para comprar revistas pornográficas
homossexuais. Um agente dos serviços secretos russos
casado com predileção por pornografia homossexual é
vulnerável, é um homem com segredos que pode ser
chantageado. O serviço de segurança dinamarquês
registou aquela interessante informação com todo o
cuidado e transmitiu-a a aliados selecionados. Pela
primeira vez nos registos das agências de serviços
secretos ocidentais apareceu um ponto de interrogação ao
lado do nome de Gordievsky. 
Oleg Gordievsky estava a tornar-se um funcionário do
KGB muito eficiente. Lyubimov escreveu: «Destacava-se
incontestavelmente entre os colegas em resultado da sua
excelente educação, sede de conhecimento, amor pela
leitura e, a exemplo de Lenine, visitas a bibliotecas
públicas.» 
A única nuvem que pairava no seu horizonte era o
casamento, que parecia estar a murchar tão depressa
quanto a sua vida cultural interior florescia. Uma relação
iniciada com pouco calor foi-se tornando cada vez mais
gélida. Gordievsky queria ter filhos; Yelena não queria, e
era categórica a esse respeito. Estando há um ano em
Copenhaga, a mulher confessou-lhe que antes de saírem
de Moscovo tinha abortado sem o consultar. Ele sentiu-se
enganado e furioso. Gordievsky tinha uma energia
inesgotável e sentia que a sua jovem mulher era
estranhamente passiva e indiferente às novas paisagens e
aos sons que os rodeavam. Começou a sentir que o
casamento era «mais de convenção que de amor» e o
«sentimento de vazio» não parava de aumentar.
Gordievsky descrevia a sua atitude para com as mulheres
como «respeitosa». Na realidade, como muitos homens
soviéticos, ele tinha ideias antiquadas sobre o matrimónio
e esperava que a mulher cozinhasse e limpasse sem se
queixar. Yelena era uma excelente tradutora do KGB e
insistia que havia «coisas melhores para as mulheres
fazerem do que trabalhos domésticos». Oleg podia estar
aberto a muitas das novas influências da sociedade
ocidental, mas estabelecia o limite quando chegava à
libertação da mulher; aquilo a que chamava as
«tendências antidomésticas» de Yelena tornou-se uma
fonte de frustração cada vez maior. Fez um curso de
culinária, convencido de que envergonharia a mulher e a
levaria a cozinhar com mais frequência, mas ela não
reparou ou não se importou. As suas respostas irónicas,
que em tempos achara espirituosas, agora só o irritavam.
Quando sentia que tinha razão, Gordievsky podia ser
obstinado e inflexível. Para reduzir a frustração, corria
sozinho durante horas todos os dias nos parques de
Copenhaga e voltava para casa demasiado exausto para
discutir. 
Enquanto apareciam fissuras no casamento, estavam a
acontecer perturbações sísmicas no Bloco de Leste. 
Em janeiro de 1968, Alexander Dubcěk, o primeiro-
secretário reformista do Partido Comunista Checoslovaco,
começou a liberalizar o país e a libertar-se do jugo
soviético reduzindo os controlos nas viagens, na liberdade
de expressão e na censura. O «socialismo com um rosto
humano» de Dubcěk prometia limitar o poder da polícia
secreta, melhorar as relações com o Ocidente e, por fim,
realizar eleições livres.  
Gordievsky observava estes acontecimentos com um
entusiasmo crescente. Se a Checoslováquia conseguisse
libertar-se do jugo de Moscovo, outros satélites soviéticos
poderiam seguir-lhe o exemplo. Na rezidentura do KGB em
Copenhaga, a opinião estava muito dividida em relação à
importância das reformas checas. Alguns alegavam que
Moscovo interviria militarmente, como fizera na Hungria
em 1956. Mas outros, incluindo Gordievsky e Lyubimov,
tinham a certeza de que a revolução checa seria bem-
sucedida. «O Oleg e eu tínhamos a certeza de que os
tanques soviéticos não entrariam em Praga», escreveu
Lyubimov. «Apostámos uma caixa inteira de cerveja
Tuborg.» Até Yelena, habitualmente tão indiferente à
política, parecia galvanizada com o que estava a
acontecer. «Víamos a Checoslováquia como a nossa
esperança de um futuro liberal», escreveu Gordievsky.
«Não apenas para aquele país, mas também para o
nosso.» 
No Centro, em Moscovo, o KGB considerou que a
experiência reformista checa constituía uma ameaça
existencial para o comunismo, com o potencial de
desestabilizar o equilíbrio da Guerra Fria contra Moscovo.
Tropas soviéticas começaram a reunir-se na fronteira
checa. O KGB não esperou pelo sinal do Kremlin e
começou a combater a «contrarrevolução» checa com um
pequeno exército de espiões. Entre eles estava Vasili
Gordievsky. 
Enquanto um irmão observava com um entusiasmo
crescente o desabrochar da Primavera de Praga, o outro foi
mandado cortá-la pela raiz. 
No início de 1968, mais de 30 ilegais entraram
clandestinamente na Checoslováquia, com ordens do
diretor do KGB, Yuri Andropov, para sabotarem o
movimento de reforma checo, infiltrarem-se nos círculos
intelectuais «reacionários» e raptarem proeminentes
apoiantes da Primavera de Praga. Na grande maioria,
esses agentes viajavam disfarçados de turistas ocidentais,
já que se pensava que os «agitadores» checos revelariam
com maior facilidade os seus planos a estrangeiros
aparentemente solidários. Entre os alvos estavam
intelectuais, académicos, jornalistas, estudantes e
escritores, incluindo Milan Kundera e Václav Havel. Foi a
maior operação de espionagem do KGB até à data contra
um aliado do Pacto de Varsóvia. 
Vasili Gordievsky viajou com um passaporte falso da
Alemanha Ocidental, com o nome de Gromov. O irmão
Gordievsky mais velho já tinha demonstrado o seu fervor
como sequestrador do KGB. Yevgeni Ushakov operava há
muitos anos como ilegal na Suécia, mapeando o país e
estabelecendo uma rede de subagentes em antecipação
de uma possível invasão soviética. Porém, em 1968, o
Centro concluiu que este espião, que tinha o nome de
código FAUST, desenvolvera uma mania da perseguição e
teria de ser afastado. Em abril de 1968, Vasili Gordievsky
drogou Ushakov e exfiltrou-o com sucesso para Moscovo
através da Finlândia, onde ele seria internado num hospital
psiquiátrico antes de ter alta e ser despedido do KGB.
Vasili recebeu uma medalha do KGB por «serviço
impecável». 
No mês seguinte, ele e um colega do KGB iniciaram uma
tentativa de rapto de duas das principais figuras
emigradas do movimento reformista checo: Václav Cěrný e
Jan Procházka. Um eminente historiador literário, o
professor Cěrný tinha sido despedido da Universidade
Carolina de Praga pelo regime comunista por se manifestar
em defesa da liberdade académica. Procházka, um escritor
e produtor de cinema, tinha denunciado publicamente a
censura oficial e exigia «liberdade de expressão». Ambos
viviam na Alemanha Ocidental. O KGB estava convencido
(erradamente) de que os dois homens dirigiam um grupo
«ilegal anti-Estado» que se dedicava a «subverter as bases
do socialismo na Checoslováquia» e teriam, por
conseguinte, de ser eliminados. O plano era simples: Vasili
Gordievsky tornar-se-ia amigo de Cěrný e Procházka,
convencê-los-ia de que estavam em perigo iminente de ser
mortos por assassinos contratados soviéticos e oferecer-
lhes-ia um «esconderijo temporário». Se eles se
recusassem a ir de forma voluntária, seriam obrigados com
«substâncias especiais» e depois seriam entregues a
operacionais do departamento de Ações Especiais do KGB
e levados para o outro lado da fronteira, para a Alemanha
Oriental, no porta-bagagem de um carro com placas de
matrícula diplomáticas – graças à convenção diplomática,
esses veículos não costumavam ser sujeitos a revista. O
plano não resultou. Apesar da insistência de Gordievsky,
Cěrný recusou-se a acreditar «que corria maior perigo do
que era habitual»; Procházka fazia-se acompanhar por um
guarda-costas e só falava checo, que Gordievsky não
compreendia. Depois de passar duas semanas a tentar,
sem sucesso, persuadir os dissidentes checos a
acompanharem-no, Gordievsky abortou o sequestro.  
Vasili Gordievsky, também conhecido por Gromov,
atravessou então a fronteira para a Checoslováquia e
juntou-se ao pequeno e extremamente qualificado bando
de ilegais e sabotadores soviéticos que se faziam passar
por turistas. A sua tarefa era organizar uma série de
«operações de provocação» destinadas a transmitir a falsa
impressão de que a Checoslováquia estava prestes a
irromper em violenta contrarrevolução. Os espiões russos
espalharam provas falsas que sugeriam que os checos
«conservadores», apoiados pelas agências de serviços
secretos acidentais, planeavam um violento golpe de
estado. Forjaram incendiários cartazes a apelar ao derrube
do comunismo e plantaram depósitos secretos de armas,
embrulhadas em embalagens convenientemente
carimbadas com a frase «Fabricado nos EUA», que seriam
mais tarde «descobertas» e denunciadas como prova de
uma insurreição iminente. As autoridades soviéticas até
alegaram que tinham descoberto um «plano americano
secreto» para derrubar o governo comunista e colocar um
pau-mandado imperialista no poder. 
O irmão Gordievsky mais velho esteve na linha da frente
dos esforços do KGB para caluniar e destruir a Primavera
de Praga; como o pai, nunca pôs em causa a retidão do
que estava a fazer. 
Oleg não fazia ideia de que o irmão se encontrava na
Checoslováquia, e muito menos das manipulações em que
estava envolvido. Os irmãos nunca discutiram o assunto,
não naquela altura nem sequer mais tarde. Vasili guardava
os seus segredos, e Oleg escondia cada vez mais os dele.
À medida que a primavera deu lugar ao verão, e a marcha
para uma nova Checoslováquia foi ganhando velocidade,
Gordievsky insistia que Moscovo nunca interviria
militarmente. «Eles não podem invadir», dizia. «Não se
atreverão.» 
Na noite de 20 de agosto de 1968, 2000 tanques e mais
de 200 mil soldados, sobretudo soviéticos, mas com
contingentes de outros países do Pacto de Varsóvia,
atravessaram a fronteira checoslovaca. Não havia como
opor-se ao pesado jugo soviético, e Dubcěk pediu ao seu
povo para não resistir. Pela manhã, a Checoslováquia era
um país ocupado. A União Soviética demonstrara sem
margem para dúvida a «doutrina de Brezhnev»: qualquer
país do Pacto de Varsóvia que tentasse renunciar ou
reformar o comunismo ortodoxo seria trazido de volta para
o rebanho pela força. A Primavera de Praga tinha chegado
ao fim, e começou um novo inverno soviético. 
Oleg Gordievsky estava horrorizado e revoltado. Quando
um grupo de irados manifestantes dinamarqueses se
reuniu à porta da embaixada soviética em Copenhaga para
denunciar a invasão, Oleg sentiu uma profunda vergonha.
Testemunhar a construção do Muro de Berlim fora muito
chocante, mas a invasão da Checoslováquia constituiu
uma prova ainda mais flagrante da verdadeira natureza do
regime que servia. A alienação do sistema comunista
transformou-se muito depressa em repugnância: «Esse
ataque brutal a pessoas inocentes fez-me odiar o regime
com um ódio intenso e ardente.» 
Gordievsky ligou para Yelena, que estava em casa, por
um telefone que existia a um canto na entrada da
embaixada e, não se coibindo de adornar o discurso com
uma série de interjeições, amaldiçoou a União Soviética
por esmagar a Primavera de Praga. «Eles fizeram-no. É
inacreditável.» Estava quase a chorar. «Doía-me a alma»,
recordaria mais tarde, mas a sua mente estava lúcida. 
Gordievsky queria transmitir uma mensagem. Sabia que
o telefone da embaixada era escutado pelo serviço de
segurança dinamarquês. O PET também tinha uma escuta
no telefone da sua casa. Os serviços secretos
dinamarqueses ouviriam com toda a certeza esta conversa
meio subversiva com a mulher e anotariam que o «Tio
Gormsson» não era a roda da engrenagem do KGB que
parecia ser. O telefonema não foi propriamente uma
aproximação ao outro lado. Foi um sinal, um emotivo
contacto de raspão, uma tentativa de fazer os
dinamarqueses e os aliados dos serviços secretos
ocidentais perceberem quais eram os seus sentimentos.
Mais tarde escreveria que foi um «primeiro sinal deliberado
para o Ocidente». 
O Ocidente não deu por ele. Gordievsky estendeu a mão
e ninguém reparou. Este pequeno mas importante gesto
passou despercebido no meio da torrente de material
intercetado e processado pelo serviço de segurança
dinamarquês. 
À medida que as notícias da Checoslováquia iam
chegando, os pensamentos de Gordievsky voltaram-se
para Stanislaw Kaplan, o seu frontal amigo dos tempos da
universidade. O que teria sentido Standa quando os
tanques soviéticos entraram no seu país? 
Kaplan estava indignado. Depois de sair da Rússia, tinha
trabalhado no Ministério do Interior em Praga antes de
ingressar no serviço estatal de informações, o StB. Com as
suas simpatias dissidentes cuidadosamente escondidas,
Kaplan assistiu aos acontecimentos de 1968 com uma
sombria consternação, mas não disse nada. O
esmagamento da Primavera de Praga provocou uma vaga
de emigração em massa e cerca de 300 mil pessoas
fugiram da Checoslováquia a seguir à invasão soviética.
Kaplan começou a colecionar segredos e preparou-se para
se juntar a elas. 
A comissão de serviço de Gordievsky na Dinamarca
aproximava-se do fim quando chegou um telegrama de
Moscovo: «Pare com a atividade operacional. Fique para
fazer análises, mas mais nenhuma operação.» O Centro
chegara à conclusão de que os dinamarqueses estavam a
evidenciar um nível pouco saudável de interesse no
camarada Gordievsky e talvez tivessem percebido que ele
era um agente do KGB. As conversas intercetadas
mostravam que, desde a sua chegada, ele fora seguido,
em média, dia sim, dia não – mais do que qualquer outro
funcionário da embaixada soviética. Moscovo não queria
um incidente diplomático, por isso Oleg passou os últimos
meses em Copenhaga a fazer investigação para um
manual do KGB sobre a Dinamarca. 
A carreira e a consciência de Gordievsky estavam numa
encruzilhada. Fervilhava de raiva pelos acontecimentos na
Checoslováquia, mas estes sentimentos ainda não tinham
consistência suficiente para o levar a tomar uma decisão.
Abandonar o KGB era impensável (e, provavelmente,
impossível), mas ele perguntou a si mesmo se poderia
deixar a gestão de ilegais e juntar-se a Lyubimov no
departamento de informações políticas, um trabalho que
lhe parecia mais interessante e menos sórdido. 
Gordievsky marcava passo, a nível profissional e pessoal:
desempenhava os seus deveres consulares, discutia com
Yelena, alimentava uma antipatia secreta pelo comunismo
e empanturrava-se de cultura ocidental. Numa festa na
casa de um diplomata alemão ocidental começou a
conversar com um jovem dinamarquês excecionalmente
amistoso que estava bastante embriagado. O dinamarquês
parecia saber muito acerca de música clássica e sugeriu
que fossem a um bar. Gordievsky recusou educadamente,
explicando que tinha de ir para casa. 
O jovem era um agente dos serviços secretos
dinamarqueses. A conversa tinha sido a jogada inicial de
uma tentativa de armadilha homossexual. Incentivados
pelo aparente gosto de Oleg por pornografia homossexual,
os dinamarqueses tinham montado uma armadilha de
sedução, uma das técnicas mais antigas, mais sórdidas e
mais eficazes da espionagem. O PET nunca percebeu
muito bem porque é que aquela abordagem falhou. O
agente altamente qualificado do KGB teria detetado a
tentativa de sedução? Ou talvez o «petisco» usado na
armadilha não fosse do seu agrado? A verdadeira
explicação era mais simples. Gordievsky não era
homossexual. Não se tinha apercebido de que estava a ser
engatado. 
Fora da ficção, a espionagem raramente corre de acordo
com o que está planeado. Na sequência da Primavera de
Praga, Gordievsky enviou uma mensagem velada aos
serviços secretos ocidentais que não foi detetada. O
serviço de informações dinamarquês tentou armar-lhe uma
cilada, com base numa falsa premissa, e falhou
redondamente. Ambos os lados fizeram a sua abordagem e
nenhuma fora bem-sucedida. E agora Gordievsky ia para
casa. 
A União Soviética que encontrou ao regressar em janeiro
de 1970, três anos depois, estava ainda mais repressiva,
paranoica e lúgubre. A ortodoxia comunista da era
Brezhnev pareceu absorver toda a cor e a imaginação.
Gordievsky sentiu repulsa pela pátria: «Tudo parecia muito
andrajoso.» As filas, a fuligem, a sufocante burocracia, o
medo e a corrupção contrastavam sombriamente com o
mundo luminoso e magnânimo que ele deixara na
Dinamarca. A propaganda era ubíqua, os funcionários
alternavam entre o servilismo e a grosseria, e todos
espiavam todos; a cidade tresandava a couve cozida e
esgotos entupidos. Nada funcionava bem. Ninguém sorria.
O contacto mais casual com desconhecidos era alvo de
desconfiança imediata. Mas era a música que lhe corroía a
alma, a interferência patriótica a fazer-se ouvir em todos
os altifalantes de todas as esquinas, escrita de acordo com
fórmulas comunistas, insípidas, tonitruantes e
incontornáveis; o som de Estaline. Gordievsky sentia-se
sob o ataque diário do que ele chamava uma «cacofonia
totalitária». 
Voltou para o seu posto na Divisão S e Yelena arranjou
um emprego na Décima Segunda Divisão do KGB, a secção
responsável pela escuta e vigilância de diplomatas
estrangeiros. Foi colocada no departamento que escutava
as embaixadas e o pessoal diplomático da Escandinávia e
promovida a tenente. O casamento era agora pouco mais
do que uma «relação de trabalho», embora eles nunca
falassem sobre o efetivo trabalho, nem discutissem grande
coisa no deprimente apartamento que partilhavam na zona
leste de Moscovo. 
Os dois anos seguintes foram, nas palavras de Oleg, «um
tempo intermédio e inconsequente». Apesar de ter sido
promovido e ganhar melhor, o seu trabalho era pouco
diferente do que deixara três anos antes, a preparar
identidades para ilegais. Inscreveu-se para aprender
inglês, esperando que isso lhe desse a possibilidade de ser
colocado nos Estados Unidos, na Grã-Bretanha ou num dos
países da Commonwealth, mas disseram-lhe que não
adiantaria porque, aparentemente, os dinamarqueses
tinham-no identificado como agente do KGB, pelo que era
improvável que fosse mandado para um país ocidental.
Marrocos surgia como uma possibilidade. Começou a
aprender francês, mas sem grande entusiasmo. Preso na
cinzenta conformidade de Moscovo, Gordievsky sofria de
fortes sintomas de privação. Estava inquieto, ressentido,
cada vez mais solitário e sentia-se preso. 
Na primavera de 1970, um jovem agente dos serviços
secretos britânicos encontrava-se a folhear um «dossiê
pessoal» que chegara pouco antes do Canadá. Geoffrey
Guscott era magro, usava óculos, falava várias línguas e
era extremamente inteligente e persistente. Mais ao estilo
de George Smiley que de James Bond, já tinha a aparência
de um avuncular professor universitário. No entanto, as
aparências não podiam ser mais enganadoras. Segundo
um colega, Guscott «terá, provavelmente, infligido mais
danos aos serviços secretos soviéticos do que qualquer
outra pessoa na história». 
Criado no sudeste de Londres, filho de um tipógrafo que
abandonou a escola aos 14 anos, Guscott era oriundo de
um meio social operário que o distinguia da maioria dos
agentes do MI6. Foi-lhe atribuída uma bolsa de estudo para
o Dulwich College e, mais tarde, uma vaga em Cambridge
para estudar russo e checo. Quando se licenciou, em 1961,
recebeu uma misteriosa carta com um convite para uma
reunião em Londres. Ali, conheceu um alegre veterano dos
serviços secretos britânicos que lhe contou as suas
experiências enquanto espião durante a guerra em Viena e
Madrid. «Eu tinha vontade de viajar, e aquilo pareceu-me
exatamente o que queria fazer», recordou Guscott. Aos 24
anos foi recrutado pela agência britânica de serviços
secretos internacionais, conhecida como Secret
Intelligence Service, ou SIS, mas que toda a gente
conhecia como MI6. 
Em 1965, Guscott foi colocado na Checoslováquia, no
momento em que a onda de reforma começava a crescer.
Durante três anos, controlou um espião com o nome de
código FREED, um funcionário dos serviços secretos
checos, e na altura da Primavera de Praga, em 1968,
estava em Londres e era responsável pelo recrutamento de
agentes checos, dentro e fora da Checoslováquia. A
invasão soviética pôs a secção checa em marcha
acelerada. «Tínhamos de aproveitar todas as
oportunidades que surgissem.» 
O dossiê que estava na secretária de Guscott, com o
nome de código DANICEK, dizia respeito à deserção de um
funcionário subalterno do serviço de informações checo
chamado Stanislaw Kaplan. 
Kaplan tinha ido de férias para a Bulgária pouco depois
da Primavera de Praga. Desaparecera entretanto, antes de
reaparecer em França, onde desertou formalmente para o
serviço de informações francês. Kaplan explicou que queria
radicar-se no Canadá. O serviço de informações canadiano
tinha uma relação próxima com o MI6 e um funcionário foi
mandado de Londres para interrogar o desertor. Os
canadianos informaram a CIA a respeito da deserção de
Kaplan. Quando chegou à secretária de Guscott, o dossiê
DANICEK tinha vários centímetros de espessura. 
Kaplan foi descrito como inteligente e decidido, «um
corredor de corta-mato que gostava do sexo oposto».
Forneceu úteis pormenores sobre o funcionamento dos
serviços secretos checos e sobre os anos que estudara em
Moscovo. Era rotineiro pedir aos desertores que
identificassem algum conhecido com potencial interesse
para os serviços secretos ocidentais. O dossiê de Kaplan
continha cerca de uma centena de nomes, sobretudo
checoslovacos. No entanto, cinco das «personalidades» da
lista eram russas, e uma delas destacou-se. 
Kaplan descreveu a sua amizade com Oleg Gordievsky,
um colega corredor de longas distâncias destinado ao KGB
que evidenciava «claros sinais de desilusão política».
Durante o Degelo de Khrushchev, os dois amigos tinham
discutido as limitações do comunismo: «O Oleg era um
homem que não estava fechado, um pensador consciente
dos horrores do passado, uma pessoa não muito diferente
dele.» 
Guscott fez uma referência cruzada com o nome e
descobriu que um Oleg Gordievsky fora mandado para
Copenhaga em 1966 como funcionário consular. As
relações entre o PET e o MI6 eram muito boas. O dossiê
dos serviços secretos dinamarqueses sobre Gordievsky
indicava que ele era quase de certeza um agente do KGB,
que provavelmente dava apoio a ilegais. Não havia nada
que o denunciasse diretamente, mas ele escapara diversas
vezes à vigilância de uma forma que sugeria treino
profissional. Tinha estabelecido um contacto suspeito com
um polícia e com diversos padres. Uma escuta colocada no
apartamento onde vivia revelara que o seu casamento
passava por dificuldades. A sua visita a uma sex shop e a
compra de pornografia homossexual dera origem a uma
«tosca tentativa de chantagem», sem resultado.
Gordievsky regressara a Moscovo em janeiro de 1970 e
desaparecera na engrenagem do Centro, não se sabendo o
que fazia agora. 
Guscott escreveu no dossiê de Gordievsky que, se ele
voltasse a aparecer no Ocidente, poderia valer a pena
abordar aquele competente, esquivo e possivelmente
homossexual oficial do KGB que em tempos tivera ideias
liberais. Oleg foi «marcado» como uma «pessoa de
interesse» e recebeu o nome de código SUNBEAM. 
Entretanto, a Grã-Bretanha tinha espiões do KGB para
combater mais perto de casa. 
No dia 24 de setembro de 1971, o Governo britânico
expulsou 105 funcionários dos serviços secretos soviéticos,
a maior expulsão de espiões da história. A evicção em
massa, que recebeu o nome Operação FOOT, estava a ser
preparada há algum tempo. Tal como os dinamarqueses,
os britânicos monitorizavam de perto diplomatas,
jornalistas e representantes de comércio soviéticos
acreditados, e tinham uma ideia clara dos que eram
autênticos e dos que eram espiões. O KGB era cada vez
mais descarado na sua espionagem, e o MI5, o serviço de
segurança britânico, estava ansioso por ripostar. O
estímulo foi a deserção de Oleg Lyalin, um funcionário do
KGB que se fazia passar por representante da indústria de
têxteis soviética. Em vez de vender camisolas comunistas,
Lyalin era o representante principal do Décimo Terceiro
Departamento do KGB, a secção de sabotagem
responsável pela elaboração dos planos de contingência
em caso de guerra com o Ocidente. O MI5 atribuiu-lhe o
nome de código GOLDFINCH12, mas ele «cantou como um
canário»: entre os segredos que revelou estavam planos
para inundar a rede do metropolitano de Londres, para
assassinar eminentes figuras da vida pública britânica e
para desembarcar uma equipa de sabotagem na costa do
Yorkshire. Estas revelações foram o pretexto que o MI5
esperava. Todos os espiões conhecidos foram expulsos e
uma das maiores estações do KGB no mundo ficou
reduzida, de um dia para o outro, a nada. O KGB passaria
as duas décadas seguintes a tentar devolver à rezidentura
a sua anterior força. 
A Operação FOOT apanhou Moscovo completamente de
surpresa e causou consternação no Primeiro Diretório
Principal. Com sede no distrito de Yasenevo, próximo da via
de cintura externa de Moscovo, o departamento
responsável pelas informações internacionais tivera uma
rápida expansão durante o período de Brezhnev, passando
de 3000 funcionários na década de 1960 para mais de 10
mil. A expulsão em massa foi considerada um enorme
fiasco. O chefe do departamento responsável pela Grã-
Bretanha e a Escandinávia foi despedido (por motivos
históricos, as duas regiões estavam agrupadas na
estrutura departamental do KGB, juntamente com a
Austrália e a Nova Zelândia) e substituído por Dmitri
Yakushin. 
Conhecido como o «Cardeal Cinzento», Yakushin era
aristocrata por nascimento, mas bolchevique por
convicção, um fervoroso comunista com a aparência de um
nobre e uma voz que mais parecia um martelo
pneumático. Tinha combatido num regimento de tanques
durante a guerra, especializara-se em criação de suínos no
Ministério da Agricultura soviético e em seguida fora
transferido para o KGB, chegando a vice-diretor do
departamento americano. Ao contrário da maioria dos
oficiais de alta patente do KGB, era um homem culto que
colecionava livros raros e dizia tudo o que pensava, muito
alto. O primeiro contacto de Gordievsky com o «Cardeal
Cinzento» foi muitíssimo alarmante. 
Uma noite, enquanto ouvia em segredo a BBC World
Service, Gordievsky soube que a Dinamarca, num efeito
indireto da Operação FOOT, expulsara três dos seus
antigos colegas, funcionários do KGB que trabalhavam sob
disfarce diplomático. Na manhã seguinte, mencionou a
notícia a um amigo da secção dinamarquesa. Passados
cinco minutos, o seu telefone tocou e um ensurdecedor
grito ecoou na linha: «Camarada Gordievsky, se insistir em
espalhar boatos no KGB a respeito de alegadas expulsões
na Dinamarca, será CASTIGADO!» Era Yakushin. 
Oleg temeu ser despedido. Em vez disso, alguns dias
mais tarde, depois de a notícia da BBC ser confirmada, o
Cardeal Cinzento convocou-o ao seu gabinete e foi direto
ao assunto, em altos berros. «Preciso de alguém em
Copenhaga. Temos de reconstruir a nossa equipa lá. O
camarada fala dinamarquês... o que lhe parece trabalhar
no meu departamento?» Gordievsky gaguejou que nada
lhe agradaria mais. «Deixe isso comigo», berrou Yakushin. 
Porém, o chefe da Divisão S recusou-se a dispensá-lo,
com a típica mesquinhez de um superior determinado a
manter um subalterno só porque outro superior tentou
roubá-lo. 
Para frustração de Oleg, o assunto foi esquecido até
Vasili Gordievsky, o irmão que o tinha levado para o KGB,
ajudar a acelerar a sua promoção recorrendo ao radical
expediente de morrer. 
Há anos que Vasili abusava da bebida. No Sudeste da
Ásia, contraiu hepatite e foi aconselhado pelos médicos a
nunca mais tocar numa gota de álcool. Todavia, não lhes
deu ouvidos e bebeu até morrer, aos 39 anos. Teve direito
a um funeral com honras militares, e enquanto três oficiais
do KGB disparavam armas automáticas numa saudação e
o caixão com a bandeira era descido para o chão do
crematório de Moscovo, Gordievsky refletiu que sabia
muito pouco acerca do homem a quem chamava «Vasilko».
A mãe e a irmã, que estavam agarradas uma à outra,
tristes e espantadas com a afluência de dignitários do KGB,
sabiam ainda menos. Anton usava o seu uniforme do KGB
e disse a toda a gente que estava orgulhoso do serviço que
o filho prestara à pátria. 
Oleg tinha algum medo do seu misterioso irmão mais
velho e continuava a desconhecer as atividades ilegais de
Vasili na Checoslováquia. Aparentemente, os irmãos
pareciam próximos, mas na realidade tinham estado
separados por um vasto mar de secretismo. Vasili morreu
como um herói condecorado do KGB, e a importância de
Oleg subiu em resultado disso, proporcionando um
pequeno «estímulo moral» aos seus esforços para sair da
Divisão S e ser colocado no departamento britânico-
escandinavo de Yakushin. «Agora que o meu irmão tinha
morrido em resultado do trabalho na Divisão S, seria difícil
o chefe recusar o meu pedido.» A secção de ilegais deixou-
o ir com extrema relutância. Os soviéticos pediram um
visto dinamarquês, declarando que Gordievsky voltaria
para Copenhaga como segundo-secretário da embaixada
soviética; na realidade, trabalhava agora na divisão de
informações políticas do Primeiro Diretório Principal do KGB
– o cargo anteriormente ocupado por Mikhail Lyubimov. 
Os dinamarqueses poderiam ter recusado o visto, uma
vez que Oleg era suspeito de pertencer ao KGB. No
entanto, decidiram autorizá-lo a regressar e passaram a
vigiá-lo de perto. Londres foi informada. 
A questão da sua sexualidade foi levantada de novo.
Aparentemente, Gordievsky não comunicara a abordagem
homossexual que lhe fora feita dois anos antes. O MI6
conjeturou que, se o tivesse feito, era provável que não
fosse mandado uma segunda vez para o estrangeiro,
porque, no pensamento distorcido do KGB, qualquer
funcionário visado pelos serviços de informações
ocidentais era imediatamente suspeito. O MI6 presumiu
que Oleg decidira esconder a tentativa de sedução, mas a
verdade é que ele nem sequer percebera. «Presumimos
que não tinha dito nada», escreveu um funcionário. Se
Gordievsky estivesse a esconder um segredo dos chefes, e
se Standa Kaplan tivesse razão a respeito das suas
inclinações políticas, talvez valesse a pena abordar mais
uma vez o russo. 
O MI6 e o PET prepararam uma receção de boas-vindas. 

11 Personagem ficcional recorrente nas histórias de P. G. Wodehouse. (N. da T.)

12 «Pintassilgo». (N. da T.)


3. SUNBEAM 

Richard Bromhead era o «nosso homem» em Copenhaga


e não se importava muito que fosse do domínio público. 
O chefe da estação do MI6 na Dinamarca era um inglês
antiquado e educado em colégios particulares, um tipo
alegre e jovial que se referia às pessoas de quem gostava
como «uns queridos» e dizia de quem não gostava que
eram «uns merdas». Bromhead descendia de poetas e
aventureiros, pertencia a uma linhagem, mas a família não
tinha um tostão. Frequentou o Marlborough College e
depois cumpriu o serviço militar na Alemanha, onde foi
responsável por 250 prisioneiros alemães num antigo
campo de prisioneiros de guerra dirigido pelos britânicos.
(«O Kommandant era um remador olímpico. Um tipo
encantador. Divertimo-nos imenso.») Foi para a
Universidade de Cambridge, estudou russo e afirmava ter
esquecido todo o vocabulário adquirido no momento em
que terminou o curso. Depois de ser recusado para o
Ministério dos Negócios Estrangeiros e não conseguir um
emprego numa padaria, decidiu tornar-se artista e vivia
com dificuldades num decrépito apartamento em Londres
a desenhar quadros do Albert Memorial quando um amigo
lhe sugeriu que se candidatasse a um emprego no
Ministério das Colónias. («Eles queriam que eu fosse para
Nicósia. Eu disse: “Fantástico. Onde é que isso fica?”») No
Chipre, exerceria as funções de secretário particular do
governador, Hugh Foot. («Foi muito divertido. Havia um
funcionário do MI6 a viver no jardim, um tipo encantador
que me recrutou.») Empossado na «Firma», esteve
infiltrado nas Nações Unidas, em Genebra e depois em
Atenas («O sítio explodiu logo numa revolução. Ah, ah.»)
Por fim, em 1970, aos 42 anos, foi nomeado agente
principal do MI6 em Copenhaga. («Eu devia ir para o
Iraque. Não sei muito bem o que aconteceu.») 
Alto, atraente e imaculadamente bem vestido, sempre
pronto para uma piada e para mais uma bebida, Bromhead
depressa se tornaria uma figura conhecida no circuito de
festas diplomáticas de Copenhaga. Referia-se ao seu
trabalho clandestino como «uma brincadeira». 
Richard Bromhead era um daqueles ingleses que se
esforçam para parecerem muito mais estúpidos do que são
na realidade. Foi um formidável agente dos serviços
secretos. 
Desde o dia em que chegou a Copenhaga, Bromhead
tornou a vida dos seus adversários soviéticos num inferno.
Neste projeto, trabalhou em conjunto com o vice-diretor do
PET, um jovial advogado chamado Jørn Bruun que
«adorava massacrar ativamente diplomatas e outros
funcionários do Bloco – especialmente os russos –, de
formas que não custavam quase nada e eram
praticamente indetetáveis». Para ajudar no que Bromhead
chamava as suas «operações arreliadoras», Bruun cedeu-
lhe dois dos seus melhores agentes, Jens Eriksen e Winter
Clausen. «O Jens era baixo e tinha um comprido bigode
louro. O Winter era enorme, aproximadamente do tamanho
de uma porta grande. Eu chamava-lhes Astérix e Obélix.
Demo-nos maravilhosamente bem.» 
Um dos alvos escolhidos foi um conhecido agente do KGB
chamado Bratsov. Sempre que o homem era visto a entrar
num determinado grande armazém em Copenhaga,
Clausen requisitava o sistema de som e anunciava: «Pede-
se ao senhor Bratsov da KGB Limitada o favor de se dirigir
ao balcão de informações.» Ao terceiro anúncio, o KGB
mandou Bratsov para Moscovo. Outra vítima foi um ativo
jovem funcionário da estação do KGB que tentou recrutar
um deputado dinamarquês, que se apressou a alertar o
PET. «O tal deputado vivia numa cidade a duas horas de
carro de Copenhaga, mas telefonava para o russo e dizia:
“Venha cá imediatamente, tenho uma coisa muitíssimo
importante para lhe dizer.” O russo fazia a viagem até à
casa do deputado, que o enchia de vodca e lhe dizia
muitas coisas disparatadas. Ele voltava para Copenhaga,
muito tocado, elaborava um longo relatório para o KGB e,
por fim, deitava-se às seis da manhã. Depois, o deputado
telefonava-lhe às nove da manhã e dizia: “Venha cá
imediatamente, tenho uma coisa de extrema importância
para lhe dizer.” Os russos acabaram por ter um ataque de
nervos e desistir. Ah, ah. Os dinamarqueses eram
fantásticos.» 
O visto de Gordievsky foi aprovado. Bromhead recebeu
instruções do MI6 para se aproximar do recém-chegado e,
quando o momento lhe parecesse certo, sondá-lo. O PET
seria mantido informado dos desenvolvimentos, mas
decidiram que o caso ficaria a cargo do MI6 na Dinamarca. 
Oleg e Yelena Gordievsky voltaram para Copenhaga no
dia 11 de outubro de 1972 e foi como se estivessem a
regressar a casa. O enorme agente infiltrado que tinha a
alcunha de Obélix seguiu-os discretamente quando eles
aterraram no aeroporto. 
No seu novo papel de agente de informações políticas,
Gordievsky deixaria de controlar os ilegais. A sua nova
missão era recolher ativamente informações secretas e
tentar subverter as instituições ocidentais. Na prática, isto
implicava procurar, desenvolver relações, recrutar e
controlar espiões, contactos e informadores. Podiam ser
funcionários governamentais, políticos eleitos,
sindicalistas, diplomatas, empresários, jornalistas ou
qualquer outra pessoa com acesso privilegiado a
informações de interesse para a União Soviética.
Idealmente, até podiam trabalhar nos serviços secretos
dinamarqueses. Como acontecia noutros países ocidentais,
alguns dinamarqueses eram comunistas convictos,
preparados para receber ordens de Moscovo; outros
podiam estar dispostos a trocar segredos por dinheiro (a
massa que lubrifica as rodas de tanta espionagem), ou ser
suscetíveis a outras formas de persuasão, coerção ou
estímulo. Além disso, esperava-se que os funcionários da
Linha PR implementassem «medidas ativas» para
influenciar a opinião pública, semear desinformação onde
fosse necessário, incentivar formadores de opinião
simpatizantes de Moscovo e plantar artigos na imprensa
que pintavam a União Soviética a uma luz positiva (e
muitas vezes falsa). Há muito que o KGB dominava a arte
de fabricar «notícias falsas». De acordo com o seu sistema
de categorização, os contactos estrangeiros eram
classificados por ordem de importância: no topo estava o
«agente», alguém que trabalhava de forma consciente
para o KGB, regra geral por motivos ideológicos ou
financeiros; a seguir vinha o «contacto confidencial», uma
pessoa que era simpatizante da causa soviética e estava
disposta a ajudar na clandestinidade, mas que talvez não
soubesse que o simpático senhor da embaixada soviética
trabalhava para o KGB. Um nível abaixo estavam muitos
mais contactos abertos, pessoas que Gordievsky, que era
oficialmente segundo-secretário da embaixada, teria de
conhecer no decorrer do seu trabalho. Havia um vasto
fosso entre um contacto confidencial, que poderia ser
apenas acessível e solidário, e um espião preparado para
trair o seu país. Mas um podia transformar-se no outro. 
Gordievsky facilmente voltou a integrar-se na vida e na
cultura dinamarquesas. Mikhail Lyubimov regressara a
Moscovo para exercer um cargo no departamento
britânico-escandinavo, pelo que Gordievsky ocupou o seu
lugar. Esta nova forma de trabalho de espionagem era
empolgante, mas frustrante; os dinamarqueses por vezes
são demasiado simpáticos para serem espiões, demasiado
honestos para serem subversivos e demasiado educados
para dizerem que não. Todas as tentativas de recrutar um
dinamarquês chocavam contra uma impenetrável parede
de cortesia. Até os mais ardentes comunistas
dinamarqueses se mostravam relutantes perante a
perspetiva de traição. 
Porém, havia exceções. Gert Petersen, líder do Partido
Socialista do Povo e, mais tarde, deputado do Parlamento
Europeu, foi um desses casos. Petersen, que tinha o nome
de código ZEUS e estava categorizado pelo KGB como um
«contacto confidencial», passava informações militares
secretas extraídas da Comissão de Política Externa da
Dinamarca. Mostrava-se muito bem informado e estava
sequioso por colaborar. Gordievsky ficava surpreendido, e
muito impressionado, com a quantidade de cerveja e
schnapps que ele conseguia consumir às custas do KGB. 
O novo rezident em Copenhaga, Alfred Mogilevchik,
nomeou Gordievsky seu vice. «Tens inteligência, energia e
capacidade de lidar com pessoas», disse-lhe Mogilevchik.
«Além disso, conheces a Dinamarca e falas a língua. De
que mais preciso?» Gordievsky foi promovido a major. 
A nível profissional, Gordievsky subia sem dificuldade na
hierarquia do KGB, mas o seu íntimo estava num turbilhão.
Dois anos em Moscovo tinham exacerbado a sua alienação
do regime comunista e o regresso à Dinamarca
aprofundara a consternação que sentia com o filistinismo,
a corrupção e a hipocrisia da União Soviética. Começou a
ler sobre temas mais vastos, colecionando livros que nunca
seria autorizado a possuir na Rússia: as obras de Alexander
Soljenítsin, Vladimir Maximov e George Orwell, e histórias
ocidentais que denunciavam todo o horror do estalinismo.
Depois, soube que Kaplan tinha desertado para o Canadá.
O amigo fora julgado in absentia por um tribunal marcial
checoslovaco por revelar segredos de estado e condenado
a 12 anos de prisão. Gordievsky ficou chocado, mas
também se pôs a pensar se o Ocidente teria registado o
seu grito de protesto após a Primavera de Praga. Em caso
afirmativo, porque é que não havia resposta? E se alguma
agência de informações ocidental alguma vez tentasse
sondá-lo, aceitaria ou rejeitaria a proposta? Mais tarde,
Gordievsky afirmou que estava preparado e à espera de
um sinal por parte da oposição, mas a realidade era mais
complicada que a memória, como acontece quase
sempre. 
No circuito de festas diplomáticas, Gordievsky avistava
com frequência o mesmo inglês alto e afável. 
Richard Bromhead tinha duas fotografias de Gordievsky,
ambas fornecidas pelos dinamarqueses, uma tirada às
escondidas durante a comissão de serviço anterior e uma
recente, do pedido de visto. 
«O rosto que eu tinha estudado era austero, mas não
desagradável. Parecia experiente e duro, e eu não
conseguia perceber como, mesmo nas circunstâncias que
o relatório de Londres descrevera, alguém podia ter
pensado que ele era homossexual. E também não parecia
um homem fácil de abordar por uma agência de
informações ocidental, em nenhum sentido.» Como outras
pessoas do seu tempo e classe, Bromhead acreditava que
todos os homossexuais tinham maneirismos que
facilitavam a sua identificação. 
O primeiro contacto direto aconteceu na Câmara
Municipal de Copenhaga, o edifício de tijolo vermelho a
que chamavam Rådhus, na inauguração de uma exposição
de arte. Bromhead sabia que estaria presente uma
delegação soviética. Como era assíduo no «clube de
almoços diplomáticos», onde verdadeiros diplomatas e
espiões se misturavam, conhecia diversos funcionários
soviéticos. «Eu tinha uma relação bastante cordial com um
homenzinho horrível de Irkutsk, pobre tipo.» Bromhead
avistou o diminuto conhecido entre um grupo de
diplomatas soviéticos, onde também se encontrava
Gordievsky, e aproximou-se descontraidamente. «Sem
parecer muito interessado, consegui, enquanto os
cumprimentava, incluir o Oleg no cumprimento geral. Não
perguntei o seu nome e ele não me disse.» 
Os dois homens iniciaram uma hesitante conversa sobre
arte. «Quando o Oleg falou, a severidade desapareceu»,
escreveu Bromhead. «Ele tinha um sorriso fácil, com uma
faceta genuinamente divertida que faltava a muitos outros
funcionários do KGB. O recém-chegado agia de maneira
natural e parecia ter uma verdadeira alegria de viver.
Gostei dele.» 
Bromhead comunicou a Londres que o alvo tinha sido
contactado. O principal problema era a comunicação.
Bromhead esquecera quase todo o russo que aprendera,
falava um dinamarquês rudimentar e muito pouco alemão
– nestas circunstâncias, a linguagem que usava para dar
ordens aos prisioneiros de guerra alemães não seria muito
adequada. Gordievsky falava alemão e dinamarquês
fluentemente, mas não falava inglês. «Comunicámos a um
nível superficial», disse Bromhead. 
As embaixadas soviética, britânica e americana ficavam
perto umas das outras, num estranho triângulo
diplomático, separadas por um cemitério. Apesar da
frialdade da Guerra Fria, havia uma interação social
considerável entre os diplomatas soviéticos e ocidentais, e
durante as semanas seguintes Bromhead conseguiu ser
convidado para diversas festas onde Gordievsky
compareceu. «Cumprimentámo-nos com um aceno por
cima das cabeças dos outros convidados em algumas
receções diplomáticas.» 
Recrutar um funcionário de uma agência rival requeria
um complicado pas de deux. Uma abordagem demasiado
óbvia assustaria Gordievsky, mas um sinal demasiado
subtil passaria despercebido. O MI6 não sabia se Bromhead
teria a delicadeza necessária para este tipo de dança. «Ele
era muito sociável, mas parecia um touro numa loja de
porcelanas e era bastante conhecido na embaixada
soviética, onde tinha sido identificado como agente do
MI6.» De uma forma característica, Bromhead decidiu dar
uma festa e convidou Gordievsky e alguns outros
funcionários soviéticos. «O PET arranjou uma senhora que
jogava badminton. A ideia era que esta senhora e
Gordievsky tivessem um interesse comum.» Lene Køppen
estudava medicina dentária e seria campeã mundial de
badminton. Era uma mulher de uma grande beleza e não
fazia a menor ideia de que estava a ser usada como isco.
Segundo um dos funcionários do MI6 encarregados do
caso, a abordagem «não era necessariamente sexual».
Mas se Gordievsky fosse heterossexual e o badminton
levasse à cama, tanto melhor. Não levou. Gordievsky
tomou duas bebidas, teve uma breve e inconsequente
conversa com Køppen e saiu. Como Bromhead previra, o
russo estava a mostrar-se amistoso, mas inacessível, a
nível social, desportivo e sexual. 
De regresso a Londres, Geoffrey Guscott foi colocado no
departamento soviético e falou sobre o caso SUNBEAM
com Mike Stokes, um funcionário superior que fora o
responsável por Oleg Penkovsky, o espião soviético de
maior sucesso até à data. Penkovsky era coronel do GRU, o
equivalente militar do KGB. Durante dois anos, a partir do
início de 1960, foi gerido em conjunto pelo MI6 e pela CIA e
forneceu segredos científicos e militares aos seus
controladores em Moscovo, incluindo acerca da colocação
de mísseis soviéticos em Cuba – informações que
permitiram ao presidente John F. Kennedy sair vitorioso na
crise dos mísseis. Em outubro de 1962, Penkovsky foi
apanhado, detido e interrogado pelo KGB, e em maio de
1963 foi executado. Stokes era uma «presença física
enorme e inspiradora» e sabia muito sobre recrutamento e
gestão de espiões soviéticos. Juntos, Stokes e Guscott
elaboraram um ambicioso plano: um «teste de tornassol»
para avaliar as simpatias de Gordievsky.  
Na noite de 2 de novembro de 1973, Oleg e Yelena
tinham acabado de jantar (um momento sem alegria e
quase silencioso) quando se ouviu uma forte pancada na
porta do apartamento. Gordievsky abriu-a e deparou-se
com Standa Kaplan, o seu amigo checoslovaco da
universidade, a sorrir à porta.  
Gordievsky ficou espantado, e depois muito assustado. 
«Bozhe moi! (Meu Deus!) Standa! Que diabo fazes
aqui?» 
Os homens cumprimentaram-se e Gordievsky puxou
Kaplan para dentro, sabendo que, ao fazê-lo, o jogo estava
a mudar irrevogavelmente. Kaplan era um desertor. Se um
dos vizinhos o visse entrar no apartamento, bastaria para
fundamentar a suspeita. Depois, havia Yelena. Mesmo que
o seu casamento fosse forte, como leal funcionária do KGB
ela poderia sentir-se obrigada a comunicar o encontro do
marido com um conhecido traidor. 
Gordievsky serviu um uísque ao velho amigo e
apresentou-o a Yelena. Kaplan explicou que agora
trabalhava para uma companhia de seguros canadiana.
Viajara até Copenhaga para visitar uma namorada
dinamarquesa, vira o nome de Oleg na lista diplomática e
decidira procurá-lo. Kaplan parecia não ter mudado: o
mesmo rosto franco e modos confiantes. Porém, um leve
tremor na mão que segurava o copo de uísque traiu-o.
Gordievsky percebeu que ele estava a mentir. Kaplan tinha
sido enviado por uma agência de informações ocidental.
Era um teste, e um teste muito perigoso. Seria uma
resposta há muito esperada ao telefonema que ele fizera
cinco anos antes, após o esmagamento da Primavera de
Praga? Em caso afirmativo, para quem trabalhava Kaplan?
Para a CIA? Para o MI6? Para o PET? 
A conversa foi entrecortada e nervosa. Kaplan descreveu
como desertara da Checoslováquia e como chegara ao
Canadá através da França. Gordievsky balbuciou um
comentário cauteloso. Yelena parecia ansiosa. Passados
alguns minutos, Kaplan esvaziou o copo e levantou-se.
«Vejo que estou a incomodar. Combinemos amanhã um
almoço e poderemos conversar como deve ser.» Kaplan
sugeriu um pequeno restaurante no centro da cidade. 
Gordievsky fechou a porta e voltou-se para Yelena,
comentando que era muito estranho Kaplan aparecer de
surpresa. Ela não disse nada. «Que estranha coincidência
ele aparecer em Copenhaga», disse ele. Yelena tinha uma
expressão enigmática, mas muito apreensiva. 
Gordievsky chegou deliberadamente atrasado ao almoço,
certificando-se de que não estava a ser seguido. Quase
não tinha dormido. Kaplan esperava-o sentado a uma
mesa ao pé da janela. Parecia mais descontraído.
Conversaram sobre os velhos tempos. Sentado a uma
mesa de um café do outro lado da rua, um corpulento
turista lia um guia de viagem. Mike Stokes estava a vigiá-
los. 
A visita de Kaplan fora minuciosamente planeada e
ensaiada. «Precisávamos de um motivo plausível para o
Kaplan o contactar», disse Guscott. «Por outro lado,
queríamos que ele percebesse que estava a ser sondado.» 
As instruções de Kaplan eram para falar sobre a sua
deserção, as novas alegrias de viver no Ocidente e a
Primavera de Praga. E avaliar as reações de Gordievsky. 
Gordievsky sabia que estava a ser avaliado. Kaplan ia
recordando os dramáticos acontecimentos de 1968 na
Checoslováquia, e Oleg sentia os ombros tensos, mas
limitou-se a observar que a invasão tinha sido um choque.
«Tinha de ter um cuidado extremo. Estava a caminhar à
beira do abismo.» Quando Kaplan descreveu os
pormenores da sua deserção e a agradável nova vida no
Canadá, Gordievsky acenou de uma forma que pareceu
encorajadora sem ser óbvia. «Apesar de dar sinais
positivos, pensei que era essencial não perder o controlo
da situação.» Não fazia ideia de quem mandara Kaplan
testá-lo e não ia perguntar. 
No namoro é importante não evidenciar demasiada
ansiedade. Porém, a cautela de Gordievsky era mais do
que uma simples técnica de sedução. Embora tivesse
perguntado a si mesmo se alguma agência de informações
estrangeira o contactaria a seguir aos seus comentários
explosivos sobre os acontecimentos na Checoslováquia em
1968, não sabia bem se queria ser seduzido, ou quem
estava a cortejá-lo. 
No fim do almoço, os dois amigos despediram-se e
Standa Kaplan desapareceu no meio das muitas pessoas
que faziam compras. Nada definitivo fora dito. Não tinham
sido feitas declarações ou promessas. Mas uma fronteira
invisível fora atravessada. Gordievsky refletiu: «Eu sabia
que lhe fornecera o suficiente para que ele fizesse um
relatório positivo.» 
Stokes falou com Standa Kaplan num quarto de hotel em
Copenhaga e voltou para Londres a fim de transmitir os
resultados a Geoffrey Guscott: Gordievsky ficara
surpreendido com o aparecimento inesperado de Kaplan,
mas não horrorizado nem zangado; parecera interessado e
solidário e expressara incredulidade com a invasão da
Checoslováquia pelos soviéticos. E, mais importante, não
insinuara que ia comunicar ao KGB o inesperado encontro
com um traidor anticomunista condenado. «Foi fascinante.
Era o que queríamos ouvir. O Gordievsky estava a ser
claramente muito cauteloso, mas se não comunicasse a
visita, estaria a dar um importante primeiro passo.
Tínhamos de deixar claro, sem sermos demasiado óbvios,
que estávamos no mercado. Era preciso provocar um
encontro casual.» 
 
 
Richard Bromhead estava «completamente congelado».
Eram sete da manhã, nevara durante a noite e estavam
seis graus negativos. Um dia cinzento-aço tentava nascer
sobre Copenhaga. SUNBEAM13 pareceu-lhe um nome muito
pouco apropriado. Durante três manhãs consecutivas, «a
uma hora que não lembrava ao diabo», o homem do MI6
sentara-se no minúsculo carro da mulher, que não tinha
aquecimento, numa rua deserta ladeada de árvores, nos
subúrbios a norte, espreitando pelo para-brisas, tentando
ver através do nevoeiro, para um grande edifício de betão,
e preocupado com a possibilidade de sofrer queimaduras
devido ao frio. 
A vigilância dinamarquesa determinara que Oleg
Gordievsky jogava badminton todas as manhãs com uma
jovem chamada Anna, uma estudante que estava filiada
nos Jovens Comunistas dinamarqueses, num clube
desportivo suburbano. Bromhead vigiava o local, optando
por conduzir o discreto Austin azul da mulher em vez do
seu Ford com matrícula diplomática. Estacionava num
lugar de onde se avistava diretamente a porta do clube,
mas mantinha o motor desligado para que o fumo do
escape não chamasse a atenção. Nas duas primeiras
manhãs, «o Oleg e a rapariga saíram às sete e meia,
despediram-se com um aperto de mão e dirigiram-se para
os seus carros. Ela era jovem, tinha cabelo escuro cortado
curto, era atlética e magra, mas não especialmente bonita.
Não pareciam ser amantes, mas era impossível ter a
certeza. Talvez fossem apenas discretos em público». 
Nesta terceira manhã de vigilância submetido a
temperaturas abaixo de zero, Bromhead decidiu que não
aguentava esperar mais. «Tinha os dedos dos pés
completamente congelados.» Calculando o momento
aproximado em que o jogo terminaria, entrou no clube pela
porta destrancada. Não havia ninguém na receção. Oleg e
a sua parceira eram quase de certeza os únicos ocupantes
do edifício. Bromhead pensou que, se os apanhasse in
flagrante no chão do campo de badminton, poderia ser
complicado. 
Era a vez de Gordievsky servir quando o espião britânico
apareceu e reconheceu Bromhead no instante em que ele
entrou. Com o seu fato de tweed e o pesado sobretudo, o
homem parecia deslocado no complexo desportivo vazio, e
inquestionavelmente britânico. Oleg ergueu a raquete num
cumprimento e voltou-se para terminar o jogo. 
O russo não pareceu surpreendido ao vê-lo. «Talvez
estivesse à minha espera?», pensou Bromhead. «Um oficial
tão experiente e observador poderia ter reparado no meu
carro nos dias anteriores. Uma vez mais, o caloroso sorriso.
Depois, profunda concentração no jogo.» 
Na verdade, enquanto jogava e Bromhead o observava
de um banco, a mente de Gordievsky estava a mil. Tudo se
encaixava no devido lugar: a visita de Kaplan, a festa em
casa de Bromhead e o facto de o simpático funcionário
britânico parecer estar em todos os eventos sociais de
embaixadas a que ele comparecera nos últimos três
meses. O KGB identificara Bromhead como um provável
agente dos serviços secretos, com a reputação de
«comportamento extrovertido» e de «aparecer em festas
da embaixada, com ou sem convite». O facto de o inglês
estar no campo de badminton deserto àquela hora da
manhã só podia significar uma coisa: o MI6 queria recrutá-
lo. 
O jogo chegou ao fim, Anna dirigiu-se para os balneários
e Gordievsky aproximou-se, com uma toalha à volta do
pescoço e a mão estendida. Os dois agentes dos serviços
secretos avaliaram-se. «O Oleg não evidenciou qualquer
sinal de nervosismo», escreveria Bromhead. Gordievsky
reparou que o inglês, que costumava irradiar uma
«exuberante autoconfiança», parecia extremamente sério.
Falaram uma mistura de russo, alemão e dinamarquês, e
Bromhead introduziu algum incongruente francês. 
«Poderia falar comigo tête-à-tête? Adorava ter uma
conversa em particular, num sítio onde não fôssemos
ouvidos.» 
«Teria muito gosto», respondeu Gordievsky. 
«Seria bastante interessante para mim ter esse tipo de
conversa com um membro do seu serviço. Penso que é um
dos poucos que falaria honestamente comigo.» 
Outra fronteira atravessada: Bromhead revelara que
sabia que Gordievsky era um agente do KGB. 
«Podemos almoçar?», continuou Bromhead. 
«Claro que sim.» 
«Pode ser mais difícil para si do que para mim
encontrarmo-nos, por isso quer escolher um restaurante
que lhe convenha?» 
Bromhead esperava que Gordievsky escolhesse um
ponto de encontro obscuro e discreto. Em vez disso,
sugeriu que se encontrassem dali a três dias no
restaurante do hotel Østerport, mesmo em frente à
embaixada soviética. 
À medida que se afastava no velho carro da mulher,
Bromhead sentia-se encantado da vida, mas também
inquieto. Gordievsky parecera estranhamente calmo, e à
primeira vista não ficara nada perturbado com a
abordagem. E escolhera um restaurante tão perto da sua
embaixada que um microfone escondido permitiria que a
conversa fosse escutada do outro lado da rua. Poderiam
ser vistos por funcionários soviéticos, que almoçavam com
frequência no hotel. Pela primeira vez, Bromhead pensou
que podia ser o alvo, não o iniciador, de uma tentativa de
recrutamento. «O comportamento do Oleg e a escolha do
restaurante deixaram-me muito desconfiado de que estava
a ser manipulado no meu próprio jogo. Era tudo demasiado
fácil. Não me pareceu certo.» 
Na embaixada, Bromhead enviou um telegrama para a
sede do MI6: «Por amor de Deus, acho que ele está a
tentar recrutar-me!» 
Mas Gordievsky estava apenas a preparar a sua
proteção. Também ele chegou à sua embaixada e disse ao
rezident, Mogilevchik: «Um tipo da embaixada britânica
convidou-me para almoçar. O que faço? Devo aceitar?» A
pergunta foi transmitida a Moscovo, e uma tonitruante e
categórica resposta de Dmitri Yakushin, o Cardeal
Cinzento, não tardou: «Sim!!! Deve ser agressivo e não se
encolher perante um agente secreto. Porque não
encontrar-se com ele? Assuma a ofensiva!!! A Grã-
Bretanha é um país de grande interesse para nós.»
Gordievsky via ser-lhe oferecida uma apólice de seguro.
Tendo obtido autorização oficial para aceitar o convite,
poderia estabelecer um «contacto aprovado» com o MI6
sem que o KGB desconfiasse da sua lealdade. 
Um dos estratagemas mais antigos da espionagem é o
«falso espontâneo», quando um lado parece tentar seduzir
alguém do outro, o convence a ser cúmplice e conquista a
sua confiança, para depois o denunciar. 
Bromhead perguntou a si mesmo se estaria a ser alvo de
um falso espontâneo do KGB. Ou Gordievsky estaria
mesmo a tentar recrutá-lo? Devia fingir-se interessado e
ver até onde os soviéticos estavam preparados para ir? No
caso de Gordievsky, o risco era ainda maior. A visita de
Kaplan e a subsequente abordagem de Bromhead podiam
fazer parte de uma complexa armadilha, em que ele
revelava as suas intenções e era exposto. A bênção de
Yakushin proporcionava-lhe alguma proteção, mas não
muita. Se fosse vítima de um falso espontâneo do MI6, a
sua carreira no KGB chegaria ao fim. Voltaria para
Moscovo. Em retrospetiva, seria sem dúvida vítima da
lógica do KGB de que qualquer pessoa que o outro lado
tentasse recrutar era, prima facie, suspeita. 
James Jesus Angleton, o famosamente paranoico diretor
da contraespionagem da CIA no pós-guerra, descreveu o
jogo da espionagem como uma «imensidão de espelhos».
O caso Gordievsky já estava a refletir-se e a refratar-se de
formas estranhas. Bromhead continuava a fingir que
combinara um encontro entre colegas dos serviços
secretos, se bem que em lados diferentes da Guerra Fria –
enquanto se questionava sobre se estaria ele próprio a ser
recrutado. Gordievsky fingia perante os seus chefes do
KGB que era um tiro no escuro dos serviços secretos
britânicos, um encontro casual que levara a um convite
para almoçar – enquanto perguntava a si mesmo se o MI6
estaria a pensar montar-lhe uma cilada. 
Passados três dias, Bromhead percorreu o cemitério atrás
das embaixadas, atravessou a movimentada Dag
Hammarskjölds Allé, entrou no hotel Østerport e sentou-se
no restaurante de costas voltadas para a janela, onde
podia «observar bem a entrada principal do restaurante».
O PET tinha sido informado do almoço, mas Bromhead
insistira que não devia haver vigilância, não fosse
Gordievsky reparar e recuar. 
«Examinei com todo o cuidado as pessoas que se
encontravam no restaurante, tentando reconhecer
qualquer elemento da embaixada soviética, cujas
fotografias estavam arquivadas no nosso escritório. Todos
pareciam ser inocentes dinamarqueses, ou turistas
igualmente inocentes. Recostei-me, a pensar se o Oleg
viria.» 
Gordievsky entrou na sala de jantar precisamente à hora
marcada. 
Bromhead não detetou «qualquer sinal especial de
nervosismo, embora o seu estilo fosse intrinsecamente
tenso, preparado para a ação. Ele viu-me logo. Disseram-
lhe de antemão qual era a mesa que eu reservei?, pensei,
enquanto a minha mente entrava em modo de frenesim de
espião. O Oleg esboçou o seu habitual sorriso caloroso e
aproximou-se.» 
Bromhead sentiu uma «atmosfera de simpatia desde o
primeiro momento» em que começaram a comer o
excelente bufete escandinavo do Østerport. A conversa
variou entre religião, filosofia e música. Oleg tomou
mentalmente nota de que o seu companheiro fizera os
trabalhos de casa e «deu-se ao trabalho de conversar
sobre assuntos que me interessavam». Quando Bromhead
comentou que era muito estranho o KGB ter tantos
funcionários no estrangeiro, a resposta de Gordievsky foi
«cautelosa». O russo falou quase sempre dinamarquês;
Bromhead respondia numa confusa mistura de
dinamarquês, alemão e russo, uma grande variedade
linguística que fez Gordievsky rir, embora «não parecesse
haver qualquer malícia» na sua diversão. «Ele parecia
totalmente descontraído e estava sem dúvida consciente
de que éramos ambos funcionários dos serviços secretos.» 
Depois de o café e o schnapps serem servidos, Bromhead
fez a pergunta crucial. 
«Tem de fazer um relatório a respeito do nosso
encontro?» 
A resposta foi reveladora: «Provavelmente, sim, mas vai
ser muito neutro.» 
Por fim, aqui estava uma sugestão de conivência, não
propriamente explícita, mas ainda assim um sinal. 
Não obstante, Bromhead saiu do almoço «mais intrigado
do que nunca». Gordievsky insinuara que estava a
esconder parcialmente a verdade do KGB. No entanto,
também se comportava como um homem que acreditava
ser o caçador, não a presa. Bromhead enviou um relatório
para a sede do MI6: «Realcei o meu medo de que tinha
sido demasiado fácil e a forte impressão de que ele estava
a ser tão simpático comigo porque queria recrutar-me.» 
Gordievsky também elaborou um relatório para os seus
chefes; um longo e insípido documento, concluindo que a
reunião «fora interessante», mas delineado para realçar «a
aparente importância da minha iniciativa». O Cardeal
Cinzento ficou encantado. 
E depois deu-se uma coisa extraordinária; não aconteceu
absolutamente nada. 
O caso Gordievsky morreu. Durante oito meses não
houve qualquer contacto. O que motivou este silêncio
mantém-se um mistério. 
Nas palavras de Geoffrey Guscott: «Em retrospetiva,
pensamos: “Que horror, o caso passou meses em lume
brando.” Estávamos à espera de que os dinamarqueses
dissessem alguma coisa, à espera de que o Bromhead
regressasse. Mas nada aconteceu. O Bromhead deixou de
se preocupar com aquele assunto – estava a tentar
recrutar mais dois ou três, e quando uma coisa parece tão
improvável, pensamos que nunca irá acontecer.» Talvez a
desconfiança de Bromhead o tivesse feito hesitar mais do
que pretendia. «Se insistirmos muito, demasiado depressa,
a coisa pode correr mal», disse Guscott. «Quando corre
bem, é muitas vezes porque não insistimos.» Neste caso, o
MI6 não insistiu nada: «Foi uma grande asneira.» 
Mas foi uma grande asneira que, a longo prazo, resultou.
Gordievsky ficou preocupado ao constatar que passavam
várias semanas sem que Bromhead fizesse qualquer
tentativa para retomar o contacto, depois ficou
consternado, a seguir bastante zangado e, por fim,
estranhamente tranquilizado. A pausa deu-lhe tempo para
refletir. Se tivesse sido uma armadilha, o MI6 teria
avançado muito mais depressa. Esperaria. Daria tempo ao
KGB para esquecer o contacto com Bromhead. Na
espionagem, como no amor, alguma distância, um pouco
de incerteza e um aparente arrefecimento de um lado ou
do outro pode estimular o desejo. Nos oito frustrantes
meses que se seguiram ao almoço no hotel Østerport, o
entusiasmo de Gordievsky cresceu.  
No dia 1 de outubro de 1974, o alto inglês reapareceu no
campo de badminton ao amanhecer e sugeriu um novo
encontro. Bromhead restabeleceu o contacto de repente
porque tinha sido transferido para a Irlanda do Norte como
agente infiltrado, para conduzir operações contra o IRA, e
partiria dali a alguns meses. «Não nos restava muito
tempo. Por isso, decidi não protelar», escreveria Bromhead
mais tarde, com uma veemência que sugere que estava
plenamente consciente de que estivera a perder tempo.
Concordaram encontrar-se no hotel SAS, gerido pela
Scandinavian Airlines, um edifício novo que nunca era
frequentado por funcionários soviéticos. 
Bromhead esperava numa mesa de canto no bar quando
Oleg chegou. Astérix e Obélix, os dois agentes do PET,
tinham chegado algum tempo antes e estavam sentados
na outra extremidade do bar, tentando passar
despercebidos atrás de uma palmeira num vaso. 
«Com a habitual pontualidade, o Oleg entrou quando o
relógio batia a uma hora. A luz era fraca no canto que eu
tinha escolhido, e durante alguns instantes ele olhou em
volta. Para impedir que reparasse na vigilância, levantei-
me logo. Ele dirigiu-se para mim com o habitual sorriso.» 
A atmosfera ficou imediatamente diferente. «Senti que
era o momento de tomar a iniciativa», recordaria
Gordievsky mais tarde. «Estava ansioso, cheio de energia.
Ele tinha percebido, e sentia o mesmo.» Bromhead deu o
primeiro passo. O MI6 autorizara-o a indicar que aquela
abordagem era mais do que um namoro: «Depois de as
bebidas chegarem, fui direto ao assunto.» 
«Sabemos que é um agente do KGB. Sabemos que
trabalhou na Linha N do Primeiro Diretório Principal, o mais
secreto de todos os vossos departamentos, que controla os
ilegais no mundo inteiro.» 
Gordievsky não escondeu a surpresa. 
«Estaria preparado para nos contar o que sabe?» 
Gordievsky não respondeu. 
Bromhead insistiu. «Diga-me, quem é o vice da Linha PR
no seu departamento, a pessoa responsável pela recolha
de informações políticas e pelo controlo dos agentes?» 
Houve uma pausa, e depois o russo esboçou um sorriso
rasgado. 
«Sou eu.» 
Foi a vez de Bromhead ficar impressionado. 
«Eu tinha brincado com a ideia de falar sobre paz no
mundo e tudo isso, mas a minha intuição a respeito do
Oleg disse-me para não tentar nenhum tipo de bajulação.
No entanto, continuava a ser demasiado fácil. A minha
mente desconfiada era incapaz de aceitar este homem
pelo seu aspeto exterior. O meu instinto dizia-me que ele
era uma pessoa extremamente simpática e que podia
confiar nele. Por outro lado, o meu treino e a experiência
que tinha com agentes do KGB instavam-me a ter
cautela.» 
Outro sinal tinha sido dado, e ambos sabiam. «Tornámo-
nos logo quase colegas», escreveu Gordievsky. «Por fim,
começámos a falar uma linguagem sincera.» 
Bromhead administrou então a «prova de fogo». 
«Estaria disposto a encontrar-se comigo em privado, num
local seguro?» 
O russo acenou com a cabeça. 
A seguir, disse uma coisa que mudou uma luz amarela
invisível para verde. «Ninguém sabe que vim encontrar-me
consigo.» 
Após o primeiro encontro, Oleg tinha informado os seus
superiores e escrevera um relatório. Este encontro não fora
aprovado. Se o KGB descobrisse que ele estivera em
contacto com Bromhead e guardara segredo, estava
condenado. Ao informar o MI6 de que não dissera a
ninguém, estava a tornar a mudança de lealdade
perfeitamente clara e a colocar a sua vida nas mãos deles.
Tinha passado para o outro lado. 
«Foi um grande passo», recordaria Guscott mais tarde.
«Era o equivalente, no adultério, a dizer: “A minha mulher
não sabe que estou aqui.”» Gordievsky sentiu uma onda
de alívio e um agitado aumento de adrenalina.
Combinaram um novo encontro, dali a três semanas, num
bar nos arredores da cidade. Gordievsky saiu primeiro.
Bromhead abandonou o local passados alguns minutos. Por
fim, os dois agentes dos serviços secretos dinamarqueses
abandonaram a camuflagem atrás da planta. 
O namoro tinha chegado ao fim: o major Gordievsky do
KGB trabalhava agora para o MI6. SUNBEAM estava
ativado. 
Naquele momento catártico, no canto de um hotel de
Copenhaga, juntaram-se todos os elementos de uma
rebelião há muito latente: a raiva que sentia pelo crimes
não reconhecidos do pai, a assimilação da discreta
resistência da mãe e das crenças religiosas escondidas da
avó; o ódio pelo sistema em que crescera e o amor pelas
liberdades ocidentais que descobrira; a repulsa latente
pela repressão soviética na Hungria e na Checoslováquia e
pelo Muro de Berlim; a consciência do seu destino
dramático, da sua superioridade cultural e da sua otimista
fé numa Rússia melhor. Doravante, Oleg Gordievsky viveria
duas vidas distintas e paralelas, ambas secretas e em
guerra uma com a outra. E o momento do compromisso
veio com a força especial que fazia parte do seu carácter:
uma convicção firme e inabalável de que o que estava a
fazer era inequivocamente certo, um dever moral
incondicional que mudaria irrevogavelmente a sua vida,
uma traição justificada. 
Quando o relatório de Bromhead chegou a Londres, os
oficiais superiores do MI6 reuniram-se na base secreta de
treino da agência no Forte Monckton, uma fortaleza da era
napoleónica perto de Portsmouth, na costa sul da
Inglaterra. Às 23h00, um pequeno grupo reuniu-se para
discutir o relatório de Bromhead e decidir um curso de
ação. «A questão de poder tratar-se de uma provocação foi
abordada muitas vezes», contou Geoffrey Guscott. Um
funcionário superior do KGB estaria mesmo disposto a pôr
a sua vida em risco encontrando-se em segredo com um
conhecido operacional do MI6? Por outro lado, o KGB
atrever-se-ia a usar como falso espontâneo um dos seus
agentes? Após um tenso debate, foi decidido avançar.
SUNBEAM podia parecer bom demais para ser verdade;
mas também era bom demais para desperdiçar. 
Passadas três semanas, Bromhead e Gordievsky
encontraram-se no bar escuro e quase vazio; ambos se
tinham «limpo a seco» com todo o cuidado en route;
ambos estavam «negros». A conversa foi metódica, mas
pouco fluente. A falta de uma língua comum era um sério
obstáculo. O espião inglês e o espião russo tinham
chegado a um acordo; só não percebiam muito bem o que
estava a ser dito. Bromhead explicou-lhe que, como
deixaria em breve Copenhaga, a responsabilidade da
gestão de futuros encontros seria transferida para um
colega, um funcionário superior dos serviços secretos que
falava fluentemente alemão e poderia comunicar melhor
com ele. Bromhead selecionaria uma casa segura
conveniente para se conhecerem, faria as apresentações e
afastar-se-ia do caso. 
A secretária da estação do MI6 em Copenhaga vivia num
apartamento no subúrbio residencial de Charlottenlund. O
local era de fácil acesso pelo metropolitano e ela sairia
discretamente no momento certo. Bromhead sugeriu
encontrar-se com Gordievsky à porta de um talho próximo
do apartamento às 19h00, dali a três semanas. «A entrada
proporcionava uma conveniente sombra das fortes luzes
dos candeeiros de iluminação pública. Além disso, era
difícil colocar um vigia perto daquela porta sem estar
claramente visível nas redondezas. Àquela hora do dia, o
lugar estaria deserto e todos os dinamarqueses encontrar-
se-iam confortavelmente em casa a ver televisão.» 
Gordievsky chegou às sete horas em ponto. Bromhead
apareceu passados alguns momentos. Após um silencioso
aperto de mão, o inglês disse: «Venha, vou mostrar-lhe o
caminho.» O apartamento seguro, ou «OCP» em gíria de
espionagem, que significa «Operational Clandestine
Premises», ficava a pouco menos de 200 metros de
distância, mas Bromhead deu várias voltas para o caso de
alguém estar a segui-los. «A noite estava fria e nevava.»
Os dois homens vestiam quentes sobretudos. Gordievsky
mantinha-se em silêncio, absorto nos seus pensamentos:
«Não tinha medo de ser raptado, mas sabia que agora as
coisas eram sérias: este era o verdadeiro início das
operações. Estava a entrar em território inimigo pela
primeira vez.» 
Bromhead abriu a porta do apartamento, entrou com
Gordievsky e serviu uma generosa dose de uísque com
soda para ambos. 
«Quanto tempo tem?», perguntou Bromhead. 
«Cerca de meia hora.» 
«Estou bastante surpreendido por ter aparecido. Não está
a correr um grande risco ao encontrar-se comigo assim?» 
Gordievsky fez uma pausa antes de responder «de uma
forma muito ponderada»: «Pode ser perigoso, mas neste
momento não me parece que seja.» 
Na sua estranha confusão de línguas, Bromhead explicou
com cuidado que voltaria para Londres na manhã seguinte,
de onde seguiria para Belfast. No entanto, estaria de volta
dali a três semanas para se encontrar com Gordievsky à
porta de um talho, trazê-lo para o apartamento e
apresentá-lo ao novo agente responsável pelo caso. Um
pequeno grupo de funcionários do PET estava a par de
tudo, mas o caso seria dirigido exclusivamente pelo MI6.
Bromhead garantiu-lhe que, para a sua segurança, apenas
um número reduzidíssimo de pessoas nos serviços
secretos britânicos saberia da sua existência, e a maioria
dessas pessoas nunca conheceria o seu verdadeiro nome.
Em gíria dos serviços de informações, uma pessoa que faz
parte de uma operação secreta é «doutrinada»; o caso
envolveria o menor número possível de doutrinados e seria
dirigido sob fortes medidas de segurança, pois poderia
haver espiões dentro do PET ou do MI6 preparados para
informar Moscovo. Até a CIA, o maior aliado dos serviços
secretos britânicos, seria deixada «fora do círculo». «Com
estes fatores a nosso favor, podíamos estabelecer a nossa
relação em bases sólidas e começar uma séria
colaboração.» 
Quando se despediu de Gordievsky, Bromhead deu-se
conta de que sabia muito pouco a respeito do sorridente e
aparentemente impassível oficial russo do KGB, que
parecia disposto a arriscar a vida para se conluiar com o
MI6. A questão do dinheiro nunca foi abordada. E as
questões da segurança de Oleg, ou da sua família, ou se
ele queria desertar, também não vieram à baila.
Conversaram sobre cultura e música, mas não sobre
política, ideologia ou a vida sob o regime soviético. A
motivação de Gordievsky não fora debatida. «Nunca lhe
perguntei porque é que estava a fazer aquilo. Não houve
tempo.» 
Estas questões continuavam a preocupar Bromhead
quando chegou à sede do MI6 em Londres na manhã
seguinte. O controlador da divisão do Bloco de Leste foi
tranquilizador. «Ele era muito experiente nas questões
ligadas ao KGB e devidamente cauteloso, mas declarou
tratar-se de uma situação única que teria de ser explorada
ao máximo. Era a primeira vez que um agente do KGB
respondia de forma positiva a uma abordagem britânica,
“do nada”.» Disse que os soviéticos eram demasiado
paranoicos para usar como falso espontâneo uma pessoa
com acesso a verdadeiros segredos. «Nunca tinham
oferecido um agente operacional do KGB ao serviço [...]
Não confiavam que os seus não os traíssem numa relação
com um controlador [ocidental].» 
Os chefes do MI6 estavam otimistas. SUNBEAM poderia
ser um caso importante. Gordievsky parecia genuíno.
Bromhead não tinha tanta certeza. O espião russo ainda
não produzira uma única informação útil e não explicara os
motivos que o levavam a fazer aquilo. 
Transferir um agente de um controlador para outro é um
processo complexo e por vezes delicado, sobretudo
quando o espião acabou de ser recrutado. Em janeiro de
1975, três semanas depois de deixar Copenhaga,
Bromhead foi «infiltrado na Dinamarca com o máximo de
discrição e anonimato possível»: viajou de avião para
Gotemburgo, na Suécia, onde foi recebido por Winter
Clausen, do PET. Apertado no banco de trás de um
Volkswagen ao lado do «vasto e sorridente corpo» de
Obélix, atravessou a fronteira para a Dinamarca e
hospedou-se num «hotel devidamente impessoal e
suburbano» na zona comercial de Lyngby, em Copenhaga. 
Philip Hawkins, o novo controlador, chegou de Londres
com um passaporte falso. «Vai gostar dele», dissera
Bromhead a Gordievsky. Ele não tinha a certeza se era
verdade. «Claro que não gostei dele. Pareceu-me uma
grande merda.» Isto não era correto nem justo. Hawkins
era advogado de formação: severo, meticuloso e nada
parecido com Bromhead. 
Depois de se encontrar com Gordievsky no talho,
Bromhead levou-o para o apartamento seguro, onde
Hawkins os esperava. Gordievsky observou o seu novo
controlador. «Era alto e tinha um físico poderoso, e senti-
me logo pouco à vontade perto dele.» Hawkins falava um
alemão formal e bastante rígido e parecia observar o seu
novo agente «de uma forma hostil e quase ameaçadora». 
Bromhead apertou a mão a Gordievsky com uma
expressão séria, agradeceu-lhe por aquilo que estava a
fazer e desejou-lhe boa sorte. Já no carro, sentiu um misto
de sentimentos: pena, pois gostava do espião russo e
admirava-o, ansiedade com a possibilidade persistente de
uma conspiração do KGB e profundo alívio porque, no que
lhe dizia respeito, o caso estava terminado. 
«Fiquei profundamente satisfeito por o meu papel ter
terminado», escreveu Bromhead. «Não conseguia livrar-me
do pensamento de que poderia ter criado uma “ameaça de
Heffalump”14 em que o meu serviço estava claramente
determinado a mergulhar de cabeça.» 

13 «Raio de sol». (N. da T.)

14«Heffalump» ou «Efalante», um mamífero ficcional das histórias do Winnie the


Pooh. A expressão é usada no jornalismo político para significar uma armadilha
montada para apanhar um adversário, mas que acaba por apanhar a pessoa
que a montou. (N. da T.)
4. Tinta Verde e Microfilme 

Porque é que alguém espia? Porquê abdicar da


segurança da família, dos amigos e de um emprego
regular pelo perigoso e crepuscular mundo dos segredos?
Em particular, porque é que alguém ingressaria nos
serviços de informações para depois virar a casaca a favor
de uma agência adversária? 
O melhor paralelo para a deserção secreta de Gordievsky
do KGB pode ser o caso de Kim Philby, o inglês que
estudou em Cambridge e fez a mesma viagem na direção
oposta – um agente do MI6 que passou a trabalhar em
segredo para o KGB. A exemplo de Philby, Gordievsky
passou por uma profunda conversão ideológica, embora
um dos homens fosse atraído para o comunismo e o outro
o rejeitasse. No entanto, a conversão de Philby ocorreu
antes de ele conseguir ser recrutado pelo MI6, em 1940,
com a intenção explícita de trabalhar para o KGB contra o
Ocidente capitalista, e Gordievsky ingressou no KGB como
um leal cidadão soviético, sem imaginar que um dia
poderia trair o regime. 
Há muitos tipos de espiões. Alguns são motivados pela
ideologia, pela política ou pelo patriotismo. Um número
surpreendente é motivado pela ganância, uma vez que as
recompensas financeiras podem ser tentadoras. Outros
são arrastados para a espionagem pelo sexo, por
chantagem, arrogância, vingança, desapontamento ou
pela tentativa de serem melhores do que os outros e pela
camaradagem que o secretismo confere. Alguns têm
princípios e são corajosos. Outros são gananciosos e
cobardes. 
Pavel Sudoplatov, um dos mestres da espionagem ao
serviço de Estaline, tinha o seguinte conselho para os seus
agentes que tentavam recrutar espiões em países
ocidentais: «Procurem pessoas que foram feridas pelo
destino ou pela natureza – as feias, as que sofrem de um
complexo de inferioridade, as que procuram poder ou
influência, mas estão derrotadas por circunstâncias
desfavoráveis [...] Em colaboração connosco, todas
encontram uma peculiar compensação. A sensação de
pertencerem a uma organização influente e poderosa
proporciona-lhes uma sensação de superioridade em
relação às pessoas atraentes e prósperas que as
rodeiam.»15 Durante muitos anos, o KGB usou o acrónimo
MICE para identificar os quatro motivos principais para
espiar: Money, Ideology, Coercion, Ego [Dinheiro,
Ideologia, Coerção e Ego]. 
Mas também há o romance e a oportunidade de viver
uma segunda vida, uma vida secreta. Alguns espiões são
fantasistas. Malcolm Muggeridge, antigo funcionário do MI6
e jornalista, escreveu: «Pela minha experiência, os agentes
dos serviços secretos são ainda mais mentirosos que os
jornalistas.»16 A espionagem atrai uma grande quantidade
de pessoas destroçadas, solitárias e estranhas. Mas todos
os espiões anseiam por influência discreta, por uma
compensação secreta: o implacável exercício do poder
privado. Um certo snobismo intelectual é comum à maioria
e é proporcionado pela secreta sensação de saberem
coisas importantes que a pessoa que está ao seu lado na
paragem do autocarro desconhece. Em parte, a
espionagem é fruto da imaginação. 
A decisão de espiar o próprio país, no interesse de outro,
surge, regra geral, da colisão de um mundo exterior,
muitas vezes concebido de forma racional, com um mundo
interior, de que o espião poderá não estar consciente.
Philby definiu-se como um agente ideológico puro, um
dedicado soldado secreto da causa comunista; o que não
admitiu foi que também era motivado pelo narcisismo,
pela inadaptação, pela influência do pai e pela compulsão
de enganar as pessoas que o rodeavam. Eddie Chapman, o
vigarista de guerra e agente duplo conhecido como
ZIGZAG, considerava-se um herói patriótico (e era), mas
também era ganancioso, oportunista e volúvel, daí o seu
nome de código. Oleg Penkovsky, o espião russo que
forneceu informações cruciais ao Ocidente durante a Crise
dos Mísseis de Cuba, esperava impedir uma guerra
nuclear, mas também queria que lhe levassem prostitutas
e chocolates ao hotel em Londres e exigiu conhecer a
rainha. 
O mundo exterior que empurrou Oleg Gordievsky para os
braços do MI6 era político e ideológico: ele tinha sido
profundamente influenciado, e alienado, pela construção
do Muro de Berlim e pelo esmagamento da Primavera de
Praga; lera muita literatura ocidental, sabia o suficiente
sobre a verdadeira história da sua nação e vira o suficiente
das liberdades democráticas para saber que o nirvana
socialista refletido na propaganda comunista era uma
monstruosa mentira. Fora criado num mundo de
obediência cega a um dogma. Quando rejeitou aquela
ideologia, dedicou-se a atacá-la com todo o fervor de um
convertido, tão profunda e irreversivelmente contra o
comunismo como o pai, o irmão e os seus contemporâneos
estavam empenhados nele. Uma criatura do sistema,
Gordievsky conhecia em primeira mão a implacável
crueldade do KGB. A par da política de repressão estava o
filistinismo cultural: com a ardente fúria de um aficionado,
ele detestava o sucedâneo que era a música soviética e a
censura do cânone clássico ocidental. Gordievsky exigia
uma banda sonora diferente e melhor para a sua vida. 
Porém, o mundo interior que o impelia era mais obscuro.
Oleg adorava o romance e a aventura. Estava sem dúvida
a revoltar-se contra o pai, um capacho do KGB obediente e
atormentado pela culpa. Uma avó secretamente religiosa,
uma mãe discretamente não conformista e um irmão
falecido ao serviço do KGB aos 39 anos podem ter exercido
uma influência subconsciente, levando-o a amotinar-se.
Gordievsky tinha muito pouco respeito pela maioria dos
colegas do KGB, uns oportunistas, ignorantes, preguiçosos
e vigaristas que pareciam ser promovidos devido a intrigas
políticas e servilismo. Ele era mais inteligente do que a
maioria dos que o rodeavam, e tinha consciência disso.
Naquela altura, o seu casamento arrefecera e ele tinha
dificuldade em fazer amigos. Procurava vingança e
realização pessoal, mas também procurava amor. 
Todos os espiões precisam de sentir que são amados.
Uma das forças mais poderosas na espionagem e no
trabalho nos serviços de informações (e um dos seus
principais mitos) é o laço emocional entre o espião e o
mestre da espionagem, entre agente e controlador. Os
espiões querem sentir-se desejados, parte de uma
comunidade secreta, recompensados, que são de
confiança e valorizados. Eddie Chapman estabeleceu
relações próximas com os seus controladores britânicos e
alemães. Philby foi recrutado por Arnold Deutsch, um
carismático caçador de talentos do KGB que ele
descreveria como «um homem maravilhoso [...] Olhava
para uma pessoa como se não houvesse nada mais
importante no mundo do que ela e do que a conversa que
tinham naquele momento.»17 Explorar e manipular essa
fome de afeto e afirmação é um dos talentos mais
importantes de um controlador de agentes. Nunca houve
um espião bem-sucedido que não sentisse que a relação
com o seu controlador era uma coisa mais profunda do que
um casamento de conveniência, do que a política ou o
lucro: uma verdadeira e duradoura comunhão, no meio de
mentiras e enganos. 
Gordievsky sentiu várias emoções vindas de Philip
Hawkins, o seu novo controlador britânico; mas afeto não
foi uma delas. 
O excêntrico e exuberante Richard Bromhead agradara a
Gordievsky por parecer «extremamente inglês». Era o
típico inglês que Lyubimov descrevera com tanto
entusiasmo. Hawkins era escocês, e muito mais frio.
Formal e bem-falante, mas rígido e quebradiço como uma
bolacha de aveia. «Ele pensava que era seu dever não se
mostrar sorridente e simpático, e olhar para o caso com
um olho jurídico», diria um colega. 
Hawkins foi responsável pelo interrogatório de
prisioneiros alemães durante a guerra. Durante anos,
trabalhou com espiões checos e soviéticos, entre eles
alguns desertores. Mais importante, tinha experiência no
controlo de um espião dentro do KGB. Em 1967, uma
inglesa que vivia em Viena contactou a embaixada
britânica para informar que recebera um novo locatário
interessante, um jovem diplomata russo que parecia
recetivo às ideias ocidentais e bastante crítico do
comunismo. Ela estava a ensiná-lo a esquiar.
Provavelmente, também dormia com ele. O MI6 atribuiu-
lhe o nome de código PENETRABLE, começou a investigar e
descobriu que o serviço de informações da Alemanha
Ocidental, o BND (Bundesnachrichtendienst), «também
estava na corrida» e já abordara o estagiário do KGB,
obtendo uma resposta positiva. Ficou estabelecido que
PENETRABLE seria gerido como um agente conjunto da
Grã-Bretanha e da Alemanha Ocidental. O controlador do
lado britânico era Philip Hawkins.  
«O Philip conhecia muito bem o KGB», diria um colega.
«Ele era pago para ser cético. Era a pessoa mais indicada
para controlar o Gordievsky, falava alemão e estava
disponível.» Também estava nervoso, e disfarçou a
ansiedade com uma postura agressiva. Pensava que a sua
tarefa era descobrir se Oleg mentia, o que estaria
preparado para divulgar e o que queria em troca. 
Hawkins convidou Gordievsky a sentar-se e deu início a
um interrogatório, como se estivesse num tribunal. 
«Quem é o seu rezident? Quantos agentes do KGB há na
estação?» 
Gordievsky esperava ser bem recebido, elogiado e
felicitado pela importante escolha que fizera. Em vez disso,
sentia-se intimidado, sujeito a um interrogatório como se
fosse um inimigo detido, e não um prestável novo recruta. 
«A inquirição continuou durante algum tempo, e não
gostei.» 
Gordievsky não conseguia deixar de pensar: «Este não
pode ser o verdadeiro espírito do serviço de informações
britânico.» 
O interrogatório foi suspenso por alguns instantes.
Gordievsky ergueu a mão e fez uma declaração:
trabalharia para os serviços secretos britânicos, mas
apenas segundo três condições. 
«Primeiro, não quero prejudicar nenhum dos meus
colegas da estação do KGB. Segundo, não quero ser
fotografado nem que gravem as minhas conversas em
segredo. Terceiro, não quero dinheiro. Quero trabalhar para
o Ocidente por convicção ideológica, não pelo lucro
financeiro.» 
Foi a vez de Hawkins se sentir insultado. No interior do
seu tribunal mental, as testemunhas que estavam a ser
interrogadas não impunham regras. A segunda condição
era duvidosa. Se o MI6 decidisse gravar as suas conversas,
ele nunca viria a saber, porque a gravação seria, por
definição, secreta. A recusa antecipada de aceitar uma
compensação financeira foi ainda mais preocupante. É um
axioma da arte da espionagem que os informadores
devem ser encorajados a aceitar presentes ou dinheiro –
embora não a ponto de não quererem mais ou sentirem-se
tentados a fazer extravagantes gastos que podem dar azo
a desconfiança. O dinheiro faz um espião sentir-se valioso,
estabelece o princípio do pagamento por serviços
prestados e pode ser usado, se necessário, como forma de
pressão. E porque queria ele proteger os colegas
soviéticos? Ainda era leal ao KGB? Na realidade,
Gordievsky também estava a proteger-se: se a Dinamarca
começasse a expulsar funcionários do KGB, era muito
possível que o Centro procurasse um traidor interno e
acabasse por descobri-lo. 
Hawkins protestou: «Agora que sabemos qual é o seu
cargo na estação, vamos pensar, não duas, mas três
vezes, antes de nós, ou os nossos aliados, tomarmos a
decisão de expulsar alguém.» Mas Gordievsky estava
irredutível: não ia identificar os colegas do KGB, nem os
agentes ou ilegais, e deviam deixá-los em paz. «Essas
pessoas não são importantes. São agentes no nome, mas
não estão a fazer mal nenhum. Não quero que arranjem
problemas.» 
Hawkins concordou com relutância que transmitiria as
suas condições ao MI6 e expôs o modus operandi. Ele
viajaria para Copenhaga uma vez por mês e passaria um
fim de semana prolongado na cidade, onde poderiam
encontrar-se duas vezes, durante pelo menos duas horas.
As reuniões decorreriam noutro apartamento seguro
(providenciado pelos dinamarqueses, se bem que
Gordievsky não fosse informado deste pormenor), no
subúrbio norte de Ballerup, uma zona tranquila no término
de uma linha do metropolitano, na extremidade oposta à
localização da embaixada soviética. Gordievsky poderia ir
de comboio ou de carro e estacionar a alguma distância.
Havia poucas probabilidades de ser visto ali pelos seus
colegas da embaixada, e se a vigilância soviética estivesse
destacada nas redondezas, ele teria certamente
conhecimento. A vigilância dinamarquesa constituía um
problema maior. Gordievsky era suspeito de pertencer ao
KGB e tinha sido monitorizado pelo PET no passado. Fortes
campainhas de alarme soariam se ele fosse avistado a
dirigir-se para um encontro secreto nos subúrbios. Não
mais de meia dúzia de pessoas no PET sabiam que o MI6
controlava um agente soviético e apenas duas conheciam
o seu nome. Uma delas era Jørn Bruun, o diretor da
contraespionagem do PET e um velho aliado de Bromhead.
Bruun garantiria que os seus homens não vigiavam
Gordievsky nos dias em que ele se encontrava com o seu
controlador britânico. Por fim, Hawkins entregou-lhe um
número de telefone de emergência, tinta secreta e uma
morada em Londres para onde ele poderia enviar
mensagens urgentes entre encontros. 
Os dois homens saíram do apartamento com uma
sensação de descontentamento. O primeiro contacto entre
espião e controlador não tinha sido feliz. 
No entanto, de certa maneira, a nomeação do brusco e
sério Hawkins correu bem. Era um profissional competente,
e Gordievsky também. O russo estava nas mãos de uma
pessoa que levava o seu emprego, e a segurança do seu
espião, extremamente a sério. Para usar a frase preferida
de Bromhead, Hawkins não perdia tempo. 
Assim teve início uma série de encontros mensais num
apartamento de uma assoalhada no terceiro andar de um
banal prédio de habitação em Ballerup. O espaço estava
decorado de forma simples com mobiliário dinamarquês, a
cozinha totalmente equipada. A renda era paga em
conjunto pelos serviços de informações britânicos e
dinamarqueses. Alguns dias antes do primeiro encontro na
nova OCP, dois técnicos do PET disfarçados de funcionários
da companhia de eletricidade inseriram microfones nas
lâmpadas de teto e nas tomadas elétricas e passaram fios
de ligação atrás dos rodapés até ao quarto, onde
instalaram um gravador num painel por cima da cama. A
segunda condição de Gordievsky tinha sido desrespeitada. 
Os primeiros encontros foram tensos, mas depois
tornaram-se mais descontraídos e, com o passar do tempo,
excecionalmente prolíficos. O que começara numa
atmosfera de melindrosa desconfiança evoluiria a pouco e
pouco para uma relação extremamente eficiente, com
base não no afeto, mas num relutante respeito mútuo. No
lugar do amor, Gordievsky aceitou a aprovação profissional
de Hawkins. 
A melhor forma de testar se alguém está a mentir é fazer
uma pergunta para a qual se sabe a resposta, e Hawkins
era muito versado na estrutura do KGB. Com uma
impressionante precisão, Gordievsky descreveu todas as
direções, departamentos e divisões da descontrolada e
complexa burocracia interna do Centro em Moscovo.
Hawkins conhecia alguns pormenores, mas ignorava
muitos outros aspetos: nomes, funções, técnicas, métodos
de treino, e até rivalidades e disputas, promoções e
despromoções internas. A minuciosa descrição de
Gordievsky provou que este era legítimo: um «falso
espontâneo» não se teria atrevido a revelar tanto. Nunca
pediu a Hawkins informações sobre o MI6 nem deu
nenhum dos passos que um agente duplo a tentar infiltrar-
se num serviço inimigo poderia dar. 
Os mestres da espionagem na sede do MI6 depressa se
convenceram da boa-fé de Gordievsky. «O SUNBEAM era
legítimo», concluiu Guscott. «Estava a fazer jogo limpo.» 
Aquela convicção foi reforçada quando Gordievsky
começou a descrever, com todos os pormenores, as
atividades da Divisão S, a secção de ilegais onde ele
trabalhara durante uma década antes de ser transferido
para o departamento político: como Moscovo plantava os
espiões no mundo inteiro, disfarçados de comuns civis,
incluindo «a imensa e extremamente sofisticada operação
para criar falsas identidades»: falsificação de documentos,
manipulação de registos, introdução de toupeiras e a
complexa metodologia para contactar, controlar e financiar
o exército de ilegais soviéticos. 
Antes de se encontrar com Oleg, Hawkins abria o painel
no quarto, inseria uma cassete nova e ligava o gravador. Ia
tirando notas, mas depois transcrevia com todo o cuidado
cada conversa gravada, traduzindo de alemão para inglês.
Cada hora de gravação demorava o triplo ou o quádruplo
do tempo a processar. O relatório era depois entregue a
um funcionário subalterno do MI6 na embaixada britânica,
que o enviava para Londres juntamente com a cassete na
mala diplomática, que não podia ser revistada. Na sede do
MI6, os relatórios eram aguardados com expectativa. Os
serviços secretos britânicos nunca tinham controlado um
espião com um cargo tão importante no KGB. Gordievsky
era um agente dos serviços secretos experiente e sabia o
que o MI6 procurava. Na Escola 101 aprendera técnicas
para decorar grandes quantidades de informação. A sua
capacidade de memorização era prodigiosa. 
As relações entre agente e controlador foram
melhorando a pouco e pouco. Os dois homens passavam
horas sentados diante um do outro, separados por uma
grande mesa de apoio. Gordievsky bebia chá forte e de vez
em quando pedia uma cerveja. Hawkins não bebia nada.
Não faziam muita conversa de circunstância. Gordievsky
não conseguia gostar daquele escocês tenso que parecia
um «austero padre presbiteriano», mas respeitava-o. «Não
era um homem com um grande sentido de humor, mas era
dedicado e trabalhador, sempre a tirar notas, estava bem
preparado e fazia boas perguntas.» O controlador britânico
muitas vezes desfiava um ror de perguntas que mais
parecia uma lista de compras, que o russo decorava e para
as quais tentava encontrar respostas antes do encontro
seguinte. Um dia, Hawkins pediu-lhe para dar uma vista de
olhos a um dos seus relatórios, uma minuciosa recensão,
em alemão, sobre o sistema de ilegais que Oleg
descrevera. O russo ficou impressionado; claramente,
Hawkins era um mestre de estenografia alemã, pois não
fora omitido um único pormenor. Só mais tarde é que lhe
ocorreu: o MI6 devia ter escutas no apartamento. Oleg
decidiu não protestar por terem quebrado a promessa,
optando por considerar que provavelmente teria feito o
mesmo. 
«Eu estava muito mais descontraído», escreveu
Gordievsky. «Este novo papel dava um objetivo à minha
existência.» Acreditava que aquele papel era nada menos
que enfraquecer o sistema soviético, numa maniqueísta
luta entre o bem e o mal que acabaria por levar a
democracia à Rússia e permitiria que os russos vivessem
em liberdade, lessem o que quisessem e ouvissem Bach.
No seu emprego regular para o KGB, continuou a
estabelecer contactos com dinamarqueses, a elaborar
artigos para jornalistas pró-soviéticos e a organizar o
incompleto sistema de recolha de informações da
rezidentura de Copenhaga. Quanto mais ativo parecesse,
maiores seriam as suas hipóteses de promoção e mais fácil
o acesso a informações importantes. Era uma situação
estranha: tentar demonstrar a sua competência ao KGB
sem prejudicar verdadeiramente os interesses
dinamarqueses; montar operações de espionagem com
uma mão e desfazê-las com a outra, informando Hawkins
de todos os passos; manter olhos e ouvidos atentos a
informações e mexericos úteis sem parecer demasiado
curioso. 
Yelena não fazia ideia do que o marido andava a fazer.  
«Um espião tem de enganar até as pessoas que lhe são
próximas e mais queridas», escreveria mais tarde
Gordievsky. Mas Yelena já não lhe era próxima nem
querida. Na verdade, ele tinha a certeza de que, se a
mulher descobrisse a verdade, como leal funcionária do
KGB que era, não hesitaria em denunciá-lo. Gordievsky
sabia o que faziam aos traidores. Sem qualquer respeito
pelos dinamarqueses ou pelo direito internacional, ele
seria apanhado pelos operacionais do departamento de
Ações Especiais, drogado, colocado numa maca enrolado
em ligaduras para esconder a identidade, torturado e em
seguida executado. O eufemismo russo para a condenação
sumária à morte era vyshaya mera, «medida mais
elevada»: o traidor era levado para uma sala, obrigado a
ajoelhar-se e alvejado com um tiro na nuca. Por vezes, o
KGB era mais imaginativo. Dizia-se que Penkovsky fora
cremado vivo e a sua morte filmada para servir de aviso a
potenciais vira-casacas. 
Apesar da pressão de uma vida dupla e dos perigos que
esta acarretava, Gordievsky estava satisfeito a travar a sua
solitária campanha contra a opressão soviética. E depois
apaixonou-se. 
Leila Aliyeva trabalhava como datilógrafa para a
Organização Mundial de Saúde em Copenhaga. Filha de
mãe russa e pai azeri, era alta e atraente, com uma
cabeleira morena e olhos castanho-escuros emoldurados
por compridas pestanas. Em contraste com Yelena, era
tímida e simples, mas quando descontraía, as suas
gargalhadas faziam-se ouvir, altas e contagiantes. Leila
adorava cantar. Como Oleg, era oriunda de uma família
ligada ao KGB: o pai, Ali, subira à patente de major-general
no KGB azeri, antes de se reformar e ir viver para Moscovo.
Educada como muçulmana, vivera bastante protegida na
infância. Os poucos namorados que tivera até à data
tinham sido criteriosamente aprovados pelos pais.
Começara a trabalhar como datilógrafa numa empresa de
design, em seguida trabalhara como jornalista no periódico
da Liga da Juventude Comunista e mais tarde candidatara-
se, através do Ministério da Saúde, a um cargo de
secretariado na Organização Mundial de Saúde. Como
todos os cidadãos soviéticos que queriam trabalhar para
uma organização internacional no estrangeiro, Leila foi
minuciosamente investigada para se aferir a sua
fiabilidade ideológica antes de ser autorizada a viajar para
Copenhaga. Tinha 28 anos, menos 11 do que Oleg. Pouco
depois de chegar à Dinamarca, foi convidada para uma
festa organizada pela mulher do embaixador, que lhe
perguntou o que fazia em Moscovo. 
«Era jornalista», respondeu Leila. «E gostaria de escrever
sobre a Dinamarca.» 
«Nesse caso, tem de conhecer o adido de imprensa da
embaixada, o senhor Gordievsky.» 
E foi assim que Oleg Gordievsky e Leila Aliyeva
começaram a trabalhar juntos num artigo para a revista da
Juventude Comunista acerca dos bairros degradados de
Copenhaga. O artigo nunca foi publicado. Porém, a
colaboração entre ambos intensificou-se muito depressa.
«Ela era sociável, interessante, original, inteligente e cheia
de vontade de que gostassem dela. Apaixonei-me à
primeira vista [e] o nosso amor cresceu depressa.» Livre
da controladora supervisão dos pais, Leila atirou-se de
cabeça ao caso amoroso. 
«Da primeira vez que o vi, ele parecia muito cinzento»,
recordaria Leila. «Se o vissem na rua, passaria
despercebido. Mas quando comecei a conversar com ele, o
meu queixo caiu. Ele sabia muito. Era muito interessante,
com o seu brilhante sentido de humor. Devagar, pouco a
pouco, apaixonei-me por ele.» 
Para Gordievsky, a personalidade moderada e a singela
doçura de Leila foram um tónico depois do rabugento
desdém de Yelena. Acostumara-se a ser calculista nas
relações humanas, avaliando constantemente as suas
ações e palavras, e as dos outros. Pelo contrário, Leila era
natural, comunicativa e desinibida: pela primeira vez na
vida, Oleg sentiu-se adorado. Gordievsky introduziu a sua
jovem amante num novo mundo de literatura, que
continha ideias e realidades proibidas na Rússia. Incitada
por ele, Leila leu O Arquipélago Gulag e O Primeiro Círculo,
de Soljenítsin, que descreviam a negra brutalidade do
estalinismo. «Ele deu-me livros da sua biblioteca. Fiquei
muito sensibilizada com aquela cascata de verdade. Ele
educou-me.» Sem que alguma vez lhe dissessem, Leila
percebeu desde o primeiro momento que Gordievsky
trabalhava para o KGB. A possibilidade de o seu interesse
por aquele tipo de livros poder esconder uma dissidência
maior nunca lhe passou pela cabeça. Em conversas
sussurradas, faziam planos extravagantes. Imaginavam-se
a ter filhos. O KGB não via com bons olhos o adultério, e
gostava ainda menos de divórcios. «Os nossos encontros
eram muito secretos. Qualquer fotografia que pudesse ser
prova de adultério seria usada contra ele, sendo castigado
severamente. O Oleg teria sido expulso em 24 horas.»
Teriam de ter paciência. Mas, afinal de contas, ele estava
acostumado a um namoro lento e secreto. 
Gordievsky trabalhava que se fartava nos dois empregos.
Jogava muitas vezes badminton. Leila partilhava o
apartamento com duas raparigas e Yelena passava
bastante tempo em casa, por isso, ele e Leila tinham
encontros amorosos secretos, às escondidas,
emocionantes. No entanto, implicavam mais uma grande
dose de engano e ansiedade: passara a trair Yelena
duplamente – a nível profissional e pessoal. Se fossem
descobertos, Oleg ou Leila, seria um desastre. Ele
disfarçava esta dupla infidelidade com precisão e cuidado.
De dois em dois dias enviava uma mensagem cifrada a
Leila e cometia adultério num hotel diferente de
Copenhaga; uma vez por mês, dirigia-se a um vulgar
apartamento num pacato subúrbio dinamarquês e cometia
traição. Ao longo de um ano criou um sistema de evasão,
iludindo a vigilância soviética e as desconfianças da
mulher. As suas relações com Leila e com o MI6
intensificavam-se. Ele sentia-se seguro. Mas não estava. 
Num dia de inverno, ao entardecer, um jovem funcionário
dos serviços secretos dinamarqueses dirigia-se para casa
em Ballerup quando avistou um carro com matrícula
diplomática estacionado numa rua secundária, longe dos
enclaves diplomáticos. O jovem ficou curioso. Tinha treino
operacional e era entusiasta. Uma observação mais atenta
permitiu-lhe perceber que o carro pertencia à embaixada
soviética. O que fazia um diplomata soviético nos
subúrbios, às sete da tarde, num fim de semana? 
Caíra uma camada de neve e pegadas recentes
afastavam-se do carro. O funcionário do PET seguiu-as
durante cerca de 200 metros até um prédio de habitação.
Um casal dinamarquês ia a sair e segurou educadamente a
porta para ele entrar. Pegadas molhadas atravessavam o
chão de mármore para as escadas. Ele seguiu-as até à
porta de um apartamento no segundo andar. Do interior
vinha o som de vozes abafadas, a falar uma língua
estrangeira. O funcionário anotou a morada e a placa de
matrícula.  
Na manhã seguinte chegou um relatório à secretária de
Jørn Bruun, o diretor da contraespionagem dinamarquesa:
um diplomata soviético suspeito de trabalhar para o KGB
tinha sido seguido até um apartamento em Ballerup, onde
o ouviram falar uma língua não identificada, talvez alemão,
com uma pessoa ou pessoas desconhecidas: «Há alguma
coisa suspeita aqui», concluía o relatório. «Devíamos tomar
medidas em relação a isto.» 
Todavia, antes de a máquina da vigilância dinamarquesa
entrar em ação, Jørn Bruun desligou-lhe o motor. O
relatório foi eliminado do dossiê. O jovem funcionário
demasiado zeloso foi elogiado pela perspicácia e em
seguida foi «despachado» com uma vaga explicação para
o facto de não valer a pena investigar a pista. Não seria a
primeira vez que um serviço de segurança quase arruinava
um caso em curso com a sua diligência. 
Gordievsky ficou abalado quando soube que estivera
perto de ser desmascarado. 
«O contratempo provocou-nos um choque cujas sequelas
se mantiveram durante muito tempo.» Dali em diante,
passou a ir até Ballerup de metropolitano. 
A sua recusa em referir nomes foi-se desvanecendo com
o passar dos meses. Não que houvesse muitos nomes para
dar. Oleg revelou que a rede de agentes e informadores
soviéticos na Dinamarca era lastimavelmente pequena.
Havia Gert Petersen, o sequioso político, um polícia com
excesso de peso do serviço de estrangeiros e fronteiras
dinamarquês que passava informações ocasionais, e vários
ilegais plantados em todo o país, à espera da Terceira
Guerra Mundial. Oleg explicou que os funcionários do KGB
em Copenhaga passavam muito mais tempo a inventar
contactos para justificar as despesas do que a encontrar-se
com alguém. Esta tranquilizadora informação foi passada
ao PET. Os dinamarqueses tiveram o cuidado de não
desmascarar os poucos espiões que Gordievsky tinha
nomeado, pois isto teria apontado logo para um
informador no interior do KGB. Em vez disso, o PET decidiu
não perder de vista o punhado de contactos
dinamarqueses do KGB, e esperar. 
Embora o KGB tivesse poucos espiões dignos desse
nome na Dinamarca, o mesmo não era verdade em relação
aos seus vizinhos escandinavos. 
Gunvor Galtung Haavik era uma discreta funcionária do
Ministério dos Negócios Estrangeiros norueguês, uma
antiga enfermeira que trabalhava como secretária e
intérprete, e em breve iria reformar-se. Era uma mulher
minúscula, simpática e muito tímida. Também era uma
espia veterana e extremamente bem paga, com 30 anos
de serviço, que recebera em segredo a Ordem da Amizade
soviética «por reforçar a compreensão internacional» – o
que de certa forma fizera ao entregar vários milhares de
documentos secretos ao KGB. 
Haavik protagonizou a clássica história de manipulação
do KGB. Perto do fim da guerra, estando a Noruega ainda
ocupada pelos nazis, trabalhava ela num hospital militar
em Bodø quando se apaixonou por um prisioneiro de
guerra russo, Vladimir Kozlov. Ele esqueceu-se de lhe dizer
que já era casado e que tinha família em Moscovo. Haavik
ajudou-o a fugir para a Suécia. Depois da guerra, como
falava russo fluentemente, foi contratada pelo Ministério
dos Negócios Estrangeiros e mandada para Moscovo como
secretária do embaixador norueguês. Ali, o seu caso
amoroso com Kozlov foi retomado. O KGB descobriu o
romance ilícito e arranjou um apartamento onde eles
podiam encontrar-se: e depois ameaçaram expor a relação
adúltera aos noruegueses e exilar Kozlov para a Sibéria, a
não ser que Haavik aceitasse espiar para eles. Durante
oito anos, ela passou resmas de material ultrassecreto, e
continuou a fazê-lo depois de voltar para o Ministério dos
Negócios Estrangeiros em Oslo. A Noruega, o flanco norte
da NATO, partilhava uma fronteira ártica de quase 200
quilómetros com a URSS, que o KGB considerava ser «a
chave para o norte». Aqui, a Guerra Fria era travada com
gélida ferocidade. Haavik, que tinha o nome de código
GRETA, encontrou-se com oito controladores diferentes do
KGB pelo menos 270 vezes e continuou a receber dinheiro
de Moscovo e mensagens de Kozlov (isto é, do KGB, a
fingir que era o seu amante russo). Solteirona crédula e de
coração partido, obrigada a colaborar com o KGB, Haavik
nem sequer era comunista. 
Arne Treholt era tão conspícuo e glamoroso como Haavik
era discreta e apagada. Filho de um popular ministro do
Governo norueguês, um conceituado jornalista e membro
do poderoso Partido Trabalhista da Noruega, ele era
extravagante, atraente e frontal nas suas ideias de
esquerda. Treholt tinha uma intensa vida social e reforçou
as suas credenciais de celebridade ao casar-se com uma
estrela da televisão norueguesa, Kari Storækre. O New York
Times descreveu-o como «um dos jovens de ouro da vida
pública na Noruega». Algumas pessoas pensaram que
poderia vir a ser primeiro-ministro. 
Contudo, em 1967 a incisiva oposição de Treholt à Guerra
do Vietname atraiu a atenção do KGB. Foi abordado por
Yevgeny Belyayev, um agente dos serviços secretos que
trabalhava sob o disfarce de funcionário consular na
embaixada soviética. Mais tarde, Treholt disse à polícia
(uma declaração que negaria posteriormente) que fora
recrutado com «chantagem sexual» depois de uma orgia
em Oslo. Belyayev encorajou Treholt a aceitar dinheiro em
troca de informações e, em 1971, no restaurante Coq d’Or
em Helsínquia, apresentou-o a Gennadi Fyodorovich Titov,
o novo rezident do KGB em Oslo. A desumanidade de Titov
valera-lhe a alcunha de «o Crocodilo» embora, com
grandes óculos redondos e um andar bamboleante,
parecesse mais uma coruja particularmente maliciosa.
Titov tinha a «reputação de maior adulador do Primeiro
Diretório Principal». Treholt gostava de ser lisonjeado.
Também gostava de almoços gratuitos. Ao longo da
década seguinte, ele e Titov almoçaram juntos 59 vezes a
expensas do KGB. «Tivemos almoços gloriosos», recordaria
Treholt muitos anos mais tarde, «onde falávamos sobre
política norueguesa e internacional.» 
A Noruega ficava fora da alçada de Gordievsky, mas no
pensamento do KGB os países escandinavos formavam um
todo e cada estação era até certo ponto posta a par das
atividades das outras. Em 1974, um novo funcionário do
KGB chamado Vadim Cherny foi destacado de Moscovo,
onde trabalhava na secção escandinava-britânica do
Primeiro Diretório Principal, para a Dinamarca. Cherny era
um funcionário medíocre e um inveterado coscuvilheiro.
Um dia, deixou escapar que o KGB controlava uma agente,
com o nome de código GRETA, no serviço diplomático
norueguês. Algumas semanas mais tarde, referiu que o
KGB recrutara outro agente «ainda mais importante» no
seio do Governo norueguês, «alguém com formação
jornalística». 
Gordievsky transmitiu estas informações a Hawkins, que
as comunicou ao MI6 e ao PET. 
As duas pistas extremamente valiosas foram
transmitidas à contraespionagem norueguesa. A fonte foi
muito bem camuflada: informaram a Noruega de que o
relatório era fiável, mas a sua proveniência foi mantida em
segredo. «Não eram informações que o Oleg tinha no
decorrer do seu trabalho, mas coisas que ouvira – por isso
decidimos que não lhe seriam atribuídas diretamente.» Os
noruegueses ficaram agradecidos e profundamente
alarmados. Gunvor Haavik, a discreta secretária principal
do Ministério dos Negócios Estrangeiros, estava sob
suspeita há algum tempo. O aviso de Gordievsky
providenciou informações cruciais. O elegante Arne Treholt
também tinha surgido no radar depois de ser visto na
companhia de um conhecido operacional do KGB. A partir
de então, seriam ambos vigiados de perto. 
A ligação norueguesa ilustra um problema crucial do caso
Gordievsky, e uma questão difícil na espionagem em geral:
como usar informações de alto nível sem comprometer a
fonte. Um agente profundamente infiltrado no campo do
inimigo pode desmascarar espiões no seu campo. Mas se
eles forem todos presos e neutralizados, o outro lado é
alertado para o espião e a fonte fica em perigo. Como
podia o serviço de informações aproveitar o que
Gordievsky estava a revelar sem o queimar? 
Desde o primeiro momento, o MI6 optou por prolongar o
jogo. Gordievsky ainda era um homem jovem. As
informações que lhes dava eram excelentes e só
melhorariam com o tempo e com as promoções.
Demasiada pressa ou sede de informações poderiam
aniquilar o caso e destruí-lo. A segurança era primordial. O
desastre ocorrido com Philby ensinara à Grã-Bretanha os
perigos de uma traição interna. O minúsculo grupo de
funcionários no MI6 a par do segredo só era informado do
que precisava de saber. Dentro do PET, menos pessoas
ainda estavam conscientes da existência de Gordievsky. As
informações que ele passava eram transmitidas com
moderação aos aliados, por vezes através de
intermediários ou cutouts ,
18
em fragmentos
cuidadosamente disfarçados para parecer que tinham
vindo de outro lado. Gordievsky estava a revelar um
número cada vez maior de segredos, mas o MI6 tinha de
garantir que neles não havia as suas impressões digitais. 
A CIA não foi informada sobre SUNBEAM. A suposta
«relação especial» era particularmente calorosa no âmbito
de ação dos serviços de informações, mas o princípio da
«necessidade de saber» aplicava-se nos dois sentidos.
Ficou decidido que a CIA não precisava de saber que a Grã-
Bretanha tinha um importante espião profundamente
infiltrado no KGB. 
Os serviços de informações não gostam que os seus
funcionários se mantenham indefinidamente num lugar,
para não ficarem demasiado confortáveis; de igual modo,
os controladores de agentes são mudados, para garantir
que não perdem a objetividade nem se envolvem
demasiado num caso ou com um único espião. 
De acordo com este princípio, o rezident do KGB em
Copenhaga, Mogilevchik, foi substituído por Lyubimov, o
velho amigo de Gordievsky, o amistoso anglófilo com
predileção por uísque escocês e fatos de tweed. Os dois
homens retomaram imediatamente a amizade. Lyubimov
já ia no segundo casamento. O fim do primeiro causara um
percalço na sua carreira, mas agora estava de novo numa
fase ascendente. Gordievsky admirava este «tipo
simpático e descontraído», com a sua perspetiva mundana
e irónica do mundo. Passavam longos serões juntos, a
conversar e a beber, a falar sobre literatura, arte, música e
espionagem. 
Lyubimov sabia que o amigo e protegido iria longe. Os
superiores consideravam-no «competente e erudito» e era
bom no seu trabalho. «O Oleg tinha um comportamento
impecável», escreveu Lyubimov. «Não se envolvia em
nenhuma das guerras internas, estava sempre pronto para
providenciar o que eu queria, era modesto como um
verdadeiro comunista, não fazia de tudo para ser
promovido [...] alguns dos funcionários da embaixada não
gostavam dele: “arrogante”, chamavam-lhe, e também
“espertalhão”. Mas eu não via estas características como
defeitos. A maioria das pessoas não se acha esperta?» Só
em retrospetiva é que Lyubimov recorda alguns sinais
reveladores. Gordievsky tinha deixado de ir à maioria das
festas diplomáticas e, com exceção de Lyubimov,
raramente socializava com outros colegas do KGB.
Alimentava a sua predileção por literatura dissidente. «No
seu apartamento havia livros de certos autores proibidos
no nosso país, que eu, como seu superior, o aconselhei a
esconder.» Os dois casais jantavam juntos com frequência,
e nessas alturas Gordievsky dizia piadas, bebia uns copos
a mais e fingia que o seu casamento era feliz. Lyubimov
nunca se esqueceu de um comentário de Yelena. «Na
verdade, ele não é nada extrovertido», disse ela. «Não
penses que está a ser sincero contigo.» Lyubimov sabia
que o casamento estava por um fio e não ligou ao
comentário. 
Uma noite, em janeiro de 1977, Gordievsky chegou ao
apartamento seguro, como sempre, e encontrou Philip
Hawkins à sua espera com um homem mais novo, de
óculos, que apresentou como «Nick Venables». Hawkins
explicou que ia ocupar um cargo no estrangeiro e aquele
homem seria o seu substituto. 
O novo controlador era Geoffrey Guscott, o ambicioso
funcionário que, sete anos antes, lera o dossiê de Kaplan e
marcara Gordievsky como um potencial alvo. Guscott era o
assistente não operacional de Hawkins e, por conseguinte,
estava familiarizado com todos os aspetos do caso
Gordievsky. No entanto, estava nervoso. «Eu estava
convencido de que sabia o suficiente para assumir aquela
responsabilidade, mas era bastante jovem. O MI6 disse:
“Vai correr tudo bem.” Mas eu não tinha tanta certeza.» 
Gordievsky e Guscott gostaram logo um do outro. O
inglês falava russo fluentemente e desde o primeiro
momento começaram a usar aquela língua. Ambos eram
corredores de fundo. Mas, mais do que isso, ao contrário
de Hawkins, Guscott parecia valorizar Oleg como uma
pessoa, não apenas como uma fonte de informações.
«Inspirador em todos os sentidos, sempre alegre, sempre
sinceramente apologético por todos os erros que cometia»,
Guscott era como uma alma gémea, agora totalmente
dedicado ao caso, em absoluto segredo. Dentro do MI6,
apenas a sua secretária e os superiores imediatos sabiam
o que ele estava a fazer. O caso SUNBEAM passou para
outro nível. 
O MI6 ofereceu-se para lhe fornecer uma máquina
fotográfica em miniatura. Com ela, Gordievsky poderia
fotografar documentos no interior da rezidentura e
entregar-lhes a película por revelar. Oleg recusou. O risco
de ser apanhado era demasiado alto: «Um olhar por uma
porta entreaberta e tudo estaria terminado.» Não havia
prova mais incriminatória do que a posse de uma máquina
fotográfica em miniatura fabricada na Grã-Bretanha.
Contudo, havia outra forma de tirar documentos da
estação do KGB às escondidas. 
As mensagens e instruções de Moscovo chegavam em
longos carretos de microfilme, transportados na «mala
diplomática» soviética, um processo reconhecido pelo
direito internacional para passar informações em
segurança para e de embaixadas sem interferência do país
anfitrião. O rezident ou, mais habitualmente, os
criptógrafos cortavam a película em tiras e entregavam-
nas às secções ou «linhas» relevantes: Ilegais (N), Política
(PR), Contraespionagem (KR), Técnica (X), etc. Cada tira de
filme podia incluir uma dúzia ou mais de cartas,
memorandos ou outros documentos. Se Gordievsky
conseguisse levar as tiras de microfilme para fora da
embaixada durante a hora do almoço, poderia passá-las a
Guscott, que as copiaria e devolveria. O processo
demoraria menos de meia hora. 
Guscott fez um pedido ao departamento técnico do MI6
em Hanslope Park, uma propriedade rural em
Buckinghamshire rodeada de frondosos parques, um
cordão de segurança de arame farpado e guaritas.
Hanslope era (e é) um dos postos remotos mais secretos e
fortemente guardados dos serviços de informações
britânicos. Durante a guerra, os génios de Hanslope
produziram uma quantidade surpreendente de artefactos
técnicos para espiões, incluindo rádios seguros, tinta
secreta e até chocolate com sabor a alho – dado a espiões
que eram lançados de paraquedas na França ocupada para
garantir que o seu hálito parecia convincentemente
francês quando chegavam. Se Q, o génio da tecnologia da
série de James Bond, tivesse existido na realidade, teria
trabalhado em Hanslope Park. 
O pedido de Guscott foi ao mesmo tempo simples e
complicado: precisava de um dispositivo pequeno e portátil
com capacidade para copiar uma tira de microfilme de
uma forma secreta e rápida. 
Sankt Annæ Plads é uma comprida praça pública ladeada
de árvores no centro de Copenhaga, não muito longe do
Palácio Real. À hora do almoço, sobretudo com bom
tempo, está cheia de pessoas. Num dia de primavera em
1977, um homem forte, de fato, entrou na cabina
telefónica ao fundo do parque. Quando estava a marcar o
número, um turista de mochila parou para pedir indicações
e afastou-se. Naquele momento, Gordievsky enfiou um rolo
de microfilme no bolso do casaco de Guscott. Jørn Bruun
certificara-se de que não haveria vigilância do PET. Um
funcionário subalterno da estação do MI6 estava sentado
num banco próximo. 
Guscott apressou-se a ir para uma casa segura do PET
nas redondezas, fechou-se num quarto do primeiro andar e
pegou num par de luvas de seda e numa pequena caixa
achatada, com 15 centímetros de comprimento e 7,5
centímetros de largura, aproximadamente com o tamanho
de uma agenda de bolso. Correu as cortinas, apagou a luz,
desenrolou a película, inseriu uma extremidade na
pequena caixa e puxou o filme. 
«Era um procedimento bastante delicado, pois tudo era
feito às escuras. Sabia que, se não conseguisse despachar
o processo a tempo, teria de abortar. E se danificasse o
microfilme, seria um grande problema.» 
Precisamente 35 minutos após o primeiro contacto, os
dois homens cruzavam-se novamente na outra
extremidade do parque, de forma impercetível para
qualquer pessoa a não ser para um especialista em
vigilância altamente qualificado, e o rolo voltava para o
bolso de Gordievsky. 
O fluxo de documentos que saía da rezidentura e ia parar
às mãos do MI6 transformou-se numa torrente: num
primeiro momento só tinham acesso às instruções
enviadas do Centro em Moscovo para a Linha PR, que eram
recebidas por Gordievsky, mas, a pouco e pouco, ele
começou a trazer microfilmes destinados a outros
funcionários, que eram frequentemente deixados nas
secretárias ou em pastas durante a hora do almoço. 
As recompensas eram grandes, mas os riscos também.
Em cada transferência de material roubado, Gordievsky
sabia que estava a pôr a sua vida em risco. Outro
funcionário do KGB poderia regressar inesperadamente do
almoço e perceber que o seu microfilme com instruções
desaparecera, ou Gordievsky poderia ser visto a mexer em
material que não era para si. Se o apanhassem com um
microfilme fora da embaixada, estava condenado. Guscott
observou com um flagrante eufemismo que cada contacto
de raspão era «extremamente elétrico». 
Gordievsky estava aterrorizado, mas mantinha a
determinação. Estes contactos proporcionavam-lhe a
emoção do jogador que faz uma jogada bem-sucedida,
mas não sabe se a sua sorte se manterá. Mesmo quando o
tempo estava muito frio, ele voltava para a rezidentura
encharcado em suor, por causa do medo e da excitação,
esperando que os colegas não reparassem nas suas mãos
trémulas. Os locais de contacto seguiam um padrão
deliberadamente irregular: um parque, um hospital, a casa
de banho de um hotel, uma estação. Guscott estacionava o
carro perto, para a eventualidade de o processo de cópia
ter de ser realizado no interior do veículo, dentro de um
saco de tecido à prova de luz. 
Apesar de todas as cautelas, não era possível prevenir
acidentes. Numa ocasião, Guscott combinou um contacto
numa estação ferroviária a norte da cidade. Posicionou-se
junto de uma janela da cafetaria da estação e bebeu um
café enquanto esperava que Gordievsky aparecesse e
deixasse um rolo de microfilme num rebordo da cabina
telefónica. O russo chegou, fez a entrega e afastou-se,
porém, antes de Guscott conseguir entrar na cabina, um
homem adiantou-se e começou a fazer um telefonema. Um
longo telefonema. Os minutos foram passando e o homem
continuava a conversar, inserindo moedas atrás de
moedas. Só havia uma janela de 30 minutos para recolher
o filme, copiá-lo e devolvê-lo num segundo local de
contacto, noutro sítio, e o tempo começava a escassear.
Guscott andou de um lado para o outro ao pé da cabina
telefónica, a saltitar, com uma ansiedade que não era
fingida. O homem que estava ao telefone ignorou-o.
Guscott estava prestes a entrar e a pegar no rolo quando o
homem finalmente desligou. Guscott chegou ao segundo
ponto de contacto menos de um minuto antes da hora
marcada. 
Como vice e confidente de Lyubimov, Gordievsky tinha
acesso a muitos dos microfilmes e «o volume de gravações
multiplicou-se». Dezenas e, eventualmente, centenas de
documentos foram extraídos e copiados, com pormenores
de nomes de código, operações, diretivas e até toda a
análise confidencial de 150 páginas compilada pela
embaixada, um retrato completo da estratégia diplomática
soviética na Dinamarca. As informações eram
cuidadosamente parceladas em Londres, disfarçadas e
distribuídas com parcimónia: ao MI5, se afetassem a
segurança nacional, e, de vez em quando, se fossem
bastante importantes, ao Ministério dos Negócios
Estrangeiros. Quanto aos aliados da Grã-Bretanha, apenas
os dinamarqueses recebiam informações diretas dos
dossiês SUNBEAM. Algum do material – nomeadamente o
que estava relacionado com a espionagem soviética no
Ártico – era mostrado ao ministro dos Negócios
Estrangeiros, David Owen, e ao primeiro-ministro, James
Callaghan. Ninguém conhecia a sua proveniência. 
Guscott começou a viajar para a Dinamarca com maior
frequência, e a permanecer aí mais tempo, mudando-se
para o apartamento de Ballerup durante três dias
seguidos. Os dois espiões realizavam uma troca de
microfilmes à hora do almoço na sexta-feira e reuniam-se
no apartamento no sábado à noite, e de novo na manhã
seguinte. O seu caso romântico com Leila e os encontros
de espionagem com Guscott significavam que Gordievsky
passava cada vez mais tempo fora de casa. Disse a Yelena
que estava ocupado com trabalho secreto do KGB que não
lhe dizia respeito. Ela terá ou não acreditado nele. 
As condições de Gordievsky para colaborar foram-se
diluindo, e depois evaporaram-se. O russo sabia que
gravavam as suas conversas. Abandonou a recusa de
referir nomes e identificava todos os funcionários, todos os
ilegais e todas as fontes do KGB. Por fim, concordou em
aceitar dinheiro. Guscott disse-lhe que «de vez em
quando» seria depositada uma quantia num banco de
Londres, como contingência, um sinal de gratidão da Grã-
Bretanha e um reconhecimento não expresso de que ele
acabaria por desertar para o Reino Unido. Gordievsky
talvez nunca pudesse gastar os lucros da espionagem, mas
valorizou o gesto e aceitou o dinheiro. 
Gordievsky era mais valioso do que esse dinheiro e havia
outra forma muito simbólica de o demonstrar: uma carta
pessoal de agradecimento do diretor do MI6. 
Maurice Oldfield, o espião mais importante da Grã-
Bretanha, assinava como «C» com tinta verde, uma prática
adotada pelo fundador do MI6, Mansfield Cumming, que a
importou da Marinha Real, onde os comandantes dos
navios costumam escrever com tinta verde. A tradição foi
adotada por todos os diretores do MI6 desde então.
Guscott escreveu uma carta de agradecimento e de
parabéns de Oldfield para Gordievsky, em inglês, em
espesso papel de carta bege, que o diretor do Serviço
assinou com um floreado verde. Guscott traduziu-a para
russo e entregou o original e a tradução a Gordievsky no
encontro seguinte. O rosto de Oleg iluminou-se ao ler o
encómio. Guscott levou a carta consigo quando se
separaram: uma carta pessoal assinada com tinta verde
pelo diretor dos espiões não era o tipo de recordação que
Gordievsky poderia manter na sua posse. «Era uma forma
de garantir a um nível formal ao Oleg que o levávamos a
sério, de estabelecer uma ligação pessoal e mostrar-lhe
que estava a lidar com a própria organização. Tudo isso
contribuiu para o tranquilizar e marcou a maturidade do
caso.» No encontro seguinte, Gordievsky trouxe uma
resposta para Oldfield. A correspondência entre SUNBEAM
e «C» ainda está nos arquivos do MI6, uma prova do toque
pessoal de que a espionagem de sucesso depende. 
A carta de Gordievsky foi o seu testemunho. 
 
Tenho de realçar que esta decisão não é o resultado
de irresponsabilidade ou instabilidade de carácter da
minha parte. Foi precedida de uma longa luta espiritual
e de uma agonizante emoção, e um desapontamento
ainda mais profundo com os acontecimentos no meu
país e as minhas experiências que me fizeram acreditar
que a democracia, e a tolerância da humanidade que
lhe é inerente, representa o único caminho para o meu
país, que, apesar de tudo, é europeu. O atual regime é
a antítese da democracia a um nível que os ocidentais
nunca conseguirão perceber. Se um homem percebe
isto, tem de mostrar a coragem das suas convicções e
fazer alguma coisa para impedir que a escravatura se
enraíze nos reinos da liberdade. 
 
Gunvor Haavik marcou um encontro com o seu
controlador do KGB, Aleksandr Printsipalov, na noite de 27
de janeiro de 1977. O russo estava à espera quando ela
chegou ao local do encontro numa escura rua secundária
num subúrbio de Oslo. À espera estavam também três
funcionários do serviço de segurança norueguês, que
atacaram. Após uma «violenta luta», o funcionário
soviético foi finalmente dominado e cerca de 2000 coroas
foram encontradas no seu bolso, o mais recente
pagamento para GRETA. Haavik não ofereceu resistência.
Num primeiro momento, reconheceu apenas o caso
amoroso com o russo Kozlov, mas por fim cedeu: «Vou
contar-vos a verdade. Sou espia russa há quase 30 anos.»
Haavik foi acusada de espionagem e traição, mas faleceu
de ataque cardíaco fulminante na prisão seis meses mais
tarde, antes de o seu caso ser julgado em tribunal. 
Seguiram-se as repercussões diplomáticas: Gennadi
Titov, o rezident do KGB, foi expulso de Oslo e a notícia de
que uma importante agente fora detida na Noruega
chegou rapidamente à estação do KGB na Dinamarca,
dando origem a uma grande especulação entre os
funcionários, e, no caso de um deles, um «frio arrepio» de
medo. Gordievsky presumiu que a sua delação levara
diretamente à detenção. Todas as pessoas que estavam
ligadas ao caso seriam interrogadas. Se o fala-barato
Cherny se lembrasse da informal conversa sobre GRETA
com Gordievsky alguns meses antes e tivesse a coragem
de a relatar, os caçadores de toupeiras do KGB poderiam
começar a seguir-lhe o rasto. As semanas foram passando
sem que tivesse sentido «um toque no ombro», e
Gordievsky começou a descontrair a pouco e pouco, mas o
incidente, entretanto, deu-lhe que pensar: se as
informações que ele passava ao MI6 fossem usadas de
uma forma demasiado óbvia, levariam à sua destruição. 
Yelena Gordievsky não era burra. O marido andava a
tramar alguma. Passava cada vez mais noites e fins de
semana fora de casa, dando sucintas explicações para as
suas ausências. Sem ninguém lhe ter dito, Yelena percebeu
que o marido estava a ter um caso amoroso. Confrontou-o,
furiosa; ele negou de uma forma pouco convincente. No
apartamento houve uma série de «desagradáveis cenas»,
ruidosas e sem dúvida ouvidas pelos vizinhos do KGB. A
isto seguiu-se um furioso silêncio sem palavras. A relação
estava praticamente morta, mas ambos se sentiam
encurralados. A exemplo de Gordievsky, Yelena não queria
que a sua carreira no KGB fosse prejudicada pelo
escândalo e queria permanecer na Dinamarca. Havendo
separação, seguiriam no primeiro avião para Moscovo.
Tinham-se casado em obediência às regras do KGB e
teriam de continuar casados, pelo menos no papel, pelo
mesmo motivo. Porém, o casamento tinha acabado. 
Um dia, Guscott perguntou a Gordievsky se estava sob
algum «stresse excessivo». Claramente, os técnicos que
faziam as escutas tinham ouvido o turbilhão doméstico e a
loiça a voar no apartamento e comunicaram ao MI6. Ele
garantiu ao controlador que, se bem que o seu casamento
estivesse a desmoronar-se, ele não estava. Porém, foi mais
um lembrete de que estava a ser vigiado, e por aqueles
que agora eram seus amigos. 
Leila representava para ele um paraíso emocional. Em
comparação com os sombrios compromissos no seu
casamento em desagregação, os momentos de intimidade
com ela pareciam ainda mais doces por serem secretos e
apressados, num ou noutro quarto de hotel. «Fazíamos
planos para nos casarmos quando conseguisse libertar-
me», escreveu. Yelena estava zangada e adotara uma
atitude agressiva, ao passo que a esbelta morena Leila era
meiga, bondosa e divertida. Ela tinha nascido e crescido no
seio do KGB. O pai, Ali, fora recrutado aos 20 e poucos
anos na sua cidade natal de Shaki, no Noroeste do
Azerbaijão. A mãe, uma de sete filhos de uma família
moscovita pobre, também pertencia ao KGB e conhecera o
futuro marido num curso de treino em Moscovo pouco
depois da guerra. Porém, ao contrário do que acontecia
com a esposa, Gordievsky nunca sentia que a amante
estava a observá-lo, a avaliá-lo. A ingenuidade de Leila era
um antídoto para a complexidade da sua vida. Ele amava-a
como nunca amara ninguém antes. Contudo, ao mesmo
tempo, estava envolvido num tumultuoso caso secreto
com o MI6. Os seus desejos emocionais e os seus atos de
espionagem estavam em conflito direto. O divórcio e um
novo casamento prejudicariam não apenas a sua carreira
no KGB, mas também as perspetivas de obter mais
informações valiosas para o MI6. O amor começa muitas
vezes com uma confidência da crua verdade, uma ardente
revelação da alma. Leila era jovem e crédula, e acreditava
piamente no seu atraente e atencioso amante. «Nunca
senti que o tivesse roubado à Yelena. O casamento deles
estava terminado. Eu idolatrava-o. Pu-lo num pedestal. Ele
era perfeito.» No entanto, sem que ela percebesse,
Gordievsky nunca esteve totalmente presente. «Metade da
minha existência e dos meus pensamentos tinham de
permanecer secretos.» Oleg perguntou a si mesmo se a
vida dupla que levava impossibilitaria um autêntico
casamento de mentes: «Conseguiria eu estabelecer a
relação próxima e afetuosa com que sonhava?» 
Por fim, confidenciou a Mikhail Lyubimov que estava a ter
um caso com uma jovem secretária da Organização
Mundial de Saúde e que pretendia casar-se com ela. O
amigo e chefe foi compreensivo, mas realista. Por
experiência pessoal, Lyubimov sabia que as perspetivas do
seu protegido sofreriam quando os puritanos do KGB
descobrissem a situação. Lyubimov fora despromovido e
ignorado durante vários anos logo após o seu casamento
se ter desmoronado. «Um Oleg divorciado estaria
condenado à monotonia do trabalho administrativo»,
escreveu. O rezident prometeu-lhe que intercederia por ele
junto dos superiores. 
Gordievsky e Lyubimov tornaram-se ainda mais próximos.
No verão de 1977, viajaram juntos para passar um fim de
semana na costa dinamarquesa. Uma tarde, na praia,
Lyubimov descreveu como estabelecera amizade com
diversas figuras de esquerda quando era um jovem agente
do KGB em Londres na década de 1960, incluindo um
impetuoso deputado do Partido Trabalhista chamado
Michael Foot, considerado por Moscovo um potencial
«agente de influência», uma pessoa que poderia estar
recetiva a ideias pró-soviéticas e a reproduzi-las em artigos
e discursos. Esse nome não dizia nada a Gordievsky. 
Lyubimov podia ser «um amigo para a vida», mas
também era uma fonte primordial de informações. Tudo o
que Gordievsky extraía dele era transmitido ao MI6,
incluindo documentos dirigidos ao rezident com o seu
nome de código, KORIN. A amizade também era uma
traição. Mais tarde, Lyubimov comentaria: «O Oleg
Gordievsky estava a manipular-me habilmente.» 
Após os encontros, Guscott reportava pessoalmente a
Oldfield. Durante uma dessas sessões, o controlador
descreveu que Lyubimov estava a ser «seduzido» pelo
novo chefe de estação em Copenhaga, e parecia muito
amistoso. «O SUNBEAM acabará por sair da Dinamarca, por
isso temos de procurar um alvo que o substitua. Quem
melhor do que o Lyubimov? Ele é muito anglófilo e já o
convenceram a mudar de equipa uma vez. O senhor iria
gostar dele. Também é terrivelmente snobe e poderá
responder bem à abordagem por alguém num cargo
superior.» Assim nasceu uma ideia radical. Maurice
Oldfield, o diretor do MI6, viajaria para Copenhaga e
tentaria recrutar o rezident do KGB pessoalmente. O
diretor da contraespionagem não aceitou a proposta: «C»
não se poderia arriscar a empreender uma operação ativa,
e se a coisa corresse mal, as atenções voltar-se-iam para
Gordievsky. «Felizmente, o plano foi posto na gaveta»,
disse um funcionário do serviço de informações. «Era uma
loucura.» 
Gordievsky escreveria: «Senti alívio e euforia por já não
ser um homem desonesto a trabalhar para um regime
totalitário.» No entanto, aquela honestidade exigia engano
emocional, fraude numa causa virtuosa e uma duplicidade
sagrada. Oleg contava ao MI6 todas as verdades secretas
que descobria, enquanto mentia aos colegas e aos chefes,
à família, ao melhor amigo, à distante mulher e à nova
amante. 

18Um intermediário de confiança que controla as comunicações entre espiões.


(N. da T.)
5. Um Saco de Plástico e um Chocolate
Mars 

Na Westminster Bridge Road em Lambeth, não muito


longe da estação de Waterloo, erguia-se a Century House,
um grande e feio prédio de escritórios feito em vidro e
betão. Nada distinguia o edifício dos demais. As pessoas
que entravam e saíam pareciam iguais a todos os outros
funcionários dos escritórios das redondezas. Todavia, um
observador curioso poderia reparar que o segurança no
átrio era mais musculoso e estava muito mais atento do
que era normal. Também poderia perguntar-se porque é
que havia tantas carrinhas da companhia dos telefones
estacionadas à porta a horas estranhas do dia. Talvez
reparasse que os empregados tinham horários irregulares
e que havia volumosos pilaretes elétricos a proteger o
parque de estacionamento subterrâneo. Contudo, se o
curioso observador estivesse parado durante tempo
suficiente para reparar naquelas coisas, seria detido. 
A Century House era a sede do MI6 e as instalações mais
secretas em toda a cidade de Londres. Oficialmente, não
existia, e o MI6 também não. Era um lugar tão discreto e
deliberadamente banal que os recém-chegados
questionavam-se muitas vezes se lhes tinham indicado a
morada errada. «Até havia pessoas que eram recrutadas
para o Serviço», escreveu um antigo funcionário, «e só
percebiam depois de lá estarem há uma ou duas semanas
de trabalho.»19 O público ignorava por completo o
verdadeiro objetivo daquele edifício igual a tantos outros, e
os poucos funcionários e jornalistas que sabiam para que
se destinava mantinham a boca fechada. 
O departamento do Bloco de Leste ocupava o décimo
segundo andar. Num canto havia um conjunto de
secretárias ocupadas pela secção P5, a equipa que
controlava as operações e os agentes soviéticos e fazia a
ligação com a estação do MI6 em Moscovo. Apenas três
pessoas na secção P5 estavam a par do caso Gordievsky.
Uma delas era Veronica Price. 
Em 1978, Price tinha 48 anos, era solteira, dedicada ao
Serviço e uma daquelas mulheres britânicas enérgicas,
práticas e quintessenciais que não toleram disparates,
acima de tudo dos homens. Filha de um solicitador que
fora ferido com gravidade na Primeira Guerra Mundial
(«até morrer, saíam-lhe do corpo fragmentos de estilhaços
de granada»), Veronica cresceu com uma forte noção de
patriótica retidão, mas também com uma propensão para
o drama herdada da mãe, uma antiga atriz. «Eu não queria
ser advogada. Queria viajar.» Como não conseguiu entrar
para o Ministério dos Negócios Estrangeiros, por não
produzir uma estenografia adequada, acabou como
secretária no MI6. Trabalhou na Polónia, na Jordânia, no
Iraque e no México, mas o MI6 demorou quase 20 anos a
perceber que as suas capacidades iam muito para além de
datilografar e arquivar. Em 1972, fez um exame para se
tornar uma das primeiras mulheres nos serviços secretos
britânicos. Cinco anos mais tarde, seria nomeada vice-
diretora da secção P5. Fazia diariamente o percurso entre a
Century House e Home Counties, onde vivia com a mãe
viúva, com a irmã Jane, diversos gatos e uma grande
coleção de loiça de porcelana. Price insistia em fazer bem
as coisas. Era muito sensata e, como um colega diria,
«extremamente persistente». Veronica Price gostava de
resolver problemas. Na primavera de 1978, foi posta a par
do caso Gordievsky e começou a tentar resolver um
problema que o MI6 nunca tivera antes: como tirar um
espião da União Soviética em segredo. 
Algumas semanas antes, Gordievsky chegara ao
apartamento seguro aparentando cansaço e preocupação. 
«Tenho de pensar na minha segurança, Nick. Nos
primeiros três anos não pensei nisso, mas em breve
regressarei a Moscovo. Vocês conseguem tirar-me da União
Soviética se eu cair sob suspeita? Se voltar, há alguma
forma de sair de lá?» 
Tinham começado a circular inquietantes rumores: o
Centro em Moscovo suspeitava da existência de um espião
a operar no interior do KGB. Os mexericos não sugeriam
que a fuga vinha da Dinamarca, ou mesmo da
Escandinávia, mas a simples sugestão de uma
investigação interna foi suficiente para provocar um
horrível arrepio de apreensão. E se o MI6 tivesse sido
penetrado? Estaria outro Philby a pairar no interior dos
serviços secretos britânicos, preparado para expor
Gordievsky? Não havia qualquer garantia de que ele
voltaria a ser destacado para um país estrangeiro,
sobretudo se resolvesse divorciar-se, e era possível que
ficasse na União Soviética para sempre. Gordievsky queria
saber se poderia sair, em caso de necessidade. 
Retirar um espião russo da Dinamarca teria sido uma
brincadeira de crianças: um telefonema para um número
de emergência, uma noite numa casa segura, um
passaporte falso e um bilhete para Londres. Porém,
organizar uma fuga de Moscovo, se o KGB o
desmascarasse, seria muito diferente e provavelmente
impossível. 
A resposta de Guscott deu que pensar. «Não podemos
fazer promessas, e não garantimos a cem por cento que
conseguirás escapar.»  
Gordievsky sabia que a probabilidade de sucesso era
muito mais baixa do que isso. «Claro», respondeu. «Isso é
absolutamente evidente. Mas dá-me uma possibilidade,
para o que der e vier.» 
A verdade é que a União Soviética era uma enorme
prisão, com mais de 280 milhões de pessoas atrás de
fronteiras fortemente guardadas, com mais de um milhão
de funcionários e informadores do KGB que agiam como
carcereiros. A população era constantemente vigiada e
nenhum segmento da sociedade era mais controlado do
que o próprio KGB: a Sétima Divisão era responsável pela
segurança interna, tendo cerca de 1500 homens
destacados só em Moscovo. Sob o inflexível jugo do
comunismo de Leonid Brezhnev, a paranoia subira para
níveis quase estalinistas, criando um Estado espião que
punha todos contra todos, onde os telefones estavam sob
escuta, as cartas eram abertas e as pessoas eram
encorajadas a denunciar o próximo, em toda a parte,
sempre. A invasão soviética do Afeganistão, e o resultante
aumento da tensão internacional, intensificara o escrutínio
interno no KGB. «Medo à noite, e um febril esforço durante
o dia para fingir entusiasmo por um sistema de mentiras,
era o estado permanente do cidadão soviético»20,
escreveria Robert Conquest. 
A infiltração, o recrutamento e o contacto com espiões na
União Soviética eram extremamente difíceis. Os poucos
agentes alistados ou inseridos atrás da Cortina de Ferro
tendiam a desaparecer, sem aviso ou explicação. Numa
sociedade permanentemente atenta à espionagem, a
esperança de vida de um agente secreto era curta.
Quando a rede do KGB se fechava, fazia-o a uma
velocidade brutal. Porém, como era um funcionário do KGB
no ativo, tornava-se possível que Gordievsky soubesse de
uma ameaça iminente para a sua segurança e tivesse
tempo suficiente para tentar uma fuga de emergência. 
Era precisamente o tipo de desafio que Veronica Price
adorava, sendo ela uma especialista na arte da exfiltração.
Em meados da década de 1970 tinha organizado a
Operação INVISIBLE, a exfiltração de uma equipa de
cientistas checos, marido e mulher, para a Austrália.
Também retirara da Hungria um funcionário dos serviços
secretos checos com o nome de código DISARRANGE. «Mas
os checos e os húngaros não tinham o KGB», disse ela. «Na
Rússia era muito, muito mais difícil», e a distância a
percorrer para chegar a um lugar seguro era muito maior.
Para além de perderem o agente, uma tentativa de fuga
falhada daria aos russos uma importante arma de
propaganda. 
Havia a possibilidade de a fuga se fazer por mar. Price
começou a investigar se, com documentos falsos, um
fugitivo poderia embarcar num navio de passageiros ou da
marinha mercante num dos portos russos. Porém, as docas
e os portos estavam tão fortemente policiados como as
fronteiras e os aeroportos, e era praticamente impossível
arranjar falsificações, porque os documentos oficiais russos
possuíam marcas de água, como as notas bancárias, que
era impossível copiar. Um barco a motor poderia
transportar um espião em fuga para um lugar seguro
atravessando o mar Negro para a Turquia, ou o mar Cáspio
para o Irão, mas havia uma forte possibilidade de ser
intercetado por navios-patrulha soviéticos e afundado. As
longas fronteiras terrestres turca e iraniana com a URSS
ficavam a centenas de quilómetros de Moscovo e eram
muito bem defendidas por guardas, campos minados,
vedações elétricas e arame farpado. 
A mala diplomática podia ser usada para transportar
artigos sensíveis através das fronteiras, sobretudo
documentos, mas também drogas, armas e, em teoria,
pessoas. Tecnicamente, abrir um pacote marcado como
bagagem diplomática era uma violação da Convenção de
Viena. Os terroristas líbios contrabandeavam armas para a
Grã-Bretanha desta forma. Os soviéticos tinham tentado
expandir a definição de mala diplomática alegando que um
camião de nove toneladas cheio de caixas com destino à
Suíça devia ser dispensado de revista. Os suíços
recusaram. Em 1984, um diplomata fugitivo em Londres,
cunhado do recém-deposto presidente da Nigéria, foi
drogado, vendado, colocado numa caixa de madeira com o
rótulo «carga extra» e endereçado ao Ministério da
Administração Interna em Lagos. Foi descoberto pelos
funcionários da alfândega do Aeroporto de Stanstead, em
Londres, e libertado. Uma mala diplomática com o
tamanho de um homem a sair da embaixada britânica em
Moscovo não passaria despercebida. 
Uma por uma, todas as opções foram rejeitadas por
serem impraticáveis, ou insensatamente arriscadas. 
No entanto, havia outra tradição na diplomacia
internacional que poderia ser manipulada para beneficiar
Gordievsky. 
Segundo uma antiga convenção, os carros com matrícula
diplomática, conduzidos por funcionários das embaixadas,
não costumam ser sujeitos a revista quando atravessam
fronteiras internacionais – uma extensão da imunidade
diplomática, graças à qual os diplomatas têm a garantia de
passagem segura e proteção de acusação ao abrigo das
leis do país anfitrião. Mas esta prática era uma convenção,
não uma regra jurídica, e os guardas fronteiriços soviéticos
não tinham grande pudor em revistar qualquer veículo que
levantasse suspeitas. No entanto, era uma pequena falha
na muralha fortificada que rodeava a Rússia: um espião
escondido no interior de um carro diplomático poderia
passar por esta fenda na Cortina de Ferro. 
A fronteira russa com a Finlândia, entre o Leste e o
Ocidente, era a mais próxima de Moscovo, embora ficasse
a uma viagem de 12 horas de carro da capital russa. Os
diplomatas ocidentais visitavam a Finlândia com
regularidade, procurando descanso e diversão, para fazer
compras ou para tratamentos médicos. Costumavam viajar
de carro, e os guardas fronteiriços russos estavam
acostumados a ver veículos diplomáticos passar pelos
postos de controlo. 
Todavia, colocar um fugitivo num carro era outro
problema. A embaixada britânica, o consulado e todas as
residências diplomáticas estavam muito bem vigiados por
funcionários do KGB em uniforme. Qualquer russo que
tentasse entrar era mandado parar, revistado e
interrogado. Além disso, os carros da embaixada britânica
eram rotineiramente seguidos para toda a parte pelas
equipas de vigilância do KGB, e os veículos diplomáticos
eram reparados por mecânicos também do KGB, havendo
a crença de que nessa altura os equipavam com
microfones escondidos e dispositivos de localização. 
Veronica Price passou semanas a atacar o problema de
todos os ângulos, e então elaborou um plano, repleto de
«ses»: se Gordievsky conseguisse avisar a estação do MI6
em Moscovo da necessidade de fugir; se conseguisse
chegar a um ponto de encontro perto da fronteira com a
Finlândia sem ser seguido; se um carro diplomático
conduzido por um funcionário do MI6 conseguisse
despistar a vigilância do KGB durante tempo suficiente
para o apanhar; se ele pudesse ser escondido em
segurança no interior do veículo; e se os guardas
fronteiriços soviéticos respeitassem a convenção
diplomática e os deixassem passar sem revistar o carro...
nesse caso, talvez conseguisse escapar para a Finlândia
(onde ainda assim poderia ser preso e recambiado para a
Rússia pelas autoridades finlandesas). 
Era um verdadeiro tiro no escuro. Mas foi o melhor tiro
que Veronica conseguiu dar. O que significava que era a
melhor hipótese possível. 
O diretor da estação de Moscovo do MI6 recebeu
instruções para procurar um ponto de encontro adequado
perto da fronteira finlandesa, onde um fugitivo pudesse ser
recolhido. Fez a viagem desde Leninegrado até à Finlândia,
com o pretexto de ir às compras, e identificou um desvio
na estrada que poderia ser o ponto de recolha, a cerca de
60 quilómetros da fronteira e perto da placa do «marco
quilométrico 836», que indicava a distância até Moscovo.
Postos da milícia separados por 15 quilómetros
(conhecidos como GAI, traduzido por «Inspeção Estatal
Automóvel») monitorizavam todo o tráfego, mas acima de
tudo os veículos com matrícula estrangeira. O desvio era
quase equidistante entre os dois pontos. Se o carro da
recolha do MI6 parasse durante dois minutos, partindo do
princípio de que não estava a ser seguido pelo KGB, a
estação seguinte da milícia talvez não percebesse o
atraso. A zona era densamente arborizada e o caminho
curvava para a direita, um desvio em forma de D,
escondido da estrada por uma fila de árvores, antes de
voltar para a estrada principal. Um grande penedo, do
tamanho de uma casa geminada, marcava a entrada para
o desvio. O funcionário do MI6 tirou algumas fotografias
pela janela do carro e continuou para sul, em direção a
Moscovo. Se tivesse sido visto, o KGB ficaria sem dúvida
curioso para saber o que levaria um diplomata britânico a
querer fotografar um grande penedo no meio do nada. 
O plano de Veronica Price também necessitava de um
«local de sinal», onde Gordievsky pudesse indicar que
queria transmitir uma mensagem ou que tinha de fugir. 
Muitos dos diplomatas britânicos em Moscovo, inclusive
da estação do MI6, onde trabalhavam dois funcionários e
uma secretária, estavam alojados no mesmo complexo na
Kutuzovsky Prospekt, conhecida por Kutz, uma larga
avenida a oeste do rio Moscovo. Do outro lado da avenida,
à sombra da torre gótica soviética que era o Hotel Ukraine,
havia uma padaria, diante da qual fora colocada uma série
de painéis publicitários com horários de autocarros, datas
de concertos e exemplares do Pravda. Regra geral, o local
estava cheio de pessoas a ler os jornais e a padaria era
frequentada por estrangeiros que viviam no fortemente
guardado complexo habitacional em frente. 
O plano previa que, quando Gordievsky estivesse em
Moscovo, um elemento da estação do MI6 «policiaria» o
local do sinal todas as terças-feiras às 19h30. O local era
visível de partes do complexo habitacional; um funcionário
do MI6 sairia com o pretexto de comprar pão, ou ajustaria
a hora de saída do trabalho para passar pelo local
exatamente no momento certo. 
O plano de exfiltração só poderia ser ativado de uma
forma: Gordievsky teria de estar ao pé da padaria às
19h30 com um saco de plástico dos supermercados
Safeway. Os sacos do Safeway tinham um grande S
vermelho, um logótipo imediatamente reconhecível que se
destacaria no meio dos sacos castanho-claros que
abundavam em Moscovo. Gordievsky tinha vivido e
trabalhado no Ocidente e não seria estranho que trouxesse
um objeto daquele tipo. Os sacos de plástico eram
apreciados, sobretudo os estrangeiros. Como um sinal
adicional de reconhecimento, Gordievsky usaria um boné
cinzento de pele que comprara recentemente e um par de
calças cinzentas. Quando o funcionário do MI6 o avistasse
à espera ao pé da padaria com o importante saco do
Safeway, ele ou ela reconheceria o sinal de fuga passando
por Oleg com um saco verde do Harrods e a comer um
chocolate, um KitKat ou um Mars – «literalmente, um
expediente da mão para a boca», como um funcionário
referiu. A pessoa que estaria a comer o chocolate também
usaria alguma coisa cinzenta – calças, saia ou lenço – e
estabeleceria um breve contacto visual, sem deter a
marcha. «O cinzento era uma cor discreta e, por
conseguinte, útil para evitar a acumulação de padrões por
quem estivesse a observar. A desvantagem é que era
praticamente invisível na neblina de um longo inverno
moscovita.» 
Depois de o sinal de fuga ser dado, seria implementada a
segunda fase do plano. Passados três dias, na sexta-feira à
tarde, Gordievsky deveria apanhar o comboio da noite para
Leninegrado. Não se pôs a hipótese de Yelena ir também.
Ao chegar à segunda maior cidade da Rússia, ele
apanharia um táxi para a estação da Finlândia, onde
Lenine se apeou para iniciar a revolução em 1917, e
apanharia o primeiro comboio para Zelenogorsk, na costa
do mar Báltico. Dali, apanharia um autocarro para a
fronteira com a Finlândia e sairia no ponto de encontro, ou
o mais próximo possível, cerca de 25 quilómetros a sul da
cidade fronteiriça de Vyborg e a 40 quilómetros da
fronteira propriamente dita. No desvio, deveria esconder-
se no meio do mato e esperar. 
Entretanto, dois funcionários do MI6 teriam saído de
Moscovo num carro diplomático e passado a noite em
Leninegrado. Os tempos exatos eram ditados, e
complicados, pela burocracia soviética: a autorização
especial para viajar teria de ser obtida dois dias antes da
partida, e era preciso colocar placas de matrícula especiais
para saírem do país no carro diplomático. A garagem que
realizava esse trabalho só estava aberta quartas e sextas-
feiras. Se Gordievsky fizesse o sinal na terça-feira, os
documentos do carro estariam prontos às 13h00 de sexta-
feira e a equipa do MI6 poderia partir mais tarde nesse dia,
para chegar ao ponto de encontro às 14h30 da tarde de
sábado, um intervalo de apenas quatro dias. Entrariam no
desvio, como se pretendessem fazer um piquenique.
Quando não houvesse perigo, um dos ocupantes do carro
abriria o capô: esse seria o sinal para Gordievsky sair do
seu esconderijo e entrar no porta-bagagem, onde seria
embrulhado num cobertor térmico para defletir as câmaras
de infravermelhos e os detetores de calor, que se pensava
que estavam instalados nas fronteiras soviéticas, e tomaria
um calmante. Em seguida, passariam a fronteira para a
Finlândia. 
O plano de fuga recebeu o nome de código Pimlico (ver
mapa na página 322).  
No MI6, como na maioria das agências de serviços
secretos, em teoria os nomes de código eram atribuídos de
forma aleatória a partir de uma lista oficialmente
aprovada. Regra geral, eram palavras reais e
deliberadamente anódinas para não darem uma pista
sobre o seu sentido. Porém, muitas vezes os espiões não
resistem à tentação de escolher palavras que lembram ou
oferecem uma pista subtil, ou menos que subtil, da
realidade. A guardiã das palavras de código do MI6 era
uma secretária chamada Ursula (o seu nome verdadeiro).
«Ligávamos à Ursula e pedíamos o nome seguinte na lista.
No entanto, se não gostássemos, podíamos ligar de novo e
tentar convencê-la a dar-nos um nome melhor. Ou
podíamos arranjar um conjunto de palavras de código para
diferentes aspetos do caso, e depois escolher a que mais
gostávamos.» O nome de código do MI5 para Estaline
durante a guerra foi GLYPTIC, que significa uma imagem
gravada em pedra; o nome de código que os alemães
deram à Grã-Bretanha foi GOLFPLATZ, ou campo de golfe.
As palavras de código até podiam ser usadas como um
insulto velado. Houve alguns resmungos em Century
House quando um telegrama da CIA revelou por acaso que
o nome de código que os americanos davam ao MI6 era
UPTIGHT21.  
PIMLICO soava totalmente britânico – e, se resultasse,
seria na Grã-Bretanha que Gordievsky acabaria. 
No encontro seguinte, Oleg escutou com interesse
enquanto Guscott delineava o plano PIMLICO. Analisou as
fotografias do ponto de encontro e prestou muita atenção
aos procedimentos para o sinal de fuga na Kutuzovsky
Prospekt. 
Depois, pensou durante muito tempo no plano de fuga
elaborado por Veronica Price e declarou que era
totalmente impraticável. 
«Era um plano de fuga muito interessante e imaginativo,
mas extremamente complicado. Havia muitos pormenores
e condições irrealistas para o local do sinal. Não o levei a
sério.» Decorou o plano e, no seu íntimo, rezou para nunca
ter de se lembrar dele. Em Century House, os céticos
diziam que a Operação PIMLICO nunca resultaria. «Eu levei
o plano muito a sério», diria Price mais tarde. «Muita gente
não o levou tão a sério.»  
Em junho de 1978, Mikhail Lyubimov chamou Gordievsky
ao seu gabinete na embaixada soviética em Copenhaga e
disse-lhe que regressaria a Moscovo em breve. O fim da
sua segunda comissão de serviço na Dinamarca não
constituiu uma surpresa, mas fê-lo pensar no seu
casamento, na sua carreira e nos seus atos de
espionagem. 
Yelena, agora plenamente consciente do longo caso
amoroso do marido com uma secretária, aceitou divorciar-
se quando voltassem para Moscovo. O trabalho de Leila na
Organização Mundial da Saúde também estava a chegar
ao fim e ela regressaria à Rússia dali a alguns meses.
Gordievsky queria voltar a casar-se o mais depressa
possível, mas não tinha ilusões sobre o impacto que um
divórcio teria na sua carreira. Subira bastante, e muito
depressa, no KGB, e aos 40 anos era já tido em conta para
uma grande promoção – assumir o cargo de vice-diretor do
Terceiro Departamento, a divisão responsável pela
Escandinávia. Mas ele fizera rivais e inimigos durante o
percurso e, em Moscovo, os puritanos detratores do Centro
só precisariam de um pretexto para lhe cortar as pernas.
«Eles vão atacar-te», alertou Lyubimov, falando por
experiência própria. «Não só vão condenar-te pelo divórcio,
como te vão acusar de teres tido um caso amoroso en
poste.» O rezident enviou um relatório para Moscovo a
elogiar Gordievsky como um «funcionário meticuloso e
com as ideias políticas certas, forte em todos os aspetos,
um bom linguista e um competente escritor de relatórios».
Lyubimov também escreveu uma carta para o chefe de
departamento a acompanhar o relatório onde explicava os
problemas matrimoniais de Gordievsky e pedia tolerância,
na esperança de que a sua iniciativa pudesse «suavizar o
golpe». Os dois homens sabiam que, tendo em conta o
feroz moralismo do Centro, era muito provável que
Gordievsky passasse um longo período caído em
desgraça. 
Estando o regresso a Moscovo iminente e sendo o seu
futuro profissional incerto, Gordievsky podia ter
aproveitado esta oportunidade para terminar a carreira
como espião e desaparecer. O MI6 deixara sempre claro
que ele poderia desertar e refugiar-se no Reino Unido
quando quisesse. Era compreensível que tivesse decidido
que, em vez de voltar às duras privações e à repressão da
vida soviética, gostaria de fugir para o Ocidente e, se
possível, levar a amante. Mas a possibilidade de desertar
não parece ter-lhe passado pela cabeça. Ele voltaria para a
Rússia, alimentaria em segredo a sua recente aliança com
a Grã-Bretanha, recolheria os segredos que conseguisse e
esperaria pelo momento certo. 
«Quais são as tuas ambições para o tempo que vais estar
em Moscovo?», perguntou-lhe Guscott. 
«Quero descobrir os elementos mais secretos, mais
importantes e mais essenciais do comando soviético»,
respondeu Gordievsky. «Quero perceber como o sistema
funciona. Não vou conseguir descobrir tudo, porque o
Comité Central guarda segredos até do KGB. Mas
descobrirei o que puder.» Aqui estava a essência da
rebelião de Gordievsky: descobrir o máximo que pudesse
acerca do sistema que abominava para melhor o destruir. 
Como a corrida de fundo, a espionagem bem-sucedida
requer paciência, perseverança e sentido de oportunidade.
O próximo trabalho de Gordievsky deveria ser no Terceiro
Departamento, que englobava a Grã-Bretanha e a
Escandinávia. Estudaria o KGB a partir do interior,
recolhendo as informações que poderiam ser úteis para a
Grã-Bretanha e para o Ocidente. Quando a confusão do
divórcio e do novo casamento passasse, teria a
oportunidade de voltar a subir na hierarquia do KGB, como
acontecera com Lyubimov. Talvez dali a três anos pudesse
ter outra comissão de serviço no estrangeiro. Não
desperdiçaria energias durante a fase seguinte.
Acontecesse o que acontecesse em Moscovo, o seu
empenho manter-se-ia. Ele continuaria na corrida. 
Um espião profundamente infiltrado no KGB era a
derradeira recompensa de todos os serviços de
informações ocidentais. Mas como o diretor da CIA, Richard
Helms, observou, infiltrar um agente no KGB era «tão
improvável como colocar espiões residentes no planeta
Marte»22. O Ocidente tinha «muito poucos agentes
soviéticos dignos desse nome na União Soviética»23, o que
significava que «informações fidedignas de planos e
intenções a longo prazo do inimigo [eram] praticamente
inexistentes»24. Os serviços secretos britânicos teriam
então a oportunidade de aproveitar ao máximo o seu
homem no interior do KGB extraindo todos os segredos a
que ele tivesse acesso. 
Em vez disso, o MI6 decidiu fazer o contrário. 
Num ato de autodisciplina e abnegação quase único na
história dos serviços secretos, os coordenadores do caso
de Gordievsky não o encorajaram a manter-se em contacto
enquanto estivesse em Moscovo nem a tentar transmitir
segredos. Em vez disso, os controladores de agentes em
Century House optaram por deixar o seu espião ficar
inativo. Quando voltasse para Moscovo, Gordievsky estaria
totalmente por sua conta.  
O raciocínio era simples, e impecável: na Rússia seria
impossível controlar Gordievsky como fora controlado na
Dinamarca. Não havia uma casa segura em Moscovo, não
havia um serviço de informações local amigo que estivesse
disposto a protegê-lo, não havia uma alternativa fiável se
ele fosse desmascarado. O nível de vigilância era
demasiado intenso, estando todos os diplomatas britânicos
– e não apenas os funcionários suspeitos de pertencerem
aos serviços secretos – sob vigilância constante. A história
dos agentes na União Soviética provava que a avidez
excessiva era quase sempre fatal, como para o caso da
cruel morte de Penkovsky. Mais cedo ou mais tarde (regra
geral, mais cedo), o espião era descoberto, capturado e
liquidado pelo omnisciente Estado. 
Como diria um funcionário do MI6: «O Oleg era
demasiado bom para o expormos ao perigo. Estávamos na
posse de uma coisa tão preciosa que tínhamos de ser
contidos. Havia uma enorme tentação para continuar o
contacto na União Soviética, mas o Serviço não tinha
confiança de que ele fosse capaz de o fazer com bastante
frequência e em segurança. Havia grandes hipóteses de o
queimarmos.» 
Guscott informou Gordievsky de que o MI6 não procuraria
comunicar com ele em Moscovo. Não tentariam marcar
encontros clandestinos ou de recolha de informações
secretas. Porém, se Gordievsky precisasse de estabelecer
contacto, poderia fazê-lo. 
Às 11h00, no terceiro sábado de cada mês, o MI6 teria
um funcionário parado por baixo do relógio do Mercado
Central de Moscovo, à saída da estrada de circunvalação
dos jardins, um local muito movimentado onde um
estrangeiro não pareceria deslocado. De novo, ele ou ela
transportaria o saco do Harrods e vestiria uma peça de
roupa cinzenta. «O objetivo desta presença era duplo: se o
Oleg só quisesse ter garantias de que estávamos sempre a
olhar pelos seus interesses, poderia ver-nos sem se
mostrar. Se quisesse estabelecer um contacto de raspão e
transmitir uma mensagem física, tornar-se-ia visível
através do boné cinzento e do saco do Safeway.» 
Se Gordievsky aparecesse com o saco e o boné, o plano
de contacto de raspão entraria numa segunda fase. Três
domingos mais tarde, ele devia ir à Catedral de São Basílio
na Praça Vermelha e subir a escadaria em caracol para as
traseiras do edifício precisamente às 15h00. De novo, para
o reconhecimento ser mais fácil, ele usaria o boné cinzento
e calças da mesma cor. Um funcionário do MI6,
provavelmente uma mulher, com uma peça de roupa
cinzenta e objeto cinzento nas mãos, calcularia quanto
tempo demoraria a descer do andar de cima e, no espaço
apertado, quando se cruzassem, ele entregar-lhe-ia uma
mensagem escrita. 
O contacto de raspão só deveria ser iniciado se ele
descobrisse informações com um impacto direto para a
segurança nacional da Grã-Bretanha, como um espião
soviético no interior do Governo britânico. O MI6 não tinha
forma de responder a uma mensagem dele. 
Se Gordievsky tivesse de fugir, poderia ativar o plano de
exfiltração indo para junto da padaria da Kutuzovsky
Prospekt com o seu saco do Safeway às 19h30 de uma
terça-feira. O MI6 monitorizaria o local todas as semanas. 
Depois de recitar os planos, Guscott entregou-lhe um
exemplar de capa dura da edição da Oxford University
Press dos sonetos de Shakespeare. Parecia uma banal
recordação que um russo levaria para casa depois de ter
estado no Ocidente. Na verdade, era um engenhoso aide-
mémoire25, um presente de Veronica Price. Atrás da
guarda, o papel que cobria o interior da contracapa, havia
uma pequena folha de celofane, onde a Operação PIMLICO
estava escrita em russo: pormenores como horas e locais,
roupas de reconhecimento, sinais de fuga, o ponto de
encontro no marco quilométrico 836 e as distâncias entre
pontos-chave. Gordievsky devia colocar o livro na estante
do seu apartamento em Moscovo. Para refrescar a
memória antes de tentar fugir, ensoparia o livro em água,
retiraria a guarda e extrairia a folha de plástico. Como
medida adicional de segurança, os nomes das cidades
russas tinham sido substituídos por nomes de cidades
francesas: Moscovo era «Paris»; Leninegrado era
«Marselha», etc. Se o KGB descobrisse o «berço» quando
ele estivesse a caminho da fronteira, não revelaria,
necessariamente, a rota de fuga exata. 
Por fim, Guscott entregou-lhe um número de telefone de
Londres. Se e quando Gordievsky estivesse fora da União
Soviética, e no caso de se sentir em segurança, devia ligar
para aquele número. Do outro lado estaria sempre alguém
para atender. O russo escreveu o número de telefone na
agenda, de trás para a frente, no meio de uma confusão de
anotações. 
Alguns meses antes, Gordievsky passara a Guscott uma
informação importante, arrancada da teia escandinava de
boatos: o KGB ou o GRU militar, ou talvez ambos, tinha
recrutado um importante espião na Suécia. Os pormenores
eram vagos, mas a toupeira parecia trabalhar para uma
das agências de serviços secretos suecas, civil ou militar. O
MI6 discutiu o aviso com os dinamarqueses e fizeram
investigações discretas. «Não foi preciso muito tempo para
o apanhar», disse Guscott. «Depressa tínhamos o
suficiente para identificar aquele homem com uma certeza
quase absoluta.» A Suécia era um importante aliado, e
provas de que a comunidade dos serviços secretos suecos
tinha sido penetrada pelos soviéticos eram demasiado
importantes para não ser partilhadas. Guscott explicou a
Gordievsky que aquela informação tinha sido transmitida a
Estocolmo sem que a sua origem fosse revelada e que o
problema seria resolvido em breve. Ele não se opôs.
«Passaria a confiar em nós para o protegermos enquanto
fonte.» 
Gordievsky e Guscott despediram-se com um aperto de
mão. Durante 20 meses, sem serem descobertos, tinham-
se encontrado pelo menos uma vez por mês e trocado
centenas de documentos secretos. «Estabelecera-se uma
verdadeira amizade, uma verdadeira afinidade», diria
Guscott muitos anos mais tarde. No entanto, era um
estranho tipo de amizade, uma amizade que tinha crescido
dentro de limites rígidos. Gordievsky nunca soube o
verdadeiro nome de Nick Venables. O espião e o seu
controlador nunca partilharam uma refeição num
restaurante. «Teria gostado de ir correr com ele, mas não
podíamos», diria Guscott. Aquela relação ocorrera
inteiramente no interior de uma casa segura, sempre com
um gravador ligado. Como todas as relações entre espiões,
estava à partida comprometida e foi falseada pelo engano
e pela manipulação: Gordievsky estava a debilitar um
regime político que detestava e a conquistar a dignidade
que almejava; Guscott estava a controlar um agente
profundamente infiltrado a longo prazo no interior da
cidadela do inimigo. Mas também significava mais do que
isso para os dois homens: eles tinham um intenso laço
emocional estabelecido em segredo, perigo, lealdade e
traição. 
Com o livro dos sonetos de Shakespeare num saco do
Safeway, Gordievsky saiu do apartamento seguro pela
última vez e desapareceu na noite dinamarquesa. Dali em
diante, o caso seria gerido bem longe. Em Moscovo,
Gordievsky poderia comunicar com os serviços secretos
britânicos se quisesse, mas o MI6 não tinha forma de
iniciar um contacto. Ele podia tentar escapar, em caso de
necessidade, mas os britânicos não iriam iniciar o plano de
fuga. Estava por sua conta. Os serviços secretos britânicos
só podiam observar, e esperar. 
Se Gordievsky estava preparado para entrar numa
corrida sem saber onde esta terminaria, o MI6 também. 
 
 
Na sede do Primeiro Diretório Principal do Centro, em
Moscovo, Gordievsky apresentou-se ao diretor do Terceiro
Departamento, explicou que ia divorciar-se e que pensava
voltar a casar, e viu a carreira encolher à sua frente. O
chefe do departamento era um ucraniano baixo e gordo
chamado Viktor Grushko, um homem bem-disposto, cínico
e em total consonância com a cultura moralista do KGB.
«Isso muda tudo», declarou ele. 
Gordievsky, que ia de vento em popa, voltou à realidade
com um tombo, precisamente como Lyubimov previra. Em
vez de se tornar vice-diretor do departamento, foi banido
para a secção de pessoal, não se tendo livrado de uma
forte desaprovação moral. «Tiveste um caso amoroso
enquanto estavas numa comissão de serviço»,
regozijaram-se alguns colegas. «Muito pouco profissional.»
O seu trabalho era monótono e sem importância. Muitas
vezes era relegado para o turno da noite. Embora ainda
fosse um funcionário superior, «não tinha uma função
definida». Uma vez mais, sentia a carreira estagnar. 
O divórcio foi concluído com uma fria rapidez soviética. O
juiz dirigiu-se a Yelena: «O seu marido está a divorciar-se
de si porque a senhora não quer ter filhos e ele quer. É
verdade?» Yelena respondeu com brusquidão: «Claro que
não! Ele apaixonou-se por uma miúda gira. Nada mais.» 
Naquela altura, Yelena já atingira a patente de capitão e
tinha voltado para o seu antigo trabalho, a escutar
conversas mantidas nas embaixadas estrangeiras. Como
era a parte prejudicada no divórcio, a sua carreira no KGB
não sofreu, mas ela nunca perdoou Gordievsky e não
voltou a casar-se. Quando as funcionárias superiores do
KGB se encontravam para tomar chá juntas, Yelena falava
com raiva sobre a deslealdade do ex-marido: «Ele é um
merdas mentiroso, um traidor, um homem com uma
fachada falsa. É capaz de todos os tipos de traição.»
Coscuvilhices sobre a infidelidade de Gordievsky
multiplicaram-se nos níveis mais baixos do KGB. A maioria
das pessoas ignorava os comentários de Yelena,
atribuindo-os à amargura de uma divorciada. «Que outra
coisa se espera de uma mulher abandonada?», comentaria
uma colega do Terceiro Departamento. «Nem eu, nem
ninguém, alguma vez pensou comunicar isto.» Mas é
possível que o tenham feito. 
O pai de Gordievsky faleceu aos 82 anos, um mês depois
de ele voltar para Moscovo. Apenas um pequeno número
de idosos funcionários do KGB assistiu à cremação. Num
velório no apartamento onde ele vivera, apinhado com
mais de 30 membros da família, Gordievsky fez um
discurso a enaltecer o trabalho do pai para o Partido
Comunista e para a União Soviética – uma ideologia e um
sistema que ele estava agora a conspirar ativamente para
enfraquecer. Anos mais tarde, Gordievsky considerou que a
morte do pai terá constituído uma espécie «libertação»
para a mãe. A verdade é que a pessoa secretamente
libertada pelo falecimento do pai foi o próprio Gordievsky. 
Anton Lavrentyevich nunca contou à família o que fez na
polícia secreta durante as fomes e as purgas da década de
1930. Só anos após a sua morte é que Gordievsky soube
que o pai tinha sido casado antes de conhecer Olga e que
havia a possibilidade de ter tido filhos do primeiro
casamento, que fora mantido em segredo. Por sua vez,
Oleg nunca explicou ao pai a natureza do seu trabalho
para o KGB, e muito menos a sua lealdade ao Ocidente. O
velho estalinista teria ficado chocado, e aterrorizado. As
mentiras que tomaram conta da relação entre pai e filho
perpetuaram-se além da sepultura. Gordievsky detestava
em segredo tudo o que o pai representava, a obediência
cega a uma ideologia cruel e a cobardia do Homo
sovieticus. Mas também o amara e até respeitava a sua
obstinação, uma característica que partilhavam. Entre pai
e filho, amor e engano andavam a par. 
O novo casamento de Gordievsky foi tão rápido e
eficiente como o seu divórcio. Leila voltou para Moscovo
em janeiro de 1979 e casaram-se algumas semanas mais
tarde numa conservatória do registo civil, a que se seguiu
um jantar de família no apartamento dos pais dela. Olga
estava satisfeita por ver o filho tão feliz. Nunca gostara
muito de Yelena e considerava que a nora era uma
maliciosa carreirista do KGB. O casal foi viver para um
apartamento novo no número 103 da Leninsky Prospekt,
no oitavo andar de um prédio de habitação pertencente a
uma cooperativa do KGB. «A nossa relação era afetuosa e
próxima», escreveu Gordievsky. «Tudo o que eu sempre
tinha desejado.» O engano que estava no centro do
casamento foi disfarçado pelos simples prazeres
domésticos de comprar móveis, montar estantes e
pendurar os quadros comprados na Dinamarca. Oleg sentia
falta da música e das liberdades do Ocidente. Por sua vez,
Leila voltou ao estilo de vida soviético sem queixas ou
objeções: «A verdadeira felicidade é passar a noite inteira
numa fila e conseguir o que queremos», dizia. Pouco
depois, ficou grávida. 
Gordievsky foi encarregado de escrever a história do
Terceiro Departamento, uma tarefa inútil que lhe oferecia
uma visão da espionagem soviética no passado, mas
nenhum conhecimento das operações atuais. Só uma vez
conseguiu ver de passagem um dossiê em cima da
secretária de um colega da secção norueguesa com um
cabeçalho que terminava em OLT – estando as primeiras
letras do nome «Treholt» tapadas com outra folha. Aqui
estava mais uma indicação de que Arne Treholt era um
agente do KGB no ativo. Os britânicos teriam interesse em
saber, mas não o suficiente para ele correr o risco de
tentar informá-los. 
Não fez qualquer tentativa de contactar o MI6. Um
eLivros no seu próprio país, alimentava a fidelidade secreta
com solitário orgulho. Em toda a Rússia, talvez existisse
apenas um homem que teria compreendido o que
Gordievsky estava a sentir.  
Kim Philby podia estar velho, sozinho e muitas vezes
podre de bêbedo, mas o seu intelecto era tão acutilante
como sempre. Dada a sua experiência pessoal, ninguém
compreendia melhor a vida dupla de um espião, como
evitar a deteção e como apanhar uma toupeira. Philby
continuava a ser uma figura lendária no seio do KGB.
Gordievsky levara com ele um livro dinamarquês sobre o
caso Philby e pediu ao inglês um autógrafo. O livro voltou
com a dedicatória: «Para o meu bom amigo Oleg. Não
acredite em nada do que está escrito! Kim Philby.» Eles
não eram amigos, apesar de terem muito em comum.
Durante 30 anos, Philby tinha servido em segredo o KGB a
partir do interior do MI6. Vivia agora confortavelmente à
espera da reforma, mas o seu profundo conhecimento dos
meandros da traição continuava à disposição dos seus
senhores soviéticos. 
Pouco depois do regresso de Gordievsky, Philby recebeu
um pedido do Centro para avaliar o caso Gunvor Haavik e
tentar perceber o que correra mal. Porque é que a
veterana espia norueguesa fora presa? Durante semanas,
Philby analisou os dossiês e depois, como acontecera
tantas vezes durante a sua longa carreira, chegou à
conclusão certa: «A fuga de informações que desmascarou
a agente só pode ter vindo do interior do KGB.» 
Viktor Grushko convocou os funcionários superiores ao
seu gabinete, incluindo Gordievsky. «Temos indícios de que
há uma fuga no KGB», declarou ele, antes de apresentar as
meticulosas conclusões do caso Haavik. «Isto é
especialmente preocupante, porque o padrão dos
acontecimentos sugere que o traidor pode estar na sala
neste momento. Pode estar sentado entre nós.» 
Gordievsky sentiu um arrepio de medo e beliscou a perna
com força através do bolso das calças. Haavik tinha
conhecido mais de uma dúzia de controladores do KGB
durante a sua longa carreira de espionagem. Gordievsky
nunca estivera envolvido no caso e não assumira qualquer
responsabilidade na Noruega. No entanto, tinha a certeza
de que a informação que transmitira a Guscott levara
diretamente à detenção de Haavik, e agora, graças a um
velho espião britânico com faro para o engano, a nuvem
de suspeita pairava perigosamente perto. Sentiu-se
nauseado. Ao voltar à secretária tentando esconder o seu
estado de choque, perguntou a si mesmo que mais dissera
ao MI6 que pudesse voltar-se contra si e ameaçá-lo. 
 
 
Stig Bergling descreveu a vida de um agente secreto
como «cinzenta, preta, branca e carregada de nevoeiro e
fumo castanho de carvão»26. A sua carreira como polícia
sueco, funcionário dos serviços secretos e toupeira
soviética foi estranhamente colorida. 
Bergling tinha trabalhado na polícia antes de entrar para
a equipa de vigilância da agência de serviços secretos
sueca conhecida como SÄPO (Säkerhetspolisen), com a
tarefa de monitorizar as atividades de possíveis agentes
soviéticos na Suécia. Em 1971 foi nomeado agente de
ligação da SÄPO com o chefe do Estado-Maior do Exército
sueco, tendo acesso a informações extremamente
secretas, incluindo pormenores de todas as instalações de
defesa da Suécia. Passados dois anos, enquanto
trabalhava como observador das Nações Unidas no Líbano,
estabeleceu contacto com Aleksander Nikiforov, o adido
militar soviético e funcionário do GRU em Beirute. No dia
30 de novembro de 1973, vendeu um primeiro conjunto de
documentos aos soviéticos por 3500 dólares.  
Bergling espiava por dois motivos: por dinheiro, de que
gostava muito, e por causa da atitude arrogante dos seus
superiores, de quem não gostava nada. Durante os quatro
anos seguintes, forneceria aos soviéticos 14  700
documentos, revelando os planos de defesa da Suécia,
sistemas de armamento, códigos de segurança e
operações de contraespionagem, e comunicando com os
seus controladores soviéticos com tinta secreta, microdots
e rádio de ondas curtas. Até assinou um recibo onde
estava especificado: «Dinheiro por informações aos
serviços secretos russos»27, o que significava, é claro, que
estava numa posição de vulnerabilidade face à chantagem
do KGB. Bergling era muito burro. 
Depois veio o aviso de Gordievsky a apontar para um
agente soviético nos serviços secretos suecos. O diretor da
contraespionagem do MI6 voou para Estocolmo e informou
os serviços de segurança suecos de que tinham um espião
entre eles. 
Nesta altura, Bergling já era diretor do gabinete de
investigação da SÄPO, oficial do Exército sueco na reserva
e, em segredo, coronel dos serviços secretos militares
soviéticos. 
Os investigadores suecos aproximaram-se. No dia 12 de
março de 1979, por mandado da Suécia, ele foi detido no
aeroporto de Telavive pelo Shin Bet (Sherut haBitachon
Haklali), o serviço de segurança israelita, e entregue aos
seus antigos colegas da SÄPO. Passados nove meses, seria
acusado de espionagem e condenado a prisão perpétua.
Bergling tinha recebido uma pequena fortuna dos seus
mestres da espionagem soviéticos. A reparação dos danos
que infligiu à defesa nacional da Suécia custou cerca de 29
milhões de libras. 
Um por um, os espiões soviéticos indicados por
Gordievsky estavam a ser apanhados. Em resultado disso,
o Ocidente devia estar mais seguro. Mas Gordievsky não
estava. Com a desconfiança interna a crescer no Terceiro
Departamento e a carreira estagnada, mas agora com um
casamento feliz e à espera do primeiro filho, Gordievsky
poderia uma vez mais ter decidido cortar com o passado,
interromper todos os contactos com o MI6, esperar que o
KGB nunca descobrisse a verdade e manter-se discreto até
ao fim da vida. Em vez disso, acelerou o ritmo. A sua
carreira precisava de um estímulo. Tinha de ser colocado
no Ocidente, talvez até na Grã-Bretanha. 
Aprenderia a falar inglês. 
O KGB oferecia um aumento de 10 por cento no salário
aos funcionários que passavam num curso oficial de
línguas estrangeiras, com um máximo de duas línguas.
Gordievsky já falava alemão, dinamarquês e sueco. Ainda
assim, inscreveu-se. Aos 41 anos, era o aluno mais velho
do curso de inglês do KGB, que estava concebido para
durar quatro anos; completou-o em dois. 
Se os colegas do KGB estivessem atentos, talvez
tivessem ficado intrigados com a pressa de Gordievsky em
aprender uma nova língua sem qualquer incentivo
financeiro, a par do seu interesse repentino pelo Reino
Unido. 
Gordievsky comprou um dicionário de russo-inglês em
dois volumes e mergulhou na cultura britânica – pelo
menos na que os cidadãos soviéticos eram autorizados a
ver. Leu a História da Segunda Guerra Mundial de
Churchill, Chacal de Frederick Forsyth e Tom Jones de
Fielding. Mikhail Lyubimov, que regressara de Copenhaga
para ocupar um prestigiado cargo como diretor da junta
consultiva do Primeiro Diretório Principal, recordou como o
amigo «aparecia com frequência para conversar e pedia
conselhos judiciosos sobre a Inglaterra». Lyubimov não se
importava nada de responder e discorria alegremente
sobre as alegrias dos clubes de Londres e do uísque
escocês. «Que ironia!», escreveria Lyubimov mais tarde.
«Ali estava eu a dar conselhos sobre a Inglaterra a um
espião inglês.» Leila também o ajudava a estudar,
fazendo-lhe perguntas à noite sobre vocabulário inglês e
aprendendo ela própria um pouco da língua. «Eu invejava
muito a sua capacidade. Ele conseguia aprender trinta
palavras num dia. Era brilhante.» 
Por sugestão de Lyubimov, Gordievsky começou a ler os
romances de Somerset Maugham. Agente dos serviços
secretos britânicos durante a Primeira Guerra Mundial, na
sua ficção Maugham captura de forma brilhante a
nebulosidade moral da espionagem. Gordievsky ficou
especialmente impressionado com a personagem
Ashenden, um agente britânico que é mandado para a
Rússia durante a revolução bolchevique: «Ashenden
admirava a bondade, mas não se sentia chocado com a
maldade», escreveu Maugham. «Por vezes, as pessoas
pensavam que ele era implacável porque estava mais
interessado nos outros do que ligado a eles.»28 
Para melhorar o seu inglês, Gordievsky ajudava a traduzir
os relatórios de Kim Philby. Como outros funcionários
governamentais da sua geração, Philby escrevia e falava
uma forma rebuscada de aristocrático inglês burocrático.
«O mandarim de Whitehall», uma forma de falar lânguida e
arrastada, com as vogais muito longas, era
excecionalmente difícil de reproduzir em russo, mas era
um exemplo útil da obscura linguagem da burocracia
britânica. 
As secções britânica e escandinava funcionavam lado a
lado no Terceiro Departamento. Gordievsky começou a
relacionar-se com todas as pessoas que poderiam ajudá-lo
a ser transferido para o lado britânico. Em abril de 1980,
Leila deu à luz uma menina, Maria, e o orgulhoso pai
convidou Viktor Grushko, o diretor do seu departamento, e
Lyubimov para celebrarem com ele. «Grushko e eu fomos
convidados para um jantar de pratos típicos do Azerbaijão,
preparados pela sogra dele», recordou Lyubimov. «Ela não
se cansou de elogiar o marido, que tinha trabalhado na
Tcheka [a polícia secreta bolchevique]. Gordievsky exibiu
os quadros que tinha colecionado na Dinamarca.» 
O problema de dar graxa ao chefe é que os chefes têm
tendência para mudar de lugar, o que pode significar uma
grande quantidade de graxa desperdiçada. 
De repente, Mikhail Lyubimov foi ignominiosamente
despedido do KGB. Como Gordievsky, também ele teve
problemas com os moralistas do Centro, mas o seu pecado
foi pior: o segundo casamento falhou e ele apaixonou-se
pela mulher de um colega, mas esqueceu-se de informar o
KGB antes da nomeação seguinte. Foi despedido sem
contemplações. Lyubimov tinha sido uma útil fonte de
segredos, mas também um protetor, conselheiro, aliado e
amigo íntimo. O inigualável Lyubimov declarou a sua
intenção de ser romancista, o Somerset Maugham russo. 
Viktor Grushko foi promovido a vice-diretor do PDP e
seria substituído na direção do Terceiro Departamento por
Gennadi Titov, «o Crocodilo», o antigo rezident em Oslo e
responsável pelo caso Arne Treholt. O novo diretor da
secção Escandinávia-Grã-Bretanha era Nikolai Gribin, um
figurão que fora subalterno de Gordievsky em Copenhaga
em 1976, mas desde então passara-lhe à frente na
hierarquia do KGB. Gribin era magro, elegante e atraente.
Nas festas, pegava numa guitarra e tocava tristes baladas
russas até pôr todos os presentes a chorar. Era um homem
excecionalmente ambicioso e aplicava-se a sério no
relacionamento com os seus superiores. «Os chefes
consideravam-no um tipo esplêndido.» Pelo contrário,
Gordievsky pensava que Gribin era um lambe-botas, «um
bajulador e carreirista típico». No entanto, precisava do
apoio dele, por isso respirou fundo e aguentou a
sicofantia. 
No verão de 1981, Gordievsky passou o exame final. O
seu inglês não era nem por sombras fluente, porém, pelo
menos teoricamente, estava qualificado para um cargo na
Grã-Bretanha. Em setembro nasceria Anna, a sua segunda
filha. Leila revelava-se uma «mãe excelente», e uma
atenciosa e solidária esposa. «Ela era maravilhosa em
casa», refletiu Oleg. Gordievsky já não era uma figura
ligada a um escândalo. Um primeiro sinal de reintegração
foi dado quando lhe pediram que escrevesse o relatório
anual do departamento. Começou a assistir a reuniões
mais importantes. Ainda assim, questionava-se se alguma
vez voltaria a ter acesso a segredos com relevância
suficiente para justificar o reatamento do contacto com o
MI6. 
Em Century House, a equipa SUNBEAM pensava
precisamente no mesmo. Tinham-se passado três anos
sem qualquer sinal de vida de Gordievsky. O local de sinal
na Kutuzovsky Prospekt era cuidadosamente monitorizado
e a Operação PIMLICO, o plano de fuga, era mantida em
permanente prontidão. Fez-se o ensaio geral: o chefe da
estação e a mulher foram de carro a Helsínquia pela rota
de exfiltração; Guscott e Price encontraram-se com eles do
outro lado da fronteira finlandesa e depois seguiram para
norte, para a fronteira com a Noruega. Em Moscovo, todas
as terças-feiras às 19h30, chovesse ou fizesse sol, um
membro da estação do MI6, ou a sua mulher, monitorizava
o passeio ao pé da padaria, com um chocolate Mars ou
KitKat preparado, e procurava um homem com um boné
cinzento e um saco do Safeway. No terceiro sábado de
cada mês, um funcionário do MI6 com um saco do Harrods
ficava perto do relógio no Mercado Central, a fingir que
fazia compras, atento ao sinal de contacto de raspão. «O
governo de Sua Majestade ainda me deve 10 libras por um
tomate de inverno, provavelmente o único em Moscovo»,
recordou um funcionário. 
Gordievsky nunca apareceu. 
Naquele ano, Geoffrey Guscott foi nomeado chefe de
estação do MI6 na Suécia – em parte porque, se
Gordievsky, que falava sueco, fosse mandado de novo para
o estrangeiro, havia a possibilidade de ser colocado em
Estocolmo. Não foi. O caso tinha entrado numa profunda
hibernação, da qual não mostrava sinais de despertar. 
Depois ouviu-se um batimento cardíaco, uma clara prova
de vida, cortesia do sempre fiável serviço de informações
dinamarquês. O PET também estava curioso para saber o
que acontecera ao espião russo; então foi pedido a um
diplomata dinamarquês que visitava Moscovo
regularmente para perguntar de forma casual, durante a
viagem seguinte, o que tinha acontecido ao camarada
Gordievsky, o encantador funcionário da embaixada russa
que falava tão bem dinamarquês. É claro, quando o
diplomata dinamarquês compareceu na festa seguinte, lá
estava Gordievsky, com uma aparência confiante e
saudável. O diplomata dinamarquês comunicou ao PET que
Gordievsky voltara a casar e era pai de duas filhas. O
avistamento confirmado foi rapidamente transmitido ao
MI6. 
Porém, o elemento mais importante do relatório do PET,
e que provocou uma onda de entusiasmo na equipa
SUNBEAM, estava contido num único comentário proferido
por Gordievsky enquanto bebiam cocktails e comiam
canapés. 
Com estudada indiferença, Gordievsky voltou-se para o
diplomata britânico e comentou: «Estou a aprender a falar
inglês.» 

21 «Rígido». (N. da T.)

25 Em francês no original: «resumo». (N. da T.)


6. O Agente BOOT 

Gennadi Titov tinha um problema. O diretor do Terceiro


Departamento do Primeiro Diretório Principal anunciara
uma vaga para um funcionário do KGB na embaixada
soviética em Londres, mas não havia ninguém para
preenchê-la, pelo menos alguém que o bajulasse o
suficiente – uma qualificação primordial para o trabalho. 
O Crocodilo era uma daquelas pessoas que existem em
todas as grandes burocracias e que oferecem proteção
partindo do princípio de que o recetor passará a ser um
escravo. Titov era grosseiro, intriguista, graxista com os
superiores e zombeteiro com os subalternos. «Um dos
funcionários mais desagradáveis e impopulares no KGB»,
na opinião de Gordievsky, também era um dos mais
poderosos. Expulso da Noruega na sequência da prisão de
Gunvor Haavik, tinha a reputação de ser um fantástico
mestre da espionagem e continuava a controlar Arne
Treholt à distância, encontrando-se regularmente com ele
para lautos almoços em Viena, Helsínquia e noutros
lugares. Regressado a Moscovo, em 1977, Titov foi
promovido rapidamente graças a brutais maquinações
internas de bajulação aos superiores e nomeação dos
comparsas para cargos cruciais. Gordievsky detestava-o. 
O Centro tentava reconstruir a sua estação de Londres
desde 1971, quando mais de 100 funcionários do KGB
foram expulsos na sequência da Operação FOOT, mas não
havia um número suficiente de funcionários que falassem
inglês para compensar o défice. O KGB infiltrara-se
profundamente na estrutura do poder britânico durante a
década de 1930, infligindo enormes danos com Philby e o
chamado anel de espiões de Cambridge, mas a
incapacidade de repetir essa proeza era motivo de
profunda frustração. Embora diversos ilegais tivessem sido
infiltrados no país e vários agentes do KGB trabalhassem
como jornalistas ou representantes comerciais, havia uma
escassez de espiões que pudessem operar eficazmente
sob um disfarce diplomático formal. 
No outono de 1981, o vice-diretor da Linha PR do KGB no
Reino Unido, ostensivamente um conselheiro na
embaixada soviética em Londres, regressou a Moscovo. O
primeiro candidato a substituí-lo foi rejeitado pelo
Ministério dos Negócios Estrangeiros, porque o MI5
desconfiava, com toda a razão, de que ele estava
envolvido em atividades clandestinas. Para preencher este
invejável cargo, o KGB precisava de alguém com
experiência no estrangeiro, que falasse inglês, tivesse uma
folha de serviços de diplomata legítimo e não fosse desde
logo vetado pelos britânicos. 
Gordievsky começou a sugerir que ele, e apenas ele,
cumpria os critérios. Nikolai Gribin, o recém-nomeado
chefe da secção britânica-escandinava, foi encorajador,
mas Titov queria um homem seu em Londres e, até ao
momento, Gordievsky não demonstrara o nível necessário
de subserviência. Seguiu-se um período de intensa intriga,
tendo Titov tentado colocar o seu candidato no cargo,
enquanto Gordievsky apresentava o que pensava ser a
combinação certa de entusiasmo, servilismo e falsa
humildade; ele fez lóbi sem ser óbvio, desacreditando
discretamente todos os rivais e dando graxa ao Crocodilo
até as barreiras desaparecerem. Por fim, Titov cedeu,
embora duvidasse que os britânicos lhe concedessem um
visto. «O Gordievsky é muito conhecido no Ocidente»,
comentou ele. «É possível que o rejeitem. Mas vamos
tentar mesmo assim.» 
Gordievsky manifestou a sua gratidão de forma
extravagante. No seu íntimo, sonhava com a vingança que
em breve poderia infligir ao Crocodilo. Leila, enquanto
mulher de um funcionário do KGB em ascensão, também
estava encantada com a perspetiva de se mudar para a
Grã-Bretanha, um país que tinha um fascínio quase mítico
para ela. As duas meninas cresciam a olhos vistos: Maria
era uma robusta criança de dois anos, enérgica e
independente, e Anna começava a dizer as primeiras
palavras em russo. Leila imaginava-se a levar as filhas bem
vestidas e fluentes na língua inglesa para a escola em
Londres, a fazer compras em supermercados grandes e
muito cheios e a explorar a ancestral cidade. A propaganda
soviética retratava a Grã-Bretanha como um lugar de
oprimidos trabalhadores e vorazes capitalistas, mas o
tempo que passara na Dinamarca já lhe mostrara as
realidades da vida no Ocidente e ela fizera uma curta visita
a Londres em 1978, integrada na delegação russa para
uma conferência da Organização Mundial de Saúde. Como
muitos casais que embarcavam juntos numa aventura, a
perspetiva de construírem uma nova vida em família num
país estrangeiro aproximou-os ainda mais: juntos,
imaginavam com entusiasmo um lugar de ruas largas,
intermináveis concertos de música clássica, restaurantes
de comida deliciosa e elegantes parques. Poderiam
passear pela cidade, ler o que quisessem e fazer novos
amigos britânicos. Gordievsky descreveu a Leila os
ingleses que conhecera em Copenhaga: pessoas
inteligentes e sofisticadas, sorridentes e generosas. Disse-
lhe que a temporada passada na Dinamarca tinha sido
empolgante, mas seriam ainda mais felizes em Londres.
Quando se conheceram, quatro anos antes, Gordievsky
pintara um quadro de como viajariam pelo mundo, um
funcionário de sucesso do KGB com a sua linda e jovem
mulher, a família a crescer; cumpria agora essa promessa,
e ela amou-o ainda mais. Mas Gordievsky também
imaginou cenários que não partilhou com Leila. A
rezidentura do KGB em Londres era uma das mais ativas
do mundo e ele teria acesso a segredos da maior
importância. Restabeleceria o contacto com o MI6 logo que
fosse seguro. Espiaria para a Grã-Bretanha, na Grã-
Bretanha, e, um dia, talvez em breve, talvez dali a anos,
diria ao MI6 que não queria continuar a espiar. Depois
poderia desertar, revelaria por fim a sua vida dupla à
mulher e viveriam na Grã-Bretanha para sempre. Não
revelou esta ideia a Leila. 
Para marido e mulher, o cargo em Londres foi a
realização de um sonho; mas eram sonhos diferentes. 
Gordievsky recebeu um novo passaporte diplomático. O
impresso para o pedido de visto foi preenchido e entregue
na embaixada britânica em Moscovo. Dali, foi enviado para
Londres. 
Passados dois dias, James Spooner, o chefe da secção
soviética do MI6, estava sentado à secretária em Century
House quando uma colega entrou ofegante e disse: «Tenho
uma notícia importante.» Entregou-lhe uma folha de papel.
«Veja este pedido de visto que acabou de chegar de
Moscovo.» A carta que acompanhava o pedido dizia que o
camarada Oleg Antonyevich Gordievsky fora nomeado
conselheiro da embaixada soviética e pedia ao Governo
britânico que emitisse um visto diplomático
imediatamente. 
Spooner ficou em êxtase. Mas ninguém diria.  
Filho de um médico e de uma assistente social escocesa,
Spooner pertencera, nos seus tempos de escola, a um
clube de «rapazes especialmente dotados». Saiu da
Universidade de Oxford com uma licenciatura em história e
uma paixão por arquitetura medieval. «Ele era
extremamente inteligente e excecionalmente preciso nas
suas avaliações, mas era difícil perceber no que estava a
pensar», diria um contemporâneo. Spooner ingressou no
MI6 em 1971, outro clube para os especialmente dotados.
Algumas pessoas previram que ele tinha tudo para ser o
futuro diretor do Serviço. O MI6 tem a reputação de primar
pela gabarolice, de correr riscos e de seguir palpites;
Spooner era o inverso. Lidava com as complexidades do
trabalho dos serviços secretos como um historiador (mais
tarde, encomendaria a primeira história autorizada do
MI6), recolhendo as provas, examinando minuciosamente
os factos, chegando a uma conclusão apenas após
ponderação e reconsideração. Spooner não fazia
julgamentos precipitados; pelo contrário, levava o seu
tempo a chegar a uma conclusão, de forma progressiva e
minuciosa. Em 1981 tinha apenas 32 anos, mas já
trabalhara como agente do MI6 sob disfarce diplomático
em Nairobi e Moscovo. Falava bem russo e sentia um
enorme fascínio pela cultura russa. Em Moscovo, o KGB
tentara envolvê-lo num «falso espontâneo» clássico, uma
abordagem de um oficial da Marinha soviética a oferecer-
se para espiar para a Grã-Bretanha. Em resultado disso, a
comissão de serviço de Spooner foi encurtada. No início de
1980 assumira o comando da secção P5, a equipa
operacional onde estava Veronica Price e que controlava os
agentes soviéticos dentro e fora do Bloco de Leste.
Efetivamente, Spooner estava no extremo oposto de
Gennadi Titov, o seu homólogo no KGB: alérgico às
políticas de gabinete, imune à lisonja e rigorosamente
profissional. 
O dossiê SUNBEAM foi um dos primeiros a chegar-lhe à
secretária. 
Com Gordievsky em Moscovo, incomunicável e
estagnado a nível profissional, o caso caíra no limbo.
«Claro que o correto era não estabelecer contacto», disse
Spooner. «A tomada de decisões estratégica foi muito boa.
Estávamos a pensar a longo prazo. É evidente que não
fazíamos ideia do que ia acontecer. Não tínhamos qualquer
motivo para pensar que ele viria para Londres.» 
Mas agora Gordievsky vinha do frio e, após três anos de
inação e suspense, James Spooner, Geoffrey Guscott,
Veronica Price e a equipa SUNBEAM entraram em ação.
Spooner ligou para Price e mostrou-lhe o pedido de visto.
«Fiquei muito satisfeita», declarou Price, que era o seu
equivalente a estar extremamente entusiasmada. «Foi
fantástico. Era precisamente o que esperávamos.» 
«Tenho de me ir embora e pensar», disse ela a Spooner. 
«Não penses demasiado», disse Spooner. «Isto tem de
chegar ao “C”.» 
Emitir um visto para Gordievsky não seria uma tarefa
simples. Em princípio, qualquer funcionário suspeito de
pertencer ao KGB era automaticamente proibido de entrar
na Grã-Bretanha. Em circunstâncias normais, o Ministério
dos Negócios Estrangeiros faria um inquérito preliminar e
descobriria que Oleg estivera colocado duas vezes em
Copenhaga. Um rotineiro pedido de informações aos
dinamarqueses revelaria que ele estava listado nos seus
ficheiros como um possível agente dos serviços secretos,
pelo que o visto seria sumariamente recusado. Contudo, as
circunstâncias não eram normais. O MI6 precisava que
Gordievsky fosse autorizado a entrar na Grã-Bretanha sem
demora, e sem perguntas. Era possível mandar o serviço
de estrangeiros e fronteiras emitir o visto, mas poderia
levantar suspeitas, porque seria um sinal de que
Gordievsky tinha algo de diferente. O segredo não podia
sair do MI6. Quando foi alertado, o PET disponibilizou-se a
ajudar. Ao saberem pelo MI5 que o Ministério dos Negócios
Estrangeiros iria fazer-lhes perguntas em breve, os
dinamarqueses «manipularam o registo» e responderam
que, embora tivessem outrora desconfiado, não havia
nenhuma prova de que Gordievsky fosse do KGB.
«Conseguimos deixar dúvida suficiente para que o visto
fosse emitido normalmente. Dissemos: “Sim, ele foi
sinalizado pelos dinamarqueses, mas não há certezas.”»
Para o Ministério dos Negócios Estrangeiros e para o
serviço de estrangeiros de fronteiras, Gordievsky era
apenas mais um diplomata soviético, possivelmente
assustador ou talvez não, mas sem dúvida não valia a
pena armar confusão por causa dele. O gabinete de
passaportes britânico costumava demorar pelo menos um
mês a emitir vistos diplomáticos; a autorização de
Gordievsky para entrar na Grã-Bretanha como diplomata
acreditado chegou em apenas 22 dias. 
Em Moscovo, aquilo pareceu suspeitosamente rápido. «É
muito estranho que lhe tenham concedido o visto tão
depressa», comentou um funcionário do Ministério dos
Negócios Estrangeiros russo com uma expressão sombria
quando Gordievsky foi buscar o passaporte. «Eles devem
saber quem o camarada é... Já passou muito tempo no
estrangeiro. Quando enviei o pedido, tive a certeza de que
ia ser recusado. Nos últimos tempos, eles têm recusado
muitos pedidos. Pode considerar-se uma pessoa de muita
sorte.» O perspicaz funcionário deve ter mantido as
desconfianças só para si. 
A burocracia do KGB foi muito mais lenta. Passados três
meses, Gordievsky continuava à espera de autorização
formal para sair da URSS. O Quinto Departamento da
Divisão K, a divisão de investigação interna do KGB, estava
a analisar o seu passado, e não tinha pressa. Oleg
começou a questionar-se se haveria algum problema. Em
Century House, os níveis de ansiedade também estavam a
aumentar. Na Suécia, Geoffrey Guscott recebeu instruções
para estar preparado para ir a Londres a qualquer
momento, a fim de receber Gordievsky quando ele
chegasse. Mas não havia meio de ele chegar. Teria corrido
alguma coisa mal? 
À medida que as semanas de espera se iam sucedendo,
Gordievsky passava proveitosamente o tempo a espreitar
os dossiês na sede do KGB – um dos lugares mais secretos
e impenetráveis do mundo, a não ser que a pessoa
estivesse já lá dentro. O sistema de segurança interna do
Centro em Moscovo era ao mesmo tempo complexo e
tosco. Os dossiês operacionais mais secretos eram
mantidos num armário fechado à chave no gabinete do
diretor do departamento. Contudo, os outros documentos
estavam guardados nos gabinetes das várias secções e em
cofres individuais utilizados pelos funcionários que
supervisionavam os diferentes aspetos do trabalho do
departamento. Todas as noites, cada funcionário trancava
o cofre e o armário de arquivo respetivos, guardava as
chaves numa pequena caixa de madeira e selava-a com
um pedaço de plasticina, onde imprimia um selo individual
– como os selos de lacre usados em documentos antigos. O
funcionário de serviço recolhia as caixas e colocava-as
noutro cofre, no gabinete de Gennadi Titov. Aquela chave
era colocada numa pequena caixa e selada da mesma
forma com o carimbo do funcionário de serviço, antes de
ser depositada no gabinete do secretariado do Primeiro
Diretório Principal, que funcionava em permanência. O
sistema requeria muito tempo, e muita plasticina. 
Gordievsky ocupava uma secretária na Sala 635, a
secção política do departamento britânico. Três grandes
armários metálicos continham dossiês sobre indivíduos no
Reino Unido que o KGB considerava agentes, potenciais
agentes ou contactos confidenciais. A Sala 635 só continha
casos ativos. O material redundante era transferido para o
arquivo principal. Os dossiês eram armazenados em caixas
de cartão, três por prateleira, e cada caixa continha dois
dossiês, selados com cordel e plasticina. Para retirar o selo
de um dossiê era necessária a assinatura de um chefe de
departamento. No armário britânico havia seis dossiês
sobre indivíduos classificados como «agentes» e mais uma
dúzia de pessoas listadas como «contactos confidenciais». 
Gordievsky começou a explorar, a construir uma imagem
das atuais operações políticas do KGB na Grã-Bretanha. O
vice-diretor do departamento, Dmitri Svetanko, troçou dele
por estudar tanto: «Não percas demasiado tempo a ler,
porque quando chegares à Grã-Bretanha vais perceber
como é.» Gordievsky continuou a investigar e esperou que
a sua reputação de diligência fosse o bastante para não
levantar suspeitas. Todos os dias, assinava o registo de
saída de um dossiê, quebrava o selo e descobria outro
bretão que o KGB estava a aliciar ou já tinha recrutado. 
Estes indivíduos não eram espiões, na verdadeira aceção
da palavra. A Linha PR procurava acima de tudo influência
política e informações confidenciais; os seus alvos eram
formadores de opinião, políticos, jornalistas e outras
pessoas em posições de poder. Algumas dessas pessoas
eram consideradas «agentes» conscientes e forneciam
intencionalmente informações, secretas ou não, de uma
forma clandestina; outras estavam classificadas como
«contactos confidenciais», informadores úteis com
diversos níveis de deliberada cumplicidade. Algumas
aceitavam hospitalidade, férias ou dinheiro. Outras, meras
simpatizantes da causa soviética, nem sequer percebiam
que o KGB estava a desenvolver contacto com elas. A
maioria teria ficado espantada se soubesse que todos
tinham direito a um nome de código e um dossiê num
armário metálico fechado à chave na sede do KGB. Não
obstante, aquelas pessoas eram de um calibre diferente
dos zés-ninguéns que a estação do KGB tentava aliciar na
Dinamarca. A Grã-Bretanha era um importante alvo.
Alguns dos casos vinham de há décadas. E alguns dos
nomes eram chocantes. 
Jack Jones era uma das figuras mais respeitadas no
movimento sindical, um socialista militante que fora
descrito pelo primeiro-ministro britânico Gordon Brown
como «um dos maiores líderes sindicais do mundo»29.
Também era um agente do KGB. 
Antigo estivador de Liverpool, Jones tinha lutado pelos
republicanos nas Brigadas Internacionais durante a Guerra
Civil Espanhola, e em 1969 ascendeu ao cargo de
secretário-geral do Transport and General Workers’ Union
(TGWU), outrora o maior sindicato no mundo ocidental com
mais de dois milhões de associados, um cargo que ocupou
durante quase uma década. Uma sondagem de opinião
realizada em 1977 concluiu que 54 por cento dos
inquiridos consideravam que Jones era a pessoa mais
poderosa da Grã-Bretanha, granjeando maior influência do
que o primeiro-ministro.30 Genial, sem rodeios e
intransigente, Jack Jones era o rosto público dos sindicatos.
O seu mundo privado era mais dúbio. 
Jones aderiu ao Partido Comunista em 1932 e manteve-
se filiado, pelo menos, até 1949. A primeira abordagem
dos serviços secretos soviéticos foi efetuada enquanto ele
estava a recuperar de ferimentos sofridos durante a
Guerra Civil Espanhola. Uma operação de escuta na sede
do Partido Comunista em Londres revelou que Jones,
segundo um relatório do MI5, estava «preparado para
passar ao partido informações governamentais e outras
que lhe tinham sido transmitidas confidencialmente na sua
qualidade de líder sindical»31. O KGB listou-o formalmente
como agente, com o nome de Código DRIM (a
transliteração russa de «dream», «sonho»), entre 1964 e
1968, e durante este período ele entregaria «documentos
confidenciais do Partido Trabalhista que obteve como
membro da Comissão Executiva Nacional e da comissão
internacional do partido, bem como informações sobre
colegas e contactos»32. Aceitou contributos para as suas
«despesas de férias» e foi sempre «considerado pelo KGB
“um agente muito disciplinado e útil”», transmitindo
«informações acerca do que estava a acontecer no número
10 de Downing Street, acerca da liderança do Partido
Trabalhista e do movimento sindicalista». Em 1968, a
Primavera de Praga levou Jones a cortar o vínculo ao KGB,
mas os dossiês indicavam que houvera um contacto
esporádico desde então. Reformara-se do TGWU em 1978
e recusara um título nobiliárquico, mas manteve-se uma
poderosa figura da esquerda. Gordievsky notou «claras
indicações no dossiê de que o KGB desejava recuperar a
sua associação com ele». 
Um segundo dossiê era dedicado a Bob Edwards, o
deputado de esquerda, outro antigo estivador, veterano da
Guerra Civil Espanhola, líder sindical e agente do KGB de
longa data. Em 1926, Edwards tinha liderado uma
delegação de jovens à URSS e conhecera Estaline e
Trotsky. Durante uma longa carreira política, Edwards
revelara-se um bom informador, com acesso a segredos de
alto nível. «Não há dúvida», concluiria o MI5 mais tarde, de
que o deputado «terá transmitido tudo aquilo a que
conseguiu deitar a mão»33 ao KGB. Edwards receberia em
segredo a Ordem da Amizade do Povo, a terceira
condecoração soviética mais importante, em
reconhecimento do seu trabalho secreto. O responsável
pelo seu caso na época, Leonid Zaitsev (o antigo chefe de
Gordievsky em Copenhaga), encontrou-se com Edwards
em Bruxelas para lhe mostrar a medalha pessoalmente,
antes de a levar de novo para Moscovo a fim de a guardar
em segurança. 
Para além do peixe graúdo, os dossiês continham
informações sobre uma série de pessoas menos
importantes, como Lorde Fenner Brockway, o veterano
pacifista, antigo deputado e secretário-geral do Partido
Trabalhista. Ao longo de muitos anos de associação com o
KGB, este «contacto confidencial» tinha aceitado por
várias vezes a hospitalidade dos serviços secretos
soviéticos sem jamais lhes dar alguma coisa muito valiosa
em troca. Em 1982, tinha 92 anos. Outro dossiê
referenciava um jornalista do Guardian, Richard Gott. Em
1964, enquanto trabalhava para o Royal Institute of
International Affairs, Gott fora abordado por um funcionário
da embaixada soviética em Londres, o primeiro de diversos
contactos com o KGB. Adorou o contacto com o mundo da
espionagem. «Gostei bastante da atmosfera de capa e
espada que qualquer pessoa que leu histórias de
espionagem da Guerra Fria conhecerá»34, diria mais tarde.
Os contactos foram retomados na década de 1970. O KGB
deu-lhe o nome de código RON. Ele aceitou viagens a
Viena, Nicósia e Atenas pagas pelos serviços secretos
soviéticos. Mais tarde, Gott escreveria: «Como muitos
outros jornalistas, diplomatas e políticos, almocei com
russos durante a Guerra Fria [...] Aceitei “ouro vermelho”,
embora fosse apenas sob a forma de despesas para mim e
para a minha companheira. Dadas as circunstâncias, foi
uma estupidez, que me torna culpado, embora na época
me tivesse parecido mais uma agradável piada.»35 
Como todas as agências de espionagem, o KGB tinha
tendência para pensamentos ilusórios e invenções quando
a realidade se atravessava no seu caminho. Várias das
pessoas que foram identificadas nos dossiês eram apenas
de esquerda, consideradas potenciais apoiantes do regime
soviético. A campanha de desarmamento nuclear era
considerada um terreno de recrutamento particularmente
fértil. «Muitos eram idealistas», referiu Gordievsky, «e a
maioria “dava a sua ajuda” de forma inconsciente.» Todos
os alvos recebiam um nome de código, mas isso não os
tornava espiões. Como acontece muitas vezes no trabalho
de espionagem, os dossiês políticos continham bastante
material que era retirado de jornais e revistas e
embelezado pelo KGB em Londres para parecer secreto e,
por conseguinte, importante. 
Contudo, havia uma caixa que se destacava de todas as
outras. A caixa de cartão continha dois dossiês, um com
300 páginas e o outro com cerca de metade do tamanho,
presos com cordel velho e selados com plasticina. O dossiê
estava marcado como BOOT. Na capa, a palavra «agente»
tinha sido riscada e substituída por «contacto
confidencial». Em dezembro de 1981, Gordievsky quebrou
o selo e abriu o dossiê pela primeira vez. Na primeira
página havia uma nota introdutória formal: «Eu, oficial
operacional sénior, major Petrov, Ian Alexeyevich, dou
início a um dossiê sobre o agente Michael Foot, cidadão do
Reino Unido, e atribuo-lhe o nome de código Boot.» 
O agente BOOT era o muito ilustre Michael Foot, famoso
escritor e orador, veterano deputado de esquerda, líder do
Partido Trabalhista e o político que, se o Partido Trabalhista
vencesse as eleições seguintes, seria primeiro-ministro da
Grã-Bretanha. O líder da leal oposição a sua majestade
tinha sido um agente pago pelo KGB. 
Gordievsky lembrou-se de que, na Dinamarca, Mikhail
Lyubimov lhe descrevera os seus esforços para aliciar um
promissor deputado do Partido Trabalhista na década de
1960. No seu livro de memórias, com um forte sinal para
as pessoas que sabiam, Lyubimov referiu-se ao pub
londrino onde fez o recrutamento como «O Lyubimov e
Boot»36. Gordievsky sabia que Michael Foot se tornara um
dos políticos mais importantes da Grã-Bretanha. Nos 15
minutos seguintes, folheou o dossiê e o seu coração
disparou. 
Michael Foot ocupa uma posição peculiar na história
política. Mais tarde, seria ridicularizado como «Worzel
Gummidge»37 por causa da sua aparência desgrenhada,
casaco de trabalho, óculos grossos e bengala com nós.
Porém, durante duas décadas foi uma gigantesca figura da
esquerda no Partido Trabalhista, um escritor extremamente
culto, um eloquente orador público e um político com
fortes convicções. Tornou-se o mais peculiar dos espécimes
britânicos, um tesouro nacional. Nascido em 1913,
começou a sua carreira como jornalista, editou o jornal
socialista Tribune e foi eleito para o Parlamento em 1945.
A sua primeira nomeação para o governo aconteceu em
1974, como secretário de Estado do Emprego no governo
de Harold Wilson. O líder trabalhista James Callaghan foi
derrotado por Margaret Thatcher em 1979 e demitiu-se
passados 18 meses. Foot foi eleito líder do Partido
Trabalhista no dia 10 de novembro de 1980. «As minhas
convicções socialistas são tão fortes como sempre»38, disse
ele. A Grã-Bretanha atravessava uma profunda depressão.
Thatcher era impopular. As sondagens de opinião
colocavam o Partido Trabalhista mais de 10 pontos
percentuais à frente dos conservadores. As eleições gerais
seguintes deveriam decorrer em maio de 1984 e parecia
haver uma boa possibilidade de Michael Foot vencer e
tornar-se primeiro-ministro. 
Se fosse tornado público, o dossiê FOOT poria fim a tudo
aquilo num instante. 
O major Petrov tinha sem dúvida sentido de humor e foi
incapaz de resistir ao trocadilho Foot/Boot quando
escolheu um nome de código. Mas o resto do dossiê era
muito sério. Descrevia, passo a passo, a evolução de uma
relação de 20 anos desde o fim da década de 1940,
quando o KGB decidiu que ele era «progressista». No
primeiro encontro com Foot, nos escritórios do Tribune,
agentes do KGB, que se fizeram passar por diplomatas,
enfiaram-lhe uma nota de 10 libras no bolso (que valeriam
cerca de 250 libras nos dias de hoje). Ele não recusou. 
Uma folha no dossiê listava os pagamentos feitos a Foot
ao longo dos anos. Era um formulário-padrão, com data,
quantia e nome do funcionário que efetuara o pagamento.
Gordievsky olhou para os números e calculou que houve
entre 10 e 14 pagamentos durante a década de 1960,
entre 100 e 150 libras cada um, num total de 1500 libras,
que valeriam mais de 37 mil libras hoje em dia. O que
aconteceu ao dinheiro é incerto. Mais tarde, Lyubimov diria
a Gordievsky que desconfiava que Foot poderia ter
«guardado algum para si», mas o deputado trabalhista não
era um mercenário e parece mais provável que o dinheiro
tenha sido usado para aguentar o Tribune, que estava
sempre falido. 
Outra página listava os funcionários que tinham
controlado o agente BOOT na rezidentura de Londres, por
nome verdadeiro e nome de código: Gordievsky reparou
logo em Lyubimov, com o nome de código LORIN. «Li
rapidamente a lista. Um dos meus objetivos era perceber
se havia mais alguém que eu conhecesse e descobrir
quem eram os funcionários capazes de manipular um
homem como aquele.» Também havia um índice remissivo
com cinco páginas, um inventário de todas as pessoas
mencionadas por Foot em conversas com o KGB. 
Os encontros decorriam cerca de uma vez por mês,
frequentemente durante o almoço no restaurante Gay
Hussar, no Soho. Todos os encontros eram cuidadosamente
planeados. Três dias antes, Moscovo enviava um esboço do
que devia ser abordado. O relatório resultante do encontro
era lido pelo chefe da Linha PR em Londres e em seguida
pelo rezident, antes de ser enviado para o Centro, em
Moscovo. Em cada fase havia uma avaliação do caso em
desenvolvimento. 
Gordievsky leu dois relatórios do princípio ao fim e leu
meia dúzia na diagonal. «Estava interessado na linguagem
e no estilo daqueles relatórios e no que refletiam da
relação – eram melhores do que eu esperava. Os relatórios
não eram muito imaginativos, mas eram inteligentes e
estavam bem escritos. Era uma relação muito
desenvolvida, amistosa dos dois lados, com
confidencialidade dos dois lados, e ambos conversavam
com cordialidade e muitos pormenores cheios de
verdadeiras informações.» Lyubimov tinha sido
especialmente hábil a controlar Foot e a pagar-lhe.
«Mikhail Petrovich punha dinheiro num envelope e enfiava-
lho no bolso – ele tinha modos tão elegantes que podia
fazê-lo de uma forma convincente.» 
O que recebia o KGB em troca? Gordievsky recordou:
«Foot deu-lhes informações relacionadas com o movimento
trabalhista. Disse-lhes quais os políticos e os líderes
sindicais que eram pró-soviéticos e até sugeriu a que
líderes sindicais deviam ser oferecidas férias no mar Negro
financiadas pelos soviéticos. Sendo um importante
apoiante da campanha de desarmamento nuclear, Foot
também passou tudo o que sabia acerca dos debates sobre
armas nucleares. Por sua vez, o KGB dava-lhe esboços de
artigos que encorajavam o desarmamento britânico e que
ele poderia depois editar e publicar no Tribune sem referir
a verdadeira fonte. Foot não protestou contra a invasão
soviética da Hungria em 1956 e visitava com frequência a
União Soviética, sendo recebido com pompa e
circunstância.»39 
Foot estava excecionalmente bem informado. Forneceu
pormenores sobre as maquinações internas no Partido
Trabalhista, bem como a atitude do partido a respeito de
outros tópicos quentes: a Guerra do Vietname, as
consequências militares e políticas do assassinato de
Kennedy, o desenvolvimento do atol Diego Garcia como
base norte-americana e a Conferência de Genebra de 1954
para resolver assuntos pendentes da Guerra da Coreia.
Foot estava numa posição única para fornecer uma
perspetiva política aos soviéticos e era recetivo à
orientação destes. A manipulação foi subtil. «Diziam ao
Michael Foot: “Senhor Foot, os nossos analistas chegaram
à conclusão de que seria útil que o público soubesse isto e
aquilo.” Em seguida, alguém dizia: “Preparei algum
material [...] leve-o e use-o, se lhe aprouver.” Falavam
sobre o que seria bom publicar no futuro, no seu jornal e
noutros.» Nunca foi assumido que Foot estava a receber
propaganda soviética em bruto. 
BOOT era um peculiar tipo de agente que não se
encaixava muito bem na definição soviética. Ele não
escondia os encontros com os funcionários soviéticos
(embora também não os publicitasse) e, como era uma
figura pública, seria impossível os encontros passarem
clandestinos. Era um «criador de opinião» e, por
conseguinte, mais um agente de influência (um termo de
arte) do que um agente (um termo específico da
espionagem). Foot não saberia que o KGB o classificava
como um agente, uma definição interna, e manteve a sua
independência intelectual. Não passou segredos de Estado
(naquela época não tinha acesso a eles). Sem dúvida,
acreditava que estava ao serviço de uma política
progressista e de paz ao aceitar a generosidade soviética
para financiar o Tribune. Talvez nem tivesse consciência de
que os seus interlocutores eram funcionários do KGB, que
estariam a dar-lhe informações e a transmitir a Moscovo o
que ele lhes revelava. Nesse caso, era extremamente
ingénuo. 
Em 1968, o caso BOOT mudou de figura. Foot tornou-se
muito crítico de Moscovo na sequência da Primavera de
Praga. Num comício de protesto em Hyde Park, declarou:
«As ações dos russos confirmam que uma das piores
ameaças para o socialismo vem do interior do próprio
Kremlin.»40 Não mais o dinheiro trocou de mãos. BOOT foi
despromovido de «agente» para «contacto confidencial».
Os encontros tornaram-se menos frequentes, e quando
Foot se candidatou à liderança do Partido Trabalhista,
pararam por completo. No entanto, da perspetiva do KGB
em 1891, o caso mantinha-se aberto e ainda podia ser
retomado. 
O dossiê BOOT não deixou dúvidas a Gordievsky: «O KGB
considerou que Michael Foot era um agente até 1968. Ele
recebia dinheiro diretamente de nós, o que significava que
podíamos considerá-lo um agente. É muito bom que um
agente receba dinheiro – é um elemento de reforço na
relação.» 
Foot não tinha infringido a lei. Não era um espião
soviético. Não tinha traído o seu país. Contudo, aceitara
orientações e recebera dinheiro em segredo enquanto
transmitia informações a uma potência inimiga, uma
ditadura totalitária. Se aquela relação com o KGB fosse
descoberta pelos seus rivais políticos (dentro e fora do
partido), destruir-lhe-ia a carreira num instante, decapitaria
o Partido Trabalhista e iniciaria um escândalo que
reescreveria a política britânica. No mínimo, Foot perderia
as eleições. 
Considera-se muitas vezes que Lenine criou o termo
«idiota útil», «poleznyi durak» em russo, que significa
aquele que pode ser usado para espalhar propaganda sem
estar consciente disso, ou contribuir para os objetivos
pretendidos pelo manipulador. 
Michael Foot tinha sido útil para o KGB, e completamente
idiota. 
Gordievsky leu os dossiês BOOT em dezembro de 1981.
No mês seguinte, releu-os e decorou tudo o que
conseguiu. 
Dmitri Svetanko, o vice-diretor do departamento, ficou
surpreendido ao ver que Gordievsky continuava a procurar
conhecer a fundo os casos britânicos, sobretudo quando
lhe tinha dito para não se preocupar. 
«O que estás a fazer?», perguntou abruptamente. 
«Estou a ler os dossiês», disse Gordievsky, o mais
objetivo possível. 
«Precisas mesmo disso?» 
«Pensei que devia estar completamente preparado.» 
Svetanko não ficou impressionado. «Porque é que não
escreves um documento útil em vez de perderes tempo a
ler aqueles dossiês?», retorquiu, e saiu do gabinete. 
No dia 2 de abril de 1982, a Argentina invadiu as
Malvinas, o posto avançado da Grã-Bretanha no Atlântico
Sul. Até Michael Foot, o líder da oposição e apóstolo da
paz, apelou à «ação, não palavras» em resposta à
agressão da Argentina. Margaret Thatcher enviou uma
força de intervenção para expulsar os invasores. No
Centro, em Moscovo, a Guerra das Malvinas provocou um
violento recrudescimento de sentimento antibritânico.
Thatcher já era uma figura odiada na União Soviética; o
conflito nas Malvinas era mais um exemplo da arrogância
imperialista dos britânicos. A «hostilidade do KGB era
quase histérica», recordaria Gordievsky. Os seus colegas
estavam convencidos de que a Grã-Bretanha seria
derrotada pela atrevida Argentina. 
A Grã-Bretanha estava em guerra. Gordievsky era o único
no KGB que estava do lado da Grã-Bretanha e perguntou a
si mesmo se alguma vez pisaria o país a que jurara
fidelidade secreta. 
Por fim, o Quinto Departamento do KGB autorizou-o a
viajar para a Grã-Bretanha. No dia 28 de junho de 1982,
Oleg embarcou no voo da Aeroflot para Londres com Leila
e as filhas, agora com dois anos e nove meses
respetivamente. Estava aliviado por ter seguido viagem e
ansioso para restabelecer o contacto com o MI6, mas o
futuro continuava incerto. Se o seu trabalho para a Grã-
Bretanha tivesse sucesso, acabaria por ter de desertar e
talvez nunca mais voltasse à Rússia. Era possível que
nunca mais visse a mãe e a irmã mais nova. Se fosse
exposto, poderia voltar, mas seria detido pelo KGB, para
enfrentar um interrogatório e a execução. Quando o avião
levantou voo, Gordievsky estava a pensar na bagagem
acumulada de quatro meses de tenso estudo secreto nos
arquivos do KGB. Era demasiado perigoso fazer anotações
do que tinha descoberto. Por isso, levava na cabeça os
nomes de todos os agentes da Linha PR na Grã-Bretanha e
de todos os espiões do KGB na embaixada soviética em
Londres; trazia provas da identidade do «Quinto Homem»,
das atividades de Kim Philby no exílio e mais provas de
que o norueguês Arne Treholt era um espião de Moscovo. E
o mais importante de tudo é que tinha decorado
pormenores dos ficheiros BOOT, o dossiê sobre Michael
Foot – um presente para os serviços secretos britânicos e
um pedaço excecionalmente volátil de explosivo político. 

30James Callaghan foi primeiro-ministro entre 5 de abril de 1976 e 4 de maio de


1974. (N. da T.)

37Um espantalho da ficção infantil britânica que anda e fala, criado pela
romancista inglesa Barbara Euphan Todd. Os livros foram adaptados diversas
vezes para rádio e televisão. (N. da T.)
SEGUNDA PARTE 
7. A Casa Segura 

À primeira vista, Aldrich Ames era apenas um funcionário


da CIA medianamente infeliz. Bebia demasiado. O seu
casamento estava a desmoronar-se de uma forma lenta e
nada espetacular. Nunca tinha dinheiro suficiente. O seu
trabalho de recrutamento de espiões soviéticos na Cidade
do México, à margem da Guerra Fria, era
surpreendentemente monótono e tão pouco produtivo que
ele recebia um fluxo constante de insistentes exigências
da sede da CIA em Langley, na Virgínia. Ames sentia-se
pouco valorizado, mal pago e sentia falta de fazer sexo
mais vezes. Recebera recentemente uma série de
repreensões: por se ter embriagado numa festa de Natal,
por se esquecer de trancar um cofre e por deixar uma
pasta com fotografias de um agente soviético num
comboio. Mas não havia nada na sua folha de serviço que
indicasse que ele era mais do que consistentemente
medíocre, fiavelmente incompetente e manifestamente
preguiçoso. Alto e magro, com óculos grossos e um bigode
que nunca parecia completamente confiante de si mesmo,
era difícil destacar-se num grupo e passava invisível numa
multidão. Ames não tinha nada de especial – e talvez fosse
esse o problema. 
Lá no fundo, crescia em Rick Ames um tumor de cinismo,
duro e inflamado, tão devagar que ninguém tinha
reparado, e muito menos o próprio. 
Em tempos tivera grandes sonhos. Nascido em River
Falls, no Wisconsin, em 1941, a sua infância na década de
1950 parecia o idílico sonho suburbano gravado nas caixas
de cereais para pequeno-almoço, escondendo a sua dose
de depressão, alcoolismo e discreto desespero. O pai
começara a vida como académico e acabara a trabalhar
para a CIA na Birmânia, fazendo pagamentos a publicações
birmanesas financiadas em segredo pelo Governo norte-
americano. Quando era menino, Ames leu os thrillers de
Leslie Charteris protagonizados por Simon Templar, «o
Santo», e imaginava-se um «elegante e jovial aventureiro
britânico». Usava uma gabardina para parecer um espião e
treinava truques de magia. Gostava de enganar as
pessoas. 
Ames era inteligente e imaginativo, mas a realidade
nunca parecia corresponder às suas expectativas ou dar-
lhe o que ele considerava que merecia. Não conseguiu
licenciar-se na Universidade de Chicago e trabalhou
durante algum tempo como ator em tempo parcial. Não
gostava da autoridade. «Se lhe pediam para fazer uma
coisa que não queria, ele não discutia: simplesmente, não
obedecia.» Por fim, conseguiu licenciar-se com grande
dificuldade e ingressou na CIA, por sugestão do pai.
«Mentir é errado, filho, mas se servir um bem maior, não
faz mal», disse-lhe ele, com um bafo cada vez mais denso
de bourbon. 
O curso de estagiários da CIA destinava-se a inspirar
devoção patriótica ao dever no complexo e exigente
mundo da recolha de informações. Porém, podia ter outros
efeitos. Ames aprendeu que os princípios morais eram
maleáveis; que as leis dos Estados Unidos se sobrepunham
às dos outros países; que um espião ganancioso era mais
valioso do que um espião movido pela ideologia, porque
«quando o dinheiro garantia os serviços, era mais fácil
mantê-los e manipulá-los». Ames passou a acreditar que o
recrutamento de agentes dependia da «capacidade de
avaliar a vulnerabilidade da pessoa». Quando se conhecia
a fraqueza de um homem, era mais fácil armar-lhe uma
cilada e manipulá-lo. A deslealdade não era um pecado,
mas uma ferramenta operacional. «A essência da
espionagem é o abuso de confiança», declarou Ames, mas
estava errado: a essência de um controlo bem-sucedido de
um agente é a manutenção da confiança, a substituição de
uma fidelidade por outra lealdade mais elevada. 
Ames foi colocado na Turquia, fulcral na guerra de
espionagem entre o Leste e o Ocidente, e começou a
colocar o seu treino em prática contratando agentes
soviéticos em Ancara. Ames decidiu que nascera com um
dom para ser um mestre da espionagem, tendo «a
capacidade de me concentrar num alvo e estabelecer uma
relação, [e] manipular-me e a ele para a situação que eu
queria». No entanto, os chefes consideravam o seu
desempenho não mais do que «satisfatório». Após a
Primavera de Praga, recebeu instruções para colar
centenas de cartazes à noite, com o slogan: «Lembrem-se
de 68» – para dar a impressão de que a população turca
estava indignada com a invasão soviética. Em vez disso,
deitou os cartazes num caixote do lixo e foi beber um
copo. 
Depois de regressar a Washington em 1972, Ames
frequentou um curso de russo e passou os quatro anos
seguintes a trabalhar no Departamento da União Soviética-
Europa de Leste. Não foi a melhor altura para apanhar esse
barco. A revelação de que Richard Nixon tinha usado a CIA
para tentar obstruir uma investigação federal no roubo de
Watergate em 1972 desencadeou uma crise no seio da
agência e uma série de investigações às suas atividades
durante os 20 anos anteriores. Os relatórios resultantes
dessas investigações, conhecidos como as «Joias de
Família» [Family Jewels], identificaram uma incriminatória
litania de ações ilegais muito longe da alçada da CIA,
incluindo escutas a jornalistas, roubos, planos de
homicídio, experiências em seres humanos, conluio com a
Máfia e vigilância doméstica sistemática de civis. James
Angleton, o cadavérico colecionador de orquídeas que era
diretor da contraespionagem, quase destruíra a CIA com a
caça que empreendeu a toupeiras internas, com base na
obsessiva e errónea convicção de que Kim Philby estava a
orquestrar a penetração em massa dos serviços secretos
ocidentais. Por fim, Angleton foi obrigado a reformar-se em
1974, deixando atrás de si um legado de profunda
paranoia. A CIA também estava a ficar para trás na guerra
da espionagem: «Devido ao zelo excessivo de Angleton e
da sua equipa de contraespionagem, tínhamos muito
poucos agentes soviéticos dignos desse nome dentro da
URSS»41, declarou Robert M. Gates, que foi recrutado
sensivelmente ao mesmo tempo que Ames e acabaria por
chegar a diretor da CIA. A agência passaria por uma
profunda reforma durante a década seguinte, mas Ames
ingressara quando estava no seu ponto mais baixo:
desmoralizada, desorganizada e sob suspeita generalizada.
 
Em 1976 foi transferido para Nova Iorque, para recrutar
agentes soviéticos, e em 1981 foi colocado na Cidade do
México. A CIA sabia que ele bebia e que tinha tendência
para procrastinar e queixar-se, mas nunca houve nenhuma
sugestão de que devia ser despedido. Após quase 20 anos
na CIA, Ames conhecia o funcionamento da agência, mas a
sua carreira estava estagnada e ele culpava toda a gente
por isso. As suas tentativas de recrutar agentes no México
davam poucos frutos e ele considerava que os colegas, e
os superiores, eram quase todos uns idiotas. «A maior
parte das coisas que eu estava a fazer não servia para
nada», admitiu. Ames casara-se com uma colega dos
serviços secretos, Nancy Segebarth, do pé para a mão,
sem grande reflexão. O seu casamento, como o de
Gordievsky, foi frio e sem filhos. Nan não o acompanhou
para a Cidade do México e ele teve uma série de
insatisfatórios casos amorosos com mulheres de quem não
gostava particularmente. 
Em meados de 1982, Ames via-se enredado na rotina:
descontente, sozinho, rabugento e frustrado, mas
demasiado preguiçoso e embriagado para fazer alguma
coisa a fim de travar a queda no abismo. Então, Rosario
entrou na sua vida e as luzes acenderam-se. 
Maria del Rosario Casas Dupuy era adida cultural da
embaixada da Colômbia. Nascida numa aristocrática
família colombiana falida de origem francesa, Rosario tinha
29 anos, era culta, sedutora e cheia de vivacidade, com
cabelo escuro encaracolado e um sorriso radioso. «Era
como uma lufada de ar fresco a entrar numa sala cheia de
fumo de charuto», diria um funcionário do Departamento
de Estado na Cidade do México. Também era imatura,
carente e gananciosa. Em tempos, a família possuíra
grandes propriedades rurais. Ela fora educada nos
melhores colégios particulares e estudara na Europa e nos
Estados Unidos. Fazia parte da elite colombiana. Porém, a
sua família não tinha um tostão. «Cresci rodeada de
pessoas ricas», disse uma vez. «Mas nunca tivemos
dinheiro.» Rosario pretendia retificar isso. 
Rosario conheceu Rick Ames num jantar diplomático.
Sentaram-se no chão, a falar com entusiasmo sobre
literatura moderna, e mais tarde foram para o
apartamento dele. Rosario pensava que Ames era um
diplomata americano de carreira e, por isso, devia ser
razoavelmente rico. Rick achou que ela era «brilhante e
linda» e depressa decidiu que estava apaixonado. «O sexo
era fantástico», diria. 
O entusiasmo de Rosario pode ter diminuído um pouco
quando descobriu que o seu novo namorado americano já
era casado, não tinha dinheiro e era um espião da CIA. «O
que estás a fazer com esses canalhas?», perguntou-lhe.
«Porque é que estás a desperdiçar o teu tempo e os teus
talentos?» Ames prometeu que se divorciaria de Nan o
mais depressa possível e que se casaria com ela. Depois,
começariam uma vida juntos nos Estados Unidos e «seriam
felizes para sempre». Para um homem com um miserável
salário da CIA, foi uma promessa cara: era provável que o
divórcio de Nan fosse dispendioso, e casar-se com Rosario,
que tinha gostos extravagantes, podia ser ruinoso. Ames
garantiu a Rosario que abandonaria a CIA e começaria
outra carreira, mas aos 41 anos não tinha vontade nem
energia para tal. Em vez disso, algures na perturbada
mente de Rick Ames, começou a formar-se um plano para
tornar o seu mal pago e insatisfatório emprego na CIA
muito mais lucrativo. 
 
 
Enquanto Aldrich Ames fazia planos para um lucrativo
novo futuro, do outro lado do mundo um homem
entroncado com um boné de pele com pala saiu da
embaixada soviética, no número 13 de Kensington Palace
Gardens, em Londres, e dirigiu-se para ocidente em
direção a Notting Hill Gate. Algumas centenas de metros
adiante, voltou para trás, virou à direita numa rua e virou à
esquerda noutra antes de entrar num pub e, um minuto
mais tarde, sair por uma porta lateral. Por fim, numa rua
secundária, entrou numa cabina telefónica vermelha,
fechou a pesada porta e marcou o número que lhe tinham
dado em Copenhaga quatro anos antes. 
«Olá! Bem-vindo a Londres», disse a voz gravada de
Geoffrey Guscott em russo. «Muito obrigado por ligar.
Estamos ansiosos por vê-lo. Entretanto, tire alguns dias
para descontrair e instalar-se. Falaremos no princípio de
julho.» A gravação convidava-o a ligar de novo na noite de
4 de julho. O som da voz de Guscott foi «imensamente
reconfortante». 
O MI6 controlava Oleg Gordievsky há oito anos; tinha
agora um espião experiente e cheio de entusiasmo
infiltrado no interior da estação de Londres do KGB e não
ia arruinar o caso avançando demasiado depressa. 
Oleg e a família instalaram-se calmamente no novo
apartamento de dois quartos num edifício inteiramente
ocupado por funcionários da embaixada soviética em
Kensington High Street. Leila estava encantada com o novo
ambiente, mas Gordievsky sentiu uma inesperada pontada
de desapontamento. A Grã-Bretanha era o seu objetivo
desde que fora recrutado por Richard Bromhead,
assumindo uma aura de glamour e sofisticação na sua
imaginação que nunca poderia corresponder à realidade.
Londres era muito mais suja do que Copenhaga, e não
muito mais limpa do que Moscovo. «Imaginei que tudo
seria muito mais limpo e mais bonito.» No entanto, refletiu,
o simples facto de estar no Reino Unido era «uma
poderosa vitória, para os serviços secretos britânicos e
para mim». O MI6 saberia sem dúvida que ele tinha
chegado, mas esperou alguns dias para estabelecer
contacto, não fosse o KGB estar a vigiá-lo. 
Na manhã após a sua chegada, Gordievsky percorreu a
pé os 400 metros até à embaixada soviética, apresentou o
seu livre-trânsito novinho em folha ao porteiro e foi
escoltado até à rezidentura do KGB: um enclave
atravancado, cheio de fumo e fortificado no último andar,
demasiado rígido com a suspeição e dirigido por um chefe
obsessivamente desconfiado que respondia pelo áspero e
dissonante nome de Guk. 
O general Arkadi Vasilyevich Guk, nominalmente o
primeiro-secretário da embaixada soviética, mas na
realidade o rezident do KGB, tinha chegado à Grã-Bretanha
dois anos antes e fizera questão de se recusar a integrar-
se. Ferozmente ignorante, brutalmente ambicioso e
frequentemente embriagado, desprezava qualquer forma
de interesse cultural como pretensão intelectual e rejeitava
terminantemente todos os livros, filmes, peças de teatro,
arte e música. Guk tinha alcançado um lugar importante
na divisão de contraespionagem (KR) do KGB liquidando a
oposição nacionalista ao jugo soviético nos estados
bálticos. Era defensor e conhecedor do homicídio e
gostava de se vangloriar de que se oferecera para liquidar
uma série de renegados que tinham fugido para o
Ocidente, incluindo a filha de Estaline e o presidente da
Liga de Defesa Judaica em Nova Iorque. Só comia produtos
russos, em grandes quantidades, e quase não falava
inglês. Antes de ir para Londres tinha sido diretor da
estação municipal do KGB em Moscovo. Em contraste com
Mikhail Lyubimov, odiava a Grã-Bretanha e os britânicos.
Mas, acima de tudo, abominava o embaixador soviético,
Viktor Popov, um diplomata culto e ligeiramente afetado
que representava tudo o que Guk desprezava. O diretor do
KGB passava a maior parte do tempo fechado no seu
gabinete, a beber vodca e a fumar como uma chaminé, a
dizer mal de Popov e a tentar encontrar novas formas de o
enfraquecer. As informações que enviava para Moscovo
eram na maioria puras invenções, inteligentemente
enquadradas para alimentar as mirabolantes teorias da
conspiração do Centro – como a ideia de que o Partido
Social Democrata (PSD) de centro-esquerda, o novo
partido formado em março de 1981, tinha sido criado pela
CIA. Gordievsky descreveu o novo chefe como «um homem
enorme e inchado, com um cérebro medíocre e uma
grande reserva de vil astúcia». 
Muito mais inteligente, mas também mais ameaçador,
era Leonid Yefremovitch Nikitenko, o chefe da
contraespionagem e principal confidente de Guk. Era um
homem charmoso e encantador quando queria, e
insensível. Tinha olhos encovados e amarelados, que
deixavam escapar muito pouco. Nikitenko decidira desde
logo que a melhor forma de ser bem-sucedido em Londres
era ser conivente com Guk, mas era um hábil funcionário
da contraespionagem, metódico e desonesto, e após três
anos de experiência em Londres tinha aprendido muito
sobre os meandros da espionagem britânica. «Não há nada
que se assemelhe»42, declarou Nikitenko, referindo-se ao
seu trabalho de combate ao MI5 e ao MI6. «Somos
políticos. Somos soldados. E, acima de tudo, somos atores
num maravilhoso palco. Não me ocorre um trabalho
melhor que o das informações.» Se alguém ia arranjar
problemas a Gordievsky, essa pessoa era Nikitenko. 
O diretor da Linha PR, o superior imediato de Gordievsky,
era Igor Fyodorovich Titov (sem relação familiar com
Gennadi), um homem autoritário, quase careca, que
fumava como uma chaminé e tinha uma insaciável
predileção por revistas pornográficas ocidentais, que
comprava no Soho e enviava para Moscovo na mala
diplomática de presente para os seus compinchas do KGB.
A título oficial, Titov não fazia parte da equipa diplomática
oficial da embaixada, mas trabalhava sob disfarce
jornalístico, como correspondente da revista semanal russa
Novos Tempos. Gordievsky conhecera Titov em Moscovo e
considerava-o «um homem verdadeiramente maléfico». 
Os três chefes esperavam Gordievsky no gabinete do
rezident. Os apertos de mão foram pouco calorosos e os
cumprimentos formais. Guk tomou logo de ponta o recém-
chegado com a justificação de que este dava ares de ser
demasiado culto. Nikitenko olhou-o com a reserva de um
homem treinado para não confiar em ninguém. E Titov viu
o seu novo subordinado como um potencial rival. O KGB
era uma comunidade intensamente tribal: Guk e Nikitenko
eram produtos da Linha KR, com uma enraizada
mentalidade de contraespionagem e, por conseguinte,
viram instintivamente o recém-chegado como uma
ameaça, que «abrira caminho à força» para um cargo para
o qual não tinha grandes qualificações. 
A paranoia é ditada pela propaganda, pela ignorância,
pelo secretismo e pelo medo. Em 1982, a estação do KGB
de Londres era um dos lugares mais profundamente
paranoicos à face da Terra, uma organização imbuída de
uma mentalidade defensiva em grande medida baseada
em fantasias. Como o KGB dedicava muito tempo e esforço
a espiar diplomatas estrangeiros em Moscovo, presumia
que o MI5 e o MI6 deviam fazer o mesmo em Londres. Na
realidade, embora o Serviço de Segurança monitorizasse e
vigiasse pessoas suspeitas de ser operacionais do KGB, a
vigilância não era nem por sombras tão intensa como os
russos imaginavam. 
Porém, o KGB estava convencido de que toda a
embaixada soviética era alvo de uma gigantesca e
contínua operação de vigilância, e o facto de esta
espionagem ser invisível confirmava que os britânicos
deviam ser muito bons. Presumiam que as embaixadas do
Nepal e do Egito, em edifícios adjacentes, poderiam ser
«postos de escuta» e os funcionários estavam proibidos de
falar perto das paredes que dividiam os prédios; pensavam
que havia espiões escondidos com teleobjetivas a registar
todas as entradas e saídas da embaixada; dizia-se que os
britânicos tinham construído um túnel especial em
Kensington Palace Gardens para instalar equipamento de
escuta por baixo da embaixada; as máquinas de escrever
elétricas foram proibidas com o argumento de que o som
das teclas poderia ser detetado e decifrado e até o uso das
máquinas de escrever manuais era desencorajado, não
fosse o som das teclas relevar alguma coisa; havia avisos
em todas as paredes a alertar: «Não dizer nome nem datas
em voz alta»; as janelas estavam tapadas com tijolos,
exceto no gabinete de Guk, onde colunas em miniatura
debitavam música russa no espaço entre as vidraças de
vidros duplos, emitindo um peculiar murmúrio abafado que
contribuía para a atmosfera surreal. Todas as conversas
secretas decorriam numa sala forrada a metal, sem
janelas, na cave, que era húmida o ano inteiro e um forno
no verão. O embaixador Popov, cujos escritórios ficavam
no andar do meio, acreditava (talvez com razão) que o
KGB tinha inserido dispositivos de escuta no teto para
ouvir as conversas. A obsessão pessoal de Guk era a rede
de Metropolitano de Londres, onde nunca entrara, porque
estava convencido de que certos painéis publicitários nas
estações continham espelhos falsos, através dos quais o
MI5 controlava todos os passos do KGB. Guk ia para toda a
parte no seu Mercedes cor de marfim. 
Gordievsky começou a trabalhar num estado estalinista
em miniatura, isolado do resto da cidade de Londres, um
mundo fechado de grande desconfiança, invejas
mesquinhas e maledicência. «A inveja, o pensamento
maldoso, os ataques traiçoeiros, as intrigas e as denúncias
estavam a um nível que fazia o Centro em Moscovo
parecer uma escola de meninas.» 
A estação do KGB era um lugar verdadeiramente horrível
para trabalhar. Porém, o KGB já não era o principal
empregador de Gordievsky. 
No dia 4 de julho de 1982, Gordievsky ligou de novo para
o número do MI6 de uma cabina telefónica diferente. A
telefonista já tinha sido avisada e passou logo a chamada
para uma secretária no décimo segundo andar. Desta vez,
Geoffrey Guscott atendeu pessoalmente. A conversa foi
alegre, mas rápida e prática: combinaram um encontro às
15h00 do dia seguinte, num lugar onde era muito pouco
provável que houvesse espiões russos. 
O Holiday Inn em Sloane Street era bem capaz de ser o
hotel mais aborrecido de Londres. A única coisa que o
distinguia era ser o anfitrião do concurso anual da Pessoa
Que mais Emagreceu. 
À hora marcada, Gordievsky passou pelas portas de
vaivém e avistou logo Guscott do outro lado do átrio. Ao
seu lado estava sentada uma elegante mulher de 50 e
poucos anos com cabelo louro muito bem arranjado e
sapatos confortáveis. Veronica Price trabalhava no caso há
cinco anos, mas só vira Gordievsky em fotografias
desbotadas e instantâneos de passaportes. Tocou ao de
leve em Guscott e sussurrou: «Ali está ele!» Guscott
pensou que Gordievsky, agora com 43 anos, tinha
envelhecido bastante desde o último encontro, mas
parecia estar em boa forma. O russo esboçou um «ligeiro
sorriso» quando avistou o seu controlador inglês. Guscott e
Price levantaram-se e, sem estabelecerem contacto visual,
afastaram-se pelo corredor que levava às traseiras do
hotel. Como estava combinado, Gordievsky seguiu-os pela
porta das traseiras, atravessou a estrada e subiu um lanço
de escadas para o primeiro andar do parque de
estacionamento do hotel. Um sorridente Guscott esperava
ao lado de um carro, com a porta de trás aberta. Price
estacionara-o na noite anterior junto da porta das escadas,
mas perto da rampa de saída. O carro era um Ford
especialmente comprado para a recolha, com uma placa
de matrícula que não poderia ser associada ao MI6.  
Só quando o espião estava em segurança no interior do
veículo é que se cumprimentaram. Guscott e Gordievsky
iam sentados no banco de trás, a falar rapidamente em
russo, dois velhos amigos a pôr a conversa em dia, a saber
as novidades da família, enquanto Price conduzia,
seguindo com confiança por entre o pouco trânsito.
Guscott explicou a Gordievsky que voltara para Londres do
estrangeiro para o receber, fazer planos para o futuro e
tratar da sua passagem para um novo controlador. O russo
anuiu com a cabeça. Passaram pelo Harrods e pelo museu
Victoria & Albert, atravessaram Hyde Park, viraram para o
acesso de um novo prédio de habitação em Bayswater e
entraram no parque de estacionamento subterrâneo. 
Veronica tinha passado semanas a pesquisar na zona
ocidental de Londres, acompanhada de inocentes
promotores imobiliários, até encontrar a casa segura ideal.
O apartamento de uma assoalhada no terceiro andar de
um prédio moderno estava protegido da estrada por uma
fila de árvores. A saída do parque de estacionamento
subterrâneo dava acesso direto ao edifício: qualquer
pessoa que tentasse seguir Gordievsky poderia ver o seu
carro entrar, mas não conseguiria saber para que
apartamento fora. Um portão no jardim das traseiras ia dar
a uma rua lateral, oferecendo uma saída de emergência
nas traseiras do prédio para Kensington Palace Gardens. A
distância que separava o apartamento da embaixada
soviética tornava improvável que Gordievsky fosse
avistado por acaso por outros funcionários do KGB, mas
ficava suficientemente perto para ele ir de carro até lá,
estacionar, encontrar-se com os agentes que o
controlavam e regressar a Kensington Palace Gardens –
sem demorar mais de duas horas. Uma charcutaria
próxima poderia fornecer uma justificação gastronómica.
Price insistiu: «O apartamento tinha de ter uma atmosfera
agradável, um certo estatuto. Um lugar reles em Brixton
não serviria.» O espaço estava mobilado com móveis
modernos de bom gosto. Também estava equipado com
aparelhos de escuta. 
Depois de se sentarem na sala de estar, Price andou de
um lado para o outro a preparar o chá. Não eram assim
tantas as mulheres a trabalhar como controladoras no
KGB, e Gordievsky nunca conhecera uma mulher como
Price. «Simpatizou logo com ela», observou Guscott. «O
Oleg tinha olho para as mulheres.» Também foi a sua
primeira experiência de um chá inglês formal. Como
muitas pessoas da sua idade e classe social, Price
considerava que o chá era um ritual patriótico sagrado.
Guscott apresentou-a como «Jean». Gordievsky pensou que
o seu rosto «parecia personificar todas as qualidades
tradicionais britânicas de decência e honra».  
Guscott expôs o plano operacional. Se Oleg estivesse de
acordo, encontrar-se-ia com os seus controladores do MI6 à
hora do almoço, uma vez por mês, naquele apartamento. A
estação do KGB ficava vazia durante a hora do almoço,
quando os agentes iam comer e beber com os seus
contactos (ou, mais precisamente, com eles próprios). A
ausência de Gordievsky não seria notada. 
Guscott entregou-lhe a chave de uma casa entre
Kensington High Street e Holland Park. Era o seu refúgio,
um lugar onde poderia esconder-se, com ou sem a família,
no momento em que se sentisse em perigo. Se quisesse
cancelar um encontro, precisasse de falar com alguém do
MI6 o mais depressa possível ou necessitasse de algum
tipo de ajuda, devia ligar para o número para o qual
telefonara à chegada. A central telefónica tinha operadores
em permanência, e uma telefonista transferiria a ligação
para a equipa que estivesse de serviço. 
Guscott deu-lhe mais uma garantia crucial. O plano de
fuga de Moscovo, a Operação PIMLICO, seria mantida de
prontidão enquanto ele estivesse em Londres. O KGB era
generoso na quantidade de dias de férias e os funcionários
costumavam voltar ao país durante quatro semanas no
inverno e até seis semanas no verão. Ele também podia
ser mandado regressar de um momento para o outro.
Sempre que estivesse em Moscovo, os funcionários do MI6
continuariam a verificar os locais de sinal na padaria de
Kutuzovsky Prospekt e no Mercado Central, atentos a um
homem com um saco do Safeway. E continuariam a fazê-lo
quando o espião não estivesse no país. O KGB vigiava de
perto todos os diplomatas britânicos em Moscovo e tinha
os seus apartamentos sob escuta. Além disso, havia postos
de vigilância a monitorizar os movimentos de todos os
estrangeiros no topo do Hotel Ukraine e no telhado do
prédio onde moravam os funcionários da embaixada
britânica. Qualquer quebra na rotina poderia ser notada; se
passassem regularmente pela padaria quando Gordievsky
estava em Moscovo, parassem quando ele estava ausente,
e recomeçassem quando ele voltasse, o padrão poderia ser
detetado. Durante várias semanas antes e depois das
visitas, o MI6 continuaria a monitorizar o local. As regras
da espionagem requeriam que o procedimento da
Operação PIMLICO fosse mantido durante meses, ou anos. 
O caso entrou numa nova fase e recebeu um novo nome
de código: SUNBEAM tornou-se NOCTON (uma aldeia no
Lincolnshire). 
O MI6 nunca controlara um espião do KGB radicado em
Londres e a situação colocou novos problemas, um dos
quais era a ameaça colocada pela agência irmã, o MI5. O
Serviço de Segurança era responsável pela monitorização
dos movimentos de todos os possíveis agentes do KGB em
Londres. Se a Secção A4, a equipa de vigilância do MI5
conhecida como «Vigilantes», detetasse Gordievsky num
encontro clandestino num local suspeito em Bayswater,
seria feita uma investigação. Todavia, emitir uma ordem
para não pôr Gordievsky sob vigilância indicaria sem
margem para dúvida que ele estava a ser protegido. Em
qualquer dos casos, a segurança do espião estaria
fatalmente comprometida. Um caso desta magnitude não
poderia ser controlado na Grã-Bretanha sem o
conhecimento do Serviço de Segurança. Por isso, foi
tomada a decisão de gerir o caso em conjunto com o MI5 e
«doutrinar» alguns dos seus funcionários superiores,
incluindo o diretor-geral: dessa forma, o MI6 seria
informado sempre que Gordievsky estivesse a ser vigiado e
garantiria que os encontros decorriam sem que os
Vigilantes estivessem a observar. 
Esta colaboração entre o MI5 e o MI6 era inaudita. Os
dois ramos dos serviços secretos britânicos nem sempre
estavam de acordo – talvez sem surpresa, pois a tarefa de
apanhar espiões e a tarefa de controlá-los não são,
necessariamente, compatíveis, por vezes sobrepõem-se e
de vez em quando entram em conflito. As duas
organizações de serviços secretos tinham tradições,
códigos de comportamento e técnicas diferentes. A
rivalidade era profunda, e muitas vezes contraproducente.
Historicamente, algumas pessoas no MI6 tinham tendência
para considerar o Serviço de Segurança pouco mais do que
uma organização policial, sem imaginação e entusiasmo;
por sua vez, o MI5 tendia a ver os funcionários da
espionagem internacional como loucos aventureiros saídos
dos colégios particulares. Cada agência considerava a
outra «indiscreta». A longa investigação feita pelo MI5 a
Kim Philby, um funcionário do MI6, transformara a
desconfiança mútua em hostilidade declarada. Mas no
caso NOCTON trabalhariam em conjunto: o MI6 controlaria
Gordievsky no dia a dia; alguns eleitos do MI5 seriam
mantidos a par dos desenvolvimentos e tratariam dos
aspetos da segurança do caso. A decisão de alargar o
círculo de secretismo fora do MI6 representou uma enorme
rutura com a tradição, e uma jogada arriscada. As
informações partilhadas entre o MI6 e o MI5 relacionadas
com Gordievsky receberam o nome de código LAMPAD
(uma ninfa do submundo na mitologia grega). Um
minúsculo número de pessoas dentro do MI6 estava a par
do NOCTON; um número ainda menor dentro do MI5 sabia
da existência do LAMPAD; a intersecção do diagrama de
Venn de funcionários do MI6 e do MI5 que conheciam os
dois não ascendia a mais de uma dúzia de pessoas. 
Com as condições do acordo aceites, e o chá tomado,
Gordievsky inclinou-se para a frente e começou a despejar
quatro anos de segredos acumulados, uma longa lista de
informações recolhidas e decoradas em Moscovo: nomes,
datas, locais, planos, agentes e ilegais. Guscott tomava
notas e de vez em quando interrompia para esclarecer
alguma coisa. Mas Gordievsky precisava de poucos
incentivos. Recapitulou com firmeza o seu prodigioso
reservatório de factos memorizados, passo a passo, caso a
caso. O primeiro encontro só tocou ao de leve a memória
de Gordievsky, mas à medida que o tempo foi passando e
ele começou a relaxar, os segredos saíram numa cascata
controlada e catártica. 
Todas as pessoas ensaiam as suas recordações,
convencidas de que, quanto mais um acontecimento for
recordado, mais perto fica da realidade. Nem sempre é
verdade. A maioria das pessoas conta uma versão do
passado, e depois mantém-na ou embeleza-a. A
capacidade de memorização de Gordievsky era diferente.
Ele era não apenas consistente, mas progressivo e
agregador. «Acrescentava pormenores em todos os
encontros, aumentando de forma gradual o que
sabíamos», diria Veronica Price. Uma memória fotográfica
regista uma imagem única e precisa a preto-e-branco; a
memória de Gordievsky era pontilhista, uma série de
pontos que, quando unidos e preenchidos, criavam uma
grande tela de cores fortes. «O Oleg tinha um grande dom
para se recordar de conversas. Lembrava-se do momento,
do contexto, das palavras [...] não era conduzido.» Até
tinha decorado conversas com outros funcionários quando
estava no turno da noite. Enquanto funcionário dos
serviços secretos com um treino excelente, sabia o que
tinha interesse e o que estava a mais. As informações
vinham prontas e analisadas. «Ele tinha profundos
conhecimentos e uma noção muito boa do significado das
coisas, e isso distinguia-o.» 
Os encontros seguiam um padrão estabelecido, no
princípio uma vez por mês, depois de 15 em 15 dias e mais
tarde todas as semanas. Sempre que o russo chegava ao
apartamento seguro, Guscott e Price estavam à sua espera
com calorosas boas-vindas e um almoço ligeiro. «Ele
continuava a sofrer com o choque cultural e com o
trabalho numa estação do KGB que era essencialmente
hostil», recordou Guscott. «Tinha pilhas de conhecimento
armazenado. O nosso principal objetivo era garantir que
não havia volta atrás. Queríamos ansiosamente
tranquilizá-lo.» 
No dia 1 de setembro de 1982, Gordievsky chegou ao
apartamento e encontrou uma terceira pessoa à espera ao
lado de Guscott e Price, um homem jovem com uma
aparência elegante e intensa, com cabelo escuro que
começava a ficar ralo. Guscott apresentou-o, em russo,
como «Jack». Gordievsky e James Spooner
cumprimentaram-se pela primeira vez com um aperto de
mão. A ligação foi imediata. 
O russo fluente e as capacidades operacionais de James
Spooner faziam dele o candidato natural para controlar o
caso quando Guscott regressasse a Estocolmo. Deveria
ocupar um novo cargo na Alemanha, mas tinham-lhe
pedido para vir controlar o NOCTON. «Demorei cerca de
dois minutos a aceitar.» O agente e o seu controlador
avaliaram-se discretamente. 
«Puseram-me ao corrente e ele era precisamente o que
eu esperava», disse Spooner. «Jovem, vigoroso, em cima
do acontecimento, disciplinado, concentrado.» Estas
palavras também poderiam ser usadas para descrever o
próprio Spooner. Os dois homens tinham passado toda a
vida adulta mergulhados no mundo dos serviços secretos;
ambos viam a arte da espionagem através do prisma da
história; falavam a mesma língua, em termos figurativos e
literais. 
«Nunca desconfiei dele. Nem um pouco», diria Spooner.
«É difícil explicar, mas uma pessoa sabe no que confiar e
no que não confiar. Usamos o nosso discernimento. O Oleg
era da maior confiança, honesto e guiado pelas motivações
certas.» 
Gordievsky reconheceu logo Spooner como um
«excelente funcionário dos serviços secretos, mas também
verdadeiramente bondoso, cheio de emoção e
sensibilidade, honesto a nível pessoal e nos seus princípios
éticos». Mais tarde, descrevê-lo-ia como «o melhor
controlador que tive». 
Gordievsky continuava a achar a Grã-Bretanha «estranha
e desconhecida», porém, à medida que os encontros se
foram sucedendo, a rotina de contacto regular com o MI6
começou a seguir um padrão. O apartamento de
Bayswater era um porto seguro, um refúgio das brutais
lutas internas e dos paranoicos antagonismos no interior
da rezidentura do KGB de Guk. Veronica preparava uma
refeição com produtos comprados na charcutaria das
redondezas, regra geral comida de piquenique, sem
esquecer ocasionais acepipes russos como pickles de
arenque e beterraba, e uma ou duas garrafas de cerveja.
Spooner pousava sempre um gravador em cima da mesa
de apoio, uma salvaguarda para o caso de a tecnologia de
escuta escondida falhar, mas também uma demonstração
de profissionalismo, de empenho. Os encontros duravam
até duas horas, e no final era marcado o seguinte. Depois,
Spooner transcrevia e traduzia o que fora dito e elaborava
um relatório completo. Trabalhava muitas vezes até de
madrugada, e em casa, para evitar chamar a atenção em
Century House: para esconder dos colegas no MI6 o que
estava a fazer na realidade, era suposto Spooner estar a
trabalhar num caso no estrangeiro, que requeria viagens
internacionais. As suas transcrições tornavam-se depois
uma mina de onde eram extraídos relatórios individuais
para os diversos «clientes» – cada um dos quais, como era
prática do MI6, abordava apenas um tema. Um encontro
podia produzir 20 relatórios, alguns com uma única frase.
A responsabilidade de conferir, analisar, repartir, camuflar
e distribuir o produto NOCTON era de uma célula especial
dentro do MI6, liderada por um talentoso especialista da
Guerra Fria. 
Gordievsky procurava sistematicamente na memória,
recordando, refinando e acumulando. Após três meses de
encontros, esquadrinhara todos os pormenores das suas
recordações; o resultado foi a maior «transferência
operacional» da história do MI6, informações
surpreendentemente meticulosas e abrangentes sobre o
KGB: os planos passados, presentes e futuros da agência
de serviços secretos soviética. 
Um por um, Gordievsky exorcizou os demónios da
história do MI6. Explicou que Kim Philby continuava a
trabalhar para o KGB, mas como analista em tempo
parcial, e certamente não era o omnisciente cérebro
imaginado por James Angleton da CIA. Durante anos, as
estruturas do poder britânico perguntaram-se se haveria
outro espião como Philby no seu seio, enquanto os jornais
sensacionalistas procuravam sem parar o chamado
«Quinto Homem», identificando inúmeros candidatos e
destruindo diversas carreiras e vidas durante o processo.
Peter Wright, o funcionário renegado do MI5 e autor de
Caçador de Espiões, estava obcecado com a teoria de que
Roger Hollis, o antigo diretor do MI5, era uma toupeira
soviética, o que deu origem a uma série de investigações
internas extremamente prejudiciais. Gordievsky pôs fim a
essa teoria da conspiração, limpando definitivamente o
nome de Hollis. Confirmou que o Quinto Homem era John
Cairncross, um antigo funcionário do MI6 que confessara
ser um agente soviético em 1964. Gordievsky disse que o
espetáculo dos britânicos completamente confusos por
causa de uma fantasia provocava grande diversão e
perplexidade no Centro, e parecia tão bizarra que o KGB
desconfiava de uma conspiração. Descreveu como o
próprio Gennadi Titov, ao ler mais um relato da caça às
bruxas num jornal, perguntara: «Porque é que eles falam
sobre o Roger Hollis? Não consigo compreender este
disparate, só pode ser algum truque dos britânicos contra
nós.» Caçar uma toupeira durante 20 anos tinha sido uma
perda de tempo fabulosamente destrutiva. 
A pesquisa de Gordievsky nos arquivos do KGB
desvendou outros mistérios. Um espião soviético
descoberto em 1946, com o nome de código ELLI, mas
nunca formalmente identificado, era Leo Long, outro antigo
funcionário do serviço de informações recrutado para a
causa comunista na Universidade de Cambridge antes da
guerra. O físico nuclear italiano Bruno Pontecorvo, que
trabalhou na investigação da bomba atómica britânica
durante a guerra, tinha oferecido os seus préstimos ao
KGB sete anos antes de desertar para a URSS em 1950.
Gordievsky também revelou que Arne Treholt, o espião
norueguês, continuava ativo. Treholt tinha feito parte da
delegação norueguesa nas Nações Unidas em Nova Iorque
e agora estava de novo na Noruega, a estudar no Estado-
Maior das Forças Armadas, tendo acesso a muito material
sensível – que passava ao KGB. O serviço de segurança
norueguês monitorizava Treholt desde a primeira dica de
Gordievsky em 1974, mas ainda não tinha agido – em
parte por insistência dos britânicos, pois pensava-se que a
sua prisão lançaria suspeitas sobre a fonte, que não fora
identificada aos noruegueses. Mas o nó começou a apertar-
se à volta de Treholt. 
Um pequeno grupo de funcionários superiores do MI6
reuniu-se em Century House para ouvir os resultados
iniciais das conversas dos controladores do caso NOCTON.
Não eram pessoas expansivas e emocionais, mas havia
uma atmosfera de «entusiasmo e expectativa» na sala. Os
superiores esperavam ouvir a notícia de uma vasta rede de
agentes do KGB na Grã-Bretanha, espiões comunistas
como os Cinco de Cambridge que tinham entrado no poder
instalado para o destruir a partir do interior. Presumia-se
que, em 1982, o KGB ainda era imensamente poderoso.
Gordievsky provou o contrário. 
A constatação de que o KGB tinha apenas um pequeno
punhado de agentes, contactos e ilegais na Grã-Bretanha,
nenhum dos quais muito ameaçador, foi ao mesmo tempo
um alívio e um desapontamento. Gordievsky tinha
revelado que os arquivos do KGB continham dossiês ativos
sobre Jack Jones, o líder sindical, e Bob Edwards, o
deputado do Partido Trabalhista. Identificara «contactos»
simpatizantes que tinham aceitado dinheiro ou
entretenimento do KGB, como Richard Gott, o jornalista do
Guardian, e o idoso pacifista Fenner Brockway. Mas os
caçadores de espiões perceberam que tinham muito pouca
caça grossa que valesse a pena perseguir. Havia uma
preocupação especial: aparentemente, Gordievsky nunca
ouvira falar em Geoffrey Prime, um analista do GCHQ43, o
ramo dos serviços secretos britânicos que se dedica às
informações de comunicações e sinais, que acabara de ser
preso por ser um espião soviético. Se Gordievsky tinha
visto todos os dossiês, porque é que não havia um sobre
Prime, que começara a espiar para a URSS em 1968? A
resposta era simples: Prime tinha sido controlado pela
contraespionagem do KGB, e não pela secção britânica-
escandinava. 
A pormenorizada descrição das operações do KGB em
Londres, na Escandinávia e em Moscovo feita por
Gordievsky provou que o adversário soviético não era um
mitológico colosso, mas sim uma organização imperfeita,
trapalhona e ineficaz. O KGB da década de 1970 não era
claramente o que fora uma geração antes. O fervor
ideológico da década de 1930, que vira o recrutamento de
tantos empenhados agentes, tinha sido substituído por
uma aterrorizada conformidade que produzia um tipo
muito diferente de espião. O KGB mantinha-se vasto, bem
consolidado e implacável, e ainda podia recorrer a alguns
dos melhores e mais inteligentes recrutas. Mas agora as
suas fileiras também incluíam muitos oportunistas e
lambe-botas, preguiçosos carreiristas com pouca
imaginação. O KGB continuava a ser um perigoso
antagonista, mas as suas vulnerabilidades e deficiências
estavam expostas. Ao mesmo tempo que o KGB entrava
num período de declínio, uma nova vida e ambição
começavam a animar os serviços de informações
ocidentais. O MI6 estava a sair da posição defensiva que
adotara durante os debilitantes escândalos de espionagem
nas décadas de 1950 e 1960. 
Uma onda de confiança e entusiasmo atravessou a
organização. Aquele KGB podia ser derrotado. 
Porém, havia um aspeto na arca de segredos de
Gordievsky que fez os serviços de informações e
segurança prestarem atenção e engolir em seco, com
força. 
O namoro de Michael Foot com o KGB estava no passado
distante. Gordievsky teve o cuidado de não exagerar a
importância do agente BOOT, e Geoffrey Guscott foi claro
na sua avaliação do caso: Foot fora usado há muito tempo,
apenas com «objetivos de desinformação»; não era um
espião nem um «agente consciente», no sentido aceite. No
entanto, era o líder da oposição trabalhista desde 1980 e
estava a concorrer contra Margaret Thatcher para o
comando do país. Poderia tornar-se primeiro-ministro nas
próximas eleições gerais, que decorreriam, no máximo, em
1984. Se a anterior relação financeira de Foot com o KGB
fosse revelada, destruiria a sua credibilidade, poria um
ponto final nas suas probabilidades de conquistar o poder
e talvez mudasse o curso da história. Muitos já o
consideravam perigosamente de esquerda, mas os
contactos com o KGB dariam à sua posição ideológica uma
perspetiva muito mais sinistra. A verdade era bastante
prejudicial para fazer Foot parecer extremamente ingénuo
e disparatado. Todavia, no calor de uma eleição, poderiam
fazer com que ele parecesse um espião autêntico, pago
pelo KGB. 
«Estávamos preocupados por se tratar de informação
sensível e havia a necessidade de evitar que fosse
utilizada por motivos partidários», diria Spooner.
«Assistíamos a uma profunda divisão ideológica no país,
mas sabíamos que teríamos de manter esta informação
longe dos partidos políticos. Estávamos na posse de
informações que eram extremamente suscetíveis de ser
mal interpretadas.» 
As revelações sobre Foot tinham sérias implicações para
a segurança nacional. O MI6 passou as provas a John
Jones, o diretor-geral do MI5. O Serviço de Segurança teria
de decidir o passo seguinte. «A decisão era deles.» 
Como secretário do Governo, Sir Robert Armstrong era o
diretor da Administração Pública, o principal conselheiro de
política da primeira-ministra e o responsável pela
supervisão dos serviços de informações e da sua relação
com o Governo. Politicamente neutro, personificava a
integridade de Whitehall. Armstrong fora secretário
particular nos governos de Harold Wilson e Edward Heath e
era um dos conselheiros de maior confiança de Thatcher.
Não obstante, isso não significava que contava tudo à
primeira-ministra. 
O diretor-geral do MI5 disse a Armstrong que, em
tempos, Michael Foot tinha sido o agente BOOT, um
contacto pago do KGB, e concordaram que aquela
informação era demasiado incendiária a nível político para
ser transmitida à primeira-ministra. 
Muitos anos mais tarde, quando questionado a respeito
deste episódio, Armstrong foi cauteloso e obscuro, na
melhor tradição do governo: «Eu sabia que se pensava que
o Michael Foot tivera contactos com o KGB antes de se
tornar líder do Partido Trabalhista e que se acreditava que
o Tribune teria recebido apoio financeiro de Moscovo,
talvez do KGB [...] O Gordievsky confirmou isto.
Desconheço a quantidade de pormenores que foram
revelados ao ministro dos Negócios Estrangeiros ou à
primeira-ministra.» 
Mais tarde, Armstrong seria a testemunha principal no
«julgamento do Caçador de Espiões», a tentativa falhada
do Governo britânico de proibir a publicação da reveladora
autobiografia de Peter Wright. Este criou a frase «faltar à
verdade». E parece ter faltado muito à verdade em relação
a Michael Foot. Não informou Margaret Thatcher nem os
outros conselheiros; não informou ninguém na
Administração Pública, no Partido Conservador ou no
Partido Trabalhista. Não informou os americanos, nem
outros aliados da Grã-Bretanha. Não informou ninguém. 
Depois de receber esta bomba por detonar, o secretário
do Governo guardou-a no bolso e manteve-a ali, esperando
que Foot perdesse as eleições e o problema se esfumasse.
Veronica Price foi frontal: «Enterrámos a informação.»
Mesmo assim, no seio do MI6 houve discussões a respeito
das implicações constitucionais se Michael Foot vencesse
as eleições: ficou assente que, se um político relacionado
no passado com o KGB se tornasse primeiro-ministro da
Grã-Bretanha, a rainha teria de ser informada. 
Havia outro elemento nas revelações de Gordievsky que
era ainda mais perigoso do que os ficheiros BOOT, um
segredo do KGB com potencial não apenas para mudar o
mundo, mas para destruí-lo. 
Em 1982, a Guerra Fria estava a aquecer de novo a um
ponto em que uma guerra nuclear parecia uma genuína
possibilidade. Gordievsky revelou que o Kremlin
acreditava, erradamente mas muito a sério, que o
Ocidente se preparava para premir o botão nuclear. 

43 Government Comunications Headquarters. (N. da T.)


8. Operação RYAN 

Em maio de 1981, Yuri Andropov, o presidente do KGB,


reuniu os seus funcionários superiores num conclave
secreto para fazer um surpreendente anúncio: a América
estava a planear lançar um ataque nuclear e obliterar a
União Soviética. 
Durante mais de 20 anos, uma guerra nuclear entre o
Leste e o Ocidente fora evitada com a ameaça de
destruição mútua assegurada, a promessa de que os dois
lados seriam aniquilados num conflito daquele tipo,
independentemente de quem o iniciasse. Contudo, no fim
da década de 1970, o Ocidente passou para a frente na
corrida às armas nucleares e um tenso desanuviamento
deu lugar a um tipo diferente de confronto psicológico, no
qual o Kremlin receava ser destruído e derrotado por um
ataque nuclear preventivo. No início de 1981, o KGB
realizou uma análise da situação geopolítica usando um
programa informático recém-desenvolvido e concluiu que
«a correlação de forças mundiais» começava a ficar
favorável ao Ocidente. A intervenção soviética no
Afeganistão estava a revelar-se dispendiosa, Cuba era um
verdadeiro sorvedouro de fundos soviéticos, a CIA lançava
agressivas ações secretas contra a URSS e os Estados
Unidos passavam por um enorme reforço militar: a União
Soviética parecia estar a perder a Guerra Fria e, como um
pugilista esgotado por longos anos de treino de
aquecimento, o Kremlin temia que um único e brutal golpe
inesperado pusesse fim à disputa. 
A principal convicção do KGB de que a URSS estava
vulnerável a um ataque nuclear inesperado talvez
estivesse mais relacionada com a experiência pessoal de
Andropov do que com uma análise geopolítica racional.
Quando era embaixador soviético na Hungria em 1956,
tinha testemunhado a rapidez com que um regime
aparentemente poderoso podia ser derrubado. Andropov
teve um papel crucial na supressão da revolta húngara.
Uma dúzia de anos mais tarde, pediria de novo «medidas
extremas» para acabar com a Primavera de Praga. O
«Carniceiro de Budapeste» era um grande adepto da força
armada e da repressão do KGB. O diretor da polícia secreta
romena descreveu-o como «o homem que substituiu o
Partido Comunista pelo KGB na governação da URSS»44. A
postura confiante e agressiva da nova administração
Reagan parecia sublinhar a ameaça iminente. 
Assim, como todos os verdadeiros paranoicos, Andropov
dedicou-se a encontrar as provas que confirmariam os
seus receios. 
A Operação RYAN (um acrónimo de Raketno-Yadernoye
Napadeniye, russo para «Ataque com Mísseis Nucleares»)
foi a maior operação de informações soviética jamais
lançada em tempo de paz. Para um espantado público do
KGB, com o líder soviético Leonid Brezhnev ao seu lado,
Andropov anunciou que os Estados Unidos e a NATO
estavam a «preparar-se ativamente para uma guerra
nuclear». A tarefa do KGB seria encontrar sinais de que
este ataque poderia estar iminente e providenciar um
aviso atempado, para que a União Soviética não fosse
apanhada de surpresa. E ficou implícito que, se fossem
descobertas provas de um ataque iminente, a União
Soviética lançaria um ataque preventivo. A experiência de
Andropov a suprimir a liberdade nos Estados-satélite
soviéticos convencera-o de que o melhor método de
defesa era o ataque. O medo de um primeiro ataque
ameaçava provocar um primeiro preventivo. 
A Operação RYAN nasceu da imaginação febril de
Andropov e cresceu sem parar, transformando-se numa
obsessão no KGB e no GRU (os serviços secretos militares),
consumindo milhares de horas de trabalho e ajudando a
aumentar a tensão entre as superpotências para níveis
aterradores. A Operação RYAN até tinha o seu perentório
lema: «Ne Prozerot!» [Não Errem!] Em novembro de 1981,
as primeiras diretivas da Operação RYAN foram enviadas
para as estações operacionais do KGB nos Estados Unidos,
na Europa Ocidental, no Japão e em países do Terceiro
Mundo. No início de 1982, todas as rezidenturas receberam
instruções para dar prioridade máxima à Operação RYAN.
Quando Gordievsky chegou a Londres, a operação já
estava em curso. Porém, baseava-se num profundo
equívoco. A América não estava a preparar um primeiro
ataque. O KGB procurava provas dos planos de ataque em
toda a parte, mas, como a história autorizada do MI5
refere: «Esses planos não existiam.»45 
Ao lançar a Operação RYAN, Andropov quebrou a primeira
regra dos serviços secretos: nunca pedir confirmação de
uma coisa em que já se acredita. Hitler tinha a certeza de
que a força invasora do Dia D desembarcaria em Calais,
por isso foi o que os seus espiões (com a ajuda de agentes
duplos aliados) lhe disseram, garantindo o sucesso dos
desembarques na Normandia. Tony Blair e George W. Bush
estavam convencidos de que Saddam Hussein possuía
armas de destruição em massa, e foi o que os seus
serviços de informações concluíram. Yuri Andropov,
pedante e autocrata, estava plenamente convencido de
que os seus lacaios do KGB encontrariam provas de um
vago ataque nuclear. E foi o que eles fizeram. 
Gordievsky fora posto ao corrente da Operação RYAN
antes de sair de Moscovo. Quando esta iniciativa política
de grande envergadura do KGB foi revelada ao MI6, os
peritos da União Soviética em Century House começaram
por tratar o relatório com ceticismo. A velha guarda do
Kremlin compreendia tão mal os princípios morais
ocidentais a ponto de acreditar que a América e a NATO
atacariam primeiro? Seguramente, era apenas um
disparate alarmista de um fanático veterano do KGB? Ou
talvez, ainda mais sinistro, um ardil de desinformação
deliberado para persuadir o Ocidente a diminuir o reforço
militar? A comunidade dos serviços secretos estava com
dúvidas. James Spooner perguntou a si mesmo se o Centro
podia estar «tão alheado do mundo real». 
Contudo, em novembro de 1982, Andropov sucedeu a
Leonid Brezhnev como líder soviético, tornando-se o
primeiro diretor do KGB a ser eleito secretário-geral do
Partido Comunista. Pouco depois, as rezidenturas foram
avisadas de que a Operação RYAN era «agora de
importância especialmente crucial» e «tinha um nível
especial de urgência». A estação do KGB em Londres
recebeu um telegrama, endereçado a Arkadi Guk (com o
seu pseudónimo, «Yermakov»), marcado como
«estritamente pessoal» e «ultrassecreto». Gordievsky
levou-o da embaixada no bolso e entregou-o a Spooner. 
Intitulado «Missão operacional permanente para
descobrir os preparativos da NATO para um ataque com
mísseis nucleares à URSS», era o plano da Operação RYAN
e descrevia os diversos indicadores que deviam alertar o
KGB para os preparativos de um ataque do Ocidente. O
documento foi a prova de que os receios soviéticos de um
ataque eram genuínos, estavam profundamente
enraizados e eram cada vez maiores. O documento
declarava: «O objetivo da missão é garantir que a
rezidentura trabalha de forma sistemática para descobrir
quaisquer planos que estejam a ser preparados pelo
principal adversário [EUA] para a Operação RYAN e
organizar vigilância constante para obter sinais de uma
decisão de usar armas nucleares contra a URSS ou de
preparativos imediatos para um ataque com mísseis
nucleares.» O documento listava 20 sinais de um potencial
ataque, que iam do lógico ao ridículo. Os funcionários do
KGB tinham instruções para realizar vigilância de
proximidade a «decisores nucleares cruciais», incluindo,
bizarramente, líderes religiosos e grandes banqueiros. Os
edifícios onde aquela decisão podia ser tomada deveriam
ser bem vigiados, bem como os entrepostos nucleares,
instalações militares, rotas de evacuação e abrigos
antiaéreos. Deviam ser recrutados com urgência agentes
em organizações governamentais, militares, de serviços
secretos e defesa civil. Eram encorajados a contar quantas
luzes estavam acesas à noite em importantes edifícios
governamentais, porque os funcionários podiam estar a
fazer serão para preparar um ataque. O número de carros
nos parques de estacionamento do governo também devia
ser contabilizado: uma falta inesperada de lugares de
estacionamento no Ministério da Defesa, por exemplo,
poderia ser um indício de preparativos para um ataque. Os
hospitais também deviam ser vigiados, porque o inimigo
esperaria retaliação do primeiro ataque e estaria
preparado para um grande número de baixas. Os
matadouros deviam ser observados: se a quantidade de
gado abatido nos matadouros aumentasse muito, poderia
ser um sinal de que o Ocidente estava a armazenar
hambúrgueres antes do Armagedão. 
A ordem formal mais estranha foi a monitorização do
«nível de sangue existente nos bancos de sangue» e
comunicar se o governo começasse a comprar sangue e a
acumular plasma. «Um importante sinal de que estão a
começar os preparativos para a Operação RYAN pode ser
um aumento das compras de sangue de dadores e os
preços pagos por ele [...] descobrir a localização dos vários
milhares de centros de recolha de sangue e o preço do
sangue, e registar qualquer mudança [...] se houver um
inesperado aumento do número de centros de recolha de
sangue e dos preços praticados, informar imediatamente o
Centro.» 
É claro que, no Ocidente, o sangue é doado. O único
pagamento é uma bolacha, e por vezes uma chávena de
chá. Todavia, convencido de que o capitalismo permeava
todos os aspetos da vida ocidental, o Kremlin acreditava
que um «banco de sangue» era na verdade um banco,
onde o sangue podia ser comprado e vendido. Ninguém
nos postos avançados do KGB se atreveu a chamar a
atenção para este equívoco elementar. Numa organização
cobarde e hierárquica, a única coisa mais perigosa que
revelar ignorância é chamar a atenção para a estupidez do
chefe. 
Gordievsky e os colegas começaram por ignorar aquela
peculiar lista de exigências e consideraram que a
Operação RYAN era mais um exemplo de uma tarefa inútil
e ignorante do Centro. Os funcionários do KGB mais
perspicazes e experientes sabiam que o Ocidente não
queria uma guerra nuclear, e muito menos um ataque
surpresa lançado pela NATO e pelos Estados Unidos. O
próprio Guk só «fingiu que cumpria a exigências do
Centro», que considerou «ridículas». Mas no mundo dos
serviços secretos soviéticos a obediência era mais
poderosa do que o senso comum, e estações do KGB em
todo o mundo começaram a procurar provas de planos
hostis. E, inevitavelmente, a encontrá-las. Quase todos os
comportamentos humanos, se investigados de uma forma
bastante intensa, podem começar a parecer suspeitos:
uma luz deixada acesa no Ministério dos Negócios
Estrangeiros, falta de lugares de estacionamento no
parque do Ministério da Defesa, um bispo especialmente
belicoso. À medida que se foram acumulando «provas» do
inexistente plano para atacar a URSS, pareceu confirmar-se
o que o Kremlin já temia. A paranoia no Centro aumentou e
foram feitas mais perguntas para confirmar as provas. É
assim que os mitos se perpetuam. Gordievsky chamou-lhe
«uma perigosa espiral de recolha e avaliação de
informações, com as estações estrangeiras a sentirem-se
obrigadas a comunicar informações alarmantes mesmo
que não acreditassem nelas.» 
Durante os meses seguintes, a Operação RYAN tornou-se
a única preocupação dominante do KGB. Entretanto, a
retórica da administração Reagan reforçou a convicção do
Kremlin de que a América estava num caminho agressivo
para uma guerra nuclear desigual. No início de 1983,
Reagan denunciou a União Soviética como um «império do
mal». A instalação iminente do sistema de mísseis
balísticos de médio alcance Pershing II na Alemanha
Ocidental aumentou os receios soviéticos. Aquelas armas
tinham uma «capacidade muito repentina de primeiro
ataque» e poderiam atingir importantes alvos soviéticos,
incluindo silos de mísseis, sem aviso, em quatro minutos. O
tempo de voo para Moscovo estava calculado em cerca de
seis minutos. Se o KGB desse o alarme de um ataque com
tempo suficiente, Moscovo teria «um período de
antecipação essencial [...] para tomar medidas de
retaliação»: dito de outra forma, para atacar primeiro. Em
março, Ronald Reagan fez um anúncio público que
ameaçava neutralizar qualquer retaliação preventiva: A
Iniciativa de Defesa Estratégica dos Estados Unidos,
imediatamente conhecida como «Guerra das Estrelas»,
considerava a utilização de satélites e armas espaciais
para criar um escudo capaz de neutralizar mísseis
nucleares soviéticos. Aquela iniciativa poderia tornar o
Ocidente invulnerável e permitir aos Estados Unidos
lançarem um ataque sem medo de retaliação. Furioso,
Andropov acusou Washington de «inventar novos planos
para iniciar uma guerra nuclear da melhor forma, com a
esperança de a vencer [...] as ações de Washington estão a
colocar o mundo inteiro em perigo». O programa RYAN foi
alargado: para Andropov e para os seus subordinados do
KGB era uma questão de sobrevivência soviética. 
Num primeiro momento, o MI6 interpretou a Operação
RYAN como mais uma encorajadora prova da
incompetência do KGB: uma organização dedicada a
procurar uma conspiração-fantasma teria pouco tempo
para espiar eficazmente. Porém, à medida que o tempo foi
passando e a furiosa retórica aumentou dos dois lados,
ficou claro que os receios do Kremlin não podiam ser
desvalorizados como uma simples fantasia que os fazia
perder tempo. Um Estado que temia um conflito iminente
tinha grandes probabilidades de atacar primeiro. A
Operação RYAN demonstrou, da forma mais categórica
possível, como o confronto da Guerra Fria se tinha tornado
instável. 
A agressiva posição de Washington estava a contribuir
para uma narrativa soviética que poderia acabar num
Armagedão nuclear. No entanto, os analistas americanos
de política externa tendiam a menosprezar as expressões
de alarme soviéticas como deliberados exageros de
propaganda, parte do antigo jogo de bluff e contra-bluff.
Mas Andropov estava a falar a sério quando insistia que os
Estados Unidos se preparavam para iniciar uma guerra
mundial; e, graças ao espião russo, os britânicos tinham
conhecimento disso. 
A América teria de ser avisada de que os receios do
Kremlin, se bem que baseados em ignorância e paranoia,
eram sinceros. 
A relação entre as agências de informações britânicas e
americanas tem algumas semelhanças com a relação entre
irmãos mais velhos e mais novos: próxima, mas
competitiva, amistosa, mas ciumenta, mutuamente
solidária, mas com tendência para discussões. A Grã-
Bretanha e a América sofreram uma penetração ao mais
alto nível por agentes comunistas no passado, e os dois
países tinham a suspeita constante de que o outro podia
não ser de confiança. Ao abrigo de acordos estabelecidos,
as informações intercetadas por sinais eram partilhadas,
mas as informações recolhidas por fontes humanas eram
cedidas com maior frugalidade. A América tinha espiões
que a Grã-Bretanha desconhecia, e vice-versa. O
«produto» destas fontes era transmitido numa base de
«necessidade de tomar conhecimento», e a definição de
necessidade variava. 
As revelações sobre a Operação RYAN foram transmitidas
à CIA de uma forma útil, mas poupando na verdade. Até
então, o material NOCTON tinha sido distribuído
exclusivamente a membros dos serviços secretos
«doutrinados» no MI6 e no MI5 e, numa base ad hoc, ao
PET, ao gabinete da primeira-ministra, ao gabinete de
apoio ao Governo e ao Ministério dos Negócios
Estrangeiros. A decisão de alargar o círculo de distribuição
para a comunidade dos serviços secretos norte-americanos
marcou uma viragem crucial no caso. O MI6 não disse de
que parte do mundo era proveniente o material, nem
quem o fornecera. A fonte foi cuidadosamente camuflada e
minimizada e as informações foram apresentadas de forma
que a sua origem não pudesse ser detetada. «Foi tomada a
decisão de transmitir material fragmentado e editado
como um CX [um relatório de serviços secretos] normal.
Era imperativo disfarçar a sua proveniência. Dissemos que
vinha de um funcionário de nível médio, não de Londres.
Tínhamos de fazer com que fosse o mais inócuo possível.»
Mas os americanos não tiveram dúvidas em relação à
autenticidade e fiabilidade do que lhes foi comunicado:
eram informações ao mais alto nível, de confiança e
valiosas. O MI6 não disse à CIA que as informações vinham
do interior do KGB. Mas talvez não fosse preciso. 
E assim teve início uma das mais importantes operações
de partilha de informações do século XX. 
Devagar e com cuidado, com sóbrio orgulho e discreta
ostentação, o MI6 começou a transmitir a conta-gotas os
segredos de Gordievsky à América. Os serviços de
informações britânicos orgulham-se há muito tempo dos
seus agentes humanos. A América podia ter o dinheiro e o
músculo tecnológico, mas os britânicos compreendiam as
pessoas, ou gostavam de acreditar nisso. O caso
Gordievsky compensava até certo ponto o longo embaraço
dos anos Philby e foi apresentado com uma ligeira
presunção britânica. A comunidade de serviços secretos
americana estava impressionada, intrigada, grata e
ligeiramente irritada por ser auxiliada pelo irmão mais
pequeno. A CIA não está acostumada a que outras
agências decidissem o que precisava, ou não, de saber. 
Por fim, à medida que o esquema de espionagem de
Gordievsky aumentou em volume e em pormenor, as
informações começaram a chegar aos níveis mais altos do
Governo americano, influenciando as políticas na própria
Sala Oval. Porém, apenas um número ínfimo de
funcionários dos serviços secretos americanos alguma vez
soube que os britânicos tinham uma toupeira soviética
colocada num local importante: um deles foi Aldrich Ames. 
A carreira de Ames na CIA tinha seguido um rumo
ascendente desde que regressara do México. Ele e Rosario
instalaram-se em Falls Church, Virgínia, nos subúrbios de
Washington, e em 1983, apesar de ter uma folha de
serviços extremamente irregular, foi promovido a chefe da
secção de contraespionagem do departamento de
operações soviéticas da CIA. Ames ainda estava a subir na
hierarquia da CIA, mas não com rapidez suficiente para
colmatar a crescente insatisfação profissional. Rosario
aceitara o seu pedido de casamento, mas o divórcio ia ser
ruinosamente dispendioso. Ames pediu um novo cartão de
crédito e ficou logo com uma dívida de cinco mil dólares
em móveis. Rosario estava desapontada e queixosa, e
telefonava com frequência para a Colômbia. Só as contas
telefónicas ascendiam a 400 dólares por mês. Viviam num
apartamento atravancado. Ames conduzia um Volvo velho
e a cair aos bocados. 
Na sua opinião, um ordenado de apenas 45 mil dólares
por ano era extremamente miserável, tendo em conta o
valor dos segredos que lhe passavam todos os dias pelas
mãos. Sob a direção de Bill Casey, o enérgico novo diretor
da CIA da administração Reagan, a divisão soviética
ganhara uma nova vida e controlava agora cerca de 20
espiões atrás da Cortina de Ferro. Ames conhecia a
identidade de todos. Sabia que a CIA tinha posto sob
escuta um cabo de telecomunicações nos arredores de
Moscovo e extraía vastas quantidades de informações.
Sabia que os rapazes do departamento técnico tinham
adaptado um contentor de transporte para captar
informações de comboios que passavam com ogivas
nucleares na Ferrovia Transiberiana. Por fim, foi posto a par
do segredo de que o MI6 tinha um agente em altas
esferas, talvez no interior do KGB, cuja identidade os
britânicos estavam a esconder. Ames conhecia aqueles
segredos, e muitos outros. No entanto, quando se sentava
a beber uísque em vários bares de Washington, o que
sabia acima de tudo é que estava falido. E queria um carro
novo. 
 
 
Após seis meses na Grã-Bretanha, a vida dupla de
Gordievsky entrou numa agradável rotina. Leila estava feliz
a explorar a casa nova, totalmente inconsciente das
atividades clandestinas do marido. As filhas pareciam ter-
se tornado meninas britânicas de um dia para o outro e
falavam com as bonecas em inglês. Oleg adorava os
parques e os pubs ingleses, os pequenos restaurantes com
comida do Médio Oriente em Kensington e os seus exóticos
e fortes aromas. Ao contrário de Yelena, Leila adorava
cozinhar e não parava de falar, maravilhada, na grande
variedade de ingredientes à venda nas lojas britânicas. As
tarefas domésticas e a educação das filhas estavam a
cargo de Leila: longe de se queixar, ela comentava com
frequência a sua sorte de poder viver algum tempo no
estrangeiro. Sentia a falta da família e dos amigos que
deixara em Moscovo, mas sabia que voltaria para casa
num futuro próximo, pois as comissões de serviço
soviéticas raramente duravam mais de três anos. Sempre
que Leila sentia saudades de casa, Oleg tentava mudar de
assunto. Sabia que um dia teria de lhe dizer que espiava
para a Grã-Bretanha e que nunca mais voltariam. Mas para
quê expô-la ao stresse e ao perigo agora? Dizia a si mesmo
que Leila era uma boa esposa russa e que, quando lhe
revelasse a sua traição, ficaria chocada e infeliz durante
algum tempo e depois aceitaria. Contudo, mais cedo ou
mais tarde, ela teria de saber a verdade. Mais tarde, de
preferência. 
O casal mergulhou na vida artística da capital britânica,
assistindo a concertos de música clássica, inaugurações de
exposições e peças de teatro. Gordievsky acreditava que
os seus atos de espionagem para o Ocidente significavam
uma espécie de dissidência cultural e que ele não era um
vira-casaca: «Assim como Shostakovich, o compositor,
lutou através da sua música, e Soljenítsin, o escritor, lutou
através das palavras, também eu, o homem do KGB, só
conseguia agir através do meu mundo de informações.»
Ele ripostava com segredos. 
Gordievsky corria todas as manhãs em Holland Park. E
todas as semanas, num padrão mais ou menos regular,
num dia marcado, quando se sabia que os Vigilantes do
MI5 não estariam nas redondezas, dizia aos colegas que ia
encontrar-se com um contacto para almoçar, metia-se no
carro e dirigia-se para a casa segura em Bayswater. No
parque de estacionamento subterrâneo, tapava o carro
com uma capa de plástico para esconder as placas de
matrícula diplomáticas. 
O Centro já não enviava as instruções em microfilme, por
isso Gordievsky tinha de contrabandear documentos físicos
antes dos encontros, por vezes em molhos. Esperava até o
gabinete estar vazio para enfiar discretamente os papéis
num bolso. Havia muito por onde escolher. Os diferentes
departamentos no Centro competiam entre si a fazer
pedidos aos muitos funcionários da rezidentura de
Londres: 23 agentes do KGB na embaixada, oito a
trabalhar sob disfarce na delegação comercial soviética,
quatro a fazerem-se passar por jornalistas, bem como
ilegais e um grupo distinto de 15 agentes de informações
militares destacados pelo GRU. «O Centro produzia um
enorme volume de informações, e eu podia passá-las
todas.» 
Quando Gordievsky ia ao apartamento, Spooner recolhia
as informações enquanto Veronica Price fazia o almoço e
Sarah Page, uma secretária do MI6 com um certo encanto
e extrema eficiência, fotografava no quarto os documentos
que ele levava. Depois de concluída a escavação da
memória de Gordievsky, a atenção centrou-se nas
operações atuais. «Muito depressa passámos a ter material
vivo», disse Spooner. «Ele punha-nos a par de tudo o que
acontecera no período intermédio: acontecimentos,
instruções, visitas, atividade local, conversas com colegas
da rezidentura.» Um observador treinado, Oleg decorava
tudo o que pudesse ser útil: as instruções do Centro, os
pedidos e os relatórios mais recentes relativos à Operação
RYAN, a atividade de ilegais e pistas sobre as suas
identidades, alvos de interesse, recrutamento de agentes e
mudanças de pessoal. Mas também relatava coscuvilhices
e boatos, fragmentos que revelavam o que os colegas
estavam a pensar, a arquitetar e a fazer fora de horas, se
bebiam muito ou pouco, com quem dormiam e com quem
queriam dormir. «És um membro extra da rezidentura do
KGB», disse Gordievsky a Spooner. 
De vez em quando, Veronica Price revia os pormenores
da Operação PIMLICO, para o caso de ele ser chamado de
repente a Moscovo e precisar de fugir. O plano de
exfiltração sofrera algumas importantes mudanças desde a
sua conceção. Gordievsky era agora um homem casado,
com duas filhas pequenas. Por conseguinte, o MI6
providenciaria não apenas um carro de fuga, mas dois; um
adulto e uma criança ficariam escondidos em cada porta-
bagagem e as meninas seriam sedadas com um forte
fármaco para adormecerem e o trauma ser menor. Para se
preparar para o momento em que talvez tivesse de drogar
as filhas aquando da exfiltração, Veronica Price deu-lhe
uma seringa e uma laranja para ele treinar as injeções. De
dois em dois meses pesava as filhas e os pesos eram
comunicados à estação do MI6 em Moscovo para que a
dosagem nas seringas fosse devidamente ajustada. 
O caso desenvolveu o seu próprio ritmo, mas a tensão
era inexorável. Após um encontro no apartamento seguro,
Oleg dirigiu-se para o carro, que tinha deixado numa rua
próxima, Connaught Street (daquela vez decidira não
estacionar no parque de estacionamento subterrâneo).
Com profundo horror, quando se preparava para arrancar
viu o Mercedes cor de marfim de Guk aproximar-se com o
gordo rezident ao volante. Convencido de que fora
avistado, Gordievsky começou a transpirar e a inventar
motivos para explicar a sua presença num bairro
residencial longe da embaixada. Mas, aparentemente, Guk
não o tinha visto. 
Apenas três políticos faziam parte do círculo de
confiança. Margaret Thatcher foi posta a par do caso
NOCTON no dia 23 de dezembro de 1982, seis meses após
a chegada de Gordievsky à Grã-Bretanha. As informações
em bruto eram colocadas numa pasta vermelha especial,
conhecida como «capa vermelha», que era depositada
dentro de uma caixa azul trancada, da qual apenas a
primeira-ministra, o seu conselheiro de segurança externa
e o seu secretário particular tinham a chave. Thatcher foi
informada de que o MI6 tinha um agente na estação do
KGB em Londres. Não sabia o nome dele. William
Whitelaw, o ministro da Administração Interna, seria
informado um mês mais tarde. O único outro ministro que
estava a par do caso era o dos Negócios Estrangeiros. O
material NOCTON, mais especificamente a Operação RYAN,
causou uma «profunda impressão» em Geoffrey Howe
quando assumiu aquele cargo: «O comando soviético
acreditava verdadeiramente na maior parte da sua própria
propaganda. Tinham um medo genuíno de que “o
Ocidente” estivesse a conspirar para o seu derrube – e que
talvez, quem sabe, fizesse tudo para o conseguir.»46 
Contudo, embora os atos de espionagem de Gordievsky
para o MI6 prosperassem sem parar, o seu trabalho no
KGB estava estagnado. Guk e Nikitenko, o rezident e o seu
vice, eram abertamente hostis. Igor Titov, o seu chefe
imediato, era consistentemente antipático. Mas nem todos
os colegas eram filisteus paranoicos. Alguns eram
extremamente percetivos. Maksim Parshikov, um colega da
Linha PR na casa dos 30 anos, era filho de um artista de
Leninegrado e partilhava muitos dos gostos culturais de
Gordievsky. Ouviam música clássica na Radio 3 enquanto
trabalhavam em secretárias adjacentes na secção política.
Parshikov considerava o colega «agradável e inteligente,
com uma educação e um nível cultural que o faziam
destacar-se». Quando Parshikov se constipou, Gordievsky
aconselhou-lhe o descongestionante nasal Otrivin, que
descobrira recentemente numa farmácia britânica.
«Estávamos unidos no amor pela música clássica e pelo
Otrivin», escreveu Parshikov. No entanto, ele sentia a
ansiedade interior de Gordievsky: «Para mim e para outros
que estiveram perto do Oleg durante os primeiros meses
que ele passou em Londres, era óbvio que alguma coisa
séria e inquietante estava a acontecer na sua vida – ele
parecia extremamente nervoso e sob pressão.» Havia
alguma coisa diferente no novo homem, uma tensa
reserva. Como Parshikov diria: 
 
Os chefes da rezidentura não gostaram dele desde o
início. Ele não bebia da maneira habitual, era
demasiado intelectual, não era «um de nós». Imaginem
uma festa típica, para celebrar um feriado soviético,
numa pequena sala central da residência. Está tudo
como deve estar: em cima da mesa há sanduíches e
fruta, vodca e uísque para os homens, uma garrafa de
vinho para as poucas senhoras. Cada pessoa faz um
brinde, a começar pelo rezident. O Gordievsky assume
voluntariamente o papel do mordomo, enchendo todos
os copos vazios exceto o seu, que contém apenas vinho
tinto. Ele nunca confraternizava verdadeiramente.
Algumas pessoas achavam que a sua atitude era
estranha. Mas eu pensava: que diabo, nas nossas
fileiras encontramos pessoas diferentes. A mulher de
um colega não suportava o Gordievsky. Não conseguia
explicar o motivo do seu desagrado, mas pensava que
o Oleg tinha alguma coisa «errada», «perversa», que
era um homem com «duas caras». 
 
Parshikov prestava pouca atenção à má-língua. «Eu era
demasiado preguiçoso para me envolver na difamação do
meu agradável colega da rezidentura.» Parshikov pensava
que o principal problema era o seu desempenho
profissional medíocre. O seu inglês continuava fraco. Ele
parecia sair para almoçar com alguma regularidade, mas
regressava com poucas informações novas. Meses depois
da sua chegada, começou a circular na coscuvilheira
rezidentura uma campanha de que Oleg não se encontrava
à altura da função. 
Gordievsky sabia que estava a afundar-se. Tinha herdado
uma série de contactos do seu antecessor na Linha PR,
mas estes não lhe deram informações úteis. Entrou em
contacto com um diplomata europeu identificado pelo
Centro como um agente e constatou que, «embora ele
estivesse sempre disposto a comer lautas refeições, nunca
me disse nada de interessante». Outro indivíduo
identificado para possível recrutamento foi Ron Brown,
deputado do Partido Trabalhista por Edinburgh Leith, um
antigo sindicalista que atraíra a atenção do KGB devido ao
seu aberto apoio aos regimes comunistas no Afeganistão,
na Albânia e na Coreia do Norte. Estava frequentemente
metido em sarilhos com as autoridades parlamentares por
comportamento desordeiro e acabaria por ser expulso do
Partido Trabalhista depois de roubar a roupa interior da
amante e destruir o seu apartamento. Nascido em Leith,
Brown tinha um sotaque escocês tão denso como papas de
aveia. Era excêntrico, sociável e, para os ouvidos russos,
totalmente incompreensível. Gordievsky, que já tinha
bastante dificuldade em acompanhar a pronúncia clássica
da BBC, convidou Brown para almoçar em diversas
ocasiões e sentou-se a acenar diligentemente com a
cabeça, percebendo uma palavra em cada 10, enquanto o
escocês murmurava no seu sotaque dialetal. «Percebia-o
tão bem como se ele estivesse a falar árabe ou japonês.»
Na rezidentura, Gordievsky escreveria um relatório que era
pura invenção, com base no que pensava que o escocês
poderia ter dito. Brown podia ter-lhe contado segredos do
mais alto nível; mas também podia ter estado a falar sobre
futebol. A culpa, ou inocência, de Brown continua a ser um
mistério histórico, para sempre escondido atrás do seu
impenetrável sotaque escocês. 
Retomar e consolidar antigos contactos era tão frustrante
e difícil como encontrar novos. Bob Edwards tinha quase
80 anos e era o deputado mais velho em funções, um
impenitente amigo do KGB que gostava de falar sobre os
velhos tempos, mas tinha muito pouco para revelar sobre
os novos. Gordievsky também voltou a estabelecer
contacto com Jack Jones, o antigo líder sindical, e
encontrou-se com ele no seu apartamento de habitação
social. Há muito reformado, Jones ficou encantado com o
convite para almoçar e com ocasionais pagamentos, mas
foi «absolutamente inútil» como informador. O Centro
identificava com frequência importantes «progressistas»,
como a ativista do CND Joan Ruddock e o apresentador de
rádio e televisão Melvyn Bragg, convencidos de que com a
abordagem certa aquelas pessoas poderiam espiar para os
soviéticos. Nisto, como em muitas outras coisas, o KGB
estava enganado. Durante semanas, Gordievsky pairou nas
orlas do Partido Trabalhista, do movimento pacifista, do
Partido Comunista britânico e dos sindicatos, tentando,
sem sucesso, estabelecer novos contactos. Passados seis
meses, os seus esforços tinham dado poucos resultados. 
O analista principal da rezidentura, outro dos compinchas
de Guk, era crítico do trabalho de Gordievsky e começou a
queixar-se de que o novo homem era um imbecil
incompetente. Gordievsky confidenciou a Parshikov que
tinha medo de regressar a Moscovo nas férias anuais por
temer «ser criticado pelo seu fraco desempenho». O
Centro era pouco compreensivo: «Esquece o pânico e
continua a trabalhar.» 
Gordievsky estava metido em sarilhos: não era apreciado
pelo rezident, era impopular na embaixada e estava a
tentar causar boa impressão num novo cargo, numa nova
língua e numa nova cidade. Também estava tão ocupado a
recolher informações para os britânicos que não tinha
tempo suficiente para se dedicar ao seu emprego oficial no
KGB. 
Os problemas de Gordievsky no emprego oficial
representaram um dilema inesperado e alarmante para o
MI6. Se ele fosse mandado para casa, o caso de
espionagem mais importante do Ocidente chegaria ao fim
no momento em que estava a produzir informações
capazes de mudar o mundo. O caso dependia do progresso
profissional de Gordievsky, porque, quanto mais sucesso
ele tivesse aos olhos do KGB, maiores seriam as suas
perspetivas de promoção e mais vasto o acesso a material
útil. A sua carreira precisava de um estímulo. O MI6 decidiu
concretizar isto de duas formas sem precedentes: fazendo
o trabalho de casa do espião por ele e livrando-se das
pessoas que se encontravam no seu caminho. 
Martin Shawford, um jovem funcionário do MI6 da célula
NOCTON, no departamento soviético, recebeu a tarefa de
fazer Gordievsky ter um bom desempenho aos olhos dos
seus pares e superiores. Shawford, que falava russo e
acabara de regressar de uma comissão de serviço em
Moscovo, encarregava-se dos relatórios políticos do caso e
começou a recolher informações que Gordievsky poderia
passar ao KGB como se tivesse sido ele a recolhê-las: o
bastante para convencer o Centro de que era um
especialista na recolha de informações políticas, mas não
com qualidade suficiente para serem úteis para os
soviéticos. Em gíria de espionagem, essas informações são
conhecidas como «milho para as galinhas», informações
genuínas, mas não muito prejudiciais, que podem ser
dadas a um inimigo para estabelecer a boa-fé de um
agente, volumosas, satisfatórias, mas sem qualquer valor
nutricional. Os serviços secretos britânicos tinham-se
tornado especialistas em criar milho para as galinhas
durante a Segunda Guerra Mundial, passando vastas
quantidades de informações cuidadosamente
monitorizadas através de agentes duplos aos seus
controladores alemães: algumas verdadeiras, outras com
um fundo de verdade e outras falsas, mas cuja falsidade
era impossível de detetar. Shawford pesquisava
informações de fontes abertas como revistas e jornais para
recolher fragmentos de informações que Gordievsky
poderia ter recebido de contactos ou outras fontes:
resumos da situação no apartheid da África do Sul, do
estado das relações anglo-americanas ou mexericos
internos do Partido Conservador reunidos nos bastidores
de conferências partidárias. Com alguma imaginação,
podiam ser organizadas de forma a parecerem
informações confidenciais. «Precisávamos de material que
ele pudesse apresentar à rezidentura para justificar as
ausências, as reuniões, etc. Era importante aumentar a
sua credibilidade e justificar os seus movimentos.
Sabíamos o tipo de conversas que ele podia ter com as
pessoas que conhecia.» Os pedidos do MI6 para material
publicável eram tantos que o K6, o departamento do MI5
responsável pelo caso, quase não conseguia acompanhar.
«Isto causou praticamente o único foco de discórdia entre
os Serviços na história do caso Gordievsky.» Shawford
datilografava um resumo de três quartos de página todas
as semanas, que Gordievsky levava para a rezidentura,
traduzia para linguagem do KGB, acrescentava alguns
pormenores seus e entregava aos superiores. A folha
original do MI6 era rasgada em pequenos pedaços e
deitada na sanita. 
Porém, dar milho para as galinhas a Oleg era apenas
uma forma de aumentar as suas perspetivas de carreira.
Para convencer os seus superiores de que estava a
trabalhar bem, Gordievsky teria de conhecer pessoas reais
que pudessem dar-lhe informações genuínas, mas sem
importância. Oferecer resmas de informações sem referir a
fonte acabaria por levantar suspeitas. Gordievsky
precisava de ter «contactos confidenciais». E o MI6
providenciou alguns. 
No MI5, o departamento K4 tratava da contraespionagem
contra alvos soviéticos, identificando, monitorizando,
seguindo e, sempre que possível, neutralizando espiões
ativos na Grã-Bretanha – agentes do KGB e do GRU, os
seus recrutas e ilegais. Isto envolvia com frequência a
utilização de «agentes de acesso», civis que podiam
estabelecer contacto com um suspeito de espionagem,
conquistar a sua confiança, fazê-lo falar, extrair
informações e fingir que eram solidários e estavam
disponíveis para recrutamento. Se o espião se revelasse,
poderia ser preso se fosse ilegal ou expulso se estivesse na
Grã-Bretanha sob disfarce diplomático. Mas o objetivo
supremo deste tipo de operações era convencer um espião
a ser cúmplice e depois persuadi-lo, por incitamento ou
ameaça, a espiar contra a União Soviética. Esses agentes
de acesso, também conhecidos como «contactos
controlados», eram homens e mulheres comuns recrutados
em segredo pelo K4 para ajudar na invisível batalha da
espionagem. Na verdade, eram falsos espontâneos;
também eram, por definição, o tipo de pessoas que um
funcionário dos serviços secretos soviéticos poderia querer
recrutar. No início da década de 1980, o K4 geria dúzias de
casos em simultâneo contra alvos soviéticos, usando uma
grande quantidade de agentes secretos de acesso. 
Rosemary Spencer, uma morena alta e atraente, era uma
figura conhecida na sede do Partido Conservador, o centro
nevrálgico dos conservadores no número 32 de Smith
Square, na baixa de Westminster. A menina Spencer, de 42
anos, trabalhava na secção internacional do departamento
de investigação e tinha ajudado a elaborar o Relatório
Franks sobre a Guerra das Malvinas. Com alguma
indelicadeza, as pessoas diziam que ela era casada com o
partido. Rosemary era uma mulher sociável, inteligente,
talvez solitária, e o tipo de membro bem informado do
aparelho político que o KGB encorajava os seus agentes a
recrutar. Os colegas conservadores ficariam estupefactos
se soubessem que aquela alegre mulher solteira do
departamento de investigação era na realidade uma
agente secreta do MI5. 
Gordievsky encontrou-se com Rosemary Spencer pela
primeira vez numa festa em Westminster. O encontro não
foi acidental. Tinham-lhe dito para procurar uma
investigadora do Partido Conservador cheia de vivacidade.
Ela fora alertada para a possibilidade de ser abordada por
um agente do KGB a fazer-se passar por um diplomata
russo, e que, se isso acontecesse, devia encorajar a
relação. Encontraram-se para almoçar. Gordievsky foi
encantador. Sabia que ela era uma agente de acesso do
MI5. Ela sabia que ele era do KGB. Não sabia que ele
trabalhava para o MI6. Almoçaram de novo. E mais uma
vez. O controlador de Rosemary no MI5 dizia-lhe que
informações poderia passar, nada demasiado sensível,
mas assuntos de interesse do seu trabalho, fragmentos de
coscuvilhice conservadora, bocados de milho para as
galinhas. Gordievsky datilografava tudo num relatório, que
incluía não apenas o que Rosemary lhe dissera, mas outras
informações fornecidas pelo MI6 que um membro bem
relacionado do Partido Conservador poderia ter-lhe
passado. O KGB ficou muito impressionado: Gordievsky
estava a controlar uma importante nova fonte na sede do
Partido Conservador que talvez se tornasse um contacto
confidencial, ou até uma agente. 
A relação entre Gordievsky e Spencer tornou-se uma
sólida amizade, mas também era uma amizade de
enganos. Ela acreditava que estava a enganá-lo; e ele
estava a enganá-la deixando-a acreditar nisso. Gordievsky
usava-a para melhorar a sua posição no KGB. Rosemary
pensava que estava a desferir um golpe contra a União
Soviética. Aqui estava outro exemplo da inerente
combinação de embuste e ternura na espionagem: uma
amizade entre uma britânica, investigadora do Partido
Conservador, e um diplomata russo, ambos espiões
secretos. Estavam a mentir um ao outro, com genuíno
afeto. 
Dentro da rezidentura do KGB, a influência de Gordievsky
subiu depressa. Até Guk parecia começar a gostar dele. Os
relatórios para o Centro eram assinados pelo rezident, e o
trabalho de Gordievsky começava a fazê-lo destacar-se.
Parshikov reparou numa forte mudança no comportamento
do colega. «Ele começou a acostumar-se à equipa, a
construir relações com as pessoas.» Parecia mais confiante
e descontraído. Uma pessoa que não apreciou o sucesso
de Gordievsky foi o seu superior imediato, Igor Titov. O
chefe da Linha PR sempre pensara que o seu subordinado
representava uma ameaça, e os bem informados relatórios
e a nova série de fontes de Gordievsky redobraram a sua
determinação de boicotar as oportunidades de promoção
do subalterno. Gordievsky estava em ascensão. Mas Titov
encontrava-se no seu caminho. Por isso, o MI6 removeu-o. 
Em março de 1983, Igor Titov foi declarado persona non
grata no Reino Unido e mandado sair imediatamente do
país. Gordievsky foi informado antecipadamente do plano
de expulsão do seu chefe. Para não levantar suspeitas,
dois funcionários do GRU foram expulsos ao mesmo tempo
por «atividades incompatíveis com o seu estatuto
diplomático», o eufemismo aceite para espionagem. Titov
ficou furioso. «Não sou espião»47, mentiu aos jornalistas.
Poucos na estação do KGB tiveram pena de o ver partir, e
menos ainda ficaram surpreendidos. Nos meses anteriores
houvera uma grande quantidade de expulsões de espiões
em países ocidentais e havia muitas provas de que Titov
era um agente do KGB no ativo. 
Tendo Titov sido eliminado, Gordievsky era o candidato
óbvio para lhe suceder na direção de informações políticas
e foi promovido a tenente-coronel. 
O estratagema do MI6 para fazer o seu espião subir na
hierarquia do KGB funcionou na perfeição. Em meados de
1983, a sua situação transformou-se de um impopular
fracasso, estando ele em risco de perder o emprego, para
ser considerado uma estrela em ascensão na rezidentura,
com uma florescente reputação de recrutamento de
agentes e recolha de informações. E a sua promoção
orquestrada fora conseguida sem levantar a mínima
suspeita. Como Parshikov observou: «Tudo pareceu muito
natural.» 
Como chefe das informações políticas na rezidentura,
Gordievsky tinha agora acesso aos dossiês da Linha PR e
pôde confirmar o que o MI6 já suspeitava: a penetração
soviética no poder instalado britânico era lastimável, com
apenas meia dúzia de pessoas classificadas como
«agentes recrutados» (quase todos muito velhos) e talvez
uma dúzia de «contactos confidenciais» (quase todos
insignificantes). Muitos eram apenas «agentes no papel»,
«mantidos nos livros para que Moscovo pensasse que os
seus funcionários estavam ocupados». Não havia um novo
Philby escondido na estrutura. Numa nota mais positiva, o
novo cargo de Gordievsky proporcionou-lhe um maior
conhecimento do funcionamento de outros departamentos,
ou linhas: a Linha X (científica e técnica), a Linha N
(ilegais) e a Linha KR (contraespionagem e segurança).
Peça a peça, Gordievsky estava a desvendar os segredos
do KGB e a passá-los ao MI6. 
E outra fonte de informações ficou disponível quando
Leila ingressou na estação do KGB como funcionária em
tempo parcial. Arkadi Guk precisava de mais uma
secretária. Leila era uma datilógrafa rápida e eficiente.
Mandaram-na pôr as filhas num jardim-infantil durante a
manhã e apresentar-se ao serviço na rezidentura.
Doravante, ela datilografaria os relatórios de Guk. Leila
ficou impressionada com o rezident. «Ele era um pavão.
Era uma grande coisa ser general do KGB. Eu nunca fazia
perguntas, só datilografava o que ele me mandava.» Leila
não reparava na atenção do marido quando lhe descrevia
o seu dia durante o jantar, falando sobre os relatórios que
datilografava para o chefe e sobre as coscuvilhices entre
as secretárias. 
Parshikov reparou que o novo chefe parecia muito feliz e
generoso. «Rapazes, gastem dinheiro com despesas de
representação», disse Gordievsky aos seus subordinados.
«Este ano gastámos muito pouco em entretenimento e
presentes para contactos. Se não gastarem, no próximo
ano o orçamento será reduzido.» Foi um convite à
falsificação de despesas, e alguns dos colegas não
precisaram de um segundo incentivo. 
Gordievsky tinha todos os motivos para se sentir
satisfeito e confiante. Estava a subir na hierarquia. O seu
cargo encontrava-se seguro. As informações que produzia
chegavam regularmente à secretária da primeira-ministra
britânica e ele estava a atacar a partir do interior o sistema
comunista que abominava. O que poderia correr mal? 
No dia 3 de abril de 1983, domingo de Páscoa, Arkadi
Guk voltou para o seu apartamento no número 42 de
Holland Park e viu um envelope que tinha sido enfiado na
caixa do correio. Continha um documento ultrassecreto: o
relatório do MI5 com a exposição das justificações para
expulsar Titov e os dois homens do GRU no mês anterior,
incluindo pormenores de como os três tinham sido
identificados como funcionários dos serviços secretos
soviéticos. Num bilhete que acompanhava o documento, a
pessoa oferecia-se para fornecer mais segredos e dava
instruções pormenorizadas para um contacto. Estava
assinado «Koba», uma das primeiras alcunhas de Estaline. 
Alguém no seio dos serviços secretos britânicos estava a
oferecer-se para espiar para a União Soviética. 
9. Koba 

Arkadi Guk via ameaças e conspirações em toda a parte:


o rezident do KGB em Londres via-as na mente dos seus
colegas soviéticos, atrás dos cartazes publicitários no
Metropolitano de Londres e nas maquinações invisíveis dos
serviços secretos britânicos. 
A carta de «Koba» deixou a sua desconfiada mente num
turbilhão. As instruções que continha eram
pormenorizadas e explícitas: Guk devia indicar a sua
disponibilidade para cooperar colocando um pionés no
cimo do corrimão do lado direito das escadas da linha
Piccadilly, na estação do metropolitano de Piccadilly; Koba
confirmaria a receção do sinal enrolando um pedaço de fita
adesiva azul no fio do telefone da cabina do meio de uma
fila de cinco cabinas telefónicas em Adam and Eve Court,
ao fundo de Oxford Street; depois faria a entrega, uma lata
de película com informações secretas, colada por baixo da
tampa do autoclismo da casa de banho dos homens no
Cinema Academy, em Oxford Street. 
Guk teria até ao dia 25 de abril para aceitar a oferta, dali
a 22 dias.  
O rezident olhou para a extraordinária carta e decidiu
que devia ser um embuste, um «falso espontâneo» do MI5,
uma provocação deliberada destinada a apanhá-lo,
embaraçar o KGB e fazer com que ele fosse expulso. Por
isso, ignorou-a. 
Guk presumiu, com toda a razão, que a sua casa devia
estar a ser vigiada pelo MI5. Um genuíno espião no interior
dos serviços secretos britânicos estaria com toda a certeza
a par disso e não correria o risco de ser visto a entregar
um pacote na sua casa. Não lhe ocorreu que Koba tinha
acesso aos horários de vigilância do MI5 e poderia, por
conseguinte, ter decidido fazer a entrega depois da meia-
noite no domingo de Páscoa, quando sabia que não
haveria vigilantes de serviço. 
Guk arquivou o pacote, congratulando-se por ter evitado
uma armadilha tão óbvia. 
Porém, Koba recusava-se a ser ignorado. Após dois
meses de silêncio, no dia 12 de junho um segundo pacote
foi colocado na caixa do correio de Guk a meio da noite.
Este era ainda mais intrigante: continha um documento do
MI5 com duas páginas, uma lista completa de todos os
agentes secretos soviéticos em Londres; cada espião
estava classificado como «plenamente identificado», «mais
ou menos identificado», ou «sob suspeita de pertencer à
estação do KGB». Uma vez mais, no bilhete que
acompanhava o documento oferecia-se para fornecer mais
material secreto e sugeria um novo sistema de sinalização
e um local de entrega: se Guk quisesse estabelecer
contacto, devia estacionar o seu Mercedes cor de marfim
durante a hora do almoço no dia 2 ou 4 de julho nos
parquímetros do lado norte de Hanover Square. Se
recebesse o sinal, no dia 23 de julho o autor do bilhete
deixaria uma lata de cerveja Carlsberg com uma película
ao pé de um candeeiro de iluminação pública avariado,
sem quebra-luz e torto, no caminho pedonal paralelo a
Horsenden Lane em Greenford, na zona ocidental de
Londres. Guk devia confirmar a receção da lata e do
respetivo conteúdo colocando um pedaço de casca de
laranja ao pé da coiceira do lado direito da primeira
entrada de St. James’s Gardens em Melton Street, ao pé da
estação de Euston. Uma vez mais, a mensagem estava
assinada por Koba. 
Guk convocou Leonid Nikitenko, o seu chefe da
contraespionagem, e, à porta fechada no sótão da
embaixada, falaram sobre o mistério enquanto bebiam
vodca e fumavam. Guk continuava a insistir que a
abordagem era uma tosca armadilha. Um espião que
oferece os seus serviços é conhecido como um
«espontâneo» e é imediatamente mais suspeito do que um
que foi escolhido para recrutamento. O documento
revelava apenas o que o KGB já sabia, informações que
estavam corretas, mas não tinham qualquer utilidade: por
outras palavras, milho para as galinhas. Uma vez mais,
não parece ter-lhe ocorrido que Koba demonstrava a sua
boa-fé fornecendo de forma deliberada informações que
Guk poderia confirmar. Nikitenko não estava tão
convencido de que se tratava de uma provocação do MI5.
O documento parecia autêntico, um mapa completo da
«ordem de batalha» da rezidentura, elaborado pelo Serviço
de Segurança. Era sem dúvida correto. A escolha dos locais
de sinais das «caixas postais» era bastante complexa para
indicar alguém que não queria ser apanhado. Para os olhos
amarelos de Nikitenko, a oferta parecia genuína; mas ele
era demasiado astuto e ambicioso para contradizer o
chefe. O Centro foi consultado e a ordem voltou: não fazer
nada e ver o que acontece. 
Gordievsky sentiu que «estava a acontecer alguma coisa
invulgar na estação». Guk e Nikitenko estavam sempre a
desaparecer para conferenciar em privado e a enviar
telegramas urgentes para Moscovo. O rezident ostentava o
seu olhar mais conspirador. Para um homem mergulhado
em paranoico secretismo, Guk podia ser
surpreendentemente indiscreto. Também era um fanfarrão.
Na manhã de 17 de junho, chamou Gordievsky ao
gabinete, fechou a porta e perguntou numa voz
portentosa: «Queres ver uma coisa excecional?» 
Guk deslizou as duas páginas fotocopiadas pelo tampo
da secretária. «Bozhe Moi», balbuciou Gordievsky em voz
baixa. «Meu Deus! De onde é que isto veio?» 
Observou a lista de funcionários do KGB e encontrou o
seu nome. Estava classificado como «mais ou menos
identificado». Percebeu de imediato as implicações: quem
compilara a lista não tinha a certeza se ele era um agente
do KGB; e quem a entregara a Guk não podia saber que ele
estava a espiar em segredo para a Grã-Bretanha, porque,
se soubesse, tê-lo-ia denunciado para se proteger da
exposição. Koba tinha sem dúvida acesso a segredos, mas
não sabia que Gordievsky era um agente duplo. Ainda. 
«É bastante exata», disse, devolvendo-lhe o documento. 
«Sim», concordou Guk. «Fizeram um bom trabalho.» 
Gordievsky observou melhor o documento quando o
subdiretor dos relatórios, Slava Mishustin, lhe pediu ajuda
na tradução. Mishustin estava maravilhado por os
britânicos terem conseguido «informações tão precisas»
sobre o pessoal do KGB. Gordievsky era capaz de imaginar
de onde tinham vindo aquelas informações. 
No entanto, estava mais intrigado do que alarmado.
Sentia-se tentado a concordar com Guk que as entregas à
meia-noite no número 42 de Holland Park pareciam mais
uma provocação do que uma oferta genuína. Os serviços
secretos britânicos deviam estar a preparar alguma. Mas
se os britânicos estavam a tentar um falso espontâneo,
porque é que Spooner não o avisara? E o MI5 quereria que
o KGB soubesse que a agência britânica identificara
corretamente todos os seus espiões que trabalhavam na
Grã-Bretanha? 
Escapuliu-se à hora do almoço e ligou para o número de
emergência. Veronica Price atendeu logo. «O que se
passa?», perguntou Gordievsky, antes de descrever as
misteriosas entregas no apartamento de Guk e os
documentos que vira. Veronica manteve-se em silêncio
durante alguns instantes. Em seguida, disse: «Temos de
nos encontrar, Oleg.» 
James Spooner e Veronica Price estavam à espera no
apartamento seguro quando Gordievsky chegou, uma hora
mais tarde. 
«Eu sei que vocês não fariam isto, mas alguém anda a
brincar connosco», disse ele. 
Depois reparou na expressão de Spooner. «Oh, meu
Deus! Acham que é real?» 
Veronica falou: «Tanto quanto sabemos, não há nenhuma
operação de provocação em curso.» 
Mais tarde, Gordievsky descreveria a reação do MI6 como
«classicamente calma». Na realidade, a revelação de que
alguém dos serviços secretos britânicos estava a oferecer-
se para espiar para os soviéticos provocou consternação
entre as poucas pessoas que estavam a par do caso,
acompanhada por uma horrível sensação de déjà-vu. Como
acontecera com Philby, Hollis e outros escândalos de
espionagem do passado, agora os serviços secretos
britânicos teriam de iniciar uma caça interna à toupeira e
tentar encontrar o traidor. Se a toupeira soubesse da
investigação, talvez percebesse que alguém no interior da
rezidentura do KGB tinha informado os britânicos, e
Gordievsky ficaria em perigo. O «espontâneo» estava sem
dúvida bem posicionado, tinha acesso a material secreto e
conhecimento da arte da espionagem. Ele ou ela teria de
ser travado antes que mais segredos prejudiciais fossem
passados aos soviéticos. Vários milhares de pessoas
trabalhavam para o MI5 e para o MI6. Koba era uma delas. 
Mas, na febril caça que se iniciava agora, os serviços
secretos britânicos tinham uma vantagem fundamental.  
O espião, fosse ele quem fosse, não sabia que
Gordievsky era um agente britânico. Se Koba fizesse parte
da equipa NOCTON, nunca teria feito aquela abordagem,
pois saberia que Gordievsky informaria logo o MI6 – como
tinha acontecido. O seu primeiro passo teria sido expor
Gordievsky a Guk e garantir a sua segurança. Mas isso não
acontecera. Logo, a procura do traidor devia ser realizada
apenas pelos funcionários que conheciam o segredo de
Gordievsky e que eram de total confiança. A caça à
toupeira recebeu o nome de código ELMEN (um município
no Tirol austríaco). 
Os funcionários do MI5 que estavam a par do caso
Gordievsky, que se contavam pelos dedos de uma mão,
ficariam responsáveis pela descoberta da toupeira, sob o
comando de John Deverell, o diretor da Divisão K, o
departamento de contraespionagem do MI5. A trabalhar a
partir do gabinete de Deverell, estavam isolados do resto
do MI5 enquanto investigavam, uma célula secreta dentro
de um departamento secreto de uma organização secreta.
«Ninguém que não pertencesse à equipa notou alguma
coisa fora do comum.» Os elementos da equipa ELMEN
deram a si mesmos o nome de «Nadgers». Este termo de
calão é obscuro, mas parece ter sido criado por Spike
Milligan no The Goon Show48, na década de 1950, para
expressar uma dor ou doença de origem não específica.
Nadgers também é calão para «testículos». 
Eliza Manningham-Buller tinha ingressado no Serviço de
Segurança em 1974, depois de ser recrutada numa festa.
Estava no seu ADN: o pai, antigo procurador-geral da
República, já antes processara espiões, incluindo George
Blake, o agente duplo do MI6; durante a Segunda Guerra
Mundial, a mãe treinara pombos-correio que foram
deixados na França ocupada e usados pela Resistência
para enviar mensagens para a Grã-Bretanha. Escolhida por
ser totalmente confiável e discreta, fora posta a par do
caso Gordievsky quase no início e integrada na minúscula
equipa LAMPAD para analisar as informações relacionadas
com a Dinamarca e fazer a ligação com o MI6. Em 1983,
estava no departamento de pessoal do MI5 e no lugar ideal
para procurar o espião. 
Manningham-Buller tornar-se-ia diretora-geral do MI5 em
2002, ascendendo ao topo de um competitivo mundo
dominado por homens. Os seus modos «irritantemente
entusiastas» eram enganadores: ela era direta, respirava
confiança e era extremamente inteligente. Apesar do
sexismo e do preconceito no seio do MI5, ela era
intensamente leal à organização a que chamava «o meu
bando» e ficou muito chocada com a descoberta de mais
um traidor no seio dos serviços de informação britânicos.
«Foi um dos momentos mais difíceis da minha carreira,
sobretudo nos primeiros dias em que não sabíamos quem
era, porque eu entrava no elevador, olhava em volta e
ficava na dúvida.» Para evitar levantar suspeitas entre os
colegas, os Nadgers reuniam-se com frequência depois do
trabalho no apartamento de Inner Temple pertencente à
mãe de Manningham-Buller. Uma das colegas da equipa
estava no fim da gravidez. O seu filho recebeu a alcunha
de «Pequeno Nadger». 
Para um serviço de informações não há processo mais
doloroso e debilitante do que uma caça interna a um
traidor não identificado. Os danos que Philby causou à
autoconfiança do MI6 foram muito maiores e mais
persistentes que os danos causados pelas informações que
transmitiu ao KGB. Uma toupeira não se limita a fomentar
a desconfiança. Como um herege, deteriora a coerência da
própria fé.  
Manningham-Buller e os colegas Nadgers pediram os
dossiês pessoais e começaram a reduzir a lista de
potenciais traidores. O documento do MI5 com a
justificação para expulsar os três espiões soviéticos tinha
sido distribuído no Ministério dos Negócios Estrangeiros, no
Ministério da Administração Interna e no número 10 de
Downing Street. A tabela que listava todos os funcionários
dos serviços secretos soviéticos fora elaborada pelo K4, o
departamento de contraespionagem soviética do MI5, e 50
cópias tinham sido enviadas para diversos departamentos
do mundo secreto. Os caçadores da toupeira começaram
por identificar todas as pessoas que poderiam ter tido
acesso aos dois documentos. 
A investigação estava no auge no fim de junho, quando
Oleg Gordievsky e a família voltaram para Moscovo. Oleg
não tinha disposição para férias, mas recusar a licença
anual teria de imediato levantado suspeitas. O risco era
enorme. Koba continuava a monte; a qualquer momento,
poderia descobrir as suas atividades e expô-lo a Guk. Se
isso acontecesse enquanto estivesse em Moscovo,
Gordievsky poderia não voltar. A estação do MI6 em
Moscovo foi colocada em alerta para o caso de ele precisar
de estabelecer contacto ou fazer o sinal de fuga. 
Entretanto, os Nadgers estavam a apertar o cerco a um
homem cuja presença no interior dos serviços secretos
britânicos parecia, em retrospetiva, uma piada de mau
gosto.  
Michael John Bettaney era um homem solitário, infeliz e
instável. Na Universidade de Oxford, caminhava pelo pátio
a passo de ganso e ouvia os discursos de Hitler muito alto
num gramofone. Usava fatos de tweed e sapatos clássicos
de atacadores, e fumava cachimbo. «Vestia-se como o
gerente de um banco e sonhava pertencer a uma tropa de
assalto»49, diria um colega da universidade. Uma vez,
imolou-se depois de uma festa e deixou crescer um
pequeno bigode igual ao de Hitler, que as raparigas não
achavam atraente. Mudou o sotaque nortenho para uma
arrastada fala característica da alta sociedade. Uma
investigação posterior descreveu-o como «um homem com
um considerável complexo de inferioridade e
insegurança». Uma enorme insegurança não é uma
qualidade ideal num funcionário dos Serviços de
Segurança, mas ele foi recrutado quando ainda estava em
Oxford e ingressou no MI5 em 1975. 
Após um curso formal de integração, foi colocado numa
situação de grande tensão, a combater o terrorismo na
Irlanda do Norte. O próprio Bettaney questionou se, por ser
católico, era adequado para o trabalho. As suas dúvidas
foram ignoradas. Era um trabalho difícil, complexo e
extremamente perigoso: controlar agentes no seio do IRA,
pôr telefones sob escuta, falar com pessoas desagradáveis
em pubs muito hostis, sabendo que um passo em falso
poderia significar uma bala na cabeça numa viela de
Belfast. Bettaney estava traumatizado com o trabalho e
não era muito bom no que fazia. O seu pai morreu em
1977, e a mãe um ano mais tarde. Apesar do duplo luto, a
sua comissão de serviço em Belfast foi prolongada. Ao
analisar a folha de serviços de Bettaney, Eliza
Manningham-Buller ficou estupefacta: «Nós fizemos do
Bettaney o que ele se tornou. Ele nunca se recompôs da
Irlanda do Norte.» Bettaney ostentava um sotaque, um
guarda-roupa e uma imagem que não eram seus, não tinha
família, amigos, amantes ou convicções fortes, e andava à
procura de uma causa e a fazer um trabalho para o qual
era profundamente inadequado. «Ele não era autêntico»,
disse Manningham-Buller. O peculiar stresse e o secretismo
do trabalho nos serviços secretos podia tê-lo alheado ainda
mais da realidade. Bettaney talvez vivesse uma vida feliz e
tranquila se tivesse escolhido outra profissão. 
Em Londres, passou dois anos no departamento de treino
antes de ser transferido, em dezembro de 1982, para o K4,
o departamento do MI5 que analisava e combatia a
espionagem soviética no Reino Unido, incluindo o controlo
de agentes de acesso. Vivia sozinho, com uma grande
imagem de plástico de Nossa Senhora, uma série de ícones
russos, uma gaveta de medalhas de guerra nazis e uma
grande coleção de pornografia. Apático e isolado, tentava
repetidamente convencer as colegas do MI5 a dormirem
com ele, sem sucesso. De vez em quando, era ouvido em
festas a gritar, embriagado: «Estou a trabalhar para o lado
errado» e «venham visitar-me à minha dacha50 quando eu
me reformar». Seis meses antes da primeira entrega a
Guk, Bettaney tinha sido encontrado sentado num passeio
no West End de Londres, demasiado embriagado para se
manter de pé. Quando foi detido por estar bêbedo num
local público, gritou para a polícia: «Vocês não me podem
prender, eu sou um espião.» Foi multado em 10 libras. O
MI5 não aceitou o seu pedido de demissão. O que foi um
erro. 
Michael Bettaney não devia poder estar a um quilómetro
de um segredo de Estado, mas aos 32 anos foi promovido
a funcionário de nível médio do departamento de
contraespionagem soviética do MI5. 
Tinham sido detetados sinais óbvios de que ele estava a
enveredar por maus caminhos, mas foram ignorados. A
sua fé católica evaporou-se de repente. Em 1983, bebia
uma garrafa inteira por dia e recebeu alguns «bons
conselhos» de um supervisor para reduzir o consumo de
álcool. Nada mais foi feito. 
Entretanto, Bettaney agia por conta própria. Começou a
decorar o conteúdo de documentos secretos e a fazer
extensas anotações, datilografando-as mais tarde na sua
casa geminada nos subúrbios a sul de Londres e
fotografando-as. Sempre que estava no turno da noite,
levava uma máquina fotográfica para o MI5 e fotografava
todos os dossiês a que conseguia deitar a mão. Ninguém o
revistava. Os colegas chamavam-lhe «Smiley», como a
personagem no livro de John le Carré, mas também
notavam «um ar de superioridade [e] presunção». Como
muitos espiões, Bettaney queria saber, e esconder, um
segredo maior do que o espião que estava sentado ao seu
lado. 
Havia quatro funcionários no K4. Dois deles estavam a
par do caso Gordievsky. Bettaney não era um deles, mas
estava sentado, num sentido literal e metafórico, ao lado
do maior segredo da organização: um espião do MI6 no
interior da rezidentura do KGB em Londres. 
Mais tarde, Bettaney alegou que se tinha convertido ao
marxismo em 1982 e insistiu que o seu desejo de trabalhar
para o KGB se devia a pura convicção ideológica. Numa
longa dissertação de autojustificação, pintaria as suas
ações com as cores fortes do martírio político, uma
estranha mistura de ressentimento, teoria da conspiração
e justificado ultraje. Acusou o governo de Thatcher de
«servil adesão à política agressiva e dissidente da
administração Reagan» e de aumentar de forma
deliberada o desemprego para trazer «maior riqueza para
os que já têm tanto». Afirmou que estava a agir em prol da
paz no mundo e atacou o MI5 por usar «métodos sinistros
e imorais [...] não apenas para derrubar o governo e o
partido soviético, mas também para destruir todo o tecido
da sociedade na URSS». Adotou a retórica bombástica dos
revolucionários: «Apelo aos camaradas em toda a parte
para renovarem a sua determinação e redobrarem esforços
na busca de uma vitória que é historicamente inevitável.» 
As políticas marxistas de Bettaney eram tão artificiais
como o seu bem timbrado sotaque. Ele nunca foi um
empenhado comunista ao estilo de Philby. Há poucas
provas de que sentia afinidade com a União Soviética, com
a inevitável marcha do comunismo ou com o proletariado
oprimido. Num momento de descuido, traiu-se: «Senti que
precisava de influenciar radicalmente os acontecimentos.»
Bettaney não queria dinheiro, revolução ou paz no mundo;
queria atenção. 
O que tornou muito mais doloroso o facto de o KGB não
lhe ter passado cartão. 
Bettaney ficou extremamente surpreendido quando a sua
primeira entrega na caixa do correio de Guk não obteve
resposta. Voltou à estação de Piccadilly diversas vezes e,
não tendo visto um pionés no corrimão, concluiu que a sua
escolha de local de entrega e de sinal devia ser demasiado
perto da embaixada soviética. O segundo conjunto de
instruções identificava locais fora do centro de Londres,
sugeria uma data de sinal várias semanas depois e
providenciava um dos documentos mais secretos que
aparecera recentemente no K4. Bettaney esperou,
matutou e pôs-se a beber. 
Em retrospetiva, Bettaney devia ter sido identificado
como um risco anos antes. Mas as três agências de espiões
mais poderosas do mundo – a CIA, o MI6 e o KGB –
estiveram, em diferentes momentos, vulneráveis a traição
a partir do interior por pessoas que, ao serem
minuciosamente investigadas, se destacaram como muito
suspeitas. As agências de informações têm a reputação de
ter um discernimento brilhante e uma grande eficiência,
mas apesar de investigarem bem os candidatos, é tão
provável que contratem e mantenham o tipo errado de
pessoas como qualquer outra grande organização. Era um
trabalho que envolvia muita bebida, dos dois lados da
Guerra Fria, e funcionários e agentes procuravam muitas
vezes refúgio do stresse na bebida, e no embotamento da
realidade que o álcool pode trazer. A relação peculiarmente
exigente entre agente e controlador é muitas vezes oleada
pelos efeitos sociais e desinibidores da bebida. Ao
contrário de outros setores do governo, os serviços
secretos tendem a recrutar pessoas imaginativas que têm
o que Winston Churchill chamava «mentes de saca-
rolhas». Se os sinais de potencial traição são ser
inteligente, excêntrico e com propensão para beber em
demasia, metade dos espiões durante a guerra e no
período do após guerra na Grã-Bretanha e na América teria
sido suspeita. Contudo, neste aspeto, o KGB era diferente,
já que não via com bons olhos a embriaguez e a
individualidade dos seus membros. A traição de Gordievsky
foi invisível, porque ele estava sóbrio e tudo indicava que
era conformista; Bettaney passou despercebido pelos
motivos opostos. 
Entretanto, a equipa Nadger tinha reduzido a caça à
toupeira a três suspeitos, pondo Bettaney no topo da lista.
Porém, não seria fácil vigiá-lo. Bettaney conhecia bem as
equipas de vigilância e fora treinado para detetar quando
estava a ser seguido – se ele reconhecesse um dos
vigilantes, estava tudo estragado. Além disso, os vigilantes
conheciam Bettaney e talvez não resistissem a contar a
outras pessoas no MI5 que o colega estava a ser vigiado.
Logo, em vez de usarem os profissionais do MI5, foi
decidido usar a equipa NOCTON do MI5, pois Bettaney não
os conhecia. O diretor-geral do MI5 proibiu especificamente
a utilização de funcionários do MI6 numa operação do MI5.
Deverell ignorou a ordem. Os funcionários do MI6 que
trabalhavam no caso Gordievsky vigiariam Bettaney e
tentariam apanhá-lo a cometer traição em flagrante. 
Bettaney recebeu o nome de código PUCK, uma escolha
impopular entre os Nadgers. «A ligação shakespeariana51
foi considerada extremamente inadequada por todos os
membros da equipa e a palavra em si estava demasiado
próxima de um conhecido expletivo anglo-saxónico para
ser confortável.» 
Na manhã de 4 de julho, um casal andrajoso deambulava
ao fundo de Victoria Road, Coulsdon, nos subúrbios a sul
de Londres. Um deles era Simon Brown, do P5, o chefe de
operações do Bloco de Leste do MI6; a mulher era Veronica
Price, que arquitetara o plano de fuga de Gordievsky.
Assemelhando-se demasiado a uma figura aristocrática,
desde as pérolas até ao conjunto de camisola e casaco de
malha, Price não era adequada para aquele tipo de
subterfúgio. «Pedi o chapéu emprestado à mulher a dias»,
anunciou, enquanto se disfarçavam. 
Às 8h05, Michael Bettaney saiu do número 5, parou ao pé
do portão da casa e olhou para um lado e para o outro.
«Naquele momento, tive a certeza de que era ele»,
declarou Brown. «Ninguém faz aquilo a não ser que seja
culpado e esteja à procura de indícios de vigilância.»
Bettaney não olhou duas vezes para os maltrapilhos. E
também não reparou na mulher grávida um pouco mais
adiante na carruagem, no comboio das 8h36 de Coulsdon;
nem no homem careca que o seguiu durante a caminhada
de 10 minutos desde a estação de Victoria até ao edifício
do MI5 em Curzon Street. Naquele dia, Bettaney fez uma
pausa de duas horas para o almoço, mas a determinado
momento perdeu-se no meio da multidão. O MI5 não podia
ter a certeza se ele fora a Hanover Square verificar se o
rezident dera por fim sinal de que estava disposto a entrar
no jogo estacionando o carro do lado norte – o que não
acontecera. 
Frustrado e cada vez mais ansioso, Bettaney decidiu
fazer mais um esforço para convencer o KGB a colaborar.
Depois da meia-noite do dia 10 de julho, colocou uma
terceira carta na caixa do correio de Guk: esta pedia um
sinal de que os pacotes anteriores tinham sido recebidos, e
qual seria a resposta soviética. Propôs-se ligar para a
embaixada no dia 11 de julho às 8h05 e pedir para falar
especificamente com Guk. O rezident devia atender e
indicar, com uma sequência específica de palavras, se
estava ou não interessado nos segredos de «Koba». 
O facto de o MI5 não ter a propriedade de Guk sob
vigilância apertada, e não ver o espião a fazer a terceira
entrega, continua a ser um mistério. Gordievsky
encontrava-se em Moscovo e não estava em posição de
avisar os amigos britânicos desta abordagem mais
recente. Mas, em todo o caso, Bettaney incriminava-se de
tal forma que sugeria uma intensa tensão mental e,
possivelmente, um esgotamento nervoso: no dia 7 de julho
falou sobre Guk com colegas de uma forma que lhes
pareceu «obsessiva» e sugeriu que o rezident do KGB
devia ser recrutado pelo MI5; no dia seguinte comentou
que, mesmo que oferecessem ao KGB uma fonte
«irresistível», os serviços secretos soviéticos rejeitá-la-iam;
começou a fazer perguntas estranhas sobre funcionários
específicos do KGB e a demonstrar interesse por dossiês
que estavam fora da sua alçada imediata. Falou muito
sobre as motivações dos espiões do passado, incluindo Kim
Philby. 
Na manhã de 11 de julho, ligou para a embaixada
soviética de uma cabina telefónica, identificou-se como
«Sr. Koba» e pediu para falar com Guk; o diretor da
estação do KGB recusou-se a atender. Bettaney oferecera
por três vezes ao chefe do KGB um valioso presente; mas
Guk pensou sempre que era uma armadilha. A história dos
serviços de informações oferece poucos exemplos de uma
oportunidade desperdiçada semelhante a esta. 
Passados três dias, Bettaney perguntou a um colega do
MI5: «Qual pensas que seria a reação do Guk se um
funcionário dos serviços secretos pusesse uma carta na
sua caixa do correio?» Aquele foi o fator decisivo: «Koba»
era Michael Bettaney. 
Todavia, as provas contra ele eram circunstanciais. O seu
telefone estava sob escuta, sem nenhum resultado. A sua
casa foi sujeita a uma revista superficial, que não revelou
nada que o incriminasse. Bettaney estava a proteger os
seus movimentos com profissional eficiência. Para garantir
uma condenação, o MI5 teria de o apanhar em flagrante a
cometer traição ou conseguir uma confissão. 
A família Gordievsky regressou de férias no dia 10 de
agosto. No primeiro encontro na casa segura em
Bayswater desde que voltara foi-lhe dito que, embora já
houvesse um suspeito muito provável, o espião no MI5
ainda não fora detido. Na rezidentura do KGB, Oleg fez
perguntas casuais para saber se as tentativas do
misterioso falso espontâneo Koba tinham continuado na
sua ausência, mas não havia novidades. Tentou retomar a
rotina normal, que era estabelecer contactos para o KGB e
recolher informações para o MI6, mas tornava-se difícil
concentrar-se quando sabia que um espião continuava
livre, algures no interior dos serviços secretos britânicos.
Claramente, aquela pessoa não sabia que ele estava a
espiar para a Grã-Bretanha quando entregara a primeira
carta a Guk. Contudo, já se tinham passado mais de quatro
meses. Teria Koba descoberto a verdade, entretanto? Teria
Guk aceitado recrutá-lo e os seus colegas do KGB estariam
agora a vigiá-lo, à espera de que ele cometesse um erro?
Enquanto aquele espião estivesse livre, a ameaça
aumentava a cada dia. Gordievsky ia buscar as filhas à
escola, saía com Leila para jantar, ouvia Bach e lia,
tentando parecer impassível, enquanto a ansiedade
aumentava de forma consistente: os seus amigos no MI6
apanhariam o espião sem nome antes que o espião o
apanhasse? 
Entretanto, Bettaney, aparentemente cansado de esperar
que Guk respondesse, tinha decidido levar as suas
mercadorias ilícitas a outro lado. No escritório, deixou
escapar que estava a pensar ir de férias a Viena, um
centro da espionagem na Guerra Fria onde havia uma
grande rezidentura do KGB. Uma busca no seu armário no
emprego produziu documentos referentes a um funcionário
do KGB expulso do Reino Unido durante a Operação FOOT,
que vivia agora na Áustria. Tudo indicava que Bettaney se
preparava para fugir do galinheiro. 
O MI5 decidiu prendê-lo e tentar extrair uma confissão.
Era uma jogada arriscada. Se Bettaney negasse tudo,
demitindo-se de seguida do serviço, não poderia ser
legalmente impedido de sair do país. O plano para
confrontá-lo, que recebeu o nome de código COE, poderia
correr mal. «Não podemos garantir o sucesso», avisou o
MI6, referindo que, se Bettaney jogasse bem as suas
cartas, talvez «consiga safar-se e ficar livre para fazer o
que quer». Acima de tudo, a interceção de Bettaney não
podia levar a Gordievsky. 
No dia 15 de setembro, Bettaney foi chamado para uma
reunião na sede do MI5 em Gower Street para falar sobre
um caso urgente de contraespionagem que tinha surgido.
Em vez disso, quando chegou foi levado para um
apartamento no último andar e as provas contra ele foram
expostas por John Deverell e Eliza Manningham-Buller –
incluindo uma fotografia da porta principal de Guk, com o
objetivo de insinuar que ele fora visto a fazer as entregas,
o que não acontecera. Bettaney estava chocado e
«visivelmente nervoso», mas controlou-se. Falou
hipoteticamente sobre o que aquele especulativo espião
teria feito, sem jamais indicar que fizera alguma coisa.
Referiu que não seria do seu interesse confessar, o que foi
uma admissão implícita, mas não uma confissão. Mesmo
que tivesse reconhecido a culpa, a prova não teria sido
admissível, porque ele não tinha sido detido e não havia
um advogado presente. O MI5 queria que ele contasse
tudo, depois pretendia prendê-lo e obrigá-lo a fazer uma
confissão formal. Mas ele não disse nada. 
As escutas transmitiam a conversa para a sala de
monitorização mais abaixo, onde um grupo de funcionários
superiores do MI5 e do MI6 se esforçava para ouvir todas
as palavras: «Escutar as suas tentativas de evitar admitir
alguma coisa foi uma experiência excruciante», disse
alguém. Bettaney poderia ser instável, mas não era
estúpido. «Tínhamos um receio muito real de que ele
conseguisse safar-se.» À noite, estavam todos esgotados,
e não se encontravam mais perto de uma revelação.
Bettaney aceitou passar a noite no apartamento, embora o
MI5 não tivesse o direito legal de o deter. Recusara-se a
almoçar, e dispensou também o jantar. Pediu uma garrafa
de uísque, que bebeu sem parar. Manningham-Buller e dois
outros funcionários escutaram-no expressando
solidariedade, «fazendo ocasionais perguntas
dissimuladas» quando ele ficou admirado com a «grande
quantidade de provas» que o MI5 recolhera, sem admitir a
sua veracidade. Em determinada altura, começou a referir-
se aos britânicos como «vocês» e aos russos como «nós».
Reconheceu que queria avisar os funcionários do KGB de
que estavam a ser vigiados. Mas não confessou. Às três
horas da madrugada, caiu por fim na cama. 
Na manhã seguinte, Manningham-Buller fez-lhe o
pequeno-almoço, que ele não comeu. Sem dormir, de
ressaca, com fome e extremamente mal-humorado,
Bettaney anunciou que não pretendia confessar. Mas
depois abandonou inesperadamente a forma hipotética de
discurso e passou para a primeira pessoa. Começou a
referir-se com simpatia a «Kim [Philby] e George [Blake]»,
os espiões do princípio da Guerra Fria. 
Deverell tinha saído da sala quando Bettaney se voltou
para os interrogadores, às 11h42, e declarou: «Acho que
devo contar toda a verdade. Digam ao diretor K que quero
fazer uma confissão.» Era típico da personalidade
impulsiva de Bettaney aguentar durante tanto tempo e
ceder de repente. Menos de uma hora depois estava na
esquadra da polícia de Rochester Row a confessar tudo. 
Uma busca mais minuciosa ao número 5 de Victoria Road
revelou provas dos seus atos de espionagem: na caixa de
uma máquina de barbear elétrica Philips havia pormenores
de funcionários do KGB que ele pretendia contactar em
Viena; sob entulho no depósito de carvão foi encontrado
equipamento fotográfico; o armário da roupa de casa
continha película não revelada de material secreto; numa
caixa de cartão, sob uma camada de copos, havia
anotações manuscritas a respeito de material
ultrassecreto; notas datilografadas estavam cosidas numa
almofada. Bettaney sentia-se estranhamente contrito: «Pus
o Serviço numa posição terrível – não foi minha intenção.» 
A descoberta de mais uma toupeira no interior da
estrutura da espionagem britânica foi descrita como um
triunfo do Serviço de Segurança. Margaret Thatcher
felicitou o diretor-geral do MI5 pela «forma como o caso foi
tratado». Os Nadgers enviaram uma mensagem pessoal a
Gordievsky onde realçavam «como gostamos dele». E
Gordievsky enviou-lhes uma mensagem através de
Spooner, dizendo que esperava um dia poder agradecer
aos funcionários do MI5 pessoalmente: «Não sei se esse
dia chegará – talvez não. Não obstante, gostaria que esta
ideia ficasse registada em algum lado: eles reforçaram a
minha convicção de que são os verdadeiros defensores da
democracia no sentido mais direto da palavra.» 
Margaret Thatcher era o único elemento do Governo que
estava a par do papel desempenhado por Gordievsky para
apanhar o espião britânico. No seio dos serviços de
informações britânicos, apenas os Nadgers sabiam o que
acontecera na realidade. Com a imprensa num frenesim,
alguma judiciosa desinformação foi espalhada a sugerir
que a dica da traição de Bettaney viera da «informação de
sinais» (ou seja, escutas), ou que os próprios russos
tinham informado o Serviço de Segurança sobre o espião.
Um jornal de Londres noticiou erradamente: «Os russos em
Londres cansaram-se das abordagens de Bettaney e,
convencidos de que era um clássico agent provocateur,
disseram ao MI5 que Bettaney andava a perder tempo. Foi
nessa altura que o MI5 começou a investigá-lo.» Para o
caso de haver outro espião no seu seio, e para desviar a
atenção da verdadeira fonte, o MI5 falsificou um relatório
para os arquivos sugerindo que a fuga de informação sobre
a abordagem de Bettaney viera de um diplomata regular
da embaixada soviética. Os soviéticos negaram tudo e
insistiram que a conversa de espionagem do KGB era
propaganda cinicamente falsificada, «destinada a
prejudicar o desenvolvimento normal das relações entre a
União Soviética e a Grã-Bretanha». Na estação do KGB,
Guk continuou a acreditar que toda aquela charada fora
orquestrada pelo MI5 para o embaraçar. (Admitir o
contrário teria sido o equivalente a reconhecer um erro de
proporções épicas.) Gordievsky não detetou qualquer sinal
de suspeita relativamente à verdadeira fonte da exposição
de Bettaney: «Penso que o Guk e o Nikitenko nunca me
relacionaram com o “Koba”.» 
No meio de toda a especulação, e dedicando-se os
jornais ao sensacional caso Bettaney, a verdade nunca
veio à tona: o homem que estava na penitenciária de
Brixton com 10 acusações de violação da Lei de Segredos
Oficiais tinha sido colocado ali por Oleg Gordievsky. 

48 Um programa humorístico de rádio. (N. da T.)

50Em russo no original: casa de campo que, embora possa ser de habitação
permanente, é usada sobretudo na primavera e no verão. (N. da T.)
51Puck, ou Robin Goodfellow, é uma personagem de Sonho de Uma Noite de
Verão, de William Shakespeare. É um inteligente e jocoso duende, e está sempre
a pregar partidas. É ele que cria o drama na história dos dois apaixonados, ao
separá-los numa floresta encantada. (N. da T.)
10. Mr. Collins e Mrs. Thatcher 

A «Dama de Ferro» tinha desenvolvido um fraquinho pelo


seu espião russo. 
Margaret Thatcher nunca conhecera Oleg Gordievsky.
Não sabia o seu nome e referia-se a ele, de forma
inexplicável e insistente, como «Mr. Collins». Sabia que ele
espiava a partir da embaixada russa, preocupava-se com a
tensão pessoal a que era sujeito e estava convencida de
que ele poderia «dar o salto a qualquer momento» e
desertar. A primeira-ministra insistia que, se isso
acontecesse, ele e a família deveriam receber o melhor
tratamento possível. Viria a dizer que o agente russo não
era um simples «fornecedor de informações secretas»,
mas uma figura heroica e semi-imaginada, a trabalhar em
prol da liberdade em condições de extremo perigo. Os
relatórios que ele produzia eram trazidos pelo seu
secretário particular, numerados e rotulados «ultrassecreto
e pessoal» e «apenas para o RU», o que significava que
não seriam partilhados com outros países. A primeira-
ministra consumia-os avidamente: «Lia, palavra por
palavra, tomava notas, fazia perguntas e os documentos
voltavam com as suas anotações, sublinhados, pontos de
exclamação e comentários.» Nas palavras do seu biógrafo,
Charles Moore, Thatcher «não estava imune a entusiasmar-
se com o secretismo e com o romantismo da espionagem»,
mas também sabia que o russo fornecia informações
políticas verdadeiramente preciosas: «As comunicações de
Gordievsky [...] mostravam-lhe, como nenhumas outras,
como o comando soviético reagia ao fenómeno ocidental e,
na verdade, a ela.» O espião abriu uma janela para o
pensamento do Kremlin, para a qual ela espreitava com
fascínio e gratidão. «É provável que nenhum primeiro-
ministro alguma vez tenha seguido o caso de um agente
britânico com tanta atenção como a senhora Thatcher
dedicou a Gordievsky.» 
Enquanto as agências de informações britânicas
andavam à procura de Koba, o KGB trabalhava com afinco
para garantir que Thatcher perdia as eleições de 1983. Aos
olhos do Kremlin, Thatcher era a «Dama de Ferro» – uma
alcunha que pretendia ser um insulto do jornal militar
soviético que a criou, mas que ela adorou – e o KGB estava
a organizar «medidas ativas» para a debilitar desde que
ela chegara ao poder, em 1979, fazendo inclusive uso do
expediente de colocar artigos negativos nas mãos de
jornalistas de esquerda solidários com a causa soviética. O
KGB ainda tinha contactos na esquerda e Moscovo
mantinha a ilusão de que conseguiria influenciar as
eleições a favor do Partido Trabalhista, cujo líder
continuava listado nos ficheiros do KGB como um
«contacto confidencial». Num intrigante prenúncio dos
tempos modernos, Moscovo preparava-se para usar
truques sujos e interferência oculta para mudar umas
eleições democráticas a favor do candidato da sua
preferência. 
Se o Partido Trabalhista vencesse, Gordievsky estaria
numa posição verdadeiramente bizarra: passar segredos
do KGB a um governo cujo primeiro-ministro já recebera
dinheiro do KGB. A encarnação anterior de Michael Foot
como Agente BOOT manteve-se um segredo muito bem
guardado; os esforços do KGB para mudar o resultado das
eleições não tiveram qualquer impacto, e, no dia 9 de
junho, Margaret Thatcher obteve uma vitória esmagadora,
reforçada pela vitória nas Malvinas no ano anterior. Com
um novo mandato e equipada em segredo com o
conhecimento que Gordievsky possuía da psicologia do
Kremlin, Thatcher concentrou-se na Guerra Fria. E o que
viu foi profundamente alarmante. 
No segundo semestre de 1983, o Leste e o Ocidente
pareciam estar a dirigir-se para um conflito armado e
talvez terminal, impulsionado por uma «combinação
potencialmente letal de retórica reaganiana e paranoia
soviética». Num discurso no Parlamento britânico, o
presidente americano prometeu «deixar o marxismo-
leninismo na pilha de cinzas da história»52. O reforço das
forças armadas norte-americanas continuava a bom ritmo,
acompanhado por uma série de operações psicológicas,
entre as quais se contavam penetrações no espaço aéreo
soviético e operações navais clandestinas que
demonstravam como a NATO podia aproximar-se das bases
militares russas. Estas operações destinavam-se a
provocar ansiedade à Rússia, e conseguiram: o programa
RYAN intensificou-se e as estações do KGB foram
bombardeadas com ordens para encontrar provas de que
os Estados Unidos e a NATO estavam a preparar um
ataque nuclear surpresa. Em agosto, um telegrama
pessoal do diretor do Primeiro Diretório Principal (mais
tarde diretor do KGB), Vladimir Kryuchkov, dava instruções
às rezidenturas para monitorizarem os preparativos da
guerra, como a «infiltração secreta de equipas de
sabotagem com armas nucleares, bacteriológicas e
químicas» na União Soviética. As estações do KGB que
relatavam atividades suspeitas eram elogiadas; as que não
o faziam eram fortemente criticadas, e mandavam-nas
fazer melhor. Guk foi obrigado a admitir «falhas» nos seus
esforços para descobrir «planos específicos dos Estados
Unidos e da NATO para a preparação de um ataque
surpresa contra a URSS». Gordievsky menosprezou a
Operação RYAN como «ridícula», mas os seus relatórios
para o MI6 não deixavam espaço para dúvida: o comando
soviético estava com medo, preparado para o combate e
em pânico o suficiente para acreditar que a sua
sobrevivência podia depender de uma ação preventiva,
uma situação que piorou muito na sequência de um trágico
acidente no mar do Japão. 
Às primeiras horas de 1 de setembro de 1983, um avião
de interceção abateu um 747 da Korean Air Lines que se
tinha desviado para espaço aéreo soviético, matando
todos os 269 passageiros e a tripulação. O abate do voo
007 da KAL fez as relações entre o Leste e o Ocidente
mergulharem num nível ainda mais perigoso. Moscovo
começou por negar qualquer papel no abate do aparelho,
mas posteriormente alegaria que o avião comercial era um
avião espião que violara o espaço aéreo soviético numa
provocação deliberada dos Estados Unidos. Ronald Reagan
condenou o «massacre do avião coreano» como um «ato
de barbárie [...] [e] desumana brutalidade», intensificando
a revolta interna e internacional e entregando-se ao que
um funcionário americano chamaria mais tarde «a alegria
da mais profunda arrogância»53. O Congresso aprovou um
novo aumento do orçamento da defesa. Por sua vez,
Moscovo interpretou a fúria do Ocidente com o que
acontecera ao 007 da KAL como uma histeria moral
fabricada no prelúdio de um ataque. Em vez de um pedido
de desculpas, o Kremlin acusou a CIA de um «ato
criminoso e provocador». Uma grande quantidade de
telegramas muito urgentes chegou à estação do KGB de
Londres com instruções para proteger os bens e cidadãos
soviéticos contra um possível ataque, culpar a América e
reunir informações para reforçar as teorias da conspiração
de Moscovo. Mais tarde, a estação do KGB de Londres seria
elogiada pelo Centro pelos seus «esforços para neutralizar
a campanha antissoviética no caso do avião da Coreia do
Sul». Em sofrimento e acamado devido ao que seria a sua
doença final, Andropov atacou violentamente o que
considerou a «ultrajante psicose militarista» da América.
Gordievsky trouxe os telegramas da embaixada e passou-
os ao MI6. 
O abate do voo 007 da KAL deveu-se a básica
incompetência humana dos dois pilotos, um coreano e um
russo. Porém, os relatos de Gordievsky ao MI6 mostravam
claramente como, sob a pressão da tensão cada vez maior
e da incompreensão mútua, uma simples tragédia tinha
sido exacerbada para tomar proporções de uma situação
política extraordinariamente perigosa. 
Esta atmosfera de feroz desconfiança, incompreensão e
agressão foi agravada por um acontecimento que levou a
Guerra Fria à beira de uma guerra real. 
«ABLE ARCHER 83» foi o nome de código de manobras
militares da NATO, que decorreram entre 2 e 11 de
novembro de 1983 e se destinavam a simular a escalada
de um conflito que culminaria num ataque nuclear. Este
tipo de ensaio geral militar fora realizado muitas vezes no
passado pelos dois lados. ABLE ARCHER envolveu 40 mil
tropas norte-americanas e de outros países da NATO e da
Europa Ocidental e foi lançado e coordenado através de
comunicações encriptadas. O exercício de treino criado
pelo posto de comando imaginava uma situação em que as
Forças Azuis (NATO) defendiam os seus aliados depois de
as Forças Cor de Laranja (países do Pacto de Varsóvia)
enviarem tropas para a Jugoslávia, antes de invadirem a
Finlândia, a Noruega e, por fim, a Grécia. À medida que o
conflito simulado se intensificava, uma guerra
convencional pareceria escalar para uma guerra com
armas químicas e nucleares, permitindo que a NATO
treinasse os procedimentos de lançamentos nucleares. Não
foram usadas armas reais. Era uma simulação, porém, na
atmosfera febril que se seguiu ao incidente com o voo 007,
os alarmistas do Kremlin viram uma coisa muito mais
sinistra: um estratagema destinado a camuflar os
preparativos para a guerra a sério, que seria um ataque
nuclear do tipo que Andropov previa, e que a Operação
RYAN procurava, há mais de três anos. A NATO começou a
simular um realista ataque nuclear no preciso momento
em que o KGB tentava detetar um. Diversas características
sem precedentes do ABLE ARCHER reforçaram a
desconfiança soviética de que aquelas manobras eram
mais do que um treino: um grande fluxo de comunicações
secretas entre os Estados Unidos e o Reino Unido um mês
antes (na verdade, uma reação à invasão de Granada
pelos Estados Unidos); a participação inicial de líderes
ocidentais; e diferentes padrões de movimentos de
pessoas nas bases norte-americanas na Europa. O
secretário do Governo, Sir Robert Armstrong, informaria
mais tarde a primeira-ministra Thatcher que os soviéticos
tinham reagido com profundo alarme porque o exercício
«decorreu durante um importante feriado soviético [e]
tinha a forma de atividade e alertas militares reais, não
apenas manobras». 
No dia 5 de novembro, a rezidentura de Londres recebeu
um telegrama do Centro a avisar que, quando os Estados
Unidos e a NATO decidissem iniciar um ataque, os seus
mísseis seriam lançados nos sete a dez dias seguintes. Guk
recebeu ordens para efetuar vigilância urgente no sentido
de detetar qualquer «atividade invulgar» em locais-chave:
bases nucleares, centros de comunicações, bunkers do
governo e, acima de tudo, no número 10 de Downing
Street, onde os funcionários estariam a trabalhar
freneticamente para se prepararem para a guerra, «sem
informar a imprensa». Numa ordem que diz muito acerca
das suas prioridades, o KGB deu instruções aos
funcionários para monitorizarem indícios de que membros
«da elite política, económica e militar» estavam a evacuar
as suas famílias de Londres. 
O telegrama, mostrado ao MI6 por Gordievsky, foi o
primeiro sinal recebido pelo Ocidente de que os soviéticos
estavam a reagir às manobras militares de uma forma
invulgar e profundamente alarmante. Dois (ou talvez três)
dias mais tarde, um segundo telegrama foi enviado para as
rezidenturas do KGB a comunicar, erradamente, que as
bases americanas tinham sido colocadas em alerta. O
Centro ofereceu diversas explicações, «uma das quais foi
que a contagem decrescente para um ataque nuclear
começara a coberto do ABLE ARCHER». (Na verdade, as
bases estavam apenas a reforçar a segurança na
sequência do ataque terrorista aos funcionários da
embaixada americana em Beirute.) As informações de
Gordievsky chegaram demasiado tarde para o Ocidente
parar o exercício militar. Nesta altura, a União Soviética
tinha começado a preparar o seu arsenal nuclear: aviões
na Alemanha Oriental e na Polónia foram equipados com
ogivas nucleares, o nível de alerta para cerca de 70
mísseis SS-20 apontados para a Europa Ocidental foi
aumentado e submarinos soviéticos com mísseis balísticos
nucleares foram lançados sob o gelo do Ártico para evitar a
deteção. A CIA comunicou atividade militar nos estados do
Báltico e na Checoslováquia. Alguns analistas acreditam
que a União Soviética preparou os seus silos de mísseis
balísticos intercontinentais para serem lançados, mas no
último momento optou por não o fazer. 
No dia 11 de novembro, ABLE ARCHER foi concluído na
data prevista, os dois lados baixaram lentamente as armas
e um aterrador impasse mexicano54, desnecessário e que
passou despercebido do grande público, chegou ao fim. 
Os historiadores não estão de acordo em relação a como
o mundo esteve perto de uma guerra. A história autorizada
do MI5 descreve ABLE ARCHER como «o momento mais
perigoso desde a Crise dos Mísseis de Cuba de 1962»55.
Outros alegam que Moscovo soube sempre que se tratava
de um exercício e que os preparativos soviéticos para uma
guerra nuclear foram apenas uma habitual intimidação. O
próprio Gordievsky estava calmo: «Pareceu-me que era
mais um perturbador reflexo da paranoia crescente de
Moscovo e que, na ausência de outros indicadores, não era
um motivo para preocupação urgente.»  
Porém, no Governo britânico as pessoas que liam os
relatórios de Gordievsky e o fluxo de telegramas de
Moscovo acreditavam que uma catástrofe militar tinha sido
evitada por um triz. Nas palavras de Geoffrey Howe, o
ministro dos Negócios Estrangeiros britânico: «Gordievsky
deixou-nos convencidos do extraordinário, mas genuíno,
medo russo de um ataque nuclear real. A NATO mudou de
forma deliberada alguns aspetos das manobras militares
para que os soviéticos não tivessem dúvidas de que era
apenas um exercício.»56 A verdade é que, ao afastar-se da
prática comum, a NATO pode ter reforçado a impressão de
intenções sinistras. Um relatório posterior do Joint
Intelligence Committee (JIC), a comissão conjunta de
informações, concluiu: «Não podemos descartar a
possibilidade de que pelo menos alguns
funcionários/oficiais soviéticos podem ter interpretado mal
o ABLE ARCHER [...] como representando uma ameaça
real.» 
Margaret Thatcher estava muito preocupada. A
combinação de receios soviéticos e retórica reaganiana
podiam ter resultado numa guerra nuclear, mas a América
não estava plenamente consciente da situação que
contribuíra para criar. A primeira-ministra declarou que
alguma coisa teria de ser feita «para remover o perigo de a
União Soviética ter uma reação exagerada se avaliasse
mal as intenções do Ocidente». O Ministério dos Negócios
Estrangeiros deveria «considerar com carácter de urgência
a melhor maneira de abordar os americanos sobre a
questão de possíveis equívocos em relação a um ataque
surpresa da NATO». O MI6 aceitou «partilhar as revelações
de Gordievsky com os americanos». A distribuição de
material NOCTON foi alargada: o MI6 informou
especificamente a CIA de que o KGB estava convencido de
que as manobras militares tinham sido um prelúdio
deliberado para o início da guerra. 
«Não percebo como é que eles podem acreditar nisso»57,
declarou Ronald Reagan quando lhe disseram que o
Kremlin temera verdadeiramente um ataque nuclear
durante o ABLE ARCHER, «mas é um assunto para
refletir.» 
Na verdade, o presidente dos Estados Unidos já tinha
pensado bastante na perspetiva do apocalipse nuclear. Um
mês antes, ficara «muito deprimido» depois de assistir a
The Day After [O Dia Seguinte], um filme sobre uma cidade
no Midwest americano que é destruída por um ataque
nuclear. Pouco depois do ABLE ARCHER, o presidente
esteve numa reunião no Pentágono sobre o
«fantasticamente horrível» impacto de uma guerra nuclear.
Mesmo que a América «vencesse» um conflito desse tipo,
era provável que 150 milhões de americanos perdessem a
vida. Reagan descreveu a reunião como «uma experiência
que deu muito que pensar». Nessa noite, escreveria no seu
diário: «Penso que os soviéticos estão [...] tão paranoicos
com a possibilidade de ser atacados que [...] devíamos
dizer-lhes que ninguém tem a intenção de fazer tal coisa.» 
Tanto Reagan como Thatcher viam a Guerra Fria em
termos de uma ameaça comunista à pacífica democracia
ocidental: graças a Gordievsky, sabiam que a ansiedade
soviética poderia representar um perigo maior para o
mundo do que a agressão soviética. No seu livro de
memórias, Reagan escreveu: «Em três anos aprendi uma
coisa surpreendente acerca dos russos: várias pessoas no
topo da hierarquia soviética tinham genuíno medo da
América e dos americanos [...] Comecei a perceber que
muitos soviéticos nos temiam não apenas como
adversários, mas como potenciais agressores que
poderiam tomar a iniciativa de os atacar com armas
nucleares.»58 
ABLE ARCHER marcou um ponto de viragem, um
momento de aterrador confronto na Guerra Fria, que
passou despercebido dos meios de comunicação e do
público no Ocidente e que desencadearia um lento, mas
percetível, degelo. A administração Reagan começou a
moderar a sua retórica antissoviética. Thatcher decidiu
estender a mão a Moscovo. «Ela sentiu que tinha chegado
o momento de ir para lá da retórica do “império do mal” e
pensar como o Ocidente poderia pôr fim à Guerra Fria.» A
paranoia do Kremlin começou a diminuir, sobretudo depois
da morte de Andropov, em fevereiro de 1984, e embora os
funcionários do KGB tivessem instruções para continuar
atentos a sinais de preparação de um ataque nuclear, o
ímpeto da Operação RYAN começou a desvanecer-se. 
Gordievsky foi em parte responsável. Até ao momento,
os seus segredos tinham sido distribuídos aos Estados
Unidos em pequenos e muito seletivos fragmentos;
doravante, as informações secretas que ele transmitia
seriam partilhadas com a CIA em bocados cada vez
maiores, se bem que ainda camuflados com todo o
cuidado. Dizia-se que as informações sobre o alarme
soviético durante o ABLE ARCHER tinham vindo de um
«agente checoslovaco dos serviços secretos [...]
encarregado de monitorizar grandes exercícios da NATO».
Gordievsky não se importou que o MI6 partilhasse as suas
informações com a CIA. «O Oleg queria», disse um dos
seus controladores britânicos. «Ele queria causar impacto.»
E causou. 
A CIA tinha vários espiões na URSS, mas nenhuma fonte
capaz de fornecer este tipo de «verdadeiro conhecimento
da psicologia soviética» e apresentar «documentos
originais que demonstravam um genuíno nervosismo
perante a possibilidade de um ataque preventivo a
qualquer momento». Robert Gates, vice-diretor de
informações da CIA, leu os relatórios baseados nas
informações de Gordievsky e percebeu que a agência
deixara escapar uma coisa: «A minha primeira reação aos
relatórios foi não apenas que podíamos ter tido uma
grande falha de informações, mas que o aspeto mais
aterrador do ABLE ARCHER era que podíamos ter estado à
beira de uma guerra nuclear sem sequer sabermos.»59
Segundo um resumo interno secreto da CIA sobre o estudo
do susto do ABLE ARCHER, escrito vários anos mais tarde,
«as informações de Gordievsky foram uma epifania para o
presidente Reagan [...] só o seu aviso atempado a
Washington através do MI6 impediu que as coisas fossem
demasiado longe»60. 
A partir do ABLE ARCHER, a essência dos relatórios
políticos de Gordievsky era transmitida a Ronald Reagan
sob a forma de um resumo regular, claramente
proveniente de um único agente. Gates escreveria, anos
mais tarde: «As nossas fontes na União Soviética
forneciam-nos, essencialmente, informações sobre as suas
forças armadas e sobre investigação e desenvolvimento
militar. O que Gordievsky estava a dar-nos era informações
sobre a forma de pensar do comando – e esse tipo de
informações era tão raro para nós como dentes nas
galinhas.» Reagan estava «muito comovido» com o que lia,
pois sabia que vinha de uma pessoa que arriscava a vida
algures no interior do sistema soviético. As informações do
MI6 eram «tratadas como as mais sagradas das coisas
sagradas na CIA, vistas apenas por um pequeno grupo que
as lia em papel, em condições rigorosas»61, antes de as
folhas serem guardadas e enviadas para a Sala Oval. As
informações de Gordievsky sustentavam «a convicção de
Reagan de que teria de ser feito um esforço maior não
apenas para reduzir a tensão, mas para pôr fim à Guerra
Fria». A CIA estava agradecida, mas frustrada, e
profundamente curiosa quanto à origem daquele fluxo
constante de segredos. 
Os espiões têm tendência para empolar a importância da
sua profissão, mas a realidade da espionagem é que
muitas vezes só faz uma pequena diferença duradoura. Os
políticos adoram informações confidenciais porque são
secretas, o que não as torna, necessariamente, mais
fiáveis do que as informações de acesso público, e muitas
vezes acabam por ser menos fiáveis. Se o inimigo tiver
espiões no nosso campo, e nós tivermos espiões no dele, o
mundo pode ser um pouco mais seguro, mas, no fundo,
acabamos onde começámos, algures no espectro obscuro
e não quantificável do «eu sei que tu sabes que eu sei...». 
No entanto, muito de vez em quando, os espiões têm um
profundo impacto na história. A decifração do código
Enigma reduziu a Segunda Guerra Mundial em pelo menos
um ano. Uma espionagem de sucesso e engano
estratégico sustentaram a invasão da Sicília pelos Aliados
e os desembarques do Dia D. A infiltração soviética nos
serviços secretos ocidentais nas décadas de 1930 e 1940
conferiu a Estaline uma vantagem crucial nas suas
relações com o Ocidente. 
O panteão dos espiões que mudaram o mundo é
pequeno e seleto, e Oleg Gordievsky faz parte dele: ele
desvendou o funcionamento interno do KGB num momento
crucial da história, revelando não apenas o que os serviços
secretos soviéticos estavam a fazer (e o que não faziam),
mas o que o Kremlin estava a pensar e a planear, e ao
fazê-lo transformou a forma como o Ocidente pensava na
União Soviética. Gordievsky arriscou a vida para trair o seu
país e tornou o mundo um pouco mais seguro. Um
documento interno secreto da CIA dizia que o susto do
ABLE ARCHER foi «o último paroxismo da Guerra Fria». 
 
 
Milhares de pessoas encheram a Praça Vermelha para o
funeral de Yuri Andropov no dia 14 de fevereiro de 1984.
Entre os dignitários estrangeiros encontrava-se Margaret
Thatcher, num elegante vestido preto e parecendo um
pouco mais forte do que era habitual devido a um saco de
água quente encaixado por baixo do casaco para
minimizar o frio de Moscovo. A primeira-ministra britânica
comentou com o vice-presidente americano George Bush
que o funeral era «uma dádiva» para as relações entre o
Leste e o Ocidente e assumiu uma postura virtuosa.
Enquanto outros líderes ocidentais «conversaram
distraidamente» durante o funeral, e até se riram quando o
caixão de Andropov foi deixado cair pelos homens que o
transportavam, ela manteve-se «adequadamente solene»
durante toda a cerimónia. Um corpulento guarda-costas
britânico, com os bolsos cheios do que o KGB presumiu
que seriam armas, seguiu-a para a receção no Kremlin e
desencantou um par de sapatos de salto alto para a
primeira-ministra calçar. Thatcher passou 40 minutos a
falar com o sucessor de Andropov, um velho e doente
Konstantin Chernenko, e disse-lhe que «tinham uma
possibilidade, talvez a última, de conseguir acordos de
desarmamento fundamentais». Chernenko pareceu-lhe
extremamente idoso, um fóssil vivo do passado comunista.
«Por amor de Deus, tentem arranjar-me um jovem
russo»62, disse aos seus assessores no avião de regresso a
casa. Na verdade, já tinha sido identificada uma pessoa
que poderia ser um bom interlocutor do lado soviético,
uma estrela em ascensão no Politburo, um homem
chamado Mikhail Gorbachev. 
Thatcher desempenhou o seu papel na perfeição,
seguindo um guião que fora escrito, em parte, por
Gordievsky. Antes do funeral, James Spooner pediu-lhe
dicas sobre como Thatcher deveria apresentar-se:
Gordievsky recomendou decoro e simpatia, mas avisou
que os russos eram desconfiados e estavam sempre na
defensiva. «O Oleg providenciou minuciosas instruções
sobre como ela deveria comportar-se», diria o funcionário
do MI6 responsável pela análise e distribuição do
«material» do caso. «No púlpito, a primeira-ministra usou
um vestido preto e um chapéu de pelo, e manteve-se
muito séria. Foi um sedutor desempenho. Ela conhecia a
psicologia dos russos. Sem [a contribuição de] Oleg, teria
sido muito mais dura. Graças a Oleg, soube tirar o maior
partido da sua presença. Eles repararam.» 
Na embaixada soviética em Londres, o embaixador Popov
disse numa reunião de funcionários da embaixada, onde
também estava o contingente do KGB, que a presença de
Thatcher no funeral caíra extremamente bem em Moscovo.
Popov declarou que «a sensibilidade da primeira-ministra
perante a ocasião e o seu formidável cérebro político
tinham causado uma profunda impressão. A senhora
Thatcher não se poupou a esforços para encantar os seus
anfitriões». 
Aqui estava um ciclo perfeito de informações: Gordievsky
orientava a primeira-ministra sobre como reagir na
presença dos soviéticos e depois comunicava a reação
soviética àquele comportamento. Os espiões costumam
fornecer factos, deixando a análise a cargo de quem os
recebe; com a sua perspetiva única, Gordievsky conseguiu
interpretar para o Ocidente o que o KGB pensava,
esperava e temia. «Essa é a essência do contributo do
Oleg», diria o analista do MI6. «Entrar nas mentes de
outros e perceber a sua lógica, a sua racionalidade.» 
A espionagem de Gordievsky foi positiva e negativa: na
sua forma positiva, forneceu importantes segredos, avisos
atempados e discernimento; na forma negativa, mas
igualmente útil, ofereceu garantias de que a estação do
KGB na Grã-Bretanha era, em grande medida, inútil, tão
pesada, ineficaz e falsa como o homem que a dirigia.
Arkadi Guk escarnecia dos seus superiores no Centro, mas
apressava-se a cumprir tudo o que eles exigiam, por muito
absurdo que fosse. Quando ouviu na BBC que ocorrera um
exercício com mísseis de cruzeiro em Greenham Common,
o rezident apressou-se a fabricar um relatório onde
indicava que tivera conhecimento do teste nuclear antes
de este ser realizado. Quando ocorreram enormes
manifestações antinucleares na Grã-Bretanha, Guk
chamou a si o mérito, insistindo, falsamente, que as
«medidas ativas» do KGB tinham dado origem aos
protestos. Dois suicídios de cidadãos soviéticos em
Londres, um na delegação comercial e o outro da mulher
de um funcionário, fizeram as suspeitas de Guk disparar.
Este mandou os corpos para Moscovo, com ordens para
investigarem se eles tinham sido envenenados, o que os
cientistas do KGB confirmaram obedientemente – muito
embora um se tivesse enforcado e a outra se tivesse
atirado de uma varanda. Gordievsky pensou que era «mais
um sinal de como a paranoia soviética se alimentava das
suas próprias neuroses». O rezident do KGB disfarçou com
todo o cuidado a sua incompetência no caso Bettaney,
garantindo a Moscovo que tudo não passara de uma
complexa artimanha dos serviços secretos britânicos. 
Guk guardava ciosamente os seus segredos, mas
Gordievsky conseguia recolher uma quantidade
surpreendente de informações úteis, que iam desde
coscuvilhices da embaixada até informações de
importância política e nacional. O KGB tinha uma série de
ilegais na Grã-Bretanha, e embora a Linha N operasse com
alguma autonomia no interior da rezidentura, Gordievsky
alertava o MI5 sempre que sabia informações sobre a rede
de espiões infiltrados. No auge da greve dos mineiros em
1984-1985, Gordievsky soube que o Sindicato Nacional dos
Mineiros (NUM – National Union of Mineworkers) tinha
contactado Moscovo para pedir apoio financeiro. O KGB
opôs-se ao financiamento dos mineiros. O próprio
Gordievsky disse aos colegas do KGB que seria
«indesejável e improdutivo» para Moscovo ser visto a
financiar atos industriais. Mas o comité central do Partido
Comunista tinha uma opinião diferente e aprovou uma
transferência de mais de um milhão de dólares do Banco
Soviético de Comércio Externo (afinal, o banco recetor
suíço ficou desconfiado e a transferência nunca
aconteceu). Thatcher vilipendiava os mineiros como «o
inimigo interno» – um preconceito sem dúvida reforçado
pela descoberta de que o inimigo externo estava
preparado para financiar a sua luta. 
O radar da espionagem de Gordievsky conseguia captar
outros inimigos, estes longe de Moscovo. No dia 17 de abril
de 1984, uma mulher-polícia chamada Yvonne Fletcher foi
morta por disparos de metralhadora vindos da embaixada
da Líbia em St. James’s Square, no centro de Londres. No
dia seguinte, a rezidentura do KGB recebeu um telegrama
do Centro com «informações fiáveis de que os disparos
tinham sido pessoalmente ordenados por Kadhafi» e a
afirmar que «um experiente assassino contratado da
estação de serviços secretos líbia em Berlim Oriental
viajara para Londres para supervisionar o tiroteio».
Gordievsky mostrou logo o telegrama ao MI6 – reforçando
o argumento para uma resposta musculada. O governo de
Thatcher cortou relações diplomáticas com a Líbia,
expulsou os capangas de Kadhafi e expurgou efetivamente
o terrorismo líbio da Grã-Bretanha. 
Por vezes, os serviços secretos ponderam
demoradamente. Gordievsky alertou o MI6 pela primeira
vez para as atividades de espionagem de Arne Treholt em
1974, mas o serviço de segurança norueguês demorou
uma década a agir, em parte para proteger a fonte.
Entretanto, a glamorosa estrela da esquerda norueguesa
tinha subido até se tornar diretor do departamento de
comunicação no Ministério dos Negócios Estrangeiros
norueguês. No início de 1984, Gordievsky foi avisado de
que os noruegueses estavam prontos para atacar e
perguntaram-lhe se se opunha; como fora ele que dera a
primeira dica, a sua segurança poderia ficar comprometida
se Treholt fosse detido. Gordievsky não hesitou: «Claro. Ele
é um traidor para a NATO e para a Noruega, por isso é
evidente que devem prendê-lo o mais depressa possível.» 
Treholt foi detido no aeroporto de Oslo no dia 20 de
janeiro de 1984 pelo chefe da contraespionagem
norueguesa. Pensa-se que ia a caminho de Viena para se
encontrar com Gennadi «o Crocodilo» Titov, o seu
controlador do KGB e companheiro de almoço nos últimos
13 anos. Cerca de 65 documentos secretos foram
encontrados na pasta que ele transportava. Outros 800
documentos seriam descobertos em sua casa. Num
primeiro momento, Treholt negou ser um espião, mas
quando lhe mostraram uma fotografia onde estava com
Titov, ele vomitou violentamente e desabafou: «O que
dizer?»63 
Titov também foi intercetado pelos serviços secretos
noruegueses e propuseram-lhe um acordo: se ele aceitasse
mudar de lado ou desertar para o Ocidente, receberia meio
milhão de dólares americanos. Ele recusou e foi expulso do
país. 
No julgamento, Treholt foi acusado de infligir «danos
irreparáveis» à Noruega ao passar segredos a agentes
soviéticos e iraquianos em Oslo, Viena, Helsínquia, Nova
Iorque e Atenas. Foi acusado de receber 81 mil dólares do
KGB. Os jornais descreveram-no como o «maior traidor da
Noruega desde Quisling», o colaboracionista nazi durante a
guerra cujo nome ganhou o significado de «traidor». O juiz
observou que ele expressava «opiniões irrealistas e
exageradas sobre a sua importância». Foi considerado
culpado de traição e condenado a 20 anos de prisão. 
No fim do verão de 1984, James Spooner foi transferido
para outro cargo e Simon Brown, o antigo chefe do
departamento soviético, a secção P5, que falava russo e
que seguira Bettaney vestido de vagabundo, sucedeu-lhe
como controlador de Gordievsky. Brown tinha sido posto a
par do caso NOCTON em 1979 quando, como chefe de
estação em Moscovo, fora responsável pela monitorização
dos locais de sinal da Operação PIMLICO, a operação de
fuga. Não houve a mesma química pessoal imediata que
Gordievsky sentira com Spooner. Durante o primeiro
encontro, Veronica preparou aipo para o almoço e pôs a
chaleira ao lume. Brown estava nervoso. «O meu
pensamento foi o seguinte: se eu não falar russo fluente,
ele vai pensar que sou um idiota. Depois, ao ouvir a
gravação, fiquei horrorizado quando só consegui ouvir o
apito cada vez mais alto de uma chaleira a ferver e o
barulho de um homem a comer aipo.» Sarah Page, a
secretária do MI6, estava sempre presente naqueles
encontros, discretamente serena e tranquilizadora: «A sua
presença calma contribuiu muito para humanizar e
apaziguar o ambiente um pouco carregado.» 
Entretanto, Gordievsky continuava a fazer o seu trabalho
oficial, a desenvolver contactos políticos, alguns deles
genuínos simpatizantes soviéticos, e outros, como
Rosemary Spencer, que lhe davam o útil «milho para as
galinhas». A investigadora da sede do Partido Conservador
não era a única agente de acesso controlado que ignorava
que Gordievsky era um agente duplo a trabalhar para os
serviços secretos britânicos e que estava a ser usada pelo
MI5 para lhe dar informações. Neville Beale, um membro
conservador do Greater London Council64 por Finchley e
antigo presidente da Associação Conservadora de Chelsea,
entrava no rol. Beale fornecia a Gordievsky documentos
camarários que não eram confidenciais, bastante
aborrecidos por sinal, mas que consolidavam a prova da
sua capacidade de extrair informações oficiais. 
O Centro apresentava muitas vezes sugestões para
possíveis recrutas, a maior parte completamente
impraticável e improvável. Em 1984, chegou um telegrama
pessoal do Centro a dar instruções a Gordievsky para
renovar o contacto com Michael Foot, o antigo agente
BOOT. Após a esmagadora derrota nas eleições, Foot
abandonara a liderança do Partido Trabalhista, mas ainda
exercia a função de deputado e era uma importante
personalidade da esquerda. O telegrama referia que,
embora Foot não tivesse qualquer interação com o KGB
desde o fim da década de 1960, «talvez fosse útil retomar
o contacto». Se se soubesse que um espião controlado
pelo MI6 estava a tentar recrutar uma das figuras mais
importantes da política britânica, as repercussões seriam
espetaculares. «Não tenha pressa», aconselhou o MI6.
«Livre-se disso, se puder.» Gordievsky enviou uma
mensagem para o Centro a dizer que tentaria falar com
Foot numa festa, revelaria «com cuidado» que tinha
conhecimento dos seus contactos passados e sondaria as
suas simpatias. Depois não fez nada e esperou que o
Centro esquecesse a ideia – o que aconteceu, durante
algum tempo. 
Nos primeiros dois anos, o caso NOCTON produziu
milhares de diferentes relatórios de espionagem e
contraespionagem, uns com apenas algumas frases, outros
com muitas páginas. Esses relatórios foram divididos e
fragmentados – para o MI5, para Margaret Thatcher, em
alguns círculos de Whitehall e do Ministério dos Negócios
Estrangeiros e, cada vez mais, para a CIA. Outros aliados
selecionados recebiam ocasionais pistas de
contraespionagem, mas apenas quando estavam em causa
importantes interesses. A CIA encontrava-se numa
categoria especial de «nação preferencial». 
O MI6 estava profundamente satisfeito com Gordievsky, e
o KGB também. Em Moscovo, as chefias estavam
impressionadas com o fluxo constante de informações que
ele transmitia como chefe da Linha PR; o MI6 fornecia-lhe
uma quantidade suficiente de informações interessantes
no meio do milho para as galinhas para manter o KGB
gordo e satisfeito; até Guk se mostrava contente com ele,
sem fazer ideia de que o seu bem-sucedido subordinado
estava prestes a dar à sua própria carreira de espião um
ignominioso fim. 
O julgamento de Michael Bettaney começou em Old
Bailey no dia 11 de abril de 1984, sob a segurança mais
apertada possível, com as janelas da sala de audiências
tapadas, uma forte presença policial e uma ligação
telefónica com bloqueador de sinal para a sede do MI5,
para o caso de ser necessária uma consulta durante os
procedimentos. As provas eram tão secretas que a maioria
do julgamento decorreu à porta fechada, sem a presença
de público ou repórteres. Bettaney usava um fato às
risquinhas e uma gravata às bolas e insistiu que a sua
motivação tinha sido «pura e ideológica – não era
homossexual, não estava a ser chantageado e não
trabalhava por lucro». 
Após cinco dias de interrogatório, foi condenado a 23
anos de prisão. 
«O senhor fez da traição a sua linha de ação», declarou
lorde Lane, o presidente do Supremo Tribunal de Justiça,
durante a leitura da sentença. «É muito claro para mim
que o senhor é pueril de muitas formas. Também não
tenho dúvida de que é obstinado e perigoso. Não hesitaria
em revelar aos russos nomes que teriam quase de certeza
levado à morte de várias pessoas.» 
A descrição que Bettaney fez de si mesmo como espião
comunista foi aceite pela imprensa, porque era mais fácil
compreender um homem que tinha passado por uma
«conversão política gradual, mas esmagadora». Os jornais
viram em Bettaney o que queriam ver: «O idiota de tweed
tornou-se um malvado traidor», gritou o Sun. «A guerra fria
da espionagem nunca diminui», escreveu o The Times. Em
comentários homofóbicos, o Daily Telegraph tentou
insinuar que ele era homossexual e, por conseguinte,
implicitamente desleal. «Bettaney parecia apreciar a
companhia da comunidade universitária com pretensões
artísticas.» O Guardian, com tendências de esquerda, foi o
mais compreensivo: «Na sua cabeça, ele estava a usar o
cargo no MI5 para tentar impedir que a Grã-Bretanha e a
Aliança Ocidental entrassem numa nova guerra mundial.»
Em Washington, o Governo americano estava preocupado
(e a rir-se discretamente à socapa) com a forma como os
serviços de informações britânicos tinham sido mais uma
vez vítimas de espionagem interna. «O presidente está
verdadeiramente alarmado», afirmaria um porta-voz da
Casa Branca. Uma fonte da CIA declarou ao Daily Express:
«Temos de nos questionar mais uma vez sobre a segurança
na comunidade dos serviços secretos britânicos.» Um
inquérito subsequente realizado pela Comissão de
Segurança condenou a incapacidade de o MI5 detetar o
perigo que o instável Bettaney representava. O The Times
até questionou se chegara o momento de o MI5 e o MI6 se
unirem numa única agência de informações: «Afinal de
contas, o KGB trabalha a nível interno e internacional.» 
O que nenhum dos jornais adivinhou foi que o primeiro
traidor do MI5 condenado por espionagem tinha sido
denunciado por um espião do MI6 no seio do KGB.
Gordievsky salvara a Grã-Bretanha de uma catástrofe de
informações secretas e, uma vez mais, abriu caminho para
o seu progresso profissional. 
Arkadi Guk foi identificado no testemunho do julgamento
como o chefe da estação do KGB. O corpulento general
russo foi fotografado a sair da sua casa em Kensington
com a esposa, que usava óculos alongados. A sua
fotografia foi estampada nas primeiras páginas dos jornais
por baixo da manchete «Guk, o Espião», o trapalhão chefe
da espionagem soviética que «recusou a primeira
oportunidade que o KGB teve desde a Segunda Guerra
Mundial para recrutar um agente de penetração no interior
do Serviço de Segurança». Guk parecia estar a gostar da
atenção e «pavoneava-se como uma estrela de cinema». 
Esta era a oportunidade perfeita para se livrarem dele e
abrir caminho para Gordievsky subir ainda mais na
hierarquia do KGB e aumentar o acesso a material secreto.
O MI6 pediu a expulsão imediata de Guk. Whitehall tinha
pouca vontade de se envolver noutra polémica
diplomática. Christopher Curwen, o novo diretor da
Contraespionagem e Segurança (DCIS – Director of
Counter-Intelligence and Security) do MI6, referiu que não
haveria uma segunda oportunidade para se livrarem do
rezident: «O Guk teve sempre o cuidado de não se
envolver diretamente nas operações de controlo de
agentes do KGB e é provável que tenha um cuidado ainda
maior no futuro.»65 Algumas pessoas no MI5 também se
manifestaram contra aquela medida, referindo que um
novo responsável pela segurança das estações tinha sido
destacado para Moscovo e seria com toda a certeza
expulso em retaliação se Guk fosse mandado sair do país.
O MI6 argumentou que era um preço que valia a pena
pagar. Com Guk fora do caminho e Nikitenko a chegar ao
fim da comissão de serviço, Gordievsky talvez fosse
promovido a rezident do KGB em Londres. «O que estava
em causa era muitíssimo importante», afirmou um
funcionário superior. «Nada menos que a possibilidade de
termos acesso a todas, ou quase todas, as operações do
KGB contra este país.» Foi elaborada uma carta para
Thatcher enviar para o Ministério dos Negócios
Estrangeiros a declarar que, como fora identificado
publicamente, Guk teria de ser expulso do país. Num
inteligente pequeno pormenor, escreveram «Gouk» na
carta, pois foi assim que o Daily Telegraph, ao contrário de
todos os outros jornais britânicos, grafou o seu nome.
Thatcher lia o Telegraph. A dica para o Ministério dos
Negócios Estrangeiros estava implícita: a primeira-ministra
tivera a informação sobre o chefe dos espiões russos no
jornal que lia todas as manhãs e queria que ele fosse
expulso, por isso, se o Ministério dos Negócios Estrangeiros
continuasse a opor-se à expulsão, ela trataria do assunto
pessoalmente. O estratagema resultou. 
No dia 14 de maio de 1984, Guk foi declarado persona
non grata por «atividades incompatíveis com o seu
estatuto diplomático» e foi-lhe dada uma semana para
fazer as malas e abandonar a Grã-Bretanha. Como era
esperado, os soviéticos retaliaram com a expulsão
imediata do recém-nomeado funcionário do MI5 em
Moscovo. 
Na noite da véspera da partida de Guk houve uma festa
de despedida na embaixada, com enormes quantidades de
comida e bebida e uma sucessão de discursos em honra
do rezident que se ia embora. Quando chegou a sua vez de
falar, Gordievsky usou e abusou da lisonja. «Devo ter
parecido demasiado graxista e ligeiramente hipócrita.»
Mais tarde, Guk aproximou-se a cambalear e balbuciou:
«Aprendeste muito com o embaixador», cujo talento para
os discursos hipócritas era motivo de piada na embaixada.
Se bem que já estivesse bastante embriagado, Guk sentiu
que o seu subordinado estava feliz por vê-lo pelas costas.
No dia seguinte, o general Guk voltou para Moscovo e
desapareceu na mais completa obscuridade. Tinha
embaraçado o KGB e atraíra atenção para a sua pessoa.
Aquilo, mais do que a sua extraordinária incompetência,
era imperdoável. 
Leonid Nikitenko foi nomeado rezident interino e
começou logo a maquinar para tornar o cargo permanente.
Gordievsky tornou-se o seu vice, com maior acesso aos
telegramas e aos dossiês da estação do KGB. De repente,
o MI6 foi inundado com novas informações. O prémio
supremo estava agora ao alcance: se ele conseguisse
chegar ao gabinete do rezident, toda a arca de segredos
da estação passaria a pertencer-lhe. Nikitenko era a única
pessoa que se encontrava no seu caminho. 
Leonid Nikitenko era um dos homens mais inteligentes do
KGB e um dos poucos que consideravam o seu trabalho
uma vocação. Acabaria por dirigir a Divisão K, a área de
contraespionagem do KGB. Um funcionário da CIA que o
conheceu descreveu-o como «um homem forte como um
urso, cheio de vida [...] ele adorava o drama do jogo da
espionagem e era sem dúvida bom no que fazia. Sentia-se
em casa neste universo secreto e adorava cada momento,
um ator num palco que montara para si mesmo, a
representar um papel que ele próprio escrevera»66. Após
mais de quatro anos no Reino Unido, o funcionário de olhos
amarelos da contraespionagem já devia ter voltado para
Moscovo, mas Nikitenko queria o cobiçado cargo de
rezident. Uma comissão de serviço do KGB no estrangeiro
costumava durar três anos, mas por vezes o Centro estava
disposto a prolongar um destacamento, e ele deu início a
uma forte campanha para demonstrar que era o melhor
homem para o cargo; ou, mais precisamente, para mostrar
que Gordievsky não o era. Os dois homens nunca gostaram
um do outro: começou, então, uma guerra para suceder a
Guk, tanto mais intensa por não ser declarada.  
No MI6 foi equacionada a hipótese de nova intervenção
para declarar Nikitenko persona non grata, deixando o
caminho livre para Gordievsky chegar ao topo. O efeito de
dominó estava a funcionar: num trocadilho com o nome de
código do caso, os funcionários responsáveis começaram a
chamar-lhe «efeito NOCTON». A estratégia era tentadora.
Se Gordievsky pudesse ser levado até à posição suprema,
o seu tempo em Londres resultaria em máximos resultados
e no fim da comissão de serviço ele poderia desertar.
Porém, após algum debate, chegou-se à conclusão de que
expulsar Nikitenko seria ir longe demais e «possivelmente
contraproducente». Era normal expulsar dois funcionários
do KGB um a seguir ao outro, tendo em conta a atmosfera
febril da altura; expulsar os três chefes imediatos de
Gordievsky poderia parecer um padrão. 
Maksim Parshikov, o colega mais próximo de Gordievsky,
reparou que o amigo «pareceu entrar no seu ritmo normal.
A partir do momento em que foi promovido a vice-rezident,
o Oleg pareceu menos tenso, mais descontraído, e
comportava-se com mais calma e naturalidade». Alguns
colegas pensaram que ele se julgava muito importante.
Mikhail Lyubimov, o seu amigo e antigo colega, voltara
para Moscovo e tentava a sua sorte como escritor depois
de ter sido despedido. «Ele e eu correspondíamo-nos e eu
ficava aborrecido quando ele não respondia logo, por vezes
só mandando uma carta por cada duas minhas – o poder
estraga as pessoas e o vice-rezident em Londres é um
mandachuva.» Lyubimov não fazia ideia de como o amigo
andava ocupado, atendendo a dois empregos secretos ao
mesmo tempo enquanto maquinava para conseguir outra
promoção. 
A família adaptou-se muito bem à vida em Londres. As
filhas cresciam depressa, falavam fluentemente inglês e
frequentavam uma escola da Igreja Anglicana. Um século
antes, Karl Marx tinha ficado espantado com a facilidade
com que os seus filhos se adaptaram à vida na Grã-
Bretanha: «A ideia de deixarem o país do seu precioso
Shakespeare horroriza-os; eles tornaram-se ingleses até à
medula»67, diria a Sr.ª Marx. Gordievsky estava igualmente
surpreendido, e encantado, ao perceber que era pai de
duas meninas inglesas. Leila também gostava cada vez
mais da vida britânica. O seu inglês melhorou, mas era
difícil fazer amigas inglesas, porque as mulheres estavam
proibidas de conviver com cidadãos britânicos sem ser
acompanhadas. Ao contrário de Gordievsky,
permanentemente tenso entre os colegas, ela relacionava-
se bem com os outros membros da irmandade do KGB e
gostava de tomar chá e conversar com as mulheres dos
colegas da embaixada. «Cresci numa família de
funcionários do KGB»68, disse ela uma vez. «O meu pai
trabalhava para o KGB, a minha mãe trabalhava para o
KGB. Quase todos os habitantes do nosso bairro, onde
passei a juventude, trabalhavam para o KGB. Os pais de
todos os meus amigos e colegas de escola eram
funcionários do KGB. Por isso, nunca considerei o KGB
monstruoso nem o associei a coisas terríveis. Era a minha
vida, o meu quotidiano.» Leila estava orgulhosa da rápida
ascensão do marido e encorajava a sua ambição de chegar
a rezident. Oleg mostrava-se muitas vezes preocupado e
de vez em quando olhava intensamente para o vazio,
como se estivesse noutro mundo. Estava sempre a roer as
unhas. Havia dias em que parecia particularmente
entusiasmado, com um nervoso miudinho. Leila atribuía
aquele comportamento à pressão do importante cargo que
ele ocupava. 
Gordievsky adorava a desinibição de Leila, a sua
vitalidade e dedicação à vida familiar. A ingénua doçura e
a credulidade da mulher constituíam um antídoto para a
vida de subterfúgios que ele vivia. Apesar da falsidade que
apenas ele conhecia, e que os mantinha afastados, nunca
se sentiu tão próximo da mulher como durante aquele
período. «Tínhamos um casamento muito feliz», refletiu.
De vez em quando, perguntava a si mesmo se poderia
contar-lhe o seu segredo e puxá-la para uma cumplicidade
que tornaria aquela união verdadeira e completa. Ela
acabaria por descobrir, quando e se ele desertasse para a
Grã-Bretanha. O MI6 sondou-o em relação à possível
reação da mulher quando esse momento chegasse e
Gordievsky foi categórico: «Ela vai aceitar. É uma boa
esposa.» 
De vez em quando, criticava abertamente Moscovo à
frente de Leila. Numa ocasião, um pouco entusiasmado,
descreveu o regime comunista como «mau, errado e
criminoso». 
«Oh, deixa-te disso», retorquiu Leila. «É só conversa, não
podes fazer nada para mudar o estado de coisas, por isso
de que adianta falar sobre o assunto?» 
Picado, Gordievsky ripostou. «Talvez possa mesmo fazer
alguma coisa. Talvez um dia vejas que consegui fazer
alguma coisa em relação a isso.» 
Mesmo a tempo, controlou-se. «Calei-me. Sabia que, se
continuasse, meteria a boca no trombone, ou ela pelo
menos ficaria desconfiada.» 
Mais tarde, comentou: «Ela não teria compreendido.
Ninguém teria compreendido. Ninguém. Nunca contei a
mais ninguém. Era impossível. Completamente impossível.
Era solitário. Era muito solitário.» Havia uma solidão
escondida na essência do seu casamento. 
Gordievsky adorava a mulher, mas não podia confiar-lhe
a verdade. Leila continuava a ser do KGB. E ele não. 
De férias em Moscovo naquele verão, Oleg foi convocado
à sede do Primeiro Diretório Principal para «discussões de
alto nível» a respeito do seu futuro. Nikolai Gribin, o miúdo
que tocava guitarra prodigiosamente quando o conhecera
na Dinamarca e que agora dirigia o departamento
britânico-escandinavo era «a simpatia em pessoa»;
acenou-lhe com duas possíveis promoções: o cargo de
vice-diretor de departamento em Moscovo e o de rezident
em Londres. Gordievsky indicou com delicadeza, mas
firmeza, a sua preferência pelo último cargo. Gribin
aconselhou paciência: «Quanto mais uma pessoa se
aproxima do cargo de diretor de estação, maior é o perigo,
mais intensas as intrigas.» No entanto, comprometeu-se a
dar todo o apoio a Gordievsky. 
A conversa mudou para política e Gribin falou com
entusiasmo sobre uma brilhante estrela em ascensão no
firmamento comunista, um homem chamado Mikhail
Gorbachev. Filho de um maquinista de ceifeiras-
debulhadoras, Gorbachev tinha subido depressa na
hierarquia comunista, tornando-se membro de pleno
direito do Politburo antes dos 50 anos. Era vastamente
apontado como o provável sucessor do moribundo
Chernenko. Gribin revelou que o KGB tinha «chegado à
conclusão de que o Gorbachev era a melhor aposta para o
futuro».  
Margaret Thatcher também chegara à mesma conclusão. 
Gorbachev fora identificado como o enérgico líder russo
que ela esperava; um reformista, um homem de visão que
viajara para além do Bloco de Leste, em contraste com a
tacanha gerontocracia soviética. O Ministério dos Negócios
Estrangeiros tinha analistas a sondar e, em 1984,
Gorbachev aceitou um convite para visitar a Grã-Bretanha
no mês de dezembro seguinte. Charles Powell, o secretário
particular de Thatcher, disse-lhe que a visita constituiria
«uma oportunidade única para tentarem entrar na mente
da geração seguinte de líderes soviéticos»69.  
Também foi uma oportunidade para Gordievsky.
Enquanto chefe das informações políticas na rezidentura,
seria responsável por explicar a Moscovo o que Gorbachev
devia esperar; enquanto agente britânico, também
informaria o MI6 sobre os preparativos russos para a visita.
De uma forma única na história dos serviços secretos, um
espião estava numa posição de influenciar, e até
coreografar, um encontro entre dois líderes mundiais ao
espiar para os dois lados, e informá-los: Gordievsky
poderia aconselhar Gorbachev em relação ao que dizer a
Thatcher; ao mesmo tempo, sugeriria a Thatcher o que
dizer a Gorbachev. E, se o encontro corresse bem, as suas
probabilidades de conseguir o cargo de rezident
aumentariam – e o mesmo aconteceria com a quantidade
de informações confidenciais a que teria acesso. 
A notícia de que o possível futuro líder soviético iria a
Londres mergulhou a estação do KGB num frenesim de
preparativos. De Moscovo chegava um fluxo constante de
instruções, exigindo informações pormenorizadas sobre
todos os aspetos da vida britânica: políticos, militares,
tecnológicos e económicos. A persistente greve dos
mineiros era de especial interesse. Venceriam? Como
estavam a ser financiados? É claro que as greves eram
proibidas na União Soviética. O Centro queria saber
exatamente o que Gorbachev devia esperar dos seus
anfitriões britânicos e o que os serviços secretos britânicos
poderiam estar a planear em termos de surpresas
desagradáveis. Quando Khrushchev visitara Londres em
1956, o MI6 pusera o seu hotel sob escuta, monitorizara
todas as chamadas telefónicas e até enviara um homem-rã
para inspecionar o casco do cruzador em que ele chegara.
 
O legado de desconfiança era profundo dos dois lados.
Gorbachev era um dedicado membro do partido, uma
criação do sistema soviético; Thatcher era uma veemente
opositora do comunismo, uma filosofia que condenava
como imoral e opressiva. «Há consciência no Kremlin?»70,
perguntara um ano antes num discurso na Winston
Churchill Foundation, nos Estados Unidos. «Eles alguma
vez se questionam sobre qual é o objetivo da vida? Para
que serve tudo? [...] Não. O seu credo é desprovido de
consciência, é imune aos conceitos de bem e mal.»
Gorbachev ficou na história como um liberal progressista.
O futuro arquiteto da glasnost (abertura) e da perestroika
(restruturação) transformaria a União Soviética, pondo em
movimento forças que a desmantelariam. No entanto, isso
não era tão percetível em 1984. Thatcher e Gorbachev
encontravam-se em lados opostos de um vasto abismo
político e cultural. Um encontro bem-sucedido não estava
de forma alguma garantido; para haver aproximação
necessitariam de alguma delicada diplomacia e de
manobras sub-reptícias. 
O KGB viu a visita à Grã-Bretanha como uma
oportunidade para reforçar a influência de Gorbachev.
«Envia-nos as melhores informações possíveis», pediu
Gribin a Gordievsky. «Dessa forma, parecerá que ele tem
um intelecto superior.» 
Gordievsky e a sua equipa começaram a trabalhar.
«Arregaçámos mesmo as mangas», recordou Maksim
Parshikov, «e apresentámos relatórios pormenorizados
sobre todos os aspetos fundamentalmente importantes da
política britânica e detalhes sobre todos os intervenientes
britânicos.» Tudo o que Gordievsky recolheu para Nikitenko
enviar para o KGB em Moscovo também entregou ao MI6.
Mais do que isso, os serviços secretos britânicos deram-lhe
informações para ele incluir nos relatórios que eram
enviados para Moscovo: temas para debate, possíveis
pontos de acordo e desacordo, como a greve dos mineiros,
dicas para interagir com as personalidades envolvidas. O
serviço de informações britânico estava efetivamente a
estabelecer a agenda para os encontros que se
avizinhavam, e a instruir os dois lados. 
Mikhail e Raisa Gorbachev chegaram a Londres no dia 5
de dezembro de 1984 para uma visita que duraria oito
dias. Houve tempo para compras e turismo, incluindo uma
devota peregrinação ao assento na Biblioteca Britânica
onde Marx escreveu O Capital, mas na essência a visita foi
uma longa negociação diplomática, com os adversários da
Guerra Fria a sondarem-se com cautela numa série de
encontros em Chequers, a casa de campo da primeira-
ministra. Gorbachev pedia todas as noites um
pormenorizado memorando de três ou quatro páginas, com
uma «previsão do rumo que o encontro do dia seguinte
tomaria». O KGB não tinha essas informações. Mas o MI6
tinha. Aqui estava a oportunidade perfeita para garantir
que as duas equipas estavam em sintonia, ao mesmo
tempo que demonstrava o valor de Gordievsky aos seus
superiores em Moscovo. O MI6 obtinha o documento com
instruções que o Ministério dos Negócios Estrangeiros tinha
preparado para Geoffrey Howe, o ministro dos Negócios
Estrangeiros, com a lista dos pontos que ele abordaria com
Gorbachev e a sua equipa. O documento era depois
passado a Gordievsky, que voltava rapidamente para a
estação do KGB, o datilografava sem demora em russo e o
entregava ao responsável pelos relatórios para que fosse
incluído no memorando diário. «Sim!», exclamava
Nikitenko, quando o lia. «É precisamente disto que
precisamos.» 
O briefing do Ministério dos Negócios Estrangeiros para
Geoffrey Howe tinha-se tornado o briefing de Mikhail
Gorbachev. «E era mandado, palavra por palavra.» 
A visita de Gorbachev à Grã-Bretanha foi um sucesso
estrondoso. Apesar das diferenças ideológicas, Thatcher e
Gorbachev pareciam estar em sintonia. É evidente que
houve momentos de tensão: Thatcher falou com o seu
convidado sobre os méritos da livre iniciativa e da
concorrência; Gorbachev insistiu que «o sistema soviético
era superior» e convidou-a a ver por si mesma como os
povos soviéticos viviam «felizes». Discutiram sobre o
futuro dos dissidentes, entre eles o físico Andrei Sakharov,
e sobre a corrida ao armamento. Numa troca de palavras
particularmente tensa, Thatcher acusou a URSS de
financiar os mineiros. Gorbachev negou. «A União
Soviética não transferiu fundos para o NUM», declarou, e
lançou um olhar furtivo para o seu chefe de propaganda,
um membro da delegação soviética, antes de acrescentar:
«Tanto quanto sei.» Era mentira, e Thatcher sabia-o. Em
outubro, o próprio Gorbachev tinha aprovado um plano
para doar 1,4 milhões de dólares aos mineiros em greve. 
Todavia, apesar das disputas verbais, os dois líderes
deram-se bem. Era quase como se estivessem a trabalhar
a partir do mesmo guião, o que, de certa forma, era
verdade. O briefing diário do KGB para Gorbachev vinha
com «trechos sublinhados para mostrar gratidão ou
satisfação». Ele lia-o com atenção. «As duas partes
recebiam instruções nossas», disse o analista do MI6.
«Estávamos a fazer uma coisa nova – a tentar usar as
informações, não a distorcê-las, para orientar relações e
abrir novas possibilidades. Éramos um punhado de
pessoas a trabalhar na crista da história.» 
Os observadores repararam na «palpável química
humana em ação». No final dos debates, Gorbachev
declarou-se «muito satisfeito». Thatcher sentia o mesmo:
«A sua personalidade não podia ser mais diferente do
rígido ventriloquismo do apparatchik soviético.»
Gordievsky comunicou o «entusiástico feedback de
Moscovo» ao MI6. 
Num bilhete para Reagan,. Thatcher escreveu: «Sem
dúvida, pareceu-me um homem com quem será possível
negociar. Gostei bastante dele – não tenho qualquer
dúvida de que é totalmente leal ao sistema soviético, mas
está preparado para escutar, para ter um genuíno diálogo
e para tomar as suas decisões.»71 Aquela expressão
tornou-se o slogan da visita, sinónimo da liderança mais
vigorosa que surgiria quando Chernenko morreu e foi por
fim substituído, em março de 1985, por Gorbachev: «Um
homem com quem será possível negociar.» 
A negociação tinha sido possibilitada em parte por
Gordievsky. 
O Centro estava satisfeito. Gorbachev, o candidato
preferido pelo KGB para a liderança, demonstrara
qualidades de estadista e a rezidentura de Londres fizera
um excelente trabalho. Nikitenko recebeu um louvor
especial «por ter conduzido tão bem a viagem». Porém, a
maior parte do crédito pertencia a Gordievsky, o
competente chefe das informações políticas que
apresentara relatórios tão pormenorizados e
conhecedores, baseados em informações recolhidas pelas
suas muitas fontes britânicas. Gordievsky era agora o
principal candidato para o cargo de rezident. 
No entanto, apesar da satisfação de um trabalho bem
feito para o KGB e para o MI6, uma pequena e forte farpa
de ansiedade instalou-se na sua mente. 
A meio da visita de Gorbachev, Nikitenko tinha
convocado o seu vice. Em cima da secretária, o rezident
interino tinha o memorando enviado para Gorbachev, com
as anotações que ele fizera. 
O especialista de contraespionagem do KGB fixou os
olhos amarelos em Gordievsky. «Hum… Um relatório muito
bom sobre o Geoffrey Howe», disse, e calou-se durante
alguns instantes. «Parece um documento do Ministério dos
Negócios Estrangeiros.» 

54Um impasse mexicano é um confronto irresolúvel entre dois ou mais


oponentes em situação de vantagem/desvantagem semelhante. (N. da T.)

64O Conselho da Grande Londres foi uma poderosa organização que controlava
o poder local em toda a área metropolitana londrina e funcionou entre 1965 e
1986. Dirigia os 33 distritos de Londres. (N. da T.)
11. Roleta Russa 

Burton Gerber, o chefe da secção soviética da CIA, era


um especialista no KGB com vasta experiência operacional
na guerra de espionagem com a União Soviética. Nascido
no Ohio, era um homem alto e magro, assertivo e
perseverante, e pertencia a uma nova geração de
funcionários dos serviços secretos americanos que estava
livre da paranoia do passado. Ele estabeleceria as
chamadas «Regras Gerber», que determinavam que todas
as ofertas de espionagem para o Ocidente deviam ser
tomadas a sério e todas as pistas deviam ser investigadas.
Um dos passatempos mais estranhos de Gerber era a
observação de lobos, e havia alguma coisa claramente
vulpina na forma como ele caçava as suas presas do KGB.
Destacado em Moscovo em 1980 como chefe da estação
da CIA, regressara a Washington no início de 1983 para
assumir a direção da divisão mais importante da agência:
o controlo de espiões atrás da Cortina de Ferro. E havia
muitos. A incerteza da década anterior dera lugar, sob o
comando do então diretor da CIA, Bill Casey, a um período
de intensa atividade e considerável sucesso, sobretudo na
esfera militar. Na União Soviética, a agência tinha mais de
100 operações secretas em curso e pelo menos 20 espiões
ativos, mais do que nunca: no interior do GRU, do Kremlin,
das forças armadas e de institutos científicos. A rede de
espiões da CIA incluía diversos funcionários do KGB, mas
nenhum do calibre do misterioso agente que fornecia
material em primeira mão e de alto nível ao MI6. 
O que Burton Gerber não sabia acerca da espionagem na
URSS não valia a pena saber, com uma importante
exceção: não conhecia a identidade do espião do KGB da
Grã-Bretanha. E isso incomodava-o. 
Gerber via o material que era fornecido pelo MI6 e estava
impressionado e intrigado. A gratificação psicológica de
todo o trabalho dos serviços secretos está em sabermos
mais do que os nossos adversários, mas também mais do
que os nossos aliados. Na visão abrangente e global de
Langley, a CIA tinha o direito de saber tudo o que quisesse
saber, fosse o que fosse. 
A relação dos serviços secretos anglo-americanos era
próxima e mutuamente solidária, mas desigual. Com os
seus vastos recursos e uma rede mundial de agentes, a
CIA só rivalizava com o KGB na capacidade de recolher
informações confidenciais. Quando convinha aos interesses
americanos, a CIA partilhava informações com os aliados,
muito embora, como acontece em todas as agências de
informações, as fontes fossem rigorosamente protegidas. A
partilha de informações era recíproca, porém, na opinião
de alguns funcionários da CIA, a América tinha o direito de
saber tudo. O MI6 providenciava informações da mais alta
qualidade, mas, por muito que a CIA insinuasse que
gostaria de saber qual era a origem do material, os
britânicos recusavam-se a revelar a sua fonte com uma
exasperante e obstinada delicadeza. 
As insinuações tornaram-se menos subtis. Numa festa de
Natal, Bill Graver, o chefe de estação da CIA em Londres,
aproximou-se do controlador do departamento do Bloco de
Leste do MI6 e disse: «Pode dizer-me mais sobre esta
fonte? Precisamos de alguma garantia de que as
informações são viáveis, porque são verdadeiramente
boas.» 
O funcionário britânico abanou a cabeça. «Não lhe vou
dizer quem é, mas garanto-lhe que temos total confiança
nessa pessoa e que tem a autoridade necessária para
autenticar estas informações.» Graver não insistiu. 
Aproximadamente na mesma altura, o MI6 pediu um
favor à CIA. Durante anos, os funcionários dos serviços
secretos britânicos tinham feito lóbi no departamento
técnico de Hanslope para o desenvolvimento de uma
eficaz máquina fotográfica secreta, mas a comissão do MI6
vetara sempre o pedido com o fundamento de que não
havia orçamento. O MI6 continuava a usar a antiquada
máquina fotográfica Minox. Porém, sabia-se que a CIA
contratara um relojoeiro suíço para desenvolver uma
engenhosa máquina fotográfica em miniatura escondida
no interior de um banal isqueiro Bic, que tirava fotografias
perfeitas quando usada em conjunto com um fio de 30
centímetros e um alfinete. O fio era preso no fundo do
isqueiro com um pedaço de pastilha elástica; quando o
alfinete que estava na ponta caía num documento, media
o foco ideal e o botão no cimo do isqueiro podia ser
pressionado para tirar a fotografia. O alfinete e o cordel
podiam ser escondidos atrás de uma lapela. O isqueiro
parecia inteiramente inocente. Até acendia cigarros. Esta
seria a máquina fotográfica ideal para Gordievsky. Quando
chegasse o momento de desertar, ele poderia levá-la para
a embaixada e, fotograficamente falando, «esvaziar o
cofre». Numa decisão que chegou a Bill Casey, a CIA
concordou por fim disponibilizar uma das máquinas
fotográficas ao MI6, mas antes de o equipamento ser
entregue ocorreu uma estranha troca de palavras entre a
CIA e o MI6. 
CIA: «Querem isto para algum objetivo especial?» 
MI6: «Temos alguém no interior.» 
CIA: «Nós receberíamos as informações?» 
MI6: «Não necessariamente. Isso não pode ser
garantido.» 
O MI6 não respondia a exigências, lisonjas ou subornos, e
Gerber sentia-se frustrado. Os britânicos tinham alguém
muito bom e estavam a escondê-lo. Como a subsequente
avaliação secreta da CIA sobre o susto causado pelas
manobras militares ABLE ARCHER dizia: «As informações
que chegaram [à CIA] [...] vinham sobretudo dos serviços
secretos britânicos e eram fragmentadas, incompletas e
ambíguas. Além disso, os britânicos protegiam a
identidade da fonte [...] e a sua boa-fé não podia ser
avaliada de forma independente.»72 Aquelas informações
chegavam ao presidente: era embaraçoso não saberem
qual a sua proveniência. 
Assim, com aprovação superior, Gerber lançou uma
discreta caça ao espião. No início de 1985, deu instruções
a um investigador da CIA para descobrir a identidade do
superespião britânico. Em circunstância alguma o MI6
poderia saber o que estava a acontecer. Gerber não via
isto como uma quebra de confiança, e ainda menos como
espiar um aliado; era mais um esclarecimento do que
ficara por explicar, uma prudente e legítima verificação por
comparação. 
Aldrich Ames era o chefe do departamento de
contraespionagem soviética da CIA. Milton Bearden, um
funcionário da CIA que acabaria por assumir a direção da
divisão soviética, escreveu: «O Burton Gerber estava
determinado a identificar a fonte britânica e encarregou o
chefe da contraespionagem da divisão soviética e da
Europa de Leste, Aldrich Ames, de desvendar o enigma.»73
Mais tarde, Gerber declarou que não tinha pedido a Ames
que fizesse o trabalho de detetive, mas a outro funcionário
cujo nome não foi revelado e que era «dotado para aquele
tipo de investigação». Aquele funcionário trabalharia com
Ames, o chefe da contraespionagem. 
O título do cargo de Ames parecia impressionante, mas a
secção do departamento soviético responsável pela
descoberta de espiões e pela avaliação das operações que
eram vulneráveis a infiltração era considerada um trabalho
menor na CIA de Casey, «uma lixeira para inadaptados
vagamente talentosos». 
Ames tinha 43 anos e era um pardacento burocrata do
governo com maus dentes, um problema com a bebida e
uma noiva esbanjadora. Saía todos os dias do seu pequeno
apartamento arrendado em Falls Church, demorava uma
eternidade no trânsito para chegar a Langley e depois
sentava-se à secretária, «a matutar e com pensamentos
negros a respeito do futuro». A sua dívida ascendia a 47
mil dólares e ele fantasiava com um assalto a um banco.
Uma avaliação interna referia a sua «desatenção a
questões de higiene pessoal». O almoço era quase sempre
líquido, e demorado. Rosario passava «o seu muito tempo
livre a gastar o dinheiro de Rick» e a queixar-se de que não
chegava. A sua carreira estagnara. Esta seria a última
promoção. A CIA abandonara-o num momento difícil. E ele
também estava ressentido com o chefe, Burton Gerber,
que o admoestara por ter trazido Rosario para Nova Iorque
a expensas da agência. Talvez a agência devesse ter
percebido que Ames estava a ir por maus caminhos, mas,
como acontecera com Bettaney no MI5, comportamento
estranho, excesso de álcool e um trabalho de pouca
qualidade não eram por si só fundamento para suspeita.
Ames fazia parte da mobília da CIA: em mau estado, mas
familiar. 
A posição e a antiguidade de Ames permitiam-lhe ter
acesso aos dossiês de todas as operações destinadas a
Moscovo. Mas havia um espião soviético que enviava
preciosas informações para a CIA sem contacto direto, cuja
identidade ele desconhecia: um agente de alto nível
controlado pelos britânicos. 
Identificar um espião específico no vasto aparelho do
Governo soviético era uma tarefa intimidante. Nas
palavras de Sherlock Holmes: «Quando eliminamos o
impossível, o que fica, por muito improvável, tem de ser a
verdade.» Foi o que a CIA começou a tentar fazer. Não era
elementar, mas todos os espiões deixam pistas. Os
detetives da CIA começaram a analisar as informações
fornecidas pelo misterioso agente britânico durante os três
anos anteriores e a tentar identificá-lo (ou, talvez,
identificá-la) através de um processo de eliminação e
triangulação. 
É provável que a investigação tenha sido mais ou menos
assim. 
Os pormenores sobre a Operação RYAN fornecidos pelo
MI6 indicavam que a fonte era um funcionário do KGB, e
embora dissessem que o material fora disponibilizado por
um funcionário de nível médio, a qualidade sugeria alguém
num cargo superior. A regularidade dos relatórios sugeria
que o sujeito se encontrava com o MI6 com frequência, o
que, por sua vez, indicava que devia estar colocado fora da
União Soviética e, possivelmente, no Reino Unido – um
palpite reforçado pelo facto de ele parecer «ter
conhecimento de informações sobre a Inglaterra». Um
espião pode ser identificado pelo que produz, mas também
pelo que não produz. O material que era transmitido aos
britânicos continha poucas informações técnicas ou
militares e uma grande quantidade de informações
políticas de alto nível. Logo, o mais provável era que ele
trabalhasse na Linha PR do Primeiro Diretório Principal. Um
agente no seio do KGB teria sem dúvida denunciado uma
série de espiões ocidentais que trabalhavam para os
soviéticos. Onde tinham os soviéticos perdido agentes
recentemente? Haavik e Treholt na Noruega. Bergling na
Suécia. Contudo, a exposição mais dramática de um
espião soviético nos últimos tempos ocorrera na Grã-
Bretanha, com a muito publicitada detenção e julgamento
de Michael Bettaney. 
A CIA conhecia muito bem a estrutura do KGB. O Terceiro
Departamento do PDP englobava a Escandinávia e a Grã-
Bretanha. O padrão parecia apontar para alguém naquele
departamento.  
Uma pesquisa na base de dados da CIA de agentes
conhecidos e possíveis agentes do KGB teria determinado
que apenas um indivíduo estivera na Escandinávia quando
Haavik e Bergling foram apanhados em flagrante, e na
Grã-Bretanha quando Treholt e Bettaney foram presos: um
diplomata soviético de 46 anos, que surgira no radar na
Dinamarca no início da década de 1970. Uma referência
cruzada poderia ter localizado o nome de Oleg Gordievsky
no dossiê da CIA referente a «Standa» Kaplan. Um olhar
mais atento revelaria que os dinamarqueses identificaram
aquele homem como provável funcionário do KGB, mas os
britânicos tinham-lhe concedido um visto de diplomata
bona fide em 1981, em direta contravenção das suas
próprias regras. Recentemente, os britânicos também
haviam expulsado alguns funcionários do KGB, incluindo o
rezident, Arkadi Guk. Estavam a abrir caminho de forma
deliberada para o seu espião? Por fim, uma pesquisa nos
registos que a CIA tinha da Dinamarca na década de 1970
revelou que «um funcionário dos serviços secretos
dinamarqueses deixara escapar que o MI6 recrutara um
funcionário do KGB em 1974 enquanto ele estava
destacado em Copenhaga.»74 Um telegrama para a
estação da CIA em Londres determinou que Oleg
Gordievsky correspondia ao perfil. 
Em março, Burton Gerber tinha a certeza de que
conhecia a identidade do espião que a Grã-Bretanha
escondera durante tanto tempo. 
A CIA tivera uma pequena, mas satisfatória, vitória
profissional sobre o MI6. Os britânicos pensavam que
sabiam uma coisa que os americanos não sabiam; mas
agora a CIA sabia uma coisa que o MI6 não sabia que eles
sabiam. É assim que o jogo é jogado. A CIA atribuiu-lhe o
nome de código aleatório TICKLE, um rótulo
aparentemente neutro para condizer com uma pequena e
inofensiva rivalidade internacional. 
 
 
Em Londres, Gordievsky aguardava notícias de Moscovo
com um entusiasmo crescente, ensombrado por uma
estranha inquietação. Estava na posição mais vantajosa
para ocupar o cargo de rezident, mas, como sempre, o
Centro não tinha pressa. Os sinistros comentários de
Nikitenko a respeito dos seus briefings invulgarmente bem
informados continuavam a perturbá-lo e, no seu íntimo,
censurava-se por não conseguir disfarçar suficientemente
bem. 
Em janeiro foi chamado a Moscovo para um «briefing ao
mais alto nível». 
No seio dos serviços secretos britânicos, a convocatória
desencadeou um debate. Devido à ameaça velada de
Nikitenko, alguns temeram que fosse uma armadilha. Seria
o momento de tirar Oleg da clandestinidade e tratar da sua
deserção? O espião já fizera um trabalho meritório. Alguns
argumentaram que o risco de o deixar regressar à Rússia
era demasiado grande. «Havia aqui um potencial filão
muito valioso. Contudo, se corresse mal, não perderíamos
apenas um agente muito bem colocado. Estávamos
sentados num tesouro de informações que até ao
momento só tivera uma circulação limitada porque não
podia ser plenamente explorado e partilhado sem o
potencial comprometimento do Oleg.» 
Mas o prémio estava agora ao alcance e o próprio
Gordievsky encontrava-se confiante. Não havia sinais de
perigo de Moscovo. A convocatória devia ser um sinal de
que ele vencera a luta de poder com Nikitenko. «Não
ficámos muito preocupados, e ele também não», recordou
Simon Brown. «Preocupava-nos a demora para o
confirmarem no cargo, mas ele estava convencido de que
não devia haver problema.» 
Ainda assim, foi-lhe oferecida a oportunidade de desistir.
«Dissemos-lhe – e estávamos a falar a sério – se quiser
desistir agora, tem essa possibilidade. Teria sido muito
desapontante se ele tivesse aceitado a nossa proposta. Ele
estava tão empenhado como nós. Não viu nenhum grande
perigo.» 
No último encontro antes da partida, Veronica Price
recitou com todo o cuidado a Operação PIMLICO, passo a
passo. 
Quando chegou à sede do PDP em Moscovo, Gordievsky
foi calorosamente recebido por Nikolai Gribin, o diretor do
departamento, que lhe disse que «tinha escolhido o melhor
candidato para suceder a Guk». O anúncio oficial só seria
feito no fim do ano. Passados alguns dias, Oleg seria
apresentado numa conferência interna do KGB como «o
rezident designado em Londres, o camarada Gordievsky».
Gribin ficou furioso com o anúncio prematuro da nomeação
aos colegas do KGB, mas Gordievsky estava aliviado e
encantado: a notícia da promoção já era pública. 
A sua satisfação só foi ligeiramente abalada quando teve
conhecimento do destino dado a um colega, Vladimir
Vetrov, um coronel do KGB da Linha X, o departamento
dedicado à espionagem técnica e tecnológica. A trabalhar
há vários anos em Paris, Vetrov começara a espiar para os
serviços secretos franceses. Com o nome de código
FAREWELL, passou mais de 4000 documentos e
informações que levaram à expulsão de 47 funcionários do
KGB de França. Em Moscovo, no ano de 1982, Vetrov
envolveu-se numa violenta discussão com a namorada
num carro estacionado. Quando um polícia municipal ouviu
a discussão e bateu no vidro, Vetrov convenceu-se de que
estava prestes a ser detido por espionagem e matou-o à
facada. Na prisão, revelou despreocupadamente que
estivera envolvido numa «coisa grande» antes de ser
detido. Uma investigação posterior revelaria a dimensão
da sua traição. O desgraçadamente denominado
FAREWELL75 seria executado no dia 23 de janeiro, alguns
dias antes de Gordievsky voltar para Londres. Vetrov era
um maníaco assassino que tinha provocado a sua própria
destruição, mas aquela execução foi um lembrete do que
acontecia aos traidores do KGB apanhados a espiar para o
Ocidente. 
Quando regressou a Londres no fim de janeiro de 1985,
com novidades sobre a nomeação, a alegria no MI6 foi
efusiva – ou teria sido, se não fosse também totalmente
secreta. Na casa segura de Bayswater, os encontros
adquiriram uma nova urgência e um renovado entusiasmo.
Estavam perante um golpe sem precedentes: em breve, o
seu espião assumiria a direção da estação do KGB em
Londres, com acesso a todos os seus segredos. Depois
disso, subiria sem dúvida ainda mais. Havia rumores de
que estava prestes a ser promovido de novo, e poderia
chegar a general do KGB. Trinta e seis anos antes, Kim
Philby fora promovido a chefe de estação do MI6 em
Washington, DC, um espião do KGB no centro do poder
ocidental. O MI6 fazia agora ao KGB o que o KGB lhe fizera
em tempos. A sorte mudara. As possibilidades pareciam
ilimitadas. 
Gordievsky esperou pela confirmação formal da sua
nomeação numa eufórica estupefação. Uma mudança no
comportamento do amigo deixou Maksim Parshikov
bastante intrigado: «De repente, o seu cabelo ralo e
grisalho assumiu uma tonalidade amarelo-avermelhada.»
De um dia para o outro, o penteado de Gordievsky mudou
de grisalho soviético para punk exótico. Os colegas
escarneciam nas suas costas. «Teria surgido uma jovem
amante em cena? Ou, horror dos horrores, teria Oleg
descoberto a sua homossexualidade pouco antes de
assumir o cargo de rezident em Londres?» Quando
Parshikov lhe perguntou à cautela o que lhe acontecera ao
cabelo, Oleg explicou, com algum embaraço, que usara por
engano a tinta para o cabelo da mulher em vez do
champô, uma desculpa muito pouco convincente, já que os
caracóis escuros de Leila eram de um tom muito diferente
do forte tom ocre da nova cor de cabelo de Gordievsky.
«Quando o “engano com o champô” se assumiu como o
seu tom permanente, deixámos de fazer perguntas.»
Parshikov concluiu: «Todos têm direito às suas
peculiaridades.» 
Nikitenko recebeu instruções a fim de se preparar para
regressar a Moscovo. Estava furioso por ter sido
ultrapassado por um subalterno com apenas três anos de
experiência na Grã-Bretanha e foi extremamente falso nas
felicitações. Gordievsky só assumiria oficialmente o cargo
de rezident no final de abril; entretanto, Nikitenko
esmerou-se por ser tão pouco prestável e desagradável
quanto possível, destilando veneno nos ouvidos dos
superiores e denegrindo o recém-nomeado junto de quem
o quisesse ouvir. Mais preocupante, recusou-se a mostrar-
lhe telegramas que o próximo rezident tinha o direito de
ver. Gordievsky disse a si mesmo que talvez fosse uma
vingança mesquinha, mas alguma coisa na atitude de
Nikitenko parecia mais do que uma atitude de mau
perdedor. 
Para Gordievsky e para a equipa NOCTON, o caso entrou
num peculiar limbo. Quando Nikitenko partisse, por fim,
para ocupar o novo cargo no departamento de
contraespionagem na sede do KGB, Gordievsky teria as
chaves do cofre do KGB e o MI6 colheria uma abundante
colheita. 
Doze dias antes de Gordievsky assumir o cargo de
rezident, Aldrich Ames ofereceu os seus préstimos ao
KGB. 
Ames era truculento. O seu hálito cheirava mal e o seu
trabalho era péssimo. Sentia-se pouco valorizado pela CIA.
No entanto, mais tarde ofereceria uma explicação mais
simples para os seus atos: «Fiz o que fiz pelo dinheiro.»
Tinha de pagar as compras de Rosario na Neiman Marcus e
jantares no restaurante The Palm. Queria deixar o
apartamento em que vivia, que só tinha um quarto, pagar
à minha ex-mulher, sustentar um dispendioso casamento e
trocar de carro o mais depressa possível. 
Ames decidiu trair a América a favor do KGB para
comprar o Sonho Americano, que, na sua perspetiva,
merecia alcançar. Gordievsky nunca esteve interessado no
dinheiro. Ames não estava interessado em mais nada. 
No início de abril, Ames telefonou para um funcionário da
embaixada soviética chamado Sergey Dmitriyevich
Chuvakhin e propôs um encontro. Chuvakhin não era um
dos 40 funcionários do KGB que trabalhavam na
embaixada. Era um especialista em controlo de
armamento e uma «pessoa de interesse» para a CIA,
considerado um alvo legítimo para abordagem. Ames disse
aos colegas que estava a sondar o funcionário russo como
um possível contacto. O encontro foi «aprovado» pela CIA
e pelo FBI. Chuvakhin aceitou encontrar-se com Ames para
tomar uma bebida às 16h00 do dia 16 de abril, no bar do
Hotel Mayflower, não muito longe da embaixada soviética
na Rua 16. 
Ames estava nervoso. Bebeu um vodca-martíni enquanto
esperava no bar do Mayflower, e depois mais dois. Passada
uma hora, Chuvakhin ainda não tinha aparecido, por isso
Ames decidiu «improvisar». No seu testemunho, mais
tarde, disse que percorreu com passos muito incertos
Connecticut Avenue até à embaixada soviética, deixou o
pacote que pretendia entregar a Chuvakhin na receção e
foi-se embora. 
O pequeno pacote estava endereçado ao rezident do KGB
em Washington, o general Stanislav Androsov. No interior
encontrava-se outro envelope endereçado a Androsov com
o seu pseudónimo operacional, «Kronin». Um bilhete
manuscrito dizia: «O meu nome é H. Aldrich Ames e ocupo
o cargo de chefe de departamento da contraespionagem
soviética na CIA. Trabalhei em Nova Iorque, onde usava o
pseudónimo Andy Robinson. Preciso de 50 mil dólares e,
em troca, envio informações acerca de três agentes com
quem estamos a desenvolver contactos neste momento na
União Soviética.» Os nomes que ele listava eram «falsos
espontâneos» que os soviéticos tinham na CIA, a fazerem-
se passar por potenciais recrutas, mas na realidade
plantados pelo KGB. «Aqueles homens não eram
verdadeiros traidores», diria Ames mais tarde. Disse a si
mesmo que, ao revelar os seus nomes, não estava a
prejudicar ninguém, nem a condenar uma operação da
CIA. O envelope também continha uma página arrancada
de uma lista telefónica interna da CIA, com o nome de
Ames sublinhado com um marcador amarelo. 
Ames arquitetara com cuidado a sua abordagem para
incluir quatro elementos distintos que estabeleceriam a
sua seriedade: informações sobre operações em curso que
um simples agente provocador não teria revelado; um
pseudónimo anterior que seria do conhecimento do KGB do
período que estivera em Nova Iorque; conhecimento do
nome de código secreto do rezident; e prova da sua
identidade e cargo na CIA. Aquilo chamaria com toda a
certeza a atenção dos soviéticos e o dinheiro começaria a
fluir. 
Sabendo como o KGB funcionava, Ames não esperava
uma resposta imediata: o «espontâneo» seria referenciado
a Moscovo, desenvolveriam investigações, a possibilidade
de uma provocação seria explorada e, por fim, o Centro
aceitaria a sua oferta. «Tinha a certeza de que a resposta
deles seria positiva», escreveria mais tarde. «E foi.» 
 
 
Passadas duas semanas, no dia 28 de abril de 1985, Oleg
Gordievsky tornou-se rezident em Londres, o funcionário
mais importante do KGB naquela cidade. A transmissão do
cargo por Nikitenko foi peculiar. Por tradição, o chefe de
estação do KGB que estava de saída deixava uma pasta
fechada à chave com importantes documentos secretos.
Estando Nikitenko em segurança no avião para Moscovo,
Oleg abriu a pasta e encontrou um envelope castanho com
duas folhas de papel: fotocópias das cartas que Michael
Bettaney enfiara na caixa do correio de Guk dois anos
antes, cujo conteúdo já tinha sido divulgado em todos os
jornais britânicos. Era uma piada? Uma recordação da
incompetência de Guk? Um aviso? Ou estaria Nikitenko a
enviar uma mensagem ominosa? «Era porque não confiava
em mim e pensava que não podia deixar coisas que ainda
eram secretas?» Mas, se assim fosse, porquê deixar um
aviso velado? O mais provável era Nikitenko estar apenas
a tentar desestabilizar o rival que ficara com o cargo que
ele ambicionava. 
O MI6 também ficou intrigado: «Esperávamos as “joias
da coroa” e não as recebemos. Estávamos curiosos para
saber se descobriríamos quais os membros do Governo
que eram agentes de longa data do KGB, ou mais
Bettaneys, mas nada disso aconteceu. Foi um alívio,
misturado com desapontamento.» Gordievsky começou a
analisar os dossiês da rezidentura e a reunir para o MI6 o
que seria sem dúvida uma enorme quantidade de novas
informações. 
 
 
Como Ames previra, o KGB demorou algum tempo a
responder, mas fê-lo com entusiasmo. No princípio de
maio, Chuvakhin ligou a Ames e sugeriu casualmente «um
encontro para uma bebida na embaixada soviética no dia
15 de maio, seguida de um almoço num restaurante nas
redondezas». Na verdade, Chuvakhin não era entusiástico
nem casual. Era um genuíno especialista em controlo de
armamento e não tinha qualquer desejo de ser arrastado
para um duvidoso e perigoso jogo de espionagem. «Um
dos vossos homens que faça este trabalho sujo», disse ele
quando recebeu ordens para contactar Ames e marcar o
encontro. O KGB foi muito claro: Ames escolhera-o e ele
alinharia, quisesse ou não. 
O KGB tinha estado ocupado nas três semanas
anteriores. A carta de Ames foi entregue sem demora ao
coronel Viktor Cherkashin, o chefe da contraespionagem
da embaixada soviética. Ao aperceber-se da sua
importância, Cherkashin enviou uma transmissão de dados
em alta frequência muito codificada para Kryuchkov, o
chefe do Primeiro Diretório Principal, que foi falar com
Viktor Chebrikov, o presidente do KGB, que autorizou o
levantamento imediato de 50 mil dólares em dinheiro da
Comissão Industrial Militar. O KGB era uma estrutura
pesada, mas mexia-se depressa quando era necessário. 
No dia 15 de maio, uma quarta-feira, Ames voltou à
embaixada soviética, como estava combinado, depois de
informar a CIA e o FBI de que prosseguia na tentativa de
desenvolver uma relação com o especialista militar. «Eu
sabia o que estava a fazer. Estava determinado a que o
meu plano resultasse.» Chuvakhin encontrou-se com Ames
no átrio da embaixada e apresentou-o a Cherkashin,
funcionário do KGB, que o levou para uma pequena sala de
reuniões na cave. Não foi trocada uma única palavra.
Indicando por gestos a Ames que a sala poderia estar sob
escuta, o sorridente Cherkashin entregou-lhe um bilhete:
«Aceitamos a sua oferta e estamos muito satisfeitos.
Gostaríamos que considerasse o Chuvakhin o seu
intermediário para as nossas conversas. Ele entregar-lhe-á
o dinheiro e estará disponível para almoçar consigo.» No
verso do bilhete, Ames escreveu: «Está bem. Muito
obrigado.»  
Mas não foi tudo. 
Há uma pergunta que todos os controladores de casos
devem fazer a um novo espião recrutado: tem
conhecimento de alguma penetração no nosso serviço? O
seu lado tem um espião no seio da nossa organização que
possa denunciar? Esta pergunta tinha sido feita a
Gordievsky no momento em que ele aceitou espiar para a
Grã-Bretanha. Cherkashin era um operacional
extremamente bem treinado. É inconcebível que não
tivesse perguntado se Ames tinha conhecimento de algum
espião no interior do KGB que pudesse descobrir que ele
estava a oferecer-se para mudar de lado, e informasse a
CIA. Por sua vez, Ames estaria à espera da pergunta. Sabia
da existência de mais de uma dúzia de agentes, incluindo
dois no interior da própria embaixada soviética; e um, o
mais importante de todos, era controlado pelos britânicos. 
Mais tarde, Ames afirmaria que nesta fase não identificou
Gordievsky pelo nome. A traição sistemática de todos os
agentes soviéticos que estavam nos livros da CIA só
aconteceria um mês depois. Numa autobiografia publicada
em 2005, Cherkashin declarou que a dica crucial sobre
Gordievsky não veio de Ames, mas de um misterioso
informador, «um jornalista britânico que vivia em
Washington». A CIA menospreza isto como desinformação
destinada a deixar o KGB ficar bem-visto, com «todas as
marcas [sic] de ser uma pista falsa»76. 
A maioria dos analistas de informações que estudaram o
caso Gordievsky concorda que, em algum momento
durante o contacto inicial com os russos, Ames revelou que
havia uma toupeira ao mais alto nível no interior do KGB a
trabalhar para os serviços secretos britânicos. Nesta altura
podia não estar a par do nome de Gordievsky, sobretudo
se não conduzisse pessoalmente a investigação. Mas
saberia sem dúvida que estava a decorrer uma
investigação para descobrir a identidade de um espião do
MI6 com o nome de código TICKLE e é extremamente
provável que tenha transmitido isto durante a conversa
sem palavras na cave da embaixada soviética, numa
mensagem de aviso escrevinhada num pedaço de papel.
Mesmo que ainda não tivesse divulgado um nome, isto
teria sido o suficiente para soltar os cães da Divisão K. 
Quando Ames terminou a reunião na cave, Chuvakhin
esperava-o no átrio. «Vamos almoçar», disse. 
Os dois homens sentaram-se a uma mesa de canto no
restaurante Joe and Moe’s e começaram a conversar e a
beber. Não se sabe ao certo o que foi dito durante aquele
«longo almoço, com muita bebida». Mais tarde, Ames
declarou que tinham passado o tempo a discutir controlo
de armamento – o que não é plausível. Possivelmente,
entre o terceiro e o quarto martíni, Ames terá confirmado a
existência de um espião controlado pelos britânicos no
KGB. Mais tarde, contudo, admitiria: «A minha memória
está baralhada.» 
No final da refeição, Chuvakhin, que tinha bebido
bastante menos que Ames, entregou-lhe um saco de
plástico cheio de papéis. «Aqui estão alguns comunicados
à imprensa que serão do seu interesse», disse ele, para o
caso de o FBI estar a escutar num microfone direcional. Os
dois homens separaram-se com um aperto de mão e o
russo voltou sem demora para a embaixada. Apesar do
álcool que lhe corria pelo corpo, Ames entrou no carro e
dirigiu-se para casa. Em George Washington Parkway,
estacionou num agradável desvio de onde se avistava o
Potomac e abriu o saco de compras: no fundo, por baixo da
papelada inútil da embaixada, estava um embrulho
retangular com o tamanho de um pequeno tijolo. Ele
rasgou um canto e ficou «completamente eufórico». No
interior estava um molho de 500 notas de 100 dólares. 
Enquanto o americano contava o dinheiro, na embaixada
soviética Chuvakhin pôs Cherkashin a par da conversa e o
funcionário do KGB compôs outro telegrama encriptado,
que foi enviado ao cuidado do próprio Chebrikov. 
Quando Ames chegou a casa, já tinha começado uma das
maiores caças ao homem na história do KGB. 
 
 
Na quinta-feira, 16 de maio, um dia depois do primeiro
encontro de Ames com Cherkashin, um telegrama urgente
de Moscovo chegou à secretária do recém-nomeado
rezident do KGB em Londres. 
Oleg Gordievsky sentiu uma fria pontada de apreensão
quando o começou a ler. 
«Para confirmar a sua nomeação como rezident, por
favor venha a Moscovo com urgência depois de amanhã
para importantes conversas com os camaradas Mikhailov e
Aloyshin.» Eram os pseudónimos operacionais de Viktor
Chebrikov e Vladimir Kryuchkov, o presidente e o diretor do
Primeiro Diretório Principal do KGB. A convocatória vinha
da cúpula do KGB. 
Gordievsky disse à secretária que tinha um compromisso,
correu para a cabina telefónica mais próxima e pediu um
encontro de emergência com o controlador do MI6. 
Duas horas mais tarde, Simon Brown esperava-o na casa
segura de Bayswater. «O Oleg parecia preocupado»,
recordou Brown. «Obviamente apreensivo, mas não em
pânico.» 
Durante as 48 horas seguintes, o MI6 e Gordievsky
teriam de decidir se ele devia obedecer à convocatória e
regressar a Moscovo, ou encerrar o caso e mudar-se com a
família para um lugar seguro. 
«O Oleg começou a avaliar os prós e os contras: a sua
fundamentação lógica imediata foi que era invulgar, mas
não tão suspeito a ponto de ser imediata e
necessariamente suspeito. Podia haver muitos motivos
lógicos para o mandarem ir a Moscovo.» 
Havia um estranho silêncio de Moscovo desde a sua
nomeação. Gordievsky esperara pelo menos um bilhete de
felicitações de Gribin e, mais preocupante, ainda não
recebera o importantíssimo telegrama com os códigos de
comunicação encriptada da rezidentura. Por outro lado, os
seus colegas do KGB não manifestavam qualquer sinal de
suspeita e pareciam ansiosos para agradar. 
Gordievsky perguntou a si mesmo se estava a preocupar-
se sem razão: talvez tivesse herdado a paranoia de Guk
juntamente com o cargo. 
Alguns funcionários do MI6 compararam esta situação ao
dilema do jogador. «Acumulou uma grande pilha de fichas.
Aposta-as todas numa última jogada na roleta? Ou recolhe
o que ganhou e abandona a mesa de jogo?» Não era fácil
calcular as probabilidades, que agora eram
astronomicamente altas: uma vitória proporcionaria
riquezas incalculáveis, como o acesso aos maiores
segredos do KGB; mas uma aposta perdida poderia
significar a ruína definitiva de Gordievsky, ou ele poderia
desaparecer para parte incerta, sem que soubessem do
seu destino durante meses. Entretanto, nenhuma das
informações que ele passara, então armazenadas, poderia
ser usada e vastamente disseminada. Em última análise,
significaria a destruição de Gordievsky. 
Havia alguma coisa estranha no tom da mensagem, ao
mesmo tempo perentória e educada. Segundo a tradição
do KGB, era o presidente que nomeava os rezidents,
sobretudo em países-alvo tão importantes como o Reino
Unido. Chebrikov não estava em Moscovo em janeiro
quando Oleg fora nomeado para o cargo, por isso podia ser
apenas uma confirmação oficial, uma «imposição de
mãos» formal do mandachuva do KGB. Talvez o facto de
ele ainda não ter sido plenamente «abençoado» pelo KGB
explicasse a falta de informações deixadas por Nikitenko e
a inexistência dos códigos das cifras. Se o KGB desconfiava
que ele era um traidor, porque não o chamava
imediatamente a Moscovo, em vez de esperar dois dias?
Talvez tentassem não o assustar com uma convocatória
imediata. Mas se sabiam que ele era um espião, porque é
que não tinham mandado os capangas do Décimo Terceiro
Departamento, especialistas em raptos, para o levar à
força para a Rússia? E se era uma situação normal, porquê
a falta de aviso? Gordievsky tinha recebido instruções
pormenorizadas para o novo cargo três meses antes. Que
mais havia para falar? E o que tornava as conversas tão
vitais e urgentes que o seu teor não podia ser revelado
num telegrama? A convocatória vinha do diretor do KGB:
aquilo era alarmante ou um sinal da estima que tinham
agora por Gordievsky. 
Brown tentou pôr-se no lugar do KGB: «Se soubessem, a
100 por cento, não se teriam comportado daquela forma e
corrido o risco de lhe dar tempo para fugir. Não teriam tido
pressa e deixariam a situação arrastar-se, dar-lhe-iam
milho para as galinhas e esperariam. Tê-lo-iam derrubado
de uma forma mais profissional. Podiam ter fingido a morte
da mãe ou outra coisa do género.» 
O encontro terminou sem que tivessem chegado a uma
conclusão definitiva. Gordievsky aceitou um novo encontro
na casa segura na noite seguinte, sexta-feira, 17 de maio.
Entretanto, reservaria um bilhete no voo de domingo para
Moscovo e não deixaria transparecer que alguma coisa
poderia estar mal.  
Maksim Parshikov estava a sair de carro do parque de
estacionamento da embaixada para um almoço quando,
para sua surpresa, Gordievsky «atirou-se para a frente do
meu carro e falou excitadamente pela janela aberta: “Fui
chamado a Moscovo. Vai ao meu gabinete depois do
almoço para falarmos.”» Passadas duas horas, Parshikov
encontrou o novo rezident «a andar de um lado para o
outro, nervoso» no seu gabinete. Gordievsky explicou que
tinha sido chamado a Moscovo para receber a bênção final
de Chebrikov. Aquilo não era anormal por si só, mas a
forma como fora feito era estranha: «Ninguém me mandou
cartas pessoais a alertar previamente. Mas não há outro
remédio: vou durante alguns dias e descubro o que se
passa. Tu vais ser vice na minha ausência. Senta-te quieto
e não faças nada até ao meu regresso.» 
Em Century House, uma «assembleia do chefe e dos
funcionários superiores» reuniu-se no gabinete de «C»
para debater a situação: Chris Curwen, o recém-nomeado
diretor, John Deverell do MI5, o controlador da secção do
Bloco de Leste, e Brown, o controlador de Gordievsky. Não
havia um sentimento de alarme. Mais tarde, alguns
funcionários do MI6 afirmaram que estavam seriamente
preocupados, porém, em retrospetiva, os espiões, como
toda a gente, têm tendência para dizer que não lhes
escapou nada. O triunfo estava perto, e Veronica Price e
Simon Brown, os funcionários mais familiarizados com o
caso, não viam um motivo evidente para acabar com tudo.
Deverell declarou que o MI5 não tinha detetado nenhum
sinal de que o KGB desmascarara o seu espião. «Decidimos
que não seria possível garantir que era seguro ele voltar»,
declarou o controlador do Bloco de Leste. Ficou deliberado
que a última palavra seria de Gordievsky. Ele não seria
obrigado a regressar a Moscovo, mas também não seria
encorajado a desistir. «Foi uma cobardia», insistiu um
funcionário do MI6, mais tarde. «A sua vida estava em jogo
e devíamos tê-lo protegido.» 
A chave para ter sucesso no jogo é a intuição, o sexto
sentido que permite que um jogador antecipe as jogadas e
leia a mente do adversário. O que sabia o KGB, se é que
sabia alguma coisa? 
Na realidade, Moscovo sabia muito pouco. 
O coronel Viktor Budanov da Divisão K, o setor da
contraespionagem, era por consenso geral o «homem mais
perigoso do KGB». Na década de 1980 estivera colocado
na Alemanha Oriental, onde tinha sob o seu comando um
jovem funcionário do KGB chamado Vladimir Putin. Dentro
da Divisão K, o seu papel era investigar «desenvolvimentos
anormais», manter a segurança nos diversos setores dos
serviços secretos do Primeiro Diretório Principal, eliminar
práticas de corrupção na hierarquia e descobrir espiões.
Um comunista dedicado, magro e seco, tinha o rosto de
uma raposa e a mente de um advogado altamente
qualificado. Trabalhava de uma forma metódica e
minuciosa. Considerava-se um detetive que trabalhava
para fazer cumprir as regras, não um agente de vingança.
«Pelo menos durante o meu tempo, cumpríamos sempre
escrupulosamente a lei nas divisões de contraespionagem
e espionagem do KGB na União Soviética. Nunca tive de
ordenar uma operação que infringisse a lei em vigor no
território da União Soviética.» Apanharia o espião com
pistas e dedução. 
Budanov tinha sido informado pelos superiores de que
havia uma toupeira num importante cargo no KGB. Ainda
não tinha um nome, mas tinha um lugar. Se o traidor
estava a ser controlado pelos serviços secretos britânicos,
talvez fosse alguém da rezidentura de Londres. Antes de
sair de Londres, Leonid Nikitenko, um experiente
funcionário da contraespionagem, enviara uma série de
relatórios onde criticava e punha em causa a confiabilidade
de Gordievsky. A dica de Ames, combinada com a
desconfiança não verificada de Nikitenko, poderia apontar
para o novo rezident. Gordievsky era suspeito, mas não
seria o único; também o próprio Nikitenko o era. Parshikov
seria igualmente suspeito, mas não foi chamado a
Moscovo naquela altura. E havia outros. O alcance do MI6
era global e a toupeira podia estar em qualquer lado.
Budanov não sabia ao certo que Gordievsky era o traidor;
mas sabia sem dúvida que, quando ele estivesse em
Moscovo, a sua culpa ou inocência seria avaliada sem que
houvesse o risco de ele fugir. 
Na manhã seguinte, sexta-feira dia 17, chegou um
segundo telegrama urgente do Centro endereçado a
Gordievsky que o deixou mais tranquilo. «Em relação à sua
viagem a Moscovo, por favor tenha em conta que terá de
falar sobre a Grã-Bretanha e os problemas britânicos, por
isso prepare-se bem para conversas específicas, com
muitos factos.» Parecia mais uma reunião normal, com os
habituais pedidos excessivos de informações. Gorbachev,
no poder há apenas três meses, estava muito interessado
na Grã-Bretanha depois da bem-sucedida visita no ano
anterior. Chebrikov era conhecido por atribuir grande
importância ao protocolo. Talvez não houvesse nenhum
motivo para preocupação. 
Nessa noite, Gordievsky e os seus controladores
reuniram-se de novo na casa segura. Veronica Price serviu
salmão fumado e pão integral. O gravador estava ligado. 
Simon Brown expôs a situação. Não fora detetada
nenhuma informação pelo MI6 que sugerisse que a
convocatória de Oleg a Moscovo não era rotineira. No
entanto, se quisesse desertar de imediato, poderia fazê-lo,
e ele e a sua família seriam protegidos e cuidados até ao
fim da vida. Se decidisse continuar, a Grã-Bretanha ficar-
lhe-ia eternamente agradecida. O caso estava numa
encruzilhada. Se desistisse agora, o MI6 poderia juntar os
enormes lucros que já tinha e «trocá-los no banco». Mas se
ele regressasse de Moscovo depois de ser pessoalmente
consagrado como rezident pelo presidente do KGB,
ganhariam um jackpot ainda maior.  
Mais tarde, Brown refletiria: «Se ele decidisse não ir, não
seria dissuadido e nós não teríamos tentado fazê-lo mudar
de ideias. Penso que ele percebeu que estávamos a ser
sinceros. Esforcei-me ao máximo para ser imparcial.» 
O controlador terminou com uma declaração: «Se achas
que isto parece mau, sai agora. Em última análise, a
decisão tem de ser tua. Mas se voltares e as coisas
correrem mal, pomos em marcha o plano de exfiltração.»  
É perfeitamente possível que duas pessoas escutem as
mesmas palavras e oiçam coisas completamente
diferentes. Foi o que aconteceu. Brown pensou que estava
a oferecer uma saída a Oleg, ao mesmo tempo que lhe
recordava que ele poderia estar a desperdiçar uma
oportunidade de ouro. Gordievsky acreditou que estava a
receber instruções para ir a Moscovo. Esperava ouvir o seu
controlador dizer que fizera o suficiente e que agora devia
afastar-se com honra. No entanto, Brown seguiu as ordens
e não lhe indicou essa direção. A decisão seria de
Gordievsky. 
Durante longos minutos, curvado e imóvel, o russo
manteve um silêncio absoluto, aparentemente mergulhado
nos seus pensamentos. Em seguida, falou: «Estamos muito
perto e parar agora seria um abandono do dever e de tudo
o que fiz. Há um risco, mas é um risco controlado e estou
preparado para isso. Vou voltar.» 
Como um funcionário do MI6 disse: «O Oleg sabia que
queríamos que ele continuasse e aceitou com coragem,
por não existirem quaisquer sinais de perigo.» 
Veronica Price, a arquiteta do plano de fuga, entrou em
ação. 
Uma vez mais, explicou a Gordievsky todos os
procedimentos para a Operação PIMLICO. Gordievsky
estudou mais uma vez as fotografias do ponto de encontro.
As fotografias tinham sido tiradas no inverno, quando o
grande penedo à entrada do desvio se destacava contra a
neve. Perguntou a si mesmo se conseguiria reconhecê-lo
se as árvores estivessem repletas de folhas. 
Durante a comissão de serviço de Gordievsky na Grã-
Bretanha, o plano de fuga mantivera-se em ordem e a
postos. Todos os novos funcionários do MI6 destacados em
Moscovo eram escrupulosamente postos a par dos
pormenores, viam uma fotografia do espião chamado
PIMLICO (embora nunca lhes fosse dito o seu nome) e
eram treinados nos procedimentos para o contacto de
raspão, para o ponto de recolha e exfiltração: a complexa
pantomima da fuga e dos sinais de reconhecimento. Antes
de partirem da Grã-Bretanha, os funcionários, e os seus
cônjuges, eram levados para uma floresta perto de
Guildford e treinavam entrar e sair do porta-bagagem de
um carro, para saberem ao certo o que poderia implicar o
resgate daquele espião sem nome e da sua família. No
início de uma comissão de serviço, os funcionários
recebiam a ordem de fazer a viagem da Grã-Bretanha para
a Rússia de carro, passando pela Finlândia, para se
familiarizarem com a rota, o ponto de encontro e a
travessia da fronteira. Quando Simon Brown passou a
fronteira de carro pela primeira vez em 1979, contou sete
aves empoleiradas na barreira e lembrou-se logo da antiga
canção infantil: «Sete por um segredo que nunca será
revelado.» 
Sempre que Gordievsky se encontrava em Moscovo, e
durante várias semanas antes de ele chegar e depois de
partir, a equipa do MI6 tinha de monitorizar o local do sinal
na Kutuzovsky Prospekt não apenas uma vez por semana,
mas todas as tardes. Uma terça-feira à noite seria o
momento ideal para fazer o sinal, pois a equipa de
exfiltração poderia chegar ao ponto de encontro em
apenas quatro dias, na tarde do sábado seguinte. Contudo,
numa emergência, a equipa entraria em ação em qualquer
dia: um sinal na sexta-feira, por exemplo, significava que a
exfiltração teria de acontecer na quinta-feira seguinte,
devido ao horário de serviço limitado da oficina que
fornecia as placas de matrícula. Um funcionário fez um
vívido relato do fardo extra que isto implicava para os
espiões britânicos: «Todas as noites, durante cerca de 18
semanas não inteiramente previsíveis por ano, tínhamos
de verificar a padaria, perto dos horários dos autocarros e
dos concertos, onde esperávamos – e temíamos sempre –
que o PIMLICO aparecesse. No inverno era pior: demasiado
escuro e nublado para ver por qualquer meio a não ser
andar, a neve que era tirada dos passeios formava pilhas
tão altas que era quase impossível identificar alguém a
mais de 30 metros de distância. E quantas vezes por
semana é que uma mulher podia dizer que se tinha
esquecido de comprar o pão naquele dia: “Não te importas
de sair com 25 graus negativos para ir comprar os últimos
pães duros?”»  
A preparação para a Operação PIMLICO era uma das
tarefas mais importantes da estação do MI6: um plano de
fuga específico para salvar um espião que muitas vezes
não estava lá, de prontidão para uma altura em que
poderia estar. Todos os funcionários do MI6 tinham à mão,
no seu apartamento, um par de calças cinzentas, um saco
verde do Harrods e um stock de chocolates KitKat e Mars. 
Um pormenor adicional foi acrescentado ao plano para o
refinar. Se, depois de chegar a Moscovo, Gordievsky
descobrisse que estava em perigo, poderia alertar Londres:
devia fazer um telefonema para Leila, para o número da
casa de Londres, e perguntar como estavam as filhas na
escola. O telefone estava sob escuta e o MI5 estaria a
ouvir. Se a chamada de aviso fosse feita, o MI6 seria
alertado e a equipa de Moscovo seria colocada em alerta
total. 
Por fim, Veronica Price entregou-lhe dois pequenos
pacotes. Um deles continha comprimidos. «Podem ajudar a
manteres-te alerta», disse. O outro era uma pequena bolsa
de tabaco de mascar da James J. Fox, uma tabacaria em St.
James. Se espalhasse o produto no corpo ao entrar no
porta-bagagem do carro, talvez conseguisse esconder o
seu cheiro dos cães da fronteira e disfarçar o odor de
algum químico que o KGB pudesse ter posto nas suas
roupas ou sapatos. Uma equipa de funcionários do MI6 de
Londres estaria à espera num recôndito ponto de encontro
do lado finlandês da fronteira para o levar para a Grã-
Bretanha. Veronica disse que, se aquele momento
chegasse, estaria lá para o receber pessoalmente. 
Naquela noite, Gordievsky contou a Leila que ia voltar a
Moscovo para «conversas ao mais alto nível» e regressaria
a Londres dali a alguns dias. Parecia nervoso e ansioso. «Ia
ser confirmado como rezident. Eu também estava
entusiasmada.» Leila reparou que as unhas do marido
estavam roídas até ao sabugo. 
 
Sábado, 18 de maio de 1985, foi um dia de intensa
espionagem em três capitais. 
Em Washington, Aldrich Ames depositou 9000 dólares em
numerário na sua conta bancária. A Rosario disse que o
dinheiro era um empréstimo de um velho amigo. A euforia
da traição começava a desaparecer e a realidade impôs-
se: um espião da CIA poderia descobrir a sua abordagem
ao KGB e desmascará-lo. 
Em Moscovo, o KGB preparava-se para a chegada de
Gordievsky. 
Viktor Budanov mandou revistar minuciosamente o
apartamento da Leninsky Prospekt, mas não encontraram
nada que incriminasse, exceto uma grande quantidade de
questionável literatura ocidental. A bonita edição dos
sonetos de Shakespeare não foi alvo de atenção especial.
O apartamento foi posto sob escuta invisível, incluindo o
telefone, pelos técnicos da Divisão K. Esconderam câmaras
nos candeeiros. À saída, o serralheiro do KGB trancou a
porta com todo o cuidado. 
Entretanto, Budanov analisava o dossiê pessoal de
Gordievsky. Com a exceção do divórcio, a sua folha de
serviço parecia imaculada: filho e irmão de distintos
funcionários do KGB, casado com a filha de um general do
KGB, era um dedicado membro do partido que subira na
hierarquia com diligência e talento. No entanto, um olhar
mais atento teria revelado outro lado do camarada
Gordievsky. O dossiê da investigação do KGB nunca foi
tornado público, por isso é impossível dizer com precisão o
que os investigadores sabiam, e quando. 
Todavia, Budanov tinha muito para analisar: a forte
amizade de Gordievsky na universidade com um desertor
checo; o seu interesse pela cultura ocidental, incluindo
literatura proibida; a declaração da ex-mulher de que ele
era um homem de duas caras; o facto de ter requisitado e
lido todos os dossiês britânicos do arquivo antes de ser
colocado em Londres; e a velocidade suspeita com que o
visto britânico fora emitido. 
A exemplo do que a CIA fizera, Budanov procurou
padrões. O KGB tinha perdido uma série de valiosos
elementos na Escandinávia: Haavik, Bergling e Treholt.
Teria Gordievsky tido conhecimento desses agentes na
Dinamarca e informado os serviços secretos ocidentais?
Depois, havia Michael Bettaney. Nikitenko podia confirmar
que Gordievsky fora posto a par da bizarra oferta do inglês
para espiar para o KGB. Os britânicos tinham apanhado
Bettaney com uma rapidez notável.  
Depois de ser inspecionada, a folha de serviço de
Gordievsky também produziria algumas características
interessantes. Nos primeiros dois meses da comissão de
serviço na Grã-Bretanha, ele tivera um desempenho tão
mau que se pusera a hipótese de o mandar para casa, mas
depois a sua gama de contactos melhorara muito e o
mesmo acontecera com a profundidade e a qualidade dos
relatórios de informações. A decisão do Governo britânico
de expulsar Igor Titov e Arkadi Guk com pouco tempo de
intervalo não levantara suspeitas na altura, mas deixou de
assim ser. Budanov também poderá ter tido conhecimento
das suspeitas anteriores de Nikitenko, nomeadamente a
forma como Gordievsky produzira relatórios durante a
visita de Gorbachev que pareciam ter sido copiados
diretamente dos briefings do Ministério dos Negócios
Estrangeiros. 
Nesses dossiês havia outra potencial pista. Em 1973,
durante a segunda comissão de serviço na Dinamarca,
Gordievsky tivera contacto direto com os serviços secretos
britânicos. Um conhecido funcionário do MI6, Richard
Bromhead, abordara-o e convidara-o para almoçar.
Gordievsky seguira o procedimento correto, informando o
rezident e obtendo autorização formal antes de se
encontrar com o inglês num hotel em Copenhaga. Os
relatórios da época indicavam que o contacto não dera em
nada. Mas seria verdade? Teria Bromhead recrutado
Gordievsky 11 anos antes? 
As provas circunstanciais eram sem dúvida prejudiciais,
mas ainda não eram conclusivamente condenatórias. Mais
tarde, Budanov vangloriar-se-ia numa entrevista ao Pravda
que Gordievsky fora «identificado por mim entre centenas
de funcionários que trabalhavam no Primeiro Diretório
Principal do KGB». Todavia, nesta fase ainda lhe faltavam
provas concretas: a sua meticulosa mente jurídica só
ficaria satisfeita se apanhasse o espião em flagrante ou
obtivesse uma confissão completa, de preferência por esta
ordem. 
Em Londres, no décimo segundo andar de Century
House, a equipa NOCTON estava entusiasmada e nervosa. 
«Havia ansiedade e um grande peso da
responsabilidade», declarou Simon Brown. «Podíamos estar
a consentir que ele se encaminhasse para a sua morte. Eu
estava convencido de que era a decisão certa, caso
contrário, teria tentado persuadi-lo a não ir. Parecia um
risco calculado, uma jogada controlada. Mas, afinal de
contas, tínhamos corrido riscos desde o início. Fazia parte
da natureza da situação.» 
Antes de partir, o KGB encarregou-o de uma missão: uma
entrega a um agente ilegal, recém-chegado à Grã-
Bretanha e a operar com o nome de código DARIO. Um
funcionário da Linha N na rezidentura costumava tratar
das operações de ilegais na Grã-Bretanha, mas esta foi
considerada bastante importante para ser o novo chefe de
estação a encarregar-se pessoalmente da sua execução. 
Em março, Moscovo tinha enviado 8000 libras em notas
de 20 não identificáveis, com instruções para esse dinheiro
ser transferido para DARIO. 
O dinheiro poderia ter sido simplesmente entregue ao
ilegal aquando da sua chegada, mas o KGB nunca optava
pela simplicidade quando podia ser imaginada uma coisa
mais elaborada. A Operação GROUND foi um exemplo
prático de complicação excessiva.  
Primeiro, o departamento técnico da rezidentura criou
um tijolo artificial oco, para esconder o dinheiro. DARIO
faria o sinal de que estava pronto para a recolha deixando
uma marca com giz azul num candeeiro de iluminação
pública do lado sul de Audley Square, próximo da
embaixada americana. Gordievsky recebeu instruções para
depositar o tijolo com o dinheiro dentro de um saco de
plástico entre um carreiro e uma vedação alta do lado
norte de Coram’s Fields, um parque em Bloomsbury. DARIO
acusaria a receção segura deixando uma pastilha elástica
mascada em cima de um poste de betão perto do pub
Ballot Box em Sudbury Hill. 
Gordievsky descreveu os pormenores operacionais a
Brown, que os transmitiu ao MI5. 
Ao fim da tarde de sábado, 18 de maio, Gordievsky foi
brincar com as filhas em Coram’s Fields. Às 19h45 deixou o
tijolo e o saco. As únicas pessoas nas redondezas eram
uma mulher a empurrar um carrinho de bebé e um ciclista
a mexer na corrente da bicicleta. A mulher era uma das
principais especialistas em vigilância do MI5. O carrinho de
bebé continha uma máquina fotográfica escondida. O
ciclista era John Deverell, o chefe da Divisão K. Alguns
minutos mais tarde, apareceu um homem a caminhar
depressa. Debruçou-se para pegar no saco, o que foi
suficiente para a máquina fotográfica captar uma imagem
do seu rosto. Deverell seguiu-o quando ele se afastou
apressadamente para norte, mas depois o homem entrou
na estação do Metro de King’s Cross. Deverell prendeu
apressadamente a bicicleta com uma corrente e desceu as
escadas rolantes a correr, mas era demasiado tarde: o
homem tinha sido engolido pela multidão. O MI5 também
não conseguiu avistar quem colara uma pastilha elástica
num poste de betão à porta de um banal pub na zona
noroeste de Londres. DARIO estava bem treinado.
Gordievsky enviou um telegrama para Moscovo a
comunicar a conclusão bem-sucedida da Operação
GROUND. O simples facto de ter sido autorizado a executar
uma missão tão sensível era um motivo para pensar que
continuavam a confiar nele. 
Ainda havia tempo para desistir. Em vez disso, no
domingo à tarde despediu-se da mulher e das filhas. Sabia
que havia a possibilidade de nunca mais voltar a vê-las.
Tentou não demonstrar, mas deu a Leila um beijo um
pouco mais demorado e abraçou Anna e Maria com um
pouco mais de força. Em seguida, entrou num táxi e
dirigiu-se para Heathrow. 
Às 16h00 do dia 19 de maio, num ato de enorme
coragem, Oleg Gordievsky embarcou no voo da Aeroflot
para Moscovo. 

75 «Adeus». (N. da T.)


TERCEIRA PARTE 
12. O Gato e o Rato 

Em Moscovo, Gordievsky verificou de novo as


fechaduras, rezando para que estivesse enganado. Mas
não, a terceira fechadura que ele nunca usava, e para a
qual não tinha chave, fora trancada. O KGB andava atrás
dele. «Fui descoberto», pensou, enquanto um fio de suor
lhe escorria pelas costas. «Em breve serei um homem
morto.» Numa altura escolhida pelo KGB, seria detido,
interrogado até lhe ser arrancado o último segredo, e em
seguida seria executado, o «derradeiro castigo», com uma
bala de carrasco na cabeça, e enterrado uma sepultura
anónima. 
Porém, quando estes pensamentos horríveis ameaçavam
multiplicar-se e misturar-se, o treino de Gordievsky
começou a impor-se. Ele sabia como o KGB funcionava. Se
a Divisão K tivesse descoberto todo o âmbito dos seus atos
de espionagem, nunca teria chegado à porta do
apartamento: teria sido detido no aeroporto e estaria
então numa cela da cave do Lubyanka. O KGB espiava
toda a gente. Talvez a entrada por arrombamento no seu
apartamento fosse apenas um controlo de rotina.
Claramente, se estava sob suspeita, os investigadores
ainda não tinham provas suficientes para o apanhar. 
Paradoxalmente, tendo em conta a sua falta de
contenção moral, o KGB era uma organização muitíssimo
legalista. Gordievsky era um coronel do KGB e não podia
ser detido por simples suspeitas de traição. Havia regras
rígidas para a tortura de coronéis. A sombra das purgas de
1936-1938, em que muitos inocentes tinham perecido,
continuava a pairar. Em 1985 era preciso reunir provas,
realizar um julgamento e pronunciar uma sentença. O
investigador do KGB, Viktor Budanov, estava a fazer
precisamente o que o MI5 fizera com Michael Bettaney, e o
que todas as agências de contraespionagem eficientes
fazem: vigiar o suspeito, pô-lo sob escuta e esperar que
este cometa um erro ou entre em contacto com o seu
controlador antes de o capturar. Mas havia uma diferença:
Bettaney não sabia que estava a ser vigiado; Gordievsky
sabia. Ou pensava saber. 
No entanto, ainda tinha de entrar no apartamento. Um
dos residentes do prédio era um serralheiro do KGB, que
guardava ferramentas em casa, e não se importou em
ajudar um vizinho e colega que perdera a chave. No
interior do apartamento, Gordievsky procurou
discretamente algum sinal de uma visita do KGB. Sem
dúvida, o apartamento estava sob escuta. Se os técnicos
tivessem plantado câmaras, estariam a observar o seu
comportamento com atenção, à espera de sinais suspeitos
como procurar escutas. Teria de presumir, a partir daquele
momento, que todas as suas palavras estavam a ser
ouvidas, todos os seus movimentos eram observados,
todos os telefonemas seriam gravados. Teria de se
comportar como se nada estivesse fora do normal. Teria de
parecer calmo, casual e confiante, exatamente o contrário
do seu estado de espírito. O apartamento parecia
arrumado. No armário dos medicamentos encontrou uma
caixa de toalhetes húmidos, fechada com uma proteção de
papel de alumínio. Alguém espetara um dedo no selo.
«Pode ter sido a Leila», disse a si mesmo. «O buraco podia
estar ali há anos.» Ou podia ter sido um investigador do
KGB, à procura de provas. Numa caixa debaixo da cama
havia livros de autores que os censores soviéticos
considerariam sediciosos: Orwell, Soljenítsin, Maximov.
Lyubimov dissera-lhe que era um risco ter aqueles livros
nas estantes. A caixa parecia intocada. Gordievsky
observou a estante e reparou que a edição da Oxford
University Press dos sonetos de Shakespeare continuava
no seu lugar, aparentemente intacta. 
Quando telefonou para casa do chefe, ficou com a
impressão de que Nikolai Gribin soava estranho. «Não
havia calor nem entusiasmo na sua voz.» 
Quase não dormiu naquela noite, cheio de receios e
dúvidas. «Quem me tinha traído? O que é que o KGB
sabia?» 
Na manhã seguinte, dirigiu-se para o Centro. Não detetou
qualquer vigilância, mas isso não significava nada. Gribin
encontrou-se com ele no Terceiro Departamento. Os seus
modos pareciam quase normais, mas não completamente.
«É melhor começares a preparar-te», comentou Gribin. «Os
dois mandachuvas vão convocar-te para uma reunião.»
Falaram sem grande interesse a respeito do que Chebrikov
e Kryuchkov poderiam esperar saber do novo rezident de
Londres. Gordievsky declarou que trouxera muitas
anotações, como lhe fora pedido: sobre a economia
britânica, as relações com os Estados Unidos e
desenvolvimentos nas áreas das ciências e tecnologia.
Gribin anuiu com a cabeça. 
Uma hora mais tarde, foi chamado ao gabinete de Viktor
Grushko, que era agora vice-diretor do Primeiro Diretório
Principal. Sempre muito afável, o ucraniano parecia tenso e
«inexoravelmente inquisitivo». 
«O que me diz do Michael Bettaney?», perguntou. «Afinal
de contas, parece que era um homem sério e queria
colaborar connosco. Podia ter-se tornado um segundo
Philby.» 
«Claro que era real», replicou Gordievsky. «E teria sido
muito melhor do que o Philby, muito mais valioso.» (Um
enorme exagero.) 
«Mas como é que acabámos por cometer um erro
destes?», pressionou Grushko. «Ele foi genuíno desde o
início?» 
«Creio que sim. Não consigo perceber porque é que o
camarada Guk não concordou.» 
Uma pausa, antes de Grushko continuar: 
«O Guk foi expulso. Mas ele não fez nada a respeito do
Bettaney. Nem sequer estabeleceu contacto. Porque é que
o despediram [isto é, expulsaram]?» 
Alguma coisa na expressão de Grushko embrulhou o
estômago de Gordievsky. 
«Acho que o erro dele foi comportar-se demasiado como
um homem do KGB, sempre a andar de um lado para o
outro no seu Mercedes, a gabar-se do KGB e a armar-se em
general. Os britânicos não gostavam disso.» 
O assunto foi esquecido. 
Passados alguns minutos, o funcionário escolhido para ir
buscar Gordievsky ao aeroporto foi chamado por Grushko e
admoestado pela sua ineficiência. «O que aconteceu?
Devias ir buscar o Gordievsky e levá-lo a casa. Onde é que
estavas?» O homem gaguejou que tinha ido para a zona
errada do aeroporto. A cena pareceu encenada. O KGB não
mandara ninguém buscá-lo de forma deliberada para
seguir os seus movimentos à chegada? 
Gordievsky voltou para o seu gabinete, folheou os
apontamentos e esperou a convocatória do chefe do KGB,
que indicaria que ele estava seguro, ou a pancada no
ombro do departamento de contraespionagem, que
significaria o fim. Nada aconteceu. Foi para casa e passou
outro serão a pensar, outra noite a imaginar cenários
terríveis. No dia seguinte aconteceu a mesma coisa.
Gordievsky poderia estar entediado, não fosse o pavor que
sentia. No terceiro dia, Gribin disse que ia sair mais cedo
do emprego e ofereceu-se para lhe dar boleia. 
«E se eu for chamado e já não estiver cá?», perguntou
Gordievsky. 
«Não há qualquer hipótese de eles te chamarem hoje»,
respondeu Gribin. 
Enquanto seguiam muito devagar no meio do trânsito
num dia de chuva, Gordievsky comentou, o mais
casualmente possível, que havia trabalho importante para
fazer em Londres. 
«Se não houver nada para eu fazer em Moscovo, gostava
de voltar para tratar das coisas. Há uma importante
reunião da NATO em breve e o ano parlamentar está a
chegar ao fim. Alguns dos membros da minha equipa
precisam de orientação para estabelecer contactos...» 
Gribin anuiu com displicência. 
«Oh, deixa-te disso! Por vezes, as pessoas estão
ausentes meses seguidos. Ninguém é indispensável.» 
O dia seguinte desenrolou-se com a mesma mistura de
turbilhão interior e charada exterior; e o outro também.
Estava em curso uma estranha dança: Gordievsky e o KGB
fingiam que acertavam o passo, mas esperando que o
outro tropeçasse. A tensão era constante e não
compartilhada. Oleg não conseguia detetar vigilância, mas
um sexto sentido dizia-lhe que havia olhos e ouvidos em
toda a parte, em todos os cantos, em todas as sombras. O
Grande Irmão vigiava-o; ou, mais precisamente, o homem
na paragem do autocarro, o vizinho na rua, a babushka77
com o seu samovar na entrada do prédio. Ou talvez não. À
medida que os dias foram passando sem incidentes,
Gordievsky começou a perguntar a si mesmo se os seus
receios eram imaginários. Mas depois teve uma prova em
contrário. 
Num corredor do Terceiro Departamento encontrou um
colega da Divisão S (responsável pela rede de ilegais)
chamado Boris Bocharov, que o deteve: «Oleg, o que está
a acontecer na Grã-Bretanha? Porque é que todos os
ilegais foram retirados?» Oleg esforçou-se por disfarçar o
choque. A ordem para retirar os espiões infiltrados só
podia significar uma coisa: o KGB sabia que fora
comprometido no Reino Unido e estava a desmantelar a
sua rede de ilegais com urgência. DARIO, o homem que
recebera o tijolo cheio de dinheiro, durara menos de uma
semana como espião infiltrado em Londres. Nunca foi
identificado. 
Um estranho embrulho estava na secretária de
Gordievsky, com a nota: «Apenas para os olhos do Sr.
Grushko». Chegara na mala diplomática da rezidentura de
Londres e, como agora Gordievsky era o rezident em
Londres, os funcionários presumiram que seria ele o
primeiro recetor. Com as mãos a tremer, Oleg abanou o
pacote e ouviu um ruído seco e o tilintar de uma fivela no
interior. Era sem dúvida a sua pasta, que ele deixara na
secretária em Londres com uma série de documentos
importantes. O KGB estava a reunir provas. «Mantém-te
calmo», disse a si mesmo. «Comporta-te normalmente.»
Levou o pacote para o gabinete de Grushko e voltou para a
sua secretária. 
«As pessoas dizem que, quando os soldados ouvem a
artilharia começar a disparar, entram numa espécie de
pânico. Foi o que me aconteceu. Nem sequer me lembrava
do plano de fuga. Mas depois pensei: “De qualquer
maneira, o plano é duvidoso. O melhor era pô-lo de parte e
aceitar a ideia de uma bala na nuca.” Fiquei paralisado.» 
Naquela noite, fez um telefonema para o apartamento de
Kensington. Leila atendeu. Os dispositivos de gravação em
Londres e Moscovo foram ativados. 
«Como está a correr a escola das miúdas?», perguntou
ele, articulando as palavras com clareza. 
Leila não estranhou e respondeu que estava tudo bem.
Conversaram durante alguns minutos e depois Gordievsky
desligou. 
Com uma bonomia fingida, Gribin convidou Gordievsky
para passar o fim de semana na sua dacha. Tinha sem
dúvida instruções para estar perto do seu subalterno, para
o caso de ele se descair com alguma coisa. Gordievsky
recusou educadamente o convite, explicando que ainda
não tinha visitado a mãe e a irmã, Marina, desde que
chegara a Moscovo. Gribin insistiu num encontro e
anunciou que ele e a mulher iriam visitá-lo em casa.
Sentados à volta de uma mesa de apoio com tampo a
imitar mármore, passaram várias horas a conversar sobre
a vida em Londres, sobre o crescimento das filhas naquela
cidade e o facto de falarem inglês como primeira língua. A
sua filha Maria até tinha aprendido o pai nosso em inglês.
Para um ouvinte casual, Gordievsky poderia ser um pai
orgulhoso a descrever os prazeres de uma comissão de
serviço no estrangeiro a um colega de longa data
enquanto bebiam uma chávena de chá. Na realidade,
estava a decorrer um brutal e não confessado combate. 
Na segunda-feira de manhã, dia 27 de maio, Gordievsky
sentia-se exausto por ter dormido pouco e pela tensão
acumulda. Antes de sair de casa, tomou um dos
comprimidos estimulantes de Veronica Price, comprimidos
energéticos de cafeína usados muitas vezes por
estudantes que tentavam manter-se alerta durante
sessões de estudo que duravam a noite inteira. Quando
chegou ao Centro, Gordievsky sentia-se melhor e menos
exausto. 
Estava sentado à secretária há alguns minutos quando o
telefone tocou, a linha direta do gabinete do diretor do
departamento. 
Gordievsky sentiu uma pequena onda de esperança.
Talvez a muito esperada reunião com os seus superiores do
KGB estivesse prestes a acontecer. «São os chefes?»,
perguntou ele quando Viktor Grushko surgiu em linha. 
«Ainda não», disse Grushko suavemente. «Há duas
pessoas que querem falar sobre penetração de agentes ao
mais alto nível na Grã-Bretanha.» Acrescentou que a
reunião decorreria fora do edifício. Grushko também iria.
Aquilo era extremamente inusitado. 
Cada vez mais apreensivo, Gordievsky deixou a pasta em
cima da secretária e desceu para o átrio. Grushko surgiu
instantes depois e levou-o para um carro estacionado na
berma da estrada. O motorista saiu pelo portão das
traseiras e percorreu cerca de um quilómetro antes de
parar ao pé de um condomínio com muros altos usado
para alojar visitas e convidados do Primeiro Diretório
Principal. A conversar amistosamente, Grushko levou
Gordievsky para um pequeno bangaló, um agradável
edifício rodeado por uma baixa vedação de madeira e,
aparentemente, sem vigilância. O dia já estava pesado e
quente, mas o interior era fresco e arejado. Os quartos
situavam-se a seguir a uma comprida sala central e a casa
estava mobilada com poucos móveis, mas novos e
elegantes. À porta encontravam-se dois criados, um
homem com 50 e poucos anos e uma mulher mais jovem.
Ambos cumprimentaram Gordievsky com extrema
deferência, como se ele fosse um dignitário estrangeiro de
visita. 
Sentaram-se e Grushko pegou numa garrafa. «Tenho
aguardente arménia», disse ele alegremente, e pegou em
dois copos. Beberam. Os criados trouxeram pratos e uma
travessa com sanduíches de queijo, presunto e caviar de
salmão-vermelho. 
Naquele momento, dois homens entraram na sala.
Gordievsky não reconheceu nenhum deles. O mais velho,
de fato escuro, tinha o rosto marcado de rugas e
desgastado por ser um alcoólatra e um fumador
inveterado. O homem mais novo era mais alto, com um
rosto comprido e feições argutas.  
Nenhum deles sorriu. Grushko não fez as apresentações,
para além de dizer que os dois homens «querem falar
consigo sobre como controlar um agente muito importante
na Grã-Bretanha». A ansiedade de Gordievsky aumentou
ainda mais: «Pensei: “Isto é um disparate. Não temos
nenhum agente importante na Grã-Bretanha. Há outro
motivo para tudo isto.”» Grushko continuou num tom
despreocupado. «Vamos comer primeiro», disse, como se
fosse o anfitrião de um agradável almoço de trabalho. O
criado serviu mais aguardente. Os homens esvaziaram os
copos e Gordievsky imitou-os. Apareceu outra garrafa.
Uma nova rodada foi servida, e bebida. Os desconhecidos
falavam muito pouco. O homem mais velho fumava como
uma chaminé. 
Depois, com chocante rapidez, Gordievsky sentiu a sua
realidade mergulhar num alucinatório mundo de fantasia
onde ele parecia estar a observar-se, apenas
semiconsciente, à distância, através de uma lente
refratora e deformada. 
A aguardente que lhe serviram tinha sido misturada com
algum tipo de soro da verdade, talvez uma droga
psicotrópica fabricada pelo KGB conhecida por SP-117,
uma forma de tiopental sódico que continha um anestésico
barbitúrico de ação rápida, sem cheiro, sabor ou cor, um
cocktail químico destinado a reduzir as inibições e soltar a
língua. Enquanto o criado servia bebidas aos três homens
da primeira garrafa, o copo de Gordievsky estava a ser
sub-repticiamente enchido com uma garrafa diferente. 
O homem mais velho era o general Sergei Golubev, o
chefe da Divisão K, o departamento do KGB responsável
pela contraespionagem interna. O outro era o coronel
Viktor Budanov, o principal investigador do KGB. 
Começaram a fazer perguntas e Gordievsky respondia,
com uma vaga noção do que estava a dizer. No entanto,
uma parte do seu cérebro continuava consciente e na
defensiva. «Mantém-te alerta», disse a si mesmo. Agora
estava a lutar pela sua vida, num miasma de suor e medo,
através de uma névoa de aguardente adulterada. Ouvira
dizer que de vez em quando o KGB usava drogas para
extrair segredos em vez de tortura física, mas nada o
preparara para aquele súbito ataque químico ao seu
sistema nervoso. 
Gordievsky nunca conseguiria explicar ao certo o que
aconteceu durante as cinco horas seguintes. No entanto,
mais tarde recordaria fragmentos, como pedaços de um
terrível pesadelo através de um nevoeiro farmacológico:
momentos de repente vívidos, partes de palavras e frases,
os rostos indefinidos dos interrogadores. 
De todas as pessoas, Kim Philby, o veterano espião
britânico que ainda vivia eLivros em Moscovo, veio em seu
auxílio. «Nunca confessar»78, aconselhava Philby aos seus
alunos do KGB. Enquanto a droga psicoativa fazia efeito,
ouviu aquelas palavras. «A exemplo do Philby, eu estava a
negar tudo. Negar, negar, negar. Foi instintivo.» 
Budanov e Golubev pareciam querer falar sobre
literatura, Orwell e Soljenítsin. «Porque é que tem todos
aqueles livros antissoviéticos?», perguntaram. «Usou o seu
cargo diplomático de forma deliberada para importar
coisas que sabia que eram ilegais.» 
«Não, não», ouviu-se Gordievsky dizer. «Sou um agente
dos serviços secretos políticos e precisava de ler livros
assim, para ter o contexto essencial.»  
De repente, Grushko estava ao seu lado, todo ele
sorrisos. «Muito bem, Oleg! Está a ter uma conversa
excelente. Continue! Diga-lhes tudo.» Depois, desapareceu
e os dois interrogadores estavam de novo inclinados sobre
ele. 
«Sabemos que é um agente britânico. Temos provas
irrefutáveis da sua culpa. Confesse! Priznaysya!» 
«Não! Não tenho nada para confessar.» Encharcado em
suor, sentia que alternava entre um estado de consciência
e inconsciência. 
Budanov, com uma voz calma que poderia ser usada com
uma criança recalcitrante: «Confessou muito bem há
alguns minutos. Agora, faça o favor de repetir e confirmar
o que disse. Confesse outra vez!» 
«Eu não fiz nada», disse ele em tom de súplica,
agarrando-se àquela mentira como um homem a afogar-
se. 
Em determinado momento, recordava-se de se levantar,
correr para a casa de banho e vomitar violentamente no
lavatório. Os dois criados pareciam olhá-lo com expressões
maldosas do canto da sala, desaparecida toda a
deferência. Pediu água e bebeu com sofreguidão,
entornando-a inclusive na camisa. Grushko ora
encontrava-se na sala, ora desaparecia no momento
seguinte. Os interrogadores pareciam alternadamente
consoladores e acusadores. Por vezes, admoestavam-no
com gentileza: «Como é que, sendo comunista, se orgulha
que a sua filha saiba rezar o pai-nosso?» A seguir,
tentavam apanhá-lo em falso, dizendo os nomes de
espiões e desertores pelos seus nomes de código. «E o
Vladimir Vetrov?», perguntou Budanov, referindo-se ao
funcionário do KGB executado um ano antes por colaborar
com os serviços secretos franceses. «O que pensa dele?» 
«Não sei do que está a falar», disse Gordievsky. 
Em seguida, Golubev jogou o seu trunfo. «Sabemos
quem o recrutou em Copenhaga», gritou. «Foi o Richard
Bromhead.» 
«Que disparate! Isso não é verdade.» 
«Mas escreveu um relatório acerca dele.» 
«Claro, encontrei-me com ele uma vez e escrevi um
relatório sobre o encontro. Mas ele nunca se concentrou
especialmente em mim. Ele costumava conversar com
toda a gente...» 
Budanov experimentou outra tática: «Sabemos que o
telefonema para a sua mulher foi um sinal para os serviços
secretos britânicos. Admita.» 
«Não», insistiu ele. «Isso não é verdade.» Negar, negar,
negar. 
Os dois interrogadores recusavam-se a desistir.
«Confesse!», diziam. «Já confessou uma vez. Confesse de
novo!» 
Sentindo que a sua força de vontade vacilava,
Gordievsky conseguiu reunir um fragmento de
desobediência e disse aos dois interrogadores do KGB que
eles não eram melhores do que a polícia secreta de
Estaline, a arrancar falsas confissões a pessoas inocentes. 
Cinco horas depois do primeiro gole de aguardente, a luz
na sala pareceu apagar-se de repente. Gordievsky sentiu-
se invadido por uma fadiga mortal, a sua cabeça caiu para
trás e o espião mergulhou na escuridão. 
 
 
Gordievsky acordou numa cama limpa, com o sol matinal
a entrar pela janela, vestido apenas com uma camisola
interior e cuecas. A boca estava seca como papel e doía-
lhe a cabeça com uma intensidade que nunca sentira
antes. Durante alguns instantes não soube onde estava,
nem o que tinha acontecido: mas depois, devagar, em
fragmentos, com um horror crescente, alguns dos
acontecimentos começaram a voltar. Sentiu uma onda de
náusea quando se sentou na cama. «Estou acabado»,
pensou. «Eles sabem tudo.» 
Porém, a desmentir aquela conclusão estava um facto
evidente por si mesmo que sugeria que o KGB talvez ainda
não tivesse tudo: ele continuava vivo. 
O criado, de novo obsequioso, entrou com café.
Gordievsky bebeu várias chávenas. Com a cabeça ainda a
latejar, vestiu o fato que se encontrava pendurado com
todo o cuidado ao pé da porta. Estava a apertar os
atacadores dos sapatos quando os dois interrogadores
apareceram de novo. Gordievsky preparou-se. O café tinha
sido drogado? Estaria prestes a entrar naquele nevoeiro
químico? Mas não. O seu cérebro turvo parecia ficar mais
claro a cada momento que passava. 
Os dois homens olharam-no com uma expressão
intrigada. 
«Foi muito rude connosco, camarada Gordievsky», disse
o homem mais novo. «Acusou-nos de reviver o espírito de
1937, o Grande Terror.» 
Os modos de Budanov eram taciturnamente ressentidos.
A acusação de Gordievsky de que ele não era melhor do
que um carniceiro estalinista tinha ofendido o seu sentido
de justeza legal. Ele considerava-se um investigador, um
protetor das regras, um pesquisador da verdade, uma
pessoa que lidava com factos, não com falsidades. «O que
disse não é verdade, camarada Gordievsky, e vou prová-
lo.» 
Gordievsky ficou espantado. Esperava que os seus
interrogadores exibissem a triunfal bazófia de caçadores
que tinham encurralado a presa e preparavam-se para a
matar. Em vez disso, pareciam melindrados e frustrados.
No meio da confusão, Gordievsky compreendeu com
enorme clareza, e formou-se uma pequena onda de
esperança: percebeu que os dois interrogadores não
tinham conseguido o que queriam. 
«Se fui grosseiro, peço desculpa», gaguejou. «Não me
lembro.» 
Seguiu-se um silêncio incómodo. Depois, Budanov falou
de novo. «Vem aí um carro para o levar para casa.» 
Passada uma hora, despenteado e perplexo, Gordievsky
viu-se barrado à porta do apartamento na Leninsky
Prospekt; estava uma vez mais trancado do lado de fora,
pois deixara as chaves na secretária no escritório, e o
vizinho serralheiro teve de lhe abrir a porta mais uma vez.
A manhã já ia a meio. Gordievsky deixou-se cair numa
cadeira, mais consciente do que nunca de que estava a ser
observado, e tentou recordar os acontecimentos da noite
anterior. 
Os interrogadores pareciam conhecer a existência de
Richard Bromhead. Também pareciam ter percebido que o
telefonema para Leila fora um sinal para os serviços
secretos britânicos. Porém, era muito claro que ainda não
conheciam a verdadeira magnitude dos seus atos de
espionagem. Teve a certeza de que, apesar da feroz
exigência de uma confissão de culpa, ele negara tudo com
firmeza. O soro da verdade não funcionara como devia.
Talvez o comprimido estimulante que tomara naquela
manhã tivesse sido suficiente para neutralizar o tiopental
sódico, um efeito secundário fortuito que Veronica Price
nunca imaginara quando lhos dera. Mesmo assim, perdeu
a esperança de estar acima de qualquer suspeita. O KGB
andava atrás dele. Os interrogadores voltariam. 
Enquanto os efeitos secundários da droga desapareciam,
a náusea foi substituída por um pânico que não parava de
crescer. A meio da tarde, já não suportava a tensão. Ligou
para o gabinete de Grushko e tentou parecer normal. 
«Lamento se fui rude com aqueles fulanos, mas eles
eram muito estranhos», disse. 
«Não, não», disse Grushko. «São uns tipos excelentes.» 
A seguir ligou para Gribin, o chefe do seu departamento. 
«Aconteceu uma coisa extraordinária e estou muito
preocupado», disse Gordievsky. Descreveu que tinha sido
levado para o pequeno bangaló, estivera com dois
desconhecidos e depois desmaiara. Fingiu que não se
recordava de nada do interrogatório. 
«Não te preocupes, caro amigo», disse Gribin, mentindo
melifluamente. «Tenho a certeza de que não se passa
nada.» 
 
 
Em Londres, Leila começava a perguntar a si mesma
porque é que o marido nunca mais telefonara. Depois, teve
a explicação. Na manhã do dia 28 de maio, um funcionário
da embaixada foi ao apartamento sem avisar e explicou
que Oleg adoecera com um pequeno problema cardíaco.
«Não é nada muito sério, mas terá de ir para Moscovo
imediatamente com as suas filhas. O motorista da
embaixada vem buscar-vos. Sendo mulher do rezident,
viajará em primeira classe. Leve apenas bagagem de mão,
pois voltarão para Londres muito em breve.» Leila fez as
malas à pressa, enquanto o funcionário esperava na
entrada. «É claro que fiquei preocupada com o Oleg.
Porque é que ele não me tinha telefonado para me garantir
que estava bem? Era estranho.» Talvez o problema
cardíaco fosse mais grave do que o funcionário da
embaixada anunciara. As filhas ficaram entusiasmadas
com as férias inesperadas em Moscovo. Estavam todos à
espera à porta quando o carro da embaixada chegou. 
 
Após uma noite quase sem dormir, Gordievsky vestiu-se,
tomou mais dois comprimidos estimulantes e dirigiu-se
para o Centro, fingindo que era apenas mais um dia de
trabalho e consciente de que poderia ser o último. Estava
sentado à secretária há alguns minutos quando o telefone
tocou e ele foi chamado de novo ao gabinete de Grushko. 
Ali, atrás de uma enorme secretária, esperava-o um
tribunal do KGB. De um lado de Grushko sentava-se Gribin,
com uma expressão gélida, e do outro Golubev, o chefe da
Divisão K. Ninguém indicou a Gordievsky que se sentasse. 
Seguiu-se uma notável peça de teatro de espionagem. 
«Sabemos muito bem que anda a enganar-nos há anos»,
declarou Grushko, como um juiz a pronunciar uma
sentença. «No entanto, decidimos que pode ficar no KGB.
O seu trabalho em Londres está terminado. Terá de passar
para um departamento não operacional. Deve gozar todos
os dias de férias a que tem direito. A literatura
antissoviética que tem em casa terá de ser entregue à
biblioteca do Primeiro Diretório Principal. Lembre-se, nos
próximos dias, e para sempre, nenhum telefonema para
Londres.» 
Grushko fez uma pausa e em seguida acrescentou, num
tom que parecia quase conspiratório: «Se soubesse que
fonte invulgar é que nos disse tudo sobre si...» 
Gordievsky ficou espantado, e durante alguns momentos
não conseguiu falar. A estranheza da situação parecia
pedir um desempenho dramático da sua parte. Adotando
um ar de choque, que só foi meio fingido, disse: «Lamento
imenso o que aconteceu na segunda-feira. Acho que havia
alguma coisa errada na bebida, ou na comida... tive pouca
sorte. Senti-me muito mal.» 
Golubev, o interrogador, pareceu acordar naquele
momento e declarou, surrealmente: «Que disparate! Não
havia problema nenhum com a comida. Estava deliciosa.
As sanduíches com ovas de salmão eram excelentes, e as
de presunto também.» 
Gordievsky perguntou a si mesmo se estaria de novo a
alucinar. Estava a ser acusado de traição e o investigador
principal defendia a qualidade das sanduíches do KGB. 
Gordievsky dirigiu-se a Grushko: «Viktor Fyodorovich, a
verdade é que não faço ideia do que está a dizer em
relação a eu vos enganar há muito tempo. Mas, seja qual
for a vossa decisão, aceito-a como um oficial e um
cavalheiro.» 
A irradiar inocência ferida e honra militar, virou-se e
saiu. 
De novo na sua secretária, Gordievsky sentiu a cabeça
andar à roda. Fora acusado de trabalhar para um serviço
de informações inimigo. Outros funcionários do KGB
tinham sido abatidos por muito menos. No entanto, iam
mantê-lo na organização e estavam a mandá-lo ir de
férias. 
Passados alguns instantes, Gribin entrou no seu
gabinete. Durante a estranha cena no gabinete de
Grushko, ele não tinha proferido uma única palavra. Olhou
para Gordievsky com uma expressão triste. 
«O que posso dizer, caro amigo?» 
Gordievsky sentiu que era uma armadilha. 
«Kolya, não sei muito bem o que isto é, mas desconfio
que me ouviram criticar os líderes do Partido e agora estão
a intrigar contra mim.» 
«Se fosse isso», disse Gribin. «Se fosse apenas uma
indiscrição gravada pelos microfones. Mas, infelizmente, é
muito, muito pior do que isso.» 
Gordievsky fingiu que estava desorientado: «O que posso
dizer?» 
Gribin olhou-o com uma expressão dura: «Tenta ver isto
de uma perspetiva filosófica.» Pareceu uma sentença de
morte. 
No apartamento, Gordievsky tentou perceber o que tinha
acontecido. O KGB não era adepto de clemência. Se
soubessem uma fração da verdade, ele estava condenado.
Contudo, o facto de não estar na cave do Lubyanka só
podia significar que os investigadores ainda não tinham a
prova definitiva da sua culpa. «Naquela altura, eu ainda
não sabia o que o KGB tinha descoberto; mas era evidente
que havia uma sentença de morte iminente, embora essa
sentença estivesse pendente até à conclusão de uma
investigação mais aprofundada.» O KGB estava a fazer um
jogo longo. «Decidiram brincar comigo», pensou. «Como
um gato com um rato.» O gato acaba por se aborrecer do
jogo e prega um enorme susto ao rato ou mata-o. 
Viktor Budanov tinha uma coisa para provar. Gordievsky
acreditava que o comprimido estimulante de Veronica o
salvara. Mas a verdade é que o seu desafiador comentário
a meio do interrogatório, comparando os interrogadores
com os assassinos de Estaline, talvez explicasse o facto de
ainda estar vivo. Budanov ficara afetado com aquela
sugestão. Queria provas. Deixaria Gordievsky pensar que
estava seguro, mas mantê-lo-ia sob vigilância até ele
ceder, confessar ou tentar contactar o MI6, e nesse
momento atacaria. Não havia motivo para pressas, pois ele
não podia fugir para lado nenhum. Nenhum suspeito de
espionagem escapara jamais da União Soviética enquanto
estava a ser vigiado pelo KGB. Numa situação normal, a
Sétima Divisão teria usado o seu pessoal de vigilância para
seguir o suspeito, mas neste caso foi decidido usar uma
equipa do PDP. Grushko insistira: como aquele problema
era do seu departamento, o seu departamento iria resolvê-
lo, e quanto menos pessoas fora da divisão soubessem o
que estava a acontecer, melhor (para a sua carreira, entre
outras coisas). Os vigilantes não podiam ser pessoas que
Gordievsky reconhecesse, por isso foi escolhida uma
equipa do departamento chinês para executar o trabalho:
não lhes disseram exatamente quem era o suspeito, nem o
que pensavam que ele tinha feito; mandaram-nos apenas
segui-lo, comunicar os seus movimentos e não o perderem
de vista. Quando a sua família estivesse em Moscovo,
haveria ainda menos probabilidades de ele tentar fugir.
Leila e as duas meninas seriam mantidas reféns sem
perceberem. O apartamento de Gordievsky foi arrombado
pela segunda vez durante o dia e os seus sapatos e roupas
foram de novo borrifados com pó radioativo, invisível a
olho nu, mas que podia ser visto com óculos especiais e
detetado com um contador Geiger. Onde quer que fosse,
ele deixaria um rasto radioativo. 
Budanov estava desapontado por o soro da verdade não
ter funcionado, embora parecesse que Gordievsky não se
recordava do que fora dito durante o interrogatório. A
investigação prosseguia de acordo com o plano. 
 
 
Em Londres, a equipa NOCTON estava profundamente
alarmada. «Foram duas semanas muito longas», diria
Simon Brown. O MI5 avisou que Gordievsky tinha
telefonado para a mulher a partir de Moscovo, mas a
conversa não ficara toda gravada e os técnicos que
escutavam não tinham reparado se Gordievsky fizera a
importantíssima referência à escola das filhas. Ele dera o
sinal de que estava em perigo? «Não havia provas
suficientes para tirar uma conclusão definitiva.» Quando
perguntaram a um funcionário superior do MI6 que fazia a
ligação com a equipa de escutas do MI5 como é que
tinham deixado escapar o alarme dado por Gordievsky, ele
proferiu uma citação de Horácio: Indignor quandoque
bonus dormitat Homerus, muitas vezes traduzida como
«Até Homero cabeceia de sono.» Os especialistas mais
habilitados também podiam ser apanhados a dormitar. 
Depois, veio a bomba. O Serviço de Segurança
comunicou que Leila Gordievsky e as duas filhas tinham
passagem marcada num voo para Moscovo. «Quando ouvi
aquilo, o meu sangue gelou», recordou Brown. A partida
súbita da família de Gordievsky para Moscovo só podia
significar uma coisa: ele estava nas mãos do KGB e era
impossível intervir. «Impedir que elas viajassem seria uma
sentença de morte para ele.» 
Um telegrama urgente foi enviado para a estação do MI6
de Moscovo com instruções para ficarem em alerta
máximo para a ativação da Operação PIMLICO. No entanto,
na equipa de Londres, o pessimismo era profundo e havia
a convicção generalizada de que o caso estava acabado.
«Quando a família foi levada para Moscovo, pareceu certo
que Gordievsky já tinha sido detido. Uma fuga parecia
excecionalmente improvável.» O espião fora encontrado.
Mas como? O que correra mal? 
Brown recordou: «Foi um período terrível. Toda a equipa
NOCTON estava em estado de choque. Deixei de ir ao
escritório porque andavam todos de um lado para o outro
como mortos-vivos.» 
«À medida que o tempo foi passando, convenci-me de
que tínhamos feito uma enorme asneira e que o Oleg
estava morto.» 
De todos os funcionários do MI6, Veronica Price era a que
estava emocionalmente mais próxima de Gordievsky.
Desde 1978, protegê-lo tinha sido a sua tarefa mais
importante, uma preocupação diária. Ela continuava a ser
ativa e profissional, mas estava profundamente
apreensiva. «Pensei que tínhamos feito tudo o que
podíamos de acordo com o plano», diria. «A partir daquela
altura, as pessoas de Moscovo tinham de assumir o
controlo.» Price não se lamentou. O homem que estava
sob a sua tutela, sob a sua responsabilidade pessoal,
desaparecera, mas ainda acreditava que seria encontrado,
e salvo. 
Price tinha sido avisada de que os mosquitos podiam ser
agressivos na fronteira da Rússia com a Finlândia no
princípio do verão e comprou repelente de insetos. 
 
 
O visconde Roy Ascot, que mais tarde seria conde, era o
chefe da estação do MI6 em Moscovo e talvez o espião
mais aristocrático de sempre da Grã-Bretanha. O seu
bisavô tinha sido primeiro-ministro. O avô paterno, de
quem herdara o nome, era um erudito e um dos
advogados mais brilhantes da sua geração, e fora morto
na Primeira Guerra Mundial. O pai, o segundo conde, tinha
sido administrador colonial. As pessoas tendem a adular
servilmente a aristocracia ou a ignorá-la. Ser da alta
sociedade é um bom disfarce para espiar, e o visconde
Ascot era um espião excecionalmente bom. Depois de
ingressar no MI6, em 1980, aprendeu russo e, em 1983,
aos 31 anos, foi colocado em Moscovo. 
Antes de sair da Grã-Bretanha, Ascot e a mulher,
Caroline, foram postos a par da Operação PIMLICO. Os
cônjuges dos funcionários em exercício eram tratados
como adjuntos adicionais, não remunerados, da estação do
MI6, e em caso de necessidade eram-lhes confiados
segredos de alto nível. Filha de um arquiteto, Caroline,
viscondessa de Ascot, era erudita, imaginativa e
inabalavelmente discreta. Os Ascot viram uma fotografia
de Gordievsky e simularam os planos para estabelecer o
contacto de raspão e a exfiltração. Veronica Price
descreveu-lhes pessoalmente Gordievsky, sem nunca
revelar o seu nome, onde poderia estar ou o que fazia.
Todos se referiam a ele como PIMLICO. «Veronica parecia
saída de um romance do John le Carré. No seu rosto,
modos e comportamento, descreveu o homem muito
simplesmente como um herói. Ela sentia uma profunda
admiração por ele e achava que era único. Ela disse-nos:
“O PIMLICO é uma pessoa absolutamente notável.”» 
Dois anos antes da comissão de serviço em Moscovo, os
Ascot tinham feito diversas vezes o percurso de carro entre
Moscovo e Helsínquia para se familiarizarem com a rota de
fuga e com o ponto de encontro. Apenas cinco pessoas em
Moscovo estavam a par do plano de fuga: Ascot e a
mulher; o seu vice, Arthur Gee, um funcionário experiente
que deveria substituir Ascot em breve como diretor da
estação, e a mulher, Rachel; e a secretária do MI6, Violet
Chapman. Os cinco viviam no condomínio dos expatriados
na Kutuzovsky Prospekt. Todos os meses, um deles ia ao
Mercado Central e procurava um homem com um saco do
Safeway. Sempre que Gordievsky regressava a casa de
licença, e durante várias semanas antes e depois,
chovesse ou fizesse sol, um deles verificava o local do sinal
ao pé da padaria do outro lado da avenida todos os fins de
tarde. A rota era deliberadamente arbitrária. Violet
conseguia ver o local da caixa da escada à porta do seu
apartamento. Quando era a vez de Ascot e Gee, estes
monitorizavam o local a pé ou quando iam a caminho de
casa no carro. «Tínhamos de ser bastante imaginativos a
elaborar as alterações para que não se criasse um padrão
que pudesse ser detetado pelas pessoas que sabíamos que
estavam a vigiar-nos e a escutar-nos. Não imagina o
número de conversas artificialmente feitas e
artificialmente cortadas que eram necessárias para
cronometrar esta manobra.» A equipa mantinha uma
grande quantidade de chocolates à mão, prontos para o
sinal de reconhecimento. «Grandes quantidades de
chocolates velhos, por comer, acumulavam-se nos bolsos
dos nossos casacos, nas carteiras e nos porta-luvas dos
carros.» Ascot ficaria com uma aversão eterna ao
chocolate KitKat. 
Ascot conhecia o plano de fuga de cor e não o tinha em
grande conta. «Era um plano complexo e nós sabíamos
como tudo aquilo era fraco. Parecia muito improvável que
acontecesse.» A Operação PIMLICO previa a exfiltração de
quatro pessoas, dois adultos e duas meninas pequenas.
Ascot tinha três filhos com menos de seis anos e já era
muito difícil mantê-los sentados quietos no banco de trás
do carro. Nem conseguia imaginar como é que reagiriam
se fossem enfiados num porta-bagagem. Mesmo que o
espião conseguisse iludir a vigilância durante tempo
suficiente para chegar à fronteira, o que parecia
improvável, as probabilidades de os funcionários do MI6
despistarem o KGB e chegarem ao ponto de encontro sem
serem intercetados eram quase nulas. 
«O KGB estava sempre em cima de nós.» Os
apartamentos dos diplomatas encontravam-se sob escuta,
e o mesmo acontecia com os seus carros e telefones. O
KGB ocupava o andar de cima: «Todas as noites, víamo-los
levar as gravações em caixas da Cruz Vermelha, depois de
terem estado sentados lá em cima a escutar-nos.» E
também tinham fortes suspeitas de que havia câmaras
escondidas. Sempre que Caroline ia às compras, tinha um
comboio de três carros do KGB à sua espera. O próprio
Ascot chegava a ser acompanhado por cinco. Os carros de
pessoas que se pensava serem funcionários do MI6 eram
borrifados com o mesmo pó radioativo que fora colocado
nas roupas e nos sapatos de Gordievsky. Se o pó
aparecesse nas roupas de alguém que era suspeito de
espiar para a Grã-Bretanha, isso constituira prova de
contacto. Além disso, por vezes o KGB borrifava o calçado
de possíveis espiões com um odor químico impercetível
para os seres humanos, mas facilmente detetado por cães
treinados. Cada funcionário do MI6 tinha dois pares de
sapatos idênticos, para poder calçar um par não
contaminado em caso de necessidade. Outro par era
mantido no interior da estação, na embaixada, fechado
num saco de plástico. Eram conhecidos como sapatos «à
prova de cães». A única forma de marido e mulher
comunicarem em casa era através de bilhetes, na cama,
por baixo dos lençóis. Normalmente, eram escritos com
tinta solúvel, em papel higiénico que podia depois ser
deitado na sanita. «Éramos vigiados constantemente.
Quase nunca tínhamos privacidade, fosse onde fosse. Era
esgotante e muito stressante.» Mesmo na embaixada, o
único lugar onde podíamos ter a certeza de que as
conversas não eram ouvidas era «na sala segura» na cave,
«uma espécie de contentor rodeado de barulho dentro de
um espaço vazio». 
O primeiro sinal de uma mudança de ritmo veio na
segunda-feira, 20 de maio, com um telegrama a avisar que
a Operação PIMLICO estava agora em alerta máximo.
«Sentimos que havia algum problema», escreveu Ascot.
«Tentámos resistir a esta sensação, porém, ao contrário
dos três anos anteriores, sentíamos que, uma noite, podia
ser a sério.» Passados 15 dias, depois da partida de Leila e
das crianças, a mensagem de Londres indicava que o local
do sinal deveria ser monitorizado com um cuidado ainda
maior. «Os telegramas diziam: “Não há motivo para
preocupação”», recordou Ascot, «pelo que havia
claramente algum motivo para nos preocuparmos». 
 
 
Gordievsky foi esperar a mulher e as filhas ao aeroporto
de Moscovo. E o KGB também. Leila estava animada. Um
funcionário da Aeroflot acompanhara-a e às filhas até ao
avião em Londres e outro recebeu-as em Moscovo e
escoltou-as desde a cabina de primeira classe. Passaram à
frente na fila dos passaportes. Ser mulher do rezident tinha
as suas vantagens. Leila ficou aliviada ao ver Gordievsky à
espera na zona das chegadas. «Fantástico. Ele está bem»,
pensou. 
Contudo, ao olhar para o rosto macilento e para a
expressão perturbada de Gordievsky, mudou de opinião.
«Ele estava com uma aparência terrível, stressado e
tenso.» Já no carro, Oleg explicou-lhe: «Estou metido em
grandes sarilhos. Não podemos voltar para Inglaterra.» 
Leila ficou surpreendida. «Porque não?» 
Gordievsky respirou fundo e mentiu. 
«Há um conluio contra mim, e um grande falatório, mas
sou inocente. Está a ser montada uma conspiração contra
mim nos bastidores. Como fui nomeado rezident, um bom
cargo com muitos candidatos, algumas pessoas querem
derrubar-me. Estou numa posição muito difícil. Não
acredites no que poderás ouvir acerca de mim. Não sou
culpado de nada. Sou um funcionário honesto, sou um
cidadão soviético leal.» 
Leila tinha sido criada no seio do KGB e estava
familiarizada com a maliciosa coscuvilhice e as intrigas
que grassavam no Centro. O marido tinha subido muito, e
depressa, na organização, por isso era evidente que os
seus desleais e invejosos colegas quereriam derrubá-lo.
Após o choque inicial, o seu otimismo natural voltou. «Sou
uma mulher pragmática e realista. Por vezes, talvez
ingénua. Aceitei o que ele me disse. Eu era a sua esposa.»
O conluio contra ele chegaria ao fim e a sua carreira
voltaria ao normal, como acontecera antes. Oleg devia
tentar descontrair e esperar que a crise passasse. Tudo
acabaria bem. 
Leila não reparou no carro do KGB que os seguiu desde o
aeroporto. Gordievsky não lhe chamou a atenção. 
Não disse à mulher que tivera de entregar o passaporte
diplomático e que agora estava de licença, por tempo
indefinido. Também não revelou que a sua caixa com livros
ocidentais fora confiscada e que recebera instruções para
assinar um documento a admitir a posse de literatura
antissoviética. Por causa dos microfones escondidos, e
para o bem de Leila, manteve a charada, queixando-se
vigorosamente da injustiça e da infundada conspiração
contra si: «É um escândalo tratarem um coronel do KGB
desta forma.» Ela não sabia que os colegas já não o
olhavam nos olhos e que ele passava o dia inteiro sentado
a uma secretária vazia. Não lhe disse que o apartamento
estava sob escuta, nem que estavam a ser vigiados 24
horas por dia pelo KGB. Não lhe disse nada, e Leila
acreditou nele. 
Mas Leila percebeu que o marido estava sujeito a uma
intensa tensão psicológica. Oleg tinha uma aparência
horrível, os olhos encovados e raiados de sangue.
Começou a beber rum cubano, anestesiando-se para
conseguir dormir todas as noites. Até começou a fumar,
para tentar acalmar os nervos em franja. Em duas
semanas perdeu mais de seis quilos. Leila obrigou-o a ser
consultado por uma médica amiga da família, que ficou
chocada com o que ouviu através do estetoscópio. «O que
se passa contigo?», perguntou-lhe. «A tua frequência
cardíaca está irregular. Estás assustado. De que tens tanto
medo?» Prescreveu-lhe sedativos. «Ele parecia um animal
enjaulado», recordou Leila. «O meu papel era acalmá-lo.
“Sou o teu porto de abrigo”, dizia-lhe. “Não te preocupes.
Bebe, se quiseres. Eu não me importo”.» 
À noite, embrutecido pelo rum e cheio de pânico,
Gordievsky remoía as suas opções limitadas. Devia contar
a Leila? Devia tentar estabelecer contacto com o MI6?
Poderia ativar o plano de fuga e tentar escapar? Se o
fizesse, devia levar Leila e as filhas? Por outro lado,
sobrevivera ao interrogatório drogado e não fora preso. O
KGB estava mesmo a recuar? Se ainda não tinham provas
para o prender, uma tentativa de fuga seria disparatada e
prematura. Acordava exausto, sem ter chegado a uma
decisão, com a cabeça a latejar e o coração aos pulos. 
Foi a mãe que o persuadiu de que ele precisava de fazer
uma pausa. As muitas vantagens de pertencer ao KGB
incluíam o acesso a diversas termas e centros de férias.
Um dos mais exclusivos era o sanatório em
Semyonovskoye, cerca de 100 quilómetros a sul de
Moscovo, construído pelo presidente do KGB, Andropov,
em 1971 para o «descanso e cura dos líderes do Partido
Comunista e do Governo soviético»79. Mantendo a falsa
aparência de que tudo estava bem, as autoridades do KGB
autorizaram Gordievsky a passar duas semanas nas
termas. 
Antes de partir, telefonou ao seu velho amigo Mikhail
Lyubimov, o antigo rezident do KGB em Copenhaga, que
agora tentava ganhar a vida como escritor. «Estou de
volta. E parece que vai ser permanente», disse-lhe, com
uma «voz entrecortada». Marcaram um encontro. «Fiquei
completamente espantado com a sua aparência»,
escreveu Lyubimov. «Pálido como a morte, enervado, com
movimentos agitados e um discurso confuso. Explicou-me
os seus problemas dizendo que alguns livros de Soljenítsin
e de outros emigrados tinham sido encontrados na sua
casa de Londres, que isso tinha sido comunicado pelos
seus inimigos na rezidentura e em Moscovo transformara-
se numa questão muito séria.» Lyubimov, sempre otimista,
tentou animá-lo: «Esquece isso, homem. Que tal deixares o
KGB e escreveres um livro? Sempre gostaste de história e
tens um bom cérebro.» Mas Gordievsky parecia
inconsolável, bebendo vodca sem parar. («Um dado novo»,
referiu Lyubimov. «Sempre pensei que ele era uma das
poucas pessoas no KGB que não bebiam.») Gordievsky
declarou que ia para uma quinta a fim de «recuperar o
sistema nervoso» e desapareceu a cambalear na noite de
Moscovo. Lyubimov ficou bastante preocupado com o
estado de espírito do velho amigo para ligar para Nikolai
Gribin, com quem continuava a dar-se bem. «O que se
passa com o Oleg? Já não é o homem que era. O que
aconteceu para ele chegar a este ponto?» Gribin
«balbuciou alguma coisa a respeito da estância do KGB em
Semyonovskoye, onde um malogrado rezident podia curar-
se» e acrescentou: «Ele vai para lá em breve.» Dito isto,
desligou. 
À medida que a data da partida se aproximava,
Gordievsky tomou uma decisão. Antes de partir para o
sanatório faria o sinal no Mercado Central a indicar que
precisava de transmitir uma mensagem. Depois de
regressar, dali a três domingos, iria ao local de contacto de
raspão, na Catedral de São Basílio. Ainda não decidira que
mensagem enviaria ao MI6. Só sabia que tinha de
estabelecer contacto, para não enlouquecer.  
Entretanto, os investigadores do KGB estavam a vigiar e
a esquadrinhar, vasculhando os arquivos, interrogando
todas as pessoas com quem Gordievsky trabalhara, à
procura das provas que determinariam a sua culpa e
selariam o seu destino. 
Budanov estava habituado a ser paciente. E não teve de
esperar muito tempo. 
 
 
No dia 13 de junho de 1985, Aldrich Ames cometeu um
dos mais espetaculares atos de traição da história da
espionagem: denunciou nada menos que 25 pessoas que
espiavam para os serviços secretos ocidentais contra a
União Soviética. 
No mês em que recebeu o primeiro pagamento do KGB,
Ames chegou a uma conclusão brutalmente lógica.
Qualquer um dos inúmeros espiões da CIA no interior dos
serviços secretos soviéticos poderia descobrir o que ele
estava a fazer e expô-lo. Logo, a única forma de se
proteger era revelar ao KGB todos os agentes que
poderiam traí-lo, para que os russos pudessem apanhá-los
e executá-los: «Assim, deixariam de representar uma
ameaça.» Ames sabia que estava a pronunciar a sentença
de morte de todas as pessoas que nomeou, mas concluiu
que era a única forma de garantir a sua segurança, e a
possibilidade de enriquecer. 
«Todas as pessoas que faziam parte da minha lista de 13
de junho conheciam os riscos que estavam a correr. Se
uma delas soubesse da minha existência, teria
comunicado à CIA e eu teria sido detido e enfiado na
cadeia [...] Não foi pessoal. Era assim o jogo.» 
Naquela tarde, Ames encontrou-se com Sergey
Chuvakhin no Chadwick’s, um popular restaurante em
Georgetown, e entregou-lhe mais de três quilos de
relatórios dos serviços secretos num saco de compras,
uma grande arca de segredos que tinha reunido durante as
semanas anteriores e que ficaria conhecida, de uma forma
pouco romântica, como «o grande despejo»: telegramas
confidenciais, memorandos internos e relatórios de
agentes, uma «enciclopédia de espionagem», um Quem É
Quem que revelava a identidade de todos os funcionários
importantes dos serviços secretos soviéticos que
trabalhavam para o Reino Unido, sobre os quais falara
quase de certeza durante o primeiro encontro. E
apresentou um nome; o espião do MI6 que a CIA
descobrira três meses antes e a quem dera o nome de
código TICKLE era Oleg Gordievsky. Burton Gerber alegou
que Ames descobrira o nome «por acaso». Milton Bearden,
que em breve seria o vice de Gerber na secção soviética,
alega que Ames fez o trabalho de detetive sozinho. 
O valioso filão de informações de Ames foi passado para
Moscovo sem demora e teve início uma enorme operação
de limpeza. Pelo menos dez espiões identificados por Ames
pereceriam às mãos do KGB e mais de uma centena de
operações dos serviços secretos foram comprometidas.
Pouco depois do grande despejo, Ames recebeu uma
mensagem de Moscovo, através de Chuvakhin: «Parabéns,
já é milionário!» 
Era a prova que Budanov esperava: uma prova concreta
da traição de Gordievsky, vinda diretamente da CIA. No
entanto, o KGB não atacou. Nunca se soube ao certo
porquê, mas uma combinação de complacência,
desatenção e ambição excessiva parece ser a explicação
mais provável: a divisão de contraespionagem estava
ocupada com a detenção de duas dúzias de espiões
identificados por Ames; Budanov ainda queria apanhar
Gordievsky in flagrante com o MI6, para causar máximo
embaraço à Grã-Bretanha. 
E, de qualquer maneira, sob vigilância constante,
Gordievsky nunca conseguiria escapar. 
 
 
Na manhã de 15 de junho, o terceiro sábado do mês,
Gordievsky saiu do apartamento com um saco do Safeway,
com o boné de pele cinzenta que trouxera da Dinamarca e
um par de calças cinzentas. Percorreu 500 metros a pé até
à zona comercial mais próxima, tendo o cuidado de não
tentar perceber quem o seguia, a primeira regra para
escapar à vigilância. As lições que tinha aprendido 23 anos
antes na Escola 101 eram então aplicadas. Entrou numa
farmácia e olhou casualmente pela janela enquanto fingia
observar as prateleiras. Em seguida, dirigiu-se para uma
caixa económica num primeiro andar, de onde se avistava
a rua a partir das escadas; depois, entrou numa
movimentada mercearia. A seguir, percorreu uma viela
estreita entre dois prédios de apartamentos, virou a
esquina e entrou num dos edifícios, subiu dois lanços de
escadas comunais e observou a rua. Não havia qualquer
sinal de vigilância, o que não significava que não
estivessem ali. Continuou a andar, entrou num autocarro e
avançou algumas paragens, saiu de novo, chamou um táxi
e seguiu um sinuoso caminho para o prédio de habitação
onde Marina, a irmã mais nova, vivia com o recente
marido. Subiu a escadaria principal, passou pela porta do
apartamento da irmã sem bater e desceu as escadas das
traseiras, entrou no metro e dirigiu-se para leste, mudou
de comboio, saiu, atravessou a gare e dirigiu-se de novo
para ocidente. Por fim, chegou ao Mercado Central.  
Às 11h00 parou por baixo do relógio e fingiu que
aguardava por um amigo. O lugar estava cheio de pessoas
que andavam a fazer as compras ao sábado, mas não viu
ninguém com um saco do Harrods. Passados 10 minutos,
foi-se embora. O MI6 vira o seu sinal a indicar que
precisava de estabelecer um contacto de raspão na
Catedral de São Basílio dali a três domingos? Teria de
esperar mais duas semanas antes de descobrir se o sinal
fora detetado. 
Passados dois dias, Gordievsky estava num espaçoso
quarto com vista para o rio Lopasnaya, numa das estâncias
oficiais mais luxuosas da Rússia. Mas também descobriu
que tinha um colega de quarto, um homem com 60 e
poucos anos que o seguia para toda a parte. Muitos dos
hóspedes eram claramente espiões e delatores, colocados
ali para observar e escutar. Gordievsky tinha guardado o
saco do Safeway na bagagem. Em parte, trouxera-o por
superstição, pela relutância em separar-se do seu sinal de
fuga, mas também foi uma medida prática: poderia ter de
chegar ao local do sinal à pressa. Uma tarde, encontrou o
colega de quarto a inspecionar o precioso saco de
compras. «Porque é que tem um saco de plástico
estrangeiro?», perguntou o homem. Gordievsky arrancou-
lho da mão. «Nunca se sabe quando é que pode haver
alguma coisa nas lojas que vale a pena comprar»,
respondeu com brusquidão. 
No dia seguinte, enquanto corria na floresta, avistou
funcionários de vigilância no mato, que se viraram de
costas e fingiram que estavam a urinar. Na realidade, o
sanatório de Semyonovskoye era uma prisão
extremamente confortável onde o KGB podia vigiar
Gordievsky e esperar que ele baixasse a guarda. 
O sanatório possuía uma boa biblioteca, com uma série
de livros de mapas. Sub-repticiamente, Gordievsky estudou
a região fronteiriça entre a Rússia e a Finlândia, tentando
memorizar os seus contornos. Corria todos os dias, para
melhorar a boa forma física. Quanto mais pensava na fuga,
menos impraticável lhe parecia. Devagar, através do
paralisante nevoeiro do medo, começou a tomar uma
decisão: «Não há alternativa. Se não sair do país, irei
morrer. Sou um homem morto de férias.» 
77 Em russo no original: mulher idosa ou avó. (N. da T.)
13. A Limpeza a Seco 

Gordievsky voltou do sanatório de Semyonovskoye


renovado, apreensivo, mas também, pela primeira vez
desde que regressara à Rússia, decidido: tinha de escapar.
Começaria por alertar os seus amigos britânicos de que o
KGB andava atrás dele passando uma mensagem escrita
no local do contacto de raspão na Catedral de São Basílio e
em seguida daria o sinal de fuga da Operação PIMLICO e
escaparia. As probabilidades de sucesso eram
extremamente reduzidas. Se tivesse sido traído por uma
toupeira no interior do MI6, o KGB estaria alerta. Talvez
esperassem que ele desse aquele passo e lhe preparassem
uma armadilha. Mas pelo menos morreria a tentar, já não
enredado na diabólica teia de vigilância e suspeita, à
espera de que os investigadores avançassem. 
Colocar a sua vida em risco foi a parte mais fácil daquela
decisão. E a família? Devia tentar levar Leila e as filhas
consigo, ou deixá-las em Moscovo? Durante uma década a
espiar fizera muitas escolhas difíceis, mas nada tão
agonizante como isto: uma decisão que opunha a lealdade
à prudência, uma escolha entre a sobrevivência e o amor. 
Começou a observar com muita atenção as filhas, que
agora tinham cinco e três anos, para gravar a sua imagem
na memória: Maria, a quem agora chamavam Masha, era
uma menina muito ativa e inteligente e uma atleta natural,
como o pai; a gorducha Anna tinha um enorme fascínio por
animais e insetos. À noite, ouvia as filhas falar deitadas na
cama, em inglês: «Não gosto de estar aqui», dizia Masha à
irmã mais nova. «Vamos voltar para Londres.» Atrever-se-ia
a levá-las consigo quando tentasse escapar? Sentindo o
turbilhão interno do marido, mas ignorando a verdadeira
causa, Leila disse à sogra que temia que Oleg estivesse a
ter algum tipo de crise desencadeada por problemas no
trabalho. Sempre prática, Olga Gordievsky aconselhou-a a
distraí-lo com pequenos projetos, trabalhos em casa e
reparações no carro. Leila não insistiu para que ele lhe
desse explicações, nem o recriminou por beber, embora
estivesse extremamente alarmada. A sua suave solicitude,
o seu pressentimento instintivo de que o homem que
amava estava a viver um inferno interior que não podia
partilhar tornou a decisão ainda mais difícil de suportar. 
Incluir Leila e as miúdas no plano de fuga aumentaria
drasticamente as probabilidades de fracasso. Gordievsky
estava treinado para escapar à vigilância, mas elas não.
Uma família de quatro dava muito mais nas vistas do que
um homem a viajar sozinho. Se bem que estivessem
sedadas, as filhas podiam acordar nos porta-bagagens dos
carros; podiam chorar, ou sufocar; ficariam sem dúvida
aterrorizadas. Se fossem apanhados, a inocente Leila seria
considerada cúmplice dos seus atos de espionagem e
tratada em conformidade. Seria interrogada, detida ou
pior, e sem dúvida ostracizada. As filhas seriam párias. Ele
escolhera este caminho; elas não. Que direito tinha de
expô-las a tamanho perigo? Gordievsky era um pai severo
e um marido exigente, mas era extremamente carinhoso.
A ideia de abandonar a família causava-lhe tanta angústia
que ficava ofegante e curvado de dor física. Se a fuga
fosse um sucesso, talvez os britânicos conseguissem
persuadir o Kremlin a libertar a sua família e deixá-las ir
para o Ocidente. As trocas de espiões faziam parte da
aritmética estabelecida pela Guerra Fria. Contudo, poderia
demorar anos, se alguma vez se concretizasse. Era
possível que não voltasse a ver a família. Talvez fosse
preferível correr o risco e tentarem fugir juntos, em família,
fosse qual fosse o desfecho, fosse qual fosse o perigo. Pelo
menos teriam sucesso, ou falhariam, juntos. 
Mas uma semente de dúvida começou a crescer naquele
pensamento. Os espiões trabalham com base na
confiança. Ao longo de uma vida de espionagem,
Gordievsky desenvolvera um jeito especial para detetar
lealdade, suspeita, convicção e fé. Amava Leila, mas não
confiava inteiramente nela; e, numa parte do seu coração,
temia-a. 
Filha de um general do KGB, assoberbada de propaganda
desde a infância, Leila era uma cidadã soviética leal e sem
reservas. Tinha gostado de viver no mundo ocidental, mas
nunca se envolvera de uma forma tão plena como ele.
Poria a responsabilidade política acima da lealdade
matrimonial? Em todas as culturas totalitárias, o indivíduo
é encorajado a considerar os interesses da sociedade
antes do bem-estar pessoal: da Alemanha nazi à Rússia
comunista, ao Camboja sob o jugo do Khmer Vermelho e à
Coreia do Norte dos nossos dias, a vontade de trair as
pessoas que nos são mais próximas pelo bem maior era a
marca suprema de cidadania empenhada e da pureza
ideológica. Se revelasse o seu segredo a Leila, a mulher
renunciaria a ele? Se lhe falasse sobre o plano de fuga e
lhe pedisse para ir com ele, recusaria? Denunciá-lo-ia? O
facto de Gordievsky não ter a certeza se o amor da mulher
era mais forte do que o seu comunismo, ou vice-versa, é
um sinal de como a ideologia e a política tinham
corrompido o instinto humano. Fez um teste decisivo. 
Uma noite, na varanda do apartamento, fora do alcance
dos microfones, tentou sondar a lealdade da própria
mulher num «falso espontâneo» clássico do KGB. 
«Gostaste de Londres, não gostaste?», perguntou. 
Leila concordou que a vida na Grã-Bretanha tinha sido
um sonho. Já sentia a falta dos cafés do Médio Oriente de
Edgware Road, dos parques e da música. 
Ele insistiu: «Lembras-te de dizer que querias que as
miúdas frequentassem escolas inglesas?» 
Leila acenou com a cabeça, sem saber onde ele queria
chegar. 
«Tenho inimigos aqui. Nunca mais nos vão mandar para
Londres. Mas tenho uma ideia: podíamos ir ao Azerbaijão
de férias, para visitar a tua família, e depois passar para a
Turquia pelas montanhas. Podíamos escapar e voltar para
a Grã-Bretanha. O que te parece, Leila? Vamos fugir?» 
Havia uma estreita fronteira com cerca de 18
quilómetros, fortemente militarizada, entre o Azerbaijão e
a Turquia. Claro que Gordievsky não tinha qualquer
intenção de tentar atravessá-la. Era um teste. «Queria
avaliar a reação da Leila à ideia.» Se ela concordasse, seria
um sinal de que estava disposta, a algum nível, a desafiar
as leis soviéticas e fugir com ele. Nesse caso, poderia pô-la
a par do plano PIMLICO e revelar o verdadeiro motivo que
o levava a querer fugir. Se ela recusasse, e fosse
interrogada depois do seu desaparecimento, poderia dar
uma pista falsa da sua rota de fuga e mandar os caçadores
a correr para a fronteira entre o Azerbaijão e a Turquia. 
Leila olhou-o como se ele estivesse a delirar. «Não sejas
tolo.» 
Gordievsky mudou rapidamente de assunto. E, no seu
íntimo, começou a enraizar-se uma terrível convicção.
«Doía-me tanto o coração que quase não conseguia pensar
naquilo.» Não podia confiar na lealdade da mulher e teria
de continuar a enganá-la. 
Oleg pode ter tirado a conclusão errada. Muitos anos
mais tarde, perguntaram a Leila se, caso tivesse tido
conhecimento do plano de fuga, teria informado as
autoridades. «Tê-lo-ia deixado escapar»80, respondeu ela.
«O Oleg tinha feito a sua escolha moral, e por isso, pelo
menos, merece respeito. Quer seja considerado mau ou
bom, aquele homem fez a sua escolha na vida, e fê-la
porque a considerava necessária. Conhecendo o perigo
mortal em que ele se encontrava, a minha alma não teria
carregado o pecado de o mandar para a morte.» No
entanto, não disse se estava preparada para se juntar a
ele na tentativa de fuga. Ainda na varanda, ele disse-lhe
de novo: «Há uma conspiração, as pessoas sentem muita
inveja da minha nomeação para rezident. Mas se me
acontecer alguma coisa, não acredites em nada do que te
disserem, eu sou um orgulhoso funcionário, um oficial
russo, e não fiz nada de errado.» Leila acreditou nele. 
Gordievsky não era dado à introspeção, mas à noite, com
a mulher a dormir tranquilamente ao seu lado, pensava no
tipo de pessoa que se tornara e se a sua vida dupla tinha
«inibido drasticamente o [seu] desenvolvimento
emocional». Nunca tinha dito a Leila quem era na
realidade. «Inevitavelmente, isso significava que nunca
fomos tão próximos como poderíamos ter sido em
circunstâncias normais: escondi sempre a característica
central da minha existência. Enganar o companheiro
intelectualmente é mais ou menos cruel do que enganá-lo
a nível físico? Quem sabe?» 
Porém, estava decidido. «A minha maior prioridade era
salvar a pele.» Tentaria fugir sozinho. Pelo menos dessa
forma, pensou, Leila poderia dizer honestamente ao KGB
que não sabia de nada. 
A decisão de deixar a família foi um ato de monumental
autossacrifício ou de egoísta autopreservação, ou ambos.
Oleg disse a si mesmo que não havia volta a dar, que é o
que todos dizemos a nós mesmos quando somos obrigados
a fazer uma escolha terrível. 
O pai de Leila, o idoso general do KGB, tinha uma dacha
no Azerbaijão, nas margens do lago Cáspio, onde ela
passara as férias durante a infância. Ficou combinado que
ela e as filhas iriam ter com a sua família azeri para passar
umas longas férias de verão. Masha e Anna estavam
entusiasmadas com a perspetiva de passar um mês na
dacha do avô, a nadar e a brincar ao sol. 
Despedir-se da família foi uma agonia para Gordievsky,
acima de tudo porque Leila e as miúdas não faziam a
menor ideia da importância daquele momento, o mais
triste da sua vida, que aconteceu com uma certa
indiferença, à pressa, ao pé da movimentada porta de um
supermercado. Leila estava distraída, a correr para
comprar roupa e outros produtos de última hora para a
viagem de comboio para sul. As miúdas já tinham
desaparecido no interior da loja antes de ele conseguir
abraçá-las. Leila deu-lhe um rápido beijo na face e acenou-
lhe alegremente. «Podia ter sido um pouco mais
carinhosa», disse ele, mais para si mesmo, a censura de
um homem prestes a cometer um ato de deserção que
culminaria numa separação por tempo indefinido, na
melhor das hipóteses, e, na pior, em detenção, desgraça e
execução. Leila não o ouviu. Desapareceu na loja cheia de
gente à procura das filhas, sem olhar para trás uma única
vez. E partiu-se um pedacinho do coração de Oleg. 
 
 
No domingo, 30 de junho, após três horas de limpeza a
seco, exausto e rígido de tensão, Gordievsky chegou à
Praça Vermelha, que estava repleta de turistas russos. 
No Museu Lenine, dirigiu-se para as casas de banho na
cave, trancou-se num cubículo e tirou uma esferográfica e
um envelope do bolso. Abriu o envelope com as mãos
trémulas e escreveu em letras maiúsculas: 
 
ESTOU SOB FORTE SUSPEITA E METIDO EM GRANDES PROBLEMAS,
PRECISO DE EXFILTRAÇÃO O MAIS DEPRESSA POSSÍVEL. CUIDADO COM O
PÓ RADIOATIVO E OS ACIDENTES RODOVIÁRIOS. 
 
Gordievsky desconfiava que tinha sido pulverizado com
pó de espião. Sabia que o KGB tinha uma terrível técnica
de abalroar carros que poderiam estar envolvidos numa
operação de espionagem, para obrigar os intervenientes a
mostrarem as suas intenções. 
Como último ato de evasão, entrou na GUM, o grande
armazém de retalho que se estendia ao longo da Praça
Vermelha e caminhou apressadamente de secção em
secção, subindo e descendo escadas, de um lado para o
outro. Quem estivesse a observá-lo teria presumido que
ele era um comprador muito entusiasmado e
irremediavelmente indeciso; ou que tentava despistar
quem estivesse a segui-lo. 
Só então detetou uma falha no plano de contacto de
raspão. Era suposto ser reconhecido pelo boné, mas os
homens não podiam usar chapéu na Catedral de São
Basílio. (A religião tinha sido banida na Rússia comunista,
mas, estranhamente, as marcas de respeito religioso ainda
eram observadas.) Aquele pequeno percalço tornou-se
irrelevante momentos depois, quando entrou na enorme
catedral alguns minutos antes da três da tarde; dirigiu-se
para as escadas e encontrou o caminho cortado por uma
grande tabuleta: OS ANDARES SUPERIORES ESTÃO FECHADOS PARA
RESTAURO.  
A escadaria onde devia passar a mensagem estava
interditada. Confuso, com a camisa encharcada em suor
por causa da adrenalina e do medo, olhou em volta,
fingindo que admirava o interior da catedral e tentando
perceber se a senhora de cinzento se encontrava por ali.
No meio da multidão, ninguém correspondia àquela
descrição. Sentia que as pessoas olhavam para ele. No
Metro, rasgou com todo o cuidado o envelope em
pequenos pedaços dentro do bolso, mastigou-os até os
desfazer e cuspiu-os, um por um. À beira do desespero,
chegou a casa três horas depois de sair, perguntando-se
quando, ou mesmo se, a equipa de vigilância do KGB o
perdera e voltara a encontrar. 
O contacto de raspão tinha falhado. A equipa do MI6 em
Moscovo não detetara o sinal deixado no Mercado Central
no dia 15 de junho. 
O motivo era simples. O MI6 já sabia que o último andar
da Catedral de São Basílio estava encerrado para restauro.
«Tínhamos de trabalhar partindo do princípio de que, antes
de fazer o sinal no Mercado Central, ele teria verificado o
local do contacto em São Basílio e percebido que não seria
exequível.» 
Muitos anos mais tarde, Ascot relembrou o sinal falhado
como uma bênção: «Graças a Deus. A Praça Vermelha era
um lugar terrível para um contacto de raspão, cheia de
agentes do KGB. Tentei excluir aquele ponto de encontro.
Teríamos sido apanhados.» 
O KGB esperava e observava. 
Em Londres, o MI6 tentava imaginar o que acontecera ao
seu espião e a esperança ia esmorecendo. 
O MI6 continuava a monitorizar o local do sinal de fuga.
Todas as noites, às 19h30, Ascot, Gee ou a secretária,
Violet, dirigiam-se para o passeio ao pé da padaria, por
vezes de carro (o momento do sinal tinha sido escolhido
para coincidir com uma altura conveniente em que,
normalmente, estariam a regressar do trabalho), ou a pé.
Compravam muito mais pão do que conseguiam comer.
Decidiram que, se um deles avistasse o homem com o
saco do Safeway, ligaria a Ascot e deixaria uma mensagem
acerca de ténis: seria o sinal entre eles de que a Operação
PIMLICO estava em curso. 
Na outra ponta da cidade, Gordievsky perguntava a si
mesmo como é que a sua vida chegara àquele ponto: um
inimigo do povo, prestes a abandonar a família, que bebia
em demasia e emborcava sedativos, tentando ganhar
coragem para ativar um plano que talvez fosse suicida. Fez
outra visita a Mikhail Lyubimov, que ficou mais uma vez
espantado com a mudança que se operara no
comportamento do amigo. «Ele parecia ainda pior do que
antes. Nervoso, tirou uma garrafa aberta de Stolichnaya de
exportação e encheu um copo com a mão trémula.»
Comovido e triste, Lyubimov convidou-o para passar
alguns dias na sua dacha em Zvenigorod. «Podemos
conversar e relaxar.» Lyubimov foi-se embora a pensar que
o velho amigo estava à beira do suicídio. 
De novo no apartamento, o cérebro massacrado e
exausto de Gordievsky debatia-se com um sem-fim de
perguntas. Porque é que o contacto de raspão falhara? O
MI6 abandonara-o? Porque é que o KGB continuava a
brincar com ele? Quem o traíra? Conseguiria fugir? 
William Shakespeare tem resposta para a maior parte
das questões da vida. Em Hamlet, o maior escritor de
língua inglesa refletiu sobre a natureza do destino e da
coragem, quando os problemas da vida parecem
avassaladores. «Quando as desgraças surgem, não vêm
sozinhas, mas em batalhões.»81 
Na segunda-feira, 15 de julho de 1985, Oleg Gordievsky
pegou no seu exemplar dos Sonetos de Shakespeare. 
Tinha deixado uma pilha de roupa de molho no lava-loiça
na cozinha e mergulhou o livro por baixo, na água com
detergente. Passados 10 minutos, o livro estava
encharcado.  
O único sítio do apartamento onde podia ter a certeza de
que não era visto por câmaras escondidas era uma
pequena despensa ao fundo do corredor. No seu interior, à
luz de uma vela, Gordievsky retirou a guarda molhada,
extraiu a fina folha de celofane do interior e leu as
instruções da fuga: o comboio de «Paris» para «Marselha»,
as distâncias, o marco quilométrico 836. Se fizesse o sinal
no dia seguinte, terça-feira, e este fosse confirmado, seria
recolhido no sábado. A familiaridade das instruções foi
tranquilizadora. Deitou o encharcado livro dos Sonetos na
conduta do lixo. Nessa noite dormiu com as instruções
num tabuleiro de estanho na mesa de cabeceira, por baixo
de um jornal, com uma caixa de fósforos ao lado. Se o KGB
fizesse um raide durante a noite, talvez tivesse tempo para
destruir as provas incriminatórias. 
Na manhã seguinte, terça-feira, 16 de julho, leu o plano
de fuga pela última vez na escura arrecadação e em
seguida viu a folha de celofane incendiar-se com um
pequeno clarão. O telefone tocou. Era o pai de Leila, Ali
Aliyev, o general do KGB reformado. O senhor sabia que o
genro estava a ter problemas no trabalho e a filha pedira-
lhe para cuidar dele enquanto a família estava de férias na
dacha. «Vem jantar esta noite, às sete», disse Aliyev. «Vou
preparar um apetitoso frango com alho.» 
Gordievsky pensou depressa. O convite para as 19h00
coincidia com a hora do sinal de fuga. Os técnicos do KGB
que escutavam o seu telefone ficariam desconfiados se ele
recusasse; e, se aceitasse, estariam à espera de que ele
chegasse a casa do sogro em Davitkova, nos arredores da
cidade, no preciso momento em que, com sorte, estaria
livre da vigilância no local do sinal na Kutuzovsky Prospekt.
«Obrigado», disse. «Aceito com muito prazer.» 
Gordievsky queria aperaltar-se para o encontro com o
MI6, mesmo que o KGB estivesse à espera. Vestiu fato e
gravata, calçou sapatos que deviam ser radioativos e
pegou no boné de pele dinamarquês. Em seguida tirou da
gaveta da secretária o saco de plástico do Safeway, com o
seu característico logótipo vermelho-vivo. 
O telefone voltou a tocar. Era Mikhail Lyubimov, que
reforçava o convite para ele ir passar alguns dias na sua
dacha na semana seguinte. Num ápice, Gordievsky aceitou
o convite. Disse que iria na segunda-feira; apanharia o
comboio com paragem em Zvenigorod às 11h13 e viajaria
na última carruagem. Na agenda, escreveu: «Zvenigorod
11h13.» Era mais uma pista falsa para o KGB. Na segunda-
feira seguinte estaria preso, na Grã-Bretanha ou morto. 
Saiu de casa às 16h00 e passou duas horas e 45 minutos
a fazer a mais rigorosa operação de limpeza a seco até ao
momento: lojas, autocarros, estações do metropolitano,
entrar e sair de prédios de apartamentos, parar para
comprar algumas provisões para encher o saco do
Safeway, despistando de uma forma metódica as pessoas
que o seguiam e movendo-se depressa e aleatoriamente, o
suficiente para que fosse impossível manterem a
perseguição, mas não tão depressa a ponto de ser óbvio.
Só os perseguidores mais hábeis conseguiriam segui-lo
através do labirinto que criara. Às 18h45, saiu da estação
de Kievsky. Não detetou que o seguiam. Estava «negro»,
ou pelo menos assim esperava. 
Na terça-feira, 16 de julho, num fim de tarde solarengo,
dirigiu-se em passos vagarosos para a padaria e matou o
tempo comprando um maço de cigarros. Dez minutos
adiantado para o sinal das 19h30, ocupou a sua posição no
passeio, à porta da padaria. Pelo trânsito intenso na
avenida circulavam inúmeras limusinas oficiais, com
membros do Politburo e funcionários do KGB. Acendeu um
cigarro. De repente, a ponta do passeio parecia um sítio
estupidamente suspeito para estar parado. Havia
demasiadas pessoas a andar de um lado para o outro, a ler
as notícias e os horários dos autocarros nos placards, ou a
fingir que liam. Tanta gente por ali fazia-o suspeitar. Um
Volga preto, um dos carros preferidos do KGB, desviou-se
da fila em movimento e subiu o passeio. Dois homens de
fato preto saltaram do veículo. Gordievsky estremeceu. O
condutor parecia estar a olhar para ele. Os dois homens
entraram nas lojas e voltaram a sair com uma caixa-forte:
uma rotineira recolha de dinheiro. Tentou retomar o fôlego.
Acendeu outro cigarro. 
Era a vez de Arthur Gee monitorizar o local do sinal, mas
o trânsito estava lento. 
Roy e Caroline Ascot iam jantar fora com um russo das
suas relações, um antigo diplomata. Quando entraram na
Kutuzovsky Prospekt e o seu Saab começou a dirigir-se
para leste, um carro de vigilância enfiou-se atrás, como
sempre. Era fácil detetar os veículos do KGB: por razões
desconhecidas, as escovas da lavagem automática do KGB
não conseguiam chegar a um ponto no meio do capot, por
isso todos os carros tinham um denunciador triângulo de
pó à frente. Ascot observou a larga avenida e ficou
paralisado: viu um homem parado à frente da padaria,
com um saco de plástico com um característico padrão
vermelho «como um farol no meio dos sacos de compras
castanho-claros soviéticos». Eram 19h40. Gordievsky tinha
instruções para não ficar mais de meia hora no local.  
«O Arthur não o viu», pensou Ascot, praguejando. «O
coração caiu-me aos pés.» Tocou ao de leve Caroline nas
costelas, apontou para o outro lado da rua e desenhou a
letra P, de PIMLICO, no tablier. Caroline resistiu à vontade
de virar a cabeça: «Eu sabia exatamente o que ele queria
dizer.» 
Ascot tinha 10 segundos para decidir se devia dar a volta
e fazer o sinal de reconhecimento. Havia chocolates KitKat
no porta-luvas. Mas o KGB já estava colado ao seu para-
choques e qualquer mudança de comportamento
levantaria suspeitas. Como o telefone estava sob escuta, o
KGB já sabia que iam jantar fora: fazer inversão de
marcha, sair do carro e comer um chocolate enquanto
andava pelo passeio teria denunciado ao KGB a Operação
PIMLICO. «Continuei o meu caminho, com a sensação de
que o mundo caíra e eu tinha feito a coisa errada, pelos
motivos certos.» O jantar foi um inferno. O anfitrião era um
apparatchik comunista da velha guarda e passou a noite
inteira a «falar sobre como Estaline era fantástico». Ascot
só conseguia pensar no espião com o saco do Safeway, à
espera em vão de um homem com um chocolate. 
Na verdade, enquanto Ascot seguia para leste na
Kutuzovsky, Arthur Gee passou pela padaria no seu Ford
Sierra, abrandou um pouco e observou o passeio. Parecia
haver um ror de gente a andar de um lado para o outro,
mais do que era habitual num fim de tarde durante a
semana. E ali, na beira do passeio, teve quase a certeza de
avistar um homem com um boné de pala e um invulgar
saco de plástico. Não conseguiu ter a certeza se tinha um
grande S. 
Gee continuou o seu caminho, com a adrenalina a correr
no sangue, fez inversão de marcha ao fundo da avenida,
entrou no condomínio e estacionou no parque de
estacionamento. Tentando parecer descontraído, apanhou
o elevador para o apartamento, pousou a pasta e gritou
para Rachel: «Vou comprar pão.» 
Ela percebeu imediatamente o que estava a acontecer.
«Tínhamos toneladas de pão em casa.» 
Gee vestiu as calças cinzentas sem perder tempo, pegou
no saco do Harrods e tirou um Mars da gaveta da cozinha.
Eram 19h45. 
O elevador demorou uma eternidade. Dirigiu-se para a
passagem subterrânea, refreando a vontade de correr. O
homem tinha desaparecido. Perguntou a si mesmo se
conseguiria reconhecê-lo, pois só vira uma fotografia com
muito pouca definição do agente PIMLICO parado à porta
de um talho num subúrbio dinamarquês. «Estava mesmo
convencido de que tinha visto alguém», recordou Gee. Pôs-
se na fila na padaria e manteve-se atento ao passeio, que
parecia ainda mais cheio de gente do que antes. Gee
decidiu dar outra volta, com o saco do Harrods no bolso. E
foi então que o viu. 
Um homem de estatura mediana, com um saco do
Safeway, parado ao pé de uma loja. Estava a fumar um
cigarro. Gee hesitou. Veronica nunca tinha descrito
PIMLICO como um fumador e não era o tipo de pormenor
que ela tivesse omitido. 
Gordievsky avistou Gee no mesmo momento. Prestes a ir-
se embora, tinha recuado da ponta do passeio. Não foram
as calças cinzentas do homem que lhe chamaram a
atenção, nem a forma como ele tirou um saco verde do
bolso, pegou num chocolate e rasgou o invólucro preto. Foi
a sua postura. Para os olhos famintos de Gordievsky, o
homem que caminhava na sua direção, a comer um
chocolate, parecia completa e inquestionavelmente
britânico. 
Cruzaram o olhar durante menos de um segundo.
Gordievsky ouviu-se «gritar em silêncio», em altos berros:
«Sim! Sou eu!» Gee deu mais uma dentada no Mars e
continuou a andar. 
Os dois homens sabiam, com convicção absoluta, que o
sinal fora dado e reconhecido. 
O general Aliyev estava aborrecido quando Gordievsky
chegou por fim ao seu apartamento, transpirado e
desdobrando-se em desculpas, com quase duas horas de
atraso. O frango com alho especial estava demasiado
cozido. No entanto, o genro parecia estranhamente
«eufórico» e devorou a refeição queimada com
entusiasmo. 
Roy e Caroline Ascot voltaram do excruciante jantar
aproximadamente à meia-noite, acompanhados por cinco
carros de vigilância. Ao lado do telefone havia um bilhete
da ama, a dizer que Arthur Gee tinha telefonado e que
deixara uma mensagem. 
O jogador de ténis alemão Boris Becker tinha vencido o
torneio de Wimbledon pela primeira vez, aos 17 anos. A
mensagem dizia: «Queres vir ver um vídeo de ténis esta
semana?» 
A sorrir, Ascot mostrou a mensagem à mulher. Afinal de
contas, Gee tinha apanhado o sinal de fuga. «Fiquei
aliviado por ele ter visto. Mas foi como se viesse o
Armagedão.» 
A Operação PIMLICO estava em marcha. 
 
 
A equipa de vigilância do KGB já tinha perdido
Gordievsky duas vezes. Nas duas ocasiões, ele apareceu
pouco depois, mas sabia que a partir de agora eles
estariam mais atentos, se fossem bons no que faziam.
Mas, estranhamente, não eram. 
A decisão de usar uma equipa de vigilância do Primeiro
Diretório Principal, em vez dos profissionais experientes da
Sétima Divisão, tinha sido tomada por motivos de política
interna do gabinete. Viktor Grushko não queria que a
história da traição de Gordievsky se espalhasse. O vice-
diretor do PDP estava determinado a resolver aquele
problema embaraçoso e possivelmente prejudicial a nível
interno. Contudo, a equipa que foi destacada para seguir o
suspeito estava acostumada a vigiar diplomatas chineses,
um trabalho maçador que requeria pouca imaginação ou
habilidade. Desconheciam a identidade de Gordievsky e o
que ele tinha feito; não faziam ideia de que seguiam um
espião treinado e um perigoso traidor. Assim, quando
Gordievsky os despistou, presumiram que tinha sido
acidental. Admitir o fracasso não era um passo que
permitisse progredir na carreira dentro do KGB. Logo, em
vez de comunicarem que a sua presa tinha desaparecido,
duas vezes, ficaram aliviados quando ele reapareceu e
mantiveram-se calados. 
Na quarta-feira de manhã, 17 de julho, Gordievsky saiu
do apartamento e dirigiu-se para a estação Leninegrado,
na Praça Komsomolskaya, para comprar um bilhete de
comboio, recorrendo a todos os truques do manual de
evasão de vigilância. No banco, levantou 300 rublos em
dinheiro e perguntou a si mesmo se o KGB estaria a
monitorizar a sua conta. Atravessou um centro comercial e
em seguida dirigiu-se para um bairro próximo, onde um
caminho estreito passava entre altos prédios de habitação,
dispostos em dois blocos de três. Virou a esquina no fim do
caminho, correu 30 metros para as escadas mais próximas
e subiu um lanço. Pela janela das escadas viu um homem
com excesso de peso de casaco e gravata aparecer a
correr e depois parar e olhar para um lado e para o outro,
claramente agitado. Gordievsky encolheu-se na sombra. O
homem falou para um microfone na lapela e continuou a
correr. Passados alguns instantes, um Lada bege, outro dos
veículos preferidos do KGB, começou a subir o caminho a
grande velocidade: o homem e a mulher que seguiam no
banco da frente falavam para um microfone. Gordievsky
abafou um novo grito de terror. Ele sabia que o KGB
andava a segui-lo. Mas era a primeira vez que os apanhava
em flagrante. Deviam estar a seguir o padrão clássico de
vigilância do KGB: um carro à frente e dois por perto para
dar apoio, dois funcionários em cada um em comunicação
via rádio, um a seguir a pé sempre que necessário e o
outro ao volante do carro. Gordievsky esperou cinco
minutos e desceu. Dirigiu-se em passos rápidos para a
estrada principal, apanhou um autocarro, depois um táxi e
a seguir o metro, e por fim chegou à estação Leninegrado.
Ali, com um nome falso, reservou um bilhete em quarta
classe para o comboio da noite para Leninegrado, que
partiria às 17h30 de sexta-feira, 19 de julho, e pagou em
dinheiro. Quando chegou a casa, avistou o Lada bege
estacionado um pouco mais adiante na rua. 
 
 
Simon Brown estava de licença. O controlador de
Gordievsky ainda não se conformara com a terrível
situação: um dos agentes mais eficientes jamais
contratado pelos serviços secretos britânicos tinha sido
mandado para Moscovo e, aparentemente, fora apanhado
numa emboscada do KGB. Inevitavelmente, havia
perguntas a fazer. Como é que Gordievsky fora
descoberto? Haveria outra toupeira no MI6? O conhecido e
pesado medo da traição interna consumiu-o de novo.
Quanto a Gordievsky, agora estaria sem dúvida a definhar
numa cela do KGB, se não estivesse já morto. A relação
entre um agente e o seu controlador era uma peculiar
amálgama de profissionalismo e emoção. Um bom
controlador de agentes proporciona estabilidade
psicológica, apoio financeiro, encorajamento, esperança e
uma estranha espécie de amor; mas também a promessa
de proteção. Recrutar e controlar um agente implica o
dever de cuidar, o compromisso implícito de que a
segurança do espião virá sempre em primeiro lugar e que
os riscos não são maiores do que as recompensas. Todos
os controladores sentem o peso desse pacto, e Brown, um
homem sensível, sentia-o com mais intensidade que a
maioria. Tinha feito tudo bem, mas o caso correra mal e,
em última análise, a responsabilidade era sua. Brown
tentou não pensar no que Gordievsky devia estar a passar,
mas não conseguia deixar de pensar nisso
constantemente. Perder um agente pode parecer um ato
de traição. 
O P5, o chefe da secção operacional soviética, estava no
seu gabinete em Century House às 7h30 de quarta-feira,
17 de julho, quando o telefone tocou. Um telegrama
duplamente encriptado tinha sido enviado durante a noite
pelo gabinete de Moscovo, escondido entre o fluxo regular
de tráfego sem fios do Ministério dos Negócios
Estrangeiros. Dizia: «PIMLICO VOOU, FORTE VG [Vigilância].
EXFILTRAÇÃO EM CURSO. SUGESTÕES.» O P5 apressou-se a descer
para o gabinete de «C». Christopher Curwen estava a par
do caso em todos os pormenores, mas durante alguns
momentos pareceu agitado. 
«Temos um plano?», perguntou. 
«Sim, senhor», respondeu P5. «Temos.» 
Brown estava no jardim, a ler um livro ao sol para se
distrair, quando recebeu o telefonema do P5: «Acho que
seria melhor vir cá.» A voz era neutra. 
Um minuto depois de pousar o telefone, Brown percebeu.
«Era quarta-feira. Aquilo significava que alguma coisa
tinha acontecido na terça-feira. Devia ser o sinal de fuga.
De repente, a esperança cresceu.» Era possível que
Gordievsky ainda estivesse vivo. 
O comboio de Guildford para Londres pareceu demorar
uma eternidade. Brown chegou ao décimo segundo andar
e encontrou a equipa num frenesim de febris preparativos. 
«De repente, o trabalho foi contínuo», recordou Brown. 
Após uma série de apressadas reuniões, Martin Shawford
viajou de avião para Copenhaga para alertar os serviços
secretos dinamarqueses e coordenar os planos, antes de ir
para Helsínquia preparar o trabalho de fundo, contactar a
estação do MI6 naquela cidade, alugar veículos e fazer o
reconhecimento do ponto de encontro perto da fronteira
finlandesa. 
Partindo do princípio de que Gordievsky e a família
conseguiam atravessar a fronteira russa, começaria uma
segunda fase do plano de fuga, porque chegar à Finlândia
não era sinónimo de que ele estava em segurança. Como
Ascot observou: «Os finlandeses tinham um acordo com os
russos para entregar ao KGB quaisquer fugitivos da União
Soviética que caíssem nas suas mãos.» O termo
«finlandização» tinha passado a significar qualquer
pequeno Estado intimidado para se submeter a um vizinho
muito mais poderoso, mantendo a soberania na teoria,
mas na prática não se libertara da servidão. A Finlândia foi
oficialmente neutra durante a Guerra Fria, mas a União
Soviética mantinha muitas das condições de controlo no
país: a Finlândia não podia aderir à NATO nem permitir a
entrada de tropas ou sistemas de armamento ocidentais
no seu território; os livros e os filmes antissoviéticos eram
proibidos. Os finlandeses ficaram profundamente ofendidos
com o termo «finlandização», mas representava bem a
situação de um país obrigado a olhar para os dois lados,
com vontade de ser visto como ocidental, mas reticente e
incapaz de alienar a União Soviética. O cartoonista
finlandês Kari Suomalainen descreveu a desconfortável
posição do seu país da seguinte forma: «A arte de se
curvar ao Leste sem mostrar o traseiro ao Ocidente.»82 
Alguns meses antes, o controlador do Bloco de Leste do
MI6 tinha feito uma visita à Finlândia para se encontrar
com Seppo Tiitinen, o diretor do Serviço de Informações de
Segurança finlandês (conhecido como SUPO). O visitante
do MI6 fez uma pergunta hipotética: «Se tivéssemos um
desertor para trazer pela Finlândia, imagino que vocês
prefeririam que o tirássemos daqui sem se envolverem?»
Tiitinen respondeu: «Tem toda a razão. Contem-nos
depois.» 
Os finlandeses não queriam saber nada
antecipadamente, e se Gordievsky fosse intercetado pelas
autoridades finlandesas, seria quase de certeza devolvido
à União Soviética. Se não fosse e os soviéticos soubessem
que ele estava lá, os finlandeses seriam muito
pressionados para o apanhar. E, se não conseguissem, o
KGB era bem capaz de mandar um esquadrão de forças
especiais do Spetsnaz para fazer o trabalho. Era sabido
que os soviéticos monitorizavam os aeroportos
finlandeses, por isso fazer a família sair de Helsínquia de
avião não era uma opção. 
Em vez disso, dois carros transportariam os fugitivos
cerca de 1300 quilómetros até ao extremo norte da
Finlândia: um carro seria conduzido por Veronica e Simon e
o outro por dois funcionários dos serviços secretos
dinamarqueses: Jens Eriksen, o funcionário conhecido
como «Astérix» que tinha trabalhado com Richard
Bromhead uma década antes, e o seu parceiro, Björn
Larsen. A sudeste de Tromsø, na remota fronteira de
Karigasniemi, entrariam na Noruega, e em território da
NATO. A equipa debateu se deviam mandar um Hercules C-
130 militar para os ir buscar, mas em vez disso decidiram
que um voo regular da Noruega atrairia menos atenção.
De Hammerfest, a cidade mais a norte da Europa, em
pleno Círculo Ártico, seriam levados de avião para Oslo e
apanhariam outro voo comercial para Londres. Os
dinamarqueses tinham sido fundamentais para o caso
desde o primeiro momento, e os dois funcionários do PET
conduziriam o outro carro da fuga e acompanhariam a
equipa da exfiltração até Hammerfest. «Em parte foi por
cortesia, mas também poderia ser necessário apoio dos
finlandeses para chegarmos à Noruega: ajuda a nível local
para o caso de esbarrarmos com alguma dificuldade.» 
Veronica Price foi buscar a caixa de sapatos com o rótulo
PIMLICO, que continha quatro passaportes dinamarqueses
falsos para Gordievsky e para a sua família, com o apelido
de Hanssen. Preparou um saco de viagem com repelente
para mosquitos, roupas limpas e produtos para fazer a
barba. Gordievsky precisaria sem dúvida de se barbear.
Esperava que a equipa de Moscovo se lembrasse de levar
pneus sobressalentes, em bom estado, para o caso de
haver algum furo. Aquele pormenor também fazia parte do
plano de fuga. 
Durante quase dois meses, a equipa NOCTON (agora com
o novo nome PIMLICO) estivera à espera, triste, inativa e
ansiosa. Entusiasmados, trabalhavam agora num ritmo
frenético. 
«Houve uma mudança total de tom», recordou Brown.
«Foi um sentimento surreal. Tínhamos treinado durante
anos. E então pensámos: “Meu Deus, temos de fazer isto a
sério... Será que vai resultar?”» 
Na sala segura da embaixada britânica em Moscovo, o
pessoal da estação do MI6 reuniu-se e ensaiou um
dramático espetáculo amador. 
A viagem para a Finlândia em dois carros diplomáticos
precisava de uma justificação que o KGB, sempre à escuta,
considerasse credível. Para tornar tudo ainda mais
complicado, um novo embaixador britânico, Sir Bryan
Cartledge, chegaria a Moscovo na quinta-feira e haveria
um cocktail em sua honra na embaixada na noite seguinte.
Os dois carros teriam de estar no ponto de encontro a sul
da fronteira da Finlândia precisamente às 14h30 de
sábado, mas o KGB ficaria imediatamente desconfiado se
Ascot e Gee, nominalmente os dois diplomatas mais
importantes de Cartledge, não estivessem presentes para
celebrar a sua chegada. Precisavam de uma emergência
credível. Antes de sair de casa, Gee passou um bilhete à
mulher, escrito em papel higiénico: «Vais ter de ficar
doente», dizia. 
A história desenrolar-se ia da seguinte forma: de repente,
Rachel Gee sentiria intensas dores nas costas. Embora
fosse uma mulher com uma vitalidade considerável,
sofrera de asma e outros problemas de saúde no passado,
um facto que seria do conhecimento de todos os
funcionários do KGB que escutavam as suas conversas. Ela
e o marido combinariam ir a Helsínquia consultar um
especialista. Caroline Ascot, sua amiga, oferecer-se-ia para
os acompanhar, juntamente com o marido, aproveitando
para «passar o fim de semana fora». Os dois casais iriam
em dois carros e fariam algumas compras na capital
finlandesa. Os Ascot levariam a filha de 15 meses,
Florence, deixando os dois outros filhos com a ama.
«Decidimos que o disfarce seria melhor se levássemos a
bebé.» Iriam à receção do embaixador na sexta-feira,
partiriam imediatamente a seguir, fariam a viagem
durante a noite para Leninegrado e depois atravessariam a
fronteira finlandesa para ir à consulta em Helsínquia ao fim
da tarde de sábado. 
A representação destes quatro atores teve início naquela
tarde. No apartamento, Rachel começou a queixar-se de
uma forte dor lombar para os microfones escondidos do
KGB. As queixas tornaram-se mais intensas à medida que
o dia foi passando. «Massacrei-os», disse. A amiga Caroline
foi lá a casa para saber se podia ajudar. «Eu gemia muito e
a Caroline consolava-me», recordou Rachel. A sua imitação
de uma mulher com dores foi tão convincente que a sogra,
que se encontrava lá em casa, ficou alarmada. Gee foi dar
um passeio com a mãe, longe dos microfones, para lhe
explicar que na realidade Rachel não estava doente. «A
Rachel foi uma atriz maravilhosa», disse Ascot. Arthur Gee
ligou para um médico amigo na Finlândia, pelo telefone
que estava sob escuta, e pediu-lhe uma opinião. Também
telefonou para uma série de companhias aéreas para
saber informações sobre voos, mas pôs de parte essa
hipótese por causa do preço elevado das passagens. «E se
nós fôssemos também?», sugeriu Caroline quando Rachel
lhe disse que teriam de ir de carro até à Finlândia. A cena
tinha passado para o apartamento dos Ascot. Quando
Caroline disse ao marido que ele teria de conduzir durante
a noite até à Finlândia, com a bebé, para levar a pobre
Rachel ao médico e fazer compras, Ascot mostrou-se
extremamente relutante: «Oh, céus, que maçada. Temos
mesmo de ir? O novo embaixador está a chegar. Tenho
imenso trabalho para fazer...» E depois lá concordou em
fazer a viagem. 
Algures nos arquivos russos há um conjunto de
transcrições de escutas que, juntas, contam um pequeno e
estranho melodrama encenado pelo MI6 para o KGB. 
Ascot e Gee não sabiam se aquela charada seria uma
perda de tempo e se o plano de fuga estava condenado ao
fracasso. «Alguma coisa não cheira bem», disse Gee. Na
terça-feira à noite, ambos tinham detetado o que parecia
ser um nível invulgarmente elevado de atividade no local
do sinal, com um grande número de carros e transeuntes,
o que podia indicar um aumento da vigilância. Se o KGB os
mantivesse sob vigilância apertada até à fronteira
finlandesa, seria impossível encostar na berma da estrada
e recolher os fugitivos sem serem avistados, e a operação
seria um fracasso. Gee nem sequer tinha a certeza se o
homem com o saco de plástico do Safeway era mesmo o
PIMLICO. Talvez o KGB tivesse descoberto o plano de fuga
e resolvera mandar um substituto, estando o verdadeiro
PIMLICO já detido.  
A vigilância também parecia mais apertada à volta da
embaixada e do condomínio diplomático. «O meu medo
era que fosse tudo uma encenação», disse Gee. O KGB
podia estar a fazer teatro: arrastar o MI6 para «atividades
incompatíveis» e para uma violenta explosão diplomática
que embaraçaria o Governo britânico e dificultaria as
relações anglo-soviéticas num momento vital. «Mesmo que
estivéssemos a dirigir-nos para uma emboscada, eu sabia
que não tínhamos outra alternativa senão seguir em
frente. O sinal de fuga tinha sido feito.» Ascot ainda não
conhecia a identidade de PIMLICO, mas naquele momento
Londres decidiu revelar quem ele era: um coronel do KGB,
um agente de longa data e uma pessoa por quem valia a
pena correr aquele monumental risco. «Ficámos mais
moralizados», escreveu Ascot. 
A estação do MI6 mantinha Century House a par dos
preparativos, se bem que o número de telegramas
trocados entre Londres e Moscovo estivesse limitado ao
mínimo, não fosse o KGB detetar o aumento de atividade e
ficar desconfiado. 
Também em Londres havia inquietação no seio do
minúsculo círculo que sabia que a Operação PIMLICO
estava em curso. «Havia quem dissesse que era
demasiado perigoso. Se corresse mal, iria destruir
completamente as relações anglo-soviéticas.» Vários altos
funcionários do Ministério dos Negócios Estrangeiros
tinham muitas dúvidas a respeito do plano de fuga, entre
eles o ministro dos Negócios Estrangeiros, Geoffrey Howe,
e Sir Bryan Cartledge, o novo embaixador em Moscovo. 
Cartledge devia chegar à Rússia na quinta-feira, 18 de
julho. Tinha sido posto a par da Operação PIMLICO dois
meses antes, mas disseram-lhe que era muitíssimo
improvável que fosse implementada. Foi então informado
de que, dois dias após a sua chegada, o MI6 planeava tirar
um alto funcionário do KGB da Rússia no porta-bagagem
de um carro. O MI6 explicou que a exfiltração tinha sido
meticulosamente planeada e ensaiada, mas que também
era extremamente arriscada e, tendo ou não sucesso,
haveria importantes repercussões diplomáticas. Sir Bryan
era um diplomata de carreira com antecedentes
académicos e já estivera colocado na Suécia, no Irão e na
Rússia, antes de assumir o seu primeiro cargo diplomático
na Hungria. A nomeação para embaixador em Moscovo era
o ponto alto da sua carreira. Não ficou feliz com a situação.
«Pobre Bryan Cartledge», recordou Ascot. «Tinha
começado um trabalho novo e foi-lhe atirada aquela
bomba de fumo [...] Viu o seu último cargo de embaixador
ir pelo cano abaixo.» Se a equipa de fuga fosse apanhada
em flagrante, havia a possibilidade de o novo embaixador
ser declarado persona non grata antes mesmo de
apresentar as credenciais ao Kremlin, uma humilhante
estreia diplomática. O novo embaixador protestou com
veemência e alegou que a operação devia ser cancelada. 
Foi marcada uma reunião no Ministério dos Negócios
Estrangeiros. Nessa reunião estava presente a delegação
do MI6, composta pelo diretor, Christopher Curwen, o seu
vice, P5, o controlador do Bloco de Leste e diversos
funcionários do Ministério dos Negócios Estrangeiros,
incluindo Bryan Cartledge e David Goodall, o vice-
subsecretário. Segundo um dos presentes, Goodall «estava
em pânico» e não parava de repetir: «O que vamos fazer?»
Cartledge continuava furioso: «É um desastre. Tenho de
partir para Moscovo amanhã e daqui a uma semana estou
de volta.» O vice-diretor do MI6 estava irredutível: «Se não
fizermos isto, o Serviço nunca mais poderá levantar a
cabeça.» 
Nesse momento, Sir Robert Armstrong, o secretário do
Governo, juntou-se à reunião vindo do outro lado de
Downing Street e pousou a pasta de pele em cima da mesa
com estrondo: «Tenho a certeza de que a primeira-ministra
sente que temos o profundo dever moral de salvar este
homem.» Aquelas palavras puseram fim ao debate. Sir
Bryan Cartledge parecia «um homem a caminho da forca»
quando o contingente do Ministério dos Negócios
Estrangeiros saiu para informar o ministro, que acabara de
regressar de um funeral. Ele continuava hesitante. «E se
correr mal?», perguntou. «E se o carro for revistado?» Para
seu mérito, o novo embaixador falou: «Diremos que é uma
enorme provocação. Diremos que eles enfiaram o tipo no
porta-bagagem do carro.» 
«Hum…», disse Howe, com algumas dúvidas. «Suponho
que sim...» 
A Operação PIMLICO ainda necessitava de autorização ao
mais alto nível. Thatcher teria de aprovar formalmente o
plano de fuga. Mas a primeira-ministra estava na Escócia
com a rainha. 
 
 
Gordievsky tratou dos preparativos, fazendo aquilo que
um homem prestes a fugir não faria. A atenção aos
pormenores ajudava a manter o medo sob controlo. Agora
tinha uma missão, não era apenas uma presa, voltara a ser
um profissional. Controlava de novo o seu destino. 
Passou grande parte de quinta-feira com a irmã mais
nova, Marina, e com a família dela no seu apartamento de
Moscovo. Uma alma doce e crédula, Marina teria ficado
profundamente horrorizada se soubesse que o seu único
irmão vivo era um espião. Também visitou a mãe viúva.
Olga tinha 78 anos e estava fragilizada. Durante a sua
infância, ela representara um espírito de discreta
resistência, em contraste com a timidez e a conformidade
do pai. De todos os membros da família, a mãe viúva era a
única que talvez compreendesse os seus atos. Ela nunca o
teria denunciado, mas, como qualquer mãe, também teria
tentado persuadi-lo a desistir do que se preparava para
fazer. Abraçou-a e não lhe disse nada, sabendo que, fosse
a fuga bem-sucedida ou não, o mais provável era nunca
mais voltar a vê-la. Já em casa, telefonou para Marina e
combinou um encontro para o princípio da semana
seguinte: uma pista falsa, mantendo a simulação de que
estaria em Moscovo para além do fim de semana. Quantas
mais marcações e compromissos tivesse no futuro,
melhores seriam as probabilidades de desviar a atenção do
KGB do que se preparava para fazer. Parecia manipulador
usar a família e os amigos como distrações, mas eles
compreenderiam com certeza, mesmo que nunca lhe
perdoassem.  
Depois, Gordievsky fez uma coisa excecionalmente
imprudente, e muito engraçada. 
Ligou para Mikhail Lyubimov e confirmou que iria para a
dacha na semana seguinte. Lyubimov disse-lhe que ficava
à espera. A sua nova namorada, Tanya, estaria presente.
Iriam buscá-lo às 11h13 à estação de Zvenigorod. 
Gordievsky mudou de assunto. 
«Leste Mr. Harrington’s Washing, do Somerset
Maugham?» 
Era um dos contos da série Ashenden. Lyubimov
apresentara-o à obra de Maugham uma década antes,
quando ambos se encontravam na Dinamarca. Gordievsky
sabia que o amigo tinha a obra completa do autor.  
«É muito bom. Devias lê-lo outra vez», disse. «Está no
quarto volume. Lê, e vais perceber o que estou a dizer.» 
Conversaram mais um pouco e desligaram. 
Gordievsky tinha acabado de plantar um código de
despedida para Lyubimov e uma pista literária inequívoca:
Mr. Harrington’s Washing é a história de um espião
britânico que foge da Rússia revolucionária através da
Finlândia. 
No conto de Maugham, passado em 1917, o agente
secreto britânico Ashenden viaja no expresso transiberiano
para a Rússia numa missão. Durante a viagem, partilha a
carruagem com um empresário americano, o Sr.
Harrington, um homem encantadoramente loquaz, mas
irritantemente fastidioso. Quando o país é assolado por
uma revolução, Ashenden insiste com Harrington para que
ele apanhe o comboio para norte antes que as forças
revolucionárias se aproximem, mas o americano recusa-se
a ir-se embora sem a sua roupa, que ainda não fora
entregue pela lavandaria do hotel. Harrington é morto a
tiro na rua pela multidão revolucionária depois de receber
a roupa lavada. A história é acerca de risco – «o homem
sempre achou mais fácil sacrificar a sua vida do que
aprender a tabuada»83 – e de sair a tempo. Ashenden
apanha o comboio e foge pela Finlândia. 
Era muito improvável que os funcionários do KGB que
estavam a ouvir fossem versados em literatura inglesa do
princípio do século XX, e ainda mais improvável que
conseguissem decifrar a pista em menos de 24 horas. Mas,
não obstante, estava a correr um risco. 
Em parte, a sua rebelião tinha sido sempre cultural, uma
contestação do filistinismo da Rússia soviética. Deixar uma
obscura pista da literatura ocidental foi o seu remoque à
saída, uma demonstração da sua superioridade cultural.
Fugindo ou não, os analistas do KGB estudariam as
transcrições das suas conversas telefónicas e perceberiam
que tinham sido gozados: odiá-lo-iam ainda mais, mas
talvez também o admirassem. 
 
 
A estada anual com a rainha em Balmoral era um dos
deveres de primeira-ministra de que Margaret Thatcher
menos gostava. Thatcher dizia que a tradição que dita que
os primeiros-ministros são convidados para passar dois
dias todos os verões no castelo real escocês era «uma
entediante perda de tempo»84. A rainha também não tinha
muito tempo para a primeira-ministra e troçava do seu
sotaque de classe média, dizendo que era a «pronúncia
dos atores da Royal Shakespeare de cerca de 1950». Em
vez de ficar no castelo principal, Thatcher ficava alojada
numa choupana no recinto, onde passava os dias com as
suas caixas vermelhas e uma única secretária, o mais
longe possível do mundo real de gaitas de foles, botas de
borracha e corgis. 
Na quinta-feira, 18 de julho, Christopher Curwen marcou
uma reunião urgente com o secretário particular de
Thatcher, Charles Powell, no número 10 de Downing
Street. Ali, numa sala de reuniões privada, «C» explicou
que a Operação PIMLICO tinha sido ativada e agora
precisavam de autorização especial da primeira-ministra. 
Charles Powell era o conselheiro de maior confiança de
Thatcher e estava a par dos maiores segredos do seu
governo. Um dos poucos funcionários que conheciam o
caso NOCTON, descreveria mais tarde a tentativa de fuga
como «a coisa mais secreta que alguma vez ouvi». Nem
ele nem Thatcher conheciam o nome verdadeiro do
homem a quem ela chamava «Mr. Collins». Powell tinha a
certeza de que a primeira-ministra aprovaria, mas o plano
de fuga era «demasiado sensível para o telefone». Ela teria
de dar autorização pessoalmente, e apenas Powell poderia
perguntar-lhe. «Não podia dizer a ninguém no Número 10 o
que estava a fazer.» 
Nessa tarde, Powell saiu de Downing Street sem dizer
onde ia, seguiu de comboio para Heathrow e apanhou um
voo, que ele próprio reservara, para Aberdeen. («Era tão
secreto que mais tarde foi difícil receber o reembolso da
despesa.») Ali chegado, alugou um carro e dirigiu-se para
ocidente, no meio de uma chuva intensa. O Castelo de
Balmoral, a residência de verão da família real desde 1852,
era uma vasta pilha de granito, adornada com torreões e
construída em 50 mil acres de pântanos escoceses; num
sombrio e húmido fim de tarde, foi muito difícil encontrar a
propriedade. O relógio não parava e Powell estava exausto
e ansioso quando chegou, por fim, aos gigantescos portões
do castelo no seu pequeno carro alugado. 
O funcionário da casa real na portaria estava ao telefone,
numa discussão de alto nível sobre uma questão de
considerável importância real: a rainha queria usar o
videogravador da rainha mãe para assistir à série Dad’s
Army. Estava a ser difícil resolver aquele problema. 
Powell tentou interromper a conversa, mas foi silenciado
com um olhar frio. Na escola dos funcionários reais
ensinam a fazer olhares frios…  
Durante os 20 minutos seguintes, enquanto Powell batia
o pé e olhava para o relógio, o funcionário da casa real
continuou a falar sobre o videogravador real, qual o seu
paradeiro exato e a necessidade de o transferir de uma
sala do castelo para outra. Por fim, o problema foi
resolvido. Powell explicou quem era e disse que precisava
de falar com a primeira-ministra com urgência. Após mais
um longo interregno, foi levado à presença do secretário
particular da rainha, Sir Philip Moore, mais tarde barão
Moore de Wolvercote, GCB, GVCO, CMG, QSO e PC, e
guardião dos segredos da rainha. Moore era um cortesão
com enraizada cautela e imutável protocolo. Depois de se
reformar, passaria a ser lord-in-waiting permanente. Não
gostava de ser apressado. 
«Porque é que deseja ver a senhora Thatcher?»,
perguntou. 
«Não posso dizer-lhe», declarou Powell. «É segredo.» 
Fiel à sua noção de correção, Moore ficou melindrado.
«Não podemos ter pessoas a deambular pela propriedade
de Balmoral sem saber o que as traz cá.» 
«Mas terão de ter, porque preciso de falar com a
primeira-ministra. Agora.» 
«Porque é que precisa de falar com ela?» 
«Não lhe posso dizer.» 
«Tem de dizer.» 
«Não tenho.» 
«O que disser à primeira-ministra, ela vai dizer à rainha e
sua majestade vai contar-me. Por isso, faça o favor de
dizer o que veio cá fazer.» 
«Não. Se a primeira-ministra quiser contar à rainha e a
rainha quiser dizer-lhe, cabe-lhes a elas decidir. Mas eu não
posso.» 
O cortesão real estava furioso. Para um secretário
particular, não há nada mais humilhante do que outro
secretário particular a observar uma confidencialidade
ainda mais apurada. 
Powell levantou-se. «Vou procurar a primeira-ministra.» 
Com a expressão magoada de um homem que
testemunhou uma intolerável demonstração de má
educação, Moore chamou um criado, que levou Paul por
uma porta lateral, para o jardim húmido, e por um carreiro
para o que parecia ser «uma espécie de arrecadação». 
Margaret Thatcher estava sentada na cama, rodeada de
papéis.  
«Ela ficou muito surpreendida ao ver-me.» 
Powell demorou apenas alguns minutos a explicar a
situação, e Thatcher demorou menos tempo ainda a
autorizar a Operação PIMLICO. O espião sem nome
desempenhara um papel vital na sua liderança, com
grande risco pessoal. «Temos de honrar as promessas que
fizemos ao nosso agente», disse.  
Mais tarde, Powell comentaria: «A primeira-ministra
admirava-o profundamente, embora fosse contra alguns
dos seus princípios – ela detestava traidores. Mas ele era
diferente. Estava numa liga diferente. Ela tinha um enorme
respeito pelas pessoas que enfrentavam corajosamente o
regime.» 
«O Sr. Collins», fosse ele quem fosse, fizera um grande
serviço ao Ocidente, e agora que estava em perigo, a Grã-
Bretanha teria de fazer tudo o que estivesse ao seu
alcance para o salvar, independentemente das
repercussões diplomáticas. 
O que Thatcher não sabia – e nunca descobriu – foi que
tinha autorizado uma operação que já estava em curso. Se
não tivesse aprovado a tentativa de fuga, não haveria
forma de informar Gordievsky, que não teria ninguém à
sua espera no ponto de encontro. Teria sido abandonado. 
PIMLICO era imparável. 
 
 
14. Sexta-Feira, 19 de Julho 

10h00, embaixada britânica, Moscovo 

À medida que a hora da partida se aproximava, o


entusiasmo crescente de Roy Ascot competia com um
pavor cada vez maior. Passara grande parte da noite a
rezar. «Tinha quase a certeza de que, por muito que nos
preparássemos, nada nos poderiam ajudar durante a
operação senão rezar.» O MI6 nunca tentara passar
alguém clandestinamente pela fronteira russa. Já seria
muito difícil se PIMLICO chegasse ao ponto de encontro
sozinho, mas se, como esperavam, levasse a mulher e as
duas filhas, a probabilidade de sucesso seria infinitesimal.
«Pensei: “Este homem vai ser morto.” Não havia meio de o
plano resultar. Todos sabíamos como tudo aquilo era frágil.
Estávamos a cumprir uma promessa e não podíamos voltar
atrás, embora estivéssemos a fazer uma coisa que não ia
resultar. Na minha opinião, as nossas probabilidades de
sucesso eram de 20 por cento, ou menos.» 
Chegou um telegrama de Century House. Os superiores
em Londres «detetaram sinais de pouca firmeza» na
gestão da embaixada e enviaram uma mensagem para «se
prepararem para a ação». O texto era o seguinte: «A
primeira-ministra aprovou pessoalmente esta operação e
expressou a sua total confiança na vossa capacidade de a
levar a cabo. Aqui, todos vos apoiamos a 100 por cento e
estamos confiantes de que vão conseguir.» Ascot mostrou-
o a Cartledge para demonstrar «a continuada autorização
de alto nível em Londres». 
Depois, surgiu outro obstáculo potencialmente letal. Para
sair da União Soviética de carro, os diplomatas
estrangeiros precisavam de uma autorização formal e de
placas de matrícula especiais. Às sextas-feiras, a oficina
oficial que fazia as placas de matrícula fechava ao meio-
dia. O Ford de Gee recebeu as placas de matrícula sem
qualquer problema, mas o Saab de Ascot foi devolvido com
a mensagem: «Lamentamos, mas não podemos colocar as
placas de matrícula porque a sua mulher não tem carta de
condução.» A carteira de Caroline com a carta de
condução fora roubada no mês anterior e, para obter uma
nova, ela enviara a carta de condução britânica para as
autoridades consulares. O documento ainda não tinha sido
devolvido e a carta de condução que lhe permitiria
conduzir na União Soviética não fora emitida. Os
diplomatas não podiam conduzir sozinhos; sem um
condutor de apoio com uma carta de condução soviética
válida, Ascot não conseguiria as placas oficiais; sem essas
placas de matrícula, não poderiam sair da União Soviética.
PIMLICO estava prestes a ir por água abaixo devido a uma
minúscula, mas inamovível, pedra na burocracia russa. Às
11h00, uma hora antes de o departamento de viação
fechar para o fim de semana, Ascot ainda estava a tentar
encontrar uma solução, mas depois chegou uma
encomenda do Ministério dos Negócios Estrangeiros
soviético com a carta de condução britânica e com uma
nova carta de condução soviética. «Tínhamos uma hora
para pôr as matrículas no carro antes de a oficina fechar.
Nem queria acreditar naquele incrível golpe de sorte.»
Mas, pensando bem, Ascot perguntou a si mesmo se a
inesperada chegada atempada da carta de condução seria
um feliz acaso ou parte da armadilha do KGB: «Tínhamos
ultrapassado o último obstáculo para a viagem, mas tudo
parecia muito oportuno.» 
 
 
11h00, Leninsky Prospekt, Moscovo 
 
Gordievsky passou a manhã a limpar o apartamento de
cima a baixo. Dali a muito pouco tempo, o KGB ia destruí-
lo, arrancar as tábuas do soalho, demolir a sua biblioteca
página a página e desmantelar toda a mobília. Contudo,
um estranho orgulho fê-lo querer que a casa estivesse
«impecável» quando eles chegassem para desfazer tudo:
lavou a loiça, arrumou as porcelanas, lavou a roupa e
pendurou-a a secar. Deixou dinheiro na bancada da
cozinha para Leila, 220 rublos, o suficiente para pagar as
despesas da casa durante alguns dias. Foi um pequeno
gesto... mas de quê? De que continuaria a importar-se? Um
pedido de desculpa? Arrependimento? Provavelmente, ela
nunca veria o dinheiro. O KGB iria sem dúvida confiscá-lo
ou roubá-lo. No entanto, a exemplo da meticulosa limpeza
ao apartamento, estava a enviar uma mensagem que dizia
mais sobre si do que talvez até ele percebesse: Gordievsky
queria que pensassem que era um homem bom; queria
que o KGB, que ele enganara tão exaustivamente, o
respeitasse. Não deixou um bilhete a justificar-se,
nenhuma explicação para ter traído a União Soviética. Se
fosse apanhado, o KGB extrairia tudo isso, e aí não o faria
com algo tão suave como um soro da verdade. Deixou o
apartamento impecável e muita roupa lavada. Como o Sr.
Harrington, não fugiria deixando a roupa suja. 
Em seguida, preparou-se para despistar a equipa de
vigilância do KGB pela quarta e última vez. O timing era
crucial. Se saísse do apartamento e desaparecesse da
vista das pessoas que o vigiavam demasiado cedo, talvez
percebessem que ele estava em fuga e lançassem o
alarme. Contudo, se saísse demasiado tarde, era possível
que não conseguisse completar a limpeza a seco e
chegasse à estação ferroviária com o KGB ainda na sua
peugada. 
Arrumou as suas coisas, muito poucas, num banal saco
de plástico: um blusão fino, o boné de pele que comprara
na Dinamarca, sedativos e um pequeno mapa de estradas
de edição soviética que incluía a região da fronteira da
Finlândia, sem dúvida impreciso porque era uma zona
militarmente sensível. 
Esqueceu-se de arrumar o rapé. 
 
 
11h00, Hotel Vaalimaa, Finlândia 
 
Na Finlândia, a Operação PIMLICO estava a correr de
acordo com o plano. A equipa reuniu-se num pequeno
hotel a cerca de 15 quilómetros da fronteira. Veronica Price
e Simon Brown, que viajavam com passaportes falsos,
tinham chegado na noite anterior a Helsínquia e
pernoitaram num pequeno hotel no aeroporto. Martin
Shawford, o jovem funcionário do MI6 responsável pela
coordenação da operação na Finlândia, já os esperava
quando eles entraram no parque de estacionamento do
hotel, seguidos alguns minutos mais tarde pelos dois
funcionários do PET, Eriksen e Larsen. Por coincidência,
todos os carros tinham sido alugados à mesma agência no
aeroporto e, para horror de Shawford, agora havia três
carros idênticos estacionados no parque de
estacionamento: três Volvos vermelhos, novinhos em folha,
com matrículas seguidas. «Parecia que pertencíamos a
uma convenção. Dificilmente poderíamos dar mais nas
vistas.» Pelo menos um carro teria de ser trocado antes do
dia seguinte. 
O ponto de encontro do lado finlandês da fronteira tinha
sido selecionado quando Veronica Price elaborara o plano.
Oito quilómetros a noroeste da fronteira, um carreiro
desviava-se da estrada para a direita até entrar na
floresta. Cerca de um quilómetro e meio adiante, à
esquerda, havia uma pequena clareira onde os camiões de
transporte de madeira viravam, rodeada de árvores e
invisível da estrada principal: o local ficava bastante perto
da fronteira para garantir que Oleg e a família não
estavam escondidos nos porta-bagagens nem um minuto
mais do que o necessário, mas bastante longe para saírem
da zona de segurança da fronteira. 
A equipa combinada do MI6-PET fez um minucioso
reconhecimento da zona à volta do ponto de encontro. A
floresta finlandesa estendia-se intacta dos dois lados. Não
havia casas à vista. Aqui, encontrar-se-iam com a equipa
da fuga, transfeririam sem demora os fugitivos dos carros
do MI6 para os carros finlandeses alugados e em seguida
dividir-se-iam em dois grupos. A equipa na Finlândia
voltaria a reunir-se num segundo ponto de encontro na
floresta cerca de 15 quilómetros mais adiante, onde
poderia verificar o estado de saúde dos fugitivos, entregar-
lhes uma muda de roupa e falar livremente, sem medo de
serem ouvidos nos carros diplomáticos sob escuta.
Entretanto, a equipa de Moscovo seguiria para Helsínquia e
esperaria na primeira bomba de gasolina. A equipa da fuga
começaria a longa viagem para a fronteira da Finlândia
com a Noruega: Leila e uma das filhas viajariam no carro
dos dinamarqueses, Gordievsky e a outra filha seguiriam
com Brown e Price. Shawford reunir-se-ia com a equipa do
MI6 de Moscovo na bomba de gasolina, informaria Ascot e
Gee e em seguida faria um importante telefonema de uma
cabina telefónica ali. 
O telefonema seria automaticamente transferido para o
controlador do Bloco de Leste, que esperava com a equipa
do P5 em Century House. O telefone da bomba de gasolina
podia estar a ser monitorizado pelo KGB ou pelos serviços
secretos finlandeses, por isso, o resultado da Operação
PIMLICO teria de ser comunicado numa linguagem velada.
Se Gordievsky e a família estivessem fora da Rússia e em
segurança, Shawford diria que a pescaria nas férias tinha
sido um sucesso. No entanto, se a fuga tivesse falhado,
diria que não tinha apanhado nada. 
Depois de verificarem bem a zona do ponto de encontro,
a equipa voltou para Helsínquia, trocou um dos Volvos
vermelhos da frota por outro modelo e dispersou para
diferentes hotéis. 
 
 
12. Kutuzovsky Prospekt, Moscovo 
 
Nos apartamentos diplomáticos, Caroline Ascot e Rachel
Gee fizeram as malas. Não podiam levar roupa, pois todo o
espaço nos porta-bagagens dos carros seria necessário
para acomodar PIMLICO e a sua família. Em vez disso,
juntaram alguns sacos de viagem vazios que pareciam
volumosos quando os encheram com almofadas, mas
poderiam ficar achatados quando fossem esvaziados. O kit
da fuga, preparado pela primeira vez sete anos antes, foi
retirado do cofre da embaixada britânica: garrafas de água
e copos de plástico para crianças (por onde as meninas
beberiam com maior facilidade nos porta-bagagens
apinhados), duas grandes garrafas vazias para urinarem e
quatro «cobertores térmicos» feitos de finas folhas de
plástico que refletiam o calor e reduziam a perda de calor
em casos de hipotermia ou esforço. Pensava-se que os
sensores de calor e as câmaras de infravermelhos na
fronteira soviética podiam detetar um corpo escondido,
mas ninguém no MI6 sabia muito bem como funcionava
aquela tecnologia, ou se existia na realidade. Os fugitivos
teriam de ficar apenas em roupa interior antes de se
taparem com os cobertores; estaria quente no interior dos
porta-bagagens e, quanto mais baixas fossem as suas
temperaturas corporais, menor seria a probabilidade de
atraírem os cães. 
Caroline preparou um piquenique – um cesto grande com
tampa, onde guardou mantas, sanduíches e batatas fritas –
que seria colocado no desvio como camuflagem. Os
fugitivos podiam demorar a sair do esconderijo. Talvez se
atrasassem a chegar ao ponto de encontro. Poderia haver
outras pessoas no desvio, que ficariam desconfiadas se
quatro desconhecidos chegassem sem um objetivo
concreto. Os dois casais precisavam de ter uma explicação
inocente para saírem da estrada, e um piquenique inglês
providenciaria o disfarce perfeito. Caroline também
preparou um saco de viagem para Florence, com roupa,
comida de bebé e fraldas. Rachel Gee levou os dois filhos
pequenos e a sogra para o parque. De vez em quando,
parava e levava a mão às costas, como se estivesse com
dores. O seu desempenho foi tão convincente que a mãe
de Gee perguntou ao filho: «Tens a certeza de que a Rachel
não está doente? Ela não me parece nada bem.» 
 
 
15h00, Embaixada Britânica, Moscovo 
 
O segundo adido naval, um dos muitos especialistas
militares da embaixada, voltou para Moscovo depois de
uma viagem à Finlândia e complicou inadvertidamente os
planos: comunicou que tinha sido interrogado pelos
guardas fronteiriços do KGB em Vyborg, à entrada e à
saída da União Soviética. Contra todas as regras
diplomáticas, os guardas tinham exigido revistar-lhe o
carro, e o adido não se opusera. «Aquele estúpido deixou
que um cão farejasse o carro», disse Ascot, furioso. Se as
autoridades fronteiriças começassem a desrespeitar a
convenção e a usar cães para revistar veículos
diplomáticos britânicos, o plano de fuga ia pelo cano
abaixo. Quatro pessoas com o corpo quente, amontoadas
nos porta-bagagens de dois carros, emitiam um cheiro
forte. Sem se aperceber, o adido tinha estabelecido um
perigoso precedente no pior momento possível. 
Ascot escreveu à pressa uma nota diplomática de
protesto do embaixador para o Ministério dos Negócios
Estrangeiros, a queixar-se de que o carro do adido tinha
sido revistado e insistindo que a imunidade diplomática
britânica fora violada. A nota não foi enviada, mas Ascot
ficou com uma cópia a indicar que o tinha sido, juntamente
com uma tradução para russo das cláusulas relevantes da
Convenção de Viena. Se o KGB tentasse revistar os carros
na fronteira, ele mostraria a carta falsa. Porém, nada
garantia que aquele estratagema funcionaria: se os
guardas fronteiriços quisessem ver o que estava no interior
dos porta-bagagens dos carros, não haveria protesto oficial
que os impedisse. 
Faltava preparar um último documento. Violet, a
secretária do MI6, datilografou uma cópia das instruções
da fuga em papel solúvel. Se o KGB os prendesse, o aide-
mémoire «poderia ser dissolvido em água ou, mais
desconfortavelmente, na boca». Numa emergência
extrema, a equipa do MI6 teria de comer a Operação
PIMLICO. 
 
 
14h00, Leninsky Prospekt, Moscovo 
 
Gordievsky vestiu uma camisola fina de algodão verde,
calças de bombazina verdes desbotadas e sapatos
castanhos velhos, tirados da parte de trás do armário com
a esperança de terem escapado à contaminação com pó
radioativo ou com outro químico usado para alertar os
cães. A roupa devia ser bastante parecida com o seu fato
de treino verde para o porteiro presumir que ele ia correr
(e os vigilantes do KGB também). Fechou a porta do
apartamento à chave. O KGB voltaria a abri-la dali a
algumas horas. «Estava a deixar não apenas a minha casa
e os meus bens, mas a minha família e a minha vida.» Não
levou consigo fotografias ou outros objetos que o fizessem
recordar com emoção. Não fez telefonemas de despedida
para a mãe ou para a irmã, embora soubesse que talvez
não voltasse a vê-las. Não deixou um bilhete a explicar ou
a justificar-se. No dia mais extraordinário da sua vida, não
fez nada fora do comum. O porteiro não levantou a cabeça
quando ele passou pela entrada. Tinha exatamente uma
hora e meia para atravessar Moscovo até à estação
Leninegrado e despistar pela última vez as pessoas que o
vigiavam. 
Nas suas primeiras corridas de limpeza a seco, tinha ido
para o bairro comercial das redondezas. Desta vez,
atravessou a avenida e entrou numa zona arborizada do
outro lado, que se estendia paralelamente à estrada.
Quando deixou de ser visível da estrada, começou a correr
e foi aumentando a velocidade até quase sprintar. O gordo
funcionário de vigilância do KGB nunca conseguiria
acompanhá-lo. No fundo do parque, atravessou a rua,
voltou para trás e entrou nas lojas pelo lado oposto. Os
sacos de plástico eram bastante raros e dariam nas vistas,
por isso comprou uma pequena mala barata de napa,
encheu-a com as poucas coisas que trazia e saiu pela
entrada das traseiras. Depois, seguiu a par e passo o menu
de evasão de vigilância de forma metódica e meticulosa:
entrou numa carruagem do Metro quando a porta estava a
fechar-se, saiu duas paragens a seguir, esperou pelo
comboio seguinte e certificou-se de que todos os
passageiros tinham entrado antes de deixar as portas
fecharem-se e apanhar um comboio na direção oposta;
percorreu furtivamente uma rua, subiu e desceu outra
duas vezes, entrou numa loja pela entrada da frente e saiu
pelas traseiras.  
A estação Leninegrado estava cheia de pessoas e de
polícia. Vinte e seis mil jovens de esquerda de 157 países
chegariam a Moscovo para o Décimo Segundo Festival da
Juventude e dos Estudantes, que começaria na semana
seguinte, anunciado como uma celebração de
«solidariedade, paz e amizade anti-imperialista». Numa
enorme manifestação, Gorbachev dir-lhes-ia: «Aqui, na
pátria do grande Lenine, podem sentir diretamente até que
ponto os nossos jovens estão dedicados aos nobres ideais
da humanidade, da paz e do socialismo.»85 A maioria dos
participantes no festival não tinha vindo por Lenine, mas
pela música: entre os artistas estaria Dean Reed, o cantor
americano pró-soviético que se radicara atrás da Cortina
de Ferro, o duo pop britânico Everything But the Girl e Bob
Dylan – que fora convidado pelo poeta soviético Andrei
Voznesensky. Muitos dos jovens delegados vinham da
Escandinávia através da Finlândia. Gordievsky ficou
alarmado ao ver membros da polícia antimotim em
patrulha na estação, mas tentou tranquilizar-se: com
tantas pessoas a atravessar a fronteira a norte, os guardas
estariam tão ocupados que não prestariam demasiada
atenção a carros diplomáticos que passavam para o outro
lado. Comprou pão e salsichas num quiosque. Tanto quanto
sabia, ninguém o seguia. 
O comboio da noite para Leninegrado era composto em
grande parte por carruagens-cama de quarta classe, com
seis beliches em cada compartimento, abertos para um
corredor. Gordievsky constatou que estava no beliche de
cima. Foi buscar lençóis limpos e fez a cama. A revisora,
uma estudante que pretendia amealhar algum dinheiro
durante as férias, não pareceu prestar-lhe atenção
especial. O comboio partiu às 17h30 em ponto. Durante
duas horas, Gordievsky ficou deitado no beliche a mastigar
o seu pobre jantar e a tentar manter-se calmo, enquanto
por baixo de si os outros passageiros da carruagem faziam
palavras-cruzadas em conjunto. Tomou dois sedativos e,
pouco depois, mergulhou num sono profundo, uma mistura
de exaustão mental, medo e químicos. 
 
 
19h00, Embaixada Britânica, Moscovo 
 
O cocktail de receção ao embaixador foi um grande
sucesso. Sir Bryan Cartledge, que chegara na noite
anterior, fez um breve discurso, do qual o grupo do MI6
não se recordaria de uma única palavra. Rachel ficou em
casa, a gemer para os microfones escondidos, e de vez em
quando emitia «um ou outro soluço». Após uma hora de
conversa diplomática por baixo dos lustres, os dois
funcionários dos serviços secretos desculparam-se,
explicando que tinham de viajar durante a noite até
Leninegrado para levar Rachel a um médico na Finlândia.
Das pessoas que estavam na festa, apenas o embaixador,
o ministro, David Ratford, e a secretária do MI6, Violet
Chapman, conheciam o verdadeiro objetivo daquela
viagem. No fim da festa, Violet foi buscar o «pacote de
medicamentos» PIMLICO ao cofre do MI6 na embaixada e
entregou-o a Ascot: tranquilizantes para os adultos e duas
seringas para sedar duas aterrorizadas meninas.  
Na Kutuzovsky Prospekt, enquanto os homens
carregavam os carros, Rachel foi ao quarto onde os filhos
dormiam e deu-lhes um beijo de boa noite. Perguntou a si
mesma quando é que voltaria a vê-los. «Se formos
apanhados», pensou, «vamos ficar detidos durante muito
tempo.» Gee ajudou a rígida e coxa mulher a ir até ao Ford
Sierra e sentou-a no banco da frente. 
Cerca das 23h15, os dois carros entraram na larga
avenida e dirigiram-se para norte, com Gee à frente no
Ford enquanto Ascot seguia atrás no Saab. Os dois casais
levavam bastantes cassetes de música para a longa
viagem até Helsínquia. 
Um único carro de vigilância do KGB escoltou-os até
Sokol, nos arredores da cidade, e depois afastou-se.
Quando entraram na larga via principal, Ascot e Gee não
detetaram carros de vigilância a segui-los. Não era uma
situação necessariamente tranquilizadora. Um carro não
era o único método de vigilância de veículos usado pelo
KGB. Ao longo de todas as estradas principais havia postos
de Inspeção Estatal Automóvel (postos GAI, como eram
conhecidos) a intervalos regulares, que podiam registar a
passagem de um carro sob vigilância, avisar a estação
seguinte via rádio e, se necessário, manter contacto com
quaisquer carros de vigilância que se mantivessem um
pouco mais afastados. 
No interior dos carros, a atmosfera era transcendental e
tensa. Como se partia do princípio de que os veículos
estavam sob escuta, a gravar e a transmitir som para um
rádio invisível no carro, não poderia haver deslizes na
representação. A peça de teatro estava a entrar no
segundo ato, desta vez ambulante. Rachel queixou-se de
dores nas costas. Ascot resmungou por ter de conduzir
centenas de quilómetros com um bebé pequeno,
precisamente quando o novo embaixador tinha chegado.
Ninguém mencionou a fuga, nem o homem que esperavam
que estivesse naquele momento num comboio a caminho
de Leninegrado. 
«Isto só pode ser uma armadilha», pensou Gee, quando
Rachel adormeceu. «É impossível safarmo-nos com isto.» 
 

Sábado, 20 de Julho 
 
3h30, Comboio de Moscovo para Leninegrado 
 
Gordievsky acordou no beliche de baixo com uma forte
dor de cabeça e, durante um longo e irreal momento, sem
fazer ideia de onde estava. Um jovem estava no beliche de
cima, a olhá-lo com uma expressão estranha: «Caiu do
beliche», disse-lhe. Os sedativos tinham mergulhado
Gordievsky num sono tão profundo que, quando o comboio
travou de repente, ele tinha rebolado do beliche e caíra no
chão, fazendo um corte na têmpora. A sua camisola de
malha estava cheia de sangue; cambaleou até ao corredor
para respirar ar fresco. No compartimento ao lado, um
grupo de mulheres jovens do Cazaquistão falava
animadamente. Oleg abriu a boca para participar na
conversa, mas quando se preparava para falar, uma das
mulheres estremeceu, aterrorizada: «Se me dirigir a
palavra, eu grito.» Só então Gordievsky percebeu qual
devia ser a sua aparência: desgrenhado, sujo de sangue e
cambaleante. Recuou, pegou na mala e foi até ao fundo do
corredor. Ainda faltava mais de uma hora para o comboio
chegar a Leninegrado. Os outros passageiros fariam queixa
dele por estar embriagado? Foi procurar a revisora, deu-lhe
uma nota de cinco rublos e disse: «Obrigado pela sua
ajuda», apesar de ela não ter feito nada a não ser
entregar-lhe os lençóis. A rapariga olhou-o com uma
expressão intrigada, onde lhe pareceu detetar um toque
de censura. No entanto, guardou o dinheiro. O comboio
continuou a avançar enquanto a noite cedia a pouco e
pouco lugar ao dia. 
 
 
4h00, Estrada Principal de Moscovo para
Leninegrado 
 
A meio caminho de Leninegrado, nas colinas Valday, a
equipa da fuga deparou-se com um espetacular
amanhecer que comoveria Ascot ao ponto de se tornar
lírico: «Um denso nevoeiro tinha-se erguido dos lagos e
dos rios, estendendo-se em compridos cintos ao lado das
colinas e infiltrando-se nas árvores e nas aldeias. A terra
fundiu-se a pouco e pouco em formas substanciais saídas
daquelas margens de espuma violeta e cor-de-rosa. Três
planetas muito brilhantes brilhavam em perfeita simetria,
um à esquerda, um à direita e um em frente. Passámos por
figuras solitárias já a ceifar trigo, a arrancar ervas ou a
levar vacas para o pasto nas encostas e ravinas de terra
comunitária. Foi uma visão assombrosa, um momento
idílico. Era difícil acreditar que poderia acontecer algum
mal num dia com um início tão idílico como aquele.» 
Florence dormia tranquilamente na sua cadeirinha no
banco de trás. 
Católico devoto e um homem espiritual, Ascot pensou:
«Seguimos um caminho e estamos empenhados nele – só
existe um caminho e é o único que temos para seguir.» 
No segundo carro, Arthur e Rachel Gee estavam a viver o
seu momento transcendente quando o Sol subiu na linha
do horizonte e as terras altas russas, envoltas em
nevoeiro, se encheram de luz. 
O álbum dos Dire Straits Brothers in Arms tocava no
leitor de cassetes, e a virtuosa guitarra de Mark Knopfler
pareceu encher o amanhecer.  
 
These mist covered mountains 
Are a home now for me 
But my home is the lowlands 
And always will be 
Someday you’ll return to 
Your valleys and your farms 
And you’ll no longer burn 
To be brothers in arms 
 
Through these fields of destruction 
Baptisms of fire 
I’ve watched all your suffering 
As the battles raged higher 
And though they did hurt me so bad 
In the fear and alarm 
You did not desert me 
My brothers in arms86 
 
«Pela primeira vez, pensei: “Isto vai correr bem”»,
recordou Rachel. 
Naquele momento, um carro parecido com um Fiat com o
capô arrebitado, de fabrico soviético, conhecido como
Zhiguli, o carro de vigilância mais usado pelo KGB,
apareceu atrás dos carros da embaixada, a cerca de 60
metros. «Estávamos a ser seguidos.» 
 
 
5h00, Estação ferroviária principal, Leninegrado 
 
Gordievsky foi um dos primeiros passageiros a apear-se
quando o comboio parou. Dirigiu-se em passos rápidos
para a saída, sem se atrever a olhar para trás para ver se a
revisora estaria a falar com os funcionários da estação e a
apontar para o estranho homem que caíra do beliche e lhe
dera uma gorjeta demasiado generosa. Não havia táxis à
porta da estação. No entanto, viu uma série de carros
particulares em movimento, cujos condutores andavam a
angariar passageiros pagantes. Gordievsky entrou num:
«Para a Estação Finlândia», disse ele. 
Gordievsky chegou à Estação Finlândia às 5h45. A praça
quase deserta em frente era dominada por uma enorme
estátua de Lenine, erigida para comemorar o momento,
em 1917, em que o grande teórico da revolução chegou da
Suíça para assumir a liderança dos bolcheviques. Em gíria
comunista, a Estação Finlândia é um símbolo da liberdade
revolucionária e do nascimento da União Soviética; para
Gordievsky também representava o caminho para a
liberdade, mas na direção oposta, em todos os sentidos, a
Lenine.  
O primeiro comboio em direção à fronteira saía às 7h05 e
levá-lo-ia até Zelenogorsk, 48 quilómetros a noroeste de
Leninegrado e a pouco mais de um terço do caminho até à
fronteira finlandesa. Dali, poderia apanhar um autocarro
que o levaria pela estrada principal até Vyborg. Gordievsky
embarcou e fingiu que tinha adormecido. O comboio
seguiu num ritmo atrozmente lento. 
 
 
7h00, Sede do KGB, o Centro, em Moscovo 
 
Não é evidente o momento em que o KGB percebeu que
Gordievsky tinha desaparecido. Contudo, ao amanhecer de
20 de julho, a equipa de vigilância do Primeiro Diretório
Principal (departamento chinês) deve ter ficado muitíssimo
preocupada. Ele tinha sido visto pela última vez na sexta-
feira à tarde, a correr em direção à floresta cerca da
Leninsky Prospekt com um saco de plástico na mão. Nas
três ocasiões anteriores em que tinha desaparecido,
reaparecera poucas horas depois. Desta última vez, porém,
não regressara ao apartamento. Não estava com a irmã,
com o sogro ou com o amigo Lyubimov, nem em nenhuma
outra morada conhecida. 
Naquele momento, a ação mais sensata teria sido dar o
alarme. O KGB poderia lançar imediatamente uma caça ao
homem, destruir o apartamento de Gordievsky em busca
de provas do seu paradeiro, chamar para interrogatório
todos os amigos e familiares, redobrar a vigilância ao
pessoal diplomático britânico e fechar todas as rotas de
fuga, por ar, mar e terra. Todavia, não há provas de que a
equipa de vigilância tenha feito isto na manhã de 20 de
julho. Pelo contrário, parece que fizeram o que os
oportunistas fazem em todas as autocracias que castigam
os fracassos honestos: não fizeram nada e esperaram que
o problema desaparecesse. 
 
 
7h30, Leninegrado 
 
A equipa de exfiltração do MI6 estava estacionada à
porta do Hotel Astoriya em Leninegrado. O carro de
vigilância castanho do KGB seguira-os até ao centro da
cidade, antes de desaparecer. «Presumi que havia um
carro novo atrás de nós», escreveu Ascot. Os dois
diplomatas abriram os porta-bagagens e «mexemos
ostensivamente no interior, para mostrar à vigilância que
não tínhamos nada a esconder e que os nossos porta-
bagagens estavam mesmo cheios de bagagem». Quando
Gee e as duas mulheres entraram, para alimentar a bebé e
tomar o pequeno-almoço («uns horríveis ovos cozidos e
pão que mais parecia madeira»), Ascot manteve-se no
carro e fingiu que estava a dormir. «O KGB andava a meter
o nariz, e eu não queria ninguém a espreitar para dentro
dos carros.» Dois homens diferentes aproximaram-se e
espreitaram pela janela; nas duas ocasiões, Ascot fingiu
que acordava sobressaltado e olhou para eles com uma
expressão furiosa. 
Calculou que a viagem de 160 quilómetros até ao desvio
demoraria cerca de duas horas. Por isso, teriam de sair de
Leninegrado às 11h45 para chegarem lá com tempo de
sobra para o encontro às 14h30. O carro que os tinha
seguido até Leninegrado, e agora os tipos curiosos a
andarem à volta do carro, sugeriam um nível preocupante
de interesse por parte do KGB. «Naquele momento percebi
que iam seguir-nos até à fronteira, o que deu cabo do meu
entusiasmo.» Os potentes carros ocidentais eram mais
rápidos do que um carro do KGB fabricado na União
Soviética e podiam adiantar-se o bastante para entrarem
no desvio do ponto de encontro sem ser vistos. Mas o que
aconteceria se o KGB também tivesse um carro à frente,
como faziam por vezes? Se PIMLICO tivesse sido incapaz
de se livrar da vigilância, poderiam estar a meter-se numa
emboscada. «O que eu temia acima de tudo era que duas
equipas de vigilância do KGB estivessem a planear um
movimento convergente no ponto de encontro. O otimismo
que me restava estava a evaporar-se depressa.» 
Com duas horas de sobra, Ascot sugeriu que usassem
esse tempo para fazer uma irónica peregrinação ao
Instituto e Convento Smolny, um dos locais mais
venerados pelos comunistas. Originalmente Instituto
Smolny para Donzelas Nobres, uma das primeiras escolas
na Rússia a educar mulheres (apenas aristocratas), o
grande edifício pseudoclássico foi usado por Lenine como
quartel-general durante a Revolução de Outubro e seria a
sede do governo bolchevique até ser mudado para o
Kremlin, em Moscovo. Estava cheio do que Ascot chamava
«leniniana». 
Nos jardins do Smolny, os quatro sentaram-se num banco
e debruçaram-se ostensivamente sobre um guia de
viagem. «Foi o último conselho de guerra, para ensaiar
tudo», declarou Ascot. Se conseguissem chegar ao ponto
de encontro, o conteúdo dos porta-bagagens dos carros
teria de ser arrumado para acomodar os passageiros.
Rachel prepararia o piquenique enquanto os homens
retiravam as malas dos porta-bagagens dos carros.
Entretanto, Caroline iria para a entrada do desvio com
Florence ao colo e olharia para um lado e para o outro da
estrada. «Se alguma coisa parecesse estranha, tiraria o
lenço da cabeça.» Se o caminho estivesse livre, Gee abriria
o capô do carro para fazer sinal a PIMLICO de que era
seguro aparecer. Quaisquer microfones captariam a
conversa, por isso a recolha deveria ser efetuada sem
palavras. Se ele fosse o único fugitivo, seria escondido no
porta-bagagem do carro de Gee. A suspensão do Ford era
mais alta do que a do Saab, e o peso extra do corpo seria
um pouco menos conspícuo. «Arthur seguiria à frente, fora
do ângulo de visão da equipa de vigilância», escreveu
Ascot. «E eu protegia-o por trás, contra qualquer tentativa
de abalroamento pela retaguarda.» 
O quartel-general revolucionário de Lenine pareceu-lhes
um lugar adequado para uma conspiração. «No fundo,
estávamos a mostrar o dedo ao KGB.» 
Antes de voltarem aos carros para a última parte da
viagem, passearam até à margem do Neva e ficaram a ver
a água correr por um molhe abandonado, «agora cheio de
ferrugem, autocarros sem rodas e rolos de celofane a
flutuar por entre as algas do rio.» Ascot sugeriu que podia
ser uma boa oportunidade para uma breve comunicação
com o Todo-Poderoso. «Tivemos um momento de reflexão.
Sentíamo-nos muito ligados a algo superior – e
precisávamos disso.» 
Nos arredores de Leninegrado, passaram por um grande
posto GAI com uma torre de vigia. Passados alguns
momentos, um Lada Zhiguli azul, com dois passageiros do
sexo masculino e uma alta antena, apareceu atrás deles.
«Foi uma visão deprimente», escreveu Ascot. «Mas o pior
ainda estava para vir.» 
 
 
8h25, Zelenogorsk 
 
Gordievsky desceu do comboio e olhou em volta. A
cidade de Zelenogorsk, conhecida até 1948 pelo seu nome
finlandês, Terijoki, começava a despertar e a estação
tornava-se movimentada. Parecia impossível ter sido
seguido até ali, mas em Moscovo a equipa de vigilância já
devia ter lançado o alarme. Era possível que o posto
fronteiriço de Vyborg, 80 quilómetros a noroeste, já tivesse
sido alertado. O plano de fuga requeria que ele apanhasse
um autocarro para cumprir o resto do caminho e saísse no
marco quilométrico 836, a 836 quilómetros de Moscovo e a
25 quilómetros da cidade fronteiriça. Na central de
camionagem comprou um bilhete para Vyborg. 
O velho autocarro estava meio cheio; ao sair com
estrépito de Zelenogorsk, Gordievsky tentou instalar-se
confortavelmente no assento duro e fechou os olhos. Um
jovem casal sentou-se à sua frente. Eram conversadores e
simpáticos. De uma forma que é quase exclusiva da
Rússia, também estavam a cair de bêbedos às nove da
manhã. «Para onde vai?», perguntaram, entre soluços. «De
onde é?» Gordievsky murmurou uma resposta. Como é
hábito dos bêbedos que querem fazer conversa, repetiram
a pergunta, desta vez mais alto. Oleg disse que ia visitar
amigos numa aldeia perto de Vyborg, referindo um nome
que lhe ocorreu do estudo do mapa de estradas. Mesmo
aos seus ouvidos, soou claramente como uma mentira. No
entanto, pareceu satisfazer o casal e os dois balbuciaram
coisas inconsequentes até se levantarem e saírem, cerca
de 20 minutos mais tarde, acenando alegremente. 
Densas florestas estendiam-se dos dois lados da estrada,
coníferas misturadas com pequenas bétulas e faias pretas,
quebradas por algumas clareiras com mesas de
piquenique. Seria fácil perder-se num lugar daqueles, mas
também era bom para se esconder. Autocarros de turismo
seguiam na direção contrária, levando jovens
escandinavos para o festival de música. Gordievsky
reparou num grande número de veículos militares,
incluindo veículos blindados de transporte de tropas. A
zona fronteiriça era fortemente militarizada e estava em
curso algum tipo de exercício de treino. 
A estrada fazia uma curva para a direita e, de repente, as
fotografias que Veronica Price lhe mostrara tantas vezes
pareceram ganhar vida. Gordievsky não vira o marco
quilométrico, mas tinha a certeza de que estava no lugar
certo. Levantou-se de um salto e olhou pela janela. O
autocarro já estava quase vazio e o motorista olhou-o com
uma expressão intrigada. O autocarro parou. Gordievsky
hesitou. O autocarro recomeçou a andar. Ele percorreu
rapidamente o corredor do autocarro com a mão na boca.
«Desculpe, estou maldisposto. Pode deixar-me sair?»
Irritado, o motorista parou mais uma vez e abriu a porta.
Quando o autocarro arrancou, Gordievsky debruçou-se na
valeta, na berma da estrada, a fingir que vomitava. Estava
a dar demasiado nas vistas. Com isso, pelo menos meia
dúzia de pessoas lembrar-se-ia claramente dele: a revisora
do comboio, o homem que o encontrara desmaiado no
chão do compartimento, o casal de bêbedos e o motorista
do autocarro, que se recordaria sem dúvida de um
passageiro maldisposto que parecia não saber para onde
ia. 
A entrada do desvio ficava 300 metros mais adiante e
estava marcada pelo característico penedo. O caminho
afastava-se numa curvatura com o formato de um D com
cerca de 100 metros de comprimento, com uma barreira
de árvores na berma da estrada e mato denso de fetos e
vegetação enfezada. Um trilho militar no ponto mais largo
do D entrava na floresta à direita. A superfície de terra do
desvio estava empoeirada, mas o terreno à volta
encontrava-se encharcado, com poças de água estagnada.
O tempo começava a aquecer e a terra libertava um odor
pungente e fétido. Ouviu o zumbido de um mosquito e
sentiu a primeira picada. Depois outra. Na floresta, o
silêncio era tão profundo que parecia ecoar. Eram 10h30.
Os carros de fuga do MI6 só chegariam dali a quatro horas,
se viessem. 
O medo e a adrenalina podem ter um efeito estranho na
mente, e no apetite. Gordievsky devia ter ficado escondido
no mato. Devia ter tapado a cabeça com o casaco e
deixado os mosquitos massacrá-lo. Devia ter esperado. Em
vez disso, fez uma coisa que, em retrospetiva, foi um ato
de loucura. 
Decidiu ir a Vyborg, e beber qualquer coisa. 
 
 
12h00, Estrada Nacional de Leninegrado para
Vyborg 
 
Os dois carros do MI6 estavam nos arredores de
Leninegrado, com o Zhiguli azul do KGB a segui-los,
quando um carro da polícia soviética entrou na estrada à
frente do Saab de Ascot e se posicionou diante do pequeno
comboio. Momentos depois, um segundo carro da polícia
passou na direção oposta, ligou o pisca e fez inversão de
marcha, colocando-se atrás do veículo do KGB. Um quarto
carro, um Zhiguli cor de mostarda, juntou-se à retaguarda
da coluna. «Estávamos enforquilhados», disse Ascot.
Trocou um olhar ansioso com Caroline, mas não disse
nada. 
Passados cerca de 15 minutos, o carro da polícia que ia à
frente aumentou a velocidade e afastou-se. No mesmo
momento, o carro do KGB também acelerou, ultrapassou
os dois carros britânicos e ocupou a posição da frente. Um
quilómetro e meio mais adiante, o primeiro carro da polícia
esperava numa estrada secundária. Depois de o comboio
passar, entrou na estrada principal e ocupou a posição da
retaguarda. O comboio estava de novo cercado, mas agora
com o KGB à frente e os dois carros da polícia atrás.
Acabara de acontecer um clássico jogo de poder soviético,
coordenado via rádio e executado como uma bizarra dança
motorizada: «O KGB tinha dito à polícia: “Podem ficar, mas
quem vai dirigir esta operação somos nós.”» 
Fosse qual fosse a ordem dos veículos, era uma vigilância
intensa e eles não faziam qualquer esforço para disfarçar.
Ascot continuou a conduzir com uma expressão sombria.
«Naquele momento pensei que estávamos num
movimento convergente. Vi-nos virar para o desvio e
encontrar uma comissão de boas-vindas, um monte de
pessoas à paisana a saírem dos arbustos.» 
Os marcos quilométricos faziam a contagem
decrescente. «Não tinha um plano para lidar com aquela
situação: não tinha imaginado que poderíamos estar a
seguir para o ponto de encontro com o KGB alguns metros
à nossa frente e atrás de nós.» Com um carro à frente e
três atrás, seria impossível parar no desvio. «Se eles
continuarem connosco no ponto de encontro», pensou
Ascot, «teremos de abortar.» PIMLICO – e a família, se
fosse acompanhado pela mulher e as filhas – seria
abandonado à sua sorte. Isto partindo do princípio de que
ele conseguira sair de Moscovo. 
 
 
12h15, Um café a sul de Vyborg 
 
O primeiro carro que passou na estrada em direção a
Vyborg era um Lada e parou no momento em que
Gordievsky esticou o polegar. Pedir boleia, ou Avtostop, era
uma prática comum na Rússia, e encorajada pelas
autoridades soviéticas. Mesmo numa zona militar, uma
pessoa sozinha à boleia não era, necessariamente,
suspeita. O jovem condutor estava muito bem vestido com
roupas civis. Gordievsky pensou que podia ser militar ou do
KGB, mas a sua atitude foi muitíssimo descuidada, pois
não fez uma única pergunta e foi a ouvir música ocidental
com o volume muito alto até à entrada da cidade. Quando
Gordievsky propôs três rublos pela curta viagem, o homem
aceitou o dinheiro sem proferir uma única palavra e
afastou-se sem olhar para trás. Passados alguns minutos,
Gordievsky estava sentado a comer um bom almoço: duas
garrafas de cerveja e um prato de frango frito. 
A primeira garrafa de cerveja ficou vazia num instante e
Gordievsky começou a sentir uma aprazível sonolência
quando a adrenalina se dissipou. A perna de frango foi
uma das coisas mais saborosas que já tinha comido em
toda a sua vida. O café vazio nos arredores de Vyborg
parecia completamente banal, uma bolha de vidro e
plástico. A empregada de mesa mal olhou para ele quando
registou o pedido. Gordievsky começou a sentir-se, não
propriamente seguro, mas estranhamente calmo e de
repente exausto. 
Vyborg tinha mudado muitas vezes de nacionalidade ao
longo dos séculos, da Suécia para a Finlândia e para a
Rússia, depois para a União Soviética, de volta para a
Finlândia e, por fim, uma vez mais para a União Soviética.
Em 1917, Lenine tinha passado pela cidade comandando o
seu contingente de bolcheviques. Antes da Segunda
Guerra Mundial, embora a maioria da sua população de 80
mil habitantes fosse finlandesa, também ali viviam suecos,
alemães, russos, ciganos, tártaros e judeus. Durante a
Guerra de Inverno entre a Finlândia e a União Soviética
(1939-1940), toda a população foi evacuada e mais de
metade dos edifícios foi destruída. Após uma batalha
intensa, a cidade foi ocupada pelo Exército Vermelho e
anexada pela União Soviética em 1944, quando os últimos
finlandeses foram expulsos e substituídos por cidadãos
soviéticos. Tinha a atmosfera árida e inerte de todas as
cidades que foram demolidas, sofreram uma limpeza
étnica e foram reconstruídas rapidamente e com um
orçamento reduzido. Parecia totalmente irreal. Mas o café
estava quente. 
Gordievsky despertou com um sobressalto. Estivera a
dormir? De repente, era uma da tarde. Três homens
entraram no café e Gordievsky pensou que o olhavam com
desconfiança. Estavam bem vestidos. Tentando parecer
descontraído, pegou na segunda garrafa de cerveja,
guardou-a no saco, deixou dinheiro em cima da mesa e
saiu. Armando-se de coragem, caminhou sem pressa para
sul, e só depois de percorrer 400 metros é que se permitiu
olhar para trás. Os homens continuavam no interior do
café. Mas para onde fora o tempo? A estrada estava agora
deserta. Com a chegada da hora do almoço, os veículos
tinham desaparecido. Começou a correr. Percorridos 200
metros, estava a escorrer suor, mas acelerou. Gordievsky
continuava a ser um grande corredor. Apesar dos
problemas dos dois últimos meses, estava em boa forma.
Quando estabeleceu o ritmo, sentiu o coração bater de
medo e esforço. Um homem a pedir boleia podia passar
despercebido, mas um homem a correr numa estrada
deserta suscitaria sem dúvida curiosidade. Pelo menos,
estava a correr para longe da fronteira. Correu mais
depressa. Porque é que não tinha ficado no ponto de
encontro? Conseguiria fazer os 25 quilómetros até ao
desvio numa hora e 20 minutos? Quase de certeza que
não. No entanto, correu o mais depressa que conseguiu.
Gordievsky estava a correr pela sua vida. 
 
 
13h00, Três quilómetros a norte da aldeia de
Vaalimaa, Finlândia 
 
Do lado finlandês da fronteira, a equipa de receção do
MI6 assumiu a sua posição cedo. Sabiam que Ascot e Gee
tinham partido de Moscovo a tempo na noite anterior, mas
não havia mais notícias. Price e Brown estacionaram o
Volvo vermelho fora da estrada, na orla da clareira, e
Shawford e os dinamarqueses ocuparam as suas posições
de cada lado da estrada. Se os dois carros chegassem com
o KGB a persegui-los, Eriksen e Larsen usariam o seu
veículo para tentar bloquear ou abalroar os perseguidores.
Pareciam animados com essa possibilidade. Estava calor e
reinava o silêncio, uma estranha calmaria após a frenética
atividade dos quatro dias anteriores. 
«Senti um extraordinário período de imobilidade no
centro do mundo em movimento», recordou Simon Brown.
Tinha trazido Hotel du Lac, o romance de Anita Brookner
vencedor do Booker Prize. «Pensei que, se levasse um livro
grande, estaria a tentar o destino, por isso levei um
pequeno.» Os dinamarqueses dormitavam. Veronica Price
verificou mentalmente todos os pormenores do plano de
fuga. Brown leu o mais devagar que conseguia e tentou
«não pensar nos minutos que se arrastavam». Maus
pressentimentos eram uma constante: «Perguntei a mim
mesmo se tínhamos matado as crianças ao injetar-lhes os
fármacos.» 
 
 
13h30, Estrada nacional de Leninegrado para Vyborg 
 
Os responsáveis pelas infraestruturas rodoviárias
estavam orgulhosos da estrada nacional que ligava
Leninegrado à fronteira com a Finlândia, o principal acesso
entre a Escandinávia e a União Soviética. Era uma estrada-
modelo, larga, bem asfaltada e bem delineada, com boa
sinalização e marcações. O pequeno comboio avançava a
bom ritmo, a uma velocidade de 120 quilómetros por hora,
com o carro do KGB à frente, os carros do MI6 encurralados
no meio e dois veículos da polícia e um segundo carro do
KGB a segui-los um pouco atrás. Estava a ser tudo muito
fácil para o KGB, pelo que Ascot decidiu dificultar as
coisas. 
«Eu era vigiado há anos e sabia bem o que a Sétima
Divisão do KGB pensava. Apesar de terem consciência de
que as pessoas sabiam muitas vezes que eles andavam
por perto, ficavam muito ofendidos e embaraçados quando
alguém indicava de forma deliberada que os detetara: a
nível psicológico, nenhuma equipa de vigilância gosta de
ser exposta pelo seu alvo como óbvia e incompetente.
Detestam que levantemos dois dedos e digamos:
“Sabemos que estão aí e sabemos o que estão a tramar.”»
Por princípio, Ascot ignorava sempre a vigilância, por muito
descarada que fosse. Então, pela primeira vez, quebrou a
sua regra. 
O visconde espião reduziu a velocidade até ir apenas a
55 quilómetros por hora. O resto do comboio imitou-o. No
marco quilométrico 800, Ascot abrandou de novo até irem
a passo de caracol, sem ultrapassar os 45 quilómetros por
hora. O carro do KGB que ia à frente abrandou e esperou
que os veículos britânicos se aproximassem. Outros carros
começaram a formar uma fila atrás do comboio. 
O motorista do KGB não gostou. Os britânicos estavam a
gozar com ele, a impedir o avanço de forma deliberada.
«Por fim, o condutor do carro da frente perdeu a paciência
e afastou-se a grande velocidade. Não gostou de ser
desmascarado.» Alguns quilómetros mais adiante, o
Zhiguli azul do KGB estava à espera numa estrada
secundária para a aldeia de Kaimovo e entrou atrás dos
outros carros de vigilância. O Saab de Ascot estava de
novo à frente. 
Ascot aumentou a velocidade de forma gradual. Gee fez
o mesmo, mantendo uma distância de apenas 15 metros
entre o seu carro e o Saab da frente. Os três carros que os
seguiam começaram a ficar para trás. A estrada em frente
era a direito e tinha boa visibilidade. Ascot acelerou de
novo. Agora iam a cerca de 140 quilómetros por hora.
Entre Gee e os carros russos abrira-se um espaço de mais
de 800 metros. O marco quilométrico 826 ficou para trás.
Faltavam apenas 10 quilómetros para o ponto de
encontro. 
Ascot fez uma curva e travou a fundo. 
Uma coluna militar atravessava a estrada da esquerda
para a direita: tanques, obuses, bazucas, veículos
blindados de transporte de pessoal. Uma carrinha de pão
já estava parada à frente, à espera de que a coluna
passasse. Ascot parou atrás da carrinha. Gee parou atrás
dele. Os carros de vigilância apanharam-nos e pararam. Ao
verem os carros estrangeiros, os soldados russos que iam
em cima dos tanques levantaram os punhos cerrados e
gritaram, uma irónica saudação da Guerra Fria. 
«É isso mesmo», pensou Ascot. «Estamos tramados.» 
 
 
14h00, Estrada nacional de Leninegrado, 15
quilómetros a sudeste de Vyborg 
 
Gordievsky ouviu o ruído do motor do camião atrás de si
e esticou logo o polegar. O motorista fez sinal ao homem
que pedia boleia para entrar. «Para quê? Ali não há nada»,
disse ele quando um transpirado Gordievsky lhe explicou
que gostaria de ser deixado no marco quilométrico 836. 
Gordievsky olhou-o com o que esperou que fosse um
olhar conspiratório. «Há algumas dachas nas florestas. E
numa delas está uma linda senhora à minha espera.» O
motorista do camião emitiu um som de aprovação e
esboçou um sorriso cúmplice. 
«Que homem encantador», pensou Gordievsky quando o
motorista o deixou passados 10 minutos no ponto de
encontro e se afastou com um lascivo piscar de olhos e
três rublos no bolso. «Que encantador homem russo.» 
No desvio, rastejou para o meio do mato. Os mosquitos
esfomeados deram-lhe novamente as boas-vindas. Um
autocarro com mulheres a caminho da base militar entrou
no desvio e seguiu pelo trilho; Gordievsky colou-se à terra
molhada e perguntou a si mesmo se teria sido visto. O
único ruído que se ouvia no meio do silêncio era o zumbido
dos mosquitos e o seu coração aos pulos. Desidratado,
bebeu a segunda garrafa de cerveja. Deram as 14h30.
Depois as 14h35.  
Às 14h40 foi assolado por outro momento de loucura e
levantou-se e dirigiu-se para a estrada, começando a
caminhar na direção de onde deviam vir os carros de fuga
do MI6. Talvez pudesse poupar alguns minutos se fosse ao
seu encontro na estrada. Porém, depois de dar alguns
passos, a sanidade mental regressou. Se os carros
tivessem uma escolta do KGB, seriam todos apanhados em
terreno aberto. Correu para o desvio e escondeu-se de
novo no meio dos fetos. 
«Espera», disse para si mesmo. «Controla-te.» 
 
 
14h40, Marco Quilométrico 826, estrada nacional de
Leninegrado para Vyborg 
 
Por fim, o último veículo da coluna militar atravessou a
estrada. Ascot acelerou o motor do Saab, ultrapassou a
carrinha do pão e aumentou a velocidade, seguindo Gee a
poucos metros de distância. Já tinham um avanço de 100
metros antes de o carro do KGB ligar o motor. A estrada
em frente estava vazia. Ascot acelerou a fundo. No
gravador de cassetes ouvia-se o Messias, de Haendel.
Caroline aumentou o volume para o máximo. «Os povos
que caminhavam na escuridão viram uma grande luz; e
aqueles que habitam na terra da sombra da morte viram
sobre eles brilhar a luz.» Deprimido, Ascot pensou: «Se ao
menos...» 
Os funcionários do MI6 já tinham feito aquele percurso
diversas vezes e ambos sabiam que o desvio ficava apenas
alguns quilómetros mais adiante. Pouco depois, reduziram
a velocidade para os 140 quilómetros por hora e os carros
da escolta já estavam a 500 metros deles, com o espaço a
aumentar gradualmente. Pouco antes do marco
quilométrico 836, a estrada estreitava e descia a pique
durante cerca de 800 metros, e depois subia de novo antes
de uma curva apertada à direita. O desvio ficava à direita,
cerca de 200 metros mais adiante. O desvio estaria cheio
de russos a fazer piqueniques? Caroline Ascot ainda não
sabia se o marido ia tentar a recolha ou se passaria pelo
desvio sem parar. E Gee também não. A verdade é que
Ascot também não fazia ideia. 
Antes da descida a pique, quando Ascot fez a curva, Gee
olhou pelo espelho retrovisor e viu o Zhiguli azul aparecer
na reta, 800 metros mais atrás, a uma distância de meio
minuto, talvez menos.  
O penedo apareceu e, quase sem ter consciência do que
estava a fazer, Ascot travou, entrou no desvio e parou,
com Gee alguns metros atrás. Os pneus levantaram uma
nuvem de pó. Estavam escondidos da estrada pelas
árvores e pelo penedo. O local estava deserto. Eram
14h47. «Por favor, meu Deus, que eles não vejam o pó»,
pensou Rachel. Quando saíam rapidamente dos carros,
ouviram o som dos motores dos Ladas a gritar um protesto
quando passaram na estrada principal, a menos de 15
metros de distância do outro lado das árvores. «Se um
deles olhar pelo espelho retrovisor agora», pensou Ascot,
«vai ver-nos.» O barulho dos motores diminuiu. O pó
assentou. Caroline prendeu o lenço de cabeça, pegou em
Florence e dirigiu-se para o ponto de vigia à entrada do
desvio. Seguindo o guião, Rachel pegou no cesto e
estendeu a manta do piquenique. Ascot começou a
transferir as malas dos porta-bagagens para os bancos de
trás e Gee dirigiu-se para a frente do Saab, preparado para
abrir o porta-bagagem no instante em que Caroline desse
o sinal de que estava tudo bem. 
Naquele momento, um vagabundo saiu do meio do mato,
com o rosto por barbear e desgrenhado, coberto de lama,
fetos e pó, com sangue seco no cabelo, uma mala
castanha barata numa mão e uma expressão tresloucada
no rosto. «Não era nada parecido com a fotografia»,
pensou Rachel. «Quaisquer fantasias que tínhamos de
conhecer um elegante espião desvaneceram-se naquele
momento.» Ascot pensou que o homem parecia «um troll
da floresta ou um lenhador dos contos de fadas dos irmãos
Grimm». 
Gordievsky reconheceu Gee como o homem do chocolate
Mars. Gee quase não o vira à porta da padaria, e por
momentos duvidou que aquela desgrenhada aparição
fosse a mesma pessoa. Durante uma fração de segundo,
num trilho empoeirado numa floresta russa, o espião e as
pessoas que tinham vindo resgatá-lo entreolharam-se,
indecisos. A equipa do MI6 preparara-se para quatro
pessoas, incluindo duas crianças pequenas, mas PIMLICO
estava evidentemente sozinho. Gordievsky esperava ser
recolhido por dois funcionários dos serviços secretos.
Veronica não dissera nada a respeito de mulheres, e muito
menos mulheres que pareciam estar a preparar uma
espécie de piquenique inglês, onde não faltavam chávenas
de chá. E aquilo era uma criança? O MI6 trouxera um bebé
para uma perigosa operação de fuga? 
Gordievsky olhou de um homem para o outro e depois
resmungou, em inglês: «Qual dos carros?» 

86 Estas montanhas cobertas de bruma/ São agora um lar para mim/ Mas o meu
lar é nas planícies/ E sempre será/ Um dia regressarão/ Aos vossos vales e
quintas/ E nunca mais serão consumidos pelo desejo/ De serem irmãos de
armas. 
Nestes campos de destruição/ Batismos de fogo/ Vi todo o vosso sofrimento/
Enquanto as batalhas se intensificavam/ E embora eles me tenham magoado
tanto/ Apesar do medo e do pânico/ Não me abandonaram/ meus irmãos de
armas. (N. da T.)
15. Finlandia 

Ascot apontou para o porta-bagagem aberto do carro de


Gee. Caroline voltou apressadamente da entrada do desvio
com a bebé. Rachel pegou nos sapatos cheios de lama,
malcheirosos e possivelmente radioativos de Gordievsky,
guardou-os num saco de plástico e enfiou-os por baixo do
banco da frente do carro. Gordievsky subiu para o porta-
bagagem do Sierra e deitou-se. Gee passou-lhe a água, o
pacote com medicamentos e a garrafa vazia, e indicou-lhe
por sinais que devia despir-se. O cobertor de alumínio foi
colocado em cima dele. As mulheres guardaram o
piquenique nos bancos de trás. Gee fechou o porta-
bagagem com cuidado e Gordievsky desapareceu na
escuridão. Com Ascot à frente, os dois carros voltaram
para a estrada principal e aceleraram. 
A recolha demorara 80 segundos. 
No marco quilométrico 852, o posto GAI seguinte surgiu
no campo de visão dos diplomatas, como um memorável
tableau vivant. O Zhiguli cor de mostarda e os dois carros
da polícia estavam parados, com as portas abertas, do
lado direito da estrada. Muito sério, o homem do KGB à
paisana conversava com cinco milicianos. «No momento
em que aparecemos, todos se viraram para ver» e ficaram
a olhar, boquiabertos, quando os dois carros britânicos
passaram, com expressões de confusão e alívio. «O
motorista voltou a correr para o seu carro logo que
passámos», escreveu Ascot. «Tinha uma expressão tão
intrigada e incrédula no rosto que esperei ser mandado
parar e, no mínimo, ser interrogado sobre as nossas
movimentações.» Mas os carros de vigilância entraram na
estrada e mantiveram-se atrás deles, como antes. Teriam
avisado os guardas fronteiriços via rádio para estarem
atentos a um grupo de diplomatas estrangeiros? Teriam
feito um relatório a admitir que haviam perdido os
diplomatas britânicos durante vários minutos? Ou, ao estilo
soviético mais tradicional, concluiriam que os estrangeiros
tinham saído da estrada para se aliviarem, disfarçariam o
facto de não poderem explicar o que acontecera durante
vários minutos e não diriam nada? É impossível saber a
resposta a esta pergunta, mas é fácil adivinhar. 
Rachel e Arthur Gee ouviram resmungos e pancadas
abafados no porta-bagagem enquanto Gordievsky se
esforçava para despir a roupa no espaço apertado. A
seguir, ouviram um característico jorro quando ele
«decantou» as cervejas que bebera à hora do almoço.
Rachel aumentou o volume da música: os Greatest Hits
dos Dr. Hook, uma compilação de música rock de bandas
americanas que incluía Only Sixteen, When You’re in Love
with a Beautiful Woman e Sylvia’s Mother. O estilo de
música dos Dr. Hook é muitas vezes descrito como
«música fácil». Gordievsky não a achava fácil. Mesmo
enfiado no quentíssimo porta-bagagem do carro, a tentar
salvar a vida, ainda teve tempo para ficar irritado com
aquele pouco sofisticado e sentimentaloide pop. «Era uma
música horrível, terrível. Detestei.» 
No entanto, o que mais preocupava Rachel não era o
barulho que o passageiro secreto estava a fazer, mas o
cheiro: uma mistura de suor, sabão barato, tabaco e
cerveja que vinha da parte de trás do carro. Não era
propriamente desagradável, mas extremamente
característico e bastante forte. «Era o cheiro da Rússia.
Não era uma coisa que se encontraria num banal carro
inglês.» Os cães perceberiam sem dúvida que havia
alguma coisa no carro com um cheiro muito diferente do
cheiro dos passageiros à frente. 
Contorcendo-se todo, Gordievsky conseguiu despir a
camisa e as calças, mas o esforço deixou-o sem fôlego. O
calor já era bastante intenso e o ar no interior do porta-
bagagem parecia ficar mais denso cada vez que respirava.
Engoliu um sedativo e imaginou o que aconteceria se os
guardas fronteiriços o descobrissem. Os britânicos
fingiriam surpresa e afirmariam que o fugitivo tinha sido
plantado no carro como uma provocação. Seriam todos
detidos. Ele seria levado para o Lubyanka, obrigado a
confessar e executado.  
Em Moscovo, o KGB já devia ter percebido que havia
algum problema. No entanto, a fronteira terrestre mais
próxima ainda não tinha sido fechada, nem fora feita a
ligação entre o desaparecimento de Gordievsky e os dois
diplomatas britânicos que se tinham escapulido de uma
festa da embaixada na noite anterior para fazer uma
viagem de carro para a Finlândia. Em vez disso,
começaram por pensar que Gordievsky se tinha suicidado
e talvez estivesse no fundo do rio Moscovo, ou embriagado
num bar. Os fins de semana são momentos letárgicos em
todas as grandes burocracias, quando o pessoal menos
qualificado vai trabalhar e o chefe descansa. O KGB
começou a procurar Gordievsky sem grande pressa. Afinal
de contas, para onde poderia ele fugir? E, se se tivesse
suicidado, que maior prova de culpa poderia haver? 
No décimo segundo andar de Century House, Derek
Thomas, o vice-subsecretário do Serviço de Informações do
Ministério dos Negócios Estrangeiros, juntou-se à equipa
PIMLICO no gabinete do P5 para esperar pelo telefonema
de Shawford e saber o resultado da «viagem de pesca» na
Finlândia. No Ministério dos Negócios Estrangeiros, David
Goodall, o subsecretário permanente, reuniu os seus
conselheiros mais importantes para esperarem notícias de
Thomas. Às 13h30, 15h30 na Rússia, Goodall, um devoto
católico romano, olhou para o relógio e declarou:
«Senhoras e senhores, eles devem estar a atravessar a
fronteira mais ou menos nesta altura. Acho que seria
adequado rezar uma pequena oração.» Os seis
funcionários curvaram a cabeça. 
O trânsito em Vyborg era lento. Se o KGB quisesse forçar
a sua saída ensaiando um acidente rodoviário e batendo
num dos carros, aconteceria no centro da cidade. O Zhiguli
tinha desaparecido. Depois, os carros da polícia afastaram-
se. «Se vão apanhar-nos, será na fronteira», pensou Gee. 
Rachel lembrava-se do treino que tinham feito, por
insistência de Veronica Price, na floresta de Guildford,
espremidos no porta-bagagem de um carro sob um
cobertor térmico a ouvir os sons do motor, a música do
gravador de cassetes, os solavancos e paragens
inesperadas e vozes russas. «Na altura tinha parecido uma
parvoíce.» Pareceu-lhe então genial: «Todos sabíamos o
que ele estava a passar.»  
Gordievsky engoliu outro comprimido e sentiu a mente e
o corpo relaxarem um pouco. Tapou a cabeça com o
cobertor térmico. Embora só usasse roupa interior, o suor
escorria-lhe pelas costas e encharcava o chão metálico do
porta-bagagem. 
A 15 quilómetros de Vyborg, chegaram ao perímetro da
zona fronteiriça militarizada, um muro de rede com arame
farpado em cima. A zona de fronteira tinha cerca de 20
quilómetros de largura. Entre aquele local e a Finlândia
havia cinco barreiras distintas, três soviéticas e duas
finlandesas. 
No primeiro controlo fronteiriço, o guarda «olhou com
atenção» para o grupo, mas mandou-os seguir sem lhes
pedir os documentos. As autoridades fronteiriças tinham
claramente recebido instruções para esperarem o grupo
diplomático. No posto de controlo seguinte, Ascot observou
os rostos dos guardas, «mas não senti qualquer tensão
diferente no ar dirigida especialmente a nós». 
No outro carro, Arthur Gee estava concentrado numa
ansiedade diferente. Estava a ter um momento que
poderia ser denominado como «deixei o ferro ligado?».
Com a pressa, não conseguia lembrar-se se tinha trancado
o porta-bagagem do carro. Na verdade, nem sequer sabia
se o tinha fechado bem. Gee teve uma súbita visão
aterradora do porta-bagagem a abrir-se quando passassem
a fronteira e a mostrar o espião em posição fetal,
enroscado no interior. Parou o carro, saiu rapidamente,
dirigiu-se para a orla da floresta e urinou nos arbustos.
Quando voltou, verificou o mais casualmente possível se o
porta-bagagem estava fechado – estava, assim como o
ferro está sempre desligado. Demorou menos de um
minuto. 
O posto de controlo seguinte levou-os à fronteira
propriamente dita. Os homens estacionaram os carros lado
a lado no parque de estacionamento vedado para
estrangeiros e dirigiram-se para a fila do quiosque da
alfândega e dos serviços de estrangeiros e fronteiras.
Preencher a documentação para sair da União Soviética
podia ser uma tarefa demorada. Rachel e Caroline
prepararam-se para uma longa espera. Não se ouvia
nenhum som no porta-bagagem do carro. Rachel manteve-
se no banco do passageiro, tentando parecer entediada e
com dores. A bebé Florence estava rabugenta, e o seu
choro proporcionava distração e um conveniente barulho.
Caroline tirou-a da cadeirinha do carro e conversou com
Rachel pela porta aberta enquanto embalava a bebé.
Guardas fronteiriços passaram entre as filas de carros, a
olhar para a esquerda e para a direita. Rachel preparou-se
para «fazer uma fita» se eles tentassem revistar o carro.
Se insistissem, Ascot apresentaria a sua cópia da carta de
protesto e as cláusulas da Convenção de Viena. Se, ainda
assim, eles continuassem determinados em abrir o porta-
bagagem, ele teria de fazer a sua birra de diplomata e
insistir que iam voltar imediatamente para Moscovo e
apresentar um protesto formal. Nesse momento, era
provável que fossem todos presos. 
Dois autocarros de turismo estavam parados ali perto,
com os passageiros a dormir ou a olhar indolentemente
pela janela. Junto à vedação, salgueirinha silvestre crescia
numa roxa profusão. O cheiro de feno acabado de cortar
pairava no parque de estacionamento. A funcionária do
guiché da alfândega e do serviço de estrangeiros e
fronteiras era antipática e lenta, e queixava-se
amargamente do trabalho extra criado pelo Festival da
Jventude e pela afluência de jovens estrangeiros
embriagados. Ascot fez conversa de circunstância em
russo, refreando a vontade de a apressar. Os guardas
fronteiriços observaram com todo o cuidado os outros
carros, sobretudo de empresários de Moscovo e visitantes
finlandeses que regressavam a casa. 
O ar estava quente e parado. Rachel ouviu uma tosse
baixa no porta-bagagem; Gordievsky mexeu-se, baloiçando
muito levemente o carro. Sem perceber que já se
encontravam no interior da zona da fronteira, estava a
pigarrear, para garantir que mais à frente não haveria
ruídos involuntários. Rachel aumentou o volume da
música. Only Sixteeen, dos Dr. Hook, ecoou de forma
incongruente no parque de estacionamento de betão. Um
tratador de cães apareceu e parou a cerca de oito metros
de distância, olhou intensamente para os carros britânicos
e acariciou o seu pastor-alemão. Um segundo cão estava a
inspecionar um camião de mercadorias. O primeiro cão
aproximou-se, ansioso e a arfar, a esticar a trela. Rachel
pegou descontraidamente num pacote de batatas fritas,
abriu-o e ofereceu uma a Caroline, deixando cair algumas
no chão. 
As batatas fritas inglesas com queijo e cebola têm um
cheiro muito característico. Inventadas pelo magnata
irlandês das batatas fritas, Joe «Spud» Murphy, em 1958, o
queijo com cebola é uma pungente mistura de cebola em
pó, soro de leite coalhado em pó, queijo em pó, dextrose,
sal, cloreto de potássio, intensificadores de sabor,
glutamato monossódico, 5-ribonucleotídeo sódico,
fermento, ácido cítrico e corante. Caroline tinha comprado
as suas batatas fritas Golden Wonder importadas na loja
da embaixada, onde havia Marmite, bolachas digestivas,
doce de laranja e outros produtos britânicos que era
impossível obter na Rússia. 
Quase de certeza que os cães soviéticos nunca tinham
cheirado nada como batatas fritas de queijo e cebola.
Ofereceu uma batata frita a um dos cães, que a engoliu
antes de ser puxado por um carrancudo tratador. Porém, o
outro cão estava a cheirar o porta-bagagem do Sierra.
Gordievsky ouviu vozes abafadas do lado de fora. 
Quando o cão deu a volta ao porta-bagagem, Caroline
Ascot recorreu a uma arma que nunca fora usada antes na
Guerra Fria, ou em qualquer outra guerra. Colocou
Florence no porta-bagagem do carro, diretamente por cima
do espião escondido, e começou a mudar-lhe a fralda – que
a bebé, com imaculada precisão, tinha acabado de encher.
Em seguida, deixou cair a suja e malcheirosa fralda ao pé
do curioso pastor-alemão. «O cão recuou, ofendido.»
Aquela diversão olfativa nunca fizera parte do plano. O
estratagema da fralda tinha sido totalmente espontâneo e
muitíssimo eficaz. 
Os homens voltaram com a papelada preenchida.
Passados 15 minutos, um guarda fronteiriço apareceu com
os quatro passaportes, verificou a correspondência com os
ocupantes dos veículos, entregou-os e acenou
educadamente. 
No último controlo, uma barreira de arame farpado com
dois postos de vigia elevados e guardas armados com
metralhadoras, formara-se uma fila de sete carros. Durante
cerca de 20 minutos, avançaram a passo de caracol,
conscientes de que estavam a ser observados dos postos
através de binóculos. Gee seguia à frente de Ascot. «Foi
um momento angustiante.» 
A última barreira soviética era o controlo de passaportes.
Os funcionários soviéticos pareceram estudar os
passaportes diplomáticos durante uma eternidade antes
de a barreira ser levantada. 
Agora estavam tecnicamente na Finlândia, mas faltavam
duas barreiras: a alfândega e serviço de estrangeiros e
fronteiras e o controlo de passaportes do lado finlandês.
Bastaria um telefonema dos soviéticos para eles serem
mandados de volta. O oficial finlandês da alfândega
observou os documentos de Gee e avisou que o seguro do
carro caducava dali a alguns dias. Gee argumentou que
voltariam para a União Soviética antes disso. O funcionário
encolheu os ombros e carimbou o documento. Gordievsky
sentiu a porta do condutor ser fechada e um solavanco
quando o carro retomou a marcha. 
Os carros aproximaram-se da última barreira. Do outro
lado estava a Finlândia. Gee passou os passaportes pela
grelha. O funcionário finlandês examinou-os sem pressa,
devolveu-os e saiu do seu cubículo para levantar a
barreira. Naquele momento, o telefone tocou. Ele voltou
para o cubículo. Arthur e Rachel Gee olharam em frente,
em silêncio. Depois do que pareceu uma eternidade, o
guarda fronteiriço voltou, bocejou e levantou a barreira.
Eram 16h15, hora de Moscovo; 15h15 na Finlândia. 
No interior do porta-bagagem, Gordievsky ouviu o silvo
de pneus em asfalto quente e sentiu uma trepidação
quando o Ford ganhou velocidade. 
De repente, música clássica começou a ouvir-se no carro
no volume máximo, já não o meloso pop dos Dr. Hook, mas
os intensos sons de uma obra orquestral que ele conhecia
bem. Arthur e Rachel Gee ainda não podiam dizer ao
passageiro, por palavras, que ele estava livre; mas podiam
fazê-lo com som, com a intensa abertura de cordas de um
poema sinfónico escrito pelo compositor finlandês Jean
Sibelius para celebrar a sua terra natal. 
Estavam a ouvir Finlandia. 
 
 
Vinte minutos mais tarde, os dois carros britânicos
entraram na estrada de terra batida e internaram-se na
floresta. O lugar parecia completamente diferente das
fotografias que Ascot tinha analisado em Londres: «Vários
trilhos novos tinham sido abertos na floresta e parecia
haver demasiados carros novos estacionados nos desvios
da zona com homens com expressões duras, que eu nunca
tinha visto, a olhar para nós.» Eram os dinamarqueses,
Eriksen e Larsen, «preparados para neutralizar uma
perseguição soviética hostil». Ascot não foi o único a ficar
alarmado com a súbita atividade naquele local
habitualmente isolado. Um velho Mini apareceu, conduzido
por uma finlandesa idosa, que devia ir apanhar cogumelos.
«Compreensivelmente, ela assustou-se e teve o bom senso
de se ir embora.» No meio das árvores, Ascot avistou
Martin Shawford, «uma figura inequivocamente loura».
Quando passou pelo Volvo bege e se preparou para parar,
viu o rosto de Price encostado à janela. Sem falar, ela
articulou a palavra: «Quantos?» Ascot ergueu um único
dedo. 
Gordievsky sentiu os solavancos do carro no trilho da
floresta. 
A cena que se desenrolou naquele momento foi como um
sonho em câmara lenta, em silêncio. Brown e Price
correram para a frente. Os dinamarqueses mantiveram-se
onde estavam. Brown abriu o porta-bagagem do carro.
Gordievsky estava lá dentro, encharcado em suor,
consciente, mas aturdido. «Ele estava seminu, numa poça
de água: e senti logo que estava a ver uma criança recém-
nascida em líquido amniótico, e um extraordinário
renascimento.» 
Gordievsky ficou momentaneamente encandeado pelo
sol. Só conseguia ver céu azul, nuvens e árvores.
Cambaleou e endireitou-se, ajudado por Brown. Veronica
Price não aprovava manifestações emocionais, mas estava
visivelmente comovida e «a sua expressão era uma
mistura de reconhecimento e amor». Ela abanou o dedo,
numa admoestação fingida, como se quisesse dizer:
«Santo Deus, passaste um mau bocado.» 
Gordievsky segurou-lhe as duas mãos, levou-as aos
lábios e beijou-as, um gesto caracteristicamente russo de
gratidão e libertação. Em seguida, dirigiu-se com passos
pouco seguros para onde Caroline Ascot e Rachel Gee
estavam lado a lado. Fazendo uma profunda vénia, beijou
as mãos das duas, primeiro uma e depois a outra. «Só
tínhamos visto aquele grande touro sair dos arbustos, e
então, de repente, ele teve um gesto muito cortês e muito
delicado.» Oleg ainda tinha o cobertor térmico enrolado à
volta dos ombros. «Parecia um atleta que acabara de
correr uma maratona.» 
Veronica Price deu-lhe o braço e afastou-se com ele,
internando-se cerca de uma dúzia de metros na floresta,
fora do alcance dos microfones dos carros britânicos.  
Gordievsky falou por fim, tratando-a pelo pseudónimo
que ela sempre usara: «Fui traído, Jean.» 
Não houve tempo para mais. 
No segundo ponto de encontro, Gordievsky foi
rapidamente vestido com roupas limpas. As roupas sujas,
os sapatos e os documentos soviéticos foram embrulhados
e guardados no porta-bagagem do carro de Shawford,
juntamente com os passaportes falsos para Leila e para as
crianças, e as redundantes seringas e roupas. Price sentou-
se ao volante do carro finlandês alugado, enquanto Brown
e Gordievsky se sentavam no banco de trás. Ela virou para
a estrada principal e seguiu para norte. Gordievsky
recusou as sanduíches e o sumo de fruta que Price tinha
preparado com todo o cuidado. «Eu queria uísque», diria
mais tarde. «Porque é que não me deram uísque?» Brown
esperava que Gordievsky estivesse morto de cansaço, mas
em vez disso ele parecia «perfeitamente controlado».
Começou a contar a sua história, descrevendo o
interrogatório, quando fora drogado, como escapara à
vigilância e a misteriosa forma como o KGB o seguira sem,
contudo, o prender. «Quando pôde falar, começou a
analisar a situação, e como a tínhamos interpretado mal.»
Com cuidado, Brown abordou a questão da família. «Era
um risco demasiado grande trazê-las», declarou
Gordievsky num tom definitivo, e espreitou pela janela,
observando a paisagem rural finlandesa que ia ficando
para trás. 
Na bomba de gasolina da estrada para Helsínquia,
Shawford encontrou-se com Ascot e Gee, ouviu um rápido
relato da fuga e dirigiu-se para a cabina telefónica. O
telefone tocou na secretária do P5 em Century House. Toda
a equipa PIMLICO se reuniu à volta da secretária. O chefe
da secção do Bloco de Leste pegou no auscultador. 
«Como está o tempo?», perguntou. 
«O tempo está excelente», respondeu Shawford; o
controlador do Bloco de Leste repetia as palavras para a
equipa reunida à volta da secretária. «A pescaria foi muito
boa. Temos um convidado extra.» 
A mensagem provocou confusão momentânea. Aquilo
significava mais um fugitivo, para além dos quatro
membros da família? Teria Gordievsky trazido mais
alguém? Havia cinco pessoas a caminho da Noruega e, em
caso afirmativo, como é que o «convidado» atravessaria a
fronteira sem um passaporte? 
Shawford repetiu. «Não. Temos um convidado. No total.» 
A equipa gritou em uníssono quando o telefonema
terminou. Mas a alegria não foi plena. Sarah Page, a
secretária do MI6 que tanto contribuíra para as coisas
básicas do caso e estava agora grávida de seis meses,
sentiu uma pontada de empatia por Leila e pelas crianças.
«Oh, a pobre mulher e as filhas», pensou. «Foram deixadas
para trás. O que lhes vai acontecer?» Voltou-se para outra
secretária e murmurou: «E o custo humano?» 
P5 ligou para «C». «C» ligou para Downing Street.
Charles Powell informou Margaret Thatcher. O controlador
da secção do Bloco de Leste dirigiu-se para Chevening
House, a residência de campo do ministro dos Negócios
Estrangeiros em Kent, para informar Geoffrey Howe de que
Gordievsky tinha atravessado a fronteira russa. No último
momento, decidiu não levar champanhe – uma decisão
sensata, pois Geoffrey Howe, que nunca estivera
totalmente envolvido na Operação PIMLICO, não estava
com disposição para celebrar. Tinha um grande mapa da
Finlândia aberto em cima de uma mesa. O homem do MI6
apontou para a estrada onde Gordievsky devia estar agora
a viajar para norte. «Quais são os vossos planos na
eventualidade de uma brigada do KGB estar atrás dele?»,
perguntou o ministro dos Negócios Estrangeiros. «E se
correr mal? E os finlandeses?» 
Naquela noite, no último andar do Klaus Kurki, o melhor
hotel de Helsínquia, Shawford ofereceu um jantar à equipa
de exfiltração do MI6. Jantaram perdiz assada
acompanhada de clarete; pela primeira vez fora do alcance
dos microfones, o pessoal do MI6 de Moscovo soube o
verdadeiro nome de PIMLICO e o que ele tinha feito. Se os
homens do KGB ainda estivessem a observar, teriam
reparado que as dores nas costas de Rachel Gee tinham
desaparecido por milagre. 
Os dois carros da fuga viajaram durante a noite inteira,
em direção ao Círculo Ártico. Pararam apenas durante
breves instantes para encher o depósito e uma vez para
que Gordievsky pudesse fazer a barba, que já não fazia há
três dias, num regato de montanha, usando um espelho
retrovisor exterior. Estava a meio da tarefa quando os
mosquitos o obrigaram a entrar no carro. «Ainda
estávamos em território semi-hostil. Se quisessem, os
russos podiam ter montado uma operação de caça ao
homem. Estava perfeitamente ao seu alcance. Mas, quanto
mais nos aproximávamos da fronteira, mais confiantes
fomos ficando.» Os funcionários do PET mantinham-se por
perto. O sol do Ártico mergulhou brevemente abaixo do
horizonte para logo subir de novo no céu. Gordievsky
dormitou, meio acordado e com metade da cara barbeada,
e quase não falou. Pouco depois das 8h00 de domingo,
chegaram à fronteira da Finlândia com a Noruega em
Karigasniemi, onde havia uma única barreira a bloquear a
estrada. O guarda fronteiriço quase não se deu ao trabalho
de examinar os três passaportes dinamarqueses e os dois
passaportes britânicos antes de mandar os carros passar.
Em Hammerfest, passaram a noite num hotel do
aeroporto. 
Ninguém prestou muita atenção ao Sr. Hanssen, o
dinamarquês com uma aparência bastante cansada, e aos
seus amigos britânicos que embarcaram no voo para Oslo
na manhã seguinte, e depois apanharam o voo de ligação
para Londres. 
Na segunda-feira à noite, Gordievsky estava em South
Ormsby Hall, uma imponente casa de campo em
Lincolnshire Wolds, rodeado de criados, luzes de velas,
esplêndidas salas apaineladas e pessoas que o
admiravam, ansiosas para o felicitar. Residência da família
Massingberd-Mundy desde 1638, o palácio estava rodeado
por três mil acres de relvados e vegetação e
completamente livre de vizinhos curiosos. O seu
proprietário, Adrian Massingberd-Mundy, era um contacto
do MI5 e teve todo o prazer em ser o anfitrião de uma
receção de boas-vindas para um convidado de honra do
Serviço. Ficou estupefacto quando lhe disseram quem era
na realidade o seu convidado e enviou um velho
empregado de bicicleta à aldeia mais próxima,
recomendando-lhe que fosse para o pub e «estivesse
atento a algum sinal de mexericos». 
Apenas 48 horas antes, Gordievsky estava deitado no
porta-bagagem de um carro, drogado, seminu, encharcado
no seu próprio suor e doente de medo. Agora, estava a ser
servido por um mordomo. O contraste era demasiado
grande. Serguntou se podia telefonar para a mulher, que
estava na Rússia. O MI6 disse-lhe que não. Um telefonema
alertaria o KGB para o facto de ele estar na Grã-Bretanha,
uma informação que os britânicos só queriam revelar
quando estivessem organizados e preparados. Exausto,
ansioso e sem perceber porque é que fora levado para um
palácio inglês no meio do nada, Gordievsky foi dormir
numa cama com quatro colunas. 
Nessa noite, o MI6 enviou um telegrama ao chefe dos
espiões finlandeses, Seppo Tiitinen, a explicar que
funcionários dos serviços secretos britânicos tinham
passado clandestinamente um desertor soviético para o
Ocidente através da Finlândia. A resposta foi a seguinte:
«Seppo está contente. Mas quer saber se foi usada força.»
O MI6 garantiu-lhe que a exfiltração fora realizada sem
recurso a violência.  
As consequências, sequelas e benefícios do mais bem-
sucedido caso de espionagem da Grã-Bretanha na Guerra
Fria começaram a fazer-se sentir muito antes de a notícia
da surpreendente fuga de Gordievsky se tornar pública. 
Após um dia em Helsínquia, durante o qual o carro de
Gee foi meticulosamente limpo para apagar todas as
provas de que Gordievsky tinha estado no porta-bagagem,
a equipa de exfiltração regressou a Moscovo. Sabiam que
seriam declarados persona non grata e expulsos da União
Soviética logo que o KGB descobrisse o que tinha
acontecido. Mas estavam eufóricos. «Nunca tinha sentido
uma sensação de satisfação tão completa como aquela»,
declarou Ascot. «Estávamos a voltar para o império do mal
e tínhamos levado a melhor. Depois de dois anos e meio de
intimidação, num sistema que sabíamos que vencia
sempre, tínhamo-los fintado milagrosamente.» David
Ratford, o chargé d’affaires87, fez uma corrida de júbilo de
cinco minutos à volta da embaixada. No entanto, o
embaixador não se manifestou. 
Alguns dias mais tarde, Sir Bryan Cartledge apresentou
formalmente as suas credenciais ao Kremlin: foi tirada uma
fotografia cerimonial, com o pessoal da embaixada a
rodear o novo embaixador, vestidos com o uniforme
diplomático de gala. Ascot e Gee estavam presentes –
plenamente conscientes, assim como o embaixador, de
que não ficariam muito mais tempo no país. 
Na segunda-feira de manhã, Mikhail Lyubimov esperou a
chegada do comboio das 11h13 na estação de Zvenigorod.
Mas Gordievsky não estava na última carruagem. E
também não veio no comboio seguinte de Moscovo.
Irritado, mas preocupado, Lyubimov voltou para a sua
dacha. Gordievsky estaria podre de bêbedo no seu
apartamento ou acontecera uma coisa pior ao seu velho
amigo, que costumava ser tão pontual e de confiança? «A
bebida tem como consequência a imprevisibilidade»,
pensou com tristeza. Alguns dias mais tarde, seria
chamado ao KGB para interrogatório. 
Tinham começado a circular no KGB rumores do
desaparecimento de Gordievsky, acompanhados de forte
especulação e alguma desinformação deliberada. Durante
semanas, a Divisão K continuou convencida de que ele
ainda se encontrava no país, embriagado ou morto. Foi
iniciada uma busca na zona de Moscovo, incluindo lagos e
rios. Algumas pessoas diziam que ele tinha fugido pelo
Irão, com documentos falsos e muito bem disfarçado.
Budanov defendeu que Gordievsky tinha sido levado para
uma casa segura providenciada pelos britânicos depois de
escapar do sanatório do KGB, embora soubesse muito bem
que ele regressara de Semyonovskoye semanas antes de
desaparecer. Leila foi trazida do Cáspio e levada para a
prisão de Lefortovo para interrogatório: o interrogatório,
que seria o primeiro de muitos, durou oito horas. «Onde
está o seu marido?», perguntaram-lhe vezes sem conta.
Leila respondeu com aspereza: «Ele é vosso funcionário.
Vocês é que têm de me dizer onde ele está.» Quando os
interrogadores revelaram que Gordievsky era suspeito de
trabalhar para os serviços secretos britânicos, Leila
recusou-se a acreditar. «Aquilo parecia-me uma loucura.»
No entanto, à medida que o tempo passava e os dias
deram lugar a semanas, sem nenhuma palavra ou
avistamento, a sombria verdade começou a impor-se. O
marido desaparecera. Contudo, Leila recusou-se a aceitar o
que ouvia a respeito da sua traição. «Enquanto não for ele
a dizer-me, não acredito», declarou aos interrogadores do
KGB. «Eu estava muito calma e resoluta.» Gordievsky
avisara-a para não acreditar em quaisquer acusações que
fossem feitas contra ele, e foi o que Leila fez. 
Gordievsky foi levado de South Ormsby Hall para o Forte
Monckton, a base de treino do MI6 em Gosport. Ficou
alojado numa suíte para hóspedes por cima da portaria do
forte napoleónico, que era habitualmente usada pelo
diretor, um alojamento simples mas confortável.
Gordievsky não queria ser elogiado e mimado; queria
começar a trabalhar e demonstrar – a si mesmo, acima de
tudo – que o sacrifício tinha valido a pena. No entanto,
num primeiro momento, pareceu quase esmagado por um
sentimento de perda. Durante a primeira reunião de quatro
horas concentrou-se quase exclusivamente nas
circunstâncias da sua fuga e no destino da mulher e das
filhas. Bebeu inúmeras chávenas de chá forte e garrafas de
vinho tinto, de preferência Rioja. Pediu com insistência
notícias da família. Não havia nenhuma. 
Durante os quatro meses seguintes, o Forte Monckton
seria a sua casa, secreta, isolada e bem defendida. O
princípio da necessidade de saber foi rigorosamente
aplicado à identidade do misterioso ocupante da portaria,
mas depressa muitos funcionários perceberam que aquele
visitante a longo prazo era uma pessoa importante e devia
ser tratado como um convidado de honra. 
O caso recebeu um novo nome de código, o último, em
harmonia com o momento de júbilo. SUNBEAM, também
NOCTON, também PIMLICO era agora, e doravante,
OVATION. Enquanto SUNBEAM, Gordievsky tinha passado
informações confidenciais sobre as operações do KGB na
Escandinávia; enquanto NOCTON, em Londres, produzira
informações que tiveram uma forte influência no
pensamento estratégico em Downing Street e na Casa
Branca; mas, enquanto OVATION, o caso entraria na sua
fase mais valiosa. As informações que Gordievsky
apresentara ao longo dos anos eram na maioria demasiado
boas para ser usadas, porque eram demasiado específicas
e, por conseguinte, potencialmente incriminatórias. Para
proteger a segurança do espião tinham sido fragmentadas,
recondicionadas, disfarçadas e distribuídas com extrema
parcimónia a um número muito restrito de leitores. Só
durante a fase de Londres, o caso tinha produzido
centenas de relatórios individuais – que iam desde
extensos documentos até relatórios políticos e
pormenorizadas reuniões de contraespionagem –, mas
apenas alguns tinham sido partilhados fora dos serviços
secretos britânicos, e ainda assim só após cuidada edição.
A partir de então, os franceses poderiam receber todas as
informações secretas diretamente relacionadas com a
França; os alemães poderiam saber até que ponto o
mundo estivera perto do desastre durante o susto das
manobras militares ABLE ARCHER; toda a história de como
Treholt, Haavik e Bergling estiveram sob suspeita poderia
ser revelada aos escandinavos. Com Gordievsky em
segurança na Grã-Bretanha, e o caso operacional
terminado, o vasto tesouro de informações secretas
recolhido ao longo dos 11 anos anteriores poderia ser
explorado ao máximo; por fim, chegara o momento de
usufruir dos dividentos. A Grã-Bretanha tinha uma grande
abundância de segredos para trocar. O apartamento no
Forte Monckton tornou-se o cenário de uma das maiores
operações de recolha, comparação e distribuição de
informações jamais levada a cabo pelo MI6, enquanto uma
série de funcionários, analistas, secretários e outros
colhiam os frutos da espionagem de Gordievsky. 
Com o sucesso da exfiltração surgiu uma grande
quantidade de novas questões. Quando é que a CIA, e
outros aliados ocidentais, deviam ser informados do golpe
do MI6? Deviam informar os meios de comunicação e, em
caso afirmativo, como? E, acima de tudo, como gerir as
relações com a União Soviética? O entendimento cada vez
melhor entre Thatcher e Gorbachev, tão meticulosamente
reforçado com a ajuda secreta de Gordievsky, sobreviveria
a uma reviravolta tão drástica na guerra da espionagem?
Acima de tudo, o MI6 ponderava o que fazer em relação a
Leila e às crianças. Talvez, com cuidadosa diplomacia,
Moscovo pudesse ser persuadido a libertá-las. A campanha
persistente e extremamente secreta para tentar reunir
Gordievsky com a família recebeu o nome de código
HETMAN (um termo histórico para um líder cossaco). 
O MI6 nunca duvidou da honestidade de Gordievsky,
embora certas pessoas considerassem que alguns
elementos da sua história eram difíceis de engolir. Em
Whitehall, um punhado de céticos aventou a possibilidade
de «Gordievsky se ter tornado um agente duplo durante o
tempo que passou em Moscovo, e depois ter sido mandado
de forma deliberada para a Grã-Bretanha». Porque é que
não tinha sido detido e preso no instante em que chegara
a Moscovo? Os analistas atribuíram isso a complacência do
KGB, uma abordagem legalista, uma determinação de
apanhar o espião e os seus controladores em flagrante, e
medo. «Se está no KGB, e vai matar alguém, tem de ter
provas irrefutáveis, porque a seguir pode ser a sua vez.
Eles esforçaram-se demasiado para conseguir provas
concretas: foi o que o salvou, mais a sua grande e
desesperada coragem.» Todavia, a descrição de
Gordievsky de ter sido drogado e interrogado na dacha do
Primeiro Diretório Principal parecia muito pouco credível.
«Havia dúvidas em relação à sequência dos
acontecimentos. Parecia tudo muito melodramático.» Por
fim, a pairar sobre o caso estava a pergunta mais
perturbadora de todas: quem é que o traíra? 
A confirmação de que a história de Gordievsky era
verdadeira chegaria uma semana depois, de uma fonte
inesperada: o KGB. 
No dia 1 de agosto, um funcionário do KGB chamado
Vitaly Yurchenko entrou na embaixada dos Estados Unidos
em Roma e anunciou que queria desertar. O caso
Yurchenko é um dos mais estranhos da história dos
serviços secretos. O general Yurchenko, um veterano do
KGB com 25 anos de serviço, tinha subido na hierarquia
até se tornar diretor do Departamento Cinco da Divisão K
do PDP, que investigava funcionários do KGB suspeitos de
espionagem. Além disso, estava envolvido em «operações
especiais no estrangeiro» e na utilização de «drogas
especiais». Em março de 1985 tornou-se vice-diretor do
Primeiro Departamento, responsável pela coordenação dos
esforços do KGB para recrutar agentes nos Estados Unidos
e no Canadá. Seria substituído por Sergei Golubev, um dos
dois homens que tinham interrogado Gordievsky.
Yurchenko manteve-se ligado às atividades da Divisão K e
tinha uma boa relação com Golubev. 
Os motivos de Yurchenko continuam pouco claros, mas a
sua deserção parece ter sido incitada por um caso
amoroso falhado com a mulher de um diplomata soviético.
Ele voltaria a desertar para a União Soviética quatro meses
mais tarde, por motivos que ainda são obscuros.
Posteriormente, os soviéticos alegaram que ele tinha sido
raptado pelos americanos, mas também não sabiam muito
bem o que pensar. Yurchenko podia estar transtornado. No
entanto, conhecia uma série de importantes segredos. 
A deserção de Yurchenko foi aclamada como um
importante triunfo para a CIA, o mais importante
operacional do KGB a passar para a agência até à data. O
funcionário nomeado para interrogar o desertor russo foi o
especialista em contraespionagem soviética da CIA, Aldrich
Ames. 
Num primeiro momento, Ames ficou preocupado com a
notícia de um desertor que ocupava um alto cargo no KGB.
E se Yurchenko soubesse que ele estava a espiar para os
soviéticos? Porém, depressa ficou claro que o russo não
sabia nada a respeito dos atos de espionagem de Ames.
«Ele não sabia nada sobre mim», diria Ames mais tarde.
«Se soubesse, eu teria sido uma das primeiras pessoas
que ele teria identificado em Roma.» 
Ames estava à espera na base da força aérea de
Andrews, próxima de Washington, quando Yurchenko foi
trazido de Itália na tarde de 2 de agosto. 
A primeira coisa que ele perguntou ao desertor, antes
mesmo de saírem da pista do aeroporto, foi o que todos
funcionários dos serviços secretos estão treinados para
perguntar a um espião espontâneo: «Está a par de algum
indício de relevo de que a CIA foi penetrada por uma
toupeira do KGB?» 
Yurchenko identificaria dois espiões no interior da
estrutura dos serviços de informações americanos
(incluindo um funcionário da CIA), mas a revelação mais
importante, feita naquela mesma noite, estava relacionada
com o seu antigo colega Oleg Gordievsky, o rezident do
KGB em Londres que fora convocado por suspeita de
traição a Moscovo, onde lhe tinham administrado um soro
da verdade e tinha sido interrogado pelos investigadores
da Divisão K. Yurchenko ouvira dizer no KGB que
Gordievsky estava em prisão domiciliária e que era
provável que fosse executado. Ele não sabia que
Gordievsky tinha fugido para a Grã-Bretanha; e Ames
também não. O desertor russo também não sabia quem
denunciara Gordievsky ao KGB. Mas Ames sabia. 
A reação de Ames à notícia de que Gordievsky tinha sido
preso foi indicadora de um homem cujas vidas paralelas se
tinham fundido tão completamente que ele já não
conseguia distingui-las. Ames vendera Gordievsky ao KGB.
Porém, ao descobrir as consequências dos seus atos, o
primeiro instinto foi avisar os britânicos de que o seu
espião estava em perigo. 
«O meu primeiro pensamento foi: “Meu Deus, temos de
fazer alguma coisa para o salvar! Temos de mandar um
telegrama para Londres e informar os britânicos.” Eu tinha
dado o nome do Gordievsky ao KGB. Era responsável pela
sua detenção [...] fiquei genuinamente preocupado com
ele, mas ao mesmo tempo sabia que o tinha exposto. Sei
que parece um disparate, porque eu também era um
agente do KGB.» Talvez ele estivesse a ser
deliberadamente dissimulado. Ou talvez ainda só fosse
meio traidor. 
A CIA enviou uma mensagem para o MI6: um desertor
soviético acabado de chegar dissera que um oficial de alta
patente do KGB, Oleg Gordievsky, tinha sido drogado e
interrogado por suspeita de ser um espião britânico. O MI6
tinha alguma informação acerca daquele assunto? A CIA
não revelou que sabia muito bem que Gordievsky andava a
espiar para os britânicos. O telegrama de Langley foi um
alívio para a equipa OVATION: ficava assim comprovada,
de forma independente, a história de Gordievsky. Contudo,
também significava que os americanos teriam de ser
informados de que ele fugira. 
Dois funcionários do MI6 viajaram para Washington
naquela tarde. Foram recebidos no aeroporto por um
motorista e levados para Langley. Acompanhados por
Burton Gerber, o chefe das operações soviéticas da CIA,
foram levados para a casa de Bill Casey, o diretor da CIA,
para um jantar cedo confecionado pela mulher deste,
Sophia. Os Casey iam ao teatro mais tarde. Os dois
funcionários britânicos fizeram um relato pormenorizado
do caso Gordievsky: o recrutamento, mais de uma década
de valioso serviço ao MI6 e, por fim, a fuga de cortar a
respiração. Explicaram que a América também tinha uma
enorme dívida para com ele: as informações da Operação
RYAN, que refletiam de forma correta a paranoia do
Kremlin num momento perigoso nas relações entre o Leste
e o Ocidente, tinham vindo de Gordievsky. A meio do
relato, Sophia interrompeu para dizer que estava na hora
de irem para o teatro. «Vai andando», disse Casey. «Este é
o melhor espetáculo da cidade.» O chefe dos espiões
americano passou o resto do serão a escutar com
admiração, gratidão e pasmo. O reconhecimento era
genuíno; a surpresa não. Bill Casey não revelou que a CIA
já tinha um dossiê sobre Gordievsky com o nome de código
TICKLE. 
 
 
No dia 16 de setembro, um helicóptero militar sobrevoou
o mar em direção ao Forte Monckton. «C» e um pequeno
número dos seus funcionários superiores esperavam junto
do heliporto. Do helicóptero saiu Bill Casey. O veterano
diretor da CIA tinha viajado em segredo para a Grã-
Bretanha para interrogar o espião dos britânicos que
acabara de ser exfiltrado. Casey, que fora advogado em
Nova Iorque, conhecia bem a Inglaterra desde a guerra,
quando trabalhara em Londres no Gabinete de Serviços
Estratégicos (OSS – Office of Strategic Services), o
precursor da CIA durante a guerra, que coordenava
espiões na Europa. Depois de dirigir a campanha eleitoral
de Ronald Reagan, foi nomeado diretor da CIA com a
responsabilidade, nas palavras do presidente, de
«reconstruir a capacidade dos serviços secretos
americanos». Uma figura curvada com cara de sabujo,
Casey estava prestes a ser arrastado para o caso Irão-
Contras e morreria de um tumor cerebral dali a dois anos.
Porém, naquele momento talvez fosse o espião mais
poderoso do mundo, com uma forte consciência das suas
capacidades. «Eu controlo todos os aspetos do trabalho»88,
declarou ele no início do segundo mandato de Reagan.
«Tenho a capacidade de avaliar uma situação quando
possuo os factos, e de tomar decisões.» Casey estava no
Forte Monckton para saber alguns factos por Gordievsky e
para tomar decisões. Em breve Reagan iria encontrar-se
com Gorbachev pela primeira vez, na cimeira das
superpotências em Genebra. Casey queria a opinião de um
especialista do KGB sobre o que devia Reagan dizer ao
líder soviético. 
Enquanto almoçavam na suíte de hóspedes por cima da
portaria, apenas na companhia de «C», Casey interrogou
Gordievsky a respeito do estilo de negociação de
Gorbachev, da sua atitude em relação ao Ocidente e das
suas relações com o KGB. O americano escrevinhou notas
num grande bloco de folhas amarelas com linhas azuis. De
vez em quando, o sotaque americano arrastado e os
dentes falsos de Casey deixavam Gordievsky perplexo; «C»
viu-se na singular situação de ter de traduzir inglês-
americano para inglês-inglês para o russo. Casey escutou
com atenção, «como um menino de escola». Acima de
tudo, o diretor da CIA queria compreender a atitude de
Moscovo em relação à força de dissuasão nuclear, e em
especial a opinião soviética a respeito do sistema de
defesa contra mísseis da Iniciativa Estratégica de Defesa
(IED). Andropov tinha denunciado a iniciativa da Guerra
das Estrelas como uma tentativa deliberada de
desestabilizar o mundo e permitir que o Ocidente atacasse
a União Soviética sem medo de retaliação. Gorbachev teria
a mesma opinião? Casey sugeriu uma dramatização, e
começou a desenrolar-se um pequeno drama da Guerra
Fria na base secreta de treino do MI6. 
«O senhor é o Gorbachev», disse ele. «E eu sou o
Reagan. Nós gostaríamos de nos livrar das armas
nucleares. Para inspirar confiança, vamos dar-vos acesso à
Guerra das Estrelas. O que me diz?» 
Em vez de destruição por armas nucleares, Casey estava
a oferecer defesa mútua assegurada contra elas. 
Gordievsky/Gorbachev pensou durante alguns minutos e
em seguida respondeu categoricamente, em russo. 
«Nyet!» 
Casey/Reagan ficou espantado. Na sua imaginada troca
de palavras, os Estados Unidos estavam a propor o fim da
ameaça nuclear ao partilharem a tecnologia para a tornar
obsoleta. 
«Porquê nyet? Estamos a dar-vos tudo.» 
«Não confio em si. Vocês nunca nos vão dar tudo. Vão
esconder alguma coisa que vos deixará em vantagem.» 
«Então, o que faço?» 
«Se acabarem totalmente com a IED, Moscovo vai
acreditar.» 
«Isso não vai acontecer.» Casey saiu da personagem
durante alguns instantes. «É o projeto de estimação do
presidente Reagan. Então, o que devemos fazer?» 
«Está bem», disse Gordievsky. «Então, continuem.
Continuem a pressionar. O Gorbachev e a sua gente sabem
que não podem gastar mais do que vocês. A vossa
tecnologia é melhor do que a deles. Mantenham a
pressão.» Acrescentou que Moscovo ficaria na miséria se
tentasse igualar a Guerra das Estrelas, enterrando dinheiro
numa corrida às armas tecnológicas que nunca poderia
vencer. «A longo prazo, a IED vai arruinar o comando
soviético.» 
Alguns historiadores consideram que a reunião no Forte
Monckton é outro momento fulcral na Guerra Fria. 
Na cimeira de Genebra, no mês de novembro seguinte, o
presidente americano recusou-se a mexer no programa
Guerra das Estrelas, precisamente como Gordievsky
aconselhara, descrevendo-o como «defesa necessária». O
primeiro teste do sistema IED foi anunciado durante a
cimeira. Mais tarde descrita como a «cimeira à lareira»,
refletindo a cordialidade entre os dois líderes, Reagan
«manteve-se firme» no seu projeto de estimação.
Gorbachev saiu de Genebra a acreditar que o mundo era
um «lugar mais seguro», mas também convencido de que
a URSS teria de se reformar, e depressa, para acompanhar
o Ocidente. Seguiram-se a glasnost e a perestroika, e
depois uma onda de mudança que Gorbachev acabaria por
não conseguir controlar. A interpretação correta de
Gordievsky da psicologia do Kremlin em 1985 não
provocou o colapso da União Soviética; mas talvez tenha
ajudado. 
O almoço com Bill Casey foi apenas o primeiro de muitos
encontros com a CIA. Alguns meses mais tarde, Gordievsky
viajou para Washington rodeado de forte segurança para
uma reunião secreta com funcionários superiores do
Departamento de Estado, do Conselho Nacional de
Segurança, do Ministério da Defesa e das agências de
serviços secretos. Gordievsky foi bombardeado com
perguntas, às quais respondeu com paciência,
profissionalismo e uma minúcia sem precedentes – não um
simples desertor, mas um agente profundamente infiltrado
durante muito tempo, com um conhecimento
enciclopédico do KGB. Os americanos ficaram
impressionados e agradecidos. Os britânicos estavam
orgulhosos por partilhar o conhecimento do seu espião
celebridade. «As informações do Gordievsky eram muito
boas»89, diria Caspar Weinberger, o ministro da Defesa de
Reagan. 
Porém, havia uma pergunta a que ele não conseguia
responder. Quem é que o traíra? 
Na sede da CIA em Langley, Gordievsky deu uma série de
briefings a funcionários superiores. Num deles, foi
apresentado a um homem alto, de óculos, com um bigode
fino, que parecia especialmente simpático, «a escutar com
calma e paciência» todas as suas palavras. Gordievsky
achava os funcionários da CIA bastante formais, na sua
maioria até um pouco suspeitos, mas este «parecia
diferente: o seu rosto irradiava simpatia e bondade. Fiquei
tão impressionado com ele que pensei que tinha
encontrado a personificação dos valores americanos: aqui
estava a abertura, a honestidade e a decência de que eu
tanto ouvira falar». 
Durante uma dúzia de anos, Gordievsky tinha vivido uma
vida dupla, um dedicado profissional dos serviços secretos
que era leal em segredo ao outro lado, a representar um
papel. Ele era muito bom no que fazia. Mas Aldrich Ames
também. 

87 Em francês no original: encarregado de negócios. (N. da T.)


EPÍLOGO 
16. Passaporte para PIMLICO 

Um mês depois da fuga de Gordievsky, o conselheiro


científico da embaixada soviética em Paris ficou
surpreendido ao ser convidado para tomar chá na Alliance
Française por um diplomata britânico que só conhecia
vagamente. O conselheiro aceitou o convite e na tarde de
15 de agosto foi recebido por um inglês que nunca vira
antes. «Tenho uma mensagem muito importante para o
senhor transmitir ao chefe da sua estação do KGB»,
declarou o desconhecido. 
O russo empalideceu. Estava prestes a ser arrastado para
uma situação muito dúbia.  
O inglês informou-o calmamente de que um funcionário
superior do KGB, até há pouco tempo rezident em Londres,
estava vivo e bem de saúde, sob forte proteção no Reino
Unido. «Ele está muito feliz, mas gostaria de ter a família
consigo.» 
Assim teve início a Operação HETMAN, a campanha para
levar Leila e as crianças para o Reino Unido e reunir a
família Gordievsky. 
No seio do MI6 discutiu-se a melhor forma de lidar com a
situação. Uma carta formal a estabelecer um acordo com o
KGB foi rejeitada por ser demasiado arriscada. «Qualquer
documento escrito poderia ser adulterado e usado de
alguma forma contra nós.» Ficou estabelecido que seria
transmitida uma mensagem oral a um diplomata soviético
bona fide fora do Reino Unido, e o desafortunado
conselheiro tinha sido selecionado como o melhor
interlocutor. 
«Nunca vi um homem tão assustado», afirmou o agente
do MI6 que levou a mensagem. «Ele foi-se embora a
tremer.» 
Os termos eram claros. Graças a Gordievsky, agora os
britânicos conheciam as identidades de todos os
funcionários do KGB e do GRU na Grã-Bretanha e eles
teriam de abandonar o país. Contudo, Moscovo poderia
«retirar as pessoas de forma gradual, durante um longo
período, desde que a família de Gordievsky fosse
libertada». Dessa forma, o Kremlin salvaria a face, os seus
espiões seriam retirados sem confusão diplomática e a
família seria reunida. No entanto, se Moscovo rejeitasse
um acordo e recusasse a libertação de Leila e das
meninas, os espiões soviéticos em Londres seriam
expulsos en masse. O KGB teria duas semanas para dar
uma resposta. 
Os receios de Gordievsky pela família cresciam a cada
dia que passava. O orgulho que sentia por ter levado a
melhor sobre o KGB era superado por uma culpa
avassaladora. As pessoas que ele mais amava deviam ser
agora prisioneiras na União Soviética. A oferta de Margaret
Thatcher de fazer um acordo secreto com Moscovo era
muito pouco ortodoxa, como Gordievsky reconheceria
numa carta enviada à primeira-ministra: «Ignorar
procedimentos e permitir uma abordagem oficiosa foi um
ato único de grande generosidade e humanidade.» 
Não resultou. 
A oferta de um acordo secreto foi recebida em Moscovo
com incredulidade, e depois com fúria. Desde que
Gordievsky desaparecera, durante um mês o KGB
vasculhara o país, recusando-se a acreditar que ele tinha
fugido. Leila foi repetidamente interrogada sobre o
paradeiro do marido, e o mesmo aconteceu com outros
membros da família, incluindo a irmã mais nova e a mãe.
Marina ficou petrificada. Olga Gordievsky estava
espantada. Todos os colegas e os amigos foram
interrogados persistentemente. Leila manteve uma postura
digna, insistindo que o marido era vítima de uma cabala ou
de um terrível engano. Era seguida para toda a parte por
seis funcionários de vigilância do KGB. As filhas até eram
vigiadas no recreio da escola. Era levada quase todos os
dias para a prisão de Lefortovo para lhe fazerem mais
perguntas. «Como é que não sabia que ele estava a espiar
para os britânicos?», perguntavam vezes sem conta. Por
fim, ela descontrolou-se. «Escutem. Vamos ser claros. Eu
era a esposa. O meu trabalho era limpar, cozinhar, fazer
compras, dormir com ele, ter filhos, partilhar a cama e ser
sua amiga. Era boa nisso. Ainda bem que ele não me disse
nada. Durante seis anos da minha vida fui uma esposa
perfeita. Fazia tudo por ele. Vocês, o KGB, têm milhares de
funcionários pagos cujo trabalho é investigar as pessoas;
ele foi investigado, mais do que uma vez, e aprovado. E
agora vêm culpar-me? Não acham que parece estúpido?
Vocês não fizeram o vosso trabalho. O trabalho não era
meu, era vosso. Vocês arruinaram a minha vida.» 
Com o passar do tempo, Leila começou a conhecer os
seus interrogadores. Um dia, um dos mais simpáticos
perguntou-lhe: «O que teria feito se soubesse que o seu
marido estava a pensar fugir?» Leila pensou durante muito
tempo antes de responder: «Deixava-o ir-se embora. Dava-
lhe três dias e depois, como cidadã leal que sou,
denunciava a situação. Mas certificava-me de que ele tinha
fugido antes de avisar o KGB.» O interrogador pousou a
caneta: «Acho que não vamos pôr isto no relatório.» Leila
já tinha problemas de sobra. 
Mikhail Lyubimov foi levado a interrogatório pela Divisão
K. «Onde é que ele pode estar?», perguntaram. «Está com
alguma mulher? Está escondido numa cabana algures na
região de Kursk?» Claro que Lyubimov não fazia ideia.
«Todos os aspetos da minha relação com o Gordievsky
foram esmiuçados, em busca de pistas da sua traição.»
Mas Lyubimov estava tão estupefacto como toda a gente.
«A minha teoria era simples, e baseada na sua aparência
de quando o vi pela última: pensei que ele tinha tido um
esgotamento nervoso e que talvez se tivesse suicidado.»  
Dez dias após o encontro em Paris, o Centro mandou
uma mensagem, transmitida pelo desafortunado
conselheiro científico sob a forma de uma «longa tirada de
ofensas». Gordievsky era um traidor; a sua família ficaria
na Rússia; não haveria acordo. 
A Grã-Bretanha preparou uma resposta, a Operação
EMBASE. Em setembro, o Ministério dos Negócios
Estrangeiros deu a notícia da deserção de Gordievsky
(embora ainda não os sensacionais pormenores da sua
fuga). Títulos dramáticos encheram todos os jornais: «O
Maior Peixe já Apanhado», «Amigo Oleg, Mestre Espião»,
«O Ás dos Espiões da Rússia; o Superespião Que Foi para o
Ocidente», «O Nosso Homem no KGB». No mesmo dia, o
Governo britânico expulsou 25 funcionários do KGB e do
GRU identificados por Gordievsky: uma purga generalizada
de espiões soviéticos. Nesse dia, Thatcher escreveu a
Ronald Reagan: «Estamos a deixar claro aos russos, por
minha ordem pessoal, que embora não possamos tolerar o
tipo de ações secretas que Gordievsky revelou,
continuamos a desejar ter uma relação construtiva com
eles. Entretanto, penso que não é mau ele [Gorbachev] ter
percebido de uma forma tão inequívoca, no início da sua
liderança, o preço a pagar pela dimensão e natureza das
atividades do KGB nos países ocidentais.» 
Moscovo ripostou imediatamente. O embaixador, Sir
Bryan Cartledge, foi chamado ao Ministério dos Negócios
Estrangeiros por Vladimir Pavlovich Suslov, chefe do
departamento responsável pelas relações com as
embaixadas estrangeiras. Na secretária à sua frente,
Suslov tinha a fotografia do novo embaixador rodeado pela
sua equipa: com um olhar furioso, pousou dois dedos nas
cabeças de Roy Ascot e Arthur Gee. «Estes dois homens
são bandidos políticos», declarou. O KGB tinha começado a
perceber a história. Cartledge fingiu que não estava a
perceber: «O que se passa?» Suslov condenou as
«atividades óbvias» dos funcionários dos serviços secretos
da embaixada, acrescentando que as autoridades
soviéticas «sabem o papel que os primeiros-secretários
Gee e Ascot tiveram em tudo isto». Suslov estava
especialmente furioso por Rachel Gee ter «representado o
papel» de uma mulher com dores nas costas. Em seguida,
leu os nomes de 25 funcionários britânicos, incluindo os
dois funcionários do MI6 e a sua secretária, Violet
Chapman, e declarou que deviam sair da União Soviética
na terceira semana de outubro, o mesmo prazo que
Thatcher dera para a expulsão do pessoal do KGB em
Londres. A maioria dessas pessoas não pertencia aos
serviços secretos e não tinha estado envolvida na
exfiltração. 
Sir Bryan Cartledge chamou Ascot à sala segura e disse
tudo o que lhe ia na alma. O embaixador sabia que a
primeira-ministra aprovara pessoalmente a operação de
fuga, mas as repercussões só agora estavam a começar.
«Ele estava profundamente furioso», recordou Ascot.
«Disse que tínhamos dizimado a sua embaixada num
momento em que a Thatcher estava a dar-se bem com o
Gorbachev – em parte por causa do nosso amigo, mas eu
não podia dizer isso ao Bryan. Há pessoas que são mais
eloquentes quando estão mais zangadas. Ele disse-me que
o meu bisavô, o primeiro-ministro, estaria a dar voltas na
sepultura.» Na verdade, se o famoso antepassado de Ascot
estivesse a fazer alguma coisa na sepultura, devia estar a
gritar de alegria e orgulho. 
Em vão, Cartledge enviou um telegrama muito pouco
diplomático para Londres, a apelar ao fim da roda-viva de
expulsões: «Nunca tentem fazer xixi mais longe do que
uma doninha fedorenta: ela tem importantes vantagens
naturais», escreveu ele. (E a sua fúria aumentou ainda
mais quando aquela mensagem chegou, textualmente, à
secretária da primeira-ministra.) Mas Thatcher ainda não
tinha terminado a sua competição com os soviéticos. O seu
secretário do governo, Sir Robert Armstrong, propôs mais
quatro expulsões. Ela não considerou esta medida
«adequada» e insistiu na expulsão de seis funcionários
soviéticos. É evidente que aquilo levou à expulsão
imediata de mais seis diplomatas britânicos, trazendo o
total global para 62 expulsões, 31 de cada lado. Os medos
de Cartledge tinham-se concretizado: «Perdi todos os meus
falantes de russo de uma assentada [...] perdemos metade
da nossa embaixada.» 
Gordievsky continuava escondido no forte. De vez em
quando saía do edifício e explorava a área circundante,
mas sempre sob fortes medidas de proteção. Corria todos
os dias pelo perímetro do forte, ou na floresta,
acompanhado pelo funcionário do MI6 Martin Shawford.
Contudo, não podia conhecer pessoas novas nem entrar
em contacto com velhos amigos na Grã-Bretanha. O MI6
tentava fazer com que a sua vida fosse quase normal, mas
o único contacto social era com membros da comunidade
dos serviços secretos e as suas famílias. A separação da
família era um tormento perpétuo e a total ausência de
notícias da mulher e das filhas causava-lhe uma angústia
que por vezes resultava em amarga recriminação. Para
levar a melhor sobre a tristeza, concentrou-se no processo
de análise de informações, insistindo em trabalhar até
altas horas da noite. Alternava entre resignação e
esperança, orgulho no que alcançara e desespero pelo
custo pessoal. Escreveu a Thatcher: «Embora tenha rezado
para me encontrar em breve com a minha mulher e as
minhas filhas, aceito e compreendo totalmente os motivos
para uma ação decisiva [...] no entanto, tenho de continuar
a ter esperança de que será encontrada uma forma de
garantir a libertação da minha família, pois sem ela a
minha vida não tem sentido.» 
Thatcher respondeu: «A nossa ansiedade pela sua família
mantém-se, e não a esqueceremos. Eu também tenho
filhos e sei o tipo de pensamentos e sentimentos que lhe
passam pela cabeça todos os dias. Por favor, não diga que
a vida não tem sentido. Há sempre esperança.» Dizendo
que gostaria de o conhecer um dia, a primeira-ministra
acrescentou: «Estou plenamente consciente da sua
coragem pessoal e do que fez em prol da liberdade e da
democracia.» 
No KGB, a notícia de que Gordievsky tinha fugido para a
Grã-Bretanha desencadeou uma tempestade de
recriminação e responsabilização mútua. Chebrikov, o
diretor do KGB, e Kryuchkov, o chefe do Primeiro Diretório
Principal, culparam o Segundo Diretório Principal, que era
teoricamente responsável pela segurança interna e pelas
operações de contraespionagem. Os chefes do PDP
culparam a Divisão K. Grushko culpou Gribin. Todos
culparam a equipa de vigilância, que, como ocupava o
lugar mais baixo na hierarquia, não tinha mais ninguém
para culpar. O KGB de Leninegrado, responsável pela
vigilância dos diplomatas britânicos, foi diretamente
responsabilizado e vários funcionários superiores foram
despedidos ou despromovidos. Entre os afetados contava-
se Vladimir Putin, um produto do KGB de Leninegrado que
viu a maioria dos seus amigos, colegas e protetores ser
expurgada em consequência direta da fuga de Gordievsky. 
Embaraçado e enraivecido, e ainda sem saber ao certo
como Gordievsky tinha conseguido escapar, o KGB
respondeu com uma campanha de desinformação,
plantando notícias falsas de que ele tinha sido retirado da
embaixada durante a receção diplomática, totalmente
disfarçado ou com documentos falsos. A sua patente e
importância foram minimizadas. Mais tarde, o KGB alegaria
– como o MI6 alegara em tempos em relação a Philby – que
tinham desconfiado sempre da sua deslealdade. No seu
livro de memórias, o antigo primeiro-ministro Yevgeny
Primakov sugeriu que, durante o interrogatório, Gordievsky
se oferecera para mudar de lado mais uma vez. «O
Gordievsky estava quase a confessar quando começou a
sondar a possibilidade de operar ativamente contra os
britânicos, e até ofereceu diversas garantias de que
poderia conseguir trabalhar como agente duplo. O
comando do KGB foi informado naquele dia. Os
funcionários dos serviços secretos estavam confiantes de
que ele admitiria tudo no dia seguinte. Mas de repente
veio uma ordem superior para parar o interrogatório,
retirar a vigilância externa e mandar Gordievsky para um
centro de saúde [...] de onde ele fugiu pela fronteira da
Finlândia.»90 A explicação de Primakov não faz sentido.
Embora Gordievsky tivesse estado «perto» de confessar,
era óbvio que não o tinha feito; e se não tinha admitido
que era um agente britânico, como poderia ter-se
oferecido para ser um agente duplo? 
Primakov e Viktor Cherkashin, o primeiro controlador do
KGB de Ames, insistiram que o KGB tinha sido alertado
para a traição de Gordievsky por uma fonte anónima
meses antes de ele regressar a Moscovo. No entanto,
apesar de todo o barulho e farsa, o comando do KGB sabia
a verdade: tivera o espião mais importante da Guerra Fria
nas mãos e deixara-o escapar por entre os dedos. 
Dois dias após o banho de sangue diplomático soviético,
uma longa coluna de carros de passageiros, cerca de 20 no
total, seguiu por Leninegrado para a estrada nacional de
Vyborg. Oito eram carros diplomáticos britânicos, e todos
os outros eram veículos de vigilância do KGB. Os
diplomatas estavam a ser expulsos pela Finlândia: Ascot e
Gee repetiram a rota de fuga, mas desta vez estavam a
ser escoltados para fora do país «como prisioneiros
exibidos em triunfo». Na bagagem, Gee tinha guardado um
saco do Harrods e uma cassete de Finlandia de Sibelius.
Quando chegaram ao desvio com o característico penedo,
os carros do KGB abrandaram e os soviéticos rodaram a
cabeça e olharam para o local enquanto passavam.
«Finalmente perceberam.» 
Legalista até ao fim, o KGB ainda não tinha terminado
com Gordievsky. No dia 14 de novembro de 1985, foi
julgado in absentia por um tribunal militar, considerado
culpado de traição e condenado à morte. Sete anos mais
tarde, Leonid Shebarshin, que tinha sucedido a Kryuchkov
como chefe do PDP, deu uma entrevista onde declarou que
esperava que Gordievsky fosse assassinado na Grã-
Bretanha e expressou o que parecia ser um aviso público
para que isso acontecesse. «A nível técnico», disse, «não é
nada complicado.»91 
 
 
Oleg Gordievsky passou a ser um espetáculo de
informações com um só artista. Viajou pelo mundo,
acompanhado por uma série de guarda-costas do MI6, a
explicar o KGB e a desmistificar a mais misteriosa de todas
as organizações. Entre outros países, foi à Nova Zelândia,
África do Sul, Austrália, Canadá, França, Alemanha
Ocidental, Israel, Arábia Saudita e a toda a Escandinávia.
Três meses após a sua exfiltração, houve uma reunião em
Century House para a qual foram convidados
representantes de todas as agências de serviços secretos,
e também membros selecionados do Governo britânico e
aliados, para examinarem o material de Gordievsky e as
suas implicações para o controlo de armamento, para as
relações entre o Leste e o Ocidente e para o futuro
planeamento dos serviços secretos. As centenas de
relatórios individuais foram empilhadas numa única mesa
de conferências, «como um enorme bufete» que os
espiões e os mestres da espionagem reunidos folhearam e
devoraram durante dois dias inteiros. 
Na Grã-Bretanha, o MI6 comprou-lhe uma casa nos
subúrbios de Londres, onde ele viveria sob um nome falso.
O MI6 e o MI5 levaram as ameaças de morte a sério. Oleg
dava palestras, ouvia música e escreveu livros com o
historiador Christopher Andrews, obras de minuciosa
erudição que ainda são os relatos mais completos dos
serviços secretos soviéticos até à data. Até deu entrevistas
na televisão, disfarçado com uma peruca um pouco
ridícula e uma barba falsa. O KGB sabia como ele era, mas
não valia a pena correr riscos. Quando as reformas de
Gorbachev começaram a varrer a União Soviética e o
império comunista começou a fraquejar, as suas
qualidades de perito foram ainda mais procuradas. 
Em maio de 1986, Margaret Thatcher convidou-o para
Chequers, a sua residência oficial no campo. Durante
quase três horas, conversou com o homem que conhecera
como Mr. Collins: sobre controlo de armamento, estratégia
política soviética e Gorbachev. Em março de 1987, ele deu-
lhe novas instruções, desta vez em Downing Street, antes
de a primeira-ministra fazer outra bem-sucedida visita a
Moscovo. Nesse mesmo ano, conheceu Ronald Reagan na
Sala Oval, onde discutiram as redes de espionagem
soviéticas e posaram para a fotografia. O encontro durou
22 minutos (Gordievsky referiu alegremente que tinham
sido mais quatro minutos do que o líder do Partido
Trabalhista, Neil Kinnock, tivera com o líder do mundo
livre). «Nós conhecemo-lo», disse Reagan, pondo um braço
à volta do ombro do russo. «Estamos agradecidos pelo que
fez pelo Ocidente. Obrigado. Não esquecemos a sua família
e lutaremos por ela.» 
Nos primeiros anos de liberdade, Oleg esteve muitíssimo
ocupado, mas muitas vezes sentia uma profunda tristeza. 
A sua família estava cativa de um vingativo KGB. Num
sonho recorrente, via a mulher e as filhas no átrio das
chegadas do aeroporto de Heathrow para uma reunião
feliz, mas acordava e percebia que estava sozinho. 
Em Moscovo, Leila vivia em prisão domiciliária efetiva e
era mantida sob apertada vigilância para a eventualidade
de, também ela, conseguir fugir. Tinha o telefone sob
escuta. As cartas eram intercetadas. Não conseguia
arranjar emprego e dependia do apoio financeiro dos pais.
Um por um, os amigos pareceram evaporar-se. «Havia um
vazio absoluto. Toda a gente tinha medo de me ver. Mudei
o apelido das miúdas para Aliyev, porque Gordievsky é um
nome muito marcante. As minhas filhas teriam sido
ostracizadas.» Deixou de cortar o cabelo e declarou que
não voltaria a fazê-lo enquanto não voltasse para junto do
marido. Anos mais tarde, quando um jornalista lhe
perguntou como se sentira quando soubera que ele tinha
desertado para a Grã-Bretanha, Leila respondeu: «Fiquei
contente por saber que ele estava vivo.» Segundo os
termos da condenação de Gordievsky por traição, os bens
dos dois foram confiscados: apartamento, carro, bagagem
e o videogravador trazido da Dinamarca. «O divã com
buracos no colchão, o ferro de engomar. Eles gostaram
especialmente do ferro de engomar, porque era um Hoover
importado», disse Leila. 
Gordievsky tentou enviar-lhe telegramas, mas ela nunca
os recebeu. Comprou presentes, incluindo roupas caras
para as filhas, que embrulhou com todo o carinho e enviou
para Moscovo. Todas as encomendas foram confiscadas
pelo KGB. Quando, por fim, recebeu uma carta de Leila, leu
as primeiras linhas e percebeu que fora ditada pelo KGB.
«Eles perdoaram-te», escreveu ela. «Podes arranjar outro
emprego sem dificuldade.» Seria uma armadilha para o
atrair para a União Soviética? Ela estaria a conspirar com o
KGB? Conseguiu mandar-lhe uma carta em segredo,
através de um soviético, onde manteve a declaração de
que era vítima de uma conspiração do KGB, talvez
convencido de que aquilo a protegeria. Leila ficou chocada.
Sabia que não era verdade. «Ele disse-me: “Não sou
culpado de nada. Sou um funcionário honesto, sou um
cidadão leal, etc., e tive de fugir para o estrangeiro.” Não
sei porque é que me mentiu. Foi surreal. Tentei
compreender. Havia algumas palavras sobre as miúdas e
ele disse que ainda me amava. Mas eu pensei: “Fizeste o
que querias fazer – eu continuo aqui com as crianças. Tu
fugiste, mas nós somos prisioneiras.”» Estavam a enganar-
se um ao outro. Talvez estivessem a enganar-se a si
mesmos. O KGB disse a Leila que o marido estava a ter
«um caso com uma jovem secretária inglesa». 
Leila foi informada pelo KGB de que, se optasse por se
divorciar formalmente de Gordievsky, os seus bens seriam
devolvidos, incluindo o ferro de engomar. «Disseram-me
que devia pensar nas crianças.» Ela aceitou a proposta. O
KGB mandou um táxi para a levar ao tribunal e pagou a
taxa de divórcio. Leila voltou a usar o nome de solteira.
Estava convencida de que nunca mais voltaria a vê-lo. «A
vida continuou»92, disse. «As miúdas iam para a escola e
eram, de certa forma, felizes. Nunca me atrevi a chorar
diante das minhas filhas nem a mostrar-lhes o que me ia
na alma. Tive sempre uma atitude orgulhosa e um sorriso
no rosto.» Mas a um jornalista ocidental que conseguiu
uma breve entrevista confessou que continuava a amar o
marido e desejava estar com ele. «Embora não seja sua
mulher no papel, ainda sou sua mulher em espírito.» 
A campanha para retirar a família da União Soviética
continuou durante seis anos, persistentemente, mas sem
resultados. «Tentámos abordá-los com a intermediação dos
finlandeses e dos noruegueses, mas não tínhamos
trunfos», disse George Walker, o funcionário do MI6
responsável pela Operação HETMAN e agora um dos
principais pontos de contacto de Gordievsky com o Serviço.
«Falámos com pessoas em países neutros e com ativistas
dos direitos humanos. Conseguimos pôr os franceses, os
alemães, os neozelandeses, toda a gente, a organizar e
tentar fazer pressão para a libertação delas. O Ministério
dos Negócios Estrangeiros abordava regularmente o
assunto através dos embaixadores em Moscovo.» Quando
Margaret Thatcher se encontrou com Gorbachev em março
de 1987, mencionou logo a questão da família de
Gordievsky. Charles Powell observou a reação do líder
soviético. «Ele ficou branco de fúria e recusou-se a
responder.» Encontrar-se-iam mais duas vezes nos anos
seguintes. Thatcher abordou o assunto nas duas ocasiões,
mas as suas declarações foram mal recebidas. «No
entanto, isso não a desencorajou, nunca a desencorajou.» 
O KGB estava irredutível. «Graças ao Oleg, eles tinham
sido ridicularizados», disse Walker. «O único castigo que
podiam infligir-lhe era não libertar a mulher e as filhas.» 
Dois anos após a fuga, uma carta de Leila chegou a
Londres, trazida por um camionista finlandês que a pôs no
correio em Helsínquia. A carta, escrita em russo em três
páginas de papel ministro, não tinha sido supervisionada
pelo KGB. Era honesta, e furiosa. Walker leu-a: «Era a carta
de uma mulher muito forte, capaz e muito zangada, e
dizia: “Porque é que não me disseste? Como é que pudeste
abandonar-me? O que estás a fazer para nos resgatar?”»
Qualquer esperança de que a história poderia ter um fim
de conto de fadas começou a desaparecer. Traição, o vasto
período de separação e a desinformação do KGB tinham
desgastado a pouca confiança que ainda existia entre o
casal. De vez em quando conseguiam falar ao telefone,
mas as conversas eram tensas e também eram escutadas
e gravadas. As filhas mostravam-se tímidas e falavam por
monossílabos. As conversas empoladas numa linha cheia
de interferência só pareciam aumentar a distância, tanto
física como psicológica. Walker comentou: «Soube desde o
primeiro momento que não seria uma reconciliação fácil.
Teria sido extraordinariamente difícil em quaisquer
circunstâncias. Todavia, quando li a carta, ficou claro que a
possibilidade de uma reunião era muito remota.» Não
obstante, a Operação HETMAN continuou. «O meu trabalho
era garantir que não esquecíamos aquela mulher.» 
A fuga tinha chocado e embaraçado profundamente o
KGB, mas, como sempre acontece, as cabeças que rolaram
foram as mais pequenas. Nikolai Gribin, o chefe imediato
de Gordievsky, foi despromovido, embora não tivesse
qualquer responsabilidade no que aconteceu. Vladimir
Kryuchkov, o chefe do Primeiro Diretório Principal, tornar-
se-ia presidente do KGB em 1988. Como seu vice, Viktor
Grushko subiu com ele. Viktor Budanov, que liderara a
investigação, foi nomeado diretor da Divisão K e ascendeu
à patente de general. Após o colapso do comunismo,
Budanov criou a Elite Security. Em 2017, foi tornado
público que a Elite tinha vencido um contrato de 2,8
milhões de dólares para fazer a segurança da embaixada
dos Estados Unidos em Moscovo, uma ironia que divertiu
Mikhail Lyubimov, que comentaria que a embaixada russa
em Washington dificilmente contrataria uma empresa com
ligações à CIA. 
O Muro de Berlim, a barreira que tinha desencadeado os
primeiros impulsos de rebelião em Gordievsky, foi
derrubado em 1989, na sequência de uma onda de
revoluções anticomunistas na Europa de Leste e na Europa
Central. Com a glasnost e a perestroika, o KGB começou a
perder o controlo na União Soviética em desagregação. No
Kremlin, os partidários de uma linha dura estavam cada
vez mais descontentes com as reformas de Gorbachev e,
em agosto de 1991, um grupo de conspiradores, liderados
por Kryuchkov, tentou tomar o poder. Ele duplicou o
ordenado de todos os funcionários do KGB, ordenou que
voltassem de férias e colocou-os em alerta. O golpe
sucumbiu passados três dias. Kryuchkov foi detido,
juntamente com Grushko, e ambos foram acusados de alta
traição. Gorbachev agiu com celeridade contra os inimigos
nos serviços secretos soviéticos: os 230 mil soldados do
KGB foram colocados sob a alçada do Ministério da Defesa,
a Divisão K foi dissolvida e a maioria do comando de topo
foi despedida – com exceção de Gennadi Titov, agora
general. «O Crocodilo» estava de férias quando o golpe foi
iniciado e seria promovido a diretor da contraespionagem.
«A espionagem tornou-se muito mais difícil do que era»93,
disse ele com uma expressão melancólica, alguns dias
depois da tentativa de putsch.94 
Kryuchkov foi substituído por Vadim Bakatin, um
reformador democrático que se dedicou a desmantelar o
vasto sistema de espionagem e segurança que aterrorizara
a União Soviética durante tanto tempo. «Estou a
apresentar ao presidente planos para a destruição desta
organização», declarou Bakatin. O novo diretor do KGB
também seria o último. Um dos seus primeiros atos foi
anunciar que a família Gordievsky seria reunida. «Senti
que era um problema antigo que tinha de ser resolvido»,
disse Bakatin. «Quando perguntei aos meus generais,
todos responderam categoricamente: “Não!”, mas decidi
ignorá-los e pensar nisto como a minha grande vitória no
KGB.» 
Leila Aliyeva Gordievsky e as filhas, Maria (Masha) e
Anna, aterraram em Heathrow no dia 6 de setembro de
1991 e foram levadas de helicóptero para o Forte
Monckton, onde Gordievsky esperava para as levar para
casa. Houve flores, champanhe e presentes. Ele tinha
amarrado fitas amarelas, os símbolos americanos de boas-
vindas, em toda a casa, comprara lençóis novos para as
camas das filhas e acendera todos os candeeiros para criar
«uma alegre explosão de luz». 
Três meses depois de a família ser reunida, a União
Soviética foi dissolvida. Os jornais publicaram fotografias
da família a passear alegremente em Londres, um retrato
de harmonia doméstica e do poder do amor num momento
de tumultuosa convulsão política na Rússia. Aqui estava
um conveniente símbolo romântico para o fim do
comunismo. Porém, após seis anos de distanciamento
forçado também havia uma dor profunda. Masha, então
com 11 anos, quase não se lembrava do pai. Para Anna, a
filha mais nova, que tinha 10 anos, ele era um
desconhecido. Oleg esperava que Leila se adaptasse ao
casamento como antes, mas constatou que ela era crítica
e hostil, «e exigia explicações». Ele acusou-a de tornar as
crianças dependentes dela de forma deliberada. Para Leila,
o regresso à Grã-Bretanha foi apenas o capítulo mais
recente de uma história que não controlava. A sua vida
tinha sido destruída pela política e pelas escolhas secretas
feitas por um homem que amara profundamente, e em
quem confiara cegamente, mas que nunca tinha
conhecido. «Ele fez aquilo em que acreditava, e respeito-o
por isso. Mas não me perguntou. Envolveu-me sem que eu
pudesse ter uma palavra a dizer. Não me deu a
oportunidade de escolher. Do seu ponto de vista, ele foi o
meu salvador. Mas quem me pôs naquela situação terrível?
Esqueceu-se da primeira parte. Não se pode empurrar uma
pessoa de um penhasco e depois estender uma mão e
dizer: “Salvei-te!” Ele era tipicamente russo.» Leila não
conseguia esquecer, nem ultrapassar, o que lhe tinha
acontecido. Tentaram retomar uma vida familiar, mas o
casamento que existia antes da fuga pertencia a outro
mundo, a outro tempo, e não podia ser reavivado. No
fundo, ela sentia que a lealdade de Gordievsky a uma ideia
tinha sido mais importante do que o amor que sentia por
ela. «A relação entre uma pessoa e o Estado é uma coisa,
e a relação de duas pessoas que se amam é
completamente diferente», diria ela muitos anos mais
tarde. O casamento, já terminado para a lei soviética, teve
um fim rápido e amargo. «Não restava nada», escreveu
Oleg. O casal separou-se para sempre em 1993. A relação
fora destruída pela batalha entre o KGB e o MI6, entre o
comunismo e o Ocidente. O casamento tinha sido
concebido entre as impossíveis contradições da
espionagem na Guerra Fria e morreu no momento em que
a guerra estava a chegar ao fim. 
Leila divide o seu tempo entre a Rússia e o Reino Unido.
As filhas, Maria e Anna, frequentaram escolas e
universidades britânicas e continuam a viver na Grã-
Bretanha. Não usam o nome Gordievsky. O MI6 continua a
cumprir o seu dever de cuidar da família. 
Os amigos e colegas de Gordievsky no KGB também não
conseguiram perdoar-lhe. Maksim Parshikov foi
recambiado de Londres, investigado pelo KGB e despedido.
Parshikov passou o resto da vida a perguntar a si mesmo
porque é que Gordievsky se tornara um traidor. «É verdade
que o Oleg era um dissidente. Mas quem é que, no seu
juízo perfeito, não era dissidente na URSS na década de
1980, pelo menos até certo ponto? A maioria dos
funcionários da rezidentura de Londres era um bando de
dissidentes, com diferentes graus de dissidência, e todos
gostávamos da vida no Ocidente. Mas o Oleg foi o único
que se tornou um traidor.» Mikhail Lyubimov encarou a
traição como uma ofensa pessoal: Gordievsky tinha sido
seu amigo, tinham partilhado segredos, música e a obra de
Somerset Maugham. «Imediatamente após a fuga do
Gordievsky, senti o punho do KGB. Quase todos os antigos
colegas cortaram logo qualquer contacto comigo e
evitavam os encontros [...] ouvi rumores de que ordens
ameaçadoras do KGB se referiam a mim como o principal
culpado da traição do Gordievsky.» Só então é que ele
compreendeu a pista que Gordievsky lhe tinha dado na
véspera da fuga ao referir-se ao conto Mr. Harrington’s
Washing.» Muito embora nunca tenha conseguido ser o
Somerset Maugham russo, Lyubimov escreveria romances,
peças de teatro e um livro de memórias e manteve-se um
característico híbrido da Guerra Fria: soviético por
lealdade, inglês da velha guarda nos modos. Sentia um
ressentimento profundo por ter sido usado para desviar a
atenção do KGB num momento crucial da fuga e
transformado no que disse ser «uma manobra de
diversão». Gordievsky tinha infringido a sua noção de fair
play britânico. Nunca mais voltaram a falar. 
Sir Bryan Cartledge ficou surpreendido com a rapidez
com que as relações entre a Grã-Bretanha e a União
Soviética retomaram a cordialidade anterior após a
sucessão de expulsões. Cessou funções como embaixador
na União Soviética em 1988. Ao recordar o caso, descreveu
a exfiltração como «uma vitória extraordinária».
Gordievsky tinha fornecido «um compêndio de
conhecimento da estrutura e do modus operandi do KGB
[...] permitindo-nos frustrá-los exaustivamente, talvez
durante anos». Rosemary Spencer, a investigadora da
sede do Partido Conservador, ficou chocada ao descobrir
que o encantador diplomata russo de quem se tornara tão
próxima, a pedido do MI5, estivera sempre a trabalhar para
o MI6. Rosemary casou-se com um dinamarquês e mudou-
se para Copenhaga. 
Os responsáveis e controladores de Gordievsky no MI6
mantiveram a ligação, uma célula secreta no interior do
mundo secreto. Os outros – Richard Bromhead,
Veronica Price, James Spooner, Geoffrey Guscott,
Martin Shawford, Simon Brown, Sarah Page, Arthur
Gee, Violet Chapman, George Walker – permaneceram
nas sombras, onde continuam, a seu pedido, porque estes
não são os seus nomes verdadeiros. Numa audiência
secreta com a rainha, Ascot e Gee foram nomeados
oficiais da Ordem do Império Britânico, e Chapman foi
nomeado Membro da Ordem do Império Britânico. Philip
Hawkins, o escocês que foi o primeiro responsável pelo
caso Gordievsky, deu uma resposta tipicamente seca
quando soube da fuga: «Oh, afinal de contas era genuíno,
não era? Nunca acreditei que fosse.» 
John Deverell, o chefe da Divisão K, viria a ser diretor
do MI5 na Irlanda do Norte. Morreu em 1994, com a
maioria dos outros especialistas britânicos dos serviços
secretos da Irlanda do Norte, quando o helicóptero Chinook
onde viajavam caiu no promontório de Kintyre. Em março
de 2015, depois de Roy Ascot ter ocupado o seu lugar na
Câmara dos Lordes, outro deputado, o historiador Peter
Hennessy, expôs o seu disfarce de uma forma espetacular:
«Embora eu saiba que ele é demasiado discreto para
mencionar o assunto, o nobre conde tem um lugar especial
na história dos serviços secretos como o funcionário que
tirou aquele notável e corajoso homem, o Oleg Gordievsky,
da Rússia para a Finlândia.» A filha de Ascot, cuja fralda
suja desempenhou um papel tão estranho na Guerra Fria,
tornou-se uma conceituada especialista em arte russa. O
KGB nunca conseguiu acreditar que o MI6 tinha levado um
bebé como disfarce numa operação de exfiltração. 
Michael Bettaney saiu em liberdade condicional em
1998, depois de ter cumprido 14 anos da uma pena de 23.
Em 1987, Stig Bergling, o espião sueco, saiu da prisão
para uma visita conjugal com a mulher e fugiu para
Moscovo, onde viveu com um agradável salário de 500
rublos por mês. Mudou-se para Budapeste um ano mais
tarde, e em seguida para o Líbano, onde trabalhou como
consultor de segurança para Walid Jumblatt, o líder da
milícia Druze. Em 1994, ligou para o serviço de segurança
sueco e anunciou que queria voltar para casa. Depois de
cumprir mais três anos de prisão, foi libertado por motivos
de saúde. Bergling morreu de doença de Parkinson em
2015, pouco depois de disparar sobre uma enfermeira e
feri-la com uma espingarda de pressão de ar na residência
assistida onde se encontrava. Em 1992, Arne Treholt foi
libertado e controversamente perdoado pelo Governo
norueguês depois de passar oito anos numa prisão de alta
segurança. O seu caso continua a ser alvo de discussão na
Noruega. A Comissão de Reavaliação de Casos Criminais
reabriu uma investigação sobre a condenação e em 2011
concluiu que não havia fundamento para sugerir que as
provas foram adulteradas, como os apoiantes de Treholt
alegavam. Após a sua libertação, radicou-se na Rússia e
mais tarde no Chipre, onde trabalha como empresário e
consultor. Michael Foot processou o Sunday Times em
1995 por causa de um artigo com excertos do livro de
memórias de Gordievsky, com o título: «KGB: Foot era
nosso agente.» Foot descreveu o artigo como uma
«difamação do macarthismo» e recebeu uma choruda
indemnização, parte da qual seria usada para financiar o
Tribune. Morreu em 2010, aos 96 anos. 
Para os serviços de informações ocidentais, o caso
Gordievsky tornou-se o exemplo perfeito de como recrutar
e controlar um espião, como usar as informações para
esclarecer e melhorar as relações internacionais e como,
nas circunstâncias mais dramáticas, um espião em perigo
podia ser salvo. Mas a questão de quem o traíra
continuava no ar. Gordievsky tinha as suas teorias: talvez a
sua primeira mulher, Yelena, ou «Standa Kaplan», o amigo
checo, o tivessem traído; talvez Bettaney tivesse
descoberto quem o tinha exposto como toupeira do MI6;
ou fora a detenção e o julgamento de Arne Treholt que
alertara o KGB? Não lhe ocorreu, nem ao MI6, desconfiar
do simpático funcionário americano que estava muitas
vezes sentado à mesa durante a maratona de reuniões
com a CIA. 
Após um trabalho em Roma, Aldrich Ames foi colocado
no grupo de análise do centro de contraespionagem e
passou a ter acesso a novas informações sobre os agentes
soviéticos da agência, que transmitia logo ao KGB. O
número de mortes aumentou, e o mesmo aconteceu ao
saldo das suas contas bancárias suíças e americanas.
Comprou um Jaguar prateado novo, e depois um Alfa
Romeo. Gastou meio milhão de dólares, em numerário,
numa casa nova. Pôs capas nos dentes manchados de
nicotina. O ar aristocrático de Rosario era um bom disfarce,
já que ele dizia que o dinheiro vinha da abastada família
da mulher. O KGB garantiu-lhe que poderia ajudá-lo a fugir,
se alguma vez desconfiassem dele: «Estávamos
preparados para fazer em Washington o que os britânicos
tinham feito em Moscovo com o Gordievsky», disse o seu
controlador do KGB. Ames recebeu um total de 4,6 milhões
de dólares dos soviéticos, um número apenas um pouco
mais surpreendente do que o facto de as suas camisas
com monograma e novos dentes brilhantes terem passado
despercebidos dos seus colegas da CIA durante tanto
tempo. 
À primeira vista, Gordievsky e Ames comportaram-se de
forma semelhante. Ambos se voltaram contra as suas
respetivas organizações e países e usaram os seus
conhecimentos para identificar espiões para o outro lado.
Ambos traíram o juramento que tinham feito no início das
suas carreiras e ambos pareciam viver uma vida, enquanto
viviam outra em segredo. No entanto, as semelhanças
terminam aqui. Ames espiou por dinheiro; Gordievsky foi
movido por convicção ideológica. As vítimas de Ames
foram desencantadas pelo KGB e, na maioria dos casos,
executadas; as pessoas que Gordievsky expôs, como
Bettaney e Treholt, foram vigiadas, intercetadas,
devidamente julgadas, presas e, por fim, devolvidas à
sociedade. Gordievsky arriscou a vida por uma causa;
Ames queria um carro melhor. Ames decidiu servir um
regime totalitário brutal pelo qual não sentia qualquer
afinidade, um país onde nunca teria pensado viver;
Gordievsky provou a liberdade democrática e decidiu
defender e apoiar esse estilo de vida e cultura, radicando-
se por fim no Ocidente com um enorme custo pessoal. No
fim, a diferença entre ambos é uma questão de julgamento
moral: Gordievsky estava do lado dos bons; e Ames estava
do seu próprio lado. 
No início, a CIA atribuiu a perda de tantos dos seus
agentes soviéticos a causas que não um espião interno,
incluindo uma escuta na sua sede, ou um código decifrado.
O trauma persistente da caça às toupeiras realizada por
Angleton nas décadas de 1960 e 1970 tornaram a
possibilidade de traição a partir do interior demasiado
dolorosa para considerar. Contudo, por fim tornou-se
evidente que apenas uma traição poderia explicar aquele
nível de atrito e, em 1993, o luxuoso estilo de vida de
Ames chamou por fim a atenção. Foi colocado sob
vigilância, os seus movimentos seguidos e o seu lixo
vasculhado em busca de provas. No dia 21 de fevereiro de
1994, Rick e Rosario Ames foram detidos pelo FBI. «Estão a
cometer um grande erro!», insistiu ele. «Apanharam o
homem errado!» Passados dois meses, confessou-se
culpado de espionagem e foi condenado a prisão perpétua;
Rosario fez um acordo e foi condenada a cinco anos de
prisão por fuga ao fisco e conspiração para cometer
espionagem. Em tribunal, Ames admitiu que
comprometera «praticamente todos os agentes soviéticos
da CIA e de outros serviços de informações americanos e
estrangeiros que conheço» e transmitira à União Soviética
e à Rússia uma «enorme quantidade de informações sobre
questões de política externa, de defesa e segurança dos
Estados Unidos». Atualmente, Rick Ames, recluso 40087-
083, está detido na penitenciária federal em Terre Haute,
Indiana. 
Gordievsky ficou estupefacto ao descobrir que o homem
que considerava um patriota americano modelo tentara
assassiná-lo. «O Ames destruiu a minha carreira e a minha
vida», escreveu. «Mas não me matou.» 
Em 1997, o jornalista da televisão americana Ted Koppel
entrevistou Ames na prisão. Gordievsky tinha sido
entrevistado em Inglaterra antes e Koppel levou a
gravação de vídeo para lhe mostrar e avaliar a sua reação.
O homem traído dirigiu-se diretamente ao traidor. «O
Aldrich Ames é um traidor», disse Gordievsky quando
Ames, vestido com o uniforme prisional, observou a
gravação num ecrã com muita atenção. «Ele só trabalhou
por dinheiro. Não passava de um filho da mãe ganancioso.
Será castigado pela sua consciência até ao fim da vida.
Pode dizer-lhe: “O senhor Gordievsky quase o perdoou!”» 
Koppel voltou-se para Ames quando a gravação
terminou: «Acredita que ele quase o perdoou?» 
«Acho que sim», disse Ames. «Acho que tudo o que ele
disse ali me afeta muito. Eu disse uma vez que os homens
que traí tinham feito escolhas semelhantes e corrido riscos
semelhantes. Qualquer pessoa razoável que me oiça dizer
isto vai comentar: “Que arrogância!” Mas não foi uma
declaração arrojada.» O tom de Ames foi de
autojustificação, quase presunçoso, quando insistiu na
equivalência moral entre os seus atos e os do outro espião.
No entanto, ver Gordievsky também o levou a proferir uma
afirmação muito próxima de uma declaração de
arrependimento: «O tipo de vergonha e o tipo de remorsos
que sinto é algo, e sempre o será, intensamente pessoal!» 
Oleg Gordievsky ainda vive, sob um nome falso, na casa
geminada numa banal rua suburbana em Inglaterra para
onde se mudou pouco depois de fugir da Rússia. A sua
casa é muito pouco notável. Apenas as sebes altas em
volta, e o denunciador zumbido de um fio elétrico invisível
quando nos aproximamos do edifício, indicam que pode ser
diferente das outras casas do bairro. A ordem de execução
ainda está em vigor e o MI6 continua a tomar conta do seu
espião mais precioso da Guerra Fria. A fúria do KGB ainda
se mantém. Em 2015, Sergei Ivanov, o chefe do estado-
maior de Vladimir Putin na época, culpou Gordievsky por
prejudicar a sua carreira no KGB: «O Gordievsky
denunciou-me. Não posso dizer que a sua vergonhosa
traição e recrutamento pelos serviços secretos britânicos
despedaçou a minha vida, mas tive alguns problemas no
trabalho.» No dia 4 de março de 2018, um antigo
funcionário do GRU chamado Sergei Skripal e a filha, Yulia,
foram envenenados por assassinos com um agente
nervoso produzido na Rússia. Como Gordievsky, Skripal
espiou para o MI6, mas foi apanhado na Rússia, julgado,
preso e depois serviu como moeda de troca de espiões em
2010. Andrei Lugovoi, o antigo guarda-costas do KGB
acusado de assassinar o desertor Alexander Litvinenko
uma década antes, deu uma intrigante resposta quando
lhe perguntaram se a Rússia também envenenara Skripal:
«Se tivéssemos de matar alguém, seria o Gordievsky. Ele
foi tirado do país e condenado à morte in absentia.»95 Putin
e o seu povo não esqueceram. As medidas de segurança
que o rodeiam foram reforçadas depois do envenenamento
dos Skripal. A sua casa está sob vigilância permanente. 
Hoje em dia, Gordievsky quase não sai de casa, apesar
de ser visitado com frequência por amigos e antigos
colegas do MI5 e do MI6. Novos recrutas são trazidos de
vez em quando para conhecer uma lenda dos serviços
secretos. Continua a ser considerado um potencial alvo de
vingança. Passa o tempo a ler, a escrever, a ouvir música
clássica e a seguir com atenção os desenvolvimentos
políticos, sobretudo na sua terra natal. Nunca mais
regressou à Rússia desde o dia em que atravessou a
fronteira finlandesa em 1985 e diz que não deseja voltar:
«Agora sou britânico.» Não voltou a ver a mãe. Olga
Gordievsky morreu em 1989, aos 82 anos. Até ao fim,
insistiu que o filho era inocente. «Ele não é um agente
duplo, mas triplo, ainda a trabalhar para o KGB.»
Gordievsky nunca teve a oportunidade de lhe contar a
verdade. «Teria gostado muito de lhe contar a minha
versão dos factos.» 
Como as vidas de tantos espiões atestam, a espionagem
cobra um preço elevado. 
Oleg Gordievsky continua a viver uma vida dupla. Para os
seus vizinhos suburbanos, o homem curvado de barba que
vive tranquilamente atrás das sebes altas é apenas mais
um reformado idoso, uma pessoa pouco importante. Na
realidade, é uma pessoa totalmente diferente, uma figura
de profunda importância histórica e um homem notável:
orgulhoso, inteligente, irascível, com a pensativa
expressão iluminada por clarões súbitos de irónico humor.
Por vezes é difícil gostar dele, e é impossível não o
admirar. Ele diz que não se arrepende de nada, mas de vez
em quando pode calar-se a meio da conversa e olhar
sombriamente para uma paisagem que apenas ele pode
ver. É uma das pessoas mais corajosas que já conheci, e
uma das mais solitárias. 
Nas condecorações do aniversário da rainha em 2007,
Gordievsky foi nomeado companheiro da Ordem de São
Miguel e São Jorge (CMG), por «serviços prestados à
segurança do Reino Unido» – a mesma honra, como ele
gosta de referir, que foi concedida ao James Bond ficcional.
Os meios de comunicação em Moscovo anunciaram,
erradamente, que o antigo camarada Gordievsky seria
doravante «Sir Oleg». O retrato de Gordievsky está
pendurado no Forte Monckton. 
Em julho de 2015, no trigésimo aniversário da sua fuga,
todos os envolvidos na gestão do caso e na sua exfiltração
da Rússia reuniram-se para celebrar o espião russo de 76
anos. A mala de napa com que ele fugiu para a Finlândia
está agora no museu do MI6. Na celebração do aniversário
ofereceram-lhe, como recordação, uma nova mala de
viagem. Continha o seguinte: um chocolate Mars, um saco
de plástico do Harrods, um mapa da Rússia Ocidental,
comprimidos «para o alívio da preocupação, irritabilidade,
insónias e stresse», repelente de insetos, duas garrafas de
cerveja e duas cassetes: os Greatest Hits dos Dr. Hook e a
Finlandia de Sibelius. 
Os últimos artigos na mala eram um pacote de batatas
fritas com sabor de queijo e cebola e uma fralda de bebé. 

94 Golpe de Estado. (N. da T.)


Agradecimentos 

Este livro não poderia ter sido escrito sem o incondicional


apoio e colaboração da pessoa que retrata. Ao longo dos
últimos três anos entrevistei o Oleg Gordievsky na casa
segura em mais de 20 ocasiões, acumulando mais de 100
horas de conversas gravadas. A sua hospitalidade foi
infindável, a sua paciência sem limites e a sua memória
prodigiosa. Colaborou sem impor exigências ou qualquer
tentativa de influenciar a escrita deste livro: a
interpretação dos acontecimentos e os erros que ele
contém são da minha inteira responsabilidade. Por
intermédio de Gordievsky, consegui falar com todos os
funcionários do MI6 envolvidos no caso e estou
imensamente agradecido pela sua ajuda. Todos aceitaram
falar livremente, com a condição de manterem o
anonimato. Antigos funcionários do MI6 vivos e alguns
antigos funcionários dos serviços secretos russos e
dinamarqueses surgem aqui com pseudónimos, incluindo
diversos indivíduos que já foram publicamente
identificados. Todos os outros nomes são verdadeiros.
Também beneficiei da generosa ajuda de muitos dos
antigos funcionários do KGB, MI5 e CIA envolvidos no caso
Gordievsky. Este livro não foi autorizado nem teve a ajuda
do MI6 e não tive acesso aos ficheiros dos serviços
secretos, que continuam confidenciais.  
Duas pessoas foram particularmente úteis: marcaram
reuniões com diferentes intervenientes, assistiram a
reuniões com Gordievsky, leram o manuscrito para
verificar a precisão factual, providenciaram alimento
espiritual e gastronómico e, em geral, garantiram que uma
complexa e potencialmente delicada operação fosse
concluída com eficácia e interminável bom humor. Eles
merecem muito maior reconhecimento do que posso dar-
lhes; mas, para seu mérito, não o querem.  
Também quero agradecer a Christopher Andrew, Keith
Blackmore, John Blake, Bob Bookman, Karen Brown,
Venetia Butterfield, Alex Carey, Charles Cohen, Gordon
Corera, David Cornwell, Luke Corrigan, Charles Cumming,
Lucie Donahue, St John Donald, Kevin Doughton, Lisa
Dwan, Charles Elton, Natasha Fairweather, Emme Fane,
Stephen Garrett, Tina Gaudoin, Burton Gerber, Blanche
Girouard, Claire Haggard, Bill Hamilton, Robert Hands, Kate
Hubbard, Lynda Jordan, Mary Jordan, Steve Kappas, Ian
Katz, Daisy Lewis, Clare Longrigg, Kate Macintyre, Magnus
Macintyre, Robert McCrum, Chloe McGregor, Ollie
McGregor, Gill Morgan, Vikki Nelson, Rebecca Nicolson,
Roland Philipps, Peter Pomerantsev, Igor Pomeranysev,
Andrew Previté, Justine Roberts, Felicity Rubinstein, Melita
Samoilys, Mikael Shields, Molly Stern, Angus Stewart, Jane
Stewart, Kevin Sullivan, Matt Whiteman, Damian Whitworth
e Caroline Wood.  
Os meus amigos e colegas do The Times foram uma
inesgotável fonte de apoio, inspiração e merecida troça. O
falecido Ed Victor, o meu brilhante agente durante 24
anos, esteve presente no início, e o Jonny Geller assumiu
magnificamente o comando. As equipas da Viking e da
Crown foram soberbas. Por fim, o meu agradecimento e
amor aos meus filhos, Barney, Finn e Molly, as pessoas
mais bondosas e engraçadas que conheço.  
Bibliografia selecionada 
 
 
 
 
 
Andrew, Christopher, The Defence of the Realm: The Authorized History of MI5,
Londres, 2009.  
—, Secret Service: The Making of the British Intelligence Community, Londres,
1985. 
Andrew, Christopher e Oleg Gordievsky (eds.), Instructions from the Centre:
Top Secret Files on KGB Foreign Operations 1975-1985, Londres, 1991. 
—, KGB: The Inside Story of Its Foreign Operations from Lenin to Gorbachev,
Londres, 1991. 
Andrew, Christopher e Vasili Mitrokhin, The Mitrokhin Archive: The KGB in
Europe and the West, Londres, 1999. 
—, The World was Going Our Way: The KGB and the Battle for the Third World,
Londres, 2005. 
Barrass, Gordon S., The Great Cold War: A Journey through the Hall of Mirrors,
Stanford, Califórnia, 2009. 
Bearden, Milton e James Risen, The Main Enemy: The Inside Story of the CIA’s
Final Showdown with the KGB, Londres, 2003. 
Borovik, Genrikh, The Philby Files: The Secret Life of Master Spy Kim Philby –
KGB Archives Revealed, Londres, 1994. 
Brook-Shepherd, Gordon, The Storm Birds: Soviet Post-War Defectors, Londres,
1988.  
Carl, Leo D., The International Dictionary of Intelligence, McLean, Va, 1990. 
Carter, Miranda, Anthony Blunt: His Lives, Londres, 2001. 
Cavendish, Anthony, Inside Intelligence: The Revelations of an MI6 Officer,
Londres, 1990.  
Cherkashin, Victor, com Gregory Feifer, Spy Handler: Memoir of a KGB Officer,
Nova Iorque, 2005. 
Corera, Gordon, MI6: Life and Death in the British Secret Service, Londres,
2012.  
Earley, Pete, Confessions of a Spy: The Real Story of Aldrich Ames, Londres,
1997.  
Fischer, Benjamin B., «A Cold War Conundrum: The 1983 Soviet War Scare»,
https://www.cia.gov/library/center-for-the-study-of-intelligence/csi-
publications/books-and-monographs/a-cold-warconundrum/source.htm. 
Gaddis, John Lewis, The Cold War, Londres, 2007. 
Gates, Robert M., From the Shadows: The Ultimate Insider’s Story of Five
Presidents and How They Won the Cold War, Nova Iorque, 2006. 
Gordievsky, Oleg, Next Stop Execution: The Autobiography of Oleg Gordievsky,
Londres, 1995. 
Grimes, Sandra e Jeanne Vertefeuille, Circle of Treason: A CIA Account of
Traitor Aldrich Ames and the Men He Betrayed, Annapolis, Md, 2012. 
Helms, Richard, A Look Over My Shoulder: A Life in the Central Intelligence
Agency, Nova Iorque, 2003. 
Hoffman, David E., The Billion Dollar Spy: A True Story of Cold War Espionage
and Betrayal, Nova Iorque, 2015. 
Hollander, Paul, Political Will and Personal Belief: The Decline and Fall of Soviet
Communism, New Haven, Conn., 1999. 
Howe, Geoffrey, Conflict of Loyalty, Londres, 1994. 
Jeffery, Keith, MI6: The History of the Secret Intelligence Service 1909-1949,
Londres, 2010.  
Jones, Nate (ed.), Able Archer 83: The Secret History of the NATO Exercise That
Almost Triggered Nuclear War, Nova Iorque, 2016. 
Kalugin, Oleg, Spymaster: My Thirty-Two Years in Intelligence and Espionage
against the West, Nova Iorque, 2009. 
Kendall, Bridget, The Cold War: A New Oral History of Life between East and
West, Londres, 2018. 
Lyubimov, Mikhail, (Notas de Um Vagabundo
Rezident ou Fogo-Fátuo), Moscovo, 1995. 
—, (Espiões Que Amo e Odeio),
Moscovo, 1997. 
Moore, Charles, Margaret Thatcher: The Authorized Biography, Vol. II:
Everything She Wants, Londres, 2015. 
Morley, Jefferson, The Ghost: The Secret Life of CIA Spymaster James Jesus
Angleton, Londres, 2017. 
Oberdorfer, Don, From the Cold War to a New Era: The United States and the
Soviet Union, 1983-1991, Baltimore, 1998. 
Parker, Philip (ed.), The Cold War Spy Pocket Manual, Oxford, 2015. 
Philby, Kim, My Silent War, Londres, 1968. 
Pincher, Chapman, Treachery: Betrayals, Blunders and Cover-Ups. Six Decades
of Espionage, Edimburgo, 2012. 
Primakov, Yevgeny, Russian Crossroads: Toward the New Millennium, New
Haven, Conn., 2004. 
Sebag Montefiore, Simon, Stalin: The Court of the Red Tsar, Londres, 2003. 
Trento, Joseph J., The Secret History of the CIA, Nova Iorque, 2001. 
Weiner, Tim, Legacy of Ashes: The History of the CIA, Londres, 2007. 
Weiner, Tim, David Johnston e Neil A. Lewis, Betrayal: The Story of Aldrich
Ames, an American Spy, Londres, 1996. 
Westad, Odd Arne, The Cold War: A World History, Londres, 2017. 
West, Nigel, At Her Majesty’s Secret Service: The Chiefs of Britain’s Intelligence
Agency, MI6, Londres, 2006. 
Womack, Helen (ed.), Undercover Lives: Soviet Spies in the Cities of the World,
Londres, 1998. 
Wright, Peter, com Paul Greengrass, Spycatcher: The Candid Autobiography of
a Senior Intelligence Officer, Londres, 1987.  
Referências 

A maioria das fontes deste livro é oriunda de entrevistas


com os intervenientes, funcionários do MI6, do KGB e da
CIA, a maior parte dos quais não podem ser identificados;
e de entrevistas a Oleg Gordievsky, à sua família e amigos,
e da autobiografia, Next Stop Execution, publicada em
1995. Outras fontes e citações importantes são referidas
abaixo.  
 
 
1. O KGB 
 
1
«Um ex-oficial do KGB é uma coisa que não existe»: Vladimir Putin, a
falar para uma audiência do FSB, dezembro de 2005,
http://www.newsweek.com/chill-moscow-air-113415.

3
«É preferível que dez pessoas inocentes»: citado em Sebag Montefiore,
Stalin.

5
«a Harvard russa»: citado em Encyclopedia of Contemporary Russian Culture
(eds. Tatiana Smorodinskaya, Karen Evans-Romaine e Helena Goscilo),
Abingdon, 2007.

6
«O comportamento do agente dos serviços secretos não deve levantar
suspeitas»: Leonid Shebarshin, «Inside the KGB’s Intelligence School», 24 de
março de 2015, https://espionagehistoryarchive.com/2015/03/24/the-kgbs-
intelligence-school/.

8
«O sonho secreto e conhecido»: idem, ibidem.

9
«um inglês até à ponta dos dedos»: Mikhail Lyubimov, citado em Corera,
MI6.

10
«Não hesitei»: Philby, My Silent War.
 
 
2. O Tio Gormsson 
 
As memórias de Mikhail Lyubimov’s estão contidas em Notes of a Ne’er-Do-
Well Rezident e Spies I Love and Hate; para as atividades de Vasili Gordievsky
na Checoslováquia, ver Andrew e Mitrokhin, Mitrokhin Archive.  
 
 
3. SUNBEAM 
 
O recrutamento de Gordievsky é descrito numa autobiografia não publicada de
Richard Bromhead, «Wilderness of Mirrors» («Gerontion», T. S. Eliot). 
 
 
4. Tinta Verde e Microfilme 
 
15
«Procurem pessoas que foram feridas»: Pavel Sudoplatov, citado em
Hollander, Political Will and Personal Belief. The Infernal Grove, Londres, 1973.

16
«Pela minha experiência, os agentes dos serviços secretos»: Malcolm
Muggeridge, Chronicles of Wasted Time, Parte 2: The Infernal Grove, Londres,
1973.

17
«um homem maravilhoso»: Borovik, Philby Files, p. 29.
Os casos Haavik e Treholt são descritos em Andrew e Mitrokhin, Mitrokhin
Archive. Para as atividades da rezidentura de Copenhaga, ver Lyubimov,
Notes of a Ne’er-Do-Well Rezident e Spies I Love and Hate.  
 
 
5. Um Saco de Plástico e um Chocolate
Mars 
 
19
«Até havia pessoas que eram recrutadas»: Cavendish, Inside
Intelligence.

20
«Medo à noite»: Robert Conquest, The Great Terror: A Reassessment,
Oxford, 1990.

22
«tão improvável como colocar»: Helms, A Look Over My Shoulder, citado
em Hoffman, Billion Dollar Spy.

23
«muito poucos agentes soviéticos»: Gates, From the Shadows, citado em
Hoffman, Billion Dollar Spy.

24
«informações fidedignas»: avaliação da CIA, 1953, citado em Hoffman,
Billion Dollar Spy.

26
«cinzenta, preta, branca e carregada»: citado no relatório da AFP, 28 de
junho de 1995.

27
«Dinheiro por informações»: ibidem.

28
«Ashenden admirava a bondade»: W. Somerset Maugham, Ashenden, or,
The British Agent, Leipzig, 1928.
 
 
6. O Agente BOOT 
 

29
«um dos maiores líderes sindicais do mundo»: Gordon Brown, Guardian,
22 de abril de 2009.

31
«preparado para passar ao Partido»: citado em Andrew, Defence of the
Realm.

32
«documentos confidenciais do Partido Trabalhista»: ibidem.

33
«transmitido tudo aquilo a que conseguiu deitar a mão»: ibidem.

34
«Gostei bastante da atmosfera de capa e espada»: Richard Gott,
Guardian, 9 de dezembro de 1994.

35
«Como muitos outros jornalistas»: idem, ibidem.
Pormenores dos ficheiros BOOT estão contidos em entrevistas feitas a
Gordievsky, arquivadas no arquivo legal do The Sunday Times. 

36
«O Lyubimov e Boot»: Mikhail Lyubimov, em Womack (ed.) Undercover
Lives.

38
«São tão fortes»: Michael Foot,
http://news.bbc.co.uk/onthisday/hi/dates/stories/november/10/newsid_4699000/
4699939.stm.

39
«Foot deu-lhes informações»: Charles Moore, entrevistas com Gordievsky,
Daily Telegraph, 5 de março de 2010.

40
«As ações dos russos»: Michael Foot, a discursar no comício de Hyde Park,
junho de 1968.
 
 

7. A Casa Segura 
 
As principais fontes sobre a vida de Aldrich Ames são Earley, Confessions of a
Spy; Weiner, Johnston e Lewis, Betrayal; e Grimes e Verte-feuille, Circle of
Treason.  

41
«Devido ao zelo excessivo»: Gates, From the Shadows.

42
«Não há nada que se assemelhe»: citado em Bearden e Risen, The Main
Enemy.
 
 
8. Operação RYAN 
 
As principais fontes da Operação RYAN são Barrass, Great Cold War; Fischer,
«Cold War Conundrum»; Jones (ed.), Able Archer 83.  

44
«O homem que substituiu»: Ion Mihai Pacepa, em National Review, 20 de
setembro de 2004.

45
«Esses planos não existiam»: Andrew, Defence of the Realm.

46
«O comando soviético acreditava verdadeiramente»: Howe, Conflict of
Loyalty. O relato de Maksim Parshikov está num livro de memórias não
publicado.

47
«Não sou espião»: The New York Times, 2 de abril de 1983.
 
 
9. Koba 
 
Para o caso Bettaney, ver Andrew, Defence of the Realm, e relatos dos jornais
da época.  
49
«Vestia-se como o gerente de um banco»: The Times, 29 de maio de
1998.
 
 
10. Mr. Collins e Mrs. Thatcher 
 
Para as opiniões de Margaret Thatcher’s acerca de Gordievsky, ver Moore,
Margaret Thatcher.  

52
«deixar o marxismo-leninismo na pilha de cinzas da história»: Ronald
Reagan para as Câmaras do Parlamento, 8 de junho de 1982.

53
«a alegria da mais profunda arrogância»: Henry E. Catto, Jr., vice-
secretário da Defesa, citado no Los Angeles Times, 11 de novembro de 1990.
Sobre ABLE ARCHER, ver Barrass, Great Cold War; Fischer, «Cold War
Conundrum»; e Jones (ed.), Able Archer 83. 

55
«o momento mais perigoso»: Andrew, Defence of the Realm.

56
«Gordievsky deixou-nos convencidos»: Howe, Conflict of Loyalty.

57
«Não percebo como é que eles podem acreditar nisso»: citado em
Oberdorfer, From the Cold War to a New Era.

58
«Em três anos aprendi»: citado no Washington Post, 24 de outubro de
2015.

59
«A minha primeira reação»: Gates, From the Shadows.

60
«as informações de Gordievsky foram uma epifania»: ver Jones (ed.),
Able Archer 83.

61
«tratadas como as mais sagradas das coisas sagradas»: Corera, MI6.

62
«Por amor de Deus»: Moore, Margaret Thatcher.

63
«O que dizer?»: AP, 26 de fevereiro de 1985.

65
«O Guk teve sempre»: Andrew, Defence of the Realm.

66
«um homem forte como um urso»: Bearden e Risen, Main Enemy.

67
«A ideia de deixarem o país»: citado em Gareth Stedman Jones, Karl Marx:
Greatness and Illusion, Londres, 2016.
68
«Cresci numa família de funcionários do KGB»: entrevista de rádio com
Igor Pomerantsev, Radio Liberty, 7 de setembro de 2015.

69
«uma oportunidade única»: Moore, Margaret Thatcher.

70
«Há consciência no Kremlin?»:
https://www.margaretthatcher.org/document/105450.

71
«Sem dúvida, pareceu-me um homem»: Thatcher para Reagan, nota
cedida aos Arquivos Nacionais do Reino Unido, janeiro de 2014.
 
 
11. Roleta Russa 
 
72
«As informações que chegaram [à CIA]»: ver Jones (ed.), Able Archer 83.

73
«O Burton Gerber estava determinado»: Bearden e Risen, Main Enemy.

74
«Um funcionário dos serviços secretos dinamarqueses»: ver Earley,
Confessions of a Spy.
Para a forma como o KGB lidou com Ames, ver Cherkashin, Spy Handler. 

76
«todas as marcas»: Grimes e Vertefeuille, Circle of Treason.
Entrevista com Viktor Budanov, 13 de setembro de 2007,
http://www.pravdareport.com/history/13-09-2007/97107-intelligence-0/. 
Para o caso DARIO, ver Andrew e Gordievsky (eds.), Instructions from the
Centre.  
 
 
12. O Gato e o Rato 
 
78
«Nunca confessar»: Philby, My Silent War.

79
«descanso e cura dos líderes»: The New York Times, 8 de fevereiro de
1993
Para o estado de espírito de OG, ver Lyubimov, Notes of a Ne’er-Do-Well
Rezident e Spies I Love and Hate. 
 
 
13. A Limpeza a Seco 
 
80
«Tê-lo-ia deixado escapar»: entrevista de rádio com Igor Pomerantsev,
Radio Liberty, 7 de setembro de 2015.

81
«Quando as desgraças surgem»: Hamlet, Ato IV, Cena V.

82
«A arte de se curvar ao Leste»: Kari Suomalainen, https://www.visa-
vuori.com/fi/taiteilijat/kari-suomalainen

83
«o homem sempre achou mais fácil»: W. Somerset Maugham, «Mr
Harrington’s Washing», em Ashenden, or, The British Agent, Leipzig, 1928.

84
«uma entediante perda de tempo»: Daily Express, 14 de junho de 2015.
 
 
14. Sexta-Feira, 19 de Julho 
 

85
«Aqui, na pátria»: discurso de Gorbachev no Décimo Segundo Festival
Mundial da Juventude, 27 de julho de 1985:
https://rus.ozodi.org/amp/24756366.html.
 
 
15. Finlandia  
Para mais informações sobre batatas fritas de queijo e cebola, ver Karen
Hochman, «A History of the Potato Chip», http://www.thenibble.com/reviews/
main/snacks/chip-history.asp.  
South Ormsby Hall está aberto ao público, http://southormsbyestate.co.uk. 
Sobre Yurchenko, ver «The spy who returned from the cold», Time Magazine,18
de abril de 2005. 

88
«Controlo todos os aspetos»: The New York Times, 7 de maio de 1987.

89
«As informações do Gordievsky»: ver Jones (ed.), Able Archer 83.
 
 
16. Passaporte para PIMLICO 
 
Para a correspondência entre Thatcher e Gordievsky, ver National Archives,
http://www.nationalarchives.gov.uk/about/news/newly-released-files-1985-
1986/prime-ministers-office-files-prem-1985/. 
Para as repercussões diplomáticas, ver entrevista com Sir Bryan Cartledge,
Churchill Archive Centre,
https://www.chu.cam.ac.uk/media/uploads/files/Cartledge.pdf.  

90
«O Gordievsky estava quase a confessar»: Primakov, Russian
Crossroads.

91
«A nível técnico não é nada complicado»: The Times, 10 de março de
2018.

92
«A vida continuou»: entrevista de rádio com Igor Pomerantsev, Radio
Liberty, 7 de setembro de 2015.

93
«A espionagem tornou-se muito mais difícil»: Los Angeles Times, 30 de
Agosto de 1991.
Sobre Vadim Bakatin desmantelar o KGB, ver J. Michael Waller, «Russia: Death
and Resurrection of the KGB», Demokratizatsiya, vol. 12, n.º 3 (verão de
2004). 
Ted Koppel entrevista com Ames, http://abcnews.go.com/US/video/feb-11-
1997-aldrich-ames-interview-21372948. 
A denúncia de Sergei Ivanov por Gordievsky, The Times, 20 de outubro de
2015. 

95
«Se tivéssemos de matar alguém»: Andrei Lugovoi no Sunday Times, 11
de março de 2018.
Créditos das Ilustrações 
 
 
 
 
 
 
1. Uma «família KGB»: Anton e Olga Gordievsky, com os
seus dois filhos mais novos. Coleção privada. 
2. Os irmãos Gordievsky: Vasili, Marina e Oleg. Coleção
privada. 
3. Equipa de atletismo do Instituto de Relações
Internacionais de Moscovo. Coleção privada.  
4. O corredor de longa distância a treinar junto às águas
do mar Negro. Coleção privada. 
5. Oleg Gordievsky nos seus tempos de estudante.
Coleção privada. 
6. Anton Gordievsky com o uniforme do KGB que
habitualmente usava. Coleção privada. 
7. Vasili Gordievsky, um muito bem-sucedido «ilegal» do
KGB. Coleção privada. 
8. Lubyanka: a sede do KGB, conhecido como «O
Centro». Avalon. 
9. Oleg Gordievsky em uniforme do KGB: um oficial
ambicioso, leal e altamente treinado. Coleção privada. 
10. A construção do Muro de Berlim, em agosto de 1961.
World History Archive/Alamy stock photo. 
11. A Primavera de Praga, 1968. Um manifestante
solitário desafia um tanque soviético. akg-images/Ladislav
Bielik. 
12. Fotografias de vigilância secreta tiradas a Gordievsky
pelos serviços secretos dinamarqueses. Coleção privada. 
13. Jogo de badminton a pares com um parceiro não
identificado, em Copenhaga. Coleção privada. 
14. Na costa do Báltico com Mikhail Lyubimov. Coleção
privada. 
15. Em viagem pela Dinamarca com Lyubimov, a sua
mulher, Tamara, e a primeira mulher de Gordievsky,
Yelena. Coleção privada. 
16. Arne Treholt com o seu controlador do KGB, Gennadi
Titov. Ritzau Scanpix/Topfoto. 
17. Stig Bergling. Bettmann Archive/GettyImages. 
18. Gunvor Galtung Haavik logo depois da sua prisão em
1977. Ritzau Scanpix/Topfoto. 
19. Aldrich Ames pela altura em que se juntou à CIA.
Time Life Pictures/FBI/The Life Picture
Collection/GettyImages; 
20. Uma mensagem manuscrita de Ames para os seus
controladores no KGB. Jeffrey Markowitz/Sygma/
GettyImages; 
21. Ames com a sua segunda mulher, Maria de Rosario
Casas Dupuy. 
22. Sergey Chuvakhin, o especialista soviético em
controlo de armamento. Jeffrey
Markowitz/Sygma/GettyImages; 
23. O coronel Viktor Cherkashin. Tass/Topfoto. 
24. Vladimir Kryuchkov. Coleção privada. 
25. Yuri Andropov. Tass/Topfoto. 
26. O coronel Viktor Budanov da Divisão K, o sector da
contraespionagem.  
27. Nikolai Gribin, o chefe direto de Gordievsky. Coleção
privada. 
28. Viktor Grushko. east2west 
29. O «local do sinal». 
30. Leila Aliyeva, a segundo mulher de Gordievsky.
Coleção privada. 
31. Leila e as duas filhas, pouco depois de chegarem a
Londres em 1982. Coleção privada. 
32. A embaixada soviética no número 13 de Kensington
Palace Gardens. The Times. 
33. As filhas de Gordievsky, Maria e Anna. Coleção
privada. 
34. Michael Bettaney. Topfoto 
35. Eliza Manningham-Buller. Tom Stoddart
archive/Hulton archive/GettyImages 
36. O general Arkadi Guk, o rezident do KGB, com a
mulher e o guarda-costas. PA Images 
37. A casa de Guk, Holland Park 42. PA Images 
38. A Century House, sede do MI6 em Londres até 1994.
PA Images. 
39. Michael Foot. popperfoto/gettyImages. 
40. Jack Jones. PA Images. 
41. Oleg Gordievsky com Ron Brown e Jan Sarkocy.
Stewart Ferguson/Forth Press. 
42. O abate do voo 007 da KAL, em setembro de 1983,
por um avião de combate soviético, provocou protestos
generalizados. Allan Tannenbaum/Archive
Photos/GettyImages. 
43. Margaret Thatcher assiste ao funeral do líder
soviético Yuri Andropov em Moscovo. PA Images/ Tass.  
44. O futuro líder soviético Mikhail Gorbachev encontra-
se com Thatcher em Chequers, em dezembro de 1984.
Peter Jordan/The Life Images Collection/GettyImages. 
45. Mikhail Lyubimov. East2West. 
46. O secretário do Governo, Sir Robert Armstrong,
responsável pela supervisão dos serviços secretos. The
Times. 
47. O local do sinal na Kutuzovsky Prospekt. Coleção
privada. 
48. A Catedral de São Basílio, na Praça Vermelha. PA
Images/Tass. 
49. Um saco do supermercado Safeway, o sinal para
exfiltração lançado por Gordievsky. News Group
Newspapers Ltd. 
50. Para indicar que o sinal tinha sido recebido, um
agente do MI6 teria de passar por Gordievsky, estabelecer
um breve contacto visual, e comer um chocolate Mars.
Robert Opie archive. 
51. O ponto de encontro a sul de Vyborg. 
52. Um dos carros usados na fuga, conduzido pelo
agente do MI6, visconde Roy Ascot. Coleção privada. 
53. O caminho para a liberdade: foto de reconhecimento
tirada na rota de fuga, a caminho do norte. Coleção
privada. 
54. A equipa de exfiltração do MI6 posa para uma
fotografia a caminho da Noruega. Coleção privada.  
55. Uma das três barreiras militares na fronteira de
Vyborg. Sputnik/Topfoto. 
56. Vista através do vidro do carro de um dos agentes do
MI6 expulsos da Rússia, na sequência da Operação
PIMLICO. Coleção privada. 
57. A detenção de Aldrich Ames em fevereiro de 1994.
CTSY. John Hallisey/FBI/The Life Picture
Collection/GettyImages. 
58. Fotografias de cadastro de Rosario e Rick Ames.
Jeffrey Markowitz/Sygma/GettyImages. 
59. Gordiesvky recebe a família, depois de seis anos de
separação forçada. Coleção privada. 
60. Os Gordievsky, juntos de novo, posam para uma
fotografia em Londres. Neville
Marriner/ANL/Rex/Shutterstock. 
61. Gordievsky com Ronald Reagan na Sala Oval, em
1987. Cortesia da Ronald Reagan Library. 
62. Nas condecorações do aniversário da rainha, em
2007, Gordievsky foi nomeado companheiro da distinta
Ordem de São Miguel e São Jorge. PA Images. 
63. O diretor da CIA, Bill Casey. Diana Walker/The Life
Images Collection/GettyImages. 
64. O espião retirado. llpo musto/rex/shutterstock. 
Todos os esforços razoáveis foram feitos para encontrar
os copyrights das imagens, mas qualquer informação
adicional sobre propriedade não atribuída será bem-vinda
e incluída em possíveis reedições.
Extratexto
1 Em cima: uma «família KGB»: Anton e Olga Gordievsky, com os seus
dois filhos mais novos, Marina e Oleg (com cerca de 10 anos).

2 Em baixo: os irmãos Gordievsky, Vasili, Marina e Oleg, cerca de 1955.


3 Em cima: a equipa de atletismo do Instituto de Relações Internacionais
de Moscovo: Gordievsky, último à esquerda; Stanislaw «Standa» Kaplan,
segundo à direita. Kaplan, futuro agente dos serviços secretos checos,
passar-se-ia para o Ocidente e teria um papel decisivo no recrutamento do
seu antigo amigo da universidade.
4 Em baixo: o treino do corredor de longa distância junto às águas do mar
Negro.
5 Oleg Gordievsky nos seus tempos de estudante no Instituto de Relações
Internacionais de elite de Moscovo, onde foi recrutado pelo KGB.
6 Em cima, à esquerda: Anton Gordievsky no uniforme do KGB que
habitualmente usava. «O Partido tem sempre razão», insistia.
7 Em cima, à direita: Vasili Gordievsky, um muito bem-sucedido «ilegal»
do KGB, que operava clandestinamente na Europa e em África, e que
bebeu até morrer aos 39 anos.
8 Em baixo: Lubyanka, a sede do KGB, conhecida como «O Centro» – parte
prisão, parte arquivo e centro nevrálgico dos serviços secretos soviéticos.
9 Oleg Gordievsky em uniforme do KGB: um oficial ambicioso, leal e
altamente treinado.
10 Em cima: a construção do Muro de Berlim em Agosto de 1961. O
choque de ver a barreira física ser erguida entre o Leste e o Ocidente
impressionou profundamente o jovem Gordievsky, então com 22 anos.
11 Em baixo: a Primavera de Praga, em 1968. Um manifestante solitário
desafia um tanque soviético. Gordievsky ficou chocado quando 200 000
soldados invadiram a Checoslováquia para esmagar o movimento de
reforma.
12 Fotografias de vigilância secreta tiradas a Gordievsky pelos serviços
secretos dinamarqueses (PET) durante a sua comissão em Copenhaga.
Estas foram, durante anos, as únicas imagens disponíveis para o MI6 do
agente secreto russo, com o nome de código SUNBEAM.
13 Em cima: a jogar badminton a pares com um parceiro não identificado,
em Copenhaga. O agente do KGB foi abordado pelo MI6 diretamente, pela
primeira vez, no court de badminton.
14 Em baixo: na costa do Báltico com Mikhail Lyubimov, o rezident em
Copenhaga, patrono e amigo chegado de Gordievsky.
15 Em viagem pela Dinamarca com Lyubimov (em pé), a mulher deste,
Tamara, e a primeira mulher de Gordievsky, Yelena.
Espiões escandinavos.
16 Em cima: Arne Treholt (à esquerda), estrela do Partido Trabalhista
Norueguês em ascensão, com o seu controlador do KGB Gennadi «o
Crocodilo» Titov (ao centro) a caminho de um dos seus 59 almoços.
17 Em baixo, à esquerda: Stig Bergling, o polícia e agente de segurança
sueco que se tornou um espião russo em 1973.
18 Em baixo, à direita: Gunvor Galtung Haavik, a insuspeita funcionária do
Ministério dos Negócios Estrangeiros norueguês, que espiou para o KGB
durante mais de 30 anos, com o nome de código GRETA. Aqui, logo a
seguir à sua prisão em 1977.
19 Em cima, à direita: Aldrich Ames pela altura em que se juntou à CIA.
Acabaria por trair toda a rede de espionagem da CIA dentro da União
Soviética, condenando à morte muitos dos seus agentes.
20 Em cima, à esquerda: uma mensagem manuscrita de Ames para os
seus controladores no KGB, preparando o «local de sinal» para
informações secretas.
21 Em baixo: Ames com a sua segunda mulher, Maria de Rosario Casas
Dupuy. «Ela era uma lufada de ar fresco», dizia Ames. Era também
exigente, extravagante e extremamente gastadora.
22 Em cima: Sergey Chuvakhin, o especialista soviético em controlo de
armamento, escolhido por Ames como seu primeiro ponto de contacto na
embaixada soviética em Washington, DC. «Fi-lo por dinheiro», diria mais
tarde.
23 Em baixo: o coronel Viktor Cherkashin, chefe da contraespionagem na
embaixada soviética e primeiro controlador de Ames do KGB.
24 Em cima: Vladimir Kryuchkov, diretor do Primeiro Diretório Principal e
mais tarde chefe do KGB.
25 Em baixo: Yuri Andropov, chefe do KGB, cuja extrema paranoia instigou
a Operação RYAN, com o objetivo de encontrar provas de um «ataque
iminente» por parte do Ocidente, colocou o mundo perto da guerra
nuclear. Em 1982 sucedeu a Leonid Brezhnev na liderança da União
Soviética.
26 Em cima, à direita: o coronel Viktor Budanov da Divisão K, o setor da
contraespionagem. Considerado «o homem mais perigoso do KGB»,
interrogou pessoalmente Gordievsky, em maio de 1985.
27 À esquerda: Nikolai Gribin, o carismático guitarrista e diretor da secção
britânica-escandinava e chefe direto de Gordievsky.
28 Em baixo, à direita: Viktor Grushko, o deputado ucraniano responsável
pelo Primeiro Diretório Principal e o mais graduado inquisidor de
Gordievsky.
29 Em cima: documentos em língua inglesa do «local do sinal».
30 Leila Aliyeva, a segundo mulher de Gordievsky, fotografada pela altura
em que se encontraram pela primeira vez em Copenhaga. Tinha 28 anos,
era filha de oficiais do KGB e trabalhava como datilógrafa na Organização
Mundial de Saúde. Casaram em Moscovo em 1979.
31 Em cima: Leila e as duas filhas, pouco depois de chegarem a Londres
em 1982, num café junto à National Gallery em Trafalgar Square.
32 Em baixo: a embaixada soviética no número 13 de Kensington Palace
Gardens. A estação de Londres do KGB, ou rezidentura, ficava localizada
no andar superior e era um dos locais mais profundamente paranoicos do
mundo.
33 As filhas de Gordievsky, Maria e Anna. A família assentara, feliz, em
Londres e as raparigas cresceram a falar inglês fluentemente e
frequentavam uma escola da Igreja de Inglaterra.
34 Em cima: Michael Bettaney, o agente do MI5 que contactou o KGB em
Londres oferecendo-se para espiar para os soviéticos, usando o nome de
código «Koba», uma das alcunhas de Estaline.
35 Em baixo: Eliza Manningham-Buller, um membro-chave no grupo de
operações conjunto MI5/MI6, denominado «Nadgers», constituído para
tentar identificar o espião dentro do Serviço de Segurança britânico.
Tornar-se-ia diretora-geral do MI5 em 2002.
36 Em cima: o general Arkadi Guk (à direita), o rezident do KGB, com a
sua mulher e o guarda-costas. Gordievsky descrevia-o como «um homem
enorme e inchado, com um cérebro medíocre e uma grande reserva de vil
astúcia».
37 Em baixo, à esquerda: a casa de Guk no número 42 de Holland Park. A
3 de abril de 1983, Bettaney meteu na caixa do correio um pacote
contendo um documento secreto do MI5 e a oferta de divulgar mais
segredos ao KGB. Guk ignorou a oferta considerando-a uma «provocação»
do MI5.
38 Em baixo, à direita: a Century House, sede do MI6 em Londres até
1994; um edifício indistinto, mas o local mais secreto de Londres.
39 Em cima, à esquerda: Michael Foot, deputado trabalhista, futuro líder
do partido, e contacto do KGB com o nome de código BOOT.
40 Em cima, à direita: Jack Jones, descrito pelo antigo primeiro-ministro
britânico Gordon Brown como «um dos maiores líderes sindicais do
mundo». Era também um agente do KGB.
41 Em baixo: Oleg Gordievsky com Ron Brown, deputado trabalhista por
Edimburgo (ao centro), e Jan Sarkocy, um espião checo que também se
encontrou com Jeremy Corbyn, o futuro líder do partido. Gordievsky tentou
recrutar Brown para o KGB por várias vezes, mas achava o seu sotaque
escocês absolutamente incompreensível.
42 Em cima: o abate do voo 007 da KAL, em setembro de 1983, por um
avião de combate soviético, provocou protestos generalizados e fez subir
o nível de tensão da Guerra Fria.
43 Em baixo: Margaret Thatcher assiste ao funeral do líder soviético Yuri
Andropov em Moscovo, 14 de fevereiro de 1984. A primeira-ministra
britânica desempenhou um papel «adequadamente solene» seguindo um
guião escrito, parcialmente, por Gordievsky.
44 Em cima: o futuro líder soviético Mikhail Gorbachev encontra-se com
Thatcher em Chequers, em dezembro de 1984. Descrevê-lo-ia mais tarde
como «um homem com quem será possível negociar».
45 Em baixo, à esquerda: Mikhail Lyubimov, o anglófilo oficial do KGB que
vestia tweed e fumava cachimbo, alcunhado de «Smiley Mike» pelo MI5,
que tentou recrutá-lo como agente duplo.
46 Em baixo, à direita: o secretário do Governo, Sir Robert Armstrong,
responsável pela supervisão dos serviços secretos. Decidiu não informar
Thatcher de que Michael Foot, o seu opositor trabalhista, tinha sido em
tempos um contacto pago do KGB.
47 O local do sinal na Kutuzovsky Prospekt, visto da frente do Hotel
Ucrânia. A padaria pode ver-se à esquerda da fotografia, por entre as
árvores.
48 Em cima: a Catedral de São Basílio na Praça Vermelha, onde Oleg
Gordievsky tentou passar uma mensagem ao MI6, pedindo que o plano de
fuga, Operação PIMLICO, fosse ativado imediatamente. O «contacto de
raspão» falhou.
49 Em baixo, à esquerda: um saco do supermercado Safeway, o sinal de
fuga ativado por Gordievsky às 7h30 de terça-feira, 16 de julho de 1985,
no local do sinal na Kutuzovsky Prospekt.
50 Em baixo, à direita: para indicar que o sinal tinha sido recebido, um
agente do MI6 passaria por Gordievsky, faria um breve contacto visual e
comeria um chocolate Mars.
51 Em cima: mapa em língua inglesa do ponto de encontro a sul de
Vyborg, onde a equipa de exfiltração do MI6 tentaria apanhar Gordievsky
e levá-lo para lá da fronteira finlandesa.
52 Em baixo: um dos carros usados na fuga, um Saab conduzido pelo
agente do MI6, visconde Roy Ascot.
53 Em cima: o caminho para a Liberdade: foto de reconhecimento tirada
na rota de fuga a caminho do norte.
54 Em baixo: a equipa de exfiltração do MI6 posa para uma fotografia a
caminho da Noruega, algumas horas depois da passagem do espião para
a Finlândia. Da esquerda para a direita: Gordievsky, os agentes do MI6
Simon Brown e Veronica Price, e o agente dos serviços secretos
dinamarqueses Jens Eriksen.
55 Em cima: uma das três barreiras militares na fronteira de Vyborg, entre
a Rússia e a Finlândia.
56 Em baixo: vista através do vidro do carro de um dos agentes do MI6
expulsos da Rússia na sequência da Operação PIMLICO. Os carros
britânicos, acompanhados por um comboio de veículos do KGB, passam
pelo ponto de encontro onde Gordievsky tinha sido recolhido três meses
antes.
57 Em cima: a detenção de Aldrich Ames em fevereiro de 1994, uma
década depois de ter começado a espiar para o KGB. «Estão a cometer
um erro», insistia. «Têm o homem errado!»
58 Em baixo: fotografias de cadastro de Rosario e Rick Ames. Ela foi
libertada após ter cumprido pena, mas Ames, prisioneiro n.o 40087-083,
continua detido na Federal Correctional Institution em Terre Haute,
Indiana.
59 Em cima: Gordievsky recebe a família à sua chegada, de helicóptero,
ao Reino Unido, depois de seis anos de separação.
60 Em baixo: os Gordievsky, juntos de novo, posam para uma fotografia
em Londres, mas o casamento desintegrar-se-ia em breve.
61 Em cima: Gordievsky com Ronald Reagan na Sala Oval, em 1987. «Nós
conhecemo-lo», disse Reagan. «Estamos agradecidos pelo que fez pelo
Ocidente.»
62 Em baixo, à esquerda: nas condecorações do aniversário da rainha em
2007, Gordievsky foi nomeado companheiro da prestigiada Ordem de São
Miguel e São Jorge (CMG), por «serviços prestados à segurança do Reino
Unido».
63 Em baixo, à direita: o diretor da CIA, Bill Casey, que voou para o Reino
Unido a fim de se reunir com Gordievsky, poucas semanas depois da sua
fuga.
64 O espião retirado. Oleg Gordievsky ainda vive, sob um nome falso, na
casa segura de uma banal rua suburbana em Inglaterra, para onde se
mudou pouco depois de fugir da Rússia.
Índice
CAPA
Ficha Técnica
Introdução 18 de maio de 1985
PRIMEIRA PARTE
1. O KGB
2. O Tio Gormsson
3. SUNBEAM
4. Tinta Verde e Microfilme
5. Um Saco de Plástico e um Chocolate Mars
6. O Agente BOOT
SEGUNDA PARTE
7. A Casa Segura
8. Operação RYAN
9. Koba
10. Mr. Collins e Mrs. Thatcher
11. Roleta Russa
TERCEIRA PARTE
12. O Gato e o Rato
13. A Limpeza a Seco
14. Sexta-Feira, 19 de Julho
15. Finlandia
EPÍLOGO
16. Passaporte para PIMLICO
Agradecimentos
Bibliografia selecionada
Referências
Créditos das Ilustrações
Extratexto

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