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REFERÊNCIA PARA CITAÇÃO DESTE TRABALHO:

LOPES, Luciano Santos. Dos Elementos Normativos do Tipo Penal: Entre a Agressão à
Legalidade e a Necessidade de Sua Utilização. Dissertação de mestrado
apresentada e defendida perante programa de Pós-graduação da Faculdade de
Direito da UFMG. Área de concentração: ciências penais. Orientador: prof. Dr.
Carlos Augusto Canedo Gonçalves da Silva. Belo Horizonte, 2004. Págs. 73 a
93.
4 PRINCÍPIO DA LEGALIDADE
4.1 Conceito de Legalidade

O princípio da legalidade1 está incluso no artigo 5º, XXXIX, da


Constituição Federal brasileira: “Não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena
sem prévia cominação legal.”2

1
Alguns autores diferenciam o princípio da legalidade do princípio da reserva legal. SILVA assim anota
esta diferença: “a doutrina não raro confunde ou não distingue suficientemente o princípio da legalidade
e o da reserva da lei. O primeiro significa a submissão e o respeito à lei, ou a atuação dentro da esfera
estabelecida pelo legislador. O segundo consiste em estatuir que a regulamentação de determinadas
matérias há de fazer-se necessariamente por lei formal. Embora às vezes se diga que o princípio da
legalidade se revela como um caso de reserva relativa, ainda assim é de reconhecer-se diferença entre
ambos, pois que o legislador, no caso da reserva de lei, deve ditar uma disciplina mais específica do que
é necessário para satisfazer o princípio da legalidade.” (SILVA, José Afonso da. Curso de direito
constitucional positivo, p. 368.)
Nesta perspectiva de classificação, e como o Direito Penal somente pode surgir de lei formal, estar-se-
ia a afirmar que o princípio que rege a elaboração do tipo penal seria, para além da legalidade, o da
reserva legal. Curiosamente, na mesma obra (página 375) SILVA afirma pela legalidade penal, e não pela
reserva legal penal. Evidente que o autor anota, nesta ocasião, que há uma reserva absoluta, que se traduz
na necessidade imperiosa de lei formal para a criação de figuras típicas penais.
Outros autores, como BATISTA (BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao estudo do direito penal
brasileiro, p. 65) e BITENCOURT (BITENCOURT, Cezar Roberto. Manual de direito penal: parte geral,
p. 10) não formulam conceitos diferenciados para a questão. Anotam sempre legalidade como tendo o
mesmo significado da reserva legal. Todavia, é de se ressaltar que nenhum autor que utiliza um termo
pelo outro – legalidade significando a mesma coisa que reserva legal – é capaz de afirmar que se constrói
um tipo penal por lei que não seja em sentido formal.
Na verdade, a um juízo mais adequado que se fará neste capítulo, a reserva legal consiste em uma das
funções da legalidade. Nas palavras de ZAFFARONI e BATISTA, “legalidade e reserva legal constituem
dois indícios da própria garantia de legalidade, correspondentes a um único requerimento de
racionalidade no exercício do poder.” (ZAFFARONI, Eugênio Raúl et. al. Direito penal brasileiro I, p.
203).
Assim, adota-se neste trabalho a leitura última, acima destacada. O termo a ser utilizado será o da
legalidade, com a ressalva que acaba de ser feita no parágrafo anterior: quando se afirma pela legalidade
no Direito Penal, se está a afirmar que somente lei em sentido formal pode incriminar uma conduta. Por
reserva legal entender-se-á, como sendo uma das funções da legalidade.
2
O princípio foi destacado assim, nas sucessivas Constituições brasileiras anteriores à de 1988:
- Constituição do Império brasileiro, de 1824: “Artigo 179, XI: Ninguém será sentenciado, senão pela
autoridade competente, por virtude de Lei anterior e na forma por ela prescrita.” (NOGUEIRA,
Octaciano. Constituições brasileiras: volume I: 1824.).
- Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 1891: “Artigo 72, § 15: ninguém será
sentenciado, senão pela autoridade competente, em virtude de lei anterior e na forma por ela regulada.”
(BALEEIRO, Aliomar. Constituições brasileiras: volume II: 1891.).
- Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 1934: “Artigo 113, item 26: Ninguém será
processado, nem sentenciado, senão pela autoridade competente, em virtude de lei anterior ao fato, e na
forma por ela prescrita.” (POLETTI, Ronaldo. Constituições brasileiras: volume III: 1934.).
- Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 1937: “Não haverá penas corpóreas
perpétuas. As penas estabelecidas ou agravadas na lei nova não se aplicam aos fatos anteriores. (...).”
No Código Penal brasileiro, vem o princípio inscrito com a seguinte leitura:
“Artigo 1º: Não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia
cominação legal.”

Tal princípio político, base estrutural do próprio Estado Democrático de


Direito, é ponto fundamental do Direito Penal que visa a segurança jurídica. É a
sujeição ao império da lei como fundamento primordial de um Estado Democrático de
Direito.

Com a verificação do princípio da legalidade, há a criação de um tipo


normativo de lei penal constitucional3, que funciona como forma de eliminação das leis
penais ilícitas, além de fornecer atribuição exclusiva à União para a elaboração de
legislação acerca do Direito Penal.

O princípio da legalidade assegura a possibilidade do prévio conhecimento


dos crimes e das penas, garantindo que o cidadão não será submetido a coerção penal
distinta daquela aposta na lei. Está o princípio da legalidade inscrito, entre outras
declarações de direitos, na Declaração Universal dos Direitos do Homem (artigo XI, 2)
e na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (artigo 9º).

Em uma sociedade regida por um Estado Democrático de Direito, qualquer


pessoa deve ter a possibilidade de saber previamente se uma conduta sua será censurada
pelo ordenamento jurídico-penal. O tipo penal, como modelo descritivo de uma conduta
proibida/ordenada pelo Estado, tem a função de descrever de forma objetiva a referida
ação/omissão. A esta tarefa típica dá-se o nome de função de garantia. Pode-se afirmar
que tal função é corolário do princípio constitucional da legalidade, de forma a
salvaguardar a segurança jurídica.

(PORTO, Walter Costa. Constituições brasileiras: volume IV: 1937.). É de se perceber que esta
Constituição anota o princípio da legalidade com uma redação bem diferenciada da s outras versões.
- Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 1946: “Artigo 141, § 27: Ninguém será
processado nem sentenciado senão pela autoridade competente e na forma de lei anterior.”
(BALEEIRO, Aliomar; SOBRINHO, Barbosa Lima. Constituições brasileiras: volume V: 1946.).
- Constituição da República Federativa do Brasil, de 1967: “Artigo 153, § 16: A instrução criminal será
contraditória , observada a lei anterior, no relativo ao crime e à pena, salvo quando agravar a situação
do réu.” (CAVALCANTI, Themístocles Brandão; BRITO, Luiz Navarro de; BALEEIRO, Aliomar.
Constituições brasileiras: volume VI: 1967.). Verifica-se que também esta Constituição, como a de 1937,
anota o princípio da legalidade com uma redação bem diferenciada das outras versões.
3
ZAFFARONI, Eugênio Raúl et. al. Direito penal brasileiro I, p. 201.
O respeito à legalidade ainda fica condicionado à interpretação do Direito
no plano da sua concretização. É de se concordar realmente que a contribuição decisiva
se dá com o respeito do princípio na aplicação da norma ao caso real.

Todavia, a simples inscrição do princípio da legalidade no ordenamento


jurídico positivado, em especial na Constituição Federal, contribui para a inibição do
arbítrio do intérprete do Direito na aplicação da norma ao caso concreto. O que não se
concebe é a verificação retórica da afirmação da legalidade no plano normativo, sem a
respectiva eficácia aplicativa na situação concreta.

BATISTA4 descreve que a Legalidade tem uma função negativa e outra


positiva. A sua perspectiva negativa, ou de garantia, tem como referência a necessidade
de eliminar as penas ilegais. Serve para oferecer garantias ao indivíduo contra o Estado
punitivo. O princípio da legalidade, garantia individual insculpida na Constituição
Federal, determina um limite à atuação estatal, no exercício de seu poder punitivo.
Representa uma conquista da ordem jurídica democrática que obedeça a exigências de
justiça e igualdade entre os cidadãos.5

Ainda com BATISTA, a outra função do princípio da Legalidade é aquela


constitutiva (positiva). Em atenção ao princípio em análise, cria-se o tipo penal, com
regras e limitações necessárias. A pena também é constituída. É função exclusiva da lei,
em um monopólio punitivo do Estado, a elaboração de normas incriminadoras de
condutas proibidas/ordenadas (com a sanção penal correspondente e igualmente
cominada de forma prévia).

É nesta perspectiva que também trabalha MAURÍCIO LOPES 6, destacando


que as funções de limitação da atividade punitiva do Estado (restrições ao legislador), e
a garantia de liberdade dos cidadãos são reciprocamente condicionadas. Realmente,
percebe-se que a função garantista do princípio da legalidade implica em uma série de
outros princípios também constitucionais: princípio da jurisdição legal (CF, art. 5º LIII:

4
BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao estudo do direito penal brasileiro, p. 68.
5
Assim também pensa VARGAS: “a inserção do princípio da legalidade no Capítulo dos direitos e
garantias individuais, para além de evocar sua origem política, possui uma significação que não pode
ser desprezada pelo intérprete, o qual deve recriar os instrumentos que viabilizem a autolimitação pelo
Estado de seu poder punitivo.“ (VARGAS, José Cirilo de. Direitos e garantias individuais no processo
penal, p. 80.)
6
LOPES, Maurício Antônio Ribeiro. Princípios políticos do direito penal, p. 76.
“ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente.”);
princípio do estado de inocência (CF, art. 5º, LVII: “ninguém será considerado culpado
até o trânsito da sentença condenatória.); entre outros.

O princípio da legalidade parece ter remotamente sua origem na Magna


Carta da Inglaterra (1215). Todavia, tal documento legal, como também as suas
posteriores alterações, foi elaborado visando apenas aos homens livres. É evidentemente
um início de discussão, mas não se pode entender como aperfeiçoada a garantia se tal
princípio atinge somente a parcelas da coletividade.

Melhor afirmar que o princípio é fruto do desenvolvimento das idéias do


iluminismo. Com ANÍBAL BRUNO, tem-se a seguinte leitura:

Tem-se falado ainda em outros precedentes, mas nestes não


encontramos verdadeiramente enunciado o princípio da legalidade.
Uma exigente investigação histórica parece-nos conduzir a ver as
origens reais do princípio naqueles célebres documentos, a que nos
referimos no texto, reconhecendo-lhes um fundamento político liberal,
a que se vieram juntar as aspirações individualistas do iluminismo,
que BECCARIA tão bem representou.7

O próprio BECCARIA, representante destacado da etapa humanista do


Direito Penal inaugurada com o iluminismo, assim afirmou:

A primeira consequência desses princípios é que só as leis podem


fixar as penas de cada delito e que o direito de fazer leis penais não
pode residir senão na pessoa do legislador, que representa toda a
sociedade unida por um contrato social.

Ora, o magistrado, que também faz parte da sociedade, não pode com
justiça infligir a outro membro dessa sociedade uma pena que não seja
estatuída pela lei; e, a partir do momento em que o juiz é mais severo
do que a lei, ele é injusto, pois acrescenta um castigo novo ao que já
está determinado. Segue-se que nenhum magistrado pode mesmo sob
o pretexto do bem público, aumentar a pena pronunciada contra o
crime de um cidadão.8

Aqui vale lembrar que foi a expressão proposta por FEUERBACH, no


início do século XIX, que identificou expressamente o princípio da legalidade: nullum
crimen, nulla poena sine lege. Nenhuma conduta pode ser considerada criminosa, bem
como nenhuma pena pode ser imposta e aplicada a uma pessoa, sem que previamente à

7
BRUNO, Aníbal. Direito penal: parte geral, tomo. 1, 5. ed., p. 124.
8
BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas, p. 18.
realização da conduta exista lei penal a definir o delito e a cominar uma pena em
abstrato correspondente.

FEUERBACH parece ter se baseado em duas premissas para a elaboração


da expressão destacada. De um lado, existe a verificação de seu espírito liberal, com a
concepção de um Direito Penal que defenda também o cidadão do Estado. Por outra via,
o autor defendeu a idéia de que a aplicação da pena serve como intimidação para que
outras pessoas não cometam crimes no futuro, temerosos com a sanção penal. Assim,
somente uma lei clara, prévia e que respeite a legalidade, teria força para prevenir novos
crimes (nesta proposta da teoria da prevenção geral negativa da pena – intimidadora).

A lei deve definir as hipóteses abstratamente criminosas de forma clara e


atenciosa. Legalidade, desta forma, funciona como uma garantia do indivíduo contra o
Estado, na defesa de sua liberdade e, também, demarca o campo de atuação estatal na
punição penal. Salienta-se, novamente, que tal princípio é ponto central a ser respeitado
em um sistema penal que se entende atencioso às garantias e direitos fundamentais do
ser humano. É signo importante de um Estado Democrático de Direito.

Convém ressaltar que, como qualquer princípio de ordem política, o da


legalidade resta em constante construção hermenêutica. Seu enunciado deve ser
interpretado levando-se em consideração variáveis políticas, sociais, culturais e jurídicas
de determinada sociedade.

Para ilustrar a construção interpretativa inacabada do princípio da


legalidade, pode-se adotar, como exemplo, a questão das medidas de segurança no
ordenamento jurídico penal brasileiro. Conforme se depreende da leitura do Código
Penal brasileiro, no parágrafo primeiro do seu artigo 979, a medida de segurança não
tem prazo máximo de duração. Tal medida restritiva de liberdade pode se estender por
prazo indeterminado. O inimputável fica privado de sua liberdade por tempo não
delimitado em lei.

9
Código Penal brasileiro:
“artigo 97: Se o agente for inimputável, o juiz determinará sua internação (art. 26). Se, todavia, o fato
previsto como crime for punível com detenção, poderá o juiz submetê-lo a tratamento ambulatorial.
§ 1º: A internação, ou o tratamento ambulatorial, será por tempo indeterminado, perdurando enquanto
não for averiguada, mediante perícia médica, a cessação de periculosidade. O prazo mínimo deverá ser
de 1 (um) a 3 (três) anos.”
É evidente que também as medidas de segurança devem respeito à
legalidade. O Estado não pode interferir na esfera de liberdade das pessoas por tempo
indeterminado, por ocasião do seu exercício punitivo delimitado pelo Direito Penal.
Nem a pretexto de efetivar tratamento médico, como ocorre nas medidas de segurança,
tal situação pode ter validade. A legalidade deve ser verificada também em sede de
medidas de segurança, no sentido de se delimitar o tempo máximo de privação da
liberdade daquele inimputável que está a sofrer a referida internação. A pessoa
internada deve poder saber qual a medida de segurança que lhe foi aplicada e,
principalmente, qual a sua duração. Ninguém pode perder sua liberdade
indeterminadamente.

Resta claro que as medidas de segurança, indeterminadas em sua duração,


violam claramente o princípio da legalidade. A segurança jurídica que este princípio
constitucional visa instituir no ordenamento jurídico pátrio fica abalada.10 Como antes
afirmado, é um exemplo de como a interpretação do princípio ainda merece uma
construção mais detalhada.

Finalizando com as letras de VARGAS, a interessante percepção de que o


princípio da legalidade “contrapõe-se, portanto, a qualquer tendência de exarcebação
personalista dos agentes do poder público. Opõe-se a todas as formas de poder
autoritário, (...).”11

4.2 Divisão do Princípio da Legalidade

O princípio da legalidade, na leitura que lhe empresta o Direito Penal,


divide-se em quatro postulados: irretroatividade da lei penal incriminadora; proibição
da analogia in malam partem; reserva legal; e, ainda, o mandato de certeza, ou da
taxatividade. 12

10
Neste sentido: GOMES, Luiz Flávio. Duração das medidas de segurança. Revista dos Tribunais n. 665,
jan. 1991, p. 259/267.
11
VARGAS, José Cirilo de. Direitos e garantias individuais no processo penal, p. 77.
12
FRANCO, Alberto Silva. Temas de direito penal, p. 09/10.
Os referidos postulados do princípio da legalidade são assim elaborados nas
expressões latinas que os definem habitualmente na doutrina: nullum crimen, nulla
poena sine lege praevia (irretroatividade da lei penal); nullum crimen, nulla poena sine
lege scripta (proibição dos costumes e reserva legal, ou o uso de lei formal para
incriminar condutas); nullum crimen, nulla poena sine lege stricta (proibição da
analogia in malam partem); e nullum crimen, nulla poena sine lege certa (taxatividade).

PALAZZO13, ao apresentar os corolários da legalidade, afirma que é diversa


a forma que tal princípio assume nos diversos ordenamentos jurídicos que o adotaram.
Diverso, ainda, é o peso que cada uma das funções da legalidade exerce nestes citados
ordenamentos.

4.2.1 Irretroatividade da lei penal

O primeiro postulado do princípio da legalidade afirma pela irretroatividade


da lei penal (nullum crimen, nulla poena sine lege praevia). Funciona como uma certeza
de que a segurança jurídica é respeitada no ordenamento jurídico-penal pátrio. Esta
certeza tem no Direito Penal importância maior do que tem em outros ramos do Direito.
Evidente o acerto dessa conclusão, em face da maior gravidade e agressividade da
intervenção estatal punitiva no plano de dignidade da pessoa humana.

A lei penal incriminadora não pode retroagir. Vale afirmar que deve existir
uma lei anterior à conduta delituosa de uma pessoa. O cidadão não pode ser incriminado
por uma norma que surgiu posteriormente à realização de sua ação/omissão penalmente
relevante. Tudo o que se referir à pena ou ao crime cometido deve ser normativizado
anteriormente à prática delituosa, não podendo norma posterior retroagir e incriminar ou
agravar responsabilidade do acusado.

Exceção ao princípio verifica-se quando a lei penal posterior é mais


benéfica ao autor do crime, portanto norma não incriminadora. Assim, a lei penal não
retroage, salvo quando beneficiar o réu. É o que dispõem, de forma expressa, o Código
Penal brasileiro e a Constituição Federal:

Código Penal brasileiro.

13
PALAZZO, Francesco C. Valores constitucionais e direito penal, p. 43.
Artigo 2º: “Ninguém pode ser punido por fato que lei posterior deixa
de considerar crime, cessando em virtude dele a execução e os efeitos
penais da sentença condenatória.

Parágrafo único: A lei posterior, que de qualquer modo favorecer o


agente, aplica-se aos fatos anteriores, ainda que decididos por
sentença condenatória transitada em julgado.

Constituição Federal:

Artigo 5º, XL: “A lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu.

Todavia, há a limitação desta “retroatividade benéfica” da lei penal. Não


retroage disposição legal mais benéfica ao réu se a norma tiver caráter temporário – ou
seja, com tempo de vigência determinado -, ou for uma daquelas leis excepcionais,
“promulgadas em face de situações especialmente calamitosas ou conflitivas.”14 De
outra forma não poderia estar disposto tal tema no ordenamento penal. Se a lei é
excepcional, ou temporária, há um significado para tanto. Naquele período de vigência
da lei, havia uma situação diferenciada, que estava a exigir uma normatização também
diferenciada. Ora, se ao final da vigência das referidas espécies legais, houver a
retroatividade de lei posterior mais benéfica, aquelas referidas legislações não terão
conseguido alcançar os fins que lhe foram propostos: regular uma situação fática
diferenciada. Assim, o artigo 3º do Código Penal pátrio afirma: “A lei excepcional ou
temporária, embora decorrido o período de sua duração ou cessadas as circunstâncias
que a determinaram, aplica-se ao fato praticado durante sua vigência.”

4.2.2 Reserva legal, ou proibição do uso dos costumes

O segundo postulado descreve a reserva legal, ou a proibição do uso dos


costumes (nullum crimen, nulla poena sine lege scripta). Somente lei escrita, que
respeite o devido processo legislativo, pode criar crimes e penas. Tal corolário da
legalidade funciona como forma de excluir os costumes do momento de elaboração da
norma penal incriminadora.

Tal afirmação não quer significar que os costumes não têm função no
Direito Penal, especialmente no campo da tipicidade. Com TOLEDO, a seguinte leitura
desta premissa:

14
BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro, p. 69.
não se deve, entretanto, cometer o equívoco de supor que o direito
costumeiro esteja totalmente abolido do âmbito penal. Tem ele grande
importância para elucidação do conteúdo do tipo. Além disso, quando
opera como causa de exclusão de ilicitude (causa supralegal), de
atenuação da pena ou da culpa, constitui verdadeira fonte do direito
penal.15

Evidente que, quando o costume não funcionar como incriminador de


condutas penalmente relevantes, não estará, por conseqüência, a agredir o princípio da
legalidade. Nesta ocasião, é plenamente admitido no ordenamento jurídico-penal pátrio.

O próprio princípio da adequação social, que evidentemente orienta a leitura


do tipo penal, concilia as premissas do dever-ser jurídico-penal com a realidade
concreta do ser. O referido princípio trabalha com a noção de costumes sociais para
compreender o que é adequado socialmente e que, portanto, não está no plano de
atuação material do tipo penal.16

O que se está a impedir, neste segundo postulado, é que uma norma que não
é retirada da lei escrita possa incriminar condutas. A questão da fonte de produção
(material) do Direito aqui é verificada. No caso do Direito Penal, exclusivamente o
Congresso Nacional pode criar normas neste sentido, posto que é a única fonte de
produção das normas deste ramo jurídico.

Embora seja claro que existem fontes secundárias a orientar o Direito Penal
– tais como os costumes e os princípios gerais do Direito -, somente a lei em seu sentido
formal pode criar leis penais incriminadoras. É o que se afirma ser Reserva Legal: não
se pode criar norma penal que incrimine condutas e comine penas senão por meio de
Lei promulgada pelo Congresso Nacional, depois de passar pelo devido processo
legislativo.

15
TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal, p. 25.
Os costumes socialmente aceitos pelo Direito devem respeitar duas premissas: devem ser aceitos por
toda a coletividade – ou pela grande maioria de seus membros -, para ter um caráter de generalidade; e
deve perdurar no tempo a sua vigência.
16
“A adequação social é de certo modo uma espécie de pauta para os tipos penais: representa o âmbito
„normal‟ da liberdade de atuação social, que lhes serve de base e é considerada (tacitamente) por eles.
Por isso ficam também excluídas dos tipos penais as ações socialmente adequadas, ainda que possam ser
a eles subsumidas – segundo seu conteúdo literal.” (WELZEL, Hans. O novo sistema jurídico penal: uma
introdução à doutrina da ação finalista, p. 60.).
Percebe-se que WELZEL sistematiza o conceito de adequação social como limitação do tipo material,
respeitando os costumes sociais.
CANOTILHO, por ocasião de conceituar a reserva de lei, assim se expressa:

Através do conceito de reserva de lei (Vorbehalt des Gesetzes)


pretende-se delimitar um conjunto de matérias ou de âmbitos
materiais, que devem ser regulados por lei („reservados à lei‟) Esta
„reserva de matérias‟ significa, logicamente, que elas não devem ser
provenientes de outras fontes diferentes da lei (exemplo:
regulamentos). Ainda em outras palavras: existe reserva de lei quando
a constituição prescreve que o regime jurídico de determinada matéria
seja regulado por lei e só por lei, com exclusão de outras fontes
normativas.17

O citado autor português separa a reserva absoluta da lei daquela reserva


18
relativa. Por reserva absoluta, ou de densificação total, ele entende que é a exigência
de que toda a matéria seja regulamentada por lei em sentido formal, sem que nenhuma
parte da disciplina apresentada reste para outra esfera normativa atuar. De outra forma,
a reserva relativa, ou de densificação parcial, também obriga a disciplina de
determinada matéria por via de lei em sentido formal. Entretanto, autoriza-se nesta
segunda hipótese que a lei em sentido formal regule apenas o regime jurídico geral da
matéria, ficando o desenvolvimento das especificidades para outras esferas normativas.

No Direito Penal, a mesma leitura é verificada. A concepção de reserva


legal absoluta indica que somente a lei em sentido formal/estrito deve proceder à
elaboração de norma incriminadora. A idéia de reserva legal relativa autorizaria que
outras fontes normativas formulassem incriminações, sendo que a lei formal somente
forneceria as diretrizes gerais da punição.19 Verifica-se esta segunda hipótese de
construção legislativa em alguns tipos com normas penais em branco, que necessitam de
complementação fora do plano normativo representado pela lei em sentido estrito.

Norma penal em branco é aquela que necessita de complemento no seu


preceito primário para realizar seu sentido pleno, posto que a conduta a ser incriminada

17
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição, p. 718.
18
CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional e teoria da constituição, p. 722.
SILVA também elabora distinção neste sentido:
“É absoluta a reserva legal constitucional de lei quando a disciplina da matéria é reservada pela
Constituição à lei, com exclusão, portanto, de qualquer outra fonte infralegal, (...)
É relativa a reserva constitucional de lei quando a disciplina da matéria é em parte admissível a outra
fonte diversa da lei, sob a condição de que esta indique as bases em que aquela deva produzir-se
validamente.” (SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo, p. 370.).
19
BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro, p. 73.
não está totalmente descrita em seus detalhes. Se o complemento vem de outro
dispositivo de lei hierarquicamente idêntico, denomina-se norma penal em branco em
sentido lato. Se o complemento vem de disposição normativa hierarquicamente inferior
à lei em sentido formal, dá-se o nome de norma penal em branco em sentido estrito.20

É duvidosa, em face da reserva legal absoluta, a constitucionalidade destas


normas penais em branco em sentido estrito, que buscam complementação em
disposições normativas diversas da lei em sentido formal.

Uma última questão quanto à reserva legal trata da proibição de elaboração


de normas incriminadoras por meio de medidas provisórias, de autoria do Presidente da
República. Como antes afirmado, somente lei em sentido formal pode criar crimes e
cominar penas. A Constituição Federal de 1988, que substituiu o decreto-lei pela
medida provisória, em seu artigo 62, deixou para esta última a regulamentação de
questões de relevância e urgência. Foi genérica a Carta Política.

Todavia, esta mesma Constituição veda delegação de competência ao


Executivo em sede de legislação de direitos individuais, conforme se verifica no artigo
68, § 1º. Ora, se a liberdade é um direito individual, resta claro que qualquer norma que
vá limitá-la deva ser produzida pelo Congresso Nacional sem delegações de
competência. Medida provisória não é lei, antes de sua aprovação pelo Legislativo.
Aceitar que tal instrumento normativo incrimine condutas é entender pela delegação de
competências. Tal postura é proibida: agride a reserva legal.21

A emenda constitucional n. 32 encerrou o debate sobre a questão. Esta


alteração normativa vedou a edição de medidas provisórias versando sobre Direito
Penal, no artigo 62, § 1º, b, da Carta Política de 1988.22

20
Exemplo desta segunda espécie está contido no artigo 12 da Lei 6368/76. Para se definir o que seja
substância entorpecente proibida, é necessário que exista uma portaria do Ministério da Saúde assim
anunciando.
21
Assim: TOLEDO, Francisco de Assis. Princípios básicos de direito penal, p. 24. Também no mesmo
sentido: VARGAS, José Cirilo de. Direitos e garantias individuais no processo penal, p. 82.
22
Constituição Federal/1988:
“art. 62. Em caso de relevância e urgência, o Presidente da República poderá adotar medidas
provisórias, com força de lei, devendo submetê-las de imediato ao Congresso Nacional.
§ 1º É vedada a edição de medidas provisórias sobre matéria:
I – relativa a:
4.2.3 Proibição do uso de analogia in malam partem

A terceira função do princípio da legalidade traduz-se na proibição do uso


da analogia in malam partem no Direito Penal (nullum crimen, nulla poena sine lege
stricta).

Analogia é uma forma de integração do Direito. As lacunas da norma


podem ser supridas através deste instituto. Usa-se a analogia quando a lei penal é
omissa e não disciplina um caso.

A lei regula uma hipótese semelhante ao caso não tratado pelo legislador.
Em sendo possível, deve o operador do Direito usar a regra legislada, do caso igual,
para aquela outra situação não regulada. Todavia, o uso da analogia no Direito Penal
somente é autorizado quando beneficiar o acusado. Não se pode incriminar novas
condutas utilizando-se da estratégia da analogia in malam partem.

Vedado o uso da analogia para incriminar condutas, somente resta a este


instituto, no exercício da sua função de integração do Direito Penal, resolver lacunas da
norma penal que não impliquem em novas incriminações, ou em qualquer outro
prejuízo ao acusado. Tal posicionamento é quase pacífico na doutrina brasileira.23

MÁRCIA CARVALHO24 transcreve a opinião de alguns autores – TOBIAS


BARRETO, CARNELUTTI, CUELLO CALÓN, SEBASTIAN SOLER, entre outros -
que entendem ser possível o uso da analogia in malam partem no Direito Penal, sem
que tal medida agrida a segurança jurídica e, consequentemente, a ordem democrática
instalada na punição estatal. Tal flexibilização da legalidade, defendida
“cientificamente” por esses autores, baseia-se na premissa de que alguns países liberais
utilizam a analogia na incriminação de condutas e nem por isso agridem a segurança
jurídica. Salientam, ainda, que, em ordenamentos totalitários, como o nazista, não era a

a) (...)
b) direito penal, processual penal e processual civil;
(...)”
23
HUNGRIA não concorda com tal entendimento, entendendo não caber, igualmente, a analogia in
bonam partem no Direito Penal. (HUNGRIA, Nelson. Comentários ao código penal , v. I, tomo I, p. 91.).
24
CARVALHO, Márcia Dometila de. Fundamentação constitucional do direito penal, p. 60.
analogia in malam partem que agredia a segurança jurídica. Tal garantia era violada
pela submissão total do magistrado à vontade do Fuhrer.

Evidentemente que tal idéia não pode prosperar. A legalidade é ponto


fundamental do Estado Democrático de Direito. Tal conclusão já foi antes apresentada
neste trabalho. A proibição da analogia é importante divisão, ou função, do referido
princípio constitucional. Não se pode olvidar tal proposta. É a garantia do cidadão de
que sua conduta será regrada, no âmbito das proibições, por norma expressa. Evita-se,
assim, qualquer possibilidade de violação de direitos fundamentais dos indivíduos, por
ocasião da punição penal.

Ademais, afirmar que o ordenamento jurídico da Alemanha nazista somente


foi autoritário porque os juizes tinham total submissão ao Chefe de Estado é conclusão
óbvia. Tinham total submissão, entre outros motivos, porque não existia um
ordenamento jurídico-penal democrático - que fosse inclusive livre de analogias in
malam partem - que os autorizasse a resistir a tal pressão política.

O judiciário, em um ordenamento democrático, tem que ter independência


dos demais poderes constituídos. A perfeita tipificação de condutas proibidas/ordenadas
pelo Direito penal faz parte da construção de um judiciário livre em sua atuação.

Por todos estes motivos, deve-se rechaçar de imediato propostas como


essas, de flexibilização da legalidade, com a aceitação da analogia in malam partem
para suprir lacunas na atividade punitiva.

Ressalve-se, por fim, que não se admite analogia, mesmo in bonam partem,
quando se tratar de norma excepcional.

Igualmente, ressalve-se que não se confundem os conceitos de analogia e


interpretação analógica. Enquanto a primeira é uma forma de suprir lacunas da norma, a
última é uma maneira de se estender o plano incriminador de forma autorizada pelo
legislador. Entrega-se ao intérprete do Direito a possibilidade expressa de verificar
situações semelhantes que se encaixem no tipo penal. São tipos abertos, portanto. A
analogia não pode incriminar condutas, enquanto a interpretação analógica é uma
autorização da lei para enquadrar no tipo penal incriminador hipóteses semelhantes às
ali descritas de forma exemplificativa. Na interpretação analógica, não há lacunas a
serem preenchidas.25

4.2.4 Mandato de certeza, ou da taxatividade

A quarta e última função do princípio da legalidade está inscrita no mandato


de certeza, ou da taxatividade. Traduz-se na expressão nullum crimen, nulla poena sine
lege certa. Seu enunciado afirma que a lei deve definir o fato criminoso em um tipo
claro, com atributos essenciais e específicos da conduta humana, de forma a torná-lo
inconfundível com outra figura típica.

A função de taxatividade, ou mandato de certeza, é criação recente da


doutrina e também de uso ainda limitado pela jurisprudência, carecendo de melhor
interpretação do seu alcance e limites.26 Percebe-se que a Constituição Federal brasileira
restou silente quanto a esta função de taxatividade no plano da legalidade. Todavia, e de
acordo com VARGAS, tal função “deve atrelar-se à expansão lógica do princípio, no
quadro político da legalidade democrática e no quadro técnico do desenvolvimento da
teoria do tipo penal de crime, cuja função maior é a garantia.”27

A clareza da descrição da conduta no tipo penal deve ser suficiente para


impedir a dúvida interpretativa. Deve-se evitar a utilização de normas muito
generalizadas ou que contenham tipos penais genéricos ou abertos demais. O legislador
deve elaborar a norma de modo satisfatoriamente determinado, para que exista uma
perfeita descrição do fato típico.

No âmbito da legalidade, enquanto a função da anterioridade da lei


condiciona as fontes do Direito, a taxatividade incide na técnica legislativa, ou seja, na
formulação legislativa da lei penal.

25
Veja-se um exemplo de interpretação analógica no ordenamento jurídico pátrio, constante do art. 157
do Código Penal brasileiro: “subtrair coisa móvel alheia, para si ou para outrem, mediante grave ameaça
ou violência à pessoa, ou depois de havê-la, por qualquer outro meio, reduzido à impossibilidade de
resistência.”. Este qualquer outro meio enseja uma interpretação analógica, porque existem formas não
previstas em lei, mas autorizadas pelo legislador, de incriminar condutas.
26
De acordo com PALAZZO (PALAZZO, Francesco C. Valores constitucionais e direito penal, p. 49),
há pouca sensibilidade da jurisprudência quanto à exigência da taxatividade. Afirma, ainda, que a
Alemanha foi o berço de tal criação principiológica e tem a sua mais profunda elaboração.
27
VARGAS, José Cirilo de. Direitos e garantias individuais no processo penal, p. 88.
A eficaz função garantidora do tipo penal fica na dependência da descrição
das normas incriminadoras e dos bens jurídicos valorados. Daí decorre que a técnica
legislativa pode vir a ferir tal princípio, usando cláusulas genéricas, elementos
normativos em demasia e sanções punitivas totalmente indeterminadas no tempo.28
BATISTA29 considera que criar tipos tão genéricos eqüivale a nada criar, posto o vazio
interpretativo que se instala em leituras de modelos incriminadores desta ordem.
Todavia, continua o autor, é muito mais perigosa tal atitude, em um Estado
Democrático de Direito. Isto porque a função de garantia que deve exercer o tipo penal
ficaria prejudicada.

A utilização de cláusulas tão abertas e genéricas não resta compatível com


um modelo democrático de Estado de Direito. Não se pode, com o argumento de
combate ao crime a todo custo, agredir o princípio da legalidade com tal imprecisão
legislativa. A determinação da lei penal incriminadora é o limite insuperável da
persecução penal estatal. É o auto-limite do Estado e a garantia de que a certeza jurídica
será respeitada, não só delimitando o poder punitivo, como também reconhecendo a
capacidade humana de se auto-determinar diante de uma norma certa e previamente
conhecida.

A criação de tipos penais com características tão genéricas foi um dos


artifícios mais utilizados pelos ordenamentos jurídicos de Estados totalitários. Ao lado
do uso da analogia e do controle político da atividade judicante, a criação de tipos
penais vagos na sua descrição incriminadora é prejudicial à garantia individual que cada
cidadão deve ter ao se confrontar com a estrutura punitiva estatal.

BATISTA30, ainda escrevendo sobre essa quarta característica do referido


princípio da legalidade, afirma que “a função de garantia individual exercida pelo
princípio da legalidade estaria seriamente comprometida se as normas que definem os
crimes não dispusessem de clareza denotativa na significação de seus elementos, (...)”.

28
CARVALHO, Márcia Dometila Lima de. Fundamentação constitucional do direito penal, p. 55.
Assim também analisa a situação JESCHECK: “El grado de vinculación del juez a la ley se determina
por el grado de exactitud com que la voluntad común consigue expresarse en la ley. De aquí se deduce
que la eficacia de la función de garantia de la ley penal depende esencialmente de la técnica legislativa.”
(JESCHECK, H. H. Tratado de derecho penal: parte geral, p. 173.)
29
BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro, p. 78.
30
BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro, p. 78 e ss.
Completa, distinguindo as modalidades mais freqüentes de violação do princípio da
legalidade pela criação de incriminações vagas e indeterminadas. Entre estas
modalidades estão: a ocultação do núcleo do tipo penal (verbo que define a
ação/omissão a ser verificada)31; as tipificações abertas e exemplificativas (bem
ilustradas nos crimes omissivos, omissivos impróprios e culposos); e o emprego de
expressões (elementos) sem precisão semântica no tipo penal.

É exatamente no plano desta última forma de agressão à taxatividade,


constante do emprego de expressões sem precisão semântica no tipo penal, que há a
verificação do uso de alguns elementos normativos de interpretação imprecisa, que não
permitem uma “certeza típica”. Ressalte-se que não são todos os elementos normativos
que causam agressão à taxatividade ( e por consequência à legalidade), pela ausência de
precisão semântica na sua construção legislativa. Somente aqueles aos quais não se
consegue delimitar uma interpretação segura é que vão restar em confronto com o
referido princípio constitucional em análise.

Essa característica do princípio da legalidade, que PALAZZO32 denomina


corolário da taxatividade-determinação, oferece os subsídios para as análises da
insegurança que apresentam os elementos normativos.

4.3 Os Exemplos da Alemanha Nazista e da União Soviética


Socialista: Agressões ao Princípio da Legalidade

4.3.1 A União Soviética socialista

É curioso verificar que na história do Direito Penal há notícia de Estados


modernos com premissas totalitárias. Tais ordenamentos jurídicos não atenderam à
necessidade democrática de utilização do princípio da legalidade como representação da
segurança jurídica, limitadora da atuação estatal punitiva. Assim, exemplificativamente
31
Como exemplo de tal técnica, verifica-se, no Código Penal brasileiro, o artigo 240: “cometer
adultério”. Aqui o tipo penal é construído à partir das consequências da ação proibida, e não a partir do
próprio verbo núcleo típico.
32
PALAZZO, Francesco. Valores constitucionais e direito penal, p. 49.
pode-se verificar tal hipótese nos ordenamentos do Estado soviético (do regime
socialista), bem como no Direito Penal nazista, do Estado alemão.

Foram sistemas de governo autoritários, que não deram importância à parte


especial dos Códigos Penais. Na União Soviética comunista, com o Projeto de Krilenko,
de 1930, existiu a proposta da criação de um Código Penal sem parte especial. Ao lado
dos componentes legais, as premissas políticas de respeito ao regime de governo
influenciaram na definição do que era crime. Havia a utilização do conceito de ação
socialmente perigosa, que substituiu o princípio da legalidade.

Duas eram as premissas do ordenamento jurídico-penal da União Soviética


socialista: a admissão do uso da analogia para incriminação de condutas não tipificadas
e a noção de periculosidade social do fato e do seu autor.

Desde dezembro de 1919, ainda na República Russa, diretrizes oficiais


foram traçadas para a legislação penal, e que foram respeitadas pelas legislações
posteriores. Em 1922, criou-se um Código Penal que priorizava a defesa do Estado e
que autorizava a analogia aos juízes, desde que esses invocassem sua consciência
socialista. Em 1924, as premissas penais instituídas para a República Russa foram
estendidas a todas as demais Repúblicas que formaram a União Soviética. Houve, ainda,
a substituição da expressão pena pela terminologia medida de defesa social, típica de
intervenções em situação de periculosidade social (neste caso, o perigo era a afetação da
estrutura social).33

O Código Penal soviético de 1926, em seu art. 16, estabelecia a


admissibilidade da analogia, com a incriminação de atos graves à sociedade socialista e
à coletividade, ainda que não prevista tal hipótese na legislação. O artigo 6º do referido
código34 definia o que era ato perigoso. O artigo 7º, seguinte, estipulava punição para as
pessoas que não tivessem cometido delitos, mas tivessem um comportamento perigoso

33
REALE Jr., Miguel. Teoria do delito, p. 28.
34
ANÍBAL BRUNO cita o artigo 6º do Código Penal soviético: “Reputa-se perigosa toda ação ou
omissão dirigida contra a estrutura do Estado soviético ou que ofenda a ordem jurídica criada pelo
regime dos trabalhadores e camponeses para a época de transição à organização social comunista.”
(BRUNO, Aníbal. Direito penal: parte geral, tomo 1, 5 ed., p. 124.).
no passado. Estes são apenas alguns exemplos da agressão à legalidade na leitura penal
socialista da União Soviética.35

Outras legislações soviéticas surgiram sem muito mais acrescentar, até


1958, quando se proibiu o uso de analogia para incriminação. Para ZAFFARONI e
BATISTA,

a aproximação soviética aos princípios do estado de direito, efetuada a


partir de 1958-1960, foi explicada ideologicamente sustentando-se que
a União soviética estava madura para iniciar a etapa do comunismo,
onde começaria o paulatino desaparecimento do estado após a
cessação da luta de classes.36

REALE Jr. sintetiza bem a idéia do pensamento penal soviético da etapa


socialista, em especial nesta hipótese de agressão ao princípio da legalidade:

O menosprezo ao formalismo, no campo penal, alcança seu ponto


culminante no direito soviético, com a aceitação de que, mesmo
ocorrendo a adequação típica, e embora estejam presentes
formalmente as características prescritas na lei, pode o fato não ser
delituoso, se dele não decorrer perigo ou conseqüências danosas ao
Estado soviético e ao regime da ditadura do proletariado.37

A idéia do Direito soviético, surgido após LENIN, era a de realizar a


transição do capitalismo para uma sociedade comunista, desprovida dos ideais
“burgueses” de que o Direito é um sinônimo. Este era o fundamento da “ditadura do
proletariado”.

O Estado e o Direito são superestruturas utilizadas, segundo uma leitura


marxista, para a manutenção do conflito entre classes e para uma consequente
manutenção da dominação de uma classe em detrimento da classe trabalhadora. A infra-
estrutura, constituída pelos modos de produção de uma sociedade, é dominada pela
superestrutura do Direito.

Finalmente, com REALE Jr.,

35
ZAFFARONI, Eugênio Raúl et. al. Direito penal brasileiro I, p. 615.
36
ZAFFARONI, Eugênio Raúl et. al. Direito penal brasileiro I, p. 615.
37
REALE Jr., Miguel. Teoria do delito, p. 29.
a justiça é, nessa concepção, um critério que serve para justificar o
direito como instrumento da exploração e da manutenção da luta de
classes, ou melhor, para disfarçar o predomínio da classe dominante.38

4.3.2 A Alemanha nazista

Por sua vez, também o Direito Penal nazista, representado pela escola de
Kiel, entendia que devia haver uma superação da vontade individual, em benefício da
coletividade. A questão do enaltecimento da raça, pela nação alemã, foi fundamental à
compreensão de sua estrutura jurídica. O Führer era a personificação desta vontade
popular. Ele, representando e direcionando a coletividade, tinha o poder de dizer o
Direito. Na verdade, como alerta BONNARD, “a lei é a vontade do Führer, pois sendo
um ato do Fürhung (poder do Führer) e este constituindo uma atribuição pessoal do
Führer, acaba sendo poder pessoal do chefe ditar a lei como fonte de direito.”39

O nacional-socialismo optou pela radicalização da defesa étnica e também


pela centralização de poder nas mãos do Führer. Assim, construiu um regime jurídico
unitário, autoritário e totalizante.

Quanto ao princípio da legalidade, interessa anotar que no nazismo havia


também a possibilidade do uso da analogia para a incriminação de condutas que
atentassem contra o dever de obediência, que tão bem caracterizava o ordenamento
jurídico-penal alemão da época nazista. O crime era o fato definido em lei e também
qualquer ação, mesmo não prevista legalmente, considerada ofensiva ao são sentimento
do povo. Assim dispunha o art. 2º da lei de 28/06/1935 (StGB):

É punível aquele que comete um ato que a lei declara punível ou que,
conforme a idéia fundamental de uma lei penal e ao sentimento do
povo, merece ser punido. Se nenhuma lei penal é diretamente
aplicável ao ato, este será sancionado conforme a lei em que mais
adequadamente se aplique a idéia fundamental.

Assim, em 1935 foi eliminado o princípio da legalidade no ordenamento


nazista alemão, mediante a introdução da analogia penal. O “são sentimento do povo”,

38
REALE Jr., Miguel. Teoria do delito, p. 27.
39
BONNARD, Roger. Le droit et l‟état dans la doctrine national socialiste, p. 74 et. seq. Apud REALE
Jr., Miguel. Teoria do delito, p. 24)
representado pela figura central do Führer, passou a ser a figura principal na proteção
do Estado, via punição penal.40

O Führer tinha o poder de definir o que era crime. Havia o uso da analogia e
a verificação do dever de obediência. A violação do dever de lealdade ao Estado, à raça
ariana e, por conseqüência ao Führer, era de fundamental investigação na configuração
da atividade criminosa.

Por fim, ressalte-se que o Direito Penal da Itália fascista também


apresentou, clara e expressamente, componentes autoritários em suas normas jurídicas.
Autorizou e ordenou a proteção do Estado de forma impositiva, de forma a causar o
cerceamento de liberdades individuais. Todavia, o Direito italiano fascista não atingiu
os excessos de agressão explícita ao princípio da legalidade, como assim o fizeram os
ordenamentos soviético e alemão. Tal constatação igualmente é válida para o período do
Estado de Segurança Nacional brasileiro, da época da ditadura militar de 1964/1985.

40
ZAFFARONI, Eugênio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de direito penal brasileiro, p. 335.

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