Aula Magna “Constituição, Lei Penal e Jurisdição Constitucional”
Com a Professora Doutora Maria João Antunes
A Professora começa por afirmar que as relações entre a Constituição, a Lei Penal e a Jurisdição Constitucional são hoje uma realidade incontestável, não obstante, as relações entre a Lei Penal e a Constituição serem já patentes, por exemplo, na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789. A problematização de tais relações foi evoluindo e adquiriu novos contornos com a passagem da Constituição limite da Lei Penal para a Constituição fundamento da Lei Penal da Intervenção Penal. É a Constituição que define as balizas da legitimação, tanto material, como formal do Direito Penal. Perspetivar a Constituição também como um fundamento e não como um mero limite do Direito Penal, pode significar muito mais de que afirmar que este não pode contrariar a Constituição, que certas normas incriminadoras são ilegítimas, que há bens jurídicos que devem ficar à margem da intervenção penal ou que certas sanções não são admissíveis. Na passagem da Constituição de limite a fundamento do Direito Penal, acredita que é inevitável considerar a evolução de um conceito formal crime, para um conceito material que se constitui, enquanto conceito material que é, em padrão crítico do direito vigente e do direito a constituir, enquanto critério de criminalização e de descriminalização de comportamentos, mais propriamente a evolução para o conceito material de crime assente na função de tutela de bens jurídicos mostra-nos que o conceito de bem jurídico funciona aqui como um padrão critico de normas penais, já vigentes e também das normas penais futuras e é um padrão crítico relativamente ao qual é indispensável então a referência à ordem axiológico-constitucional. Isto é de tal forma que são autonomizados enquanto parâmetros de fiscalização da constitucionalidade de normas penais incriminadoras e não apenas enquanto diretrizes politico-criminais dirigidas ao legislador, princípios como na formação de Figueiredo Dias, o principio jurídico constitucional do direito penal do bem jurídico, o principio constitucional da ofensividade, tão acolhido na doutrina italiana por exemplo, e o principio constitucional da proporcionalidade, que é acolhido noutros países e em outros tribunais. Quanto ao Tribunal Constitucional português, ele tem usado como parâmetro de controlo da constitucionalidade das normas que dizem o que é crime, o princípio jurídico- constitucional do direito penal do bem jurídico. Este princípio jurídico-constitucional do Direito Penal do bem jurídico desenvolve-se a partir dos critérios da dignidade penal do bem jurídico e da necessidade da intervenção penal, isto com fundamento no artigo 18ºnº2 da CRP, que dispõe que as restrições legais ou os direitos, liberdades e garantias, nos casos expressamente previstos na Constituição, têm de se limitar ao necessário para a salvaguarda de outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos. Note-se que o artigo 18ºnº2 da CRP não é originário da constituição de 1976 e, portanto, mesmo antes de ser introduzido na CRP, já Figueiredo Dias tinha este entendimento que depois acabou por encontrar aqui um fundamento positivo no art. 18º nº 2 CRP, sendo que à luz deste parâmetro, o Tribunal Constitucional já apreciou diversas normas incriminatórias em matérias tao distintas quanto a da interrupção voluntária da gravidez, a do tráfico de drogas, a da condução em estado de embriagues, a da condução do veículo automóvel sem licença, a da exploração ilícita do jogo, a da procriação medicamente assistida, a da importunação sexual, a do enriquecimento ilícito e injustificado e, mais recentemente, também foi a partir deste critério que aferiu da conformidade constitucional dos crimes contra os animais de companhia. Em tempo de revisão constitucional é de notar que, certamente, o tribunal constitucional, no futuro, apreciará de modo diferente a questão da inconstitucionalidade dos crimes contra animais de companhia, se vier a ser aprovada, agora, em sede de revisão constitucional, a norma, que alguns já propuseram no sentido de caber ao Estado promover o bem-estar animal. Assim, dos argumentos do Tribunal Constitucional para julgar inconstitucionais as normas sobre maus-tratos e abandono de animais de companhia, fundou-se na circunstancia de não haver aqui qualquer bem jurídico, digno de pena, por faltar a tal referência à Constituição. Na passagem da constituição de limite a fundamento do direito penal, é incontornável a evolução trilhada em matéria de direitos fundamentais, sendo que é inevitável a evolução que houve de um Estado Legislativo de Direito para um Estado Constitucional. A ligação especifica dos direitos fundamentais ao Direito Penal destaca-se em três planos distintos de que a professora vai falar. Anabela Miranda Rodrigues defende que a relação entre direitos fundamentais e direito penal, é uma relação necessária e não surpreendente, mas paradoxal. Significa uma legitimação da repressão punitiva, já que é em nome da sua proteção que se exige a intervenção penal (art.18º CRP), para proteção e salvaguarda de outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos, nomeadamente direitos fundamentais, no que vem sendo chamada, no que diz a Doutora Anabela, a sua “função espada” e em que os direitos fundamentais traduzem a boa consciência da punição. Punidos para proteger direitos fundamentais e ao mesmo tempo há aqui uma limitação daquela, pela repressão, ou que salude agora, com uma função escudo do direito penal, em que os direitos fundamentais traduzem a má consciência da punição, sobre pena da sua exasperação ilegítima. Para a prof. Dra. Maria João Antunes, não há nenhuma especificidade do direito penal. O que há, é matéria de direito Constitucional. A ligação entre o Direito Penal e o Constitucional destaca-se quando se defende uma relação de mútua referência entre a ordem axiológica jurídico-constitucional e a ordem legal dos bens jurídicos, que é o direito penal. A relação entre Direito Penal e a proteção constitucional de direitos fundamentais destaca-se também por via da identificação jurisprudencial de proibições constitucionais de incriminação fundadas em direitos fundamentais positivados. Na jurisdição portuguesa, existe um acórdão relativo à incriminação de atos homossexuais com adolescentes. O art.175º CP, antes de 2007, previa especificamente o crime de atos homossexuais com adolescentes, sendo que o TC julgou a norma inconstitucional, não através do princípio jurídico-constitucional do direito penal do bem jurídico, mas com fundamento na existência de uma proibição constitucional de uma criminalização fundada no direito fundamental à igualdade perante a lei. Outro destaque a fazer prende-se com a evolução da doutrina jurisprudencial que trouxe a problemática das imposições constitucionais implícitas de criminalização decorrentes da acentuação objetiva dos direitos fundamentais, que faz impender sobre o Estado também um dever de proteção dos direitos fundamentais. Ou seja, a tradicional faceta negativa do Princípio do direito penal do bem jurídico congruente com a configuração dos direitos fundamentais como direitos subjetivos de defesa, perda a exclusividade em favor de uma faceta positiva do princípio, por via da descoberta da dimensão objetiva dos direitos fundamentais. Também assumem especial relevância as imposições constitucionais expressas, sendo este um tema “muito caro” à doutrina brasileira, já que a Constituição da República Federativa do Brasil prevê tais incriminações em número muito significativo. Diferentemente do que sucede entre nós, porque habitualmente só conseguimos enumerar uma imposição constitucional expressa de criminalização, nos termos do art.117º/nº3 CRP, segundo o qual a lei determina os crimes de responsabilidade dos titulares de cargos políticos. A lei penal é uma das protagonistas do Estado legislativo de Direito para o Estado Constitucional Contemporâneo. Há uma nova linguagem com reflexos específicos para o Direito Penal, nomeadamente, por via do controlo entregue aos Tribunais Constitucionais, sendo que essa linguagem é a força normativa da Constituição, da constitucionalização dos Direitos fundamentais, de mais princípios e menos regras e do poder judicial no lugar do poder legislativo. Os reflexos são evidentes na sua opinião. As relações entre a Constituição, a Lei Penal e a Jurisdição Constitucional continuarão a ser uma realidade. O caminho do futuro será, porém, encontrando pontos de dificuldade, destacando 3 pontos de dificuldade. O primeiro tem a ver com o conceito material de crime assente na função de tutela de bens jurídicos, sendo que este conceito está hoje em crise e, consequentemente, o conceito de bem jurídico enquanto padrão crítico de normas penais incriminadoras já constituídas e a constituir e enquanto parâmetro de aferição da constitucionalização destas normas. Por via do Direito Penal, os Tribunais Constitucionais têm sido confrontados quanto ao âmbito dos seus poderes de fiscalização na relação destes poderes com os do legislador democrático, nomeadamente quanto ao ponto ótimo de harmonização do princípio da constitucionalidade com o princípio da maioria. Do ponto de vista do controlo entregue à jurisdição constitucional a questão é de saber onde se deve iniciar a auto compensação judicial perante a liberdade de conformação do legislador. O receio hoje é o de que o Estado Parlamentar da Lei se transforme em Estado Jurisdicional do Tribunal Constitucional. A última dificuldade é que já vai longe o tempo em que depositamos tudo na Constituição, pois o tempo é de trans constitucionalismo, é de cosmopolitismo e de pluralismo constitucional e de proteção multinível de direitos. O legislador nacional passou a estar sujeito a outros vínculos materiais, a mais vínculos ou a vínculos diferentes e passou a ser controlado por outras instâncias além das nacionais. O legislador penal passou a estar duplamente vinculado, nomeadamente às disposições do Direito Europeu Internacional. Nomeadamente, a doutora confessou que nunca acreditou que isso seria possível, acreditou sempre que aquilo que era a CEE nunca evoluiria, mas enganou-se redondamente, pois hoje o que temos é que cada Estado tem outras vinculações normativas fora da Constituição, fora até do espaço europeu. Por outro lado, os Estados passaram a estar vinculados à jurisprudência de Tribunais supranacionais, podendo até haver mesmo um choque entre estes 2 Tribunais (caso “Inéss del Río Prada”).