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A

EXPEDIÇÃO KON-TlKI

Thor Heyerdahl

CAPÍTULO I
UMA TEORIA

Retrospecto - O velho de Fatu-Hiva - Vento e corrente - Quem povoou


a Polinésia? - O enigma dos mares do Sul - Teorias e fatos - A lenda
de Kon-Tiki e da raça branca - Chega a guerra.

Não é impossível que, de vez em quando, o leitor se tenha encontrado numa


situação estranha. Ter-se-á metido nela pouco a pouco e da maneira mais natural,
mas justamente quando se acha no meio do caminho, de repente se espanta e
pergunta a si mesmo como foi que tudo aquilo se deu.

Se, por exemplo, o leitor empreende uma viagem marítima numa jangada com
um papagaio e cinco companheiros, mais cedo ou mais tarde, inevitavelmente,
acordará numa manhã em pleno mar, talvez um pouco mais descansado que de
costume, e começará a matutar no caso.

Numa manhã assim, sentei-me e pus-me a escrever em um diário de navegação


umedecido de orvalho: ’17 de maio. Dia da independência da Noruega. Mar
grosso. Bom vento. Hoje sou eu o cozinheiro. Achei na coberta 7 peixes-
voadores, uma lula no telhado da cabina, e no saco de dormir de Torstein um
peixe desconhecido... ” Aqui larguei o lápis, e o mesmo pensamento se me
insinuou sorrateiramente no espírito: estou de fato diante de um esquisito 17 de
maio; realmente, bem lançadas as contas, é esta uma existência toda especial.
Como foi que tudo isto principiou?

Se me virava para a esquerda, rasgava-se-me à vista um vasto mar azul de ondas


marulhosas, rolando ali pertinho na eterna perseguição de um horizonte
inatingível. Se me voltava para a direita, via o interior de uma cabana de escassa
claridade na qual um homem barbado estava deitado de costas lendo Goethe,
com os polegares dos pés nus caprichosamente introduzidos na caniçada da
cobertura baixa de bambu da desengonçada cabanazinha que nos servia de
abrigo comum.

- Bengt - disse eu, empurrando para o lado o papagaio verde que queria
empoleirar-se no diário de navegação. - Você é capaz de me dizer como foi que
viemos parar aqui?

Goethe ficou enterrado debaixo da barba ruiva.

- A mim é que você pergunta? A ideia foi sua e me parece grandiosa.

Seus polegares subiram três ripas e ele continuou a ler. Fora da cabana três
homens trabalhavam no convés de bambu sob um sol abrasador. Seminus,
trigueiros, barbados, com riscas de sal pelas costas, sua aparência era de que
nunca tivessem feito outra coisa senão atravessar o Pacífico em jangadas, rumo
ao oeste. Eric entrou pela abertura rastejando, na mão o sextante e um maço de
papéis.

- Noventa e oito graus e quarenta e seis minutos oeste por oito graus e dois
minutos sul, boa singradura a de ontem, rapazes! Pegou meu lápis e traçou um
minúsculo círculo no mapa pendurado na parede de bambu; esse minúsculo
círculo vinha juntar-se à série de outros dezenove que descreviam uma curva
partindo do porto de Callao, na costa do Peru.

Herman, Knut e Torstein, ansiosos, também se introduziram rastejando para ver


o novo circulozinho que nos punha a boas quarenta milhas marítimas mais perto
das ilhas dos mares do Sul.

- Estão vendo, meninos? - disse Herman com orgulho - isto significa que
estamos a 850 milhas marítimas da costa do Peru.

- E que temos ainda 3.500 até alcançarmos as ilhas mais próximas - acrescentou
Knut cautelosamente.

- E para falar com inteira exatidão - disse Torstein -, estamos a 4.877m acima do
fundo do mar e a algumas quadras abaixo da lua.

De modo que agora sabíamos exatamente onde estávamos, e eu podia prosseguir


a minha especulação acerca do motivo de tudo aquilo.

Para o papagaio a coisa era indiferente; o que ele queria era arrastar com o bico o
roteiro de navegação. E o mar continuava tão vasto como antes, inalterável na
sua cor azul-escura, tendo como limite longínquo a fímbria do céu.
Tudo começara talvez no inverno anterior, no escritório de um museu nova-
iorquino. Ou talvez já havia começado dez anos antes numa ilhota do
arquipélago das Marquesas, no meio do Pacífico. Talvez desembarcássemos
agora na mesma ilha, a não ser que o vento nordeste nos mandasse mais para o
sul, na direção de Taiti e do grupo de Tuamotu. Eu podia ver em espírito
claramente a pequena ilha, com suas denteadas montanhas de um vermelho
ferrugento, a mata verde que se estendia pelas encostas abaixo em direção ao
mar, e as esguias palmeiras que pareciam sentinelas agitando as palmas ao longo
da praia. O nome da ilha era Fatuhiva. Não havia terra firme entre ela e nós no
ponto onde navegávamos, e todavia ela se achava distante milhares de milhas
marítimas. Via o apertado vale de Ouia no sítio onde ele se abria rumo ao mar, e
me recordava muito bem de como nos sentávamos ali na erma praia e,
frequentemente, à noite, ficávamos a contemplar aquele mesmo mar
interminável. Estava eu então na minha lua-de-mel e não, como agora, no meio
de piratas barbados. Andávamos colecionando todas as espécies de seres vivos,
imagens e outras relíquias de uma cultura morta. Lembro-me muito bem e em
especial de certa noite.

O mundo civilizado parecia £ incompreensivelmente remoto e irreal. Tínhamos


vivido na ilha cerca de um ano, sendo os únicos brancos do lugar. Havíamos
espontaneamente abandonado as boas coisas da civilização, mas também as suas
calamidades. Morávamos numa choupana por nós mesmos construída ’ sobre
estacas, debaixo das palmeiras e perto da praia, e comíamos aquilo ’ que os
bosques tropicais e o oceano Pacífico tinham para nos oferecer Numa
aprendizagem árdua, porém prática, tínhamos penetrado bem dentro de muitos
dos curiosos problemas do Pacífico. Creio que, tanto no corpo como no espírito,
muitas vezes havíamos seguido as pegadas dos homens primitivos que tinham
aportado àquelas ilhas vindo de uma região desconhecida, e cuja posteridade
polinésia governou soberanamente a ilha, até que chegaram ali homens de nossa
raça com a Bíblia em uma das mãos e pólvora e aguardente na outra.

Naquela noite, então, estávamos sentados, como tantas vezes fazíamos, na praia
enluarada, tendo à nossa frente o oceano. Bem despertos e impregnados do
romance que nos rodeava, não houve impressão que nos escapasse.

Enchemos nossas narinas com o aroma da mata luxuriante e da água salobra e


ouvimos o vento ramalhar na folhagem e no topo dos coqueiros. Em intervalos
regulares, todos os outros ruídos eram superados pelos vagalhões que vinham
rolando do mar e se arremessavam na direção da terra até arrebentarem nos
pedregulhos da praia, formando círculos de branca espuma. Ouvia-se um rugido,
um sussurro, um ribombo no meio de milhares de pedras rutilantes, até que tudo
outra vez se aquietava quando a água do mar se retirava em busca de novas
forças com que repetir a investida contra a costa invencível.

- Coisa curiosa - comentou Liv - é não existir vagalhões como este no outro lado
da ilha.

- E que - expliquei - este é o lado do vento, e as correntes marítimas se dirigem


para esta banda.

Continuávamos lá sentados admirando o mar que, segundo se afigurava, não


desistia de demonstrar que havia de vir até ali, encapelando-se desde leste,
sempre de leste. Era o eterno vento de leste, o vento alísio, que havia encrespado
a superfície do mar, subvertendo-o e arrojando-o para a frente, investindo para o
horizonte, a leste, e daí até as ilhas. Aqui o incoercível avanço do oceano vinha
afinal quebrar-se de encontro às fragas e recifes, enquanto o vento leste se erguia
altaneiro por sobre matas, costas e montanhas e prosseguia indômito para oeste,
de ilha em ilha, rumo ao ocidente.

Assim as ilhas e as ligeiras formações de nuvens tinham flutuado sobre o mesmo


horizonte oriental desde a antemanhã dos tempos. Os primeiros homens que
haviam abicado a estas ilhas sabiam muito bem que era assim. Sabiam disso aves
e insetos, e à vegetação das ilhas não escapava, de nenhum modo, esta
circunstância. E nós também sabíamos que longe, lá abaixo do horizonte, na
direção de leste, de onde as nuvens emergiam, estava localizado o litoral sul-
americano. Separavam-nos dele 4.300 milhas marítimas, não havendo de
permeio mais que céu e água.

Olhávamos para as nuvens em movimento e para o balouço do mar que a lua


prateava, e escutávamos as palavras de um velho seminu acocorado diante de
nós, enquanto a nossa vista se fixava no brilho mortiço de uma fogueira que se
extinguia.

- Tiki - disse tranquilamente o velho - era ao mesmo tempo deus e chefe. Foi
Tiki quem trouxe meus antepassados para estas ilhas onde agora vivemos. Antes
nós morávamos numa grande região para lá do mar.

Com um graveto mexeu nos tições para que não se apagassem. O ancião sentou-
se e entrou a cismar. Ele vivia os tempos passados, aos quais se achava
firmemente ligado. Cultuava seus avós e as proezas destes, remontando até a
época dos deuses. Seu anelo era reunir-se de novo a eles. O velho Tei Tetua era
o único sobrevivente de todas as extintas tribos da costa oriental de Fatuhiva. A
idade ele não a sabia, mas a pele encarquilhada, coriácea, escura como a casca
das árvores, dava-lhe a aparência de ter sido curtida no sol e ao vento durante um
século. Ele era certamente um dos poucos naquelas ilhas que ainda se
lembravam das histórias lendárias do grande deus chefe polinésio Tiki, filho do
sol, e nelas acreditava.

Quando, naquela noite, nos metemos na cama, na choupana firmada sobre


estacas, as histórias que o velho Tei Tetua nos contara a respeito de Tiki e da
antiga pátria dos ilhéus além do mar ainda me povoavam o espírito,
acompanhadas do soturno bramido da ressaca distante. Aquilo soava como uma
voz de tempos remotos e parecia ter qualquer coisa que dizer no silêncio da
noite. Eu não conseguia conciliar o sono. Era como se o tempo não mais
existisse e como se Tiki e seus marujos estivessem fazendo o primeiro
desembarque lá embaixo, na praia, onde as ondas vinham quebrar. De repente,
veio-me uma ideia.

- Liv, você notou que as colossais representações de Tiki em pedra lá na selva se


parecem notavelmente com os gigantescos monólitos, relíquias de civilizações
extintas da América do Sul? Tenho certeza de que os vagalhões bravios rugiram
mostrando aprovação, e em seguida se acalmaram, enquanto eu pegava no sono.

Foi talvez, assim, que a coisa começou. Em todo caso, assim se iniciou a série de
fatos que tiveram como resultado dar com seis de nós e um papagaio verde numa
jangada na altura da costa sul-americana.

Recordo-me como espantei meu pai e assombrei minha mãe e meus amigos
quando, de regresso à Noruega, entreguei ao Museu Zoológico da Universidade
os meus frascos de vidro com escaravelhos e peixes de Fatuhiva. Eu queria dizer
adeus à Zoologia e dedicar-me ao estudo dos povos primitivos. Haviam-me
fascinado os mistérios ainda não decifrados dos mares do Sul. Devia haver uma
solução racional para eles, e era objetivo meu identificar o lendário herói Tiki.

Nos anos que se seguiram, as vagas do mar e as ruínas da selva foram uma
espécie de sonho remoto e irreal a formar o fundo e o acompanhamento dos
meus estudos acerca dos povos do Pacífico. Se é inútil procurar interpretar os
pensamentos e as ações de um povo primitivo lendo livros e visitando museus, é
igualmente inútil ao explorador do nosso tempo tentar atingir os horizontes que
uma única estante de livros pode abranger. Obras científicas, diários da época
das mais antigas explorações e intermináveis coleções existentes em museus da
Europa e da América ofereciam opulento material a ser por mim utilizado na
solução do enigma. Desde que a nossa raça alcançou as ilhas do Pacífico, depois
do descobrimento da América, investigadores de todas as províncias do saber
têm coligido um repositório quase inesgotável de informações a respeito dos
habitantes dos mares do Sul e dos povos que vivem nas suas cercanias. Mas
nunca existiu acordo quanto à origem desses ilhéus, ou quanto à razão pela qual
esse tipo só é encontrado disperso pelas ilhas solitárias da parte oriental do
Pacífico.

Quando os primeiros europeus se aventuraram afinal a atravessar o maior dos


oceanos, descobriram com espanto que, exatamente no meio dele, existiam
ilhotas montanhosas e recifes de coral liso, em geral segregados uns dos outros e
do mundo por vastas áreas de mar. Cada uma destas ilhas já era habitada por
povos que aí haviam aportado antes dos europeus. Gente alta e esbelta que veio
ao encontro deles, na praia, trazendo cães, porcos e aves domésticas. Donde
teriam vindo? Falavam uma língua que nenhum outro povo compreendia. E os
homens da nossa raça, que orgulhosamente se intitulavam descobridores das
ilhas, encontraram campos cultivados e aldeias com templos e choupanas em
cada ilha habitada. Em algumas acharam até velhas pirâmides, ruas calçadas e
estátuas de pedra da altura de uma casa europeia de quatro andares. Não havia
atinar com o mistério. Que povo era aquele e de onde tinha vindo?

Pode-se dizer com segurança que as respostas dadas a esses enigmas quase têm
igualado em número as obras que deles trataram. Especialistas em diferentes
ramos apresentaram soluções diferentes, as quais posteriormente foram postas de
lado diante de argumentos lógicos oferecidos por sábios que encaram a questão
por facetas diferentes. Houve quem, com vigor, reivindicasse para a Malaia, para
a índia, para a China, para o Japão, para a Arábia, para o Egito, para o Cáucaso,
para a Atlântida, e até para a Alemanha e para a Noruega a glória de ter sido a
pátria dos polinésios. Mas eis que surgia de repente uma dificuldade de caráter
decisivo, que punha abaixo todos os argumentos apresentados. E onde parou a
ciência principiou a imaginação. Os misteriosos monólitos da ilha de Páscoa e
todas as outras relíquias de origem desconhecida existentes nessa ilha pouco
exposta, a qual fica em completa solidão a meio caminho entre as ilhas mais
próximas e a costa sul-americana, deram ensejo a todo o gênero de especulações.
Muitos repararam que os achados da ilha de Páscoa faziam lembrar de muitas
maneiras as relíquias das civilizações pré-históricas da América do Sul. Teria
existido outrora uma ponte de terra sobre o mar, e esta haveria submergido? Não
seria a ilha de Páscoa, e todas as demais ilhas do Mar do Sul que tinham
monumentos da mesma espécie, restos que um continente submerso deixara em
relevo na superfície do oceano? Tem sido esta entre leigos uma teoria popular e
uma explicação plausível, mas os geólogos e outros investigadores não lhe dão
importância. Demais, os zoólogos provam facilmente, pelo estudo de insetos e
caracóis das ilhas dos mares do Sul, que, durante toda a história da humanidade,
essas ilhas estiveram isoladas umas das outras e dos continentes que as rodeiam
tão completamente como o estão hoje.

Sabemos, portanto, com absoluta certeza, que a primitiva raça polinésia deve ter
vindo em alguma época, espontaneamente ou não, ao sabor das águas ou com a
força das velas de uma embarcação qualquer, até essas ilhas longínquas. E uma
observação mais atenta dirigida aos habitantes dos mares do Sul mostra que a
vinda deles não pode datar de muitos séculos.

Pois, se bem que os polinésios vivam dispersos sobre uma área de mar que tem
quatro vezes o tamanho de toda a Europa, contudo não lograram produzir
línguas diferentes nas diferentes ilhas. Há milhares de milhas marítimas, do
Havaí no norte à Nova Zelândia no sul, de Samoa no oeste à ilha de Páscoa no
leste, e no entanto todas estas tribos isoladas falam dialetos de uma língua
comum a que demos o nome de polinésio. A escritura era desconhecida em todas
as ilhas, existindo todavia algumas tabuinhas de madeira nas quais se viam
hieróglifos incompreensíveis que os naturais conservavam na ilha de Páscoa,
embora nem eles mesmos nem ninguém pudesse decifrá-los. Tinham, porém,
escolas, e sua disciplina mais importante era o estudo poético da história, pois na
Polinésia história era o mesmo que religião. Tinham o culto dos antepassados;
veneravam seus chefes mortos a partir da época de Tiki, sendo este tido como
filho do Sol. Em quase cada ilha os homens instruídos eram capazes de citar de
cor, a qualquer momento, os nomes de todos os chefes da ilha até o tempo em
que ela começara a ser habitada. E para auxiliar a memória usavam muitas vezes
um complicado sistema de nós em cordéis retorcidos, como faziam os incas no
Peru. Investigadores modernos recolheram todas estas genealogias locais nas
diversas ilhas, e verificaram que concordam umas com as outras, com espantosa
justeza, tanto nos nomes como no número de gerações. Deste modo, atribuindo-
se a uma geração polinésia uma média de vinte e cinco anos, descobriu-se que as
ilhas dos mares do Sul não foram habitadas antes do ano 500 da era cristã,
aproximadamente. Nova onda cultural com uma nova série de chefes mostra
que, bem mais tarde, outra leva de imigrantes chegou às mesmas ilhas mais ou
menos em 1100. De onde podiam ter vindo essas levas tardias de imigrantes?
Mui poucos investigadores parecem ter levado em conta o fator decisivo de que
o povo que desembarcou nas ilhas em data tão tardia se achava na idade da pedra
talhada.

Apesar da inteligência e da, a outros respeitos, assombrosa cultura, estes


navegantes trouxeram consigo certo tipo de machado de pedra e uma porção de
outros instrumentos característicos da idade da pedra, e os espalharam por todas
as ilhas em que se estabeleceram. Cumpre não esquecer que, a não ser um ou
outro povo isolado e silvícola e certas raças atrasadas, não havia nenhuma
civilização no mundo de qualquer capacidade reprodutora que ainda estivesse no
nível da idade da pedra nos anos 500 ou 1100 da nossa era, exceto no Novo
Mundo. Ali, até mesmo as mais elevadas civilizações indígenas desconheciam
completamente os usos do ferro, e empregavam machado e instrumentos de
pedra do mesmo tipo dos que eram usados nas ilhas dos mares do Sul até a época
das explorações.

Estas numerosas civilizações indígenas eram, para as bandas de leste, as de


parentesco mais chegado aos polinésios. Para o oeste viviam apenas os povos
primitivos de tez preta da Austrália e Melanésia, parentes afastados dos negros, e
além deles estava a Indonésia e a costa da Ásia, onde a idade da pedra pertencia
a um passado mais remoto ainda, talvez, do que em qualquer outro ponto do
globo.

Assim, não somente minhas suspeitas mas também minha atenção se afastaram
cada vez mais do Velho Mundo, onde tantos haviam procurado e nenhum havia
encontrado nada, e se voltaram para as civilizações indígenas da América, tanto
as conhecidas como as desconhecidas, as quais ninguém até então tinha levado
em conta. E na costa leste mais próxima, onde hoje a república sul-americana do
Peru se estende do Pacífico até as montanhas, não havia falta de vestígios, desde
que alguém os procurasse. Ali vivera outrora um povo desconhecido que havia
fundado uma das mais estranhas civilizações do mundo, até que, subitamente, há
muito, esse povo desaparecera como que varrido da face da terra.

Deixou após si enormes estátuas de pedra semelhando seres humanos, que


faziam lembrar as de Pitcairn, as ilhas Marquesas e da Páscoa, e imensas
pirâmides construídas em degraus como as de Taiti e de Samoa. Extraíam das
montanhas, com machados de pedra, blocos de tamanho descomunal que
transportavam pelo campo, quilômetros a fio, punham em pé ou colocavam uns
em cima de outros formando portões, paredões e terraplenos, exatamente como
os vamos encontrar em algumas das ilhas do Pacífico.

Os incas tinham um grande império nessa região montanhosa quando os


primeiros espanhóis chegaram ao Peru. Disseram aos espanhóis que os colossais
monumentos abandonados lá no meio da paisagem foram erigidos por uma raça
de deuses brancos que ali tinham vivido antes dos incas: Esses arquitetos
desaparecidos eram, segundo a descrição que deles faziam, mestres sábios,
pacatos, oriundos do norte, de onde tinham vindo ainda na aurora dos tempos e
que ensinaram aos antepassados dos incas a arquitetura e a agricultura e também
os bons costumes e as boas maneiras. Eram diferentes dos indígenas, tendo a
pele branca e usando longas barbas; eram também mais altos que os incas.
Afinal saíram do Peru tão subitamente quanto haviam chegado; os incas, por seu
turno, assenhorearam-se do país, e os mestres brancos desapareceram para
sempre da costa sul-americana e fugiram para oeste, atravessando o Pacifico.

Ora, aconteceu que, quando os europeus chegaram às ilhas do Pacífico, se


espantaram de ver que muitos dos nativos tinham a pele branca e eram barbados.
Em muitas ilhas havia famílias inteiras notáveis pela palidez da pele, com o
cabelo variando entre o avermelhado e o louro, olhos azul-cinzentos e rostos
quase semíticos, de nariz aquilino. Por sua parte, os polinésios tinham pele
bronzeada, cabelo muito preto e nariz chato e carnudo. Os de cabelo vermelho
denominavam-se urukehu e se diziam descendentes diretos dos primeiros chefes
das ilhas, que eram deuses brancos, tais como Tangaroa, Kane e Tiki. Lendas em
torno de brancos misteriosos, de que os ilhéus descendiam, eram correntes em
toda a Polinésia.

Quando Roggeween descobriu a ilha de Páscoa em 1772, notou com surpresa


homens brancos’ entre os que se achavam na praia. E a gente da ilha de Páscoa
enumerava com exatidão seus antepassados de tez branca até o tempo de Tiki e
de Hotu Matua, quando singraram através do oceano, ’Vindos de uma terra
montanhosa a leste, requeimada pelo sol”.

Prosseguindo em minhas pesquisas, encontrei surpreendentes vestígios na


cultura, na mitologia e na língua do Peru, que me incentivaram a cavar ainda
com maior profundidade, até identificar o lugar e a origem do deus tribal
polinésio Tiki. E encontrei o que esperava.

Lia eu as lendas incas do rei-sol Virakocha - que foi o chefe supremo do


desaparecido povo branco do Peru - e eis que encontro o seguinte: ”Virakocha é
um nome inca (quíchua) e por conseguinte de data bastante recente. O nome
original do deus-sol Virakocha, que parece ter sido mais usado no Peru em
tempos idos, era Kon-Tiki ou Illa-Tiki, que significa Sol-Tiki ou Fogo-Tiki.
Kon-Tiki era sumo sacerdote e rei-sol dos lendários homens brancos’ dos incas
que tinham deixado as enormes ruínas nas margens do lago Titicaca. Reza a
lenda que Kon-Tiki foi atacado por um chefe chamado Gari que veio do vale
Coquinho. Numa batalha travada numa ilha do lago Titicaca, os misteriosos
brancos barbados foram trucidados, mas Kon-Tiki e seus companheiros mais
chegados escaparam e, mais tarde, aportaram à costa do Pacífico, de onde
finalmente desapareceram sobre o mar para as bandas do ocidente.” Já eu não
tinha dúvida de que o branco deus-chefe Sol-Tiki que, segundo os incas havia
sido, pelos pais destes, expulso do Peru para o Pacífico, era idêntico ao branco
deus-chefe Tiki, filho do sol, a quem os habitantes de todas as ilhas orientais do
Pacífico reconheciam como o primitivo fundador da raça. E os detalhes da vida
de Sol-Tiki no Peru, com os antigos nomes de lugares em redor do lago Titicaca,
pululavam em lendas históricas entre os naturais das ilhas do Pacífico.

Mas por toda a Polinésia encontrei indicações de que a pacífica raça de Kon-Tiki
não logrou conservar as ilhas só para si por muito tempo. I Consoante essas
indicações, barcaças guerreiras do tamanho dos navios dos vikings, e amarradas
duas a duas, haviam transportado por mar indígenas do nordeste para Havaí e
mais ao sul para todas as demais ilhas. Estes misturaram seu sangue com o da
raça de Kon-Tiki, trazendo nova civilização à ilha de regime monárquico. Foi
este o segundo povo da idade da pedra talhada, que veio para a Polinésia em
1100, ignorando a cerâmica, a existência dos metais, e sem rodas nem teares
nem qualquer cultivo de cereais.

Sucedeu, pois, que eu estudava entalhaduras feitas na rocha segundo o antigo


estilo polinésio entre os indígenas do nordeste, na Colúmbia Britânica, quando
os alemães invadiram a Noruega. Direita, volver; esquerda, volver; meia-volta,
volver! Lavar escadas de quartel, engraxar botas, treino em radio transmissão,
paraquedismo... e por fim um comboio de Murmansk para Finmark, onde o
deus-guerra da técnica reinou na ausência do deus-sol durante o escuro inverno...

Veio a paz. E um dia minha teoria estava completa. Eu devia ir à América e pô-
la à prova.
CAPÍTULO II
NASCE UMA EXPEDIÇÃO

Entre especialistas - O ponto decisivo - No Lar do Marinheiro - Último


recurso - O Clube de Exploradores - A nova equipagem - Acho um
companheiro - Um Triunvirato - Um pintor e dois sabotadores - Para
Washington - Conferência no Ministério da Guerra - Na Intendência
Geral com uma boa lista - Problemas monetários - Com diplomatas
das Nações Unidas - Voamos para o Equador.

Este foi o inicio do caso, ao pé de uma fogueira, numa ilha dos mares do Sul,
onde um velho filho do lugar, sentado no chão, nos narrou lendas e histórias de
sua tribo. Anos mais tarde, achava-me sentado em companhia de outro velho,
dessa vez no escuro escritório de um dos pavimentes superiores de vasto museu
de Nova Iorque.

Em redor de nós, em bem arrumados mostruários de vidro viam-se fragmentos


de objetos de cerâmica de um passado bem conhecido, vestígios que levavam às
brumas da antiguidade.

Nas paredes, estantes pejadas de livros. Alguns deles tinham sido escritos por
um homem e sabe Deus se haviam sido lidos por dez! O velho, que tinha lido
todos aqueles livros e escrito alguns deles, estava sentado à mesa de trabalho.

Seus cabelos eram brancos, e ele mostrava bom humor. Agora, porém, eu com
certeza lhe pisara nos calos, pois, firmando-se agitado nos braços da cadeira,
tinha o ar de quem se sentia interrompido no melhor ponto de um jogo de
paciência.

- Não! - disse ele. - Nunca!

Papai Noel teria feito o mesmo ar daquele velho, se alguém ousasse afirmar que
no ano seguinte o Natal ia cair no dia de São João.

- O senhor não tem razão. Está erradíssimo - repetiu, abanando a cabeça


indignado como para afugentar dela a ideia.

- Mas o senhor ainda não leu os meus argumentos - insisti, fazendo com a cabeça
um esperançoso movimento na direção do manuscrito que estava em cima da
mesa.

- Argumentos! - disse ele. - Não é possível tratar de problemas etnográficos


como se fossem uma espécie de romance policial.

- Por que não? - respondi. - Baseei todas as minhas conclusões em observações


próprias e em fatos registrados pela ciência.

- A tarefa da ciência é a investigação pura e simples - disse ele tranquilamente. -


Não é tentar provar isto ou aquilo. Cuidadosamente afastou para um lado o
manuscrito que não abrira, e inclinou-se sobre a mesa.

- E bem verdade que a América do Sul foi a pátria de algumas das mais curiosas
civilizações da antiguidade, e que não sabemos nem quem eram seus
representantes nem para onde foram quando os incas passaram a dominar ali.
Uma coisa, porém, sabemos ao certo, e é que nenhum povo da América do Sul
se passou para as ilhas do Pacífico.

Lançou-me um olhar inquiridor e continuou: - Sabe por quê? E bastante simples.


E que não podiam chegar lá. Não dispunham de botes!

- Mas dispunham de jangadas - objetei hesitante. - Jangadas de pau-de-balsa.

O velho sorriu e disse sossegadamente: - Não me venha dizer que o senhor é


capaz de tentar uma excursão desde o Peru até as ilhas do Pacífico numa jangada
de pau-de-balsa. Nada pude responder a isto. Estava-se tornando tarde. Ambos
nos levantamos. Enquanto me acompanhava até a porta, o velho cientista bateu-
me bondosamente no ombro e disse que, se eu quisesse colaborar no caso, a
única coisa que tinha a fazer era vir ter com ele. Mas, no futuro, eu devia
especializar-me no estudo ou da Polinésia ou da América, e não misturar duas
distintas áreas antropológicas. Voltou até a sua mesa.

- Esqueceu isto - disse ele, devolvendo-me o manuscrito.

Deu um olhar no título: Polinésia e América - Estudo de suas relações pré-


históricas. Enfiei o manuscrito debaixo do braço e desci ruidosamente as
escadas, confundindo-me logo com a multidão na rua.

Naquela mesma noite fui bater à porta de um velho apartamento em afastado


recanto de Greenwich Village. Gostava de levar até ali meus pequenos
problemas quando sentia a vida um tanto enredada por causa deles.

Um escanifrado homúnculo de nariz comprido abriu a porta uns milímetros,


antes de escancará-la de par em par com um largo sorriso, e puxou-me para
dentro. Levou-me dali direto para a acanhada cozinha, onde me pôs para
trabalhar carregando pratos e garfos, enquanto ele dobrava a dose de indefinível
mas aromática mistura que estava aquecendo no fogareiro.

- Fez bem de aparecer - disse ele. - Que tal vai o negócio?

- Mal - respondi. - Ninguém quer ler o manuscrito. Encheu os pratos e pusemo-


nos a comer.

- E isto - tornou ele .- Todas as pessoas que você procurou pensam que se trata
de uma ideia passageira. Como sabe, aqui na América aparece gente com cada
ideia extravagante!

- Mas não é bem assim - volvi.

- Sim - disse ele. - Trata-se do seu modo de encarar o problema. É de


especialistas toda aquela corja e não acreditam num método de trabalho que se
aprofunda em cada ramo especial, da botânica à arqueologia. Eles restringem seu
raio de ação a cavar bem fundo para obter detalhes com maior concentração. A
pesquisa moderna exige que cada especialidade científica fure o seu próprio
buraco. Não costumam fazer seleção daquilo que emerge das cavidades abertas e
nem tentam pôr em ordem o que selecionaram.

Ergueu-se e estendeu a mão para agarrar um ponderoso manuscrito.

- Veja isto - disse ele. - Meu último trabalho sobre desenhos de pássaros em
bordado rústico chinês. Gastei nisto sete anos, mas foi imediatamente aceito para
publicação. O que hoje querem é obra detalhada.

Carl tinha razão. Resolver, porém, todos os problemas do Pacífico sem lançar
luz sobre ele de todos os lados parecia-me o mesmo que organizar um quebra-
cabeça dando apenas uma parte dos elementos. Tiramos a mesa, eu o ajudei a
lavar e enxugar a vasilha.
- E da Universidade de Chicago não veio nada de novo? -Não.

- Mas que foi que disse hoje o seu velho amigo do museu?

Eu falei com fleuma: - Não mostrou interesse. Disse que uma vez que os
indígenas dispunham apenas de jangadas abertas, era descabido considerar a
possibilidade de haverem sido eles os descobridores das ilhas do Pacífico. O
homenzinho de repente se pôs a enxugar com fúria o prato.

- Sim - disse ele afinal. - g falar a verdade, a mim também me parece uma
objeção de ordem prática à sua teoria.

Olhei com tristeza para o pequeno etnólogo que eu julgara um decidido aliado
meu.

- Mas não me vá compreender mal - apressou-se em acrescentar.

- Por um lado acho que você têm razão, mas por outro me parece
incompreensível. Meu trabalho sobre desenhos vem em apoio de sua teoria.

- Carl - volvi - eu estou tão certo que os indígenas atravessaram o Pacífico nas
suas jangadas, que ando com vontade de construir eu mesmo uma jangada como
a deles e atravessar o mar para provar que é possível.

Você está louco!

Meu amigo tomou aquilo como gracejo e riu-se, não sem mostrar certo pavor
diante de tal ideia.

- Está louco! Uma jangada?

O homem não sabia o que dizer e simplesmente me fitou com ar estranho, como
se esperasse de mim um sorriso, para mostrar que eu estava gracejando.

Não conseguiu o que esperava. Naquele momento via eu que, na prática,


ninguém aceitaria a minha teoria por causa da extensão, aparentemente
interminável, de mar existente entre o Peru e a Polinésia, extensão essa que eu ia
tentar vencer sem outro meio a não ser uma jangada pré-histórica. Carl olhou
para mim, incrédulo.
- Vamos beber um trago, - disse ele. Saímos e bebemos quatro.

Meu aluguei vencia naquela semana. Ao mesmo tempo, uma carta do Banco da
Noruega me informava que eu já não poderia obter dólares: haviam sido
impostas restrições ao câmbio.

Peguei da mala e tornei o metrô para Brooklin. Aí hospedei-me no Norwegian


Sailors’

Home (Lar dos Marinheiros Noruegueses), onde a alimentação era boa e


substanciosa e os preços condiziam com a minha bolsa. Arranjei um quarto
pequeno no segundo ou terceiro andar, e fazia as refeições com todos os
marinheiros numa vasta sala de jantar situada no térreo.

Era um contínuo vaivém de marujos. Variavam no tipo, nas dimensões e na


quantidade de doses que bebericavam, mas todos tinham uma coisa em comum:
quando falavam do mar, sabiam o que diziam. Fiquei sabendo que as ondas e o
mar bravo não aumentavam com a profundidade do oceano ou com a distância
da terra. Pelo contrário, as rajadas muitas vezes eram mais traiçoeiras ao longo
da costa do que em alto-mar. E a água pouco profunda, o rebojo das ondas ao
longo da costa, ou correntes oceânicas encerradas em espaço estreito e muito
próximo da terra eram capazes de provocar um mar mais picado na plataforma
do que ao largo. Uma embarcação que se aguentasse bem perto do litoral podia
aguentar-se igualmente longe da costa. Soube também que em mar grosso os
grandes navios estavam sujeitos a mergulhar na água de popa ou de proa, e
toneladas de água podiam alagar a coberta da embarcação entortando tubos de
aço como se fossem penas, ao passo que um pequeno bote no mesmo mar muitas
vezes resistia galhardamente, porque podia achar espaço entre as linhas de ondas
e bailar livremente sobre elas como uma gaivota. Muitos homens haviam saído
ilesos salvando-se em botes depois que as águas tinham feito soçobrar o próprio
navio. Mas de jangada pouco entendiam. Jangada não era navio, não tinha quilha
nem amurada. Era uma coisa a boiar, em que a gente, numa emergência, se salva
até que um barco qualquer errante nos apanhe... Todavia, um deles mostrou
grande respeito com as jangadas em alto-mar.

Tinha flutuado numa, à mercê das ondas e do vento, durante três semanas,
quando um torpedo alemão pusera a pique seu navio, em pleno oceano Atlântico.
- Entretanto, o senhor não pode governar uma jangada acrescentou o meu
informante. - Ela joga para um lado e para o outro, para a frente e para trás, ao
capricho do vento. Na biblioteca, fui desenterrar relatórios deixados pelos
primeiros europeus que haviam atingido a costa do Pacífico na América do Sul.
Não faltavam esboços ou descrições das enormes jangadas dos indígenas.

Elas tinham vela quadrada, quilha corrediça e um comprido remo de direção na


popa, podendo assim ser manobradas. Passei algumas semanas no Lar do
Marinheiro. Não veio nenhuma resposta de Chicago ou de outras cidades às
quais eu enviara cópias da teoria.

Ninguém as tinha lido. Afinal, num sábado, tornei-me resoluto e me encaminhei


para o estabelecimento de um fornecedor de navios em Water Street. Ali fui
cortesmente tratado de ’capitão’ ao adquirir um mapa de piloto do Pacífico. Com
o mapa enrolado debaixo do braço, tornei o trem de subúrbio para Ossining,
onde em fins de semana costumava ser hóspede dum jovem casal norueguês que
possuía uma aprazível vivenda no campo. O

marido tinha sido comandante de navio e, na ocasião, geria um escritório da Fred


Olsen Line em Nova Iorque.

Após um refrescante mergulho na piscina, a vida de cidade ficou totalmente


esquecida por alguns dias, e quando Ambjorg trouxe a bandeja com o coquetel,
sentamo-nos na relva ao sol quente. Não me pude conter mais; estendi o mapa
sobre a relva e perguntei a Wilhelm se ele achava que uma jangada podia levar
vivos alguns homens do Peru às ilhas dos mares do Sul. Um tanto
desconcertado, ele olhou para mim em vez de olhar para o mapa, mas no mesmo
instante respondeu afirmativamente. Tive a impressão de estar com um balão por
dentro da camisa, pois sabia que tudo quanto se referia a navegação era para
Wilhelm não só coisa de ofício senão também de paixão. Foi imediatamente
inteirado de todos os meus planos. Com espanto meu, declarou simplesmente
que aquilo era rematada loucura.

- Mas não acaba de dizer que acha possível a coisa? - atalhei.

- Não há dúvida - reconheceu ele. - Mas as possibilidades de malogro são


igualmente fortes.
Você que nunca se viu numa jangada, de súbito se imagina a atravessar o
Pacífico em uma.

A coisa talvez dê certo, talvez não. Os velhos indígenas do Peru tinham


experiência de várias gerações. Talvez que uma jangada tenha conseguido fazer
a travessia, dentre cada dez que foram para o fundo, ou, quem sabe?, centenas no
decurso de séculos. Como você mesmo diz, os incas navegavam no mar alto com
verdadeiras flotilhas dessas tais jangadas.

Portanto, se acontecia alguma coisa, podiam ser recolhidos pela jangada que
vinha atrás.

Mas quem é que vai recolher você em pleno oceano?

Ainda que você leve consigo um receptor para usá-lo num apuro, não cuide que
vai ser fácil encontrar uma jangadazinha entre as ondas a milhares de milhas da
terra. Numa tempestade você pode ser cuspido da jangada e lançado ao fundo
muito antes que alguém consiga aproximar-se de você. E melhor você esperar
aqui até que alguém tenha tempo de ler seu manuscrito. Escreva de novo e mexa
com essa gente; se o não fizer, pior para você.

- Não posso mais esperar, estou quase sem níquel!

- Então venha ficar aqui conosco. De qualquer maneira, como imagina organizar
uma expedição partindo da América do Sul sem dinheiro?

- É mais fácil despertar o interesse dos outros com uma expedição do que com
um manuscrito que ninguém lê.

- Mas que vai ganhar com isso?

- Vou destruir um dos mais poderosos argumentos contra a teoria, sem falar na
circunstância de que a ciência irá dar alguma atenção ao caso.

- E se as coisas não derem certo?

- Então não provarei nada.

- E arruinará a sua teoria aos olhos de todos, não é verdade?


- Pode ser, mas, apesar de tudo, conforme você mesmo disse, uma entre dez
logrou êxito antes de nós.

- As crianças saíram para jogar croquet, e naquele dia não discutimos mais o
assunto.

No fim da semana seguinte, estava eu de volta a Ossining com o mapa debaixo


do braço. E quando parti, havia uma comprida linha feita a lápis desde a costa do
Peru até as ilhas Tuamotu, no Pacífico. Meu amigo comandante já havia perdido
a esperança de me fazer desistir da ideia, e ficamos sentados horas a fio
calculando a velocidade provável da jangada.

- Noventa e sete dias - disse Wilhelm - mas lembre-se de que apenas em


condições teoricamente ideais, com bom vento em todo o percurso, e na hipótese
de realmente portar-se a jangada como você supõe que ela se portará. Você deve
fatalmente reservar quatro meses para a viagem e estar aparelhado para muito
mais.

- Esplêndido! - exclamei com otimismo. - Vamos calcular um prazo folgado de


quatro meses, mas fazê-la em noventa e sete dias.

O meu tacanho aposento do Lar dos Marinheiros se me afigurou um salão


confortável quando, de volta à noite, me sentei na beirada da cama com o mapa.
Medi em passadas no aposento o espaço existente entre a cama e a cômoda. Oh!
a jangada seria muito mais espaçosa...

Debrucei-me à janela para relancear os olhos pelo remoto céu estrelado da


grande cidade, visível apenas por uma nesga sobre a minha cabeça, imprensado
como me achava entre paredes e muros. Se a bordo da jangada o espaço fosse
acanhado, haveria suficiente amplidão no firmamento cravejado de estrelas por
cima de nós.

Na West 72nd Street, próximo ao Central Park, achava-se localizado um dos


clubes mais seletos de Nova Iorque. Nele não existe mais que uma placazinha
em metal impecavelmente brunido, em que se lê Clube de Exploradores, para
dizer aos transeuntes que no interior daquela casa há qualquer coisa de menos
banal. E, uma vez lá dentro, podia uma pessoa saltar de paraquedas num mundo
estranho, a milhares de léguas das filas de automóveis de Nova Iorque ladeados
de arranha-céus. Quando a porta que dá para a grande cidade se fecha atrás de
quem penetrou naquele clube, envolve-o uma atmosfera de caçadas de leões,
alpinismo e vida no Polo, tudo isto aliado à impressão de que a gente se acha
sentado no salão de confortável iate numa viagem em redor do globo. Troféus
rememorando caçadas de hipopótamos e de gamos, espingardas de caça grossa,
colmilhos, tambores de guerra, lanças, tapetes da índia, ídolos, miniaturas de
navios, bandeiras, fotografias e mapas rodeiam os membros do clube quando se
reúnem para jantar ou para ouvir conferencistas que vêm de regiões distantes.

Depois da minha viagem às ilhas Marquesas, fora eleito sócio efetivo do clube, e
como sócio mais novo raramente perdia uma reunião quando me encontrava na
cidade. De modo que, quando, naquela ocasião, entrei no clube numa noite
chuvosa de novembro, fiquei bastante surpreendido ao encontrar o salão num
estado que não era o habitual.

Via-se ao centro, no chão, uma jangada de borracha cheia de ar com rações e


acessórios de um bote, enquanto mesas e paredes estavam cobertas de
paraquedas, macacões de borracha, coletes salva-vidas e equipamento polar,
juntamente com galões de água destilada e outros curiosos inventos. O Coronel
Haskin, recentemente eleito membro da associação, com funções no laboratório
de equipamento do Comando de Material do Ar, ia fazer uma conferência e uma
demonstração de alguns novos inventos militares que, no seu modo de ver,
futuramente seriam de utilidade em expedições científicas, tanto no norte como
no sul.

Finda a conferência, houve forte e alegre discussão. O conhecido explorador


dinamarquês das regiões polares, Peter Freuchen, alto e corpulento, levantou-se
dando uma cética sacudidela na enorme barba. Não tinha nenhuma fé naquelas
invenções modernas. Contou que ele próprio, uma vez, numa de suas expedições
à Groenlândia, usara um bote de borracha e uma tenda de saco, em vez de se
utilizar de um caiaque e um iglu, o que quase lhe ia custando a vida. Primeiro
estivera perto de morrer enregelado numa tempestade de neve, porque o fecho-
ecler da tenda gelara tanto que o explorador não podia entrar. E depois estando a
pescar, o anzol espetou-se no bote de borracha cheio de vento: o bote furou e
submergiu debaixo dele como se fosse um trapo.

Ele e um amigo esquimó conseguiram chegar à praia dessa vez num caiaque que
lhes veio em socorro. Estava certo de que nenhum brilhante inventor moderno
era capaz de, no silêncio de seu laboratório, excogitar qualquer coisa melhor do
que aquilo que a experiência de milhares de anos tinha ensinado os esquimós a
usarem nas suas próprias regiões.

A discussão terminou com um surpreendente oferecimento do Coronel Haskin.


Os sócios efetivos do clube podiam, nas próximas expedições, escolher à
vontade qualquer dos novos inventos ali exibidos, com a condição única de, na
volta, transmitirem ao laboratório a própria impressão a respeito dos objetos.

Era assunto decidido. Fui eu o último a deixar as dependências do clube naquela


noite. Fiz questão de examinar nos mínimos detalhes todo aquele material novo
em folha, que tão inopinadamente me caíra nas mãos, e que estava à minha
disposição de mão beijada. Era justamente o de que eu precisava - o material
com que trataríamos de salvar a vida se, contrariando a expectativa, a jangada de
pau desse sinal de que ia ceder, e não tivéssemos nenhuma outra jangada ali por
perto.

Todo aquele material era ainda objeto de meus pensamentos durante o almoço, à
mesa do Lar dos Marinheiros no dia seguinte, quando um moço bem vestido e de
conformação atlética veio vindo com uma bandeja e se sentou à mesma mesa em
que eu estava.

Começamos a conversar, e pareceu-me que ele

tampouco era embarcadiço, mas sim engenheiro de Trondheim, com curso de


prática universitária, e que se achava na América para comprar acessórios de
maquinaria e adquirir experiência na técnica de refrigeração. Não residia longe
dali e vinha frequentemente fazer suas refeições no Lar dos Marinheiros por
causa da boa comida norueguesa que ali serviam.

Perguntou-me o que eu fazia e eu, em poucas palavras, o inteirei dos meus


planos. Disse que, se até o fim da semana não obtivesse resposta definitiva a
respeito do manuscrito, tornaria minhas providências para organizar a expedição
em jangada. Meu companheiro de mesa não dizia muita coisa, mas escutava com
grande interesse. Quatro dias depois tornamos a encontrar-nos na mesma sala de
refeições.
- Então? Está ou não resolvido a empreender a sua excursão? indagou.

- Estou, sim - respondi. - Vou partir.

- Quando?

- O mais breve possível. Se me demorar muito por aqui, virão as grandes rajadas
do Antártico e nas ilhas também começará a quadra dos furacões. Devo deixar o
Peru dentro de poucos meses, porém preciso antes arranjar dinheiro e organizar
o negócio todo.

- Quantos homens conta levar?

- Pensei em ter comigo seis homens; isto sempre representa alguma companhia a
bordo, além de ser o número preciso para os quatro quartos de revezamento no
governo da embarcação. Meu companheiro ficou uns momentos como que a
ruminar uma ideia no seu íntimo e depois explodiu com ênfase: - Diabo! Eu
gostaria de ir também! Poderia pesquisar medidas e provas técnicas. É claro que
o amigo terá de amparar sua experiência com acuradas medidas de ventos e de
correntes de ondas. Lembre-se que vai cruzar vastos espaços de oceano
virtualmente desconhecidos porque ficam fora das rotas dos navios. Uma
expedição como a sua pode obter interessantes investigações hidrográficas e
meteorológicas. Eu podia fazer bom uso da termodinâmica.

Acerca daquele homem que estava ali à minha frente eu nada podia saber, a não
ser que tinha semblante bom e amigo - o que já era alguma coisa.

- Pois muito bem - disse eu. - Iremos juntos.

Seu nome era Herman Watzinger; ambos éramos marinheiros-de-primeira-


viagem.

Alguns dias depois, levei Herman como meu hóspede ao Clube de Exploradores.
Lá demos com o explorador do Polo, Peter Freuchen.

Possui Freuchen a apreciável qualidade de nunca desaparecer no meio da


multidão. Grande como o colosso de Rodes e com uma barba respeitável, tem a
aparência de um mensageiro que tivesse vindo do coração da tundra. Cerca-o
uma atmosfera especial: é como se ao andar conduzisse um urso pardo.
Conduzimo-lo a um grande mapa pendurado na parede e falamos-lhe do nosso
plano de cruzar o Pacífico numa jangada indiana. Ele arregalou uns olhos azuis
de menino curioso e deu um sacalão às barbas enquanto nos escutava. Depois
bateu com a perna de pau no soalho e apertou o cinto alguns furos.

- Com a breca, rapazes! Quem me dera poder ir com vocês!

O velho viajante da Groenlândia encheu nossos canecos de cerveja e começou a


falar-nos da sua crença na existência de embarcações de povos primitivos e na
habilidade que teriam em viver a vida, adaptando-se à natureza, tanto em terra
como no mar. Ele próprio já tinha viajado em jangada, descendo os grandes rios
da Sibéria, e havia rebocado nativos em jangadas presas à popa do navio ao
longo da costa do Ártico. E, enquanto falava, dava repelões na barba e dizia que
certamente nos iríamos divertir a valer.

Com o caloroso alento de Freuchen, o plano ganhou tal vivacidade que deixou
de ser segredo, sendo logo divulgado pela imprensa escandinava. Já na manhã
seguinte bateram com força à minha porta no Lar dos Marinheiros; chamavam-
me ao telefone! lá embaixo, no corredor. O resultado da conversa foi que
naquela mesma noite eu e Herman estávamos tocando a campainha de um
apartamento situado num bairro elegante da cidade. Fomos recebidos por um
guapo moço, de chinelas de pelica, que usava chambre de seda sobre terno azul.
Dava quase impressão de languidez e, tendo um lenço perfumado diante do
nariz, se desculpava alegando defluxo. Não obstante, sabíamos que aquele jovem
se tornara famoso na América pelas suas façanhas como aviador durante a
guerra. Além do dono da casa, visivelmente calmo, estavam presentes dois
jovens jornalistas, vibrantes de atividade e de ideias. Reconhecemos num deles
um hábil correspondente.

Enquanto era servido um bom uísque, o dono da casa nos explicou seu interesse
pela expedição. Ofereceu-se para levantar o necessário capital, se eu escrevesse
artigos para os jornais e fizesse conferências pelo país na volta. Por fim,
chegamos a um acordo e erguemos um brinde à auspiciosa colaboração entre os
patrocinadores da expedição e os que nela iam tomar parte. Dali por diante todos
os nossos problemas econômicos estariam resolvidos, uma vez que deles se
encarregariam os patrocinadores, o que nos tranquilizou bastante.
Cumpria-nos, a mim e a Herman, imediatamente providenciar a tripulação e a
equipagem, construir uma jangada e fazer-nos ao largo antes que principiasse a
época dos furacões.

No dia seguinte, Herman apresentou sua demissão, e pusemo-nos a trabalhar a


sério. Eu já havia obtido do laboratório de pesquisas do Comando de Material do
Ar a promessa de que atenderia todo e qualquer pedido meu por intermédio do
Clube de Exploradores. Disseram que uma expedição como a nossa era
admiravelmente indicada para pôr à prova o equipamento. Como começo, era
excelente. Agora as tarefas mais importantes eram, primeiro que tudo, encontrar
quatro homens idôneos que se dispusessem a ir conosco na jangada, e arranjar
provisões para a viagem.

Um grupo de homens que devia viajar juntos, a bordo de uma jangada, devia ser
escolhido com cuidado. Do contrário, haveria rebelião e outras complicações
depois de um mês de isolamento no mar. Eu não queria marinheiros para
dirigirem a jangada; do manejo de uma jangada eles entendiam mais ou menos
tanto quanto nós, e, levado a bom termo o empreendimento não queria que
depois viessem a dizer que o bom êxito era talvez devido ao fato de nós sermos
melhores marujos do que os antigos construtores de jangada do Peru. Contudo, a
bordo precisávamos de um homem que afinal soubesse usar o sextante e marcar
a rota numa carta que servisse de base para todos os relatórios científicos.

- Conheço um pintor - disse eu a Herman. - E um sujeito espadaúdo que sabe


tocar guitarra e é muito engraçado. Estudou navegação e rodou pelo mundo em
navio várias vezes antes de voltar a viver em terra firme, para empunhar broxa e
paleta. Conhecemo-nos desde a adolescência e muitas vezes fizemos juntos
excursões pelas montanhas da pátria, acampando ao ar livre. Vou escrever
expondo-lhe o plano e tenho certeza de que ele virá.

- Este serve - disse Herman balançando a cabeça em sinal de aprovação. - Em


seguida precisamos de alguém que entenda de rádio-transmissão.

- Rádio-transmissão?! - perguntei, horrorizado. - Para que vamos precisar disso


numa jangada pré-histórica? Não será ali um objeto supérfluo?

- De nenhum modo. Trata-se de uma precaução sem nenhum efeito na sua teoria,
enquanto não mandarmos nenhum S.O.S. pedindo socorro. E teremos
necessidade do aparelho para transmitir observações sobre o tempo e outras
comunicações. Ao mesmo tempo, para nós será inútil receber avisos de próximas
rajadas, porquanto não há transmissões para aquela parte do oceano e, que
houvesse, de que nos serviriam na jangada?

Os argumentos pouco a pouco abafaram meus protestos, pois eu os formulara


movido mais pela ojeriza a apertar botões e girar manivelas.

- O curioso é que - comentei - por ter entrado em contato, pelo rádio, sobre
grandes distâncias mediante aparelhos minúsculos, fiz os melhores
relacionamentos. Durante a guerra puseram-me numa seção de. Cada pessoa tem
seus afazeres, mas é certo que escreverei a Knut Haugland e a Torstein Raaby
sobre o caso.

- Você os conhece?

- Conheço. Vi Knut pela primeira vez na Inglaterra em 1944. Tinha sido


condecorado pelos ingleses por ter tomado parte numa ação de paraquedistas que
frustrou os esforços dos alemães para obtenção da bomba atômica; ele foi, como
sabe, o radiotelegrafista na tremenda sabotagem por água verificada em Rjukan.
Quando o conheci, ele acabava de voltar de outra façanha na Noruega; a Gestapo
o captara com um aparelho secreto rádio-receptor no interior de uma chaminé na
Clínica da Maternidade de Oslo. Os nazistas o localizaram por meio de radio
goniômetro, sendo o edifício cercado por soldados alemães com pontos de
metralhadoras defronte de cada porta do prédio. O chefe da Gestapo, Fehmer,
encontrava-se em pessoa no pátio à espera de que fizessem Knut descer. Mas o
tiro saiu-lhe pela culatra. Fazendo c falar’ sua pistola, Knut foi abrindo caminho
desde a trapeira até o porão, e daí em direção aos fundos do edifício, onde
desapareceu pulando o muro do hospital, com uma saraivada de balas atrás de si.
Encontrei-o numa rádio secreta instalada num vetusto castelo inglês; ele havia
voltado a fim de organizar uma cadeia secreta com mais de cem estações
transmissoras na Noruega ocupada pelos alemães.

Eu estava justamente concluindo o curso de paraquedismo e nosso plano era


saltarmos juntos em Nordmark perto de Oslo. Mas justamente então os russos
marcharam para a região de Kirkenes, e um pequeno destacamento norueguês foi
enviado da Escócia a Finmark para se encarregar das operações, recebendo-as
por assim dizer, de todo o exército russo. Para lá fui enviado e aí fiquei
conhecendo Torstein.

Reinava então por aquelas bandas verdadeiro inverno ártico, e a aurora boreal
bruxuleava no firmamento estrelado, que se arqueava sobre nós, escuro como
breu, dia e noite. Quando penetramos nas pilhas de cinza da área abrasada de
Finmark, roxos de frio e vestidos de peles, um tipo alegre de olhos azuis e cabelo
louro espetado saiu de rojo de uma choupanazinha nas montanhas. Era Torstein
Raaby. Ele primeiramente fugira para a Inglaterra onde frequentou um curso e
depois se passara clandestinamente à Noruega, nas proximidades de Tromso.
Escondera-se com um aparelhozinho transmissor perto do couraçado Tirpitz e
durante dez meses enviara comunicações diárias à Inglaterra acerca de tudo
quanto se passava a bordo. Mandava as comunicações à noite ligando o
transmissor secreto a uma antena receptora instalada por um oficial alemão. Suas
comunicações regulares guiaram os bombardeiros ingleses que afinal meteram a
pique o Tirpitz.

Torstein fugiu para a Suécia, e de lá novamente para a Inglaterra. Foi então que
saltou de paraquedas, com um novo aparelho receptor, atrás das linhas alemãs,
junto aos ermos de Finmark.

Quando os alemães se retiraram, percebeu que se achava atrás das nossas linhas
e saiu do esconderijo para nos ajudar com o pequeno receptor, visto que nossa
principal estação tinha sido destruída por uma mina. Sou capaz de apostar que
tanto Knut como Torstein atualmente estão fartos de ficar à toa na pátria, e
teriam gosto em fazer uma viajata numa jangada de pau.

- Escreva-lhes indagando - alvitrou Herman. Então escrevi urna cartinha curta e


despida de qualquer artifício a Erik, Knut e Torstein:

’Vou atravessar o Pacífico numa jangada de madeira para provar a teoria de


que as ilhas dos mares do Sul foram povoadas por gente vinda do Peru. Quer ir
também? Não garanto nada, a não ser uma viagem gratuita ao Peru e de ida e
volta às ilhas dos mares do Sul, durante a qual V. terá boas ocasiões para
exercitar suas habilidades técnicas. Resposta sem perda de tempo. ”

No dia seguinte recebi de Torstein o seguinte telegrama: ”Irei. Torstein. ” Os


outros dois também aceitaram.
Em busca do sexto membro do grupo, ora nos detínhamos num homem, ora
noutro, mas surgia algum obstáculo. Entretanto, Herman e eu tivemos de atacar
o problema das provisões de boca. Não era nossa intenção comer carne de lhama
velho ou papas de kumara seca durante a nossa viagem, pois não íamos
empreendê-la para provar que nós mesmos já tínhamos sido índios. A nossa
intenção era pôr à prova o funcionamento e a qualidade da jangada inca, sua
resistência no mar e seu porte, e ver se os elementos realmente a impeliriam pelo
mar até a Polinésia com sua tripulação ainda a bordo. Nossos precursores nativos
certamente conseguiriam viver de carne-seca, de peixe, e de papas de kumara
seca a bordo, pois era principalmente disto que viviam em terra. E, na presente
viagem, íamos procurar provar se eles podiam obter peixe fresco e água de
chuva ao cruzar o oceano. Era pensamento meu estabelecer como regime
alimentar simples rações de campanha, bem conhecidas nossas do tempo da
guerra.

Justamente por essa época, chegara um novo assistente ao adido militar


norueguês em Washington. Eu tinha atuado como subcomandante da sua
companhia em Finmark e sabia que se tratava de pessoa de intensa atividade e
que gostava de atacar e resolver com energia qualquer problema que lhe
propusessem. Bjorn Rórholt pertencia a esse tipo de homens que se sentem mal
quando, superada uma dificuldade, não enxergam logo outra à frente.

Escrevi-lhe explicando a situação e pedi-lhe usasse sua habilidade em encontrar


um homem que me pusesse em contato com o serviço de abastecimento do
exército americano. Nossas probabilidades vinham de que o laboratório estava
em experiências com novas rações de campanha, que nós podíamos pôr à prova,
da mesma maneira que estávamos procedendo relativamente ao material
destinado ao laboratório da Força Aérea.

Decorridos dois dias, Bjorn nos telefonou de Washington. Tinha entrado em


contato com a seção de ligação estrangeira do

Departamento da Guerra americano, e lá queriam saber de que se tratava.

Eu e Herman embarcamos para Washington no primeiro trem.

Fomos encontrar Bjorn na sala do escritório do adido militar.


- Creio que tudo correrá bem - disse ele. - Amanhã seremos recebidos na seção
de ligação estrangeira logo que tivermos conosco uma carta do coronel.

O ’coronel’ era Otto Munthe-Kaas, adido militar norueguês.

Mostrou-se acolhedor e ainda mais disposto a dar-nos uma boa carta de


apresentação assim que soube o que pretendíamos.

Quando, no dia seguinte pela manhã, voltamos para buscar o documento, ele se
levantou de golpe e disse que seria melhor ir conosco pessoalmente. Partimos no
carro do coronel a caminho do edifício do Pentágono, o maior do mundo, onde
se acha instalado o Ministério da Guerra. O coronel e Bjorn iam no banco da
frente, envergando a melhor farda, enquanto que Herman e eu nos sentáramos
atrás e, pelo para-brisa, espiávamos o gigantesco prédio que se ostentava diante
de nós.

A ciclópica construção, com seus trinta mil funcionários e quase vinte e seis
quilômetros de corredores, ia formar a moldura da iminente ’conferência da
jangada’ com militares de alta patente.

Nunca, nem antes nem depois, a jangadazinha nos pareceu tão insignificante, a
Herman e a mim.

Depois de intermináveis caminhadas por subidas e corredores, chegamos à porta


da seção de ligação estrangeira e imediatamente, cercados por gente de
uniformes flamantes, estávamos sentados em redor de vasta mesa de mogno,
presidida pelo próprio chefe da seção de ligação estrangeira.

O severo e espadaúdo oficial de West Point, que se afigurava descomunal à


cabeceira da mesa, no começo teve certa dificuldade em entender que relação
podia haver entre o Ministério da Guerra americano e a nossa jangada de
madeira, mas as sensatas palavras do coronel e o resultado favorável de um
rápido exame coletivo feito pelos oficiais em volta da mesa, lentamente o
puseram do nosso lado, e ele leu com interesse a carta da seção de equipamento
do Comando de Material do Ar. Em seguida se levantou e deu a seu estado-
maior uma ordem lacônica no sentido de nos ajudar através dos canais
competentes e, desejando-nos felicidades na empresa, saiu da sala da
conferência. Fechada a porta atrás dele, um jovem capitão do estado-maior
segredou-me ao ouvido: - Aposto que vão obter o que desejam. O negócio tem
um ar de operação militar, trazendo um pouco de variedade ao nosso ramerrão
burocrático diário de tempo de paz; além disso, será uma boa oportunidade para
se pôr à prova metodicamente o material.

Imediatamente o oficial de ligação arranjou um encontro com o Coronel Lewis,


no laboratório experimental da Intendência Geral, e eu e Herman fomos levados
até lá de automóvel. O Coronel Lewis era um oficial afável, de tamanho
gigantesco e com jeito de desportista. Chamou imediatamente os homens
encarregados de experiências nas diferentes seções. Todos se mostravam bem-
dispostos conosco, sugerindo logo grande quantidade de material que gostariam
que experimentássemos devidamente. Excederam as nossas mais otimistas
expectativas quando nos mencionaram um chorrilho de coisas de que
poderíamos vir a precisar, desde rações de campanha até pomadas contra
queimaduras de sol e sacos de dormir à prova de salpicos. Em seguida levaram-
nos a diversos locais para que fôssemos examinando os objetos. Provamos
rações especiais, acondicionadas em caprichosas vasilhas; experimentamos
fósforos que feriam lume ainda quando mergulhados em água, fogareiros Primus
novos e barricas d’água, sacos de borracha e botas especiais, utensílios de
cozinha e facas que flutuavam, e tudo quanto uma expedição podia necessitar.
Olhei para Herman. Ele parecia um guapo menino, muito esperançado, a andar
com a tia rica por uma confeitaria cheia de bombons.

O coronel alto ia à frente mostrando todas aquelas boas coisas, e, depois de uma
volta completa pelas seções competentes, funcionários do estado-maior tinham
tomado nota dos diversos objetos de que iríamos precisar e respectivas
quantidades.

Parecia-me haver ganho a batalha e meu único desejo agora era correr para o
hotel a fim de, comodamente deitado na cama, pensar com calma no que me
cumpria fazer.

Nisso o amável coronelão diz-me de repente: - Bom. Agora vamos ter com o
patrão, pois a ele é que cabe resolver se lhes podemos dar estas coisas.

Caiu-me o coração aos pés. Com que então tínhamos de gastar de novo o nosso
latinório? E quem podia saber que espécie de homem era o ’patrão?
Verificamos que o patrão era um pequeno-oficial, de modos muito sisudos. Lá
detrás da mesa de trabalho ia-nos examinando com seus penetrantes olhos azuis
enquanto entrávamos no escritório. Fez-nos sentar.

- Que desejam esses cavalheiros? - perguntou com alguma rispidez ao Coronel


Lewis, sem desfitar seus olhos dos meus.

- Oh! pouca coisa - apressou-se Lewis em responder.

Em poucas palavras expôs a nossa projetada missão, enquanto o chefe escutava


pacientemente, sem fazer um gesto.

- E que nos darão eles em troca? - indagou, sem se mostrar impressionado.

- Ora - volveu Lewis em tom conciliatório - nossa esperança é que talvez a


expedição possa escrever relatórios sobre as novas provisões e sobre parte do
material nas árduas condições em que o irá usar.

Detrás da mesa de trabalho, o carrancudo oficial recostou-se na cadeira com


pouco estudada lentidão, tendo os olhos ainda cravados nos meus. Eu me
enterrei no fundo da cadeira quando o chefe disse com frieza: - Eu não vejo que
coisa nos poderão eles dar em troca.

Um silêncio sepulcral pesou sobre o aposento. O Coronel Lewis passou os dedos


no colarinho, e nenhum de nós disse uma palavra.

- Mas - falou subitamente o chefe, e podia-se vislumbrar agora certo brilho no


canto de seus olhos - a coragem e o espírito

de empreendimento também pesam na balança. Coronel Lewis, pode dar-lhes o


que necessitam!

Ainda me achava sentado, meio ébrio de prazer, no carro que nos reconduzia ao
hotel, quando Herman, a meu lado, se pôs a cacarejar uns risinhos esquisitos.

- Estás bêbado? - perguntei, inquieto.

- Não - disse ele rindo abertamente - mas estive a calcular que as provisões que
nos foram concedidas incluem 648 caixotes de abacaxi, a fruta da minha
predileção.
Há centenas de coisas que fazer, e quase todas ao mesmo tempo, quando seis
homens, uma jangada e sua carga têm de reunir-se em determinado ponto da
costa do Peru. E nós tínhamos três meses de prazo, mas não dispúnhamos de
nenhuma lâmpada de Aladim.

Voamos para Nova Iorque com uma apresentação fornecida pelo escritório de
ligação e fomos procurar o Professor Behre na Universidade de Colúmbia. Ele
era chefe do Comitê de Pesquisas Geográficas do Departamento da Guerra, e a
ele se devem as providências que permitiam a Herman ter finalmente todos os
valiosos instrumentos e aparelhos destinados a medidas científicas.

Daí voamos para Washington, a fim de nos encontrarmos com o Almirante


Glover, no Instituto Hidrográfico Naval. O velho lobo-do-mar, homem de boa
índole, chamou a todos os oficiais e, apontando para o mapa do Pacífico pregado
na parede, disse ao apresentar-lhes Herman e a mim: - Estes moços desejam
examinar os mapas das correntes. Prestem-lhes auxílio. Quando já a coisa ia em
bom pé, o coronel inglês Lumsden convocou uma reunião na Missão Militar
Britânica de Washington, a fim de discutir nossos futuros problemas e as
possibilidades de êxito. Foram-nos dados conselhos proveitosos, ao mesmo
tempo que recebíamos material inglês escolhido, que nos foi remetido da
Inglaterra por avião, para ser experimentado na expedição em jangada. O oficial-
médico inglês era entusiástico advogado de um misterioso pó tubarão’. Deviam-
se salpicar algumas pitadas do pó na água, se um tubarão se fizesse muito
atrevido, e o importuno desapareceria num átimo.

- Senhor doutor - disse-lhe eu cortesmente - podemos ter confiança neste pó?

- Bem - disse o inglês, sorridente - é justamente isto que queremos averiguar!

Quando o tempo é pouco e o aeroplano substitui o trem, ao passo que o


automóvel substitui as pernas, a bolsa da gente, vai murchando como um
herbário seco. Depois de termos gasto o dinheiro correspondente ao bilhete de
ida-e-volta, à Noruega, fomos bater à porta dos amigos e patrocinadores de Nova
Iorque para pormos em equilíbrio nossas finanças. Lá nos aguardavam
problemas que nos surpreenderam e desalentaram. O agente financiador estava
doente de cama, com febre, e seus dois colegas não dispunham de poderes a não
ser que ele tornasse de novo à atividade. Mantinham com firmeza nosso acordo
econômico, mas nada podiam fazer no momento. Pediram-nos que adiássemos o
negócio, pedido inútil, porquanto já não podíamos deter a marcha impetuosa dos
acontecimentos. Não nos restava outra alternativa senão prosseguir. Os amigos
financiadores concordaram em dissolver qualquer compromisso, deixando-nos
livres para agir com presteza e independência. E, assim, estávamos na rua, com
as mãos nas algibeiras onde só havia fiapos.

- Dezembro, janeiro, fevereiro - disse Herman.

- E, em caso de necessidade, março - acrescentei - mas aí teremos forçosamente


de partir.

Tudo o mais podia parecer obscuro, mas uma coisa era muito clara.

A viagem tinha um objetivo, e não queríamos que nos confundissem com os


acrobatas que rolam Niágara abaixo em barris vazios ou se equilibram em nós de
paus de bandeiras durante dezessete dias.

- Conosco não há processos de financiamento parecidos com os da goma de


mascar ou da Coca-Cola - disse Herman.

Neste ponto estávamos inteiramente de acordo. Podíamos arranjar coroas


norueguesas. Isto, porém, não resolveria os problemas no lado do Atlântico.
Podíamos candidatar-nos a um subsídio, mas dificilmente o conseguiríamos em
troca de uma teoria contestada; afinal exatamente por isso íamos empreender a
expedição em jangada. Não tardamos a perceber que nem imprensa nem
patrocinadores particulares ousavam aplicar dinheiro naquilo que eles próprios e
todas as companhias de seguros consideravam viagem suicida; se, porém,
voltássemos sãos e salvos, a coisa seria outra. As perspectivas eram tristonhas e
durante alguns dias não víamos possibilidade de sair do apuro. Foi então que o
Coronel Munthe Kaas surgiu novamente em cena., - Rapazes - disse-nos ele
vocês estão em maus lençóis. Para principiar, eis aqui um cheque. Quando
tornarem das ilhas dos mares do Sul, mo restituem.

Seu exemplo encontrou vários seguidores. Logo o empréstimo privado tomou tal
vulto que nos dissipou as dificuldades sem ser preciso o auxilio de agentes ou de
outros. Devíamos voar para a América do Sul e encetar a construção da jangada.
As antigas jangadas peruanas eram feitas de pau-de-balsa, que, quando seco, é
mais leve que cortiça. A balsa dá bem no Peru, mas somente além dos Andes.
Assim sendo, os navegadores da época dos incas subiam beirando a costa até o
Equador, onde derribavam as gigantescas balsas bem abaixo, na orla do Pacífico.
Nós pretendíamos fazer o mesmo.

Os problemas criados por uma viagem nos tempos de hoje são diferentes dos que
existiam na época dos incas. Acham-se à nossa disposição automóveis e
aeroplanos e agências de turismo, mas, para contrabalançar essas facilidades,
temos também uma coisa chamada fronteiras, com guardas de botões dourados
que põem em dúvida o álibi do interessado em viajar, lhe remexem na bagagem
e assinalam o peso em formulários próprios, se é que ele tem sorte suficiente
para o deixarem entrar. Foi o medo desses homens de botões dourados que nos
aconselhou a não desembarcar na América do Sul com caixotes e malas cheias
de objetos estranhos, tirar o chapéu e pedir cortesmente em mau espanhol
permissão para entrar no país e fazer-nos de vela numa jangada.

Iríamos dar com os costados no xadrez.

- Não - disse Herman. - Precisamos de uma apresentação oficial. Um dos nossos


amigos do triunvirato desfeito era correspondente junto às Nações Unidas e nos
levou até lá de carro.

Ficamos vivamente impressionados quando penetramos no grande salão da


assembleia, onde estavam sentados, lado a lado, homens de todas as nações a
escutar em silêncio o fluxo verbal de um russo de cabelos pretos, postado em
frente do descomunal mapa do mundo que amava a parede do fundo. Nosso
amigo correspondente tratou de, num momento mais tranquilo, abeirar-se de um
dos delegados do Peru, e, em seguida, de um dos representantes do Equador, e
traze-los para um tête-à-tête. Refestelados no cômodo sofá de couro da
antecâmara, escutaram avidamente nosso plano de cruzar o mar em apoio da
teoria de que homens de uma antiga civilização, oriundos do seu próprio pais,
tinham sido os primeiros a alcançar as ilhas do Pacífico. Ambos prometeram
informar os governos, assegurando-nos o amparo quando regressassem aos
respectivos países. Trygve Lie, passando pela sala de espera, veio ter conosco ao
saber que éramos patrícios seus, e alguém propôs que ele viesse conosco na
jangada. Mas para ele já havia bastante vagalhões mesmo em terra. O Dr.
Benjamim Cohen, do Chile, secretário assistente das Nações Unidas, era um
conhecido arqueólogo amador, e deu-nos uma carta para o presidente do Peru,
seu amigo pessoal.

Encontramos também no salão o embaixador norueguês Wilhelm von Munthe af


Morgenstierne, o qual, daí por diante, deu à expedição valioso apoio.
Compramos, pois, dois bilhetes e voamos para a América do Sul. Quando os
quatro possantes motores começaram a roncar um depois do outro, afundamo-
nos nas poltronas, bastante extenuados.

Veio-nos um indefinível sentimento de alívio ao vermos concluída a primeira


parte do programa e a convicção de que marchávamos inelutavelmente para a
aventura.
CAPÍTULO III
PARA A AMÉRICA DO SUL

Desembarcamos no Equador - Problemas suscitados pelo pau-de-


balsa - De avião para Quito - Degoladores e bandidos - Sobre os
Andes em jipe - Nas brenhas - Em Quevedo - Derribando balsas -
Descendo o Palenque em jangada - O sedutor porto naval - No
Ministério da Marinha em Lima - Com o presidente do Peru - Chega
Danielssen - De regresso a Washington - Doze quilos de papel - O
batismo-de-fogo de Herman - Construímos a jangada no porto naval -
Advertências - Antes da partida - O batismo da Kon-Tiki - Adeus à
América do Sul.

Ao atravessar o equador, a aeronave deu começo a impetuosa descida através de


nuvens da alvura do leite, que até então se estendiam por baixo de nós como
vastíssimo e deslumbrante lençol de neve sob sol abrasador. O vapor lanoso
aderiu às janelas até que se dissolveu e ficou pendente sobre nós como nuvens, e
apareceu o tapete verde da mata a ondular lá embaixo. Voávamos sobre a
república sul-americana do Equador e desembarcamos no porto tropical de
Guayaquil. Com as blusas da véspera, coletes e capotes no braço, entramos de
rojo em uma atmosfera de estufa, ao encontro de tipos meridionais tagarelas e
em trajes tropicais, e sentimos nossas camisas pegadas às costas como se fossem
papel molhado.

Fomos envolvidos pelos braços dos funcionários aduaneiros e da imigração e


quase carregados até o carro que nos levou para o melhor hotel da cidade, o
único que prestava.

Aí chegando, cada qual procurou um banheiro e se espojou debaixo da ducha


fria. Tínhamos chegado ao pais onde cresce a balsa e íamos comprar madeira
para fazer a jangada.

Passamos o primeiro dia aprendendo o sistema monetário e o pouco de espanhol


necessário para acharmos o caminho de volta para o hotel.

No segundo dia arriscamo-nos a sair dos nossos cubículos e alargar o círculo de


relações.
Depois de Herman haver satisfeito o

desejo que tinha desde a infância de tocar com a mão uma palmeira, enquanto eu
tornava barrigadas de salada de frutas, resolvemos ir negociar o pau-de-balsa.

Infelizmente, a coisa era mais fácil de dizer do que de fazer. Podíamos, é claro,
comprar pau-de-balsa em quantidade, mas não em toros inteiros como
queríamos. Já haviam passado os dias em que as balsas eram acessíveis na costa.
A última guerra pusera-lhes fim; as árvores tinham sido derribadas aos milhares
e embarcadas em navios para as fábricas de aeroplanos, por causa da extrema
leveza da madeira.

Informaram-nos que o único lugar onde havia enormes balsas era na mata, no
interior do sertão.

- Então temos de ir até lá e derribá-las nós mesmos - dissemos.

- Impossível - responderam as autoridades. - As chuvas começaram. Todas as


estradas para a selva se acham intransitáveis por causa da água empoçada e da
lama. Se quiserem pau-de-balsa, terão de voltar ao Equador daqui a seis meses;
por essa época as chuvas terão cessado e as estradas da região estarão enxutas.

No embaraço em que estávamos, fomos procurar Dom Gustavo von Buchwald, o


rei da balsa do Equador. Herman exibiu o esboço da jangada e as medidas da
madeira que precisávamos. O descarnado reizinho da balsa pegou
pressurosamente no fane e pôs em campo seus agentes. Estes encontraram
pranchas, tábuas leves e vigas curtas avulsas em cada serraria, mas não
conseguiram achar um único toro que servisse. Havia dois enormes toros, secos
como palha, no próprio depósito de Dom Gustavo, mas que não nos levariam
longe. Tornou-se evidente que a procura era inútil.

- Meu irmão tem uma vasta plantação de balsa - disse Dom Gustavo. - Chama-se
Dom Federico e reside em Quevedo, pequena cidade do sertão. Ele é capaz de
lhes arranjar tudo que os senhores precisam logo que pudermos entrar em
contato com ele, depois das águas.

Agora é inútil, por causa do estado em que fica aquela zona do pais na época das
chuvas.
Se Dom Gustavo dizia que era inútil, todos os entendidos em balsa no Equador
diriam o mesmo. De modo que estávamos ali em Guayaquil sem madeira para a
jangada e impossibilitados de ir às matas cortar as árvores nós mesmos, a não ser
meses depois, quando já seria demasiado tarde.

- O tempo é curto - disse Herman.

- E nós precisamos arranjar balsa - insisti. - A jangada tem de ser igual ao


modelo; do contrário o desastre será certo. Achamos no hotel um pequeno mapa
escolar, no qual as matas eram representadas em verde, as montanhas em
castanho e os lugares habitados tinham um círculo vermelho em redor. Vimos
que a região das matas se estendia sem interrupção desde o Pacífico até o sopé
dos Andes altaneiros. Tive uma ideia. Era evidentemente impraticável, no
momento, partindo da área litorânea e atravessando a selva, atingir as balsas em
Quevedo; mas, se pudéssemos chegar até as árvores a partir do sertão,
penetrando diretamente no interior da selva, pelas nuas montanhas nevadas da
cordilheira dos Andes? Havia aí uma possibilidade, a única que víamos à nossa
frente.

No aeródromo estava um pequeno avião de carga, desejoso de nos transportar a


Quito, capital desse estranho pais, na altura do planalto dos Andes, a 2.743
metros acima do nível do mar. Por entre caixotes e engradados vimos, em
fugitivo relance, matas verdes e rios espelhentos antes que as nuvens nos
tolhessem qualquer visão do mundo. Quando conseguimos vará-las, as baixadas
achavam-se encobertas por um oceano infindo de vapores em movimento; mas,
acima de nós, encostas de montanhas secas e calvos penedos se erguiam do
oceano de bruma, indo topetar contra o céu azul e refulgente. O avião foi
subindo pela encosta como se o fizesse num funicular invisível, e, embora o
próprio equador estivesse ali à volta, tínhamos de um lado e de outro cintilantes
campos de neve. Em seguida deslizamos entre morros e sobre um fértil planalto
alpestre, revestido de verdor primaveril, e ai desembarcamos ao pé da mais
singular das capitais do mundo.

Na maioria, os 150.000 habitantes de Quito são índios puros ou mestiços da


montanha, pois era ali a capital de seus antepassados, muito antes que Colombo
e nossa própria raça conhecessem a América. O traço característico da cidade
são os antigos mosteiros, repositórios de tesouros de arte de incalculável valor, e
outros magníficos edifícios que datam do tempo dos espanhóis, construídos de
tijolos queimados ao sol. Um labirinto de vielas vai serpeando por entre as
paredes de taipa, formigando de índios das montanhas em casacos sarapintados
de vermelho e com enormes chapéus de fabricação caseira. Alguns iam para o
mercado em burros de carga, enquanto outros estavam sentados recurvos, ao
longo das paredes de adobe, dormitando ao sol ardente. Vinham a seguir uns
poucos automóveis que, levando aristocratas de origem espanhola vestidos à
tropical, corriam a meia velocidade, buzinando continuamente para, ao longo das
ruelas que mal davam passagem, abrir caminho por entre crianças, burros e
indígenas de pernas nuas. Ali, nas alturas daquele planalto, o ar era de uma
transparência tão cristalina que as montanhas circundantes pareciam figuras no
painel formado pela rua, contribuindo para criar aquela atmosfera de um mundo
tão diferente.

Nosso amigo do avião de carga, Jorge - denominado ”aviador maluco” -


pertence a uma da tradicionais famílias espanholas de Quito. Instalou-nos num
hotel antiquado mas aprazível, e depois, ora conosco ora sem nós, procurava
arranjar-nos transporte sobre as montanhas e no interior da selva até Quevedo.
Nosso ponto de encontro à noite era uma velha cafeteria espanhola. Jorge vinha
cheio de más notícias: devíamos desistir completamente da ideia de ir a
Quevedo. Não havia jeito de obter homens nem veículos que nos levassem até o
alto das montanhas e muito menos às selvas, onde as chuvas já tinham
começado, e onde havia risco de assaltos para quem ficasse atolado na lama. No
ano anterior um grupo de dez engenheiros americanos, que faziam pesquisas
petrolíferas, foi encontrado morto por setas envenenadas na parte oriental do
Equador, onde ainda havia grande número de silvícolas que viviam inteiramente
nus e caçavam com flechas envenenadas.

- Alguns deles são degoladores profissionais - disse Jorge com voz cavernosa, ao
perceber que Herman, impassível, se servia de mais bife e vinho.

- Pensam que exagero? - prosseguiu ele em voz baixa. - Mas, embora seja
rigorosamente proibido, ainda há gente neste país que ganha a vida vendendo
cabeças humanas. É impossível impedi-lo, de modo que até hoje os índios das
matas cortam a cabeça de seus inimigos de outras tribos nômades. Despedaçam
o crânio e retiram tudo que ele contém e enchem de areia quente a pele vazia da
cabeça, de sorte que esta se contrai toda ficando reduzida a pouco mais que a
cabeça de um gato, sem perder a forma nem as feições. Estas cabeças encolhidas
de inimigos já foram, em outros tempos, valiosos troféus; atualmente não são
mais que artigos raros do câmbio negro. Intermediários mestiços procuram fazê-
los chegar às mãos dos compradores no litoral, os quais as vendem a turistas por
preços fabulosos.

Jorge olhou para nós, triunfante. Mal sabia ele que, naquele mesmo dia, eu e
Herman tínhamos sido atraídos ao cubículo de um carregador, onde nos foram
oferecidas duas cabeças dessas a 1.000 sucres cada uma. Hoje em dia muitas
dessas cabeças não são legítimas, não sendo mais que cabeças de macacos, mas
as duas que nos mostraram eram bem autênticas, de puros índios, e tão iguais a
uma cabeça humana natural que os traços mais insignificantes estavam
conservados. Eram cabeças de um homem e de uma mulher, do tamanho de duas
laranjas; a mulher era até bonita, conquanto apenas as pestanas e os longos
cabelos negros houvessem conservado seu tamanho natural. Arrepiei-me com tal
ideia, mas emiti minhas dúvidas sobre se haveria desses degoladores a oeste das
montanhas.

- Quem pode lá saber? - disse Jorge, hesitante. - E que diria o senhor se seu
amigo desaparecesse e a cabeça dele em miniatura fosse posta à venda? Foi o
que aconteceu uma vez com um amigo meu - acrescentou, encarando-me
inflexivelmente.

- Conte-nos como foi isso - disse Herman, mastigando bife mais devagar e
sentindo o gosto visivelmente aguado. Cuidadosamente pus de lado o garfo e
Jorge narrou sua história. Há tempos vivia ele com a mulher num posto
avançado da selva, bateando ouro e comprando todo ouro de outros bateadores.
O casal tinha, na ocasião, um amigo nativo do lugar, que trazia com regularidade
sua cota de ouro e a barganhava por outros objetos. Um dia esse amigo foi
assassinado na floresta. Jorge seguiu a pista do criminoso e ameaçou matá-lo
com um tiro. Ora, o assassino era um dos tais suspeitos de venderem cabeças
humanas em miniatura, e Jorge prometeu poupar-lhe a vida se ele lhe entregasse
imediatamente a cabeça. No mesmo instante o indivíduo exibiu a cabeça do
amigo de Jorge, agora do tamanho do punho de um homem. Jorge quase ficou
fora de si ao rever o amigo, que era o mesmíssimo, a não ser que se reduzira
àquele ponto.
Muito comovido, levou para casa a cabecinha e mostrou-a à sua mulher. Ao vê-
la, esta desfaleceu, e Jorge teve de esconder o amigo dentro de uma mala. Mas
havia tanta umidade na mala que a cabeça se cobriu de camadas de mofo,
obrigando Jorge a tirá-la dali de vez em quando e pô-la a secar ao sol. Amarrou-
a jeitosamente pelos cabelos num coradouro, mas a mulher de Jorge desmaiava
toda vez que a via. Um dia um ratinho conseguiu entrar na mala e deixou o
amigo muito maltratado. Jorge, penalizado, enterrou-o com todas as
formalidades num buraco aberto ao ar livre. Enfim, concluiu Jorge, tratava-se de
um ser humano.

- Jantar excelente - disse eu, para mudar de assunto.

Quando voltávamos para casa, no escuro, tive a desagradável impressão de que o


chapéu de Herman se lhe enterrara bem mais na cabeça, quase tapando as
orelhas. Mas o que ele tinha feito era simplesmente baixar mais a aba para se
proteger do frio da noite que vinha das montanhas.

No dia seguinte estávamos sentados em companhia do Cônsul Geral Bryhn e sua


mulher, debaixo dos eucaliptos de sua imensa casa de campo fora da cidade.
Bryhn achava pouco provável que nossa planejada excursão à selva equatoriana
em Quevedo tivesse como resultado alguma transformação radical no tamanho
dos nossos chapéus... mas havia salteadores justamente naquelas regiões que
estávamos tencionando visitar. Mostrou-nos recortes de jornais locais
anunciando que, quando chegasse a estação seca, iam ser enviados soldados para
acabar com os bandidos que infestavam os arredores de Quevedo. Ir em tal
momento a esse lugar seria rematada loucura, e nunca arranjaríamos guias ou
transporte. Enquanto conversávamos, vimos passar na estrada, a toda velocidade,
um jipe do escritório do adido militar americano, e isso deu-nos uma ideia.
Fomos à embaixada americana em companhia do cônsul-geral e nos avistamos
com o próprio adido militar. Era um bonito moço, muito alegre, de caqui e de
botas, que nos perguntou rindo como é que nos havíamos perdido naquelas
altitudes andinas quando, segundo a imprensa local, íamos empreender uma
viagem marítima em jangada.

Explicamos que a madeira da jangada se achava ainda em pé nas florestas de


Quevedo, e nos encontrávamos ali em pleno continente sem poder atingi-la.
Pedimos ao adido militar que nos emprestasse ou (1.°) um aeroplano e dois
paraquedas, ou (2°.) um jipe com um motorista que conhecesse a região. O adido
militar a princípio ficou boquiaberto diante do nosso arrojo; depois abanou a
cabeça, meio desanimado, e disse com um sorriso: - Pois bem, uma vez que não
me dão uma terceira alternativa, prefiro a segunda.

Na manhã seguinte, às cinco e um quarto, o jipe parou à porta do hotel e o


capitão de engenheiros equatoriano pulou do veículo declarando achar-se à nossa
disposição. A ordem era levar-nos a Quevedo, com ou sem lama. O jipe foi
atulhado de tambores de gasolina, pois por lá não havia bombas nem vestígios de
rodas de veículos ao longo da estrada que íamos tomar. Nosso novo amigo,
Capitão Agurto Alexis Alvarez, estava armado até os dentes, com facas e armas
de fogo, por causa das notícias que corriam a respeito dos bandidos. Tínhamos
vindo àquele país pacificamente, de blusa e gravata, para comprar madeira à
vista, no litoral, e todo o equipamento do jipe consistia num saco de conservas
alimentícias, uma máquina fotográfica de segunda mão adquirida às pressas e
um par de culotes caqui muito resistentes, um para cada um de nós. Demais, o
cônsul-geral nos tinha metido na cintura o enorme revólver ”parabellum” com
munição de sobra para exterminar tudo quanto se nos atravessasse no caminho.
O jipe varou zunindo as ruazinhas vazias, onde a lua brilhava com pálido clarão
espectral nas paredes de adobe caiadas, até que alcançamos o descampado e
corremos com vertiginosa celeridade por boa estrada arenosa em direção ao sul,
através da região montanhosa. Convinha-nos ir seguindo a cordilheira até a
aldeia nas montanhas de Latakunga, onde as casas sem janela dos índios se
amontoavam a trouxe-mouxe em redor da rústica igreja caiada de branco num
largo cheio de palmeiras. Aí desviamos tomando o trilho usado por mulas, que
ondulava e ziguezagueava para oeste, subindo morros e atravessando vales, já no
coração dos Andes.

Penetramos num mundo que jamais havíamos sonhado. Era o próprio mundo
montanhoso dos índios - a leste do sol e a oeste da lua - fora do tempo e além do
espaço.

Em todo o percurso não se nos deparou um carro, um veículo qualquer. O


tráfego constava de cabreiros de tíbias à mostra, cobertos de ponchos em cores
vivas e alegres, que tangiam manadas pouco ordeiras de imponentes lhamas de
pernas duras. De quando em quando famílias inteiras de índios vinham pela
estrada. O marido geralmente ocupava a dianteira, montado numa mula,
enquanto a mulherzinha trotava atrás, trazendo na cabeça toda a coleção de
chapéus e, às costas, o filhinho mais novo, num saco. Durante todo o trajeto
ainda fiava lã com os dedos. Mulas e burros seguiam atrás, a passo, carregados
de ramos, junco e louça de barro.

Quanto mais nos adiantávamos, menos índios encontrávamos falando espanhol,


e dentro em breve as possibilidades linguísticas de Agurto foram tão inúteis
quanto as nossas. Via-se um agrupamento de cabanas aqui e ali pelas montanhas;
eram em número cada vez menor as de barro, sendo a maioria de taquara e de
colmo. Tanto as choças como a gente queimada do sol e de cara engelhada
pareciam ter surdido da terra, mesma, sob a ação escaldante do sol da montanha
a bater de chapa nos rochedos dos Andes. Pertenciam ao penhasco, ao calhau, à
pastagem do planalto tão naturalmente como a erva à montanha. Pobres em
posses e baixos na estatura, os índios da montanha tinham a fibra inquebrantável
de animais bravios e a vivacidade infantil de um povo primitivo. Quanto menos
sabiam falar, mais sabiam rir. Para onde quer que nos virávamos, encarávamos
faces radiantes de dentaduras alvinitentes. Ninguém podia dizer que o homem
branco tivesse perdido ou ganhado um vintém naquelas regiões. Por ali não
havia postes para afixar avisos ou anúncios, nem direção para o trânsito, e se
uma latinha ou um pedaço de papel fosse atirado à beira do caminho,
imediatamente seria recolhido como objeto de uso doméstico.

Seguindo o percurso dado, fomos descendo encostas castigadas pelo sol e sem
uma moita ou árvore, até alcançarmos vales ermos e arenosos, onde só
medravam cactos, para afinal subirmos em linha reta até a eminência. Em volta
do cume viam-se campos de neve, e o vento frio era tão cortante que tivemos de
afrouxar a marcha para não nos enregelarmos de vez. Caindo aos pedaços e
metidos em camisas geladas, suspirávamos pelo ardor da selva.

Longos trechos tivemos de correr através de campos ladeados de altos morros,


sobre pedras e cristas tapizadas de erva, em busca de qualquer coisa parecida
com estrada. Ao atingirmos, porém, a muralha do oeste, onde a cordilheira dos
Andes cai impetuosamente para as baixadas, a senda que seguíamos era talhada
como que em prateleiras na rocha viva, estando nós rodeados de penhascos e
tremendos desfiladeiros. A nossa confiança ia toda no amigo Agurto que,
curvado sobre o volante, sempre achava meios e modos de se desviar dos
precipícios. Súbito, sentimos à frente violenta rabanada de vento; havíamos
alcançado o cume mais altaneiro da cadeia dos Andes, de onde a montanha
descaía abruptamente numa série de despenhadeiros lá embaixo, até a floresta
virgem, numa voragem sem fundo, a 3.600 metros abaixo de nós. Mas foi-nos
arrebatado da vista o espetáculo alucinante, pois mal havíamos chegado ao pico,
espessos cúmulos de nuvens se interpuseram entre nós e a selva incomensurável,
como se fossem vapores saídos do caldeirão das bruxas. Agora, porém, nosso
caminho se estendia sem empecilhos, em demanda das profundezas. Fomos
descendo, descendo sempre, descrevendo temerárias curvas e voltas à beira de
passos, fragas e arestas, enquanto o ar se fazia mais enevoado e mais morno, e
cada vez mais impregnado da carregada e asfixiante atmosfera de estufa que
subia da mata embaixo. Neste ponto começou a chuva. Fina, a princípio, depois
engrossou de tal maneira que tamborilava forte sobre o jipe e, logo, de um lado e
de outro, corria pelas rochas abaixo uma água cor de chocolate. Também nós
quase íamos escorregando dali abaixo, arrancados dos planaltos secos da
montanha à retaguarda e indo parar num outro mundo, onde o pau, a pedra e o
barro daquele resvaladouro eram moles e rijos ao influxo do musgo e da relva.
As folhas apontavam, em breve se tornavam gigantescas, pendendo como
umbelas verdes e gotejando sobre a ladeira do morro. Vieram depois os
primeiros débeis postos-avançados das árvores da selva, ostentando pesadas
franjas apendoadas de barbas de musgo e de plantas trepadeiras. Por toda parte
se ouvia um cachoar de água, um patinhar em poças. A proporção que os
declives se tornavam mais suaves, a selva ia-se enrolando rápida como uma
gigantesca legião verde de vegetais que fosse tragando o pequeno jipe, enquanto
este, na sua passagem pelos caminhos lamacentos e alagados, espadanava água
em todas as direções. Estávamos em plena selva. O ar era úmido e quente e todo
embalsamado do cheiro de vegetação.

A escuridão já havia baixado sobre a terra, quando, num cabeça, alcançamos um


agrupamento de choças com telhado de palmeira. Gotejando água morna, saímos
do jipe para passar uma noite debaixo de telhado enxuto. O enxame de moscas
que nos atacou na choça afagou-se na chuva do dia seguinte. Com o jipe cheio
de bananas e de outras frutas do sul, prosseguimos a jornada através da selva,
descendo sempre, conquanto pensássemos ter, há muito, atingido o centro. A
lama piorou, mas não nos deteve, e os bandidos mantinham-se a distância
ignorada. O veículo só teve de fazer alto quando o caminho ficou interceptado
pelo largo rio barrento que rolava pela selva abaixo. Paramos de todo, sem poder
deslocar-nos para cima nem para baixo, ao longo do rio. Numa clareira havia
uma choupana onde índios mestiços estavam estendendo uma pele de jaguar na
parede banhada de sol, enquanto cães e aves domésticas se espanejavam e
patinhavam aqui e ali ou farejavam e debicavam as sementes de cacau
espalhadas pelo chão para secarem ao sol. Quando o jipe chegou dando
solavancos, o lugar se reanimou. As pessoas que falavam espanhol disseram que
aquele era o rio Pelenque e que Quevedo ficava do outro lado. Ponte não havia;
o rio tinha correnteza e era fundo, mas mostraram-se dispostos a nos transportar
a nós e ao jipe, em jangada. O que eles chamavam jangada estava ali à margem.
Toros curvos, da grossura de braços e pernas, amarrados por fibras vegetais e
bambus, formavam a frágil jangada, que tinha o dobro do comprimento e largura
do jipe. Colocada uma prancha debaixo de cada roda, e com o Credo na boca,
empurramos o jipe para cima dos toros. Se muitos deles estavam submersos
debaixo da água barrenta, o fato é que aguentaram o jipe, a nós e a quatro
homens seminus cor-de-chocolate, que se fizeram ao largo valendo-se de duas
compridas varas que manejavam.

- Balsa? - perguntamos ao mesmo tempo eu e Herman.

- Balsa - respondeu com um meneio de cabeça um deles, aplicando nos toros um


pontapé pouco respeitoso.

Fomos colhidos pela corrente e rodopiamos com ímpeto rio abaixo, enquanto os
homens, empunhando as varas, a intervalos e lugares certos mantinham a
jangada numa rota diagonal através da corrente, superando-a, e afinal, em água
menos revolta, passando à outra margem. Foi esse nosso primeiro contato com o
pau-de-balsa e a primeira viagem numa prancha dessa madeira. Trouxemos a
jangada à terra, deixando-a em segurança na margem alcançada, e nos metemos
triunfalmente no jipe a caminho de Quevedo. Duas filas de casas de madeira
alcatroada, com urubus imóveis nos telhados de palmeira, formavam uma
espécie de rua, e era isto o lugar, sem tirar nem pôr. Os habitantes largaram o
que quer que estivessem carregando e, pretos e morenos, moços e velhos
apareceram em chusma nas portas e janelas. Aquela turba ameaçadora e tagarela
arremessou-se ao encontro do jipe. Subiram nele, enfiaram-se debaixo dele,
rodearam-no.

Nós defendíamos bravamente nossas poucas posses, enquanto Agurto, na


direção, realizava manobras incríveis. Nisso, o jipe teve um pneu furado e
pareceu se inclinar sobre um joelho.

Havíamos chegado a Quevedo e tivemos de submeter-nos aos abraços de boas-


vindas.

A propriedade rural de Dom Federico ficava um tanto retirada do rio. Quando o


jipe aos solavancos entrou no pátio, ao longo de uma vereda ladeada de
mangueiras, trazendo como passageiros a mim e a Herman, além de Agurto, o
motorista, eis que um magro velho, morador daqueles confins equatorianos, veio
ligeiro a nosso encontro com seu sobrinho Ângelo - rapazinho que lhe fazia
companhia naquelas brenhas. Dêmos-lhe recados da parte de Dom Gustavo, e
daí a pouco lá ficou solitário no pátio o nosso jipe, enquanto uma refrescante
bátega tropical desabava sobre a selva. Realizou-se uma refeição festiva no
bangalô de Dom Federico: leitões e galinhas crepitavam no braseiro, enquanto
tornávamos assento em torno da mesa alastrada de frutas locais e expúnhamos o
motivo da vinda. A chuva caindo lá fora sobre a mata enviava para dentro,
através das janelas de malha, um perfume de flores e de barro molhado. Dom
Federico tornara-se espevitado como um rapaz.

Sim, dizia ele, é claro que conhecia desde criança jangadas feitas de pau-de-
balsa. Há cinquenta anos, quando vivia perto do mar, os indígenas do Peru ainda
costumavam viajar ao longo da costa em enormes jangadas feitas de pau-de-
balsa para vender peixe em Guayaquil. Podiam trazer até duas toneladas de
peixe seco numa cabana de bambu no centro da jangada, ou levavam a bordo
mulheres, crianças, cães e galinhas. Agora, com as chuvas, não seria nada fácil
achar dessas colossais balsas como as que eles tinham usado em suas jangadas,
porquanto a água dos charcos e a lama já haviam tornado impossível chegar-se
até a plantação de balsas na floresta, mesmo a cavalo. Entretanto, Dom Federico
faria o que estivesse a seu alcance; podia ainda haver uma ou outra árvore na
floresta perto do bangalô, e não precisaríamos de muitas.

Quase à boca da noite, a chuva estiada por algum tempo, fomos dar uma volta
para ver as mangueiras que circundavam o bangalô. No mesmo lugar, Dom
Federico tinha todas as qualidades imagináveis de orquídeas silvestres,
pendentes dos ramos, servindo-lhes de vasos quengas de coco. Essas plantas
raras, diferentes das orquídeas comuns, exalavam admirável perfume. Herman
estava se inclinando para poder aspirar melhor o perfume de uma delas, quando
uma coisa parecida com uma comprida e fina enguia cintilante surdiu de entre as
folhas acima de sua cabeça. Um golpe fulminante do chicote de Ângelo atirou ao
solo uma agitada cobra. Mais alguns segundos e o réptil estava com o pescoço
pregado à terra por meio de uma forquilha que daí a pouco lhe esmagou a
cabeça.

- Mortal - disse Ângelo, exibindo duas recurvas presas cheias de veneno, para
mostrar convincentemente o que queria dizer. Agora, nos parecia enxergar
serpentes venenosas emboscadas na folhagem por toda parte. Por isso preferimos
entrar cautelosamente em casa com o troféu de Ângelo pendendo inerte de uma
vara. Herman sentou-se para tirar a pele do ofídio. Dom Federico estava
contando histórias fantásticas de cobras venenosas e de jiboias colossais quando,
de repente, reparamos na parede a sombra de dois enormes escorpiões do
tamanho de lagostas. Atiraram-se um contra o outro, e com as tenazes
empenharam-se numa luta de vida e morte, virando para cima a parte traseira
mantendo o venenoso ferrão da cauda curvado e já pronto para o golpe fatal.

Era um espetáculo horrível, e só depois de bulirmos um pouco com o candeeiro,


vimos que este projetara uma sombra literalmente gigantesca de dois escorpiões
ordinários, do tamanho de um dedo comum, que estavam lutando na
extremidade da escrivaninha.

- Deixem-nos lá - disse Dom Federico, rindo. - Um há de matar o outro, e nós


precisamos de sobrevivente na casa para afugentar as baratas. Basta ajustarem
bem à cama o seu cortinado de filo e sacudirem a roupa antes de vesti-la, que
não acontecerá nada. Já fui picado muitas vezes por escorpiões e não morri disse
o velho rindo.

Dormi bem, mas acordava pensando em bichos venenoso,” cada vez que um
morcego guinchava com mais ruído ou uma lagartixa passava perto demais do
meu travesseiro. No dia seguinte nos levantamos cedo para ir à procura de
balsas.

- Convém sacudirmos nossas roupas - disse Agurto, e ainda não acabara de falar
quando um escorpião lhe caiu da manga da camisa, enfiando-se, num abrir e
fechar de olhos, numa frincha do soalho.
Logo depois de nascer o sol, Dom Federico mandou seus homens a cavalo em
todas as direções para procurarem balsas acessíveis, ao longo dos caminhos. Nós
três, Dom Federico, Herman e eu, formamos nosso grupo, e não tardamos a
achar caminho para a clareira onde havia uma anosa árvore gigantesca, de cuja
existência Dom Federico sabia.

Sobressaía ela entre as que a rodeavam, tendo o tronco 0,90m de grossura. À


moda polinésia batizamos a árvore antes de tocar-lhe; dêmos-lhe o nome de Ku,
divindade polinésia de origem americana. Em seguida, brandimos o machado
cravando-o no tronco da balsa até ecoarem pela floresta os nossos golpes. Mas
cortar uma balsa seivosa era o mesmo que cortar cortiça com um machado sem
gume; o instrumento não fazia mais que ricochetear, e ainda não tinha eu
descarregado muitas machadadas quando Herman teve de render-me. O
machado passou assim de mão em mão várias vezes, enquanto as lascas voavam
e o suor pingava na canícula da selva.

Indo já alto o dia, Ku permanecia de pé como um galo sobre uma perna só,
estremecendo debaixo dos golpes; pouco depois cambaleou e tombou com
tremendo estalido sobre as árvores vizinhas, arrastando na pesada queda
enormes galhos de árvores menores. Tínhamos arrancado os ramos do tronco e
íamos começar a tirar a casca :em ziguezague à maneira indígena, quando
Herman de repente deixou cair o machado e deu um pulo para o ar como se
estivesse executando uma dança guerreira da Polinésia, com a mão agarrada à
perna. Da calça caiu-lhe uma formiga brilhante do tamanho de um escorpião e
com longo dardo na cauda. Seu crânio devia ser como a tenaz de uma lagosta,
porque foi quase impossível esmigalhá-lo no chão com o salto do calçado.

- Um 'hongo’ - explicou Dom Federico, contrariado. - É bicho pior que o


escorpião, mas não oferece perigo ao homem sadio.

Herman sentiu-se adoentado e um pouco enfraquecido durante vários dias, o que


não o impediu de galopar conosco a cavalo pelos caminhos da selva, à procura
de novas balsas gigantescas da floresta. De quando em quando, ouvíamos um
rangido e um estalo seguido de tremendo baque, algures na mata virgem: Dom
Federico balançava a cabeça com ar satisfeito. Aquilo queria dizer que seus
índios mestiços haviam derribado mais uma gigantesca árvore para a jangada.
Dentro de uma semana Ku tinha sido seguida por Kane, Kama, lio, Mauri, Rã,
Rangi, Papa, Taranga, Kura, Kukara e Hiti, doze possantes balsas, todas
batizadas em honra de lendárias figuras da Polinésia, cujos nomes tinham sido,
juntamente com Tiki, levados do Peru por sobre o mar. Os toros, porejando
seiva, eram arrastados pela selva primeiro por cavalos e finalmente pelo trator de
Dom Federico, que os trazia até a margem do rio em frente ao bangalô.

Os toros, cheios de seiva, de maneira nenhuma eram leves como cortiça.


Pesavam certamente uma tonelada cada, e não foi sem ansiedade que esperamos
o momento em que os veríamos flutuar na água. Fomos rolando um por um até a
beira do rio; ali amarramos uma corda feita de sólidas trepadeiras à extremidade
dos toros para que eles não se fossem com a correnteza quando os colocássemos
na água. Depois os fizemos rolar margem abaixo até dentro do rio. Foi um
borrifar d’água em todas as direções. Rodopiaram e boiaram, quase tanto acima
quanto abaixo da água, e se nós íamos ao longo deles, permaneciam firmes.
Ligamos as madeiras com cipó resistente das árvores da selva, de modo que
fizemos duas jangadas provisórias, uma rebocando a outra. Em seguida
enchemos as jangadas com todos os bambus e cipós que poderíamos necessitar
mais tarde, e eu e Herman subimos a bordo com dois homens de uma estranha
raça mista, com os quais não tínhamos linguagem comum.

Quando cortamos as amarras, fomos colhidos pelo redemoinho das águas e


levados rio abaixo pela corrente com regular velocidade. A última coisa que
pudemos ver por entre o chuvisca, ao contornarmos a primeira ponta de terra,
foram os nossos excelentes amigos, de pé na extremidade da ponta de terra,
defronte do bangalô, acenando-nos. Depois, nos metemos sob o pequeno abrigo
de folhas de bananeira, deixando o governo da embarcação aos dois peritos
trigueiros que se haviam postado um à proa e outra à popa, cada qual segurando
um remo colossal. Com a maior calma mantinham a jangada no centro da
correnteza, e fomos bailando rio abaixo, no meio do torvelinho, entre árvores
submersas e bancos de areia.

Lá estava a selva como uma sólida muralha ao longo das margens, de um lado e
de outro.

Papagaios e outras aves de cores vivas saíam voando da espessa folhagem


quando passávamos. Uma vez ou duas jacarés se atiravam ao rio, tornando-se
invisíveis na água lamacenta. Mas não tardou que víssemos um bicharoco bem
mais notável. Era uma iguana, ou lagarto gigante, do tamanho de um crocodilo,
mas de goela enorme e dorso franjado.

Cochilava na margem barrenta como se estivesse a dormir desde os tempos pré-


históricos, e não se mexeu à nossa passagem. Os remadores nos fizeram sinal
para que não atirássemos. Logo depois vimos um espécime menor, com cerca de
90 centímetros. Ia correndo por um galho grosso que pendia sobre a jangada.

Correu apenas até se ver a salvo e então sentou-se. Sua cor brilhante era azul e
verde. Ao passarmos, encarou-nos com olhos gélidos de cobra. Mais tarde
passamos por um outeiro coberto de feto, em cujo topo estava deitado o maior
iguana de todos. Parecia a silhueta de um dragão chinês com franjas, esculpido
em pedra, imóvel ali contra o céu, de cabeça e peito erguidos. Nem sequer
voltou a cabeça ao descrevermos a curva debaixo do outeiro, desaparecendo na
selva.

Mais abaixo sentimos fumaça e passamos por diversas cabanas cobertas de palha
que se achavam em clareiras ao longo da margem. Nós na jangada éramos alvo
da atenção de pessoas que estavam em terra e tinham ar sinistro, caldeamento
pouco agradável de índio, negro e espanhol. As embarcações que usavam,
grandes pirogas, ficavam amarradas na margem. Tendo chegado a hora do
repasto, rendemos nossos amigos nos remos de direção enquanto eles frigiam
peixe num fogareirinho regulado com barro úmido. Também faziam parte dos
pratos de bordo ovos, frango assado e frutas meridionais, enquanto os toros de
madeira se transportavam a si próprios e a nós, a boa velocidade, através da
selva, na direção do mar. Que importância tinha agora que a água molhasse e
jorrasse em torno de nós? Quanto mais chovia, mais rápida era a correnteza.
Quando as trevas caíram sobre o rio, instalou-se na margem uma orquestra
torturante para os ouvidos. Rãs e sapos coaxavam, grilos cricrilavam e
mosquitos zumbiam num arrastado coro de muitas vozes. De vez em quando o
grito agudo de um gato selvagem vibrava na escuridão, logo seguido de outro e
ainda de outros, soltados por aves que o susto causado pelos animais noctívagos
da selva punha em fuga. Uma vez ou duas vimos o brilho de uma fogueira em
choça longínqua e, de caminho, ouvíamos vozes humanas esganiçadas e latidos
de cães. Mas, na maior parte do tempo, sentíamo-nos sós a ouvir a orquestra da
selva sob as estrelas. Então o sono e a chuva nos impeliam para dentro da cabana
de folhas, onde íamos dormir mantendo as pistolas nos coldres, prontos para
qualquer eventualidade.

Quanto mais descíamos o rio, mais numerosas se tornavam as choças e granjas, e


logo principiaram a aparecer nas margens aldeias regulares. O transporte aqui
era feito por meio de pirogas tocadas por longas varas, e de onde em onde
víamos uma pequena jangada de pau-de-balsa carregada de bananas verdes. No
ponto de junção do rio Palenque com o Guaias, a água tinha subido tanto que o
vapor-de-rodas navegava solerte entre Vinces e Guayaquil abaixo da costa. A
fim de poupar tempo precioso, eu e Herman tornamos lugar a bordo do vapor-
de-rodas e singramos, através daquela região plana e de população densa em
direção à costa. Nossos amigos morenos deviam seguir sozinhos, vogando rio
abaixo com a madeira.

Em Guayaquil nos separamos Herman e eu. Ele ficou na foz do Guaias, para
deter os toros de balsa que vinham vogando. Daí tinha de levá-los como carga
num vapor costeiro, até o Peru, onde ia dirigir a construção da jangada e fazer
uma cópia fiel das vetustas embarcações indígenas. Quanto a mim, tornei o avião
de carreira que se dirigia para Lima, capital do Peru, a fim de procurar local
adequado à construção da jangada. O aeroplano subiu a grande altura
perlongando a costa do Pacífico, tendo a um lado as desertas montanhas do Peru
e do outro o cintilante oceano muito longe, abaixo de nós. Era aqui que nos
faríamos ao mar a bordo da jangada. Visto de tais eminências, o oceano se
afigurava infindo. Céu e mar se confundiam num horizonte longínquo,
indefinível, lá para as bandas do ocidente, e eu não me podia livrar da ideia de
que ainda para lá daquele horizonte muitas centenas de planícies oceânicas
semelhantes se curvavam em torno de um quinto da terra, antes de haver algum
outro continente, na Polinésia. Tentei lançar meus pensamentos algumas
semanas adiante, quando estaríamos vogando numa insignificante jangada sobre
aquele vastíssimo campo azul lá embaixo, mas depressa afugentei o pensamento,
porquanto me dava a mesma desagradável impressão que eu sentiria se me visse
forçado a saltar de paraquedas.

Ao descer em Lima, tornei o bonde, que me conduziu até o porto de Callao, a


fim de procurar um lugar onde pudéssemos construir a jangada. Vi num relance
que o porto inteiro estava coalhado de navios, guindastes e armazéns, barracões
para a alfândega, escritórios portuários e quejandas repartições. E se havia
alguma praia livre mais adiante, estava formigando de banhistas em tal
quantidade que não faltariam curiosos para desmontar nossa pobre jangada assim
que virássemos as costas. Callao era então o porto mais importante num pais de
sete milhões de habitantes, brancos e trigueiros. No Peru os tempos tinham
mudado mais que no Equador, para os construtores de jangada, e só vi uma saída
- penetrar no interior dos altos muros de concreto que rodeavam o porto naval,
onde homens armados montavam guarda ao portão de ferro e dirigiam olhares
ameaçadores e desconfiados sobre mim e outras pessoas que, sem autorização,
tentassem passar. Se a gente pudesse penetrar ali, estaríamos seguros.

Tendo travado conhecimento com o adido naval peruano em Washington, eu


trazia dele uma carta de recomendação. Com a carta dirigi-me no dia seguinte ao
Ministério da Marinha e solicitei audiência ao ministro, Sr. Manuel Nieto. Ele
atendia pela manhã na elegante sala de visitas do ministério, refulgente de
espelhos dourados. Passado algum tempo, chegou o próprio titular em uniforme
de gala. Era um oficial baixo e atarracado, carrancudo como Napoleão, usando
linguagem lacônica e cheia de franqueza. Perguntou-me de que se tratava e eu
lhe disse qual era o meu intento. Queria permissão para construir uma jangada de
pau-de-balsa no estaleiro naval.

- Caro jovem - disse o ministro tamborilando inquieto os dedos - o senhor errou


de porta.

Eu me sentiria feliz se pudesse ajudá-lo, mas a ordem tem de vir por intermédio
do ministro do Exterior. Não posso deixar que estrangeiros penetrem na área
naval nem facultar-lhes o uso do estaleiro como fosse uma coisa muito natural.
Dirija-se por escrito ao ministro do Exterior, e felicidades!

Fiquei apreensivo a pensar em papéis circulando e desaparecendo em pastas ou


gavetas.

Felizes os tempos de Kon-Tiki quando não havia nenhuma dessas formalidades!

Falar pessoalmente com o ministro do Exterior não era coisa fácil.

A Noruega não tinha legação local no Peru, não podendo, portanto, o nosso
prestimoso Cônsul-Geral Bahr levar-me senão até os consultores do Ministério
do Exterior. Receei que o negócio houvesse chegado a um ponto terminal. A
carta do Dr. Cohen ao presidente da República podia me ser útil agora. Ai, por
intermédio do ajudante-de-ordens, solicitei uma audiência com Sua Excelência,
Dom José Bustamante y Rivero, presidente do Peru. Um ou dois dias depois
comunicaram-me que eu devia estar em Palácio às doze horas.

Lima é uma cidade moderna com uns 500.000 habitantes, e acha-se esparramada
sobre verde planície, no sopé das montanhas desertas. Pela sua arquitetura, e
graças não menos a seus jardins e pomares, é certamente uma das mais belas
capitais do mundo tendo um pouco da Riviera moderna e da Califórnia,
salpicadas aqui e ali da velha arquitetura espanhola. O palácio presidencial fica
no centro da cidade e é fortemente guardado por sentinelas armadas que se
trajam de cores alegres. Uma audiência no Peru é artigo de luxo, e pouca gente
terá visto o presidente, a não ser na tela de cinema. Soldados portando brilhantes
bandoleiras me escoltaram escada acima até o fim do longo corredor; aí meu
nome foi tomado e registrado por três civis que me introduziram, por uma
descomunal porta de carvalho, na sala que continha uma mesa comprida e duas
filas de cadeiras. Um homem de branco me recebeu, mandou-me sentar e sumiu.
Momentos depois, abriu-se uma grande porta e eu fui introduzido numa sala
muito mais bonita, onde uma personagem imponente, em uniforme impecável,
se adiantou ao meu encontro.

”O presidente”, pensei empertigando-me. Mas qual! O homem de uniforme


agaloado de ouro ofereceu-me uma antiga cadeira de espaldar alto e
desapareceu. Haveria um minuto que me sentara na cadeira, quando mais outra
porta se abriu e, com uma inclinação, um criado me introduziu num salão
dourado, de mobílias douradas e decoração de fino gosto. O sujeito desapareceu
tão depressa como havia surgido, e eu fiquei calmamente sentado num sofá
antigo. De onde estava, eu via uma enfiada de salas vazias e as portas abertas.
Era tanto o silêncio, que pude ouvir alguém tossindo moderadamente em algum
aposento bem distante. Eis que se aproxima alguém de andar firme; ponho-me
imediatamente de pé e, hesitante, cumprimento o imponente cavalheiro fardado.
Mas qual! Este também não era o presidente. Entendi, porém, suficientemente o
que ele dizia, coligindo que o presidente me mandava suas saudações e estaria à
disposição dentro em breve, assim que terminasse o despacho coletivo com os
ministros.

Dez minutos depois, outros passos firmes quebraram novamente o silêncio.


Dessa vez entrou um homem cheio de dragonas e galões dourados. Saltei
velozmente do sofá e fiz uma reverência profunda. O recém-chegado curvou-se
ainda mais profundamente. Foi-me levando através de diversas salas e me fez
subir uma escada com espessa alcatifa. Depois deixou-me numa acanhada saleta
em que havia uma cadeira de couro e um sofá. Aí entrou um homenzinho de
terno branco, e esperei resignadamente para ver aonde ele pretendia levar-me.
Mas ele não me levou a parte alguma. Saudou-me com afabilidade e continuou
de pé. Era o Presidente Bustamante Rivero. O presidente pouca coisa mais de
inglês sabia que eu de espanhol, de maneira que depois de nos termos
cumprimentado e depois que ele, com um gesto, me convidou a sentar, o nosso
vocabulário comum estava esgotado. Gesticulação e sinais valem alguma coisa,
mas não conseguem para alguém interessado permissão de construir uma
jangada num porto naval do Peru. A única coisa que percebi foi que o presidente
não entendia o que eu estava dizendo, e ele próprio chegara à mesma conclusão
com maior rapidez, porque, decorridos alguns instantes, desapareceu para voltar
com o ministro da Aeronáutica. O

General Roveredo, ministro da Aeronáutica, era um formidável atleta. Trajava


uniforme da Força Aérea ostentando asas no peito. Falava inglês
esplendidamente com sotaque americano.

Pedi desculpas pelo equívoco e disse que não era do aeródromo que eu estava
requerendo franquia, mas do porto naval. O general riu-se e explicou que só
havia sido chamado como intérprete. A teoria foi sendo traduzida aos poucos
para o presidente, que escutava com atenção e fazia atiladas perguntas mediante
o Gen. Roveredo. Por fim disse: - Se é admissível que as ilhas do Pacífico
tenham sido descobertas por intermédio do Peru, este país tem interesse na
expedição. Diga-nos se podemos fazer alguma coisa pelo senhor.

Pedi que me concedesse um local dentro da, área naval, onde pudéssemos
construir a jangada; acesso às oficinas navais; lugar para depósito de material e
franquia para introduzi-lo no país; uso da doca seca e pessoal naval para nos
ajudar no trabalho, bem como uma embarcação que nos rebocasse à sirga, ao
sairmos da costa para o alto-mar.

- Que pede ele? - perguntou com ansiedade o presidente, de tal sorte que até eu
entendi.
- Não muito - respondeu Roveredo, piscando-me um olho.

O presidente, satisfeito, meneou a cabeça em sinal de aprovação. Antes de


terminar a entrevista, Roveredo prometeu que o ministro do Exterior receberia
ordens diretas do presidente e que o ministro da Marinha Nieto teria carta branca
para nos dar todo o auxílio que solicitássemos.

- Deus vos guarde a todos! - disse o general, rindo e meneando a cabeça. O


ajudante-de-ordens entrou e me escoltou até junto a um mensageiro que estava à
espera.

Naquele dia os jornais de Lima publicaram uma nota acerca da expedição


norueguesa feita em jangada, que partiria do Peru; ao mesmo tempo anunciaram
que uma expedição cientifica sueco-finlandesa havia concluído os estudos entre
os silvícolas das regiões amazônicas. Dois suecos integrantes da expedição ao
Amazonas tinham subido o rio em canoa até o Peru e acabavam de chegar a
Lima. Um deles era Bengt Danielssen, da Universidade de Upsala.

Ele ia agora estudar os indígenas das montanhas do Peru.

Recortei a noticia e, quando no quarto do hotel escrevendo para Herman a


respeito do lugar da construção da jangada, fui interrompido por uma pancada na
porta. Entrou um tipo alto, queimado do sol, em trajes tropicais, e quando tirou o
capacete branco, parecia que a barba inteiramente vermelha lhe tinha queimado
o rosto e chamuscado o cabelo fino. Vinha das brenhas, mas seu lugar era,
evidentemente, um salão de conferências.

”Bengt Danielssen”, imagino.

Bengt Danielssen - disse o homem, fazendo pessoalmente sua apresentação.

”Ouviu falar na jangada”, pensei comigo convidando-o a sentar-se.

- Acabo de ouvir falar nos planos acerca da jangada - disse o cientista.

”E agora vem deitar por terra a teoria, porque é um etnólogo”, pensei.

- E vim para saber se me aceitam na expedição - acrescentou pacatamente.


Interesso-me pela teoria da migração.
Eu nada sabia a respeito do homem, senão que era um cientista que acabava de
chegar das profundezas da selva. Se, porém, o taciturno sueco tinha ânimo de se
abalançar a uma expedição em jangada em companhia de cinco noruegueses, era
sinal de que não se tratava de um não-me-toques. Nem aquela barba imponente
lograva ocultar sua índole pacata e gênio alegre. Bengt tornou-se o sexto
integrante da tripulação, pois o lugar ainda estava vago. Ele era o único que
falava espanhol. Quando, alguns dias mais tarde, o avião roncava rumo ao norte,
ao longo da costa, tornei a olhar com respeito para aquele intérmino mar azul lá
embaixo. Parecia suspenso a flutuar solto no próprio firmamento.

Em breve nós seis iríamos ser amontoados como micróbios numa conchinha, lá
onde a água era tanta que parecia alagar todo o longínquo horizonte ocidental.
Tínhamos de encarar aquele mundo desolado, sem podermos dispor senão de
alguns passos a separar-nos uns dos outros.

Em todo caso, por ora havia espaço bastante dando-nos liberdade de ação.
Herman estava no Equador esperando a madeira. Knut Haugland e Torstein
Raaby acabavam de chegar a Nova Iorque por via aérea. Erik Hesselberg vinha
de Oslo por mar, com destino ao Panamá.

Eu estava a caminho de Washington em aeroplano, e Bengt achava-se no hotel


em Lima pronto para a partida, apenas aguardando os outros. Desses indivíduos,
não havia dois que se tivessem conhecido antes, e eram todos tipos inteiramente
diferentes. Assim sendo, só depois de várias semanas passadas juntos na jangada
é que poderíamos nos cansar de ouvir nossas respectivas histórias. Nenhuma
nuvem tempestuosa e carregada de baixa pressão, nem o pior temporal nos
oferecia maior ameaça do que o perigo, sempre possível, de uma súbita bátega
psicológica entre seis homens encerrados durante meses numa jangada ao leu.

Em tais circunstâncias, uma boa piada era muitas vezes tão prestadia quanto um
salva-vidas.

Em Washington ainda era inverno rigoroso, com muito frio e neve.

Quando eu voltei era fevereiro. Bjorn tornara a seu cargo o rádio e havia
interessado a Liga Americana de Radioamadores pela recepção de comunicações
vindas da jangada. Knut e Torstein estavam atarefados em ajustar a transmissão,
que seria feita ora com transmissores de onda curta construídos especialmente
para o nosso propósito, ora com aparelhos de sabotagem usados durante a
guerra. Havia mil coisas para preparar, grandes e miúdas, se quiséssemos levar a
bom termo o que planejávamos fazer na viagem.

E avultavam nos nossos classificadores e arquivos as pilhas de papel.

Documentos militares e civis, brancos, amarelos e azuis, em inglês, francês e


norueguês. Mesmo uma excursão em jangada haveria de custar à indústria de
papel, numa época prática como a nossa, a metade de um pinheiro. Leis e
regulamentos estavam continuamente a atar-nos as mãos, e era mister cada vez ir
desfazendo nó por nó.

- Sou capaz de jurar que esta correspondência aí pesa uns nove quilos - disse um
dia Knut em desespero, curvado sobre a máquina de escrever.

- Doze - disse Torstein friamente. - Eu pesei.

Minha mãe deve ter tido uma noção bem clara da situação, naqueles dias de
dramáticos preparativos, ao escrever-me: ”A única coisa que eu queria era saber
que vocês seis já estão a bordo da jangada.”

E eis que um dia chega de Lima um telegrama urgente. Colhido pela cauda de
um vagalhão, Herman fora arrojado ao chão, malferido, com grave deslocamento
do pescoço. Achava-se em tratamento num hospital em Lima.

Imediatamente Torstein foi mandado de avião com Gerd Vold, a popular


secretaria londrina dos paraquedistas sabotadores noruegueses durante a guerra,
que na ocasião prestava serviços em Washington.

Acharam-no melhor; tinham-no suspendido por uma correia atada em volta do


pescoço durante meia hora, enquanto os médicos o repunham na posição,
destorcendo o osso do pescoço. A radiografia mostrou que o osso mais alto do
pescoço de Herman se havia fraturado e tinha sofrido desarticulação completa. A
esplêndida constituição física de Herman salvara-lhe a vida, e pouco depois o
convalescente voltou, azul, verde, endurecido e reumático, ao estaleiro naval,
onde em pessoa havia amontoado pau-de-balsa e começado a obra. Teve de ficar
entregue a cuidados médicos por várias semanas, sendo incerto se poderia fazer
a viagem conosco. Pessoalmente, ele jamais duvidou disto um só momento, a
despeito do modo bastante rude com que, logo de início, o tratara o Pacífico.
Entretanto Erik chegava do Panamá de avião, enquanto eu e Knut chegávamos
de Washington, achando-nos assim todos reunidos no ponto de partida, em
Lima.

No estaleiro naval, os enormes troncos de balsa da floresta de Quevedo. Era,


realmente, um espetáculo patético. Toros redondos recém-cortados, bambus
amarelos, juncos e folhas de bananeira jaziam por ali empilhados, constituindo o
nosso material de construção. Tudo isto rodeado de filas de ameaçadores
submarinos e destróieres cinzentos. Seis nórdicos de tez clara e dois engajados
navais de pele morena e sangue inca nas veias, brandiam machados e compridos
machetes e puxavam cabos. Elegantes oficiais da marinha, trajes azul dourados
passavam por ali em inspeção e encaravam com assombro aqueles pálidos
estrangeiros e todo aquele material incongruente que de súbito havia aparecido
no meio deles, no estaleiro oficial.

Pela primeira vez, em centenas de anos, estava sendo construída na baía de


Callao uma jangada de pau-de-balsa. Naquelas águas litorâneas onde, segundo as
lendas incas, seus antepassados haviam aprendido com o desaparecido clã de
Kon-Tiki a navegar em jangadas dessas, lá, reza a história, os indígenas eram
proibidos por homens da nossa raça de fazer uso de semelhantes embarcações.
Navegar numa jangada aberta podia custar vidas humanas.

Os descendentes dos incas Mudaram com os tempos; como nós, têm vincos nas
calças e estão bem protegidos pelos canhões do poder naval. Balsa e bambus são
coisas do passado; aqui também as coisas marcham para a blindagem e o aço. O
ultramoderno estaleiro foi-nos de incalculável valia. Tendo Bengt como
intérprete e Herman como construtor chefe, usávamos e abusávamos das oficinas
de carpinteiro e de veleiro. Usávamos ainda metade do espaço destinado ao
trapiche para depósito do material, além de uma pequena doca flutuante onde a
madeira foi posta na água quando principiou a construção.

Os nove troncos mais grossos foram escolhidos para compor a verdadeira


jangada. Fundos sulcos foram abertos na madeira para impedir que
escorregassem as cordas que, passando por eles, deviam amarrar toda a jangada.
Nem um único prego, cavilha ou cabo de arame foi usado em toda a construção.
Os nove grandes troncos foram primeiro colocados lado a lado na água, de modo
que pudessem todos cair livremente na sua posição natural flutuante, antes de
serem fortemente amarrados uns aos outros. O toro mais longo, de 13,70m de
comprimento, foi colocado no centro e se projetava bem além dos outros numa e
na outra ponta. Toros sempre mais curtos foram postos simetricamente a um e
outro lado do maior, de modo que os lados da jangada tinham 9m de
comprimento, e a proa emergia como um tosco arado. À ré a jangada tinha um
corte transversal, mas os três troncos do centro se projetavam e sustentavam um
cepo de pau-de-balsa curto e grosso, que ficava em posição oblíqua à
embarcação e continha pelos toletes o longo remo de direção. Depois que os
nove troncos de balsa foram fortemente amarrados uns aos outros com cânhamo
de polegada e um quarto de polegada para comprimentos diferentes, os toros
finos de balsa foram amarrados de través sobre aqueles, a intervalos de 90 cm. A
jangada agora estava terminada.

Fora laboriosamente ligada com cordas de mil comprimentos diferentes, cada


uma entrançada de nós firmíssimos. Sobre ela foi posta uma cobertura feita de
taquaras, amarradas à jangada em forma de sarrafos separados recobertos com
esteiras soltas de bambu trançado. No meio da jangada, mais perto da popa,
erguemos uma pequena cabana de bambu com paredes também de bambu, e
telhado de fasquias de bambu com folhas de bananeira encaixadas umas nas
outras, à guisa de telhas. À frente da cabana levantamos dois mastros, um ao
lado do outro. Eram de mangueira duro como ferro; inclinados um contra o outro
no topo, eram amarrados em cruz. A enorme vela quadrada foi armada numa
verga feita de duas hastes de bambu, amarradas para reforço e segurança. Os
toros de madeira que nos deviam conduzir através do mar eram afilados
ligeiramente nas extremidades à moda indígena, para deslizarem com mais
facilidade na água. Para proteção contra borrifos, foram ligadas tábuas bem
baixas à proa, acima da superfície do mar.

Em vários lugares onde existiam fendas maiores, introduzimos cinco sólidas


pranchas de abeto, cujas pontas sob a jangada imergiam na água. Postas mais ou
menos a esmo penetravam um metro e meio na água, tendo 25mm de espessura e
6m de largura.

Ficavam presas no lugar por meio de cunhas e cordas, servindo de pequeninas


quilhas paralelas. Quilhas assim eram usadas em todas as jangadas de pau-de-
balsa no tempo dos incas, muito antes da época dos descobrimentos, e evitavam
que as jangadas chatas vogassem para os lados à mercê do vento e das ondas.
Não pusemos nenhuma grade ou proteção em volta da jangada, mas tínhamos
um toro de balsa, comprido e mais fino, que oferecia apoio aos pés.

A construção era uma cópia fiel das antigas embarcações do Peru e do Equador,
com exceção dos guarda-borrifos, colocados nas proas, que posteriormente
verificamos serem inteiramente desnecessários. Respeitadas as linhas gerais,
podíamos, é claro, arrumar os detalhes a bordo como nos aprouvesse, desde que
isto não tivesse influência sobre a embarcação. Sabíamos que aquela jangada ia
ser todo nosso mundo pelo tempo que se estendia à nossa frente, e que,
consequentemente, o mínimo detalhe a bordo cresceria em dimensão e
importância à medida que as semanas passassem.

Por isso fizemos o pequeno convés variar o mais possível. As lascas de bambu
não tapavam toda a jangada, mas formavam um piso em frente da cabana e a
estibordo, onde ficava a porta. O costado de bombordo da cabana era uma
espécie de pátio interior cheio de caixotes e utensílios domésticos, tudo
convenientemente atado no diminuto espaço livre para se poder andar. A frente,
na proa, e à ré, até a parede traseira da cabana, os gigantescos troncos não
tinham coberta alguma. Assim, quando saíamos da cabina de bambu,
passávamos dos bambus amarelos, e do trançado de vime, para os redondos toros
cinzentos à popa, subindo daí até a carga amontoada no outro lado. Não eram
muitos passos, mas o efeito psicológico da irregularidade nos oferecia variação,
e nos compensava da limitada liberdade de movimento.

No topo do mastro pusemos um estrado de madeira, não tanto para termos um


posto de atalaia quando chegássemos à terra, quanto para podermos marinhar em
cima dele durante a travessia, e ver o mar de outro ângulo. Quando a jangada
principiou a tomar forma ali entre os navios de guerra, dourada e fagueira com
os seus bambus e folhas verdes, o ministro da Marinha veio pessoalmente
examiná-la. Estávamos imensamente ufanos da nossa embarcação como se
achava ali, pequena lembrança recente do tempo dos incas entre aqueles
formidáveis vasos de guerra. Porém o ministro da Marinha ficou simplesmente
horrorizado com o que viu. Fui chamado à repartição naval a fim de assinar um
documento em que declarava a Marinha livre de qualquer responsabilidade por
aquilo que havíamos construído nas suas oficinas, tendo ainda de declarar ao
capitão de porto, também em papel por mim firmado, que, ao sair do porto com
homens e carga a bordo, eu o fazia inteiramente por minha conta e risco.

Depois disto, vários peritos navais e diplomatas estrangeiros tiveram acesso ao


estaleiro para ver a jangada. Tampouco eles se mostraram otimistas, e, alguns
dias depois, quem mandou-me chamar foi o embaixador de uma das grandes
potências.

- Seus pais estão vivos? - perguntou-me.

E obtendo resposta afirmativa, encarou-me fixamente e disse com voz


cavernosa, prenhe de mau agouro: - Sua mãe e seu pai ficarão muito penalizados
quando souberem de sua morte.

Como amigo particular, pediu-me que desistisse da viagem enquanto ainda era
tempo. O almirante que havia examinado a jangada dissera-lhe que, vivos, não
conseguiríamos fazer a travessia. Em primeiro lugar, estavam erradas as
dimensões da jangada. Ela era tão pequena que soçobraria num mar picado; mas
tinha o comprimento adequado para ser levantada por duas linhas de onda ao
mesmo tempo, e, com os homens e a carga, os frágeis toros de balsa se partiriam.
E algo pior: o maior exportador de paus-de-balsa do país lhe dissera que os
porosos troncos de balsa boiariam apenas um quarto da longa travessia do
oceano, antes de ficarem tão encharcados que iriam ao fundo.

Os prognósticos não eram nada bons, mas como nos mostrávamos persistentes,
deram-nos de presente uma Bíblia para levarmos na viagem. Bem-lançadas as
contas, pouco estímulo se auferia dos peritos que examinaram a jangada.
Rajadas de ventos e talvez furacões nos arrebatariam à baixa e exposta
embarcação, que ficaria ao desamparo e a bailar pelo oceano, à mercê do vento e
das águas. Mesmo em mar normalmente agitado, ficaríamos de contínuo
encharcados de água salgada, que acabaria por arrancar-nos a pele das pernas e
estragaria tudo a bordo. E se fôssemos somar tudo quanto os diferentes peritos,
cada um por sua vez, tinham indicado como a falha vital na própria construção,
não havia na jangada toda um comprimento de corda, um nó, uma medida, um
pedaço de madeira que não nos fosse levar para o fundo do mar. Foram feitas
valiosas apostas em torno dos dias que duraria a jangada, e um petulante adido
naval apostou pagar todo o uísque que os membros da expedição poderiam beber
pelo resto da vida se chegássemos vivos a uma ilha dos mares do Sul. Pior foi
quando, entrado no porto um navio norueguês, levamos ao estaleiro o capitão e
um ou dois dos seus mais experimentados lobos-do-mar. Ficamos ansiosos por
testemunhar as reações práticas desses homens. E grande foi a decepção quando
todos eles opinaram que a tosca jangada, com aquela proa absurda, jamais
obteria da vela qualquer ajuda, enquanto o capitão sustentava que, se
conseguíssemos manter-nos à flor d’água, a embarcação gastaria um ano ou mais
para atravessar a corrente de Humboldt. Olhando para as amarras, o
contramestre abanou a cabeça. Não havia a menor dúvida: não passariam duas
semanas e cada corda da pobre embarcação se gastaria de todo, porque, dentro
da água, os enormes toros se movimentariam sem cessar esfregando-se uns nos
outros. Se não usássemos cabos de arame ou correntes, podíamos esquecer a
aventura. Não era fácil demolir esses argumentos. Se um deles sequer fosse
verdadeiro, as nossas possibilidades seriam inexistentes. Creio que várias vezes
perguntei a mim mesmo o que estávamos fazendo ali. Eu não podia contestar as
advertências uma por uma, porque não era marinheiro. Tinha, porém, comigo
um único trunfo, no qual estava baseada toda a viagem.

No meu íntimo havia uma voz que sempre me segredava que uma civilização
pré-histórica se espalhara, indo do Peru e pelo mar até as ilhas, numa época em
que jangadas como aquela eram a única embarcação. E aí tirava a conclusão
geral de que se o pau-de-balsa havia flutuado e as amarras resistido para Kon-
Tiki no ano 500 da nossa era, haviam de fazer o mesmo para nós agora, se
fizéssemos cegamente da nossa jangada uma cópia exata da dele.

Bengt e Herman estavam bem enfronhados na teoria, e enquanto os peritos


franziam o sobrolho, os rapazes se conservavam tranquilos e se distraíam em
Lima.

Uma noite Torstein me perguntou ansioso se eu tinha certeza de que as correntes


oceânicas iam naquele rumo. Voltávamos do cinema onde tínhamos visto
Dorothy Lamour, portando uma saia de palha, a dançar a bula com outras
jovens, entre palmeiras, numa ilha amena dos mares do Sul.

- E para lá que devemos ir - disse Torstein. - E terei muita pena de você se as


correntes não agirem como você diz que elas agem.

Aproximando-se o dia da nossa partida, dirigimo-nos ao departamento civil de


controle de passaportes para obtermos permissão de deixar o país. Bengt achava-
se à frente como intérprete.

- Qual é o seu nome? - perguntou um funcionariozinho cerimonioso, olhando


desconfiado, por cima dos óculos, para a imensa barba de Bengt.

- Bengt Emmerik Danielssen - respondeu Bengt respeitosamente.

O homem pôs na máquina de escrever um longo formulário.

- Em que navio o senhor veio para o Peru?

- Acontece - explicou Bengt, inclinando-se para o assustado homenzinho - que


não vim de navio; vim de canoa para o Peru. Mudo de assombro, o funcionário
olhou para Bengt e bateu canoa’ num espaço aberto do formulário.

- E em que navio vai sair do Peru?

- Acontece, repito - disse Bengt delicadamente - que não vou sair do Peru em
navio, mas numa jangada.

- Acredito, acredito! - exclamou nervoso o funcionário, rasgando o papel ao


retirá-lo da máquina. - Quer fazer o obséquio de responder convenientemente às
minhas perguntas? Alguns dias antes de nos fazermos ao mar, provisões, água,
todo material, enfim, foi depositado na jangada. Eram provisões para seis
homens por quatro meses, embaladas em sólidas caixinhas de papelão para
rações militares. Herman teve a ideia de ferver piche e espalhá-la de modo a
formar uma camada uniforme em volta de cada caixa separada. Depois
esparzimos areia sobre elas para evitar que as caixinhas ficassem pegadas umas
às outras, e as dispusemos, lado a lado, sob a coberta de bambu, onde ocuparam
o espaço entre as nove baixas vigas transversais que sustentavam a coberta.

Numa fonte que jorrava de alta montanha enchemos 56 latões de água cristalina
ao todo 1.120 litros de água potável. Estas também foram amarradas entre as
vigas transversais de maneira que a água do mar pudesse sempre borrifá-las.
Sobre o convés de bambu amarramos o resto do material e cestões de vime
cheios de fruta e coco.

Knut e Torstein reservaram um canto da cabana para o radiotransmissor, e no


interior, embaixo, entre as vigas transversais, amarramos oito caixotes: dois,
reservados para instrumentos científicos e filmes; os outros seis, distribuídos
entre nós, depois de inteirados de que cada um podia trazer consigo coisas de
uso privado que coubessem no caixote.

Como Erik tinha trazido vários rolos de papel de desenho e uma guitarra, seu
caixote ficou tão cheio que teve que pôr parte das coisas no de Torstein. Depois
quatro marinheiros trouxeram o caixote de Bengt.

Bengt não trazia outra coisa a não ser livros, e conseguiu atulhar seu caixote de
73 obras de sociologia e etnologia. Pusemos em cima dos caixotes esteiras de
junco trançado e colchões de palha. E estávamos afinal aparelhados para partir.

Primeiro a jangada foi rebocada para fora da área naval e tocada a remos em
volta da baía durante algum tempo para se verificar se a carga estava distribuída
com equilíbrio. Em seguida foi levada à sirga, atravessando o Iate Clube de
Callao, onde convidados e outras pessoas interessadas deviam estar presentes
para a cerimônia de batismo da embarcação, na véspera da partida.

A 27 de abril foi hasteada a bandeira norueguesa, e ao longo da verga, no topo


do mastro, tremulavam as bandeiras dos países estrangeiros que tinham dado
apoio prático à expedição.

O cais formigava de gente que queria assistir ao batismo da estranha


embarcação. Pela cor e pelos traços via-se que muitas pessoas presentes tinham
remotos antepassados que haviam navegado ao longo da costa em jangadas de
paus-de-balsa. Mas também descendentes dos antigos espanhóis, chefiados por
representantes da armada e do governo, além dos embaixadores dos Estados
Unidos, Grã-Bretanha, França, China, Argentina e Cuba, o ex-governador das
colônias inglesas no Pacífico, os ministros da Suécia e da Bélgica, e nossos
amigos da pequena colônia norueguesa, tendo à testa o Cônsul-Geral Bahr.
Havia uma chusma de jornalistas e ouvia-se a cada momento o ruído
característico das câmaras fotográficas ou de cinema em ação. Faltava apenas
uma banda de música bem barulhenta.

De uma coisa todos tínhamos certeza: se fora da baía a jangada se despedaçasse,


preferiríamos remar para a Polinésia, cada um sobre um tronco, ao vexame de
voltar ali sem ela.
Gerd Vold, secretária da expedição e encarregada de se manter em contato
conosco no continente, devia batizar a jangada com leite de coco, quer para se
manter a tradição da idade da pedra, quer porque, em razão de equívoco, o
champanha tinha ido parar no fundo do caixote de Torstein. Depois que nossos
amigos foram informados, em inglês e em espanhol, de que o nome da
embarcação seria o do grande precursor dos incas - o rei-sol que havia
desaparecido para as bandas do ocidente, navegando pelo mar desde o Peru até a
Polinésia há 1500 anos - Gerd Vold batizou a jangada com nome de Kon-Tiki.
Esmagou com tanta força no baque o coco rachado, que o leite e a polpa foram
atingir os cabelos dos que estavam reverentemente em redor. Em seguida foi
içada a verga de bambu e desenrolada a vela, tendo ao centro pintada em
vermelho pelo artista Erik a cara barbada de Kon-Tiki. Era a cópia fiel da cabeça
do rei-sol esculpida em pedra vermelha nas ruínas da cidade de Tiahuanaco.

- Ah! Senhor Danielssen - exclamou encantado o mestre das oficinas no


estaleiro, ao ver na vela a cara barbada. Ele vinha chamando a Bengt de Kon-
Tiki há dois meses, desde que lhe mostráramos a cara barbada de Kon-Tiki num
pedaço de papel. Mas agora tinha, afinal, percebido que o verdadeiro nome de
Bengt era Danielssen.

Antes de nos fazermos à vela, comparecemos todos incorporados a uma


audiência de despedida com o presidente. Depois fomos fazer uma excursão
pelas negras montanhas e fartar-nos de rochedos e pedras antes de nos lançarmos
no oceano intérmino. Na verdade, enquanto trabalhávamos na jangada perto da
costa, estivéramos hospedados na pensão situada num bosque de palmeiras fora
de Lima, e íamos a Callao ou de lá voltávamos no carro do Ministério da
Aeronáutica, dirigido por um homem que Gerd conseguira de empréstimo para a
expedição. Pedimos pois ao motorista que nos levasse diretamente às montanhas,
penetrando no interior o mais que se pudesse fazer num dia. E assim corremos
por estradas desertas, beirando antigos canais de irrigação da época, até
chegarmos à alucinante altura de 3.600m acima do mastro da jangada. Ali nos
limitamos a devorar com os olhos rochedos, picos de montanha e mato verde, e
tratamos de nos saciar com a tranquila mole de montanhas da cadeia dos Andes
diante de nós.

Procuramos convencer-nos de que estávamos fartos de ver pedra e terra sólida e


precisávamos inflar a vela e ir conhecer o mar.
CAPÍTULO IV
ATRAVÉS DO PACÍFICO (I)

Uma partida dramática - Levam-nos a reboque para o mar - O vento


começa a soprar - A vida na corrente de Humboldt- O aeroplano que
não nos encontrou - Os troncos absorvem água - Pau contra corda -
Comemos peixes-voadores - Um insólito companheiro de cama - O
erro de um peixe-cobra - Olhos no mar - História de um fantasma do
oceano - ficamos conhecendo o maior peixe do mundo - Caça de
tartaruga marinha.

Havia uma azáfama insólita no porto de Callao no dia em que a Kon-Tiki ia ser
rebocada para o mar. O ministro da Marinha tinha dado ordens para que o
rebocador naval Guardian Rios nos levasse à sirga, até fora da barra, e nos
colocasse bem longe do movimento costeiro, lá no ponto distante, onde, em
tempos passados, os índios costumavam pescar a bordo de suas jangadas. Os
jornais haviam publicado a notícia em cabeçalhos vermelhos e pretos, e desde as
primeiras horas da manhã de 28 de abril verdadeira multidão acudira ao cais.

Nós seis, que devíamos estar a bordo, todos tínhamos, até a última hora, alguma
providência que tomar, e quando cheguei ao cais, somente Herman estava,
mantendo guarda à jangada.

De propósito mandei o carro parar a boa distância e fiz a pé todo o percurso ao


longo do molhe, para estirar bem as pernas pela derradeira vez. Até quando,
ninguém poderia dizer.

Pulei para dentro da jangada, cujo aspecto era verdadeiramente caótico: cachos
de banana, cestos e sacos de fruta tinham sido jogados ali no último momento,
devendo ser devidamente empilhados e amarrados assim que pudéssemos pensar
um pouco em pôr as coisas em ordem. Herman, sentado, aguardava
resignadamente, tendo nos joelhos a gaiola de um papagaio verde, presente de
despedida de uma pessoa amiga, em Lima.

- Fica aqui um minuto cuidando do papagaio - disse-me ele; preciso ir a terra


para beber um último copo de cerveja. O rebocador não virá tão cedo...

Mal Herman desapareceu entre a turba que fervilhava no cais, o povo pôs-se a
apontar algo e a agitar-se. E que da parte indicada vinha, a toda a velocidade, o
rebocador Guardian Rios. Deitou âncora muito além da ondulante floresta de
mastros que interceptava o caminho à Kon-Tiki, e enviou uma espaçosa lancha
movida a gasolina para nos rebocar dali, tirando-nos daquele labirinto de velas.
A lancha vinha cheia de marinheiros, oficiais e fotógrafos e enquanto as ordens
soavam e as câmaras fotográficas entravam em ação uma sólida sirga foi
amarrada à proa da jangada.

- Um momento - berrei, desesperado, do lugar onde me achava sentado,


segurando o papagaio. - Ainda é cedo, temos de esperar pelos outros, - los
expedicionários - expliquei, apontando para a cidade.

Mas ninguém entendeu. Os oficiais limitaram-se a sorrir delicadamente, e foi


dado o nó nas proas de maneira altamente técnica. Desatei a corda e a lancei na
água reforçando esse ato com toda espécie de sinais e gestos. O papagaio valeu-
se da oportunidade oferecida por aquela barafunda para meter o bico fora da
gaiola e virar a tramela da portinhola, e, quando me voltei, ele estava dando,
majestosa e prazenteiramente, um passeio pela coberta de bambu. Tentei agarrá-
lo, mas ele gritou asperamente em espanhol e esvoaçou alcançando os cachos de
banana. Com um olho nos marujos que procuravam lançar o cabo às proas,
encetei ativa caça ao bicho. Ele voou aos berros para dentro da cabana de
bambu, onde o agarrei num canto pegando-o pela perna, enquanto ele tentava
voar sobre mim. Quando saí, depois de ter repasto na gaiola a presa que batia as
asas, os marujos em terra tinham desatado as amarras da jangada, e agora
achávamo-nos a bailar sem remédio ao sabor da onda que investia
incessantemente contra o cais. Desesperado, agarrei um remo e debalde tentei
evitar um violento baque ao ser a jangada atirada contra os barrotes do cais. Com
isso a lancha-automóvel largou, e com um puxão a Kon-Tiki iniciou sua longa
viagem. Meu único companheiro era um papagaio que falava espanhol e que, de
olhos arregalados, olhava lugubremente lá do poleiro. Na praia, a multidão
ovacionava agitando lenços, e os trigueiros fotógrafos, que se achavam na
lancha, quase saltaram ao mar, de ávidos que estavam por apanhar, em todos os
pormenores, a dramática partida da expedição do Peru. Desesperado e só,
achava-me eu em pé na jangada procurando meus companheiros perdidos, mas
não vinha ninguém. Assim pulamos para o Guardian R/os> que já estava para
levantar âncora e partir. Num abrir e fechar de olhos, trepei à escada de corda e
fiz tamanho barulho a bordo que a partida foi retardada e mandaram um bote ao
cais. Depois de algum tempo o bote voltou cheio de formosas señoritas, mas
sem um único homem da Kon-Tiki. Tudo isto era muito bonito mas não resolvia
meus problemas, por isso enquanto a jangada continuava repleta de encantadoras
señoritas, o bote voltou para dar nova busca a los expedicionários noruegos.
Neste comenos, Erik e Bengt vinham lentamente em direção ao cais, com os
braços cheios de embrulhos, jornais e revistas.

Tinham encontrado a multidão de regresso a casa e ficaram detidos junto à


barreira policial por um delicado funcionário, o qual lhes dizia que nada mais
havia para ver. Fazendo um vago gesto com o charuto, Bengt replicou ao guarda
que eles não tinham vindo ver nada; eles iam partir na jangada.

- É inútil - disse benevolamente o guarda. - A Kon-Tiki partiu faz uma hora.

- Isso não é possível - disse Erik, mostrando um embrulho aqui está a lanterna!

- E aí está o piloto - disse Bengt - e eu sou o comissário. Foi-lhes franqueada a


passagem, mas a jangada se fora. Puseram-se a andar desesperadamente de um
lado para outro ao longo do quebra-mar, onde encontraram o resto do grupo, que
também estava procurando ansiosamente pela jangada desaparecida. Aí
avistaram o bote que se aproximava. Enfim estávamos os seis reunidos, e a água
cachoava em volta da jangada quando o Guardian Rios nos rebocou para o mar.

Já passava muito do meio-dia quando afinal partimos, e o Guardian Rios não nos
quis deixar ao largo enquanto não nos visse desembaraçados do movimento
costeiro na manhã seguinte. Assim que nos afastamos da atracação, encontramos
um pouco de mar pela proa, e os pequenos botes que nos estavam
acompanhando voltaram.

Apenas alguns iates maiores foram conosco até a entrada da baía para ver como
iriam as coisas. A Kon-Tiki seguiu a sirga como um bode raivoso amarrado a
corda.

Deu marradas com a parte dianteira no mar de proa de modo que a água entrou a
bordo, invadindo-a. Isto não parecia muito animador, pois aquele era um mar
calmo comparado com o que íamos encontrar.
No meio da baía o cabo do reboque quebrou; a ponta que estava do nosso lado
foi paulatinamente para o fundo, enquanto o rebocador continuava a marcha.
Jogamo-nos ao pé da jangada a ver se pescávamos a ponta submersa do cabo,
enquanto os iates seguiam em frente tentando parar o rebocador. Arraias
causticantes e pegajosas, do tamanho de uma cuba de borracha, subiam pela
jangada e desciam com a água, cobrindo as cordas de espessa e escorregadia
gelatina. Quando a jangada zimbrava para um lado, nos debruçávamos o mais
possível para que nossos dedos tocassem o cabo viscoso. Quando a jangada
rolava para o lado oposto, metíamos a cabeça bem dentro do mar, enquanto as
nossas costas eram banhadas pela água salgada e por elas escorregavam enormes
arraias. Cuspíamos praguejando e arrancávamos dos cabelos fibras de águas-
marinhas. Mas quando o rebocador retornou, a ponta do cabo já tinha sido
fisgada e pronta para o conserto.

Quando estávamos prestes a lançá-la ao rebocador, de repente vogamos para a


popa inclinada da embarcação, com risco de sermos esmagados contra ela pela
pressão da água.

Largamos tudo quanto tínhamos nas mãos e tratamos de empurrar a jangada a


salvo, agarrando nas pontas dos bambus e nos remos antes que fosse tarde
demais. Mas não lográvamos fazer uma manobra conveniente, porque, quando
estávamos no espaço formado por duas ondas, não conseguíamos apanhar o teto
de ferro que pairava sobre nós, e quando a água de novo se erguia, o Guardian
Rios inclinava totalmente a popa dentro da água, o que nos teria esmagado sem
remédio se a sucção nos arrastasse para o vórtice. Lá em cima, no convés do
rebocador, houve correria e a gritaria era incessante; por fim a hélice começou a
girar justamente do nosso lado, ajudando-nos, no derradeiro instante, a livrar-nos
do ressalto da água sob o Guardian Rios. A proa da jangada recebera alguns
golpes rudes fazendo um pouco recurvos os cabos de atracação, mas esse ligeiro
defeito gradualmente se retificou por si mesmo.

- Quando uma coisa principia de maneira tão infernal, é sinal que terminará bem
- disse Herman. - Se ao menos parasse esta sirgagem!

Ela acabará reduzindo a jangada a pedaços.

A sirgagem continuou a noite toda com pouca velocidade e apenas com um ou


dois pequenos embaraços. Os iates tinham-se despedido havia muito tempo, e o
último farol desaparecera atrás de nós. Apenas passava por nós, nas trevas, uma
ou outra luz de navio.

Dividimos a noite em quartos de vigília para termos de olho o cabo do


rebocador, e todos nós tiramos uma satisfatória soneca.

Quando o dia seguinte começava a alvorecer, denso nevoeiro cobriu a costa do


Peru, enquanto tínhamos sobre nós, para as partes do oeste, um brilhante céu
azul. O mar se estendia num longo e tranquilo marulho, coberto de pequenas
cristas brancas. Roupas, toros e tudo em que púnhamos a mão estava ensopado
de orvalho. Temperatura quase glacial. A água verde que nos cercava estava
assombrosamente fria para os 12° sul. Era a corrente de Humboldt que carreia do
Antártico as frias massas de água arrastando-as para o norte, ao longo da costa
do Peru, até elas se desviarem para oeste e além, atravessando o oceano
exatamente debaixo do equador. Foi aqui que Pizarro, Zarate e outros antigos
espanhóis deram, pela vez primeira, com as colossais jangadas a vela dos incas,
as quais costumavam navegar

50 a 60 milhas marítimas para a pesca de atuns e dourados justamente na


corrente de Humboldt.

Durante o dia todo, havia ali um vento soprando da praia; à noite o vento
soprando para a praia, alcançava o mesmo ponto, ajudando-os a voltar para casa
se o desejassem. O rebocador permanecia perto, e nós tivemos cuidado de pôr a
jangada a salvo da proa dele, enquanto lançávamos à água o pequeno bote de
borracha cheio de ar. Ele boiava como uma bola e bailava comigo, com Erik e
Bengt, até quando agarramos a escada de corda do Guardian Rios e trepamos a
bordo. Com Bengt como intérprete, nos mostraram no mapa a posição certa em
que nos achávamos. Estávamos a 50 milhas da terra a noroeste de Callao, e
tínhamos de acender luzes nas primeiras noites para não sermos afundados por
navios costeiros.

No alto-mar não havia um único navio, pois não existia nenhuma rota marítima
naquela parte do Pacífico.

Despedimo-nos cerimoniosamente de todos, e muitos olhares nos seguiram


quando descemos ao pequeno bote, onde, aos trancos, nos fomos aproximando,
entre as ondas, da Kon-Tiki. Então a sirga foi solta e a jangada ficou de novo
sozinha. Trinta e cinco homens a bordo do Guardian Rios, de pé na amurada,
nos acenaram enquanto lhes foi possível distinguir os contornos da embarcação.
E seis homens sentados nos caixotes da jangada seguiram com os olhos o
rebocador, enquanto puderam vê-la. Só depois que a negra coluna de fumaça se
desfez no horizonte foi que abanamos a cabeça e olhamos uns para os outros.

- Adeus, adeus - disse Torstein. - Agora, rapazes, é pôr a máquina a trabalhar!

Rimo-nos e fomos ver o vento. Havia uma ligeira brisa que tinha virado de sul
para sudeste.

Içamos com a verga de bambu a enorme vela quadrada. Ela ficou um pouco
frouxa, dando à cara de Kon-Tiki uma aparência rugosa, de descontentamento.

- O velho não está gostando - disse Erik. - Quando ele era mais moço, as brisas
eram mais frescas.

- A impressão que se tem é de que vamos perdendo terreno -

disse Herman da proa, atirando no mar um pedaço de pau-de-balsa.

- Um, dois, três... trinta e nove, quarenta, quarenta e um.

O pedaço de pau permanecia calmo na água ao lado da jangada; não tinha


chegado nem a metade do caminho, ao longo da embarcação.

- Temos de ir tocando para a frente - disse Torstein com otimismo.

- Espero não derivar à popa com a brisa noturna. - disse Bengt.

- Foi muito interessante a despedida em Callao, mas preferiria não receber as


boas-vindas de novo.

Agora o pedaço de pau alcançava a ponta da jangada. Soltamos um hurra e


começamos a pôr em ordem e a amarrar as coisas que, no último momento,
tinham sido jogadas a bordo.

Bengt instalou um fogão Primus no fundo de um caixote vazio, e dai a pouco já


nos estávamos regalando com chocolate quente e biscoito, ou abrindo buraco
num coco verde.

As bananas ainda não estavam bem maduras.

- Numa coisa nós estamos bem servidos agora - começou Erik, risonho. Andava
de um lado para outro metido em largas calças de pele de carneiro, debaixo de
imenso chapéu indiano, com o papagaio ao ombro.

- Só há uma coisa de que não gosto - acrescentou. - E dessas pouco conhecidas


correntes cruzadas, que nos podem atirar contra o rochedo ao longo da costa, se
permanecermos aqui dessa maneira.

Examinamos a possibilidade de usar os remos, mas preferimos esperar pelo


vento.

E o vento veio. Soprava de sueste, branda mas firmemente. Em breve a vela se


enfunou e arqueou-se para a frente como um peito intumescido, com a cara de
Kon-Tiki a rebentar de pugnacidade. E a Kon-Tiki principiou a mover-se. Demos
novo hurra e içamos escotas e cordas. O remo de direção foi introduzido na água
e a ordem do serviço de vigia começou a funcionar. Atiramos bolas de papel e
cavacos ao mar na proa e ficamos à popa com nossos relógios.

- Um, dois, três... dezoito, dezenove... agora! Papel e lascas de madeira


passavam pelo remo de direção e logo ficavam como pérolas num fio,
emergindo e desaparecendo no remoinho das ondas, íamos avançando metro a
metro. A Kon-Tiki não sulcava as águas como uma lancha de corrida de proa
bem proporcionada. Tosca e larga, pesada e sólida, seguia para a frente
patinhando sossegadamente sobre as ondas. Não tinha pressa, mas quando
resolvia mexer-se, seguia avante com indomável energia.

No momento, a organização do governo da embarcação era o nosso maior


problema. A jangada fora construída exatamente como a haviam descrito os
espanhóis, mas não existia nenhuma pessoa viva no nosso tempo que nos
pudesse ministrar um curso prático avançado de como manobrar uma jangada
indígena. O problema tinha sido proficientemente discutido em terra, pelos
entendidos, mas com escassos resultados. Eles sabiam justamente o que nós
sabíamos, isto é, muito pouco.
À proporção que o vento sueste aumentava em força, era necessário manter a
jangada em marcha tal que a vela se enfunasse da parte de popa. Se a jangada
virava demais o lado para o vento, a vela de repente também crescia para essa
banda, batendo na carga, nos homens e na cabana de bambu. Se a jangada girava
completamente, continuava no mesmo curso com a popa para a frente. A luta era
árdua: enquanto três homens pelejavam com a vela, os outros três remavam com
o remo de comando para pôr na devida posição o bico de proa da jangada de
madeira, afastando-o do vento. E logo que o conseguíamos, o piloto devia ter
toda a atenção para que o mesmo fato não se repetisse daí a um minuto.

O remo de direção, de 5,80m de comprimento, ficava solto entre dois toletes


sobre um enorme cepo à ré. Era o mesmo remo de direção que os nossos amigos
nativos tinham usado quando descemos com a madeira o rio Palenque no
Equador. O longo pau de mangueiro tinha a resistência do aço, mas era tão
pesado que iria para o fundo se caísse na água. A sua extremidade terminava
numa grande pá de remo de abeto, amarrada com cordas. Era necessária toda a
força para mantermos firme esse remo quando era batido pelas ondas, e nossos
dedos se cansavam de agarrá-lo com toda a veemência para girarmos o pau de
modo que a pá do remo se conservasse reta sobre a água.

Este problema foi resolvido amarrando-se-lhe uma peça transversal no cabo, de


maneira que ficamos dispondo de uma espécie de alavanca para manejar.
Enquanto isso, o vento aumentava.

À tardinha já o vento alísio soprava com toda a força. O resultado foi que o
oceano se tornou agitado e roncador, enquanto as águas invadiam pela parte de
trás. Foi então que percebemos, pela primeira vez, que o mar aguardava ali para
investir contra nós. O negócio agora era sério. Nossas comunicações estavam
cortadas. Ali no oceano imenso, as coisas só correriam bem se as qualidades da
jangada fossem realmente boas. Sabíamos que dali em diante não teríamos vento
que soprasse para a terra, nem jeito de tornar atrás. Havíamos entrado nos
domínios do legítimo vento alísio, e cada dia nos faria penetrar sempre mais no
mar alto. A única coisa a fazer era seguir avante a todo o pano; se tentássemos
tornar atrás, derivaríamos em alto-mar e com a popa para a frente. Só havia uma
alternativa: navegar ao sabor do vento com a proa voltada para poente. Era essa,
afinal, a meta da nossa viagem: acompanhar o sol no seu curso, como
supúnhamos que Kon-Tiki e os antigos adoradores do sol deviam ter feito
quando foram postos em fuga do Peru. Notamos, entre triunfantes e aliviados,
que a jangada resistia galhardamente às primeiras cristas de onda ameaçadoras
que vinham espumantes na nossa direção. Ao timoneiro, porém, era impossível
manter firme o remo quando as vagas avançavam para ele e erguiam o remo dos
toletes ou o arremessavam para um lado imprimindo um rodopio ao timoneiro
como se ele fosse um pobre acrobata.

Nem dois homens juntos conseguiam segurar o remo com firmeza quando os
vagalhões se levantavam indo quebrar atrás do piloto. Tivemos a ideia de passar
umas cordas desde a pá do remo até cada um dos lados da jangada, e, mantendo
com outras cordas o remo no seu lugar entre os toletes, ele passou a ter limitada
liberdade de movimento e podia desafiar o furor das águas contanto que nós
próprios lográssemos fazê-lo.

À medida que as cavidades entre as ondas se tornavam mais acentuadas, não


havia dúvida de que havíamos entrado na parte mais vertiginosa da corrente de
Humboldt. As águas tais como se apresentavam pertenciam a determinada
corrente, não sendo simplesmente erguidas pelo vento. Em toda a extensão que
nos cercava, a água era verde e fria; as recortadas montanhas do Peru tinham
desaparecido atrás, no meio de densas massas de nuvens.

Quando as trevas caíram sobre o oceano, teve começo o nosso primeiro duelo
com os elementos. O mar ainda não nos inspirava confiança; era ainda incerto se
se mostraria amigo ou inimigo naquela intimidade que havia sido iniciativa
nossa. Quando, já completamente envolvidos pelas trevas, ouvimos o motim
generalizado do mar em torno de nós, subitamente abafado pelo silvo de uma
vaga próxima, e vimos uma crista branca vir, como que às apalpadelas, no nosso
rumo, ao nível do telhado da cabana, permanecemos na nossa posição de firmeza
e quietação, esperando sentir a massa de água despenhar-se sobre nós e sobre a
jangada. Mas cada vez era a mesma surpresa e o mesmo alívio. A Kon-Tiki
calmamente meneava para cima sua popa e se erguia imperturbável, enquanto a
massa de água lhe resvalava pelos lados. Então nos abismávamos de novo no
espaço compreendido entre duas ondas, aguardando outro embate. Muitas vezes
os vagalhões vinham aos atropelos, dois ou três em seguida, com uma longa
série de ondas menores nos intervalos.

Quando duas ondas grandes se seguiam uma à outra muito próximas, a segunda
rebentava à ré, porque a primeira ainda estava maltratando no ar a nossa proa.
Era, portanto, entre nós lei invariável que os que se achavam no quarto de
direção tivessem cordas em volta da cintura, cujas pontas ficavam atadas à
jangada, pois não havia amuradas. A tarefa era conservar panda a vela,
oferecendo a popa ao mar e ao vento. Tínhamos amarrado a bússola de um bote
velho a um caixote à ré, de modo que Erik pudesse registrar a rota e calcular
posição e velocidade. No momento, não sabíamos bem onde nos achávamos,
porque o céu estava coberto, e o horizonte um grande caos de vagalhões. Dois
homens juntos faziam o quarto de direção e, um ao lado do outro, punha toda a
energia na luta com o remo saltador, enquanto os outros tratavam de dormir um
pouco no interior da cabana de bambu. Quando se avizinhava uma onda
verdadeiramente grande, os homens deixavam o governo do leme às cordas e de
um pulo se agarravam ao forte bambu do telhado da cabana, enquanto as massas
de água os acometiam em cheio por detrás, desaparecendo entre os troncos ou
pelo lado da jangada. Então tinham de se atirar novamente ao remo antes que a
jangada fizesse uma reviravolta e a vela ficasse batendo a esmo. Se as ondas
penetrassem na jangada por determinado ângulo, facilmente invadiriam a cabana
de bambu. Quando entravam pela popa, imediatamente desapareciam entre os
toros mais compridos e, quando muito e mesmo assim raramente, alcançavam a
parede da cabana.

Os troncos redondos da parte posterior deixavam a água passar como por entre
os dentes de um garfo. A vantagem de uma jangada era esta, evidentemente:
quanto mais buracos, melhor; pelas fendas do chão da embarcação a água saía,
mas nunca entrava.

Cerca da meia-noite, passou na direção norte uma luz de navio. As três horas,
passou outra no mesmo rumo. Acenamos com nossa lampadazinha de parafina e
lhes fizemos repetidos sinais com um maçarico elétrico, mas eles não nos viram,
e as luzes passaram lentamente rumo ao norte, sumindo-se na treva. Mal podiam
adivinhar que uma real e viva jangada inca estava bem perto deles arfando entre
as ondas. E mal podíamos adivinhar, nós tripulantes da jangada, que esse era o
último navio e o derradeiro vestígio de homens que veríamos até atingirmos a
outra banda do oceano. Agarramo-nos como moscas, dois a dois, ao remo de
direção, no escuro, e sentimos a água fresca do mar caindo-nos sobre o cabelo,
enquanto o remo nos magoava até nos deixar extenuados, ficando nossas mãos
crispadas com o esforço de apoiar-nos nele. Aqueles primeiros dias e noites
foram para nós uma boa escola; converteram marujos bisonhos em embarcadiços
experimentados. Durante as primeiras vinte e quatro horas, cada homem, em
ininterrupta sucessão, teve duas horas de leme e três de descanso. Dispusemos a
escala de tal maneira que, a cada hora, um homem repousado rendesse durante
duas horas um dos dois timoneiros que tivesse estado ao leme. Cada músculo do
corpo era exigido ao máximo, para estar à altura de dirigir a embarcação.

Quando nos sentíamos fatigados de empurrar o remo, mudávamos de lado e


puxávamos, e, quando braços e peito nos doíam com a pressão, virávamos as
costas, enquanto o remo quase nos convertia numa pasta insensibilizada tanto na
frente como atrás. Quando afinal o substituto chegava, nós nos arrastávamos
meio aturdidos para dentro da cabana, ligávamos as pernas com uma corda e
adormecíamos, mantendo pegada ao corpo a roupa impregnada de sal, antes de
nos enfiarmos nos sacos de dormir. Como que no mesmo instante verificava-se
um brusco puxão na corda; três horas já haviam decorrido, e a gente tinha de sair
de novo para render um dos homens no remo. A noite seguinte foi ainda pior; o
mar encapelou-se mais, em vez de se acalmar. Duas horas de luta a fio com o
remo eram demasiado longas; ninguém prestava para muita coisa na segunda
metade do plantão, e o mar levava a melhor atirando-nos a um lado e a outro,
enquanto a água invadia a embarcação. Então modificamos o serviço para uma
hora ao leme e uma hora e meia de descanso. Assim as primeiras sessenta horas
se passaram em contínua luta com o pandemônio das ondas que investiam, uma
após outra, sem cessar. Ondas altas e ondas baixas, ondas de ponta e ondas
redondas, ondas de través e ondas no topo de outras ondas. Quem mais sofreu foi
o Knut.

Foi dispensado do plantão, mas em compensação teve de pagar tributo a Netuno


curtindo silenciosas náuseas num canto da cabana. O papagaio

estava encarapitado no poleiro, mal-humorado, e se dependurava pelo bico e


batia as asas cada vez que a jangada dava um inesperado pinote, e as ondas,
vindo por detrás, invadiam a jangada até a parede. A Kon-Tiki não balouçava em
excesso. Aguentava o mar com mais firmeza do que qualquer bote nas mesmas
dimensões, mas era impossível predizer de que jeito o convés se inclinaria na
vez seguinte, e nunca aprendemos a arte de andar pela jangada, porquanto ela
tanto jogava quanto galeava. Na terceira noite o mar se aquietou um pouco,
embora o vento ainda soprasse com força. Por volta das quatro horas um
inesperado perseguidor veio escachoando de dentro da escuridão e deu em cheio
na jangada antes que os timoneiros reparassem no que estava sucedendo. A vela
bateu na cabana de bambu, ameaçando destroçar não somente a cabana mas a si
própria. Todas as mãos tiveram de se aprestar à cobertura a fim de pôr em
segurança a carga e alar escotas e estais na esperança de trazer a jangada a sua
rota, de modo que a vela pudesse enfunar-se e curvar-se para diante
pacificamente. A jangada, porém, não queria portar-se direito. Queria cair à ré e
pronto! O único resultado de todo puxa-e-arrasta foi que dois homens quase
caíram no mar, colhidos pela vela no escuro. O mar tinha-se tornado
sensivelmente mais calmo. Aturdidos e machucados, com as palmas das mãos
esfoladas e olhos de sono, quase não prestávamos para nada. Era melhor
economizarmos o que nos restava de energia para o caso de o tempo nos desafiar
para alguma prova ainda mais dura. Ninguém podia saber o que nos aguardava.

Por isso ferramos a vela e a enrolamos na verga de bambu. A Kon-Tiki ficou de


través sobre as águas portando-se em relação a elas como se fosse cortiça. Tudo
a bordo estava bem amarrado e nós seis nos arrastamos para a pequena cabana
de bambu, caímos num só monte e dormimos como pedra em poço. Mal
sabíamos que tínhamos pelejado no ponto mais difícil da viagem. Só depois de
estarmos há muito no mar alto foi que descobrimos a simples e engenhosa
maneira com que os incas governavam uma jangada.

Dormimos até dia alto e só despertamos quando o papagaio se pôs a assobiar e a


chamar por alguém, indo de um lado para outro no poleiro. Lá fora o mar ia
encarneirado, mas tão bravo e confuso como na véspera. A primeira coisa que
vimos foi que o sol batia no convés de bambu amarelo dando ao oceano em
redor um aspecto bonito e amigo. Que importava que o mar rugisse e se
encapelasse, contanto que nos deixasse em paz na jangada? Que importava que
ele se erguesse à nossa frente, se sabíamos que num segundo a jangada subiria
ao topo e, semelhante a um cilindro compressor, alisaria a crista espumante,
enquanto a poderosa e ameaçadora montanha de água apenas nos levantava ao ar
e rolava mugindo e gorgolejando debaixo dos toros? Os velhos mestres vindos
do Peru sabiam o que faziam quando rejeitavam a casca oca que podia ficar
cheia de água, ou uma embarcação qualquer que não soubesse fazer face às
ondas. Um cilindro compressor de cortiça, eis o que era a jangada de pau-de-
balsa.

Erik mediu a posição ao meio-dia e verificou que, além da rota efetuada sob o
impulso da vela, tínhamos feito enorme desvio para o norte ao longo da costa.
Estávamos ainda na corrente de Humboldt, exatamente a 100 milhas da terra. A
grande questão era saber se escaparíamos dos traiçoeiros redemoinhos ao sul das
Galápagos. Isto podia ter consequências fatais, pois, uma vez lá, podíamos ser
arrastados em todos os sentidos por fortes correntes oceânicas que se dirigiam à
costa da América Central. Se, porém, as coisas corressem segundo os nossos
cálculos, nos desviaríamos para oeste com a corrente principal antes de
chegarmos ao ponto norte onde se achavam as Galápagos. O vento soprava ainda
diretamente de sueste. Içamos a vela, virando a popa da jangada para o mar mais
picado e continuamos nossos plantões de direção.

Knut já se restabelecera dos tormentos do enjoo e com Torstein trepou no topo


do mastro, onde se faziam experiências com misteriosas antenas de rádio,
suspensas tanto por balão como por papagaio. De repente, do canto da cabana
onde se achava instalado o rádio, um deles berrou que podia ouvir a estação
naval de Lima a chamar-nos.

Disseram que o avião do embaixador americano havia partido da costa para nos
dar o último adeus e ver o aspecto que apresentávamos no mar. Pouco depois
obtivemos ligação direta com o radio-operador do avião e então mantivemos
uma conversa, que absolutamente não esperávamos, com a secretária da
expedição, Gerd Vold, que viajava nele. Demos nossa posição com a exatidão
possível e durante horas enviamos sinais indicadores da direção. E a voz no éter
se tornava ora mais forte ora mais fraca, enquanto o ARMY119 rodava perto ou
longe e procurava. Mas não ouvimos o ronco dos motores e não vimos o
aeroplano. Não era fácil encontrar a pequena jangada na cavidade das ondas, e a
nossa vista era estritamente limitada. Por fim o avião teve de desistir e tornou à
costa. Foi a última vez que alguém tentou sair em nossa busca. O mar andou
revolto nos dias que se seguiram, mas as ondas vinham de sueste silvando, com
intervalos iguais umas das outras, e o domínio da jangada correu mais suave.
Enfrentamos o mar e o vento da quadra de popa, de modo que o piloto estava
menos exposto aos vagalhões e a jangada ia com mais firmeza e sem jogar tanto.

Notamos ansiosos que o vento alísio de sueste e a corrente de Humboldt estavam


dia a dia mandando-nos para uma rota que nos conduziria às correntes contrárias
em torno das ilhas Galápagos. E nos dirigíamos para noroeste com tanta rapidez
que, naqueles dias, a nossa média diária era 5560 milhas, com um máximo de
71.

- Tudo bem nas Galápagos? - perguntou Knut um dia, cautelosamente, olhando


para o nosso mapa, onde estava marcado um fio de pérolas indicando nossas
posições, parecendo um dedo a apontar sinistramente para aquelas malfadadas
ilhas.

- Sei lá - disse eu. - Contam que o inca Tupac Yupanqui navegou do Equador às
Galápagos pouco antes de Colombo, mas nem ele nem outro qualquer se fixou lá
porque não havia água.

- Bem, bem - retrucou Knut. - Então não queremos ir lá. Pelo menos, espero que
não.

Estávamos já tão habituados a ver a dança do oceano em torno de nós que não
fizemos caso disto. Que importava se tivéssemos de bailar um pouco tendo
debaixo de nós mil quadras de água, contanto que nós e a jangada estivéssemos
sempre no topo? Neste ponto foi que surgiu outra questão: quanto tempo, de
acordo com os nossos cálculos e esperanças, podíamos nos conservar no topo?
Era fácil ver que os toros de balsa absorviam água. A viga transversal posterior
era pior que as outras; podíamos fincar a ponta inteira do dedo nela sentindo a
madeira encharcada e o som característico do líquido causado pela pressão. Sem
dizer nada, parti um pedaço de madeira ensopada e atirei-a ao mar.

Ela submergiu e lentamente desapareceu nas profundezas. Posteriormente vi dois


ou três companheiros fazerem exatamente a mesma coisa, julgando que ninguém
os observava no momento. Olharam, reverentes, para o pedaço de pau, todo
cercado de água, submergindo tranquilamente na água verde. Ao partirmos,
havíamos assinalado na jangada a linha de flutuação, mas no mar agitado era
impossível averiguar o calado, porque se agora os toros se achavam acima da
água, no momento seguinte estavam profundamente submersos nela.

Se, porém, enterrávamos uma faca na madeira, víamos com alegria que ela
estava mais ou menos seca abaixo da superfície. Calculamos que, se a água
continuasse a penetrar no pau na mesma proporção, a jangada flutuaria sob a
superfície da água pelo tempo que esperávamos estar nos aproximando da terra.
Mas tínhamos esperança de que, mais no cerne, a seiva operaria como agente
impregnador moderando a absorção.

Houve, durante as primeiras semanas, outra ligeira ameaça pendente sobre


nossos espíritos.

Eram as cordas. Durante o dia estávamos tão ocupados que pouco pensávamos
no assunto, mas quando as trevas caíam e nos metíamos na cama sobre o chão da
cabana, tínhamos mais tempo para pensar, sentir e escutar. Deitados nos
colchões de palha, podíamos sentir o entrançado em que jazíamos arfando
ritmicamente com os toros de pau.

Além dos movimentos da própria jangada, os nove troncos também se moviam.


Quando um subia, outro arfando descia ligeiramente. Não se moviam muito, mas
era o bastante para dar à gente a sensação de estarmos deitados sobre o dorso de
enorme animal a respirar. Então preferíamos ficar deitados sobre um toro no
sentido longitudinal. As duas primeiras noites foram as piores, mas depois
estávamos muito cansados para nos preocuparmos com o caso.

Mais tarde as cordas incharam um pouco com a água e conservaram mais


quietos os nove troncos. Apesar disto, não havia nunca a bordo uma superfície
plana que se mantivesse perfeitamente quieta em relação às outras coisas. Como
a base se movia para cima, para baixo e para o lado em cada junta, tudo mais se
movia com ela. A coberta de bambu, o duplo mastro, as quatro paredes trançadas
da cabana e o telhado de taquara com folhas por cima, tudo estava amarrado com
cordas e se torcia e levantava em direções opostas. O risco era quase
imperceptível, mas suficientemente claro. Se um canto subia, o outro descia e, se
uma metade do telhado trazia todas as ripas para a frente, a outra metade
arrastava as ripas para trás. E se olhássemos para fora pelos vãos abertos, havia
ainda mais movimento e mais vida, porque lá o céu se movia mansamente num
círculo enquanto que o mar pulava alto na direção dele.

As cordas suportavam a pressão. Podíamos ouvi-las a noite inteira gemendo e


chiando, atritando-se e rangendo. Era como um só coro de lamentações em redor
de nós no escuro, tendo cada corda sua própria nota conforme a espessura e a
tensão. Cada manhã procedíamos a um minucioso exame das cordas.
Deixávamos até que nos pendurassem à beira da jangada com a cabeça na água
enquanto dois homens nos seguravam com força pelos tornozelos, para vermos
se não havia novidade com as cordas que estavam por baixo da embarcação. A
verdade é que as cordas aguentaram. Duas semanas, haviam dito os marujos:
depois disto, todas as cordas estariam gastas. Mas, a despeito de opiniões tão
unânimes, não tínhamos até então encontrado o menor sinal de desgaste. Só
depois de nos acharmos, há muito, no mar, demos com a explicação. E que o
pau-de-balsa era tão macio que as cordas penetravam lentamente na madeira e,
em vez de serem gastas pelos troncos, eram por eles protegidas.

Mais ou menos depois de uma semana, o mar tornou-se mais calmo, e notamos
que a água tinha passado de verde a azul. Principiamos a mover-nos a oeste-
noroeste em vez de a noroeste, e tornamos isto como o primeiro débil sinal de
que havíamos saído da corrente costeira e sobreveio alguma esperança de
estarmos sendo levados para o mar alto.

Logo no primeiro dia em que ficamos a sós no mar, reparamos nuns peixes que
rodeavam a jangada -, mas estávamos muito atarefados com o governo da
embarcação para pensarmos em pescaria. No segundo dia, deparou-se-nos um
cardume de sardinhas. Logo depois um tubarão azul de 2,40m veio vindo a rolar
sua barriga branca para cima enquanto roçava na popa alagada da embarcação,
onde Herman e Bengt de pé e descalços, estavam dirigindo.

Andou-nos rodeando por algum tempo, mas desapareceu quando, resolvidos a


agir, pegamos no arpão. No dia seguinte fomos visitados por atuns, bonitos e
dourados, e quando um peixe-voador grande veio bater dentro da jangada, nós o
empregamos como isca e imediatamente puxamos para dentro dois grossos
dourados, um de 9 outro de 16 kg.

Serviram-nos de alimento durante vários dias. No plantão de direção podíamos


ver muitos peixes que nem conhecíamos. Um dia topamos com um cardume de
porcos-do-mar que parecia não ter fim. Era uma quantidade imensa de dorsos
negros a mexer-se, amontoados e muito unidos ao lado da jangada, aqui e ali
surgindo por todo o mar, na maior distância que podíamos alcançar do topo do
mastro. E quanto mais nos aproximávamos do equador e nos afastávamos da
costa, mais comuns se tornavam os peixes-voadores. Quando, por fim,
penetramos na água azul, onde o mar manso rolava majestosamente, brilhante de
sol, encrespado por lufadas de vento, vimo-los cintilar como uma chuva de
projéteis, arrojando-se da água e voando em linha reta até que sua força voadora
se esgotasse, e eles então desapareciam na superfície.

Se, à noite, púnhamos do lado de fora a lampadazinha de parafina, os peixes-


voadores eram atraídos pela luz e, grandes e pequenos, vinham cair sobre a
jangada. Muitas vezes iam dar na cabana de bambu ou na vela e tombavam ao
desamparo no convés. E que, incapazes de ganhar uma saída qualquer para a
água, ficavam deitados onde caiam, a debater-se desesperadamente, como
arenques de olhos grandes e de longas barbatanas peitorais.

Acontecia algumas vezes ouvirmos alguém engrolando, raivoso, uma algaravia


qualquer lá no convés, quando um frio peixe-voador vinha inesperadamente e,
em boa velocidade, lhe dava com o corpo uma bofetada. Vinham sempre muito
rápidos com o focinho para a frente, e, se era alguém apanhado em cheio na cara,
essa ficava ardendo e cocando. Mas o ofendido não tardava em perdoar o ataque
gratuito, porque aquelas paragens marítimas, com todos os seus contras, não
deixavam de ter seus encantos, brindando aos que por ali vagavam com
deliciosos peixes que chegavam até pelo ar. Costumávamos frigi-los para o
almoço, e não sabemos bem se por causa do peixe, do cozinheiro ou do nosso
apetite, o certo é que, depois que os escamávamos, eles nos faziam lembrar
trutazinhas fritas.

A primeira obrigação do cozinheiro ao levantar-se pela manhã era sair para a


coberta e recolher todo peixe-voador que, no correr da noite, tivesse caído a
bordo. Em geral havia meia dúzia ou mais, e uma manhã encontramos sobre a
jangada vinte e seis peixes-voadores gordos. Knut ficou bastante aborrecido
porque certa manhã, quando lidava com a frigideira, um peixe-voador foi bater-
lhe na mão em vez de ir diretamente para a gordura quente. Nossa intimidade de
vizinhos com o mar só foi verdadeiramente compreendida por Torstein quando
uma manhã, ao acordar, encontrou uma sardinha no travesseiro. Havia tão pouco
espaço na cabana, que Torstein estava deitado com a cabeça na soleira da porta,
e se alguém, ao sair de noite, sem querer lhe pisasse no rosto, ele o mordia na
perna. Pegou a sardinha pelo rabo e, de uma maneira inteligente, lhe segredou
que todas as sardinhas gozavam de sua simpatia. Conscienciosamente nós
encolhemos as pernas, para que, na noite seguinte, Torstein tivesse mais espaço.
Mas aí sucedeu uma coisa que fez com que Torstein fosse dormir no lugar mais
alto de todos os trens de cozinha, no canto reservado ao rádio.

Isto foi algumas noites mais tarde. Estava sombrio e escuro como breu, e
Torstein havia colocado a lâmpada de parafina perto da cabeça. Por volta das
quatro horas, acordou com a lâmpada revirada e uma coisa fria e úmida a roçar-
lhe pelas orelhas. ”Peixe-voador”, pensou ele, tateando no escuro vendo se o
agarrava para o atirar longe. Pegou numa coisa comprida e molhada que se
agitava como uma cobra, e largou-a ao perceber que as mãos lhe ardiam como se
estivessem queimando. O visitante invisível, enroscando-se, escapuliu, indo
passar por cima de Herman, enquanto Torstein procurava acender a lâmpada.
Herman também acordou assustado. Pondo-me igualmente desperto, pensei no
polvo que, naquelas águas, surge à noite. Depois que conseguimos acender a
lâmpada, Herman, triunfante, sentado, segurava com a mão o pescoço de um
peixe comprido e fino que se retorcia nas suas mãos como uma enguia. O peixe
tinha uns 95 centímetros de comprimento, era delgado como uma serpente, tendo
feios olhos pretos, e focinho comprido com uma voraz mandíbula cheia de
dentes longos e agudos. Os dentes eram afiados como navalha e podiam dobrar-
se até o céu da boca para dar passagem ao que ele engolisse. Ao ser pressionado
pelos dedos de Herman, eis que um peixe branco de olhos grandes, com cerca de
20 cm de comprimento, aí subitamente expelido do estômago e da boca do peixe
rapace, logo seguido por outro semelhante. Sem dúvida estes dois peixes
habitavam as grandes profundidades, e estavam bastante maltratados pelos
dentes do peixe-cobra. A pele fina do peixe-cobra era de um azul violáceo nas
costas e de um azul de aço por baixo e se foi descarnando todo quando o
agarramos.

Bengt também acordara, afinal, com o barulho, e nós aproximamos do nariz dele
a lâmpada e o comprido peixe. Estremunhado, sentou-se sobre o saco de dormir
e disse com solenidade:

- Não, peixe assim não existe.

Disse e, virando-se pacatamente para o lado, tornou a dormir. Bengt não andava
muito longe da verdade. Mais tarde verificou-se que nós seis sentados em redor
da lâmpada na cabana de bambu fomos os primeiros homens a ver esse peixe
vivo. Apenas esqueletos de peixes como esse tinham sido achados algumas
vezes na costa da América do Sul e nas ilhas Galápagos; os ictiólogos
chamaram-lhe Gempylus ou cavalinhas-serpente e supunham que ele vivia no
fundo do mar a grandes profundidades, porque ninguém jamais o tinha visto
vivo. Se, porém, ele vivia a grande profundidade, isto devia ser de dia, quando o
sol lhe cegava os enormes olhos, porquanto em noites escuras o Gempylus
andava bem à superfície do mar; nós na jangada tivemos experiência disto.

Uma semana depois que o raro peixe viera parar no saco de dormir de Torstein,
tivemos outra visita. Eram também quatro horas da manhã e a lua nova tinha
desaparecido, de maneira que estava escuro, mas as estrelas brilhavam no
firmamento. A jangada ia sendo dirigida com facilidade, e quando o meu plantão
terminou, dei uma volta pela beirada da embarcação para ver se tudo estava em
ordem para o novo plantonista. Eu tinha uma corda em volta da cintura, como
todo vigia sempre tinha, e, com a lâmpada de parafina na mão, andava
cuidadosamente ao longo do tronco extremo para evitar o mastro. O tronco
estava úmido e escorregadio, e fiquei furioso quando alguém agarrou de surpresa
a corda atrás de mim e a puxou até quase eu perder o equilíbrio. Voltei
enraivecido a lanterna, mas não vi por ali nem vivalma. Senti novo puxão na
corda e vi uma coisa brilhante deitada na coberta, a retorcer-se. Era um novo
Gempylus. Desta vez ele enterrara os dentes na corda com tanta vontade que
vários deles se quebraram, antes que eu conseguisse soltá-la. Provavelmente o
clarão da lanterna batera ao longo da corda branca, e o nosso visitante das
profundezas do oceano a tinha agarrado na esperança de, com um salto para
cima, abocanhar mais um pitéu comprido e gostoso. Acabou seus dias dentro de
um frasco de formalina.

O mar encerra muitas surpresas para quem tem o chão quase ao nível da
superfície oceânica e vai vogando devagar e sem fazer barulho.

Um homem dado a esportes que se embrenhe pelas matas, na volta pode dizer
que lá não viu nada demais. Outro que se sente num toco e se disponha a esperar,
muitas vezes terá percebido lá, entre o estalido das folhas secas e o ramalhar da
folhagem, olhos curiosos que espreitam cautelosamente. O mesmo se passa no
mar. Geralmente sulcamos as ondas com máquinas roncadoras e vaivéns de
êmbolos, a água a espumar em roda das proas. Depois regressamos e dizemos
que não há nada que ver em alto-mar. Não se passava dia sem que, enquanto
íamos flutuando à superfície do oceano, fôssemos visitados por hóspedes
curiosos que se debatiam e rabeavam em torno de nós, e alguns deles, tais como
dourados e pilotos, se familiarizavam tanto conosco que acompanhavam a
jangada pelo mar e ficavam junto dela dia e noite.

Quando era já noite fechada e as estrelas cintilavam no escuro céu tropical, a


fosforescência se espraiava em torno competindo com as estrelas, e cada
plâncton resplandecente semelhava tão vivamente a carvões redondos que nós,
sem querer, encolhíamos as pernas nuas quando, arremessadas pela água, as
refulgentes pelotas vinham rolar-nos aos pés na popa da jangada. Quando as
apanhávamos, víamos que eram camarõezinhos de uma espécie notável pelo
vivo fulgor. Em noites assim às vezes nos assustávamos, quando dois olhos
redondos rutilantes subitamente surdiam do mar bem ao lado da jangada e nos
fitavam com um hipnótico olhar imobilizado. Muitas vezes eram lulas enormes
que apareciam e boiavam à flor d’água, com seus diabólicos olhos verdes
brilhando no escuro como fósforos incandescentes. Mas outras vezes eram os
olhos rútilos de peixes dos abismos oceânicos que só de noite vinham à tona e se
deixavam ficar, fascinados com a luz bruxuleando diante deles. Em várias
ocasiões, quando o mar estava calmo, a água escura que rodeava a jangada
ficava, de repente, coalhada de cabeças redondas de sessenta a noventa
centímetros de diâmetro, que jaziam ali imóveis, fitando-nos com grandes olhos
brilhantes. Em outras noites, bolas de luz de mais de noventa centímetros de
diâmetro eram visíveis dentro da água, fulgindo em intervalos regulares como
luzes elétricas acesas durante segundos. Pouco a pouco, fomo-nos acostumando
a ver esses animais marinhos debaixo do soalho; apesar disto nos
surpreendíamos cada vez que aparecia um novo espécime. Por volta das duas
horas de uma noite nublada, o homem do leme, com dificuldade de distinguir da
água escura o céu negro, divisou uma luz frouxa lá embaixo na água que
lentamente tornava a forma de um grande animal. Era impossível dizer se se
tratava de plâncton a brilhar-lhe em cima do corpo, ou se o próprio animal tinha
superfície fosforescente; o bruxuleio dentro da água dava ao estranho ser
contornos obscuros e vagos. Ora se apresentava arredondado, ora oval ou
triangular, e de repente se separava em duas partes que nadavam para um lado e
para outro debaixo da jangada, uma independente da outra. Finalmente havia três
destes grandes fantasmas fulgentes a vagar em círculos lentos por baixo de nós.
Eram verdadeiros monstros, porquanto só as partes visíveis tinham uns nove
metros de comprimento. Rapidamente nos reunimos no convés para acompanhar
de perto aquela dança fantástica. Ela continuou horas a fio, seguindo a rota da
jangada. Misteriosos e calados, nossos refulgentes companheiros conservavam
uma distância abaixo da superfície, as mais das vezes do lado de estibordo, onde
estava a luz, mas frequentemente bem debaixo da jangada ou surgindo no
costado de bombordo. A luz frouxa que se via sobre seus dorsos mostrava serem
animais maiores que elefantes. Mas não eram baleias, porque nunca vinham à
tona para respirar. Seriam eles gigantescas arraias que mudavam de forma
quando se voltavam sobre o lado? Não davam nenhuma importância ao fato de
baixarmos a luz até a superfície da água para atraí-los ao alto a fim de vermos
que espécie de animais eram. E, como todos os duendes e fantasmas que se
prezam, sumiram nos abismos com os primeiros alvores da manhã.

Nunca tivemos cabal explicação da visita noturna dos três monstros luminosos, a
não ser que a solução tenha sido dada por outra visita que recebemos dia e meio
mais tarde em pleno esplendor meridiano. Era dia 24 de maio, e vogávamos com
mar calmo exatamente a 95° oeste por 7° sul. Sendo quase meio-dia,
acabávamos de jogar na água as tripas de dois grandes dourados que tínhamos
pescado de manhã cedo. Eu dava um refrescante mergulho junto à proa, deitado
na água, com os olhos bem atentos na extensão que me rodeava e preso à ponta
de uma corda. Aí avistei um volumoso peixe pardo, de 1,80m de comprimento,
que vinha na minha direção fendendo a água cristalina do mar. De um pulo veloz
galguei a beira da jangada e sentei-me ao sol quente, a olhar o perigo que
passava tranquilamente, quando ouvi um formidando berro de Knut, que estava
sentado à ré detrás da cabana de bambu: ”Tubarão!” até sua voz rematar num
falsete. Como quase diariamente víamos, sem tamanho estardalhaço, tubarões
nadando ao lado da jangada, compreendemos que aquele devia ser um novo
espécime e nos reunimos na popa para auxiliar Knut.

Knut estivera ali de cócoras, a lavar seu calção na corrente, e levantando os


olhos por um momento, cravou-os diretamente na carantonha maior e mais
horrenda que qualquer um de nós já tenha visto algum dia de sua vida. Era a
cabeça de um verdadeiro monstro marinho, tão descomunal e horroroso que o
próprio Netuno, se surdisse com seu tridente dos abismos do oceano, não nos
faria maior impressão. A cabeça era larga e chata como a de uma rã, com dois
olhinhos de cada lado e uma mandíbula de sapo, de 1,20m ou 1,50m de largura,
e com longas franjas a penderem-lhe dos cantos da boca. Atrás da cabeça
estendia-se um enorme corpo terminando num rabo comprido e fino com uma
pontuda barbatana caudal ereta, a provar que aquele monstro marinho não era
nenhuma espécie de baleia. Debaixo da água o corpo parecia escuro, mas tanto a
cabeça como o corpo eram profusamente cobertos de pequenas malhas brancas.
O monstro vinha com perfeita calma, nadando preguiçosamente atrás de nós da
parte da popa. Arreganhava os dentes como um cão de fila e zurzia brandamente
a cauda. A grande e redonda barbatana dorsal ressaía claramente da água, o
mesmo acontecendo algumas vezes com a barbatana caudal, e quando o animal
se achava no espaço formado por duas ondas, a água lhe escorria pelo vasto
dorso como se estivesse a lavar um recife submerso. Em frente às imensas
mandíbulas nadava uma verdadeira chusma de pilotos zebrados, formando como
que um leque, e grandes rêmoras e outros parasitos firmemente agarrados ao
corpanzil viajavam com ele pela água dentro, de modo que aquilo parecia uma
curiosa coleção zoológica apinhada ao redor de uma coisa que se assemelhava a
um rochedo flutuante.

Um dourado de uns 11kg, ligado a seis dos nossos maiores anzóis, estava
dependurado detrás da jangada para servir de engodo a tubarões, e um cardume
de pilotos passou por ali como uma bala, cheirou o dourado sem tocar-lhe e
depois correu de volta a seu senhor e mestre, o rei do mar. Como se fora um
monstro mecânico, ele pôs o seu maquinismo a funcionar e avizinhou-se
calmamente do dourado que ali estava, qual misérrima ninharia, diante de suas
mandíbulas. Tratamos de puxar o dourado para dentro, e o monstro marinho o
foi seguindo lentamente até um lado da jangada. Não abriu a boca, mas apenas
deixou o dourado bater contra ela, como se não valesse a pena escancarar a porta
para tão insignificante migalha. Quando o gigante chegou muito perto da
jangada, raspou o dorso no pesado remo de direção, que no momento se erguia
fora da água, dando-nos isto ampla oportunidade para examinarmos o monstro
bem de perto, tão de perto que cuidei havermos todos enlouquecido, pois quase
estouramos de tanto rir, soltando, ao mesmo tempo, em altos berras exclamações
de legítimo estupor ante o espetáculo fantástico que presenciávamos. O próprio
Walt Disney, com toda a força de sua imaginação, não poderia criar um monstro
marinho mais horripilante do que aquele que, assim tão subitamente, estava ali
com as suas terríficas mandíbulas ao lado de nossa jangada.

O monstro era um tubarão-gigante, o maior tubarão e o maior peixe hoje


conhecido no mundo. E extremamente raro, mas espécimes dispersos são
observados aqui e ali nos mares tropicais. O tubarão-gigante tem, em média,
15m de comprimento e, segundo os zoólogos, pesa 15 toneladas. Dizem que os
grandes espécimes podem atingir 20m de comprimento, e certa cria que foi
arpoada tinha um fígado pesando 272kg e uma série de três mil dentes em cada
uma das imensas mandíbulas. O monstro era tão grande que, quando começou a
nadar descrevendo círculos em redor de nós e sob a jangada, sua cabeça podia
ser vista de um lado enquanto a cauda inteira avultava do outro. E pareceu tão
grotesco, inerte e bronco quando visto bem perto de frente, que não pudemos
deixar de rir-nos às gargalhadas, embora compreendêssemos que, se nos
atacasse, tinha na cauda força suficiente para reduzir a pedaços tanto os toros de
balsa como as cordas. Repetidas vezes descreveu círculos cada vez menores sob
a jangada, enquanto nós ficamos aguardando o que podia acontecer. Ao sair na
outra banda, deslizou amavelmente sob o remo de direção e o ergueu no ar, ao
passo que a pá do remo resvalou-lhe por todo o dorso. Estávamos todos munidos
de arpões portáteis, prontos para agir, mas eles pareciam palitos em relação ao
peixe descomunal com que tínhamos de lidar. Não havia indícios de que o
tubarão gigante pensasse em nos deixar; fazia círculos e mais círculos e nos
seguia como um cão fiel. Nenhum de nós poderia imaginar que em sua vida
fosse ter uma experiência como aquela. A aventura com o monstro marinho a
nadar ora atrás da jangada, ora debaixo dela, nos pareceu tão fora do natural, que
não nos animávamos a tomá-la como real.

Na verdade, não fazia nem uma hora que o tubarão-gigante dava giros em torno
de nós, mas a visita nos parecia ter a duração de um dia inteiro. Afinal, aquilo se
afigurou demasiado irritante para Erik, que estava de pé a um canto da jangada,
com um arpão de 2,40m, e esporeado por gritos imprudentes, levantou o arpão
acima da cabeça. Quando o tubarão-gigante veio deslizando vagarosamente na
direção dele e sua larga cabeça surgiu bem debaixo do canto da jangada, Erik,
com toda a sua força gigantesca, arremessou por entre as pernas o arpão, que foi
cravar-se profundamente na cartilaginosa cabeça do tubarão gigante. Decorreram
uns dois segundos antes que o gigante percebesse cabalmente do que se tratava.
Então, repentinamente, o plácido lorpa se transformou numa montanha de
músculos de aço. Ouvimos um ruído sibilante quando a linha do arpão passou
violentamente sobre a beira da jangada. E vimos um cascatear de água quando o
monstro ergueu alto a cabeça para logo depois mergulhar nos abismos. Os três
homens que se achavam mais perto foram atirados de pernas para cima, e dois
deles ficaram esfolados e queimados pela linha quando ela fendia o ar. A linha
grossa, com força suficiente para amarrar um bote, ficou presa no lado da
jangada, mas partiu-se no mesmo momento como um pedaço de barbante, e uns
segundos depois o arpão quebrado surgiu à tona da água a mais de 180m de
distância.

Um cardume de assustados pilotos passou como um raio pela água, em


desesperadora tentativa de seguir o rastro de seu antigo senhor e mestre, e
ficamos longo tempo à espera de que o monstro voltasse como um submarino
furioso; mas nunca mais vimos nenhum vestígio do tubarão-gigante. ’
Estávamos agora na corrente equatorial do sul, movendo-nos em direção
ocidental a 400 milhas das Galápagos. Já não havia perigo de se vogar para
aquelas correntes e o único contato que tivemos com esse grupo de ilhas foram
umas enormes tartarugas marítimas que, vindo, sem dúvida, das ilhas, se haviam
extraviado em alto-mar. Um dia vimos uma descomunal tartaruga marítima
virada, em luta, tendo a cabeça e uma grande perna acima da superfície da água.

Quando a onda se ergueu, divisamos uma frouxa claridade verde, azul e dourada
na água debaixo da tartaruga. Verificamos então que ela se achava empenhada
numa luta de vida e de morte com dourados. A peleja era evidentemente
desigual: uns doze ou quinze dourados de cabeça grande e de brilhante colorido
atacavam o pescoço e as pernas da tartaruga, a quem tentavam vencer pela
fadiga, porquanto o animal não podia ficar virado dias seguidos escondendo a
cabeça e os pés no interior da concha. Quando a tartaruga avistou a jangada,
mergulhou e se dirigiu para o nosso lado, perseguida pelos cintilantes peixes.
Avizinhou-se bastante da beira da jangada e já fazia menção de trepar na
madeira quando nos viu lá de pé.

Se tivéssemos mais prática, poderíamos, sem dificuldade, tê-la apanhado com


cordas, enquanto a colossal carapaça remava pacatamente ao lado da
embarcação. Em vez, porém, de aproveitarmos a oportunidade, passamo-la a
olhar para o animal, e, quando fomos atirar o laço, já o gigantesco quelônio tinha
ultrapassado a proa. Lançamos à água nosso botezinho de borracha, e Herman,
Bengt e Torstein partiram em perseguição da tartaruga marítima naquela redonda
casquinha de noz, não muito maior do que aquilo que ia nadando à frente deles.
Como despenseiro que era, Bengt viu em espírito uma enfiada de pratos de carne
e a mais deliciosa das sopas de tartaruga. Mas quanto mais rapidamente
remavam, mais depressa a tartaruga deslizava pela água pouco abaixo da
superfície, e não se achavam eles a mais de noventa metros da jangada quando,
de repente, a tartaruga desapareceu sem deixar vestígio. Tinham, em todo caso,
praticado uma boa ação. Pois, quando o botezinho amarelo de borracha vinha de
regresso dançando sobre a água, seguia-o uma luzida chusma de dourados.
Rodearam a nova tartaruga, e os mais atrevidos deram dentadas nas pás dos
remos que mergulhavam na água como nadadeiras; enquanto isso, a pacífica
tartaruga escapou ilesa dos seus ignóbeis perseguidores.
CAPÍTULO V
NO MEIO DO CAMINHO

A vida e as experiências de cada dia - Água potável para quem viaja


em jangada - A batata e a cabaça revelam um segredo - Cocos e
caranguejos Johannes - Navegamos através de sopa de peixe -
Plâncton - Fosforescência comestível - Nossas relações com baleias -
Formigas e bernaclas - Peixes amigos - O dourado como companheiro
- Pescando tubarões - A Kon-Tiki transformada em monstro marinho -
Pilotos e rêmoras nos deixam por causa dos tubarões - Lulas voadoras
- Visitantes desconhecidos - O cesto de imersão - Com o atum e o
bonito no seu próprio elemento - O falso escolho - A quilha corrediça
decifra um enigma - Na metade do caminho.

DECORRERAM SEMANAS. Não vimos sinal algum nem de navio nem de


qualquer outra coisa que navegasse, para nos mostrar que havia mais gente no
mundo além de nós. O oceano inteiro era nosso e, com todas as portas do
horizonte abertas, uma paz real e a verdadeira liberdade desceram do firmamento
sobre nós.

Era como se o gosto fresco de sal que havia no ar e a imensa pureza azul que nos
rodeava nos tivessem lavado o corpo e purificado a alma. A nós, sobre aquela
jangada, os grandes problemas do homem civilizado se afiguravam falsos e
ilusórios, meros produtos pervertidos do espírito humano. Só os elementos se
revestiam de importância. E os elementos pareciam não fazer caso da jangada.
Ou talvez eles a estivessem aceitando como um objeto natural que não quebrava
a harmonia do mar, mas que se adaptava à corrente e ao oceano como a ave e o
peixe. Em vez de se mostrarem um inimigo temível, investindo contra nós a
espumar, os elementos se haviam tornado um amigo fiel que, com firmeza e
segurança, nos ajudava a avançar. Enquanto o vento e as ondas nos empurravam
e impeliam, a corrente oceânica permanecia debaixo de nós e nos transportava
sempre mais para a meta.

Se um bote cruzasse conosco no oceano num dia comum, nos encontraria


balouçando sossegadamente para cima e para baixo sobre um mar imenso,
coberto de ondazinhas de crista branca, enquanto os ventos alísios mantinham
virada na direção da Polinésia a vela alaranjada.
Os que iam a bordo teriam visto, à popa da jangada, um homem barbado,
moreno e sem roupa, ou desesperadamente a braços com um longo remo de
direção, enquanto arrastava com violência uma corda emaranhada, ou, estando
calmo o tempo, sentado num caixote a cochilar ao sol quente e, com os dedos
dos pés, mantendo em posição adequada o remo de governo. Se o homem não
fosse Bengt, este seria visto deitado de barriga para baixo na porta da cabana,
com um dos seus setenta e três livros de sociologia. Bengt tinha ainda sido
nomeado despenseiro de bordo, sendo responsável pelo rol das rações diárias.
Herman podia ser encontrado em diferentes lugares, a qualquer hora do dia: no
topo do mastro com instrumentos meteorológicos; debaixo da jangada com uns
óculos de mergulhador, a examinar uma quilha corrediça; ou à sirga, no
botezinho de borracha, ocupado com balões e curiosos aparelhos de medir. Ele
era técnico, responsável pelas observações meteorológicas e hidrográficas.

Knut e Torstein estavam sempre às voltas com úmidas baterias, ferros de soldar
e circuitos.

Todo o treino adquirido durante a guerra era exigido agora para, com os borrifos
de espuma e com o orvalho, manter em funcionamento a pequena estação de
rádio 30 centímetros acima da superfície da água. Todas as noites eles se
revezavam para enviar ao éter nossas informações e observações sobre o tempo.
Radioamadores avulsos as apanhavam e retransmitiam ao Instituto
Meteorológico de Washington e a outros destinos.

Erik, geralmente sentado, consertava velas e enlaçava pontas de corda, ou


entalhava em madeira e desenhava homens barbados e peixes extravagantes. E,
ao meio-dia, diariamente, pegava no sextante e trepava a um caixote para olhar
para o sol e verificar quanto havíamos progredido desde a véspera. Quanto a
mim, tinha bastante que fazer com o roteiro de navegação e com as notas, com a
coleção de algas, o plâncton, a pesca, as fotografias. Cada um tinha sua esfera de
responsabilidade e nenhum se intrometia no trabalho alheio. As ocupações
piores, como cozinhar e montar guarda junto ao leme, eram divididas igualmente
entre todos. Cada um tinha de ficar ao remo de governo duas horas por dia e
duas horas por noite. E o serviço de cozinha era distribuído de acordo com uma
escala renovada diariamente. Havia poucas leis e regulamentos, reduzidos mais
ou menos ao seguinte: o vigia noturno devia ter uma corda em volta da cintura; a
corda salva-vidas tinha um lugar certo; todas as refeições deviam ser feitas fora
da cabana; o W. C. era somente na mais afastada extremidade dos toros, à ré. Se
era necessário tomar alguma decisão importante, reuníamo-nos em assembleia e
discutíamos o assunto antes de qualquer deliberação.

Um dia de rotina a bordo da Kon-Tiki começava com a obrigação, que incumbia


ao último vigia noturno, de infundir um pouco de vida no cozinheiro, sacudindo-
o; este, estremunhado, se arrastava para o convés úmido de orvalho, onde já
batia o sol da manhã, e punha-se a recolher os peixes-voadores que havia. Em
vez de comer os peixes crus, conforme a receita tanto polinésia como peruana,
nós os fritávamos sobre o fogareirinho Primus, no fundo de um caixote
solidamente amarrado ao convés, do lado externo da porta da cabana. Este
caixote era a nossa cozinha. Aqui em geral havia abrigo contra os ventos alísios
de sudeste que, por via de regra, sopravam do lado oposto ao da cozinha.
Somente quando o vento e o mar ativavam de modo exagerado a chama do
Primus é que esta ateava fogo ao caixote de madeira, e uma vez, tendo o
cozinheiro pegado no sono, o caixote todo se converteu num fogaréu que se
comunicou à própria parede da cabana de bambu. Mas o fogo na parede foi
depressa apagado quando a fumaça se introduziu na choça, porque, afinal, a
bordo da Kon-Tiki não tínhamos de ir muito longe para buscar água. Raramente
o cheiro de peixe frito lograva acordar os roncadores do interior da cabana de
bambu, e assim, quase sempre o cozinheiro tinha de espicaçá-los com um garfo
ou de cantar o ”É hora do rancho”, de uma maneira tão desafinada, que
ninguém podia suportar o berreiro por muito tempo. Se ao pé da jangada não se
viam barbatanas de tubarão, o dia principiava com um ligeiro mergulho no
Pacífico, seguido da primeira refeição feita ao ar livre na beira da jangada.

A alimentação não era passível de crítica. A cozinha estava dividida entre duas
experiências, uma dedicada ao intendente geral no século XX, outra a Kon-Tiki
no século V. Torstein e Bengt foram escolhidos para a primeira experiência e
restringiram seu regime alimentício aos pacotinhos de provisões especiais que
havíamos metido num buraco, entre os troncos e a coberta de bambu. Contudo,
peixe e comida marítima nunca tinham sido o seu forte.

Passadas poucas semanas, desamarramos as correias que prendiam a coberta de


bambu e tiramos para fora mantimento fresco, que atamos solidamente em frente
à cabana. A espessa camada de piche por fora do papelão provou ser resistente,
ao passo que as latas hermeticamente fechadas que ficaram soltas ao lado
estragaram-se pela penetração da água que constantemente banhava as nossas
provisões. Na sua primitiva travessia, Kon-Tiki não tinha piche nem latas
hermeticamente fechadas; todavia, não lutou com sérios problemas alimentares.
Aliás, naquela época, as provisões de boca consistiam naquilo que os homens
levavam consigo de terra e no que, durante a viagem, iam apanhando. Pode-se
presumir que, quando Kon-Tiki navegou da costa do Peru após sua rota junto ao
lago Titicaca, teve um desses dois intuitos. Como representante espiritual do sol
entre gente inteiramente dedicada ao culto desse astro, é muito provável que se
tenha aventurado a enfrentar o oceano para seguir o próprio sol na sua viagem,
com a esperança de achar uma nova região mais pacífica.

Outra possibilidade era dirigir suas jangadas para a costa da América do Sul,
com o intento de desembarcar bem mais acima e fundar novo reino fora do
alcance de seus perseguidores.

Uma vez livre da perigosa costa de penedias e das tribos inimigas ao longo da
praia, teria, como se deu conosco, ficado à mercê dos ventos alísios de sudeste
da corrente de Humboldt e, à discrição dos elementos, teria caído exatamente no
mesmo grande semicírculo rumo ao poente.

Fossem quais fossem os planos desses adoradores do Sol, ao fugirem de sua


pátria, eles certamente se proveram de mantimento para a viagem. Carne-seca,
peixe e batata-doce eram a parte mais importante de seu primitivo regime
alimentar. Quando os navegantes em jangada daqueles tempos se fizeram ao
mar, ao longo da erma costa do Peru, dispunham de amplo abastecimento de
água a bordo. Em vez de vasilhas de barro, geralmente usavam enormes cabaças
que resistiam a golpes e choques, enquanto ainda mais próprias ao uso em
jangada eram as grossas hastes de gigantescos bambus; furavam todos os nós e
introduziam a água por um buraquinho no fundo, que vedavam com um batoque
ou com breu ou resina.

Trinta ou quarenta dessas grossas hastes de bambu podiam ser amarradas ao


longo da jangada sob a coberta, onde ficavam à sombra e se conservavam frias -
a uns 26° C. na corrente equatorial - graças à água fresca do mar que as estava
sempre banhando. Um depósito dessa espécie continha duas vezes a quantidade
de água que nós usamos em nossa viagem, e podia ser levada quantidade ainda
maior simplesmente amarrando mais hastes de bambu na água, por baixo da
jangada, pois ali, além de não ocuparem espaço, nada pesavam.

Verificamos que, volvidos dois meses, a água doce começou a alterar-se e ter um
gosto ruim. Mas, a esse tempo, a gente já deixara bem atrás a primeira área do
oceano, onde há pouca chuva, e já chegara, há muito, a regiões nas quais grossas
pancadas de chuva podem equilibrar a provisão de água. Distribuíamos
diariamente para cada homem um bom litro de água, e raro era o dia em que a
dose se esgotava. Ainda mesmo que os nossos predecessores tivessem partido de
terra sem provisões adequadas, enquanto vogavam pelo mar, Ter-se-iam
arranjado com a corrente, na qual havia peixe em abundância. Não se passou um
dia em toda a nossa viagem em que não houvesse peixes em redor da jangada e
que não pudessem facilmente ser apanhados.

Mal houve algum dia em que ao menos peixes-voadores não viessem


espontaneamente cair ali. Sucedeu até que grandes bonitos, comida deliciosa,
subiam à jangada com as massas de água que entravam pela popa, e ficavam a
rabear na embarcação quando a água escorria por entre os toros como por um
crivo. Morrer de fome era impossível. Os antigos indígenas conheciam bem o
expediente de que durante a guerra se valeram muitos náufragos - mascar peixe
cru, extraindo assim o suco que tem a propriedade de matar a sede. Pode-se
também obter o suco torcendo pedaços de peixe num pano, ou, sendo grande o
peixe, é coisa bastante simples fazer-lhe buracos no lado, que logo se enchem de
uma exsudação oriunda de suas glândulas linfáticas. O gosto não é bom se a
pessoa tem coisa melhor para beber, mas a porcentagem de sal é tão baixa que
mata a sede.

A necessidade de beber água ficava grandemente reduzida se nos banhássemos


regularmente e permanecêssemos deitados com o corpo úmido numa
extremidade sombreada. Se algum tubarão fendia majestosamente a água em
torno de nós, impedindo-nos de dar um bom mergulho do lado da embarcação, o
recurso era ficar deitado sobre os toros na parte posterior da jangada, com os
dedos das mãos e dos pés fortemente agarrados às cordas.

Então, a intervalo de segundos, rociavam-nos brandamente as cristalinas águas


do Pacífico.

Quando, no calor, uma pessoa é atormentada pela sede, em geral supõe que o
organismo necessita de água, e isto pode gerar abuso na dose ordinária, sem
nenhum benefício para a saúde. Nos trópicos, em dias realmente quentes, pode
uma pessoa fazer descer água pela garganta abaixo até senti-la no fundo da boca,
e ter sede o mesmo. E que então o corpo não precisa de líquido mas de sal. E
curioso, mas é verdade. As rações especiais que tínhamos incluíam pastilhas de
sal que deviam ser tomadas com regularidade em dias excessivamente quentes,
porque a transpiração faz diminuir o sal do organismo. Tivemos dias assim, em
que a calmaria era completa e o sol dardejava impiedoso sobre a jangada. A dose
de água podia ser bebida toda de uma vez, a ponto de nos pesar no estômago,
mas a goela continuava a pedir muito mais. Em tais ocasiões, adicionávamos à
ração de água doce 20 a 40 por cento da salgadíssima água do mar, e com
surpresa verificávamos que essa água salobra nos mitigava a sede. Muito tempo
depois, sentíamos ainda na boca o saibo da água do mar, mas nunca nos fez mal.
Ademais, notamos considerável aumento em nossa ração de água.

Uma manhã, quando nos sentávamos para tomar a primeira refeição, uma onda
inesperada borrifou o caldo, ensinando-nos gratuitamente que o gosto da aveia
disfarçava em grande parte o enjoativo gosto da água do mar.

Os antigos polinésios haviam conservado algumas tradições curiosas, segundo as


quais seus antepassados, quando velejavam pelo mar, tinham consigo folhas de
certa planta que mascavam, e o certo é que então a sede deles desaparecia. Outro
efeito da planta era que, em caso de necessidade, podiam beber água salgada
sem sentir enjoo. Plantas destas não medravam nas ilhas dos mares do Sul;
deviam, pois, ser originárias da terra de seus avós. Os historiadores polinésios
insistiam tão obstinadamente nestas afirmações, que investigadores modernos,
estudando o assunto, chegaram à conclusão de que a única planta conhecida com
tal efeito era a coca, que só existia no Peru. E, no Peru pré-histórico, essa mesma
coca, que contém cocaína, era geralmente usada tanto pelos incas como pelos
seus desaparecidos precursores, como se prova por descobertas em túmulos pré-
incas. Em fatigantes excursões pelas montanhas e em viagens marítimas, eles
levavam consigo grande quantidade dessas folhas e as mascavam dias a eito para
afastar a sensação de sede e de cansaço. E daí a não muito tempo mascar folhas
de coca tornaria o indivíduo apto a beber água do mar com certa imunidade. Nós
não trouxéramos folhas de coca na Kon-Tiki, mas tínhamos na sua parte dianteira
grandes cestos de vime cheios de certas plantas que deixaram impressão mais
funda nos ilhéus dos mares do Sul. Os cestos estavam amarrados a sotavento da
parede da cabana e, com o correr do tempo, rebentos amarelos e folhas verdes
foram brotando e ressaindo do interior do cabaz.

Parecia haver a bordo da jangada um jardinzinho tropical. Quando os primeiros


europeus chegaram às ilhas do Pacífico, encontraram grandes plantações de
batata-doce na ilha de Páscoa, em Havaí e na Nova Zelândia, sendo essa batata
cultivada também nas outras ilhas, mas somente dentro da área polinésia. Era
inteiramente desconhecida na parte do mundo que ficava no extremo oeste. A
batata-doce era uma das plantas mais cultivadas naquelas ilhas remotas, cujos
habitantes viviam principalmente de peixe, e muitas lendas polinésias tinham
como ponto central esta planta. Segundo a tradição, ela fora trazida pelo próprio
Tiki quando, com sua mulher, Pani, veio da pátria de seus avós, onde a batata-
doce tinha sido um alimento importante. Rezam lendas da Nova Zelândia que a
batata-doce foi trazida pelo mar em embarcações que não eram canoas, mas
formadas por ”paus atados com cordas”.

Ora, como se sabe, é a América o único lugar do mundo onde havia batata antes
da vinda dos europeus. E a batata-doce que Tiki trouxe consigo para as ilhas,
Ipomaea batatas, é exatamente a mesma que os índios cultivavam no Peru desde
os tempos mais antigos. A batata-doce seca era a mais importante provisão de
viagem, tanto para os navegadores da Polinésia como para os nativos do velho
Peru. Nas ilhas dos mares do Sul a batata só dá bem se for cuidadosamente
cultivada; e, como não tolera a água salgada, é ocioso explicar sua vasta
distribuição por aquelas ilhas dispersas declarando que ela terá sido transportada
sobre 4.000 milhas marítimas com correntes oceânicas do Peru. Esta tentativa de
explicação a partir de um ponto tão obscuro é bastante inútil, visto que os
filólogos mostraram que, em todas as ilhas dos mares do Sul, espalhadas em área
tão vasta, o nome da batata-doce é kumara, e kumara é justamente a
denominação que a batata-doce tinha entre os antigos indígenas do Peru. O nome
acompanhou a batata através do oceano.

Outra planta bem importante cultivada na Polinésia e que tínhamos conosco a


bordo da Kon-Tiki era a cabaça, Lagenaria vulgaris. Tão importante quanto o
próprio fruto é a casca, que os polinésios secam ao fogo e usam para guardar
água. Esta típica planta de horta, a qual por sua vez, não pode propagar-se sem
trato, atravessando sozinha o oceano, os antigos polinésios igualmente a tinham
em comum com os primitivos povos do Peru. Estas cabaças, convertidas em
vasilhas d’água, são encontradas em túmulos pré-históricos do deserto na costa
do Peru, e lá eram usadas por aquele povo de pescadores, séculos antes de os
primeiros homens chegarem às ilhas do Pacífico. Kimi, nome que os polinésios
dão à cabaça, é ainda encontrado entre os índios da América Central, onde a
civilização do Peru tem suas raízes mais profundas.

Além de algumas frutas meridionais que comemos poucas semanas antes que
apodrecessem, tivemos a bordo uma terceira planta que, ao lado da batata-doce,
desempenhava importantíssimo papel na história do Pacífico. Levamos duzentos
cocos que deram enorme trabalho aos nossos dentes e nos forneceram bebidas
refrescantes. Várias nozes-da-índia logo principiaram a brotar, e quando fez dez
semanas que estávamos no mar, tínhamos meia dúzia de coqueirinhos de 30
centímetros, que haviam aberto seus renovos e formavam basta folhagem verde.
O coco já medrava antes de Colombo, tanto no istmo do Panamá como na
América do Sul. Escreve o cronista Oviedo que havia coqueiros em grande
número ao longo da costa peruana do Pacífico, quando os espanhóis chegaram.
Por essa época ele já existia em todas as ilhas do Pacífico. Os botânicos ainda
não sabem ao certo em que direção ele se espalhou pelo Pacífico. Mas de uma
coisa se sabe com certeza. Nem sequer o coco, com sua notória casca, pode
expandir-se através do oceano sem o auxílio do homem. Os cocos que tínhamos
em cestos no convés permaneceram comestíveis e aptos à germinação durante
todo o percurso rumo à Polinésia. Havíamos, porém, posto cerca de metade deles
entre as provisões especiais abaixo do convés, as ondas a banhá-los
incessantemente. Todos, sem exceção, foram estragados pela água salgada. E
nenhum coco desliza no oceano com maior rapidez do que a atingida por uma
jangada de pau-de-balsa, com o vento a impeli-la por trás. Foram os olhos do
coco que absorveram a água e o amoleceram, ocasionando a invasão da água
salgada. Ou então foram os ativos catadores de restos pelo oceano em fora que
se incumbiram de não permitir que coisa alguma comestível flutuante se
transferisse de um mundo para o outro.

Às vezes, em dias aprazíveis em pleno oceano azul, passávamos perto da pena


branca de alguma ave. Encontramos, a milhares de milhas do continente mais
próximo, uma ou outra procelária separada do bando e outras aves marítimas que
podem dormir no mar. Se, aproximando-nos, olhávamos para a pena mais de
perto, víamos dois ou três passageiros a bordo dela, singrando comodamente ao
sopro do vento. Quando a Kon-Tiki ia passando qual outro Golias, os passageiros
notavam que vinha vindo uma embarcação mais rápida e mais espaçosa; por isso
vinham correndo pelo lado, a todo o pano, sobre a superfície, e dali subiam na
Kon-Tiki, deixando a pena a velejar sozinha. E assim a Kon-Tiki em breve
principiava a encher-se de clandestinos. Eram pequenos caranguejos marítimos.
Do tamanho de uma unha, e uma vez ou outra bem maiores, eram petiscos para
os Golias de bordo, se nos dávamos ao trabalho de apanhá-los. Os minúsculos
caranguejos eram como policiais da superfície do mar, e não se mostravam
remissos em cuidar de si mesmos quando bispavam qualquer coisa comestível.
Se um dia o cozinheiro não reparava num peixe-voador caído entre os troncos,
no dia seguinte estava ele coberto de oito ou dez caranguejinhos, sentados sobre
o peixe e servindo-se com as tenazes. As mais das vezes, quando nos
aproximávamos, fugiam espavoridos e se escondiam, mas à ré, num buraquinho
junto do cepo de direção onde morava um caranguejo muito manso, que recebeu
o nome de Johannes. Além do papagaio, que era a diversão de todos, o
caranguejo Johannes também fazia parte da nossa comunidade no convés. Se o
homem do leme, governando sentado a embarcação num dia de sol, de costas
para a cabana, não tinha a companhia de Johannes, sentia-se extremamente só
naquela imensidão. Ao passo que os outros caranguejinhos corriam furtivamente
aqui e acolá e furtavam como baratas num bote comum, Johannes se
escarrapachava à porta com os olhos arregalados, esperando a mudança do
plantão. Todo homem que vinha para a sua hora de vigia tinha um pedacinho de
biscoito ou um pouco de peixe para Johannes, e bastava que nos curvássemos
sobre o buraco para ele imediatamente aparecer à soleira e estender as patas.
Recebia as migalhas dos nossos dedos com as tenazes e corria a enfiar-se no
buraco, instalando-se perto da porta e trincando a comida como um estudante a
atafulhar na boca uma gulodice qualquer. Os caranguejos se agarravam como
moscas aos cocos encharcados que estouravam com a fermentação, ou
agarravam plânctones trazidos pelas ondas. E estes, os mais diminutos
organismos do oceano, eram boa comida até para nós, os Golias da jangada,
quando afinal aprendemos a apanhar de uma vez uma quantidade deles que dava
para um bocado decente.

Claro é que deve existir alimento bem nutritivo nestes plânctones, animálculos
quase invisíveis que, em número infinito, se movem com as correntes oceânicas.
Os peixes e as aves marítimas que não comem plâncton vivem, em todo caso, de
outros peixes e animais marinhos, pouco importando o tamanho destes. Plâncton
é um termo geral com que se designam as milhares de espécies de
microrganismos visíveis e invisíveis que vogam quase à superfície do mar.
Alguns são plantas (fito plâncton), enquanto que outros são ovos de peixe e
minúsculos seres vivos (zooplâncton). O plâncton animal vive de plâncton
vegetal e este último vive de amoníaco, nitritos e nitratos formados de plâncton
animal morto. E enquanto eles vivem reciprocamente um do outro, todos
formam alimento para tudo que se move sobre o mar e dentro do mar. O que não
podem oferecer em tamanho oferecem em número.

Em águas de muito plâncton existem milhares na porção de um copo. Mais de


uma vez tem acontecido pessoas morrerem de fome no mar por não acharem
nenhum peixe suficientemente grande para ser apanhado em espeto, numa rede
ou num anzol. Em tais casos, sucedeu muitas vezes essas pessoas estarem a
navegar verdadeiramente numa ralíssima sopa de peixe cru. Se, além de anzóis e
redes, tivessem tido um utensílio para coar a sopa em que estavam sentadas,
teriam achado uma base nutritiva - plâncton. Talvez que um dia os homens
pensem em fazer a colheita de plâncton do mar na mesma escala em que uma
vez, há muito tempo, tiveram a ideia de fazer a colheita de trigo em terra.
Também um grão de trigo para nada serve; mas em grande quantidade torna-se
alimento.

O Dr. A. D. Bajkov, biólogo que se preocupa com as condições da vida


oceânica, deu-nos essa ideia e mandou conosco uma rede de pesca adaptada aos
seres que íamos apanhar. Era uma rede de seda com cerca de 450 malhas por 25
centímetros quadrados. Era costurada em forma de funil com uma boca circular
por trás de um aro de ferro, tendo de lado a lado 45 centímetros, e foi posta à
sirga no fim da jangada. Tal como se dá com qualquer outra, esta pescaria
variava com o tempo e o lugar. As pescas diminuíam à medida que o mar ficava
mais quente no extremo oeste, e os melhores resultados eram obtidos à noite,
visto que muitas espécies pareciam procurar maiores profundidades quando o sol
aparecia.

Se não tivéssemos outro jeito de passar o tempo a bordo da jangada, haveria


bastante distração em nos pormos de bruços, com o nariz na rede de plâncton.
Não por causa do cheiro, que era mau. Nem por ser coisa apetitosa, pois aquilo
dava ideia de uma mixórdia horrível. Mas porque, se estendíamos os plânctones
sobre uma tábua e examinávamos a olho nu cada um daqueles entezinhos
separadamente, tínhamos diante de nós formas fantásticas e infinita variedade de
cores. A maioria deles eram crustáceos (copépodes) parecidos com camarão, ou
ovos de peixe boiando desirmanados, mas havia também larvas de peixe e
mariscos, curiosos caranguejos em miniatura, do mais variado colorido,
medusas, e uma intérmina variedade de serezinhos que podiam ter sido
emprestados da fantasia de Walt Disney.

Alguns pareciam duendes rendados, a flutuar no ambiente, recortados de papel


celofane, enquanto que outros semelhavam minúsculos passarinhos de bico
vermelho e com uma casca grossa em vez de penas. A natureza era fértil em
extravagantes invenções no mundo dos plânctones; aqui um artista super-realista
teria de confessar-se vencido. No ponto em que a corrente de Humboldt se
virava do oeste para o sul do equador, podíamos, ao cabo de algumas horas, tirar
do saco vários quilos de sopa de plâncton. Os plânctones se apresentavam
amontoados como numa torta em camadas de vário colorido, pardo, vermelho,
cinzento e verde, conforme os diferentes campos de plânctones pelos quais
tínhamos passado. De noite, quando havia fosforescência em redor, era como
içar para bordo um saco de joias faiscantes. Quando, porém, o trazíamos para
mais perto, o tesouro dos piratas se transformava em milhões de minúsculos
camarõezinhos cintilantes e de larvas de peixe fosforescentes que no escuro
brilhavam como um monte de brasas. E quando os passávamos para um balde, a
massa confusa e viscosa escorria como uma tisana mágica composta de
pirilampos. A nossa pesca noturna parecia tão desagradável de perto quanto
havia sido bonita à distância. E se cheirava mal, em compensação tinha bom
sabor, se a pessoa se animasse a meter pela boca adentro uma colher daquela
fosforescência. Se o que se ingeria era uma mistura de muitos camarõezinhos
anões, tinha gosto de massa de camarão, lagosta ou caranguejo. E se, mais
frequentemente, eram ovos de peixe do fundo do mar, o gosto era de caviar e, de
vez em quando, de ostra. Os plânctones vegetais não-comestíveis eram ou tão
pequenos que escapuliam com a água pelas malhas da rede ou tão grandes que
podíamos pegá-los com os dedos. O busílis era quando apareciam no prato
celenterados parecendo geleia ou balões de vidro e medusas de quase meia
polegada de comprimento. Aqueles e estas eram amargos e tinham de ser
jogados fora. A não ser isso, podia-se comer tudo, tal como era, ou cozido em
água doce como caldo de sopa. Os gostos variam. Dois homens a bordo achavam
plâncton delicioso, dois outros achavam-no bem bom, e os dois restantes se
contentavam com vê-la. De um ponto de vista nutritivo, os plânctones são mais
ou menos comparáveis aos mariscos maiores, e, convenientemente preparados e
com bom tempero, podem ser um prato de primeira para quantos apreciam
comida marítima.

Que estes pequenos organismos contêm bastantes calorias foi provado pela
baleia azul, que é o maior animal do mundo e se alimenta de plânctones. O nosso
método de captura, com a redezinha que muitas vezes foi mastigada por peixes
famintos, nos pareceu bastante primitivo quando, sentados na jangada, vimos
passar uma baleia que atirava ao alto jorros d’água simplesmente ao coar
plânctones através da sua barba de celuloide. E um belo dia perdemos a rede no
mar.

- Por que é que vocês, comedores de plâncton, não fazem como ela?

- disseram a nós quatro, com desdém, Torstein e Bengt, apontando para uma
baleia que fazia repuxo. - E só encherem a boca e soprarem a água para fora pelo
bigode!

Baleias eu as tenho visto de botes a distância, e tenho-as visto empalhadas em


museus, mas nunca tive pela gigantesca carcaça o interesse ou a simpatia que em
geral despertam animais de sangue quente propriamente ditos, por exemplo um
cavalo ou um elefante. A luz da biologia, eu naturalmente havia aceitado a baleia
como um legítimo mamífero, mas na sua essência ela era, para todos os efeitos,
um grande peixe frio. Tivemos impressão diferente quando enormes baleias se
dirigiam com ímpeto para o nosso lado, parando quase ao pé da jangada. Um dia
em que, sentados, como de costume, na beira da jangada, fazíamos refeição, tão
perto da água que bastava inclinar-nos para trás para lavarmos as canecas,
levamos um susto quando, de repente, uma coisa atrás de nós soprou com força,
como um cavalo a nadar, e uma colossal baleia surgiu e nos encarou, tão
próximo que vimos um brilho como de sapato engraxado através do seu
espiráculo abaixo. Era tão insólito ouvir ruído de fôlego em alto-mar, onde todos
os seres vivos se agitam silenciosamente sem pulmões e abrindo e fechando suas
brânquias, que nós, na verdade, tivemos um cálido sentimento de família, em
relação a nossa velha parenta afastada, a baleia, que, como nós, viera parar tão
longe, no meio do oceano. Em vez de frio tubarão-gigante, com aparência de
sapo, que nem ao menos tinha o bom-senso de meter de fora o focinho para
tomar um pouco de ar puro, tínhamos ali a visita de uma coisa que fazia pensar
num hipopótamo de jardim zoológico, bem nutrido e jovial, e que respirou (isto
me causou muito agradável impressão) antes de imergir de novo no mar e
desaparecer.

Fomos muitas vezes visitados por baleias. Na maioria dos casos eram pequenos
porcos-do-mar e baleias guarnecidas de dentes que, em cardumes, se
movimentavam alegremente em volta de nós, à flor d’água.

Mas de quando em quando surgiam também imensos cachalotes e outras


gigantescas baleias, que vinham sós ou em pequenos cardumes. Às vezes
passavam como navios no horizonte, de onde em onde mandando para o ar um
esguicho de água, mas outras vezes vinham diretamente para o nosso lado.
Preparamo-nos para uma perigosa colisão a primeira vez que uma
incomensurável baleia, alterando o curso, se encaminhou para a jangada com
propósito feito. A medida que se aproximava, podíamos ouvir-lhe o sopro e o
bufido, pesado e longo, cada vez que sua cabeça vinha à tona. Era um animal
terrestre, descomunal, paquidérmico e gingão, que penosamente cortava as
ondas, tão diferente de um peixe quanto um morcego é diferente de um pássaro.
Encaminhou-se diretamente para bombordo, onde nos achávamos reunidos na
beira da jangada, enquanto um homem, sentado na ponta do mastro, dizia, a
gritar, que podia ver mais sete ou oito dirigindo-se para nós.

A larga testa, de um preto retinto, da primeira baleia estava a menos de dois


metros de nós quando mergulhou abaixo da superfície da água, e então vimos o
enorme dorso azul escuro deslizar calmamente junto à jangada, quase debaixo
dos nossos pés. Permaneceu aí algum tempo, escuro e imóvel, e retivemos a
respiração ao olharmos embaixo o gigantesco dorso arqueado de um mamífero
bem mais comprido que a jangada inteira. Depois mergulhou vagarosamente na
água azulada e desapareceu da vista. Entrementes, o grupo se acercava de nós,
mas não nos deu atenção. Baleias que, abusando da sua força gigantesca, com
uma rabanada puseram a pique barcos baleeiros, provavelmente foram atacadas
antes. Durante a manhã toda, tivemo-las bufando e resfolegando em torno de
nós, nos lugares mais inesperados, sem que elas sequer empurrassem a jangada
ou o remo de governo. Divertiram-se muito saltando livremente entre as ondas,
ao sol. Mas ali pelo meio-dia, todo o cardume mergulhou, como a um sinal dado,
e desapareceu de vez.

Debaixo da jangada não víamos apenas baleias. Se levantávamos a esteira sobre


que dormíamos, pelas fendas entre os toros enxergávamos embaixo a água azul e
cristalina. Se ali ficávamos assim algum tempo, víamos uma barbatana peitoral
ou caudal passar aos saracoteios, e de vez em quando víamos um peixe inteiro.
Se as frinchas fossem alguns centímetros mais largas, podíamos ficar
comodamente deitados na cama com uma linha e pescar por baixo dos nossos
colchões.

Os peixes que mais atração sentiam pela jangada eram os dourados e os pilotos.
Desde o momento em que os primeiros dourados se reuniram a nós na altura de
Callao, não houve dia, durante toda a viagem, em que não tivéssemos grandes
dourados rebolando-se em redor de nós. Não sabemos o que os atraía para a
jangada: ou existiria uma atração mágica em poder nadar à sombra, com um
telhado móvel por cima deles, ou havia comida na nossa horta de algas e
bernaclas que pendiam como festões de todos os toros e do remo de governo. Ela
começou com uma fina camada de verde macio, e dai a pouco ramos verdes de
alga marinha se desenvolveram com rapidez incrível, de sorte que a Kon-Tiki
tinha o aspecto de um deus marinho barbado, enquanto ia aos ziguezagues por
entre as ondas. E o interior das algas verdes era o sítio favorito de miúdas
petingas e dos clandestinos caranguejos.

Houve um tempo em que as formigas principiaram a dominar. Já tinha havido


formiguinhas pretas em alguns troncos, e quando nos fizemos ao mar e a
umidade começou a penetrar na madeira, as formigas entravam nos sacos de
dormir e deles saíam, às chusmas. Em toda parte havia formigas, e elas nos
mordiam e atormentavam tanto que pensamos que nos iam tocar para fora da
jangada. Mas, pouco a pouco, à proporção que a umidade se fazia sentir mais em
alto-mar, elas perceberam que aquele não era o seu elemento, e somente alguns
espécimes isolados resistiram até alcançarmos a outra banda. Davam-se bem na
jangada, além dos caranguejos, bernaclas de 25 a 37 milímetros de comprimento.
Cresciam às centenas, especialmente a sotavento da jangada, e com a mesma
rapidez com que as antigas iam para a panela, novas larvas lançavam raízes e
cresciam. As bernaclas tinham sabor delicado; apanhávamos a alga para a
salada, e era comestível, embora não tão boa. Para falar verdade, nunca vimos os
dourados comendo na horta, mas eles estavam constantemente virando para cima
a barriga brilhante e nadando debaixo dos troncos.

O dourado, peixe tropical de colorido brilhante, tinha ordinariamente de um


metro a 1,37m de comprimento, tendo os lados muito achatados e cabeça e
pescoço desproporcionadamente altos. Içamos para bordo um que tinha 1,42m
de comprimento e uma cabeça de 33 centímetros de altura. A cor do dourado era
magnífica. Na água tinha um brilho azul e verde como o de uma mosca-varejeira
com uma cintilação de barbatanas amarelo-douradas. Ao trazermo-los porém,
para bordo, às vezes observávamos um fenômeno estranho. Quando ia
morrendo, aos poucos mudava de cor, tornando-se de um cinzento-prateado com
manchas pretas e finalmente adquirindo um branco prateado perfeitamente
uniforme. Isto durava quatro ou cinco minutos, depois lentamente voltavam as
antigas cores. Mesmo na água, o dourado de vez em quando mudava de cor
como camaleão; e não raro víamos uma ”nova espécie” de peixe cor de cobre
brilhante, que, depois de mais conhecido, verificávamos ser o nosso velho
companheiro, o dourado. A testa alta dava-lhe a aparência de um buldogue,
achatado do lado, e sempre a testa cortava a superfície da água quando o peixe
rapinante partia como um torpedo atrás de um cardume fugitivo de peixes-
voadores. Quando estava de bom humor, o dourado se virava sobre o seu lado
plano, ia para a frente com grande velocidade, depois dava um pulo para o ar e
caía em cheio como uma panqueca chata’, ao bater na superfície, ouvia-se um
forte estalo e elevava-se uma coluna de água. Ainda bem não caíra na água,
armava outro salto e mais outro, e assim prosseguia fendendo as ondas. Mas,
quando estava com os seus azeites, por exemplo quando o arrastávamos em peso
para dentro da jangada, então mordia. Torstein andou coxeando algum tempo,
com o dedão do pé enrolado num trapo, porque, por descuido, o deixara parar
dentro da boca de um dourado, que aproveitou a oportunidade para fechar as
mandíbulas e mastigar com um pouco mais de força. Quando regressamos à
pátria, disseram que os dourados atacam e comem os banhistas. Isto para nós não
foi muito lisonjeiro, visto como todo dia tornávamos banho no meio deles sem
que mostrassem interesse especial. Mas eram formidáveis animais de rapina,
pois em seus estômagos encontramos tanto lulas como peixes-voadores inteiros.
Os peixes-voadores eram a comida predileta dos dourados. Se qualquer coisa
patinhava na superfície da água, estes se atiravam a ela cegamente, na esperança
de que fosse um peixe-voador. Quando, em certa hora modorrenta da manhã,
saíamos da cabana piscando os olhos e ainda tontos de sono, não era raro
acontecer que, ao mergulharmos uma escova de dente no mar, acordássemos de
verdade dando um pulo para trás. E que um peixe de uns 14 kg, saindo como
uma flecha de sob a jangada, viera cheirar a escova, decepcionado. E quando
estávamos sossegadamente a almoçar, sentados na beira da jangada, mais de
uma vez sucedeu que um dourado pulasse para cima e desse um daqueles
vigorosos tombos de lado, espadanando água sobre as nossas costas e dentro da
nossa comida.

Um dia, durante o jantar, Torstein tornou real a mais incrível das histórias de
pescadores. De repente, largou o garfo no chão e pôs a mão no mar, e antes que
pudéssemos saber de que se tratava, a água pareceu ferver e um enorme dourado
surgiu entre nós, a debater-se terrivelmente. Torstein havia agarrado a ponta
superior de uma linha de pescar que ia deslizando pela corrente e na outra ponta
estava pendurado um dourado, completamente aturdido, que dias antes quebrara
a linha com que Erik estava pescando.

Não havia um dia em que não tivéssemos seis ou sete dourados a acompanhar-
nos, descrevendo círculos em redor da jangada. Se, em certos dias, apareciam
apenas dois ou três, em compensação, no dia seguinte, podiam surgir uns trinta
ou quarenta. Em geral, se queríamos peixe fresco para o jantar, era bastante
avisar o cozinheiro com vinte minutos de antecedência. Ele então amarrava uma
linha numa vara curta de bambu e punha no anzol metade de um peixe-voador.
No mesmo instante estava lá um dourado, sulcando a superfície com a cabeça,
ao mesmo tempo que perseguia o anzol, e tendo mais dois ou três nas suas
águas. Era um peixe divertido e, quando preparado fresco, sua carne era sólida e
deliciosa, misto de bacalhau e de salmão. Durava dois dias, e era quanto
necessitávamos, pois peixe havia bastante no mar.

Travamos relações com os pilotos (peixes) de outra maneira. Os tubarões os


traziam e os deixavam para que os adotássemos depois da morte dos próprios
tubarões. Não fazia ainda muito tempo que estávamos no mar quando o primeiro
tubarão nos visitou. Depois as visitas se tornaram uma ocorrência quase
cotidiana. Às vezes o terrível peixe vinha nadando até perto da jangada, apenas
para examiná-la ligeiramente, e dali continuava a sua caça à presa, após ter dado
uma ou duas rodadas em torno de nós. As mais das vezes, porém, ia na nossa
esteira, logo atrás do remo de direção, ali permanecendo sem tugir nem mugir,
passando furtivamente de estibordo para bombordo e, uma vez ou outra, dando
uma rabanada mansa para acompanhar melhor o plácido avanço da jangada. O
corpo azul-cinzento do tubarão sempre parecia um tanto pardo à luz do sol e
logo abaixo da superfície da água, e movia-se para baixo e para cima com as
ondas, de modo que a nadadeira dorsal ressaía sempre como uma ameaça. Se o
mar estava encapelado, as ondas eram capazes de erguer o peixe bem acima do
nosso nível, e nós tínhamos uma vista direta lateral do tubarão como se ele
estivesse numa redoma de vidro, quando nadava no nosso rumo, com porte
majestoso e precedido da sua embaraçosa escolta de pilotinhos, bem à frente das
suas mandíbulas. Por alguns segundos parecia que não só o tubarão mas também
os seus raiados companheiros iriam nadar direto para bordo, mas a jangada se
inclinava graciosamente para sotavento, erguia-se sobre a crista das ondas e
baixava do outro lado.

Antes de mais nada nós tínhamos grande respeito aos tubarões em atenção à sua
fama e aparência assustadora. Havia uma força indomável naquele corpo
aerodinâmico, que apenas constava de um grande feixe de músculos de aço, e na
tremenda voracidade daquela vasta cabeça chata, com olhinhos verdes de gato e
imensas mandíbulas capazes de engolir bolas de futebol. Quando o timoneiro
gritava ”tubarão a estibordo” ou ”tubarão a bombordo”, costumávamos sair à
procura de arpões e fateixas, e postar-nos à beira da jangada.

Geralmente o peixe deslizava em volta de nós com a barbatana dorsal rente aos
toros da embarcação. E o nosso respeito pelo animal subiu de ponto quando
vimos as fateixas vergar como espaguetes ao baterem contra o arnês de lixa das
costas do peixe, ao passo que as pontas das lanças dos arpões portáteis se
rompiam no aceso da batalha. O que resultava de termos atingido a pele do
tubarão, a cartilagem ou os músculos, era tão-somente uma luta febril, durante a
qual a água fervia ao redor de nós até que o peixe lograva soltar-se e lá se ia
embora, enquanto um pouco de óleo ficava a boiar e se espalhava sobre a
superfície.

Para salvar a ponta do último arpão amarramos num feixe os maiores anzóis e os
escondemos no interior da carcaça de um dourado inteiro. Jogamos ao mar a isca
com infinitas precauções, depois de havermos amarrado muitas linhas de aço em
certa parte do parapeito. O tubarão veio vindo, confiado e vagaroso, e ao mesmo
tempo que levantava o focinho acima da água, abria de golpe as grandes
mandíbulas em forma de crescente e fazia resvalar por elas adentro o dourado
inteiro, que lá ficou. Houve uma batalha durante a qual o peixe vergastava a
água espumante, mas nós segurávamos a corda com muita firmeza, e a custo
arrastávamos o rebelde até os toros posteriores, onde ele ficou à espera do que
podia vir, e apenas abriu a boca como para nos intimidar com as filas paralelas
de dentes que pareciam serrotes. Aí nos aproveitamos de uma onda mais forte
para fazer o tubarão deslizar, suspendendo-o pela extremidade mais baixa dos
toros, escorregadia por causa da alga, e depois de laçar com uma corda a
barbatana caudal, puxamo-lo facilmente para bordo.

Na cartilagem do primeiro tubarão achamos a ponta do arpão, e a princípio


pensamos que isto fora a causa do relativamente escasso espírito de luta do
animal. Mas depois pescamos vários tubarões pelo mesmo método, e cada vez o
processo se realizava com igual facilidade. Ainda que soubesse e pudesse
recalcitrar e resistir, e certamente era terrível nos seus movimentos, tornava-se
inerte e manso e nunca empregava sua gigantesca força uma vez que tratávamos
de segurar com firmeza a corda, sem deixar ao peixe a vantagem de uma
polegada no arrastão. Os tubarões que trouxemos para bordo mediam em geral
1,80m a 3m, e havia os azuis e pardos. Estes últimos tinham uma pele por fora
da massa dos músculos através da qual não. conseguíamos fazer passar uma faca
afiada, a não ser que forçássemos extraordinariamente a lâmina, e, ainda assim,
muitas vezes em vão. A pele do ventre era impenetrável como a das costas, e as
cinco fossas branquiais de cada lado atrás da cabeça eram os únicos pontos
vulneráveis. Quando arrastávamos um tubarão para dentro da jangada,
geralmente vinham pegadas ao seu corpo rêmoras negras e escorregadias. Por
meio de um disco oval sugador, localizado no alto da cabeça lisa, ficavam tão
presas que não conseguíamos soltá-las puxando-as pelo rabo. No entanto, elas
podiam despegar-se e, dum salto, agarrar-se, no mesmo momento, a um outro
lugar. Se se cansavam de estar penduradas num tubarão sem que o seu antigo
”cabide” desse sinal de querer voltar para o oceano, davam um pulo e sumiam
entre as frinchas da jangada para dali sair nadando, à cata de outro tubarão. E se
a rêmora não acha um tubarão, agarra-se provisoriamente à pele de outro peixe.
A rêmora era, em geral, uma coisa variando do comprimento de um dedo a um
pé. Tentamos o velho expediente dos nativos, por eles algumas vezes empregado
quando apanhavam uma rêmora viva. Atam uma linha na cauda do peixe e
deixam-no ir nadando. Então a rêmora trata de se colar ao primeiro peixe que vê
e com tanta força se agarra a ele que um pescador feliz pode colher o rabo da
rêmora e com ela o outro peixe.

Nós não tivemos sorte. Cada vez que soltávamos uma rêmora com uma linha
atada no rabo, ela partia como uma bala e se agarrava firmemente a um dos
troncos da jangada, na crença de haver encontrado mais um respeitável tubarão.
E lá se deixava ficar, por maior força que empregássemos puxando a linha.
Pouco a pouco fomos adquirindo uma porção dessas remorazinhas que se
penduravam e ficavam teimosamente a balançar no meio das conchas no lado da
jangada, fazendo conosco a travessia do Pacifico. Mas a rêmora era burra e feia,
e nunca se tornou um peixinho agradável como o seu vivaz companheiro, o
piloto. O piloto é um peixe zebrado, tendo a forma de um charuto, que nada com
rapidez num cardume à frente do focinho do tubarão. Recebeu este nome porque
era crença que ele servia de guia no mar ao seu peticego amigo, o tubarão. Na
realidade, o piloto simplesmente vai com o tubarão, e se procede com
independência é apenas porque enxerga alimento dentro do seu raio visual. O
piloto acompanhava seu senhor e mestre até o último segundo. Como, porém,
não tinha, como a rêmora, a faculdade de apegar-se à pele do gigante, ficava
completamente desnorteado quando o seu velho mestre de repente desaparecia
no ar e não mais baixava. Então andava aflito, a nadar para aqui e para acolá,
procurando, e sempre volvia e se saracoteava ao longo da popa da jangada, onde
o tubarão tinha desaparecido na direção do céu. Mas como o tempo passava e o
tubarão não descia, eles tinham de procurar nos arredores outra senhor e mestre.
E nenhum se achava mais à mão que a própria Kon-Tiki.

Se nos debruçávamos do lado da embarcação, com a cabeça quase a tocar a água


cristalina, a jangada se nos afigurava a barriga de um monstro marinho, tendo
por cauda o remo de direção e por toscas barbatanas as quilhas corrediças. E
entre elas todos os pilotos adotivos nadavam lado a lado, sem fazer reparo na
cabeça humana ali pendente, com exceção de um ou dois deles, que, de um pulo,
se colocavam de banda e erguiam um pouco o focinho, mas daí a pouco iam de
volta rebulindo-se, a retomar, imperturbáveis, o seu lugar entre os ávidos
nadadores. Os pilotos patrulhavam em dois destacamentos: a maior parte deles
nadava entre as quilhas móveis, enquanto os outros formavam graciosamente um
leque logo à frente da proa. De vez em quando se afastavam impetuosamente da
jangada para abocanhar qualquer coisinha comestível pela qual passávamos, e
após as refeições, quando lavávamos a louça na água do mar, era como se
tivéssemos esvaziado entre as migalhas uma caixa de charuto cheia de pilotos
zebrados. Não deixavam de examinar uma única migalha e, não sendo alimento
vegetal, ia imediatamente para a barriga deles. Os estranhos peixinhos se
acolhiam à nossa guarida com uma confiança tão infantil que nós, como o
tubarão, nutríamos para com eles sentimentos quase paternais. Ficaram sendo os
benjamins da Kon-Tiki, e na jangada era defeso deitar a mão num piloto.

Contávamos no nosso séquito pilotos que, com certeza, estavam na infância, pois
mal tinham 25 milímetros, ao passo que a maior parte media uns 25 centímetros.
Quando o tubarão gigante, depois que o arpão de Erik se lhe entranhou no
crânio, se precipitou nos abismos como um bólide, alguns dos seus antigos
pilotos, perdendo o rumo, foram ter com o vencedor; esses tinham exatamente
60 centímetros. Após uma série contínua de vitórias, a Kon-Tiki em breve teve
um séquito de quarenta a cinquenta pilotos, e muitos deles gostaram tanto do
nosso tranquilo avanço e das nossas sobras diárias, que nos foram
acompanhando por milhares de milhas.

Mas às vezes alguns não eram fiéis. Achando-me um dia ao remo de governo,
notei de repente que o mar fervia para as partes do sul, e vi um imenso cardume
de dourados sulcando as águas como se fossem torpedos de prata. Não vinham
como de costume, nadando comodamente de lado, mas desenvolviam uma
velocidade tal que pareciam cortar mais os ares que as águas. As ondas glaucas
estavam convertidas em branca espuma com a agitação frenética dos fugitivos, e
atrás deles vinha um dorso negro singrando numa rota em ziguezague, qual um
bote de corrida. Os peixes desesperados ora apareciam à superfície, ora sumiam
abaixo dela, quase rente à jangada; aí mergulhavam, enquanto uns cem se
ajuntavam densamente em cardume e tornavam o rumo de leste, de modo que o
mar à popa era uma resplandecente massa de cores. O dorso brilhante que vinha
atrás deles ergueu-se a meio na superfície, mergulhou em graciosa curva sob a
jangada e arremessou-se à ré como um torpedo após o cardume de dourados.
Era, nada mais nada menos, que um descomunal tubarão que parecia ter pouco
mais de seis metros de comprimento. Quando o monstro desapareceu, grande
numero de pilotos também se fora com ele. Tinham encontrado um herói
marinho mais airoso e este os seduziu.

O animal marítimo contra o qual os entendidos insistentemente nos puseram de


sobreaviso era o polvo, porque podia penetrar na jangada. A Sociedade
Geográfica Nacional de Washington nos exibiu relatórios e fotografias
dramáticas, tiradas com magnésio, de certa área da corrente de Humboldt onde
polvos monstruosos tinham lugar preferido e à noite surgiam à superfície. Eram
tão vorazes que, se um deles se agarrasse a um pedaço de carne preso no anzol,
outro vinha e se poria a comer o companheiro capturado. Tinham braços capazes
de pôr termo à vida de um enorme tubarão e de deixar feias marcas em grandes
baleias, e um bico terrível como o de águia oculto entre os tentáculos.
Lembraram-nos que eles ficavam flutuando no escuro com olhos fosforescentes
e que dispunham de braços suficientemente compridos para apalpar qualquer
recanto da jangada, se não lhes apetecesse subir diretamente a bordo. Não nos
agradava absolutamente a perspectiva de sentir braços frios em volta do pescoço,
arrastando-nos à noite para fora do saco de dormir. Havíamo-nos munido de
machetes parecidos com um sabre, cada qual com o seu, no caso de acordarmos
com tentáculos a apalpar-nos ou fazendo menção de nos abraçar. Ao partirmos,
nada nos pareceu mais desagradável, mormente quando, no Peru, pessoas
versadas em assuntos marítimos bateram na mesma tecla e nos mostraram no
mapa onde ficava a área pior, justamente na corrente de Humboldt.

Durante muito tempo não vimos nenhum sinal de lula nem a bordo nem no mar.
Mas uma manhã tivemos o primeiro aviso de que elas deviam estar naquelas
águas. Quando o sol nasceu, achamos uma cria de polvo, na forma de um
animalzinho do tamanho de um gato.

Tinha subido à jangada durante a noite, sem auxílio, e jazia morta, com os
braços enrolados no bambu, em frente à porta da cabana. Um líquido grosso e
preto, semelhante a tinta, estava espalhado sobre a coberta de bambu, formando
uma poça em redor da lula.

Escrevemos mais de uma página no diário de navegação com tinta de siba,


semelhante à tinta da China, e depois atiramos à água a cria como regalo para os
dourados.

Vimos neste incidente somenos o anúncio de visitas noturnas de maior


importância. Se a lulazinha pudera trepar a bordo, seu faminto pai ou mãe
poderia a fortiori fazer o mesmo.
No entanto, o incidente que se seguiu nos deixou completamente às tontas. Uma
manhã encontramos uma lulazinha no cume do telhado de folhas de palmeira.
Isto nos embaraçou bastante. Ela não podia ter trepado ali, visto que as únicas
marcas de tinta estavam espalhadas num círculo em redor do animalzinho, no
meio do telhado. Tampouco a teria deixado cair ali alguma ave marítima porque
ela estava completamente intata, sem vestígios de bicada. Chegamos à conclusão
de que fora arrojada ao telhado por um vagalhão, mas ninguém dos que tinham
dado plantão durante a noite se recordava de qualquer importante alteração no
mar. E à proporção que as noites foram passando, achávamos regularmente a
bordo mais lulazinhas, a menor das quais tinha o tamanho de um dedo médio.
Daí a pouco tornou-se coisa corriqueira encontrar pela manhã alguma pequena
lula, ou até duas, entre os peixes-voadores no convés, mesmo com o mar calmo
durante a noite. E eram crias da pior espécie, com oito compridos braços
cobertos de discos sugadores e dois ainda mais compridos, tendo na ponta
ganchos em forma de espinhos. Lulas maiores, porém, nunca fizeram menção de
querer aparecer. Em noite tenebrosa, vimos o brilho de olhos fosforescentes
vogando à flor d’água, e numa única ocasião vimos o mar ferver em borbotões,
enquanto uma coisa semelhante a uma grande roda subiu e girou no ar,
produzindo verdadeira debandada entre os dourados que se puseram a rodopiar
no espaço. Mas o motivo pelo qual os animais grandes nunca apareciam a bordo,
enquanto os menores eram assíduos visitantes noturnos, continuava sendo um
enigma para o qual não achamos explicação senão dois meses (sessenta dias
ricos em experiências) depois de termos saído da mal-afamada zona dos polvos.

Lulas novas continuaram a chegar a bordo. Numa manhã de sol, todos nós vimos
um cintilante cardume de qualquer coisa que pulava fora da água e voava pelo ar
como se fossem grossos pingos de chuva, enquanto o mar era um fervedouro de
dourados a perseguir a chusma. A princípio, tornamos a coisa por um cardume
de peixes-voadores, pois já tínhamos visto três diferentes espécies deles.
Quando, porém, chegaram mais perto e alguns navegavam sobre a jangada à
altura de um metro e vinte a um metro e meio, algo veio bater de chapa no peito
de Bengt para estatelar-se no chão. Era uma lula pequena.

Nosso espanto foi grande. Quando a pusemos num balde de lona, continuou a
erguer-se e a dar saltos para a superfície, mas não desenvolvia no baldezinho
velocidade bastante para emergir da água nem com metade do corpo. E fato
conhecido que a lula geralmente nada segundo o princípio do avião-foguete.
Expele, com força, água do mar através de um tubo fechado, existente no lado
do corpo, podendo assim saltar para trás com movimento velocíssimo; e com os
tentáculos dependurados na parte posterior da cabeça e aí agrupados, torna-se
aerodinâmica como um peixe. Tem nos lados dois refegos de pele, redondos e
carnudos, ordinariamente usados para regular os movimentos ao nadar. Com isto
ficou provado que lulas novas indefesas, que são o alimento preferido de muitos
peixes grandes, podem escapar de seus inimigos indo para o ar como fazem os
peixes-voadores.

Tinham convertido em realidade o princípio do avião-foguete muito antes que o


gênio do homem tivesse essa ideia. Expelem água do mar através de si mesmas
adquirindo uma celeridade incrível, e então dirigem sua rota a um ângulo da
superfície desdobrando os tais refegos de pele como se fossem asas. Como os
peixes-voadores, fazem voo de planador sobre as ondas até onde a velocidade as
pode levar. Depois disto, quando começamos realmente a prestar atenção, vimo-
las muitas vezes movendo-se por uns 40 ou 50m, sozinhas ou em número de
duas ou três. Todos os zoólogos com quem conversamos sobre o assunto
mostraram-se surpresos com o fato de a siba poder ’planar’: uma novidade para
eles.

Como hóspede de nativos do Pacífico, muitas vezes comi lula; tem um gosto
muito de lagosta e borracha. Mas, a borda da Kon-Tiki, as lulas vinham em
último lugar na nossa lista.

Se as recebíamos de mão beijada no convés, trocávamo-las por qualquer outra


coisa.

Fazíamos a troca atirando à água um anzol com a lula e tornando a puxá-lo para
dentro com um grande peixe a debater-se na ponta. Até o atum e o bonito
gostavam de lulas novas, e eles eram iguaria que vinha em primeiro lugar na
nossa lista.

Mas, vogando sobre o mar, não eram só conhecidos que encontrávamos. O


diário contém apontamentos deste tipo:

11/5. Hoje um enorme animal marinho subiu duas vezes à tona, ao lado da
jangada, enquanto ceávamos sentados na beira da mesma. Fez terrível barulho
na água e desapareceu. Não temos ideia do que seja.

6/6. Herman viu um peixe roliço de cor escura, corpo largo e branco, cauda
delgada e aguilhões.

Pulou várias vezes fora da água a estibordo.

16/6; Curioso peixe foi avistado a bombordo, quase à proa. Comprimento:


1,80m; largura máxima: 30 centímetros; focinho comprido, pardo e fino, grande
barbatana dorsal perto da cabeça e uma menor no meio das costas; pesada
barbatana caudal falciforme. Mantinha-se quase à superfície e nadava às vezes
retorcendo o corpo como uma enguia. Mergulhou quando eu e Herman saímos
no botezinho de borracha com um arpão portátil. Tornou a subir mais tarde,
mas mergulhou e desapareceu.

No dia seguinte: Erik estava sentado no topo do mastro, às 12 horas, quando viu
trinta ou quarenta peixes compridos, finos e pardos, da mesma espécie que o de
ontem. Vinham com grande velocidade do lado esquerdo da embarcação e
desapareceram à ré, como grande sombra escura e chata no mar.

18/6. Knut observou um animal ofióide, fino, de sessenta a noventa centímetros,


que ora se punha teso ora se achatava na água, abaixo da superfície, e que
mergulhou retorcendo-se como uma serpente.

Em várias ocasiões deslizamos ao lado de uma grande massa escura que


permanecia imóvel sob a superfície da água como um recife oculto, do tamanho
do soalho de um quarto. Era provavelmente a arraia gigante, de má reputação,
mas não se mexia, e nunca chegamos bastante perto para poder distinguir-lhe
claramente a forma.

Com tais companhias na água, o tempo nunca passava devagar. Pior era quando
tínhamos de dar um mergulho para examinar as cordas por baixo da jangada. Um
dia uma das quilhas corrediças se soltou e foi resvalando para baixo da jangada
até que foi colhida pelas cordas, sem termos jeito de detê-la. Herman e Knut
eram os melhores mergulhadores. Duas vezes Herman nadou por baixo da
embarcação, ficando lá no meio de dourados e pilotos, a puxar pela prancha.
Acabava de subir pela segunda vez e estava sentado na beira da jangada para
tomar fôlego, quando um tubarão de 2,40m foi descoberto a não mais de 3m de
suas pernas, movendo-se resolutamente para cima, depois de tomar impulso das
profundezas rumo à ponta dos dedos dos pés de Herman. Talvez tenhamos sido
injustos com o tubarão, mas desconfiamos de suas intenções e embebemos-lhe
no crânio um arpão. O peixe ressentiu-se e houve um tremendo espadanar
d’água, e em consequência disto o tubarão desapareceu, deixando na superfície
um lençol de óleo, enquanto que a quilha corrediça continuava enredada debaixo
da embarcação. Então Erik teve a ideia de fazer um cesto de imersão. Não
dispúnhamos de muita matéria-prima, porém tínhamos bambus e cordas e um
velho cesto, no qual havíamos guardado cocos. Aumentamos o cesto na parte
superior com bambus e corda trançada, e depois, metidos nele, deixamos que
rios descessem ao lado da jangada. As pernas atraentes estavam agora
escondidas no cesto, e, ainda que a corda trançada na parte superior do açafate
tivesse apenas efeito psicológico tanto sobre nós como sobre os peixes, sempre
podíamos, em dado momento, encolher-nos dentro do cabaz, se qualquer coisa
com intenções hostis desse um bote em nós, ou pedir que os do convés nos
alassem para fora da água.

Este cesto de imersão não foi apenas útil; aos poucos tornou-se um objeto de
distração.

Deu-nos excelente oportunidade para estudar o aquário flutuante que tínhamos


debaixo do soalho. Quando o mar estava de leite, entrávamos no cesto um por
um e deixávamos que nos imergissem na água enquanto nos durava o fôlego. No
elemento líquido havia uma corrente de luz sem sombra, curiosamente
transfigurada. Logo que os nossos estavam abaixo da superfície, a luz já não
parecia ter uma direção particular, como no nosso mundo acima da água. A
refração da luz vinha tanto de baixo como de cima; o sol não mais brilhava,
estava presente em toda parte. Se levantávamos os olhos para o fundo da
jangada, ela toda se achava profusamente iluminada, com os nove enormes
troncos e toda a obra de malha das cordas enlaçadas boiando numa luz mágica, e
com um festão tremulante de algas virentes rodeando a embarcação toda e todo o
comprimento do remo de direção.

Os pilotos nadavam em boa ordem, cada qual em seu lugar, parecendo zebras
com pele de peixe, enquanto grandes dourados faziam círculos com movimentos
inquietos, vigilantes, na ânsia de achar presa. Aqui e ali a luz batia na seivosa
madeira vermelha da quilha corrediça, que ressaía na parte inferior por uma
frincha, e na madeira se achavam perfeitamente instaladas pacíficas colônias de
bernaclas, cujas franjadas guelras amarelas se moviam com ritmo, como que
acenando para o oxigênio e para a comida. Se alguém se aproximasse demais
apressadamente fechava suas conchas vermelhas de orlas amarelas, e assim se
mantinham de portas fechadas até passar o perigo. A luz lá embaixo era
maravilhosamente clara e branda para nós, acostumados ao sol tropical no
convés. Mesmo quando olhávamos para baixo, para as profundezas insondáveis
do oceano onde a noite é eterna, ela nos parecia um ameno azul-claro por causa
dos raios do sol que vinham de volta. Com espanto nosso, víamos peixes bem
embaixo, nas profundezas do azul claro e límpido, quando, afinal, nos
achávamos apenas pouco abaixo da superfície. Seriam talvez os peixes
chamados bonitos, havendo outras espécies que nadavam em tal profundidade
que não as podíamos reconhecer. Às vezes faziam parte de imensos cardumes, e
vinha-nos, frequentemente, vontade de saber se toda a corrente oceânica estava
cheia de peixes, ou se aqueles que revoluteavam nos abismos se haviam reunido
de propósito debaixo da Kon-Tiki para nos fazer companhia por alguns dias. O
que mais apreciávamos era um mergulho quando os grandes atuns de nadadeiras
douradas nos estavam fazendo uma visita. De quando em quando eles vinham
até a jangada em grandes cardumes, mas as mais das vezes apareciam juntos uns
dois ou três e nadavam em volta de nós em tranquilos círculos, dias a fio, a não
ser que conseguíssemos atraí-los ao anzol.

Vistos da jangada, apenas pareciam grandes e pesados peixes escuros, sem


nenhum adorno especial, mas se chegávamos até eles no seu próprio elemento,
espontaneamente mudavam de cor e de forma. A transformação era tão
assombrosa que várias vezes tínhamos de subir e orientar-nos de novo para ver
se era o mesmo peixe para o qual estávamos olhando através da água. Aqueles
peixes não nos davam a mínima atenção; imperturbáveis, continuavam suas
imponentes manobras; mas agora tinham adquirido maravilhosa elegância de
forma, a qual jamais tínhamos visto igual em nenhum outro peixe, e a cor havia-
se tornado metálica, com uns toques de violeta pálido. Possantes torpedos de
prata e aço resplandecentes, de proporções perfeitas e forma aerodinâmica,
bastava-lhes mover levemente uma ou duas barbatanas para pôr os seus 68 a 82
kg a deslizar na água com a mais consumada graça.

Quanto mais íntimo se fazia nosso contato com o mar e com tudo o que aí tinha
o seu habitat, menos estranho ele se tornava, e mais à vontade também nos íamos
sentindo naquele lugar. E aprendemos a respeitar os velhos povos primitivos que
viviam na maior intimidade com o Pacífico, e por isso o conheciam de um ponto
de vista completamente diferente do nosso. Talvez tenhamos calculado a
quantidade de sal que ele contém e tenhamos dado nomes latinos aos dourados e
aos atuns. Isto eles não fizeram. Contudo, não duvido nada que a ideia que eles
tinham do mar correspondesse melhor à verdade do que a nossa. Não havia,
neste ponto do mar onde estávamos, muitos marcos fixos. Ondas e peixes, sol e
estrelas vinham e iam. Não se supunha existir nenhuma espécie de terra nas
4.300 milhas marítimas que separavam do Peru as ilhas dos mares do Sul.
Ficamos, pois, muito surpreendidos quando, ao aproximar-nos de 100° oeste,
descobrimos que o mapa do Pacífico que tínhamos à vista assinalava a existência
de um recife na rota que íamos seguindo. Era marcado com um pequeno círculo,
e como o mapa havia sido editado no mesmo ano, procuramos a referência em
Direções Náuticas para a América do Sul. Eis o que lemos: ”Em 1906 e
novamente em 1926 foi assinalada a existência de cachopos a cerca de 600
milhas a sudoeste das ilhas Galápagos, na latitude de 6°42’sul, e na longitude de
99°43’oeste. Em 1927 um vapor passou a uma milha a oeste desta posição, mas
não observou ressaca, e em 1934 outro vapor passou a uma milha na direção sul
e não viu indício algum de escolhos. Em 1935 o navio-motor Cowrie não obteve
fundo a 160 toesas nesta posição.” De acordo com os mapas, o lugar era
claramente considerado como perigoso para a navegação, e como um navio de
grande calado, aproximando-se demasiado de um baixio, corre maior risco do
que nós correríamos com uma jangada, deliberamos dirigir a nossa rota para o
ponto marcado no mapa e ver o que encontraríamos. O recife estava assinalado
um pouco mais para o norte do que o ponto para o qual parecia que nos
estávamos dirigindo; por isso pusemos o remo de governo a estibordo e
orientamos a vela quadrada de maneira que a proa apontasse mais ou menos para
o norte, ficando nós com o mar e o vento do lado de estibordo. Ora, aconteceu
que as águas do Pacífico borrifaram os sacos de dormir um pouco mais que de
costume, acrescendo que, ao mesmo tempo, o ar começou a refrescar
consideravelmente.

Verificamos, porém, com satisfação, que a Kon-Tiki podia, com segurança e


firmeza, ser manobrada num ângulo muito aberto dentro do vento, contanto que
o vento ainda se achasse na nossa quadra. Mas, do contrário, a vela virava e
dava-nos um trabalhão para pôr a jangada novamente na rota. Durante dois dias
e duas noites dirigimos a embarcação para nor-noroeste. O mar estava
encapelado e não se podia prever como ficaria quando o vento alísio entrasse a
oscilar entre sueste e leste, mas nos sentíamos levantar e daí a pouco descer ao
sabor das ondas que investiam. Mantínhamos constante atalaia na ponta do
mastro e quando cavalgávamos as cristas das vagas, o horizonte se dilatava
extraordinariamente. As ondas atingiam 1,80m acima do nível do telhado da
cabana e quando dois tremendos vagalhões se arremessavam juntos, erguiam-se
ainda mais alto no combate e, com um sibilo, atiravam ao ar uma coluna de água
que podia espalhar-se nas mais diferentes direções.

Quando veio a noite, improvisamos em frente à porta uma barricada feita com
caixotes de mantimentos, e nem assim o repouso foi dos melhores. Mal
acabávamos de pegar no sono ouvia-se o primeiro estalo na parede de bambu, e
enquanto mil esguichos de água penetravam por entre as frestas, uma torrente
espumante se arrojava sobre as provisões e logo sobre nós.

- Telefonem para o encanador - ouvi alguém dizer com voz de sono, enquanto
tratávamos de erguer-nos para dar passagem à água que alagava o chão. O
encanador não veio, e naquela noite tornamos bastante banho sem sair da cama.
Até um enorme dourado, sem querer, veio parar a bordo durante o plantão de
Herman.

No dia seguinte o mar estava menos conturbado por ter o vento alísio resolvido
soprar de leste durante algum tempo. Nós nos revezamos no topo do mastro, pois
agora esperávamos poder chegar pela tarde ao ponto para o qual estávamos com
a proa voltada. Reparamos que, nesse dia, havia no mar mais vida que de
costume. Talvez fosse por causa da nossa atenção, que era maior. Depois do
meio-dia vimos um enorme espadarte que se aproximava da jangada quase à
superfície. As duas pontudas barbatanas que ressaíam da água estavam a 1,80m
uma da outra e o esporão parecia tão comprido quanto o corpo. O peixe
descreveu uma curva bem perto do homem do leme e sumiu-se por trás das
cristas das ondas. Quando fazíamos a refeição meridiana, um tanto úmida e
salgada, um vagalhão sibilante ergueu bem junto de nosso nariz uma grande
tartaruga marítima com cabeça, carapaça e patas. Depois que àquela onda
sucederam-se duas outras, a tartaruga se foi tão subitamente como tinha
aparecido.
Também desta vez vimos as barrigas brilhantes verde-esbranquiçadas dos
dourados, de roldão pela água, por baixo do animal couraçado.

Aquela área era extremamente rica em diminutos peixes-voadores, de 25


milímetros, que iam passando em imensos cardumes e muitas vezes caiam na
jangada. Notamos também a presença de uma ou outra skua (gaivota rapineira) e
éramos visitados com regularidade por fragatas (aves) que sobrevoavam a
jangada, de rabos bifurcados como gigantescas andorinhas. Acredita-se que as
fragatas sejam indício de terra próxima, o que fez aumentar o otimismo.

- Talvez haja por aí, de qualquer forma, um escolho ou algum banco de areia -
pensaram alguns. E os mais otimistas disseram:

- Imaginem se acharmos uma ilhota virente e relvosa!... Quem pode saber disso
ao certo, quando tão pouca gente andou por aqui antes de nós?

Então teremos descoberto uma nova terra: a ilha de Kon-Tiki! A partir do meio-
dia, Erik não fazia outra coisa senão trepar ao caixote da cozinha e, de pé,
piscando muito, olhava pelo sextante. Às 6h20min da tarde informou que a nossa
posição era 6°42’ sul de latitude por 99°42’ oeste de longitude. Estávamos a uma
milha marítima a leste do recife assinalado no mapa. A verga de bambu foi
baixada e a vela enrolada na coberta. Devia haver vento a leste que nos
conduzisse lentamente ao lugar marcado. Quando o sol velozmente descambou
no mar, surgiu a lua cheia que, com todo o seu resplendor, iluminou a superfície
do oceano, em ondulações pretas e prateadas de um horizonte a outro. Do topo
do mastro a visibilidade era boa. Víamos marulhos em toda parte, numa
verdadeira série, mas não ressaca regular que pudesse denotar a existência de
escolho ou baixio. Ninguém quis ir deitar-se; estavam todos atentos e dois ou
três subiram imediatamente ao mastro. E como nos achávamos no centro da área
marcada, íamos sempre fazendo sondagens. Todos os prumos de chumbo que
tínhamos a bordo foram atados à ponta de uma corda de seda de 54 fios de mais
de 500 braças de comprimento, e embora a corda ficasse um tanto torta por
causa da deriva da jangada, em todo caso o chumbo se encontrava a uma
profundidade de cerca de 400 braças.

E a verdade é que não havia fundo, nem a leste do lugar, nem no centro, nem a
oeste dele.
Demos um último olhar pela superfície do oceano e depois de termos certeza de
que a área se achava devidamente inspecionada, estando livre de baixios de
qualquer espécie, fizemo-nos de vela e colocamos o remo no seu lugar habitual,
de modo que tínhamos de novo o vento e o mar na nossa quadra de bombordo. E
assim seguiu a jangada na sua rota natural e livre. O vaivém das ondas
continuava como antes, entre os toros abertos à ré. Podíamos agora comer e
dormir enxutos, ainda mesmo recrudescendo, como por vários dias sucedeu, a
fúria das ondas, enquanto os ventos alísios vacilavam de este para sueste.

Nessa curta excursão rumo ao falso escolho, aprendemos muita coisa acerca da
eficiência das quilhas corrediças e quando, posteriormente, no decorrer da
viagem, Herman e Knut mergulharam juntos debaixo da jangada e salvaram a
quinta quilha corrediça, ficamos sabendo ainda mais particularidades a respeito
dessas curiosas pranchas, coisa que ninguém entendeu desde que os próprios
índios abandonaram este esquecido esporte. Que a tábua fizesse o trabalho de
uma quilha, permitindo à jangada mover-se num ângulo com o vento, era coisa
da navegação ordinária. Quando, porém, os antigos espanhóis declararam que os
índios em grande parte ’dirigiam’ suas jangadas de pau-de-balsa no mar com
”certas quilhas corrediças que introduziam nas fendas entre os toros de pau”, isto
parecia incompreensível tanto para nós como para todos que se haviam ocupado
com o problema. Como a quilha corrediça ficava segura simplesmente numa
frincha estreita, não podia ser virada para o lado e servir de leme.

Descobrimos o segredo da seguinte maneira. O vento havia-se firmado e o mar


estava calmo novamente, de forma que a Kon-Tiki vinha, há dias, mantendo uma
rota firme, sem precisarmos bulir no remo de governo, que estava amarrado.
Introduzimos numa frincha posterior a quilha corrediça recuperada, e no mesmo
instante a Kon-Tiki alterou o curso vários graus de oeste para noroeste,
prosseguindo com firmeza e tranquilamente na sua nova rota. Se puxávamos
para cima essa quilha, a jangada volvia ao curso primitivo. Se, porém, a
puxávamos para cima só até o meio, a jangada volvia, apenas até o meio, à
marcha anterior.

Com o simples erguer e baixar da quilha corrediça podíamos operar mudanças


de curso e mantê-lo sem bulir no remo de direção. Era este o engenhoso sistema
dos incas. Tinham excogitado um sistema simples de balanças mediante o qual a
pressão do vento na vela fazia do mastro o ponto fixo. Os dois braços eram
respectivamente a jangada anterior e a posterior ao mastro. Se a superfície da
quilha corrediça era mais pesada, atrás a proa girava livremente com o vento;
mas, se era mais pesada à frente, a popa é que rodava com o vento. As quilhas
corrediças que se acham mais próximas do mastro têm naturalmente menos
eficiência por causa da relação entre braço e força. Se o vento estava de popa, as
quilhas corrediças deixavam de ser eficientes, e então era impossível conservar
firme a jangada sem continuamente pôr a trabalhar o remo de direção. Se a
jangada permanecia assim em todo o seu comprimento, ela era um pouco
comprida demais para sulcar as águas livremente. E, como a porta da cabana e o
lugar onde fazíamos as refeições ficavam a estibordo, afrontávamos as ondas
sempre na nossa quadra de bombordo.

Certamente podíamos ter continuado a viagem pondo em pé o timoneiro e


dando-lhe a incumbência de ora empurrar a quilha corrediça por uma fenda
abaixo, ora puxá-la para cima, em vez de puxar para o lado as cordas do remo de
direção; mas já estávamos tão acostumados ao remo de direção que fixamos com
as quilhas corrediças uma direção geral e preferimos governar com o remo. A
próxima grande etapa da nossa viagem estava tão encoberta à vista como o
escolho que só existia no mapa. Estávamos no mar havia já quarenta e cinco
dias; tínhamos avançado do 78° grau de longitude ao 108°, e nos achávamos
exatamente na metade do caminho para as primeiras ilhas. Havia mais de 2.000
milhas marítimas entre nós e a América do Sul a leste, mediando a mesma
distância da Polinésia a oeste. A terra mais próxima em qualquer direção seriam
as ilhas Galápagos a lés-nordeste e a ilha de Páscoa ao sul, ambas a mais de 500
milhas marítimas no oceano intérmino. Não tínhamos visto um único navio e
nunca vimos nenhum, porque estávamos fora das rotas de todo o tráfego
marítimo ordinário no Pacífico. Mas na realidade não sentíamos essas enormes
distâncias, pois, enquanto nos movíamos, o horizonte, sem que se percebesse, ia
deslizando conosco, e o nosso mundo flutuante permanecia sempre o mesmo,
um círculo arremessado à abóbada celeste, tendo por centro a própria jangada, ao
passo que lá no alto, noite após noite, as mesmas estrelas brilhavam sobre nós.
CAPÍTULO VI
ATRAVÉS DO PACÍFICO (II)

Uma estranha embarcação - No botezinho - Progresso sem empecilhos


- Ausência de balidas - Em alto-mar, numa choça de bambu - Na
longitude da ilha de Páscoa - O mistério da ilha de Páscoa - Os
gigantes de pedra - Cabeleiras de pedra vermelha - Os orelhas
compridas’’ - Tiki constrói uma ponte - Sugestivos nomes de lugares -
Apanhando tubarão com nossas mãos - O papagaio LI 2B está
chamando - Dirigindo a embarcação pelas estrelas - Três golpes de
mar- Uma tempestade - Banho de sangue no mar, banho de sangue a
bordo - Homem ao mar- Outra tempestade - A Kon-Tiki se desconjunta
- Mensageiros da Polinésia.

Quando o mar estava menos revolto, frequentemente nos metíamos no botezinho


de borracha para tirar fotografias. Não me posso esquecer da primeira vez em
que o mar estava tão manso que dois homens tiveram vontade de pôr na água
aquela coisinha em forma de balão para ir dar uma volta. Ainda bem não tinham
saído da jangada quando, depois de largar os reminhos, se sentaram e se puseram
a rir às gargalhadas. E enquanto o marulho os levantava e eles desapareciam e
tornavam a aparecer entre as ondas, riam tão alto, cada vez que nos avistavam,
que suas risadas estrugiam sobre o desolado Pacífico. Olhávamos em derredor
trocando mudamente impressões e nada víamos de cômico, a não ser caras
barbadas e hirsutas; como, porém, naquela altura, os dois tripulantes do
botezinho já deviam estar habituados com elas, principiamos vagamente a
desconfiar que eles de súbito tivessem enlouquecido. Golpe de sol, talvez. Foi
com dificuldade que os dois companheiros puderam de novo subir a bordo da
Kon-Tiki, a rir como uns perdidos, e de boca aberta e com lágrimas nos olhos,
nos pediram que fôssemos ver por nós mesmos.

Eu e outro pulamos para dentro do balouçante botezinho de borracha e fomos


colhidos por uma onda que nos ergueu até a crista. Daí a um instante nos
sentávamos com um baque e dávamos boas risadas.

Tivemos de voltar para a jangada o mais depressa possível a fim de acalmarmos


os dois que não haviam passeado, pois cuidariam que estávamos doidos varridos.
O que nos causou impressão tão ridiculamente absurda fomos nós próprios e a
soberba embarcação, a primeira vez que vimos o pitoresco conjunto à distância.
E que ainda não tínhamos tido uma vista exterior de nós mesmos em alto-mar.
Os toros de madeira desapareciam atrás de qualquer mareta, e quando
conseguíamos ver alguma coisa, era a cabana baixa com a larga porta e o
cerdoso telhado de folhas que emergia de entre as ondas.

A jangada era tal qual um velho depósito de feno norueguês que estivesse a boiar
ao desamparo no meio do oceano, um palheiro fora de prumo e cheio de
indivíduos barbudos e tisnados de sol. Se algum banhista tivesse vindo atrás de
nós a nadar pelo mar em fora, teríamos sentido a mesma vontade de rir.
Qualquer onda um pouco maior rolava até o meio da cabana e dava impressão de
que invadiria tudo, sem resistência, pela larga abertura da porta diante da qual se
achavam os barbaças boquiabertos. Mas nisso a pobre jangada tornava a surgir
sobre a superfície, e os vagabundos lá estavam, tão enxutos, hirsutos e intatos
como antes. Se vinha passando algum vagalhão de mais respeito, dir-se-ia que
cabana, vela e o mastro inteiro iam ser tragados pela montanha de água, mas era
mais que certo estar ela novamente ali, no mesmo momento, com os seus
vagabundos.

Sua aparência era má, e não podíamos compreender como as coisas tinham
corrido tão bem a bordo da estrambótica embarcação.

Na outra vez que fomos dar umas remadas fora para rirmos um pouco de nós
mesmos, quase nos aconteceu um desastre. O vento e o mar estavam mais
impetuosos do que supúnhamos, e a Kon-Tiki ia abrindo caminho para si mesma
sobre as vagas com muito mais celeridade que julgávamos. Os que íamos no
bote tivemos de remar no mar-alto para salvar nossas vidas, envidando esforços
para alcançarmos a ingovernável jangada que não podia parar e esperar, e
provavelmente não podia virar-se e voltar atrás. Mesmo depois que os tripulantes
da Kon-Tiki amainaram a vela, o vento maltratou tanto a cabana de bambu que a
jangada de pau-de-balsa derivou para oeste, e eis-nos a acompanhá-la de rota
batida no gigante botezinho de borracha, com os seus insignificantes remos de
brinquedo. Havia um único pensamento na cabeça de cada homem - nós não
podíamos ficar separados. Foram horríveis aqueles minutos passados no mar, até
que nos foi dado de novo aferrar a fugitiva jangada e arrastar-nos para bordo,
para junto dos companheiros.
Desse dia em diante foi expressamente proibido sair no botezinho de borracha
sem primeiro se amarrar à proa uma linha comprida de modo que os que ficavam
a bordo pudessem, sendo necessário, puxar para dentro o botezinho. Por isso
nunca mais nos afastamos muito da jangada, exceto quando o vento era brando e
o Pacífico fazia jus ao nome. Mas só tivemos essas condições quando a jangada
se achava a meio caminho da Polinésia, e o oceano, dominando tudo, se
arqueava em redor do globo, em todos os rumos dos ventos.

Então pudemos com segurança deixar a Kon-Tiki e dar umas remadas pelo
espaço azul entre o céu e o mar. Quando víamos os contornos da nossa
embarcação irem minguando sempre mais com a distância, e a grande vela
reduzir-se afinal a um vago quadrado negro no horizonte, às vezes nos invadia o
sentimento da solidão. O mar se curvava debaixo de nós num azul infindo como
o céu por cima, e onde os dois se encontravam todo o azul confluía,
confundindo-se. Quase nos sentíamos suspensos no espaço; todo o nosso mundo
era vazio e azul; não havia nele nenhum ponto fixo, a não ser o sol tropical,
dourado e quente, que nos queimava o pescoço. Então a vela distante da solitária
jangada nos atraía a si como um ponto magnético no horizonte. Voltávamos,
metíamo-nos a bordo e percebíamos estar de novo no nosso mundo, a bordo,
sim, mas em solo firme e seguro. E no interior da cabana de bambu
encontrávamos sombra, sentíamos o cheiro de bambu e de folhas murchas de
palmeira. A pureza azul do sol lá de fora agora nos era servida em larga escala,
através da parede aberta da cabana. Assim, estávamos habituados àquilo e o
achávamos bom por algum tempo, pois que o azul vasto e límpido nos tentava de
novo a sair.

É de assinalar aqui o efeito psicológico que a mísera cabana de bambu exercia


em nosso espírito. Media 2,40m por 4,20m, e para diminuir a pressão do vento e
do mar era de construção tão baixa que não podíamos ficar em pé sem dar com a
cabeça no teto. As paredes e a coberta eram feitas de fortes hastes de bambu
amarradas e eram tapadas por uma sebe de varas também de bambu. Os paus que
formavam a parede, verdes e amarelos, com a rendada folhagem pendente do
teto, descansavam mais a vista do que uma parede branca de cabana, e embora a
parede de bambu do lado de estibordo fosse aberta em um terço de seu
comprimento, e embora telhado e paredes deixassem entrar o sol e o luar, aquele
cochicholo primitivo dava uma sensação de segurança maior do que, em
idênticas circunstâncias, o dariam compartimentos de navio pintados de branco e
portinholas fechadas. Tentamos achar uma explicação para esse fato curioso e
chegamos ao seguinte resultado: Nossa consciência não podia ter nenhum hábito
de associar com uma viagem marítima uma morada de bambu coberta de folhas
de palmeira. Não havia harmonia natural entre o oceano imenso e a choça de
palmas exposta às correntes de vento e flutuando entre as ondas.

Portanto, ou a choça teria de parecer inteiramente deslocada no meio das ondas,


ou estas teriam de parecer inteiramente deslocadas em redor daquela. Enquanto
permanecíamos a bordo, a choça de bambu e seu cheiro de selva eram perfeita
realidade, e as ondas agitadas se afiguravam meio imaginárias. Mas, do
botezinho de borracha, ondas e choça trocavam os papéis. A circunstância de
que os toros de pau-de-balsa sulcavam sempre o oceano como uma gaivota, e,
num golpe de mar a bordo, deixavam a água escoar-se pela parte posterior, nos
dava uma confiança inabalável na parte seca do centro da jangada onde estava a
cabana.

Quanto mais durava a viagem, mais seguros nos sentíamos na aconchegante


toca, e olhávamos para as ondas de cristas brancas que passavam a bailar pela
porta como se fossem um impressionante espetáculo cinematográfico de que
estávamos completamente ausentes. Embora a esburacada parede estivesse
apenas a um metro e meio da desprotegida beira da jangada e somente a quarenta
e cinco centímetros acima da linha de flutuação, contudo, uma vez que,
curvando-nos, transpúnhamos a porta e penetrávamos na choupana, tínhamos a
impressão de que nos achávamos a muitas milhas do mar e ocupávamos uma
moradia nas selvas, muito afastada dos perigos do oceano. Ali nos deitávamos de
costas e ficávamos a olhar para o curioso telhado, retorcido como ramos ao
vento, e apreciávamos o cheiro agreste de madeira tosca, de bambus e de palmas
secas.

Às vezes também saíamos no pequeno bote de borracha para ver como éramos à
noite. De todos os lados erguiam-se os paredões negros das ondas, e miríades de
cintilantes estrelas tropicais provocavam um frouxo reflexo dos plânctones na
água. O mundo era simples: estrelas na escuridão. Se o ano em que estávamos
era 1947 d.C. ou 1947 a.C., tornava-se subitamente coisa sem importância.
Estávamos vivos, e isto o sentíamos com plena intensidade. Compreendíamos
que a vida também tinha sido cheia para os homens que existiram antes da idade
da técnica, mais cheia até e mais rica sob muitos aspectos do que a vida do
homem moderno. O tempo e a evolução, de certo modo, cessavam de existir;
tudo o que era real e tudo o que tinha importância era o mesmo hoje como
sempre o tinha sido e sempre seria; estávamos, por assim dizer, engolidos pela
medida comum absoluta da história, escuridão intérmina e ininterrupta sob um
cardume de estrelas. Diante de nós, nas trevas, a Kon-Tiki se erguia de entre as
vagas para de novo mergulhar por trás de negras massas de água, que se
elevavam como torreões entre ela e nós. À claridade do luar havia uma curiosa
atmosfera em volta da jangada. Sólidos toros franjados de algas, o negríssimo
contorno quadrado da vela que fazia lembrar a dos velhos vikings, a cerdosa
choupana de bambu sob a luz amarela de uma lâmpada de parafina na parte
posterior - aquele conjunto trazia à mente antes a representação de um conto de
fadas do que a pura realidade. De vez em quando a jangada desaparecia
completamente por trás das ondas negras; depois tornava a levantar-se e se
recortava em silhueta contra as estrelas, enquanto a água faiscante escorria dos
troncos.

Quando víamos a atmosfera que se espraiava sobre a solitária jangada, podíamos


ver em espírito toda a flotilha de semelhantes embarcações, dispersas em forma
de leque para lá do horizonte a fim de aumentar as probabilidades de achar terra,
em que os primeiros homens empreenderam a travessia desse mar. O inca Tupak
Yupanki, que submetera a seu domínio o Peru e o Equador, atravessou o mar
com uma armada de vários milhares de homens em jangadas de pau-de-balsa,
pouco antes da chegada dos espanhóis, em busca de ilhas que era fama existirem
no Pacífico. Encontrou duas ilhas, que alguns pensam terem sido as Galápagos, e
depois de oito meses de ausência, ele e seus numerosos remadores
dificultosamente conseguiram tornar ao Equador. Kon-Tiki e seus seguidores
tinham certamente navegado em formação idêntica, algumas centenas de anos
antes, mas depois de terem descoberto as ilhas polinésias, não tinham motivo
para tentar a viagem de regresso.

Quando de novo saltávamos para dentro da jangada, muitas vezes nos


sentávamos em círculo, rodeando a lâmpada de parafina sobre a coberta de
bambu e conversávamos sobre os navegadores do Peru que tinham tido as
mesmas experiências 1.500 anos antes de nós. A lâmpada projetava na vela
sombras colossais de homens barbados, e nós pensávamos nos homens brancos
barbados do Peru, a quem podíamos seguir na mitologia e na arquitetura, desde o
México até a América Central e, penetrando na área noroeste da América do Sul,
até o Peru; aqui essa misteriosa civilização desaparecia como que ao golpe de
uma varinha mágica, antes da chegada dos incas, e reaparecia quase que de
súbito nas ilhas solitárias do ocidente, de onde agora nos estávamos
aproximando. Seriam os mestres errantes homens de uma primitiva raça
civilizada de além do Atlântico, que em tempos passados, da mesma maneira
simples, tinham vindo com a corrente oceânica ocidental e os ventos alísios das
ilhas Canárias até o golfo do México? Era esta realmente uma distância bem
mais curta do que a que estávamos vencendo, e já não acreditávamos no mar
como fator completamente isolante. Muitos investigadores sustentaram com
razões de peso que as grandes civilizações indígenas, dos astecas do México aos
incas do Peru, foram inspiradas por súbitos impulsos vindos de além-mar a leste,
enquanto os indígenas da América são em geral povos asiáticos, caçadores e
pescadores, que, vindos da Sibéria, no decurso de 20.000 anos ou mais, foram
infiltrando-se na América. E, por certo, circunstância digna de nota a não
existência de nenhum vestígio de desenvolvimento gradual das altas civilizações,
que outrora se estenderam do México ao Peru. Quanto mais fundo cavam os
arqueólogos, mais alta é a cultura, até ser atingido um ponto definido a que as
antigas civilizações nitidamente se elevaram sem qualquer base no meio de
culturas primitivas.

E as civilizações se ergueram no ponto em que entra a corrente do Atlântico, no


meio das regiões desertas e selváticas da América Central e Meridional, e não
nas regiões mais temperadas onde as civilizações, tanto nos tempos antigos
como nos modernos, tiveram condições mais fáceis para o seu desenvolvimento.
E o que também se observa nas ilhas dos mares do Sul. E a ilha mais próxima do
Peru, a ilha de Páscoa, que ostenta os vestígios mais fundos de civilização,
embora a insignificante ilhota seja seca e estéril, sendo ainda de todas as ilhas do
Pacífico a mais afastada da Ásia.

Quando havíamos completado metade da viagem, tínhamos vencido a distância


que vai do Peru à ilha de Páscoa, tendo diante de nós, ao sul, a ilha lendária.
Havíamos deixado o continente num ponto qualquer do meio do litoral peruano,
para simular a partida de uma jangada antiga. Se tivéssemos saído da terra firme
mais para o sul, mais perto das ruínas de Tiahuanaco, a cidade de Kon-Tiki,
teríamos o mesmo vento, embora uma corrente mais fraca, os quais nos
conduziriam na direção da ilha de Páscoa. Quando passamos 110° oeste,
estávamos dentro da área oceânica da Polinésia, tanto quanto a ilha de Páscoa
polinésia estava agora mais próxima do Peru do que nós. Achávamo-nos no
nível do primeiro posto avançado das ilhas dos mares do Sul, o centro da mais
antiga civilização insulana. E quando, à noite, o nosso guia brilhante baixava do
céu e desaparecia no poente com todo o seu espectro solar, o brando sopro dos
ventos alísios dava vida às histórias do estranho mistério da ilha de Páscoa.
Enquanto o céu noturno abafava qualquer concepção de tempo, as cabeças dos
gigantes barbados eram de novo projetadas na vela. Mas bem para o sul, na ilha
de Páscoa, estavam em pé cabeças de gigantes ainda maiores, talhadas em pedra,
de barbas pontudas e feições de homens brancos, meditando sobre o arcano dos
séculos. Assim estavam elas quando os primeiros europeus descobriram a ilha
em 1722, e assim estavam vinte e duas gerações polinésias antes, quando os
habitantes atuais desembarcaram de suas canoas e exterminaram todos os
homens adultos que encontraram entre os misteriosos povos civilizados da ilha.
Desde então as gigantescas cabeças de pedra da ilha de Páscoa têm figurado
entre os primeiros símbolos dos mistérios insolúveis da antiguidade.

Espalhadas pelas encostas daquela ilha sem árvores, as descomunais figuras


ergueram-se para o céu, colossos de pedra esplendidamente esculpidos em forma
humana, e ali instaladas como um bloco único da altura de uma casa comum de
três ou quatro andares. Como tinham podido os homens daquele tempo afeiçoar,
transportar e erigir tão gigantescos colossos de pedra? Como se o problema não
fosse suficientemente grande, tinham conseguido equilibrar mais um gigantesco
bloco de pedra vermelha, qual colossal cabeleira, no alto de várias cabeças, a
cerca de onze metros acima do solo. Que significava tudo isto e que espécie de
ciência mecânica possuíam os desaparecidos arquitetos que conheciam a fundo
problemas suficientemente grandes para os primeiros engenheiros da atualidade?

Se reunirmos os dados de que dispomos, talvez não seja afinal insolúvel o


mistério da ilha de Páscoa, uma vez que vejamos no fundo do quadro uns
homens em jangada vindas do Peru.

A velha civilização deixou nesta ilha traços que a patina do tempo não logrou
apagar.
A ilha de Páscoa é o cume de um antigo vulcão extinto. Estradas calçadas, feitas
pelos antigos habitantes civilizados, levam a desembarcadouros em bom estado
existentes na costa e mostram que a profundidade da água em torno da ilha era
exatamente a mesma que é hoje.

Não se trata de restos de um continente submerso, mas de uma desolada ilhota,


tão pequena e solitária no tempo em que era o centro cultural do Pacífico como o
é hoje. No centro dessa ilha em forma de cunha, está a extinta cratera do vulcão
da ilha de Páscoa, e embaixo, na cratera, fica a surpreendente pedreira e oficina
dos escultores. Lá está ela exatamente como a deixaram os velhos artistas e
arquitetos há centenas de anos, ao fugirem às pressas para a parte oriental da
ilha, onde segundo a tradição, o povo recentemente chegado á ilha matou todos
os homens adultos que a habitavam. E a súbita interrupção do trabalho dos
artistas dá uma ideia clara de como era um dia comum de trabalho na cratera da
ilha de Páscoa. Os machados de pedra dos escultores, de uma rijeza de
pederneira, jaziam por ali na oficina e mostram que esse povo civilizado não
conhecia o ferro, como não o conheciam os escultores de Kon-Tiki quando,
perseguidos, fugiram do Peru, deixando espalhados pelo planalto dos Andes
gigantescas estátuas de pedra semelhantes. Em ambos os lugares, a pedreira
pode ser encontrada onde o lendário povo branco barbado cortava no flanco da
montanha blocos de pedra de nove ou doze metros de comprimento, servindo-se
de machados de uma pedra ainda mais dura. E em ambos os lugares, os
gigantescos blocos, pesando várias toneladas, eram transportados por muitos
quilômetros sobre solo áspero antes de serem postos em pé como enormes
figuras humanas, ou erguidos um por cima de outro para formar misteriosas
plataformas e muralhas.

Muitas estátuas descomunais não concluídas estão ainda onde foram começadas,
no interior da cratera da ilha de Páscoa, e mostram como o trabalho era
executado nas diferentes fases.

A maior figura humana, que estava quase terminada quando os construtores


tiveram de fugir, tinha pouco mais de vinte metros de comprimento; se tivesse
sido completada e posta em posição ereta, a cabeça desse colosso de pedra
estaria na mesma altura de um prédio de oito andares. Cada figura distinta era
feita com a pedra tirada de um único bloco. Os recantos de trabalho ocupados
pelos escultores em redor da figura de pedra deitada mostram que não eram
muitos os homens a trabalhar ao mesmo tempo em cada estátua. Deitadas de
costas, com os braços curvos e as mãos colocadas sobre o estômago, tal qual os
colossos de pedra do Peru, as estátuas da ilha de Páscoa eram rematadas nos
mínimos detalhes antes de serem removidas da oficina e transportadas aos seus
destinos em diferentes lugares da ilha.

Na última fase, no interior da pedreira, o gigante era amarrado à rocha apenas


por uma estreita aresta debaixo das costas; depois, também a aresta era desfeita,
passando o colosso a ser apoiado por pedras.

Grandes quantidades destas estátuas eram arrastadas para o fundo da cratera e aí


postas na vertente. Mas uma boa parte dos maiores desses colossos era
transportada para cima e, colocada sobre a parede da cratera, por muitos
quilômetros arrastada pelo terreno difícil, antes de ser assentada numa
plataforma de pedra e de receber sobre a cabeça mais uma pedra descomunal de
lava vermelha. Esse transporte já em si parece um mistério, mas não se pode
contestar que se tenha dado nem que os arquitetos desaparecidos do Peru
deixaram nas montanhas andinas colossos de pedra de igual tamanho, mostrando
que eram peritos nessa especialidade. Embora os monólitos sejam maiores e
mais numerosos na ilha de Páscoa, e embora lá os escultores tivessem adquirido
um estilo individual, a mesma desaparecida civilização erigiu gigantescas
estátuas semelhantes em forma humana em muitas das outras ilhas do Pacífico
mais próximas da América, e em toda parte os monólitos eram trazidos de
pedreiras distantes para o lugar do templo. Nas Marquesas ouvi lendas sobre o
modo pelo qual as gigantescas pedras eram manobradas, e - como essas lendas
correspondiam exatamente às histórias dos nativos a respeito do transporte dos
pilares de pedra ao imenso portal de Tongatabu - pode-se conjeturar que o
mesmo povo empregava igual método com as colunas na ilha de Páscoa. O
trabalho dos escultores na cavidade consumia longo tempo, mas exigia apenas
alguns artistas. O

transporte de cada estátua pronta era feito com mais rapidez, mas, por outro lado,
requeria maior quantidade de homens. A pequena ilha de Páscoa era então rica
em peixes e inteiramente cultivada, existindo grandes plantações de batata-doce
do Peru. Opinam os entendidos que a ilha, na sua época de esplendor, pode ter
tido uma população de sete ou oito mil almas. Uns mil homens eram mais que
suficientes para puxar as descomunais estátuas para cima da parede íngreme da
cratera, ao passo que bastavam quinhentos homens para as arrastar para a frente,
ao longo da ilha.

De filaça e fibras vegetais trançavam cabos sólidos e duráveis e, usando


alavancas de pau, a multidão arrastava o colosso de pedra sobre troncos e seixos
tornados escorregadiços com raízes de taro. E fato assaz conhecido que, na
fabricação de cordas e cabos, eram mestres os antigos povos civilizados das ilhas
dos mares do Sul e mais ainda do Peru, onde os primeiros europeus acharam
pontes penseis de mais de noventa metros de comprimento, lançadas sobre
torrentes e desfiladeiros por meio de cabos trançados, tão grossos como a cintura
de um homem. Quando o colosso de pedra havia chegado ao lugar escolhido e ia
ser posto em pé, surgia outro problema. A multidão construía provisoriamente
um plano-inclinado de pedra e areia e puxava o gigante para cima pelo lado
menos íngreme, primeiro as pernas.

Quando a estátua chegava ao alto, passava rapidamente sobre uma quina aguda e
escorregava dali para baixo, de modo que a parte inferior se encaixava numa
cavidade adrede preparada. Como o plano-inclinado completo ainda lá estava,
roçando na parte posterior da cabeça do gigante, rolavam para cima dela mais
um cilindro de pedra e o punham no alto, antes de ser removido todo o plano-
inclinado. Planos-inclinados, prontos de antemão como este, encontravam-se em
vários lugares da ilha de Páscoa, aguardando figuras colossais que nunca vieram.
A técnica era admirável, mas de modo algum misteriosa se deixarmos de
subestimar a inteligência dos homens de outras épocas, e o tempo e o material
humano de que dispunham.

Mas por que faziam essas estátuas? E por que era necessário ir diretamente dali a
outra pedreira, que ficava a mais de seis quilômetros da oficina da cratera para
achar uma qualidade especial de pedra vermelha para pôr sobre a cabeça da
estátua? Tanto na América do Sul como nas ilhas Marquesas, muitas vezes a
estátua inteira era dessa pedra vermelha, e faziam grandes caminhadas para obtê-
la. Os toucados vermelhos eram um traço característico das pessoas de posição
tanto na Polinésia como no Peru.

Vejamos primeiro que coisa representavam as estátuas. Quando os primeiros


europeus visitaram a ilha, viram misteriosos ”homens brancos” na praia, e, em
contraste com o que é usual entre povos desta espécie, encontraram homens com
longas barbas esvoaçantes, os descendentes das mulheres e crianças pertencentes
à primeira raça da ilha, que haviam sido poupados pelos invasores. Os próprios
naturais declararam que alguns de seus antepassados tinham sido brancos, ao
passo que outros tinham sido morenos. De acordo com suas conjeturas, estes
últimos haviam imigrado de alguma parte da Polinésia vinte e duas gerações
antes, enquanto que os primeiros tinham vindo de leste em grandes embarcações,
nada menos que cinquenta e sete gerações antes (isto é, aproximadamente em
400500 D.C.).

Aos representantes da raça oriunda de leste foi dado o nome de ’orelhas


compridas’, porque eles aumentavam as orelhas artificialmente pendurando
pesos nos lóbulos, de modo que estes chegavam a baixar até os ombros. Eram
estes os misteriosos ’orelhas compridas’ que foram mortos quando os ’orelhas
curtas’ chegaram à ilha. Todas as figuras de pedra da ilha de Páscoa tinham
orelhas grandes que chegavam até os ombros, como as tinham os próprios
escultores.

Ora, as lendas incas do Peru dizem que o rei-sol Kon-Tiki governava um povo
branco barbado, ao qual os incas davam o nome de ’orelhas grandes’ por
haverem aumentado artificialmente os orelhas, que desciam até os ombros.
Acentuavam os incas que tinham sido os ’orelhas grandes’ de Kon-Tiki que
erigiram as abandonadas estátuas gigantescas nas montanhas andinas antes de
serem exterminados ou expulsos pelos próprios incas na batalha travada numa
ilha junto do lago Titicaca.

Em suma, os brancos ’orelhas grandes’ desapareceram do Peru dirigindo-se para


oeste com ampla experiência de trabalho em colossais estátuas de pedra, e os
brancos ’orelhas compridas’ de Tiki chegaram à ilha de Páscoa vindos de leste,
hábeis precisamente na mesma arte que logo continuaram com inteira perfeição,
de modo que na pequena ilha de Páscoa não se pode achar o menor vestígio de
qualquer desenvolvimento anterior conduzindo às obras-primas existentes na
ilha.

Há, frequentemente, maior semelhança entre as grandes estátuas de pedra do


Peru e as de certas ilhas dos mares do Sul que entre os monólitos destas diversas
ilhas comparados uns com os outros. Nas ilhas Marquesas e em Taiti essas
estátuas eram conhecidas pelo nome genérico de Tiki, e representavam
antepassados de renome na história das ilhas que, depois de sua morte, haviam
sido contados entre os deuses. E está aí, sem dúvida, a explicação dos curiosos
gorros vermelhos das estátuas da ilha de Páscoa. Como ficou dito, existiram, em
todas as ilhas da Polinésia, indivíduos esparsos e famílias inteiras de cabelo
avermelhado e pele clara, e os próprios ilhéus declararam que eram justamente
estes os descendentes do primeiro povo branco das ilhas. Havia em algumas
delas festas religiosas, cujos participantes pintavam de branco a tez e de
vermelho o cabelo para se parecerem com seus avós. Em cerimônias anuais
realizadas na ilha de Páscoa, a figura principal da festa rapava a cabeça para
poder pintá-la de vermelho. E os colossais gorros de pedra vermelha postos
sobre as gigantescas estátuas da ilha de Páscoa eram talhadas na forma típica dos
penteados locais; tinham no alto um nó, exatamente como os homens amarravam
o cabelo com um pequeno nó tradicional no meio da cabeça. As estátuas da ilha
de Páscoa tinham orelhas compridas porque também as tinham os próprios
escultores. Haviam escolhido especialmente pedras vermelhas para servirem de
cabeleiras, porque os próprios escultores tinham cabelo avermelhado. Elas
tinham o queixo pontudo e saliente porque os respectivos escultores deixavam
crescer a barba. Tinham a fisionomia típica da raça branca, com nariz reto,
pequeno, e lábios finos, porque os escultores não pertenciam à raça malaia. E
quando as estátuas tinham cabeças enormes e pernas miúdas, com mãos
colocadas sobre o estômago, é que era justamente desse modo que o povo do
Peru costumava fazer estátuas gigantescas. O único ornato das figuras da ilha de
Páscoa é um cinto que era sempre talhada em volta do estômago da estátua. O
mesmo cinto simbólico se vê em todas as estátuas das antigas ruínas de Kon-Tiki
perto do lago Titicaca. E o lendário emblema do deus-sol, o cinto do arco-íris.
Conforme um mito corrente em Mangareva, o deus-sol tirara o arco-íris, que era
o seu cinto mágico, e por ele descera do céu até Mangareva, a fim de povoar a
ilha com seus filhos de pele branca. Outrora o sol era considerado como o mais
antigo antepassado naquelas ilhas, bem como no Peru.

Costumávamos sentar-nos no convés sob o céu estrelado e recordar a estranha


história da ilha de Páscoa, muito embora a jangada nos estivesse levando
diretamente para o coração da Polinésia, de maneira que dessa ilha longínqua
nada veríamos, a não ser o seu nome no mapa. Mas a ilha de Páscoa tem tantos
traços do oriente que até o seu nome pode servir de indicador. No mapa aparece
esse nome ”Ilha de Páscoa” porque um holandês a ’descobriu’ num domingo de
Páscoa. E nos esquecemos que os próprios nativos que já viviam lá, tinham para
a sua terra nomes mais instrutivos e mais significativos. Esta ilha tem nada
menos que três nomes em polinésio. Um deles é Te-Pitote-Henua, que significa
”umbigo das ilhas”. Este nome poético coloca claramente a ilha de Páscoa numa
posição especial em relação às outras ilhas situadas mais para o oeste, sendo,
consoante os próprios polinésios, a mais antiga designação da ilha de Páscoa. Na
banda ocidental da ilha, próximo ao tradicional lugar de desembarque dos
primeiros ’orelhas compridas’, há uma esfera de pedra cuidadosamente feita com
ferramenta a que deram a designação de ”umbigo de ouro”, sendo por sua vez
considerado o umbigo da própria ilha de Páscoa. Quando os poéticos
antepassados polinésios cinzelaram o umbigo da ilha na costa oriental e
escolheram a ilha mais vizinha do Peru como o umbigo de suas miríades de ilhas
situadas mais para o oeste, isso se revestiu de um significado simbólico. E
quando sabemos que a tradição polinésia se refere ao descobrimento das ilhas
como o ’nascimento’ das ilhas, com isto claramente se sugere que, dentre os
demais lugares, a ilha de Páscoa era considerada como o símbolo do nascimento
das outras ilhas e o traço de união com a mãe-pátria original. O segundo nome
da ilha de Páscoa é Rapanui e significa ”Grande Rapa”, enquanto Rapaiti ou
”Pequena Rapa” é outra ilha do mesmo tamanho, sita a grande distância a oeste
da ilha de Páscoa. Ora, é prática natural de todos os povos chamarem sua
primeira pátria, por exemplo, Grande Rapa, ao passo que a seguinte é chamada
Nova Rapa ou Pequena Rapa, ainda que os lugares sejam do mesmo tamanho. E
na Pequena Rapa os nativos sustentam a tradição muito ortodoxa de que os
primeiros habitantes da ilha vieram da Grande Rapa, a ilha de Páscoa, a leste,
mais perto da América.

Isto é alusão direta a uma primitiva imigração do Oriente.

O terceiro e último nome desta ilha-chave é Mata-Kite-Rani e quer dizer ”o olho


(que) olha (para) o céu”. A primeira vista, isto causa alguma hesitação, pois a
ilha de Páscoa, relativamente baixa, não olha para o céu mais que as outras
elevadas ilhas montanhosas, por exemplo Taiti, as Marquesas ou Havaí. Mas
Ram tinha para os polinésios duplo significado.

Era também a pátria de origem de seus avós, a terra santa do deus-sol, o


montanhoso reino abandonado de Tiki. E é muito expressivo o fato de terem
dado precisamente ao posto-avançado que é a ilha de Páscoa, dentre milhares de
ilhas do oceano, o nome de olho que olha para o céu. Mais notável é ainda a
circunstância de que o nome afim Mata-Rani, que em polinésio significa ”o olho
do céu”, é um velho nome local do Peru, o de um lugar na costa peruana do
Pacífico defronte da ilha de Páscoa, e logo abaixo da vetusta cidade em ruínas de
Kon-Tiki, nos Andes. A ilha de Páscoa, sozinha, nos dava assunto de sobra para
conversação enquanto estávamos sentados no convés sob o céu estrelado,
sentindo-nos participantes de toda a aventura pré-histórica. Quase nos vinha a
impressão de que não fizéramos outra coisa, desde os tempos de Tiki, senão
correr o mar sob o sol e as estrelas em busca de terra.

Já não tínhamos o mesmo respeito às ondas e ao oceano. Nós os conhecíamos e


conhecíamos suas relações com os que iam na jangada. O próprio tubarão
passara à categoria dos episódios corriqueiros. Não pensávamos mais no arpão
portátil e nem sequer nos afastávamos da beira da jangada, se um tubarão vinha
vindo ao longo dela. Pelo contrário, o caso mais comum era tentarmos agarrar-
lhe a barbatana dorsal quando ela roçava imperturbável os toros da embarcação.
Com o tempo, veio a desenvolver-se um agradável esporte - pescar tubarão sem
linha. Principiamos mui modestamente.

Apanhávamos com a maior facilidade mais dourados do que era preciso para o
consumo.

Para manter viva uma forma popular de diversão sem ter de esperdiçar comida,
descobrimos um cômico sistema de pescar sem anzol, para mútuo
entretenimento nosso e dos dourados.

Atávamos em cordéis peixes-voadores sem préstimo e os fazíamos deslizar pela


superfície da água: os dourados acorriam logo e pegavam o peixe, e então
puxávamos, cada qual para seu lado, como um bom passatempo, pois se um
dourado soltava a presa, vinha outro em seu lugar. Nós nos divertíamos e, ao
cabo, os dourados ficavam com os peixes.

Então começamos a fazer o mesmo jogo com os tubarões. Púnhamos um pedaço


de peixe na ponta de uma corda ou, amiúde, um saco com restos de jantar que
pendurávamos numa linha. Em vez de virar de costas, o tubarão empurrava o
focinho acima da água e vinha nadando com as mandíbulas escancaradas para
devorar o engodo. Não resistíamos ao prazer de puxar pela corda justamente no
momento em que o tubarão ia de novo fechar as mandíbulas, e o enganado
continuava a nadar com uma expressão de indizível toleima e paciência, e
tornava a abrir as mandíbulas para abocanhar as sobras que lhe escapavam cada
vez que tentava engoli-las. O final da brincadeira era vir o peixe até os toros e
pular como um cão pedinte, atraído pela isca que balançava num saco pouco
acima de seu focinho. Era como se estivéssemos num jardim zoológico dando
comida a um hipopótamo de boca aberta. Um dia, pelos fins de julho, depois de
estarmos três meses a bordo da jangada, a seguinte nota deu entrada no diário:

Fizemos amizade com o tubarão que hoje nos acompanhou. Ao jantar,


alimentamo-lo com sobejos que jogávamos diretamente dentro de suas
mandíbulas abertas. Quando vai nadando ao nosso lado, faz lembrar um pouco
um cão meio feroz meio bonachão e amigo. Não se pode negar que os tubarões
parecem bastante agradáveis enquanto a gente não cai dentro de suas
mandíbulas. Pelo menos achamos divertido tê-los em redor de nós, exceto
quando estamos tomando banho.”

Um dia, uma vara de bambu, com a comida para tubarões amarrada num
barbante, estava na beira da jangada pronta para ser utilizada quando um golpe
de mar a arrebatou violentamente. A vara ainda boiava a mais de cem metros da
parte posterior da jangada, quando de repente ficou em j) é na água e
precipitadamente veio vindo sozinha atrás da jangada, como se tivesse intenção
de voltar espontaneamente para o antigo lugar.

Quando a cana de pescar se chegou balançando mais perto de nós, vimos um


tubarão de três metros nadando logo abaixo dela, enquanto a vara ressaía fora
das ondas como um periscópio. O peixe engolira o saco de comida sem trincar a
linha. Pouco depois a cana de pescar nos alcançou, sossegadamente passou por
nós e desapareceu mais além.

Se é verdade que, pouco a pouco, passamos a olhar para o tubarão com olhos
bem diferentes, jamais desapareceu o respeito que nos infundiam aquelas cinco
ou seis carreiras de dentes afiados como navalhas, sempre de emboscada no
interior das colossais mandíbulas.

Certa vez, Knut, sem querer, nadou em companhia de um tubarão. A ninguém


era permitido nadar longe da jangada, quer em atenção à sua marcha, quer por
causa dos tubarões. Um dia, porém, que tudo estava calmo, e depois de termos
arrastado para bordo os tubarões que nos vinham acompanhando, houve
permissão para se dar um rápido mergulho no mar. Knut atirara-se dentro d’água
e só bem longe tornou a aparecer à superfície. No instante em que ia empreender
a volta, vimos do mastro uma sombra maior do que ele vir subindo atrás do
banhista, mas bem mais no fundo. Demos o aviso com voz forte, porém com a
devida prudência a fim de não criar pânico, e Knut soergueu-se e nadou para o
lado da jangada.

Mas a sombra lá embaixo era de um nadador ainda melhor, que irrompeu do


fundo e ia ganhando de Knut. Chegaram à jangada ao mesmo tempo. Enquanto
Knut trepava a bordo, um tubarão de 1,80m deslizou pouco abaixo de seu
estômago e deteve-se ao lado da jangada. Dêmos-lhe uma apetitosa cabeça de
dourado em agradecimento por ele não ter abocanhado o nosso companheiro.

Geralmente o que excita a voracidade dos tubarões é mais o cheiro do que a


vista. Para prová-la sentamo-nos com as pernas na água, e eles nadaram na nossa
direção até se acharem mais ou menos a meio metro, e daí pacificamente
voltaram-se de costas para nós. Se, porém, a água tinha manchas de sangue,
poucas que fossem, o que se verificava quando tínhamos escalado peixes, as
nadadeiras dos tubarões se movimentavam, e eles, vindo de longe, se reuniam ali
como moscas-varejeiras. Se jogávamos fora tripas de tubarão, atiravam-se a elas
às cegas e como que tomados de frenesi. Devoravam avidamente o fígado de um
seu semelhante, e se então púnhamos o pé na água, dirigiam-se para ele que nem
foguetes, chegando a ferrar os dentes nos toros onde o pé tinha estado. Existem
tubarões e tubarões, porque esse peixe é verdadeiro joguete de suas emoções.

A derradeira fase das nossas relações com tubarões foi que começamos a puxá-
los pelo rabo. Puxar a cauda dos animais passa por ser uma forma inferior de
esporte, mas isto dizem os que não experimentaram fazê-lo com a de um
tubarão. Porque era esta, na verdade, uma excitante forma de esporte. Para
aferrar um tubarão pelo rabo, primeiro tínhamos de entretê-lo com um bom
pitéu. Ele se mostrava pronto a pôr a cabeça fora da água para recebê-lo. Em
geral a comida lhe era servida dentro dum saco balouçante, pois dar-lha
diretamente da mão não é muito divertido. Se uma pessoa alimenta cães ou ursos
mansos na mão, eles metem os dentes na carne e a vão rasgando aos poucos ou,
quando o conseguem, arrebatam-na toda para si. Se, porém, a gente segura um
grande dourado a boa distância da cabeça do tubarão, este se ergue e dá um
estalo com as mandíbulas, e, sem se ter percebido nenhum puxão, lá se foi de
repente metade do dourado, e o pescador fica sentado e com o restante na mão.
Não fora sem dificuldade que havíamos cortado em dois pedaços o dourado,
mas, numa fração de segundo, o tubarão, movendo rapidamente para os lados
seus dentes triangulares que pareciam serrotes, tinha imperceptivelmente
triturado a espinha dorsal e o resto como uma máquina de fazer linguiça. Quando
o tubarão tranquilamente se virava para de novo descer, meneava o rabo acima
da superfície e era fácil agarrá-la. Pegar na pele do peixe era o mesmo que passar
a mão sobre lixa, e dentro da ponta superior de sua cauda havia um entalhe que
parecia bem a propósito. Se se colocava ali a mão com firmeza, o peixe estava
seguro. Tinha-se então de dar um sacalão antes que ele voltasse a si, e puxar com
força para os troncos a maior parte possível da cauda agarrada. Durante um ou
dois segundos o animal parecia nada haver entendido, mas súbito começava a
saracotear-se e debater-se sem grande energia com a parte dianteira do corpo,
pois que sem o auxílio da cauda o tubarão não consegue fazer muita coisa. As
outras barbatanas servem apenas para equilíbrio e direção. Após algumas
desesperadas sacudidelas, durante as quais tínhamos de segurar a cauda com
toda a firmeza, o surpreso tubarão se tornava abatido e apático, e, como o
estômago desamparado principiava a afundar-se na direção da cabeça, afinal o
peixe ficava totalmente paralisado. Quando o prisioneiro se aquietava e, todo
hirto, estava como que aguardando os acontecimentos, era hora de o puxarmos
todo para dentro, com toda a força. Raramente levantávamos para fora da água
mais da metade do peixe, mas então ele também despertava e se incumbia do
resto. Com violentos repelões meneava a cabeça para os lados e na direção dos
toros, e então cumpria-nos puxar com toda a energia e sair do caminho com a
maior rapidez, se tínhamos amor às pernas. Pois, nesse momento, o tubarão já
não era para gracejos. Debatendo-se e dando grandes saltos, surrava a parede de
bambu com a cauda que parecia um martelo. Agora o peixe não poupava mais os
músculos de ferro. As imensas mandíbulas estavam escancaradas, e as fileiras de
dentes procuravam morder no ar qualquer coisa que lhes estivesse ao alcance.
Podia acontecer que o saracoteio terminasse com a queda mais ou menos
involuntária do peixe na água e seu desaparecimento definitivo após tão
vergonhosa humilhação, mas as mais das vezes ele se arrojava ao acaso sobre os
mesmos toros traseiros, até que passássemos um nó corredio em volta da raiz da
sua cauda, ou até que ele deixasse para sempre de exibir aqueles seus dentes
diabólicos.

Grande era o desassossego do papagaio quando tínhamos um tubarão no convés.


Saía correndo da cabana de bambu e marinhava pela parede com febril rapidez
até achar um posto de observação, bom e seguro, no telhado de folhas de
palmeira, e lá pousado punha-se a abanar a cabeça ou esvoaçava daqui para ali
ao longo da cumeeira, gritando e muito excitado. Desde o princípio ele se
tornara excelente marinheiro, sempre a transbordar bom humor e riso. Já nos
habituáramos a contar sete tripulantes na jangada, nós seis e o papagaio verde. O
caranguejo Johannes teve afinal de resignar-se a ser considerado um mero
apêndice de sangue frio. À noite o papagaio enfiava-se na sua gaiola sob o
telhado da cabana, mas de dia andava imponente por todo o convés ou
dependurava-se nos patarrases e nos estais, realizando admiráveis exercícios de
acrobacia. No começo tínhamos esticadores nos estais do mastro, porém
gastaram as cordas e por isso os substituímos por nós corredios comuns. Quando
os estais se afrouxavam com o sol e o vento, todos os homens tinham de entrar
em ação e bracear a verga, de modo que os mastros de mangueiro, pesados como
ferro, não batessem um no outro, acabando por cortar as cordas até caírem. E
enquanto puxávamos, no momento mais crítico, o papagaio se punha a gritar
com sua voz rachada: ”Puxa! Puxa! oh, oh, oh, ah, ah, ah!” E se nos fazia rir, ele
mesmo se sacudia de tanto rir da sua própria comicidade e descrevia círculos
sobre os estais.

A princípio o papagaio implicava com os dois entendidos de rádio. Estavam eles


no seu canto, muito entretidos com os fios e fones de cabeça, talvez em contato
com um radioamador de Oklahoma. De repente os fones de cabeça emudeciam,
e eles não logravam obter um som sequer, por mais que afagassem os fios e
torcessem os botões. O papagaio estivera ocupado em dar bicadas no fio da
antena. Isto era bastante comum, mormente nos primeiros dias, quando o fio da
antena se esticava para cima amarrado a um balão. Mas um dia o bicho adoeceu
gravemente. Sentado no estadeiro, vivia tristonho, sem tocar em comida durante
dois dias. No excremento cintilavam pedacinhos de fio dourado de antena.

Nessa ocasião, os encarregados do rádio se arrependeram das pragas rogadas e o


papagaio se arrependeu da sua maldade, e a partir desse dia Torstein e Knut
foram seus amigos do peito, e a ave palradora não quis mais dormir em outro
lugar que não fosse o canto do rádio. Quando o papagaio veio para a jangada, a
sua língua materna era o espanhol, e Bengt afirmou que o bicho dera para falar
espanhol com sotaque norueguês muito antes de se pôr a papaguear as pragas
favoritas que Torstein proferia em norueguês de lei.

Por dois meses o papagaio nos deliciou com o seu humorismo e as suas cores
brilhantes, até que um golpe de mar invadiu a embarcação pela popa enquanto a
ave, vindo da ponta do mastro, descia pelo estai. Quando averiguamos que o
papagaio havia sido carregado pelo vagalhão, era demasiado tarde. Não o vimos
mais. E a Kon-Tiki não podia fazer meia-volta nem parar; se qualquer coisa caía
da jangada no mar, era impossível voltar para reavê-la. Inúmeras experiências o
tinham mostrado.

Na primeira noite a perda do papagaio teve um efeito depressivo sobre o nosso


espírito; sabíamos que nos sucederia precisamente a mesma coisa se, num
solitário serviço de vigia noturna, caíssemos no mar.

Adotamos regulamentos de segurança ainda mais rigorosos, pusemos em uso


novos parapeitos para o plantão da noite, e procuramos amedrontar-nos uns aos
outros desfazendo a crença de que, como tudo havia corrido bem nos dois
primeiros meses, estávamos perfeitamente garantidos. Um passo em falso, um
movimento irrefletido podia-nos enviar, até mesmo em pleno dia, ao lugar para
onde tinha ido o papagaio verde. Várias vezes tínhamos observado as grandes
cascas brancas de ovos de siba a boiar como ovos de avestruz ou crânios brancos
na água azul. Numa única ocasião vimos uma lula remexendo por baixo de uma
dessas cascas. Vimos as bolas, alvas como neve, flutuando no nosso nível, e a
princípio cuidamos que seria negócio fácil dar umas remadas no botezinho e
apanhá-las.

Pensamos a mesma coisa outra vez em que a corda da rede de plâncton se partiu,
ficando a rede de pano sozinha atrás de nós, a flutuar na nossa esteira. Lançamos
à água o botezinho, munido de uma corda para as remadas de volta. Ficamos,
porém, surpreendidos ao ver que o vento e o mar conservavam o bote a
distância, e que a linha proveniente da Kon-Tiki tinha tão violenta ação de freio
na água, que não poderíamos jamais voltar remando ao ponto de que havíamos
saído.

Podíamos chegar a alguns metros daquilo que queríamos recolher, mas nessa
ocasião a linha inteira estava na água e a Kon-Tiki nos arrastava para oeste. ”O
que no mar cai no mar fica” - eis a lição que aos poucos se gravara
indelevelmente na nossa consciência a bordo. Se quiséssemos ir com o resto,
tínhamos de agarrar-nos bem até que a proa da Kon-Tiki tocasse em terra na
outra banda. O papagaio deixou um lugar vazio no canto do rádio, mas quando,
no dia seguinte, o sol tropical brilhou sobre o Pacífico, a tristeza foi de pouca
duração. Nos dias que se seguiram arrastamos para bordo vários tubarões e
constantemente achávamos na barriga do peixe, entre cabeças de atuns e outras
curiosidades, bicos pretos e curvos de papagaios. Mas, depois, de mais detido
exame, verificávamos que os bicos pretos pertenciam a sibas digeridas.

Os dois encarregados do rádio tinham tido um trabalho insano no seu canto


desde o primeiro dia que vieram para bordo. Já no primeiro dia, na corrente de
Humboldt, a água salgada começou a escorrer das caixas de bateria; por isso
tiveram de revestir de lona o sensível canto do rádio para salvar o que, no mar
grosso, pudesse ser salvo. Em seguida veio o problema da instalação de uma
antena suficientemente longa na pequena jangada.

Tentaram suspender a antena com uma pandorga, mas com a primeira lufada
forte a pandorga mergulhou numa crista de onda e desapareceu. Experimentaram
depois levantá-la com um balão, mas o sol dos trópicos queimou-o fazendo-lhe
buracos, de modo que o balão murchou e caiu no mar. Finalmente houve o caso
com o papagaio. Demais, estivemos duas semanas na corrente de Humboldt
antes de sairmos de uma zona morta dos Andes na qual a onda-curta era muda e
sem vida como o ar numa caixa de sabão vazia.

Mas eis que, certa noite, irrompeu de repente a onda-curta, e o prefixo de


chamada de Torstein foi ouvido por um amador casual de Los Angeles que
estava mexendo no seu transmissor para pôr-se em contato com outro amador na
Suécia. O homem perguntou que espécie de aparelho era o nosso, e tendo
recebido resposta satisfatória, indagou de Torstein quem era e onde vivia.
Quando soube que a morada de Torstein era uma cabana de bambu numa
jangada a navegar no Pacífico, houve vários ruídos esquisitos até que Torstein
deu informações mais minuciosas. Depois que o de Los Angeles se acalmou,
disse-nos que seu nome era Hal e o de sua mulher Arma, que era sueco de
nascimento, e que levaria ao conhecimento de nossas famílias que estávamos
vivos e íamos bem.
Naquela noite, achamos estranho pensar que um homem totalmente
desconhecido, obscuro operador de um cinema da populosa Los Angeles, era a
única pessoa no mundo além de nós que sabia onde estávamos e que passávamos
bem. Daquela data em diante, Hal, de seu verdadeiro nome Harold Kempel, e
seu amigo Frank Cuevas se revezavam cada noite à espera de ouvir sinais da
jangada, e Herman recebeu telegrama de agradecimento do chefe do Serviço de
Meteorologia dos Estados Unidos pelas suas duas informações diárias dadas em
código sobre uma área a respeito da qual poucas informações havia e nenhuma
estatística. Posteriormente Knut e Torstein estabeleceram ligação com outros
radioamadores quase todas as noites, e estes transmitiam saudações à Noruega
por intermédio de um aficionado de rádio chamado Egil Berg em Notodden.

Apenas durante alguns dias no meio do oceano penetrou muita água salgada no
canto do rádio e a estação deixou de funcionar totalmente. Os dois encarregados
andavam dia e noite às voltas com parafusos e ferros de soldar, e todos os
radioamadores distantes deram como findos os dias da jangada. Mas eis que,
uma noite, o prefixo LI 2B se fez ouvir no ar, e num instante o canto do rádio
zumbia como um vespeiro por terem várias centenas de radioamadores da
América batido em suas teclas simultaneamente, respondendo à chamada.

Na realidade, tinha-se sempre a impressão de se ter sentado num vespeiro, se


casualmente a gente invadia o domínio dos técnicos do rádio. Era úmido devido
à água salgada que se ia entranhando no madeiramento, e conquanto houvesse
um pedaço de borracha bruta sobre o toro de pau-de-balsa onde o operador se
sentava, a gente tornava choques elétricos tanto na parte traseira como na ponta
dos dedos se tocava no manipulador Morse. E se um de nós profanos tentava
bifar um lápis no canto do rádio, que tinha de tudo, ou os cabelos se lhe
eriçavam na cabeça, ou esse tal tirava faíscas do toco de lápis. Somente Torstein,
Knut e o papagaio eram capazes de se saracotear ilesos por aquele recanto, e nós
pusemos um papelão como marca bem visível da zona de perigo para os outros
quatro.

Uma noite, a desoras, Knut bulia no aparelho à luz da lâmpada quando, de


repente, puxou minha perna e me disse que estivera falando com um homem que
morava nas cercanias de Oslo e se chamava Christian Amundsen. Isto chegava a
ser um recorde para um amador, pois que o pequeno transmissor de ondas-curtas
a bordo da jangada com os seus 13.990kc por segundo não emitia mais do que 6
watts, tendo mais ou menos a mesma força de um maçarico elétrico. Eram 2 de
agosto e tínhamos navegado mais de 60 graus em redor da Terra, de modo que
Oslo estava no extremo oposto do globo. O rei Haakon fazia 75 anos no dia
seguinte, e nós lhe enviamos uma mensagem de congratulações diretamente da
jangada; e no dia 4 Christian fez-se ouvir de novo mandando-nos a resposta do
rei em que nos desejava contínuas felicidades e pleno êxito na viagem.

Lembra-nos outro episódio que é um contraste à vida toda da jangada. Tínhamos


duas máquinas fotográficas, e Erik trazia consigo uma sacola de material para
revelar fotografias na viagem, de modo que tirássemos novos instantâneos de
coisas que não haviam saído bem.

Depois da visita do tubarão gigante, ele não pôde mais conter-se, e uma noite
misturou as substâncias químicas com água, de acordo com as instruções, e
revelou dois filmes. Os negativos pareciam fotografias tiradas de muito longe;
não eram mais que manchas obscuras e enrugadas. O filme ficou estragado.
Telegrafamos aos que costumavam ter contato conosco, pedindo-lhes conselhos,
e a nossa mensagem foi apanhada por um radioamador de Hollywood; este
telefonou para um laboratório, e pouco depois nos falava advertindo que o
revelador estava demasiado quente; se não queríamos que o negativo se
enrugasse, não devíamos usar água acima de 60°. Agradecemos-lhe o conselho e
informamos que a mais baixa temperatura que nos cercava era a da própria
corrente oceânica, mais ou menos de 80°. Ora, Herman era engenheiro de
frigoríficos, e eu lhe disse por gracejo que fizesse a temperatura da água baixar a
60°. Herman pediu permissão para se utilizar da garrafinha de ácido carbônico
pertencente ao pequeno bote de borracha já cheio de ar. Depois de umas
ligeirezas de mãos numa caldadora coberta com um saco de dormir e um colete
de lã, de repente apareceu neve na barba intensa do engenheiro, e ele entrou com
um enorme pedaço de gelo branco na caldadora. Erik tornou a revelar e, dessa
vez, com esplêndidos resultados.

Mas embora as misteriosas palavras levadas através do ar pela onda-curta


fossem um luxo desconhecido nas remotas eras de Kon-Tiki, as ondas do oceano
por baixo de nós eram as mesmas de outrora, e levavam a jangada de pau-de-
balsa constantemente para oeste, como faziam há 1.500 anos.

Depois que entramos na área mais próxima das ilhas dos mares do Sul, o tempo
se tornou um pouco mais inconstante, com aguaceiros esparsos, e o vento alísio
tinha mudado de direção. Tinha soprado invariavelmente de sueste até nos
acharmos já bem avançados na corrente equatorial; depois virará cada vez mais
para leste. Alcançamos a nossa posição mais setentrional a

10 de junho, com a latitude 6° 19’ sul. Estávamos tão perto do equador que se
tinha a impressão de que íamos navegar até mesmo acima das ilhas mais
setentrionais do grupo das Marquesas, e sumir-nos completamente no mar sem
achar terra.

Mas então o vento alísio rodopiou para mais longe, de este para nordeste, e,
numa curva, nos impeliu para a latitude do mundo das ilhas.

Acontecia amiúde que o vento e o mar permaneciam inalteráveis dias seguidos, e


já não sabíamos então a quem tocava o plantão de direção, menos à noite,
quando o vigia ficava sozinho no convés. Pois se o mar e o vento estavam
firmes, o remo de governo ficava bem amarrado e a vela da Kon-Tiki permanecia
enfunada sem nos causar nenhuma preocupação.

Então o vigia noturno podia sentar-se calmamente na porta da cabana e ficar


olhando para as estrelas. Se, porém, as constelações mudavam de posição no
firmamento, era tempo de o vigia sair e ver se era o remo de governo ou o vento
que se tinha desviado do rumo. Quase não se acredita em como era fácil
governar a embarcação pelas estrelas quando lhes havíamos observado o curso
através da abóbada celeste semanas a fio. De resto, à noite não havia muita coisa
que ver. A medida que as noites se sucediam, sabíamos onde se podia esperar
ver as diferentes constelações, e quando nos íamos avizinhando do equador, a
Ursa Maior se ergueu tão clara do horizonte ao norte, que estávamos vendo a
hora em que divisaríamos a estrela polar, a qual aparece quando se vem do sul e
se atravessa o equador.

Mas quando o vento alísio de nordeste começou a soprar, a Ursa Maior


desapareceu de novo. Os antigos polinésios eram grandes navegadores. Eles se
orientavam de dia pelo sol e de noite pelas estrelas. Sabiam que a Terra é
redonda e tinham nomes para conceitos abstrusos como o de equador e de
trópicos do norte e do sul. Em Havaí eles entalhavam mapas do oceano na casca
de cabaças redondas, e em algumas outras ilhas faziam mapas minuciosos de
ramos trançados, a que eram amarradas conchas para marcar as ilhas, ao passo
que os rebentos marcavam correntes particulares. Os polinésios conheciam cinco
planetas, a que davam o nome de estrelas errantes, e os distinguiam das estrelas
fixas, para as quais tinham cerca de duzentos nomes diversos. O bom navegante
da Polinésia antiga sabia perfeitamente em que parte do céu as diversas estrelas
surgiam e onde estariam em diferentes horas da noite e em diferentes épocas do
ano. Sabia que estrelas tinham seu ponto de culminação sobre as diferentes ilhas.

Havia casos em que uma ilha tinha o nome da estrela que tinha sua culminação
sobre ela noites e noites a fio em anos e anos seguidos.

Além do fato de que o céu estrelado era como uma gigantesca bússola cintilante
a revolutear de este para oeste, compreendiam que as diferentes estrelas que se
achavam exatamente sobre suas cabeças lhes mostravam sempre a que distância
estavam para o norte ou para o sul. Quando os polinésios exploraram e
constituíram seu atual domínio, que é toda a parte do mar que está mais próxima
da América, mantiveram tráfico entre algumas das ilhas durante muitas gerações.
Rezam tradições históricas que quando os chefes de Haiti visitaram Havaí, sita a
mais de 2.000 milhas marítimas para o norte e vários graus para o oeste, o
timoneiro dirigia primeiro a embarcação para o norte guiando-se pelo sol e pelas
estrelas, até que as estrelas que tinham acima de suas cabeças lhes dissessem que
estavam na latitude de Havaí. Então faziam um ângulo reto e dirigiam a
embarcação para oeste até se acharem tão perto que as aves e as nuvens lhes
diziam onde ficava o grupo de ilhas.

Onde haviam os polinésios obtido os seus vastos conhecimentos astronômicos, e


o seu calendário, que era calculado com espantosa perfeição? Não certamente de
povos da Melanésia ou da Malaia a oeste. A mesma antiga raça civilizada que
desaparecera, os ”homens brancos e barbados” que tinham ensinado aos astecas,
aos maias e aos incas sua assombrosa cultura na América, produziram um
calendário curiosamente semelhante e idênticos conhecimentos astronômicos,
com os quais, naqueles tempos, a Europa não podia competir. Na Polinésia,
como no Peru, o ano civil tinha sido disposto de tal maneira que principiava
exatamente no dia do ano em que a constelação das Plêiades aparecia pela
primeira vez acima do horizonte, e em ambas as zonas essa constelação era
considerada padroeira da agricultura.
No Peru onde o continente descai aos poucos para o Pacífico, encontram-se até o
presente dia, na areia deserta, as ruínas de um observatório astronômico de
grande antiguidade - relíquia do mesmo misterioso povo civilizado que esculpiu
colossos de pedra, ergueu pirâmides, cultivou a batata-doce e a cabaça, e que
começava o ano com o aparecimento das Plêiades. Kon-Tiki conhecia as estrelas
quando se fez de vela no oceano Pacífico.

A 2 de julho o vigia noturno não mais pôde continuar sentado a estudar o


firmamento.

Tivemos um vento forte e mar banzeiro depois de vários dias de ligeira brisa de
nordeste.

Sendo já noite avançada, tivemos luar brilhante e vento muito fresco. Medíamos
a velocidade contando os segundos que gastávamos para passar por uma lasca de
pau atirada para a frente a um dos lados da jangada, e averiguamos que
estávamos estabelecendo um recorde de velocidade. Ao passo que a velocidade
média era de doze a dezoito ’lascas de pau”, segundo a gíria corrente a bordo,
descíamos agora, durante algum tempo, a ”seis lascas de pau”, e a fosforescência
remoinhava numa esteira regular por trás da jangada.

Quatro homens roncavam na cabana de bambu enquanto Torstein, sentado, fazia


característicos ruídos com o manipulador Morse e eu me achava no plantão.
Pouco antes da meia-noite, avistei uma vaga bastante estranha que arrebentava
atrás de nós, abarcando todo o conjunto do meu conturbado raio visual, e por trás
dela eu podia ver aqui e ali as cristas espumantes de mais dois vagalhões,
colossais como o primeiro, em cujo encalço vinham bem perto. Se não
tivéssemos acabado de passar pelo lugar, eu me convenceria de que o que via era
uma tremenda ressaca quebrando sobre perigoso parcel. Dei um grito de
advertência quando a primeira vaga veio como um longo paredão que nos
acossava à luz da lua, e torci a jangada pondo-a em posição para o que desse e
viesse.

Quando o primeiro vagalhão nos atingiu, a jangada levantou para o lado a popa e
passou por cima do dorso da onda que acabava de quebrar, de modo que silvava
e fervia ao longo de toda a crista. Cavalgávamos aquele caldeirão de espuma que
se escoava de um e outro lado da jangada, ao mesmo tempo que, por baixo de
nós, o mar escachoava furibundo. A proa ergueu-se por fim enquanto a onda
passava, e nós resvalamos para o abismo cavado entre as vagas, inclinando-se
para ele primeiro a popa. Imediatamente depois, veio outra muralha de água e
empinou-se, enquanto nós éramos novamente levantados ao ar e claras massas
de água estrugiam sobre nós, à ré.

A embarcação foi atirada de lado sobre as ondas, tornando-se impossível fazê-la


volver, com suficiente presteza, à posição natural. Seguiu-se novo vagalhão que
surgiu da espuma como uma parede fulgente, que se desfez ao despenhar-se
sobre nós. Vendo tal massa d’água impendente e já a cair, agarrei-me
firmemente a um bambu que repontava do telhado da cabana, e ali retive a
respiração ao perceber que a jangada estava sendo arrojada para o alto e que tudo
em redor de mim ia dançando num vórtice espumante. Num segundo, nós e a
Kon-Tiki estávamos de novo por cima da água, a deslizar suavemente do outro
lado, pelo dorso de uma onda. Pouco a pouco o mar se normalizou. As três
grandes muralhas de água prosseguiram em seu ímpeto à frente, e atrás de nós a
lua cheia batia numa fieira de cocos a boiar entre as ondas. A última vaga
desferira violento golpe na cabana, de modo que Torstein foi atirado de pernas
para o ar no canto do rádio e os outros acordaram amedrontados com o barulho,
enquanto a água esguichava entre os toros e invadia a parede.

No lado esquerdo da coberta da proa, o caniçado de bambu apresentava uma


brecha semelhante a pequena cratera, e o cesto de imersão se achava
completamente achatado, mas tudo mais estava como antes. Nunca pudemos
explicar com segurança de onde tinham vindo os três vagalhões, a menos que
proviessem de perturbações do fundo do mar, que não são raras naquelas
paragens. Dois dias mais tarde tivemos a primeira tempestade. Começou com a
paralisação completa dos ventos alísios, depois que as alvas e leves nuvens
desses mesmos ventos, que se amontoavam sobre as nossas cabeças lá do azul,
foram invadidas por um espesso montão de nuvens vindas do sul e que se
detiveram sobre o horizonte. Seguiram-se fortes rajadas provenientes das mais
diversas direções impossibilitando qualquer controle por parte do leme. Se
conseguíamos virar rapidamente a popa para a nova direção do vento, de
maneira que a vela ficasse copada, com a mesma rapidez nos salteavam as
lufadas oriundas de outras bandas, desfazendo o bojo da vela e pondo-a a girar e
dar vergastadas, com evidente perigo tanto para a tripulação como para a carga.
Mas nisso o vento de repente começou a soprar diretamente do lado de onde
vinha o mau tempo, e, enquanto as nuvens negras se acastelavam sobre nós, a
brisa foi apertando tanto que, dentro em pouco, era furacão e temporal. Num
instante as ondas que marulhavam em volta de nós foram atiradas a mais de
quatro metros de altura, enquanto algumas vagas sibilavam a seis ou sete metros
acima do covão formado pela água, de sorte que ficavam ao nível da ponta do
mastro quando nós mesmos nos engolfávamos no boqueirão. Todos os homens
tiveram de movimentar-se no convés e, por assim dizer, multiplicar-se enquanto
o vento sacudia a cabana e zunia uivando no cordame.

Para proteger o rádio estendemos lona na parede dos fundos e no lado esquerdo
da cabana.

Toda a carga solta foi amarrada com firmeza e a vela foi arriada e atada em torno
da verga de bambu. Encapotando-se o céu, o mar fez-se escuro e sinistro, e em
todas as direções viam-se cristas brancas de ondas que rebentavam. Havia longas
faixas de espuma do lado do vento, na raiz do dorso de grandes vagas, e em
qualquer parte onde os espinhaços das ondas haviam quebrado e se submergiam,
massas verdes, como se fossem chagas abertas no oceano, ficavam espumando
por muito tempo na água azul-escura. Ao rebentarem, as cristas se
desmanchavam, caindo sobre o mar uma chuva de salpicos salgados. Quando a
chuva tropical se desfazia em cima de nós em aguaceiros horizontais e açoitava a
superfície do mar, invisível ao redor de nós, a água que nos escorria dos cabelos
e da barba tinha gosto salobro, enquanto andávamos pelo convés cambaleando e
fazendo arco com o corpo, nus e enregelados, cuidando de que tudo estivesse em
ordem para fazer face à procela.

Quando o temporal se armou no horizonte sobre nós pela primeira vez, podia-se
ler nos nossos olhares a ansiedade e a inquietação. Mas quando realmente
desabou e a Kon-Tiki vencia com facilidade e até com entusiasmo tudo quanto
se lhe punha no caminho, o temporal tornou-se uma excitante forma de esporte.
Todos nos deleitávamos com a fúria que borbulhava em redor de nós, a qual a
jangada de pau-de-balsa superava tão airosamente, mantendo-se sempre
sobranceira no topo das ondas, leve como cortiça, enquanto que toda a
preponderância da água sanhuda escachoava sempre alguns centímetros por
baixo. O mar tinha muita coisa em comum com as montanhas num tempo
desses. Era como sair para o ermo durante uma tempestade, galgando os mais
elevados planaltos nus e cinzentos das montanhas. Conquanto nos achássemos
no coração dos trópicos toda vez que a jangada deslizava para cima e para baixo
sobre a espumante vastidão do oceano, sempre imaginávamos estar descendo
pelo morro abaixo entre massas de neve e rochedos.

Num tempo desses o leme devia ter lume no olho. Quando as ondas mais a pique
passavam debaixo da metade dianteira da jangada, os toros de trás se erguiam
para fora da água, mas no momento seguinte tornavam a mergulhar para subir
pela nova crista. De cada vez as ondas vinham tão perto uma da outra que a que
estava mais atrás nos alcançava enquanto a primeira ainda suspendia no ar a
proa; então os sólidos lençóis de água desabavam sobre o leme em catadupa
terrífica, mas no instante seguinte a popa ia para cima e a cachoeira desaparecia
como que através dos dentes de um garfo.

Calculamos que, num mar calmo ordinário, onde em geral decorriam sete
segundos entre as ondas mais altas, haviam entrado pela popa, em vinte e quatro
horas, duzentas toneladas de água, o que mal notamos, porque a água assim
como penetrava tranquilamente ao redor das pernas nuas do timoneiro,

assim tranquilamente se escoava por entre os toros. Mas, numa tempestade forte,
mais de dez mil toneladas de água entravam a bordo pela popa no decurso de
vinte e quatro horas, visto que massas de água variando de alguns galões a duas
ou três jardas cúbicas, e às vezes muito mais, penetravam na embarcação de
cinco em cinco segundos. A torrente algumas vezes irrompia com violento
fragor, e o timoneiro se via com água até a cintura e tinha a impressão de estar
lutando com a correnteza num rio caudaloso. A jangada parecia tremer por um
momento, mas depois a carga cruel que a oprimia à ré tornava a despenhar-se no
mar em grandes cascatas.

Herman achava-se fora da cabana o tempo todo, medindo a violência das


refregas de vento que duraram vinte e quatro horas; depois pouco a pouco
foram-se transformando numa brisa forte com aguaceiros intermitentes, que
contribuíam para manter agitado o mar em redor de nós enquanto íamos aos
cambaleio s rumo ao ocidente, com vento favorável. Para obter medidas precisas
do vento em meio às ondas altíssimas, Herman, sempre que era possível, tinha
de subir ao oscilante topo do mastro, único lugar que lhe facilitava as operações.
Quando os elementos se acalmaram, foi a vez de se enfurecerem os grandes
peixes que nos rodeavam. A água em volta da jangada estava cheia de tubarões,
atuns, dourados e alguns aturdidos bonitos, todos a agitar-se sob a madeira da
embarcação e nas ondas mais próximas. Era uma incessante luta de vida e de
morte; os dorsos de grandes peixes se arqueavam na água e disparavam como
rojões, um no encalço do outro, aos pares, enquanto que a água em redor da
jangada repetidas vezes se tingia de sangue grosso. Os combatentes eram
sobretudo atuns e dourados, sendo que estes vinham em grandes cardumes e se
moviam com muito mais presteza e vigilância que de costume. Os atuns eram os
atacantes; frequentemente um peixe de 70 a 90 quilos pulava para o ar segurando
na boca a cabeça ensanguentada de um dourado. Mas se alguns dourados tinham
atuns a persegui-los bem de perto, o cardume de dourados propriamente dito não
cedia terreno, conquanto houvesse vários que apresentassem profundos golpes
no pescoço. De vez em quando os tubarões também pareciam entrar-se de raiva
cega, e os víamos em luta com atuns enormes, que encontravam no tubarão um
inimigo superior.

Não era possível verse um único pacato pilotinho. Ou tinham sido devorados
pelos furibundos atuns, ou haviam-se escondido nas frinchas por baixo da
jangada, ou fugiram para longe do campo de batalha. Não ousávamos pôr a
cabeça dentro da água para ver.

Senti desagradável empurrão (e depois não pude deixar de rir de meu completo
desnorteamento) quando me achava na parte posterior da jangada obedecendo a
imperioso chamado da natureza. Estávamos acostumados a um regular marulho
quando nos achávamos na privada, mas afigurou-se-me contrário a todas as
probabilidades razoáveis receber à popa, como de maneira totalmente inesperada
recebi, uma violenta pancada desfechada por qualquer coisa grande, fria e
pesadona que me dava marradas, como se fosse a cabeça de um tubarão. Quando
eu fazia menção de subir ao estai do mastro, com a sensação de ter um tubarão
pendurado no posterior, antes de sarar do susto, Herman que, curvado sobre o
remo de direção, ria a bandeiras despregadas, informou-me que um atum
colossal com seus setenta e tantos quilos de carne fria pespegara de lado uma
beijoca na minha nudez. Posteriormente, quando Herman e depois Torstein
estavam de plantão, o mesmo peixe tentou saltar para bordo com as ondas
rebentando de popa, e duas vezes o enorme animal quase subia pela ponta dos
toros, mas logo descaía para o mar antes que conseguíssemos aferrar aquele
corpo escorregadio. Depois disto, um robusto e desnorteado bonito veio
diretamente parar a bordo, trazido por um vagalhão; aí, com ele e mais um atum
apanhado na véspera, deliberamos pescar, a fim de pôr ordem no caos sangrento
que fervia em redor de nós. Diz o nosso diário:

Um tubarão de 1,80m foi colhido no anzol e depois puxado para bordo. Logo
que o anzol de novo desceu à água, foi engolido por um tubarão de 2,40m, que
igualmente puxamos para bordo. Lançado o anzol pela terceira vez ao mar,
pegamos outro tubarão de 1,80m e já o tínhamos puxado para a beira da
jangada quando ele se soltou e submergiu. Lançado de novo no mar o anzol,
chegou-se a ele um tubarão de 2,40m que nos deu o que fazer. Já tínhamos sua
cabeça sobre os toros quando as quatro linhas de aço foram cortadas e o peixe
sumiu-se no abismo. Atirado ainda uma vez o anzol à água, foi arrastado para
bordo um tubarão de 2 metros e pouco. No momento era perigoso ficar de pé
sobre os resvaladiços troncos, porquanto os três tubarões continuavam a lançar
para o alto as cabeças querendo morder, muito tempo depois que pensávamos
terem morrido. Arrastamos os tubarões pela cauda amontoando-os na coberta
da proa, e logo depois ficou preso no anzol um grande atum, o qual nos deu
mais trabalho do que qualquer tubarão, antes de o termos a bordo. Era tão
gordo e pesado que nenhum de nós pôde erguê-lo pela cauda.

O mar continuava cheio de furiosos dorsos de peixes. Foi pescado mais um


tubarão, mas justamente ao ser içado, arrebentou tudo e foi-se. Mas logo
conseguimos trazer para dentro da jangada outro tubarão de 1,80m, outro de
1,50m, outro ainda de 1,80m e finalmente um de pouco mais de 2 metros.

Em qualquer ponto do convés por onde andássemos, víamos grandes tubarões


deitados pelo caminho, a dar convulsivamente com o rabo no soalho ou
vergastando a cabana enquanto procuravam atirar bocadas para os lados. Já
cansados e exaustos quando principiamos a pescar, depois das noites
tempestuosas, ficamos completamente zonzos quando, ao aproximar-nos deles,
quisemos determinar quais os que estavam mortos de todo, quais os que ainda se
debatiam em convulsões, e quais os que estavam bem vivos e espreitavam com
olhos verdes de gato. Depois de termos espalhado ao redor de nós, por todas as
bandas, nove grandes tubarões, estávamos tão cansados de arrastar linhas
pesadas e de pelejar com peixes tão rebeldes, que, após cinco horas de labuta,
desistimos. No dia seguinte havia menos dourados e atuns, mas ainda muitos
tubarões. Começamos de novo a pescá-los e puxá-los para dentro, mas paramos
ao perceber que todo o sangue fresco de tubarão, que corria para fora da jangada,
só servia para atrair ainda mais tubarões. Jogamos no mar todos os tubarões
mortos e lavamos bem todo o convés. As esteiras de bambu foram estracinhadas
por presas de tubarões e por seus ásperos corpos escamosos; atiramos no mar as
mais ensanguentadas e mais rasgadas e as substituímos por esteiras novas, feitas
de bambu amarelo, de que tínhamos várias, fortemente amarradas na coberta de
proa.

Quando, naquelas noites, nos íamos deitar, víamos em espírito escancaradas


mandíbulas vorazes e sangue de tubarões. E as nossas narinas estavam
impregnadas do cheiro de carne de tubarão. Comíamos tubarão; tirando o
amoníaco das postas do peixe - o que se conseguia pondo-as na água salgada
durante vinte e quatro horas - tinha gosto parecido com o de uma espécie de
bacalhau pequeno que se chama gado. Mas o bonito e o atum eram infinitamente
melhores.

Numa daquelas noites, pela primeira vez ouvi um dos companheiros dizer que
havia de ser agradável poder espreguiçar-se à vontade sobre a relva verde de
uma ilha cheia de coqueiros; folgaria de ver alguma coisa que não fosse peixe
frio e mar grosso.

O tempo se tornara inteiramente calmo de novo, mas nunca mais foi tão
constante que se pudesse contar com ele. Violentas e inesperadas rajadas de
vento traziam consigo, de vez em quando, fortes pancadas de chuva que
bendizíamos, porque grande parte da provisão de água tinha principiado a
estragar-se, apresentando gosto de malcheirosa água de brejo.

Quando a chuva caía com mais força, apanhávamos água do telhado da cabana e
ficávamos nus no convés, para dar-nos ao luxo de tirar com água doce o sal
entranhado em nossos corpos.

Os pilotos se agitavam novamente nos lugares de costume, mas não podíamos


dizer se eram os antigos que haviam voltado depois do banho de sangue, ou se
eram novos seguidores que tinham aparecido no ardor da batalha.

No dia 21 de julho, de súbito, o vento cessou novamente. A calmaria era


absoluta, e pela experiência anterior sabíamos o que isto podia significar.
Passado algum tempo, depois de algumas violentas lufadas de este, oeste e sul, o
vento declinou e uma brisa soprou do sul, onde nuvens pretas e ameaçadoras
tornaram a acumular-se no horizonte. Herman, durante todo o tempo, estava fora
com o anemômetro, medindo já quinze metros e mais por segundo, quando de
repente o saco de dormir de Torstein caiu no mar. E o que aconteceu nos poucos
segundos seguintes levou muito menos do que se gasta para narrar.

Herman tentou agarrar o saco que se afundava, deu um passo em falso e caiu na
água.

Ouvimos um débil grito pedindo socorro no meio do motim das ondas, e vimos a
cabeça de Herman e um braço a acenar, e ainda um vago objeto de cor verde
rodopiando na água perto dele. Fazia esforços hercúleos para volver à jangada
através das vagas que o levantavam afastando-o do lado esquerdo da
embarcação. Torstein, que estava ao remo de governo na popa, e eu na proa,
fomos os primeiros a avistá-lo e ficamos gelados de medo.

”Homem ao mar!” berramos com quanta força tínhamos, ao mesmo tempo que
corríamos a agarrar o salva-vidas mais próximo. Os outros não tinham ouvido o
grito de Herman por causa do barulho do mar, mas num instante houve uma
lufa-lufa no convés. Herman era excelente nadador, e conquanto percebêssemos
imediatamente que sua vida corria perigo, tínhamos muita esperança de vê-lo,
com umas braçadas, alcançar a beira da embarcação antes que fosse tarde
demais. Torstein, que se achava mais próximo, agarrou a caixa de bambu em
volta da qual estava a linha que usávamos para o bote, pois ela se encontrava ao
seu alcance. Foi a única vez em toda a viagem que se lançou mão daquela linha.
Tudo sucedeu em poucos segundos. Herman estava agora no nível da popa da
jangada, mas a poucos metros de distância, e sua derradeira esperança era dar
umas braçadas até a pá do remo de governo e pendurar-se nela. Tendo-lhe
escapado a ponta dos toros, quis ver se agarrava a pá do remo, mas esta lhe
resvalou também. E lá estava ele, justamente onde a experiência havia
demonstrado que o que caía não voltava. Enquanto Bengt e eu lançávamos o
botezinho à água, Knut e Erik atiravam o cinto salva-vidas. Trazendo uma linha
comprida, esse cinto estava bem à mão, pendurado no canto do telhado da
cabana. Após alguns malogrados lanços, Herman achava-se já bem afastado do
remo de direção, nadando desesperadamente para acompanhar a jangada,
enquanto a distância aumentava com cada rajada de vento.

Percebeu que, dali por diante, a brecha tenderia a aumentar, mas pôs uma ligeira
esperança no botezinho que agora estava na água. Se não fosse a linha que
funcionava como uma espécie de freio, talvez teria sido possível dirigir a
embarcaçãozinha de borracha ao encontro do nadador, mas se o bote
conseguiria, ou não, voltar à Kon-Tiki era outra questão.

Contudo, três homens num bote de borracha tinham alguma possibilidade; um


homem no mar é que não tinha nenhuma.

Nisso, eis que vemos Knut erguer-se num ímpeto e mergulhar de cabeça no
oceano. Tinha numa das mãos o salva-vidas e lá se foi nadando com a outra.
Cada vez que a cabeça de Herman aparecia sobre o dorso de uma onda, não se
via a de Knut, e cada vez que Knut aparecia em certo ponto, ali não estava
Herman. Mas de repente vimos as duas cabeças ao mesmo tempo; os dois
homens nadavam um para o outro e ambos aferraram o salva-vidas.

Knut fez sinal com o braço, e como entrementes o bote de borracha tivesse sido
puxado para bordo, nós quatro agarramos a linha do salva-vidas e puxamos a
todo vapor, com os olhos cravados no grande objeto escuro que se podia ver
logo atrás dos dois homens. Esse mesmo misterioso animal que estava na água ia
empurrando um grande triângulo preto-esverdeado acima das cristas das ondas, e
quase deu um empurrão em Knut quando este se dirigia ao encontro de Herman.
Somente Knut sabia então que o triângulo não pertencia a um tubarão ou a
qualquer outro monstro marinho. Era a extremidade cheia de ar do saco de
dormir impermeável de Torstein.

O saco de dormir submergiu pouco tempo depois que puxamos para bordo, sãos
e salvos, os dois homens. Seja o que for que tenha arrastado para o fundo o saco
de dormir, perdeu uma presa bem melhor.

- Antes ele do que eu - disse Torstein e pegou no remo de governo onde o tinha
largado.

Mas, naquela noite, não houve outros comentários tão alegres. Muito tempo
depois, nós ainda sentíamos um frio correr-nos pelos nervos e ossos. Entretanto,
nossos arrepios se misturavam com um cálido sentimento de gratidão por
estarmos de novo todos seis a bordo.

Naquele dia tivemos muita coisa agradável para dizer a Knut, a Herman e até a
nós mesmos.

Não houve, porém, muito tempo para refletir no que já havia sucedido, porque,
enquanto o céu se toldava por cima de nossas cabeças, as lufadas de vento
recrudesciam, e, antes de cair a noite, nova trabuzana pairava sobre nós. Afinal
resolvemos pendurar o cinto salva-vidas atrás da jangada numa linha comprida,
de modo que tivéssemos alguma coisa atrás do remo de direção para o qual
pudéssemos apelar se um de nós tornasse a cair na água durante uma borrasca.
Em seguida ficou totalmente escuro à nossa volta, enquanto a noite caia
encobrindo a jangada e o mar. Atirados para aqui e para ali no meio das trevas,
apenas ouvíamos a ventania esfuziando nos mastros e patarrases, enquanto as
rabanadas investiam com tanta fúria contra a cabana, que pensamos que ela seria
cuspida à água. Mas a nossa choça era coberta de lona e solidamente amarrada
com cabos. E percebemos que a Kon-Tiki servia de joguete às vagas espumantes,
enquanto os toros se moviam para cima e para baixo com a oscilação das ondas
como as chaves de um instrumento musical. Nós nos espantávamos ao ver que
catadupas de água não esguichassem pelas largas fisgas do soalho; elas apenas
funcionavam como um fole regular através do qual o ar úmido corria para cima e
para baixo. Durante cinco dias completos o tempo oscilou entre temporal
desfeito e ventania moderada; o mar se cavava formando amplos vales cheios de
vapor proveniente de espumantes ondas azul-cinzentas que pareciam estar com
os dorsos achatados sob a pressão do vento. Então, no quinto dia, os céus se
rasgaram, deixando ver uma nesga azul, e o negro manto tristonho das nuvens
cedeu lugar ao firmamento azulado, enquanto a tempestade ia amainando.
Havíamos atravessado o mau tempo com o remo de direção partido e a vela
rasgada, ao passo que as quilhas corrediças, tendo-se soltado, ficavam batendo
nos toros como alavancas de unha, porque todas as cordas que as tinham presas
debaixo da água estavam completamente gastas. Mas nós e a carga íamos sem
novidade.

Depois das duas tempestades, a Kon-Tiki tinha as juntas bem enfraquecidas. O


esforço despendido em galgar ondas a pique havia estirado todas as cordas, e os
troncos, no seu trabalho contínuo, tinham feito as cordas roer o pau-de-balsa.
Agradecemos à Providência termos seguido a prescrição dos incas e não termos
usado cabos de arame, que teriam, durante a tempestade, serrado a jangada toda,
transformando-a em madeira própria para fazer fósforo. E se de começo
tivéssemos empregado pau-de-balsa demasiado seco e apto para flutuar, há
muito que a jangada, saturada de água, teria ido conosco para o fundo. Foi a
seiva existente nos troncos novos que serviu de impregnação, impedindo que a
água filtrasse para o interior através do poroso pau-de-balsa. Mas agora as
cordas tinham-se tornado tão frouxas que era perigoso deixar o pé escorregar
entre dois toros, pois podia ser esmagado quando estes violentamente
colidissem. À frente e atrás, no espaço do convés onde não havia bambu,
tínhamos de ceder lugar aos joelhos quando estávamos de pé e conservávamos
os pés muito abertos sobre dois toros ao mesmo tempo. Na parte posterior, os
toros eram escorregadias como cascas de banana devido ao alastramento da alga
marinha, e embora tivéssemos feito uma senda ronceira através da verdura por
entre a qual geralmente andávamos, e houvéssemos posto no piso uma prancha
para que o homem de serviço no governo ficasse de pé sobre ela, não era fácil
aguentar ereto um golpe de mar que investisse contra a jangada. E no lado de
bombordo, um dos nove toros gigantescos batia dia e noite na travessa, com uma
pancada seca e monótona. Dos cabos que amarravam no topo os dois mastros
inclinados, vinham também novos e temíveis rangidos, pois as carlingas dos
mastros eram independentes uma da outra, uma vez que descansavam sobre dois
toros diferentes.

Trançamos e amarramos o remo de governo com compridas achas de mangueiro,


pau duríssimo, e sendo Erik e Bengt fabricantes de velas, em breve Kon-Tiki
levantou novamente a cabeça e encheu o peito com um bojo pando em direção à
Polinésia, enquanto o remo bailava atrás, em ondas que o bom tempo tornara
tranquilas e suaves. Mas as quilhas corrediças nunca mais ficaram sendo o que
tinham sido; não suportavam com a antiga desenvoltura o embate da água,
porque tinham se exaurido e pendiam soltas e balouçantes debaixo da jangada.
Era inútil tentar examinar as cordas na parte inferior, porquanto se achavam
totalmente recobertas de alga do mar. Ao erguer a cobertura de bambu,
encontramos quebradas apenas três das cordas principais; tinham-se retorcido
muito e, muito apertadas, a carga acabou por gastá-las. Era evidente que os toros
tinham absorvido grande quantidade de água, mas esse excesso de peso foi mais
ou menos compensado pelo gradual aligeiramento da carga. Estava esgotada a
maior parte das provisões e do abastecimento de água potável, bem como fracas
as baterias dos operadores de rádio.

Todavia, depois da ultima tempestade, era claro que devíamos boiar e resistir
durante a curta distância que nos separava das ilhas à frente. E eis que surgia
agora novo problema: como iria terminar a viagem?

A Kon-Tiki devia continuar inexoravelmente a sua rota para oeste até dar com a
proa num sólido rochedo ou em algum outro objeto fixo que lhe detivesse o
movimento. A viagem só terminaria quando todos os homens houvessem
desembarcado sãos e salvos em alguma das numerosas ilhas polinésias que
tínhamos diante de nós.

Depois de termos arrostado a última tempestade, era bastante incerto aonde iria
acabar a jangada. Estávamos a igual distância das ilhas Marquesas e do grupo
Tuamotu, e em tal posição que era perfeitamente possível passarmos entre os
dois grupos de ilhas sem nem de longe lobrigar qualquer uma delas. Do grupo
das Marquesas a ilha mais próxima ficava a 300 milhas marítimas a noroeste, e
no grupo Tuamotu a mais próxima ficava a 300 milhas marítimas a sudeste, ao
passo que corrente e vento eram incertos, com o rumo geral para oeste e para a
vasta brecha oceânica entre os dois grupos de ilhas.

A ilha que ficava mais próxima de noroeste não era outra senão Fatuhiva, a
ilhota montanhosa e coberta de matas onde eu havia morado numa cabana
construída sobre estacas na praia, e onde ouvi as vividas histórias que o velho
me contava do avito herói Tiki. Se a Kon-Tiki singrasse para aquela praia, eu
encontraria muitos conhecidos, menos, provavelmente, o velho narrador de
histórias. Ele já devia ter partido há muito, na esperança de encontrar de novo o
Tiki verdadeiro. Se ela dirigisse o seu curso para aquelas serranias do grupo das
Marquesas, as poucas ilhas desse grupo estavam muito separadas umas das
outras, e ali o mar bramia indômito quebrando em fragas escarpadas. Nesses
lugares devíamos ficar de alcatéia, ao dirigirmos a jangada para a boca dos
poucos vales que sempre iam terminar numa estreita faixa de praia.

Se, pelo contrário, ela tornasse o rumo dos recifes de coral do grupo Tuamotu, lá
as inúmeras ilhas ficavam bem juntas e cobriam vasto espaço do oceano. Mas
esse grupo de ilhas é também conhecido como o Baixo Arquipélago ou
Arquipélago Perigoso, porque é todo formado de pólipos de coral e consta de
traiçoeiros escolhos submersos e atóis cobertos de palmeiras que se erguem
somente a dois ou três metros acima da superfície do mar. Perigosos recifes
anulares ali se levantam em redor de cada atol, como que a protegê-lo,
constituindo uma ameaça à navegação em toda a área. Mas ainda que os atóis de
Tuamotu sejam formados por pólipos de coral, enquanto que as ilhas Marquesas
são restos de vulcões extintos, ambos os grupos são habitados pela mesma raça
polinésia, e as famílias reais de ambos consideram Tiki como seu primeiro
antepassado. Pouco antes de 3 de julho, quando estávamos ainda a 1.000 milhas
marítimas da Polinésia, a própria natureza se incumbiu de dizer-nos como no
tempo deles ela se incumbira de dizer aos viajantes de jangada vindos do Peru,
que realmente havia terra em certo ponto do oceano, à frente. Enquanto nos
achávamos a umas mil milhas da costa do Peru, vimos pequenos bandos de
fragatas. Essas aves desapareceram mais ou menos a 100° oeste, e depois disto
só vimos pequenas procelárias que têm sua morada no mar. Mas no dia 3 de
julho as fragatas reapareceram, a 125° oeste, e a partir daquela data pequenos
bandos dessas aves podiam ser vistos frequentemente, já nas alturas, já sobre as
cristas das ondas, onde pegavam peixes-voadores que saltavam ao ar fugindo dos
dourados. Como essas aves não vinham da América atrás de nós, sua morada
devia ficar em outra região à frente.

A 16 de julho a natureza traiu-se ainda com maior evidência. Nesse dia


trouxemos para bordo um tubarão de 2,70m que expeliu do estômago uma
grande astéria não digerida e que ele recentemente trouxera de alguma costa até
aquele ponto do oceano.

E no dia seguinte tivemos a primeira visita certa, vinda diretamente das ilhas da
Polinésia.

Foi uma festa quando dois grandes sulas patolas foram avistados acima do
horizonte para as bandas do oeste e logo depois passaram sobre o mastro, em
voo baixo. Com uma envergadura de metro e meio descreveram vários círculos
em torno de nós, depois dobraram as asas e se instalaram no mar, a nosso lado.
Uns dourados compareceram imediatamente ao local e, curiosos, se rebuliam em
volta dos grandes pássaros que nadavam, mas nem estes atacaram aqueles, nem
aqueles mexeram com estes. Foram eles os primeiros mensageiros vivos que nos
vieram dar as boas-vindas à Polinésia. A noite não voltaram, preferindo
descansar no mar, e depois da meia-noite ainda os ouvimos voar em redor do
mastro soltando gritos roucos.

Os peixes-voadores que agora vinham eram de outra espécie e muito maiores; eu


já tinha verificado isto nas minhas excursões piscatórias com os nativos ao longo
da costa de Fatuhiva. Por três dias e três noites fomos no rumo de Fatuhiva, mas
então sobreveio forte vento nordeste que nos pôs na direção dos atóis de
Tuamotu. Os ventos agora nos tinham afastado da verdadeira corrente equatorial
do sul, e as correntes oceânicas já não inspiravam confiança. Um dia estavam
num lugar, no dia seguinte haviam desaparecido. As correntes podiam correr
como rios invisíveis ramificando-se por todo o mar. Se a corrente era rápida, em
geral havia mais marulho, e a temperatura da água ordinariamente baixava um
grau.

Ficávamos cada dia sabendo a direção e a força da corrente pela diferença entre
a posição calculada por Erik e a por ele medida.

À entrada da Polinésia, o vento deu ordem de passar, transferindo-nos para um


ramo fraco da corrente que nos assustou bastante ao dirigir sua marcha para o
Antártico. O vento não parou completamente (isto nunca se deu em toda a
viagem), e se era fraco, içávamos todo o pano que tínhamos, a fim de recolher o
pouco vento que havia. Não houve dia em que recuássemos para a América, a
menor distância em vinte e quatro horas foi de 9 milhas marítimas, ao passo que
nossa marcha média na viagem era em geral de 42 milhas e meia em vinte e
quatro horas.

O vento alísio, afinal, não teve ânimo de nos decepcionar já na última hora.
Compareceu de novo ao seu posto e imprimiu alguns empurrões na mísera
embarcação que se preparava para fazer entrada numa nova e estranha parte do
mundo. Cada dia que passava, maiores bandos de aves marítimas vinham e
descreviam círculos ao redor de nós, sem destino e em todas as direções. Uma
tarde, quando já o sol ia sumindo no oceano, percebemos claramente que as aves
tinham recebido violento ímpeto. Voavam tomando o rumo de oeste sem prestar
atenção a nós nem aos peixes-voadores. E do alto do mastro podíamos observar
que assim como vinham, voavam todas na mesma direção. Talvez que lá da
altura estivessem vendo alguma coisa que não víamos.

Talvez voassem por instinto. Em todo caso, voavam com um plano, dirigiam-se
à ilha mais próxima, a seu lugar de origem.

Torcemos o remo de governo e dirigimos o curso exatamente para o lado em que


as aves tinham desaparecido. Ainda depois de já estar escuro, ouvimos os gritos
de aves retardatárias, voando entre nós e o céu estrelado e na mesma direção que
agora estávamos seguindo. Era uma noite maravilhosa; a lua estava quase cheia
pela terceira vez no decurso da viagem da Kon-Tiki. No dia seguinte havia ainda
mais pássaros por cima de nós, mas não precisávamos esperar por eles para, à
noite, sabermos de novo o caminho. Desta vez descobríramos uma curiosa
nuvem estacionaria acima do horizonte. As outras nuvens eram como vaporosos
flocos de lã que se elevavam do sul e atravessavam a abóbada celeste com o
vento alísio até desaparecerem sobre o horizonte, a oeste. Foi assim que eu viera
a conhecer as nuvens que se moviam com o vento alísio sobre Fatuhiva, e assim
as tínhamos visto sobre nós noite e dia na Kon-Tiki. Mas a solitária nuvem no
horizonte, para as bandas do sudeste, não se mexia; apenas se levantava como
uma coluna de fumaça imóvel enquanto passavam as nuvens que iam com o
vento alísio. Cumulo-nimbus é o nome latino que se dá a tais nuvens. Os
polinésios não sabiam disto, mas sabiam que debaixo de tais nuvens havia terra.
E que, quando o sol tropical torra a areia ardente, cria-se uma corrente de ar
morno que se ergue e faz o seu conteúdo de vapor condensar-se nas camadas
mais frias do ar.

Fomos em direção à nuvem até ela desaparecer com o sol. O vento estava firme
e, com o remo de governo bem amarrado, a Kon-Tiki foi seguindo sozinha a sua
rota, como tantas vezes fazia quando o tempo era bom. O que agora competia ao
homem do plantão era sentar-se o maior tempo possível na prancha junto ao topo
do mastro, que reluzia com o uso, e prestar atenção a qualquer indício de terra.

Durante toda aquela noite houve uma ensurdecedora bulha de pássaros por cima
da jangada.

E a lua estava quase cheia.


CAPÍTULO VII
PARA AS ILHAS DOS MARES DO SUL

Primeira vista de terra - Desviamo-nos de Puka-Puka - Dia de festa ao


longo do recife de Angatau - Nos umbrais do céu - Os primeiros
nativos - A Kon-Tiki ganha nova tripulação - Enut em licença na praia
- Uma batalha quase perdida - Outra vez no mar - Em águas perigosas
- De Takume a Rama - Vogando em direção ao sorvedouro do inferno -
À mercê das ondas - Naufrágio - Encalhe no recife de coral - Achamos
uma ilha deserta.

Na noite de 29 para 30 de julho, nova e estranha atmosfera pairava sobre a Kon-


Tiki. Era talvez a alarido ensurdecedor das aves marítimas sobre nós, como para
mostrar que, breve teríamos novidades. A algazarra das aves, formada de muitas
vozes, era vibrante e terrestre, depois do surdo rangido de cordas sem vida, única
coisa que tínhamos ouvido acima do estridor do mar nos três meses decorridos.
E a lua parecia maior e mais redonda do que nunca, a boiar lá no alto, em volta
do nosso posto de observação instalado na ponta do mastro. Na nossa
imaginação a lua refletia topos de palmeiras e romances maravilhosos; ela não
brilhava com luz tão amarela sobre os frios peixes do mar. As seis horas Bengt
desceu da ponta do mastro, acordou Herman e deitou-se. Quando Herman
marinhou pelo mastro rangedor e oscilante, o dia começava a raiar. Dez minutos
depois tornava a descer pela escada de corda e me puxava pela perna.

- Saia e venha ver a sua ilha!

Tinha o rosto radiante. Pus-me em pé de um salto, sendo imitado por Bengt que
ainda não pegara no sono. Um atrás do outro, amontoamo-nos no lugar mais alto
que pudemos atingir, no ponto onde os mastros se cruzavam. Muitas aves
esvoaçavam em redor de nós, e um pálido véu roxo-azulado estendido sobre o
firmamento se refletia no mar, como uma derradeira lembrança da noite que se
despedia. Mas sobre o horizonte a leste começara a espalhar-se um frouxo clarão
avermelhado, que longe, a sueste, formava aos poucos um fundo purpurino para
uma débil sombra, como se fosse uma linha traçada por lápis azul quase à
superfície do mar.

Terra! Uma ilha! Devoramo-la avidamente com os olhos e acordamos os outros


que, estremunhados, saíram de roldão e olharam para todos os lados como se
pensassem que a proa da jangada já ia abicar numa praia. Barulhentas aves
marinhas formavam uma ponte cortando o céu na direção da ilha distante, que se
recortava vivamente no horizonte à medida que o fundo se dilatava e tornava a
cor do ouro, com a aproximação do sol e a plena luz do dia.

Nosso primeiro pensamento foi que a ilha não estava onde devia estar. E como
ela não podia ter mudado de lugar, a jangada é que, durante a noite, devia ter
sido colhida numa corrente que se dirigia para o norte. Bastava-nos lançar os
olhos sobre o mar para logo percebermos, pela direção das ondas, que as trevas
nos tinham feito perder a oportunidade. Em nossa posição atual, o vento não
mais nos permitia colocar a jangada no rumo da ilha. A região que ficava em
redor do arquipélago de Tuamotu estava cheia de fortes correntes oceânicas
locais que se ramificavam em vários sentidos quando se dirigiam ao encontro da
terra, e muitas delas mudavam de rumo ao encontrarem poderosas correntes de
marés dirigindo-se para dentro e para fora sobre escolhos e lagoas.

Procuramos virar o remo de governo, embora soubéssemos muito bem que era
inútil. Às seis e meia o sol emergiu do mar e subiu diretamente, como acontece
nos trópicos. A ilha ficava distante algumas milhas marítimas e de longe parecia
uma faixa de floresta que se estendia pelo horizonte além. As árvores se
apinhavam por trás de uma estreita praia clara, situada tão baixo que, a
intervalos regulares, as ondas a ocultavam. De acordo com as posições de Erik,
era Puka-Puka, primeiro posto avançado do grupo Tuamotu. As Direções
náuticas para as ilhas do Pacífico, ano de 1940, os nossos dois mapas diferentes
e as observações de Erik davam quatro posições distintas para essa ilha, mas,
como não havia outras ilhas em toda aquela redondeza, não podia haver dúvida
quanto à identidade da que estávamos avistando. Não se verificaram assomos
extravagantes a bordo. Depois de se orientar a vela e capear o leme, formamos
um grupo silencioso junto ao topo do mastro ou ficamos de pé no convés, com
os olhos fitos na terra que subitamente surgira no meio do oceano intérmino e
avassalador. Até que enfim tínhamos uma prova visível de que realmente nos
havíamos mexido durante todos aqueles meses; não estiváramos apenas a
cambalear de um lado para outro no centro do mesmo eterno horizonte circular.
Tínhamos a impressão de que a ilha era móvel e que, de repente, havia entrado
na esfera do oceano azul e vazio em cujo centro estava a nossa residência
permanente, como se ela viesse vogando lentamente para o nosso domínio, em
direção ao horizonte oriental. Todos nos sentimos cheios de uma satisfação plena
e tranquila por havermos de fato alcançado a Polinésia, mas a essa satisfação
vinha misturar-se ligeiro e momentâneo desencantamento por termos de nos
submeter irremediavelmente a ver a ilha que lá permanecia como uma miragem,
enquanto continuávamos o eterno cruzeiro para oeste.

Pouco depois de nascer o sol, espessa nuvem negra de fumaça se ergueu acima
das copas das árvores, à esquerda do centro da ilha. Acompanhamo-la com os
olhos e pensamos conosco que os habitantes do lugar se estavam levantando e
preparando a primeira refeição.

Não nos passou pela ideia, então, que os postos locais de observação nos tinham
visto e que com aquela fumaça nos enviavam sinais convidando-nos a
desembarcar. Por volta das sete horas percebemos um fraco cheiro de pau-de-
borao queimado que nos fez cócegas nas narinas impregnadas de sal. O cheiro
despertou em mim imediatamente fugitivas lembranças da fogueira na praia de
Fatuhiva. Meia hora depois sentimos cheiro de madeira recentemente cortada e
de mata. A ilha agora começara a diminuir e a ficar à retaguarda, de modo que
recebíamos dela ligeiros sopros de aragem. Durante uns quinze minutos eu e
Herman, agarrados à ponta do mastro, deixamos o cheiro quente de folhagem e
verdura coar-se pelas nossas narinas. Aquilo era a Polinésia - aquele rico cheiro
de terra seca após noventa e três dias de água salgada no meio das ondas. Bengt
já ressonava no seu saco de dormir. Erik e Torstein estavam na cabana deitados
de costas, meditando, e Knut corria para dentro e para fora, aspirava o cheiro de
folhagem e escrevia no seu diário.

Às oito e meia Puka-puka afundou-se no mar atrás de nós, mas até às onze horas
pudemos ver, trepados ao mastro, uma esgarçada lista azul acima do horizonte, a
leste. Depois, também isto desapareceu, e uma nuvem alta, elevando-se quase
imóvel para o céu, era o único indício que se tinha da situação de Puka-Puka. As
aves haviam desaparecido. Elas ficavam de preferência no lado em que o vento
soprava para a ilha, e assim teriam o vento consigo quando à noite voltassem
para casa, com o papo cheio. Os dourados também tinham diminuído
sensivelmente, e havia outra vez um ou outro piloto debaixo da jangada.

Naquela noite Bengt disse que suspirava por uma mesa e uma cadeira, pois
estava cansado de ficar deitado ora de costas, ora de bruços enquanto lia. Por
outro lado, folgava de que não tivéssemos podido desembarcar, porquanto tinha
ainda três livros para ler. A Torstein veio de repente o desejo de comer uma
maçã, e quanto a mim, acordei durante a noite por ter sentido nitidamente um
delicioso cheiro de bife acebolado. Mas sabem o que era? Apenas uma camisa
suja.

Na manhã do dia seguinte descobrimos duas novas nuvens que se erguiam como
o vapor de duas locomotivas abaixo do horizonte. O mapa nos esclareceu que os
nomes das ilhas de coral de onde as nuvens subiam eram Fangahina e Angatau.
A nuvem que se librava sobre esta última era a mais favorável para nós,
enquanto havia vento, por isso rumamos para lá, amarramos solidamente o remo
e gozamos a maravilhosa paz e liberdade do Pacífico. Tão bela era a vida num
dia bonito passado sob a coberta de bambu da Kon-Tiki, que fomos sorvendo
todas as impressões, na certeza de que a viagem se achava quase no seu termo,
fosse qual fosse a sorte que nos aguardava.

Três dias e três noites dirigimos o rumo sem perder de vista a nuvem que pairava
sobre Angatau; o tempo estava magnífico. Somente o remo regulava a marcha, e
a corrente não nos pregava partidas. Na quarta manhã Torstein rendeu Herman
depois do plantão de 4 às 6, recebendo deste a comunicação de que lhe parecera
ter visto à claridade do luar os contornos de uma ilha baixa. Quando, pouco
depois, o sol surgiu, Torstein meteu a cabeça pela porta da cabana dentro e
gritou: - Terra à vista! Precipitamo-nos todos para o convés, e o que vimos nos
fez içar todas as nossas bandeiras. Primeiro a norueguesa à popa, depois a da
França na ponta do mastro porque estávamos rumando para uma colônia
francesa. Daí a pouco toda a coleção de bandeiras da jangada tremulava aos
frescos ventos alísios, a bandeira americana, a inglesa, a peruana e a sueca, além
da bandeira do Clube de Exploradores, de modo que a bordo não havia dúvida
de que agora a Kon-Tiki estava empavesada.

Desta vez a posição da ilha era ideal, ficando justamente na nossa rota e um
pouco mais afastada de nós do que estivera Puka-Puka quando, quatro dias antes,
surgira ao nascer do sol. Quando o astro se ergueu no céu por trás de nós,
pudemos ver um clarão verde que se elevava na direção do sol brumoso sobre a
ilha. Era o reflexo da tranquila lagoa verde no interior do recife circunvizinho.
Alguns dos atóis baixos lançavam ao alto miragens dessa espécie por vários
milhares de metros, de sorte que mostravam sua posição aos primitivos
navegantes muitos dias antes que a própria ilha se fizesse visível acima do
horizonte. Pelas dez horas, nós mesmos tornamos o remo de governo; cabia-nos
agora decidir para que parte da ilha rumaríamos. Já podíamos distinguir
separadamente umas das outras as franças das árvores, brilhando no sol, que
servia de fundo de quadro à basta folhagem.

Sabíamos que nalgum lugar existente entre nós e a ilha havia perigoso cachopo
submerso, que se achava de emboscada contra o que quer que se aproximasse da
inocente ilha. Esse escolho ficava logo abaixo do profundo marulho das ondas
da parte leste, e como as imensas massas de água perdiam o equilíbrio por cima
do cachopo, oscilavam no ar e submergiam, reboando e fremindo, sobre o recife
de coral a pique.

Muitas embarcações foram colhidas na temível sucção contra os recifes


submersos do grupo Tuamotu e se fizeram em pedaços no embate com o coral.

Do mar nada víamos dessa insidiosa armadilha, íamos navegando no sentido das
ondas, e apenas víamos o dorso curvo e brilhante de onda e mais onda a
desaparecer no rumo da ilha.

Tanto o recife quanto toda a sarabanda espumante dos gênios do mal sobre ele
ficavam ocultos por trás de séries e mais séries de largos dorsos de ondas à
frente. Mas ao longo de ambas as extremidades da ilha, onde víamos o contorno
da praia, assim ao norte como ao sul, percebemos que a algumas centenas de
metros de terra o mar era uma branca massa fervente que subia a grande altura.
Regulamos a marcha de modo que roçássemos de leve a parte externa do
boqueirão sinistro à altura da ponta meridional da ilha, e esperávamos, ao chegar
lá, poder navegar perlongando o atol até que ou rodeássemos a ponta do lado de
sotavento, ou que, em todo caso, tocássemos, antes de por lá passarmos, um
lugar tão pouco fundo que conseguíssemos deter a marcha com uma âncora
provisória e aguardar a mudança de vento que nos pusesse a sotavento da ilha.

Por volta do meio-dia pudemos ver pelo binóculo que a vegetação da praia
consistia em coqueiros novos e verdes, cujas copas se confundiam com a sebe
ondulante formada pela luxuriante vegetação do primeiro plano. Defronte deles,
a praia cintilante estava juncada de bom número de grandes blocos de coral. O
único sinal de vida eram uns pássaros brancos voando sobre os penachos dos
coqueiros.

As duas horas nos achávamos tão perto que começamos a navegar ao longo da
ilha, quase costeando o desconcertante recife. À proporção que nos
avizinhávamos, ouvíamos o quebrar das vagas, como uma cascata constante, de
encontro ao escolho, e em breve elas soavam como um trem rápido que corresse
paralelo a nós, a umas centenas de metros do lado de estibordo. Agora também
podíamos ver o alvo borrifo que de vez em quando era atirado ao ar por trás dos
encaracolados dorsos das ondas já dentro da área, onde o ”trem” roncava
sempre. Dois homens ao mesmo tempo faziam girar o remo de direção; estavam
atrás da cabana de bambu e por isso nada enxergavam à frente. Erik como piloto
estava em pé sobre o caixote da cozinha e transmitia indicações aos dois homens
junto do pesado remo de governo. O nosso plano era ficarmos o mais próximo
possível do perigoso recife, uma vez que não corrêssemos risco. Da ponta do
mastro observávamos com atenção continua, procurando uma brecha ou abertura
no recife por onde pudéssemos tentar a passagem da jangada. A corrente nos
levava agora ao longo da extensão toda do recife, e não mais nos enganava. As
quilhas corrediças nos permitiam dirigir a embarcação a um ângulo de cerca de
20° em relação ao vento em ambos os lados, e o vento soprava ao longo do
recife.

Enquanto Erik dirigia a marcha e descrevia as curvas o mais perto possível do


recife, sem se descuidar do perigo da sucção, eu e Herman nos metemos no
botezinho de borracha a cuja ponta estava atada uma corda. Quando a jangada
estava na amura interior, nós seguimos após ela com a corda e chegamos tão
perto do estrondeante recife que pudemos ver de relance a muralha de água
verde-clara que se despenhava afastando-se de nós, e vimos como, ao recuarem
os vagalhões numa espécie de sucção de si mesmos, o recife se desnudava,
semelhando uma barricada desfeita de minério de ferro oxidado.

Quanto podia alcançar a vista ao longo da costa, não havia brecha nem
passagem. Por isso Erik orientou a vela apertando as escotas de bombordo e
afrouxando as de estibordo, e os timoneiros o acompanharam com o remo de
governo, de modo que a Kon-Tiki tornou a virar para fora o bico da proa e
escapou da zona de perigo até seu próximo impulso para dentro.
Cada vez que a Kon-Tiki dirigia a dianteira para o recife e outra vez se desviava,
nós dois que íamos à sirga no botezinho ficávamos com o coração aos pulos,
pois nos aproximávamos tanto que sentíamos o embate das ondas tornar-se cada
vez mais intenso, enquanto elas mais se enfureciam e mais alto se elevavam. E
em cada uma dessas vezes nos convencíamos que Erik tinha avançado demais e
que já não havia esperança de novamente tirar de lá a Kon-Tiki, pondo-a a salvo
dos vagalhões que nos impeliam para o diabólico recife vermelho. Erik, porém,
sempre se saía galhardamente na sua manobra, e de novo a Kon-Tiki se safava
ilesa para o mar largo, desembaraçando-se das garras da sucção. E íamos durante
todo o tempo deslizando ao longo da ilha, tão perto que víamos todos os detalhes
da praia, e contudo sua celestial formosura nos era inacessível por causa do
abismo espumante que se interpunha entre ela e nós.

Pelas três horas o coqueiral da praia se abriu e pela larga brecha vimos uma
lagoa verde e cristalina. Mas o recife circundante lá estava, compacto como
nunca, mordiscando sinistramente a espuma com os seus dentes de um vermelho
sanguíneo. Passagem não havia e o coqueiral tornou a fechar-se enquanto
penosamente prosseguíamos o curso costeando a ilha e o vento por trás de nós.
Depois o coqueiral se tornou cada vez mais ralo permitindo-nos ver o interior da
ilha de coral. Esta consistia numa lindíssima lagoa de água salgada, qual imenso
poço silencioso, rodeado de coqueiros oscilantes e de claras praias de banho. A
sedutora ilha de coqueiros verdes formava um largo e macio anel de areia em
torno da hospitaleira lagoa, e um segundo anel cintava a ilha toda - como espada
de um vermelho ferrugento que defendia os portões do céu.

O dia todo perlongamos aos ziguezagues a ilha de Angatau, tendo muito


próxima de nós a sua beleza, bem à porta da cabana. O sol batia em todas as
palmas, e no interior da ilha tudo era paraíso e alegria. Como as manobras se
tornaram aos poucos uma questão de rotina, Erik foi buscar sua guitarra e de pé
no convés, tendo na cabeça enorme chapeirão peruano, pôs-se a tocar e cantar
canções sentimentais dos mares do Sul, enquanto Bengt servia um excelente
jantar na beira da jangada. Abrimos um velho coco do Peru e bebemos em
homenagem às frutas frescas que lá longe pendiam das árvores. Aquele ambiente
- a paz que reinava sobre o verde coqueiral profundamente arraigado no solo e
brilhando na nossa direção, a paz que respiravam aqueles pássaros brancos
adejando sobre a copa dos coqueiros, a paz que se evolava da lagoa espelhenta e
da macia areia da praia, a malignidade do recife vermelho, o canhoneio e o rufo
de tambores no ar - tudo, enfim, fazia extraordinária impressão em nós seis que
vínhamos do mar, uma impressão que nunca se nos varrerá da memória. Não
havia dúvida de que agora havíamos alcançado a outra banda; nunca veríamos
uma ilha dos mares do Sul mais genuína do que aquela. Desembarcássemos ou
não, o fato é que atingíramos a Polinésia; a imensidão do mar ficava atrás de nós
para todo o sempre. Aconteceu que aquele dia festivo à altura de Angatau era o
nonagésimo sétimo que passávamos a bordo. Por notável coincidência, eram em
número de noventa e sete os dias que, em Nova Iorque, tínhamos calculado
como o tempo mínimo absoluto, no qual, em condições teoricamente ideais,
poderíamos chegar às mais próximas ilhas da Polinésia.

Mais ou menos às cinco horas, passamos por duas choças de telhado de palmas
que ficavam entre as árvores da praia. Não se via fumaça nem qualquer sinal de
vida.

As cinco e meia dirigimos de novo a proa sobre o recife; estávamos perto da


extremidade ocidental da ilha e devíamos dar uma derradeira olhada em redor,
na esperança de encontrarmos uma passagem. O sol então estava tão baixo que
nos cegava quando olhávamos para a frente, mas vimos um pequeno arco-íris no
ar onde o mar rebentava no recife, a umas centenas de metros para lá da última
ponta da ilha. Esta ficava agora à frente como uma silhueta. E na praia, mais
para dentro, lobrigamos um monte de imóveis manchas pretas. De repente, uma
delas caminhou vagarosamente para a água, ao passo que várias outras se
dirigiram a toda a pressa para a fímbria do bosque. Era gente!

Marcamos a jangada ao longo do recife, o mais próximo que nos foi possível
aventurar-nos.

O vento cessara de todo, de modo que percebemos que nos achávamos quase a
sotavento da ilha. Nisso vimos que lançavam à água uma canoa e duas pessoas
pularam para dentro e entraram a remar no outro lado do recife. Lá, num ponto
longínquo, viraram para fora a vante do bote, e vimo-la atirado ao alto pelas
ondas quando atravessou como uma bala a passagem do recife, vindo direto para
o nosso lado. Portanto, a abertura do recife se achava lá; lá estava a nossa única
esperança. Agora também podíamos ver a aldeia inteira pousada entre os fustes
dos coqueiros. Mas as sombras já se estavam alongando.
Os dois homens na canoa acenaram com a mão. Também acenamos ansiosos, e
eles aumentaram a velocidade. Era uma canoa polinésia, e dois vultos trigueiros,
vestindo camisa de meia, remavam, de frente para nós. Viriam agora as
dificuldades para nos entendermos.

Somente eu me recordava de umas poucas palavras do dialeto das Marquesas,


aprendidas na estada em Fatuhiva, mas o polinésio é uma língua difícil de reter
na memória, por falta de prática em países setentrionais. Sentimos, pois, algum
alívio quando a canoa se encostou com estrondo ao lado da jangada e os dois
homens saltaram, porque um deles, todo risonho, estendeu a mão morena,
dizendo em inglês: - Boa noite!

- Boa noite, - respondi espantado. - Fala inglês?

O homem arreganhou os dentes e meneou a cabeça.

- Boa noite - repetiu. - Boa noite.

Seu vocabulário inglês não ia além dessas duas palavras, e ainda assim levava
vantagem sobre seu modesto amigo que se conservava atrás, também sorridente,
e impressionado com o saber do companheiro.

- Angatau? - perguntei, indicando a ilha.

- H’angatau - disse o homem, balançando a cabeça num sinal afirmativo.

Erik também cabeceou ufano. Ele tinha razão: estávamos onde o sol lhe dissera
que estávamos.

- Maimai hee iuta - fiz eu, experimentando.

De acordo com os meus conhecimentos adquiridos em Fatuhiva, isto significaria


aproximadamente ”queremos ir para terra”. Ambos indicaram a passagem
invisível do recife, e nós pusemos o remo a funcionar, resolvidos a fazer uma
tentativa. Nesse momento boas rajadas de vento vieram do interior da ilha. Uma
nuvenzinha de chuva pairava sobre a lagoa.

O vento ameaçava afastamos do recife, e percebemos que a Kon-Tiki não


correspondia ao remo de governo num ângulo suficientemente largo para poder
atingir a boca da abertura do recife. Tentamos achar fundo, mas a corda da
âncora não tinha comprimento suficiente.

Tivemos então de recorrer aos remos, e com toda a presteza, antes que o vento
ganhasse preponderância. A toda a pressa colhemos a vela e cada um foi buscar
o seu remo grande.

Eu quis dar mais um remo a cada um dos dois nativos, que se estavam deliciando
com os cigarros que lhes tínhamos dado. Eles se limitaram a abanar
energicamente a cabeça, indicaram a direção e se mostraram confusos. Fiz sinal
de que devíamos todos empunhar o remo e repeti as palavras ”queremos ir para
terra”. Então o mais espevitado dos dois se inclinou, fez com a mão direita no ar
o movimento de quem aciona uma manivela e disse:

- Brrrrrr... !

Não havia dúvida alguma de que ele queria que puséssemos a máquina a
funcionar.

Pensavam que estavam no convés de um bote bem carregado. Conduzimo-los à


parte traseira da jangada e fizemo-los apalpar debaixo dos toros para lhes
mostrar que não tínhamos hélice. Ficaram assombrados, jogaram fora o cigarro e
se precipitaram para o lado da jangada, onde nos sentamos, quatro homens em
cada toro exterior, mergulhando na água os remos. Ao mesmo tempo o sol
engolfou-se no mar atrás da ponta e as lufadas de vento vindo do interior da ilha
refrescaram. Parecia que não nos arredávamos um milímetro do lugar. Os
nativos pareciam amedrontados; tornaram a pular para a canoa e sumiram.

Escurecia, e estávamos sós mais uma vez, remando desesperadamente para não
sermos de novo arrastados para o mar.

Quando as trevas se estenderam sobre a ilha, quatro canoas saíram gingando de


detrás do recife, e daí a pouco havia uma multidão de polinésios a bordo, todos
querendo cumprimentar-nos e ganhar cigarros.

Com esses homens, que conheciam bem o lugar, não havia perigo; eles não nos
deixariam ir outra vez para o mar largo e não nos perderiam de vista; de modo
que naquela noite estaríamos em terra!
Mais que depressa amarramos cordas da popa de todas as canoas à proa da Kon-
Tiki, e as quatro sólidas canoas se estenderam em forma de leque, como uma
parelha de cães, à frente da jangada. Knut pulou para o botezinho e achou um
lugar como cão de tiro entre as canoas, e nós outros, munidos de remos, nos
postamos nos dois toros exteriores da Kon-Tiki. E assim se iniciou, pela vez
primeira, uma luta contra o vento leste, que tinha estado tanto tempo às nossas
costas.

Estava então completamente escuro, até que a lua se mostrou. Corria um vento
fresco. Em terra os habitantes da aldeia, tendo ajuntado mato seco, acenderam
uma grande fogueira para nos mostrar a direção da passagem através do recife. O
ribombo que vinha do recife nos rodeava na escuridão como incessante e
ensurdecedora catadupa, e o barulho se tornou cada vez maior. Não podíamos
ver a parelha que nos puxava nas canoas à frente, mas ouvíamos as respectivas
tripulações entoando entusiásticos cantos de guerra em polinésio, com toda a
força dos pulmões. Sabíamos que Knut ia com eles porque, toda vez que a
música polinésia se interrompia, ouvíamos a voz solitária de Knut cantando
canções populares norueguesas no meio do coro dos polinésios. Para completar o
caos nós, na jangada, encetamos uma modinha gaiata, e tanto os homens brancos
como os morenos ofegavam junto aos remos, ao mesmo tempo que riam e
cantavam.

Estávamos de muito bom humor. E não era para menos, pois, após noventa e
sete dias de viagem, chegáramos à Polinésia. Naquela noite ia haver uma festa
na aldeia. Os nativos ovacionavam e berravam. Havia um desembarque em
Angatau apenas uma vez por ano, quando vinha de Taiti a escuna-de-copra para
buscar cocos secos.

Assim, naquela noite ia realmente haver em terra uma festa em redor do fogo.

Mas o vento enfurecido soprava obstinadamente. Mourejamos tanto que cada


membro do corpo nos doía. Persistimos, porém. A fogueira nem por isso
chegava mais perto de nós, ao passo que o fragor que vinha do recife era o
mesmo que antes. Pouco a pouco as cantigas foram cessando. Tudo ficou quieto.
E a única coisa que os homens podiam fazer era remar.

A fogueira continuava no mesmo ponto, apenas as labaredas bailavam para cima


e para baixo enquanto caíamos e nos levantávamos com as ondas. Decorreram
três horas, e eram então nove da noite, íamos paulatinamente perdendo terreno.
Estávamos cansados. Fizemos os nativos compreender que necessitávamos mais
auxílio de terra. Eles nos explicaram que havia muita gente na praia, mas que em
toda a ilha só dispunham daquelas quatro canoas.

Foi quando, apesar da escuridão, Knut apareceu com o botezinho. Tivera uma
ideia: podia ir no bote de borracha buscar mais gente. Em caso de necessidade,
cinco ou seis homens podiam apinhar-se na embarcaçãozinha.

Era arriscar muito. Knut não conhecia o lugar; jamais atinaria com a abertura do
recife de coral naquela escuridão absoluta. Então propôs levar consigo o chefe
dos nativos, que lhe podia mostrar o caminho. Tampouco esse plano me
inspirava confiança, pois que o nativo não tinha experiência em manobrar um
canhestro botezinho de borracha através da estreita e perigosa passagem.
Todavia, pedi a Knut que fosse buscar o chefe, o qual estava sentado a remar no
escuro à nossa frente, para ouvirmos o que ele pensava da situação. Era bastante
evidente que já não conseguíamos impedir que a corrente nos levasse para trás.
O nosso companheiro desapareceu no escuro pondo-se à procura do chefe.
Passado algum tempo, como Knut não voltasse com o líder, gritamos por eles,
mas não recebemos outra resposta senão umas guinadas de risos dos polinésios
que iam à frente. Knut sumira nas trevas. Nesse momento percebemos o que
tinha acontecido. No meio de toda aquela bulha e barafunda, Knut baralhara o
que havia sido combinado e rumara para a praia com o chefe. Podíamos berrar à
vontade, que onde Knut agora estava todos os outros sons eram abafados pelo
motim que estrondeava em toda a extensão da barreira.

Imediatamente pegamos numa lâmpada Morse, e um homem subindo ao topo do


mastro fez os sinais convencionais indicando que voltasse. Mas ninguém voltou.

Com o afastamento de dois homens e com um deles incessantemente a fazer


sinais na ponta do mastro, o nosso recuo aumentou, e todos íamos ficando
realmente cansados. Jogamos marcas na água e vimos que estávamos, lenta mas
seguramente, andando ao revés. A fogueira diminuía e o barulho dos vagalhões
era menor. E quanto mais nos afastávamos do lado de sotavento do coqueiral,
mais intenso era o domínio que sobre nós ia exercendo o eterno vento leste.
Agora íamos sabendo disto novamente; era quase como tinha sido em alto-mar.
Aos poucos íamos percebendo que toda esperança se fora. Estávamos sendo
levados para o mar largo. Não devíamos, porém, largar os remos ou afrouxar.
Urgia deter o recuo com todas as forças até que Knut estivesse novamente são e
salvo a bordo. Passaram cinco minutos; dez; meia hora. A fogueira minguava
cada vez mais; de vez em quando, até desaparecia totalmente quando
resvalávamos para a voragem cavada entre duas ondas. A arrebentação no recife
tornou-se um murmúrio distante. Agora a lua surgia; víamos o clarão do seu
disco por trás dos cimos dos coqueiros, mas o céu parecia enevoado e quase
encoberto. Percebemos que os nativos diziam qualquer coisa trocando ideias. De
repente notamos que uma das canoas tinha soltado o cabo no mar e
desaparecido. Os homens das outras três canoas estavam fatigados e
amedrontados e não remavam com a energia de antes.

A Kon-Tiki descaía para o alto-mar.

Daí a pouco as três cordas restantes se afrouxaram e as três canoas bateram com
força no costado da jangada. Um dos nativos pulou para bordo e disse
tranquilamente com um movimento de cabeça: - luta. (Para terra.) Olhava
ansiosamente para a fogueira, que agora desaparecia durante muito tempo de
cada vez, e apenas clareava de quando em quando como uma fagulha.
Estávamos derivando rapidamente. A arrebentação cessara; somente o mar rugia
como de costume, e todas as cordas da jangada estalavam e rangiam.

Cumulamos os nativos de cigarros, e eu rabisquei às pressas duas linhas que


deviam entregar a Knut caso o encontrassem. Eis o que eu lhe dizia: Traga com
você dois nativos numa canoa, com o botezinho a reboque. Não volte sozinho no
bote de borracha.” Confiávamos em que os prestativos ilhéus trouxessem Knut
consigo numa canoa, dado que julgassem prudente fazer-se ao mar. Se o
julgassem desaconselhável, seria loucura Knut meter-se no oceano dentro do
botezinho, na esperança de alcançar a fugitiva jangada.

Os homens guardaram o bilhete, saltaram dentro das canoas e desapareceram nas


trevas. A última coisa que ouvimos foi a voz aguda do nosso primeiro amigo que
gritou no escuro: - Boa noite!

Houve um murmúrio de apreciação da parte dos linguistas menos consumados, e


depois tudo ficou em silêncio, tão despido de sons vindas do exterior como
quando nos achávamos a duas mil milhas do continente mais próximo.

Era inútil estarmos os quatro a fazer força com os remos em alto-mar,


incessantemente acossados pelo vento, mas continuamos com os sinais
luminosos do topo do mastro. Já não ousávamos enviar o sinal de ’Voltar”;
apenas mandávamos com regularidade um clarão. A escuridão era completa. A
lua somente se mostrava de vez em quando através de fisgas entre a massa das
nuvens. Devia ser a nuvem de Angatau agora librando-se sobre nós. Às dez
horas perdemos toda esperança de tornar a ver Knut.

Sentamo-nos em silêncio na borda da jangada e trincamos alguns biscoitos,


enquanto nos revezávamos a dar sinais com a luz do alto do mastro, que parecia
apenas uma sombra nua, sem a grande vela da Kon-Tiki, Resolvemos continuar
toda a noite a fazer sinais com a lâmpada, enquanto não soubéssemos onde Knut
estava. Não queríamos acreditar que ele tivesse sido tragado pelas ondas. Knut
sempre havia de desembarcar vivo e em pé, por mais bravo que estivesse o mar;
ele estava vivo, sim, estava. O diabo era achar-se ele entre polinésios numa
longínqua ilha do Pacífico. Aquilo era um mau negócio. Depois de uma viagem
tão longa, a única coisa que pudemos fazer foi desembarcar às carreiras um
homem numa remota ilha dos mares do Sul e partir de novo.

Mal tinham os primeiros polinésios chegado sorridentes, tiveram de sair


depressa para não serem colhidos na impetuosa e irresistível investida da Kon-
Tiki para oeste. Era uma situação absurda. E naquela noite as cordas rangiam de
uma maneira tão horrível! Nenhum de nós dava mostras de querer dormir. Eram
dez e meia. Bengt estava descendo para ser substituí(o na ponta do mastro
balouçante. Nisso todos nos sobressaltamos. Tínhamos claramente ouvido vozes
no mar saindo das trevas da noite. E era outra vez conversa de polinésios.
Berramos em plena escuridão noturna com toda a força dos pulmões. Eles
responderam aos gritos e... no meio das vozes distinguia-se a de Knut! Ficamos
loucos de contentamento; a fadiga havia desaparecido; a nuvem borrascosa se
dissipara. Que importância tinha afastarmo-nos de Angatau? Havia outras ilhas
no oceano. Agora os nove toros de pau-de-balsa, tão desejosos de viajar, podiam
vogar onde quisessem, uma vez que nós seis estivéssemos de novo juntos.

Três canoas emergiram das trevas, passando por cima das ondas, e Knut foi o
primeiro a pôr os pés dentro da querida Kon-Tiki, seguido de seis homens
trigueiros. O tempo era pouco para explicações; tínhamos de dar alguns
presentes aos nativos que deviam logo empreender a arriscada viagem de volta à
ilha. Sem ver luz nem terra, sem uma estrela sequer que os guiasse, tinham de
achar a rota remando contra o vento e o mar até avistarem o clarão da fogueira.
Recompensamo-los generosamente com mantimentos, cigarros e outros brindes,
e cada um deles, à despedida, nos deu um cordial aperto de mão. Mostravam-se
visivelmente preocupados conosco; apontaram para oeste, indicando que
estávamos no rumo de perigosos parcéis. O chefe tinha os olhos rasos de água e
me osculou carinhosamente no queixo, o que me fez agradecer à Providência
estar eu bastante barbado. Depois, transferiram-se para as canoas e nós seis
ficamos a sós na jangada.

Deixamos a jangada avir-se como costumava e nos pusemos a escutar a história


de Knut.

Esse nosso companheiro tinha-se dirigido, com a melhor das intenções, à terra
no botezinho, tendo a bordo o chefe dos nativos. Este, sentado e empunhando os
remozinhos, os manobrava na direção da abertura do recife, quando Knut foi
surpreendido com os sinais luminosos da Kon-Tiki chamando-o de volta. Fez
sinais ao remador para virar, mas o nativo se recusou a obedecer. Então Knut
pegou nos remos ele próprio, mas o chefe arrancou-lhos das mãos e, com o
recife a troar ali perto, era inútil travar luta. Estavam justamente à entrada do
recife. Entraram por ele e, de repente, se viram levantados à altura de um sólido
bloco de coral, abicando daí na própria ilha. Uma multidão de nativos agarrou o
botezinho, arrastou-o para a praia, e quando Knut deu fé, estava sozinho debaixo
dos coqueiros e cercado de uma verdadeira pinha de gente pairando
descompassadamente numa algaravia desconhecida. Homens morenos, seminus,
mulheres e crianças de todas as idades se aglomeraram em torno dele a apalpar o
pano de que eram feitas sua camisa e suas calças.

Quanto a eles, usavam roupas europeias caindo em farrapos, mas não havia
homens brancos na ilha. Knut agarrou alguns dos indivíduos mais robustos e
com sinais lhes deu a entender que deviam ir com ele no botezinho. Então veio
chegando um homem enorme e gordo, de andar bamboleante, que Knut
presumiu ser o chefe porque tinha na cabeça um velho quepe de uniforme e
falava em voz alta e autoritária. Todos abriram caminho para ele. Knut explicou
em norueguês e depois em inglês que precisava de homens e tinha de voltar à
jangada antes que os outros se fossem. A cara do chefe se abriu num sorriso
largo, mas ele nada entendeu, e Knut, apesar de seus mais veementes protestos,
foi arrastado para a aldeia pela turba que gritava. Lá o receberam cães e porcos e
formosas jovens dos mares do Sul que vinham carregando frutas frescas. Era
evidente que aquela gente estava resolvida a tornar a estada de Knut ali a mais
amena possível, mas Knut não se deixou embelecar. O seu pensamento voou
tristonho para a jangada que ia desaparecendo rumo ao oeste. A intenção dos
nativos era óbvia. Necessitavam muito da nossa companhia e sabiam que os
navios dos brancos estavam cheios de coisas boas. Se pudessem reter Knut ali,
nós outros e a extravagante embarcação certamente também viríamos. Nenhum
navio iria abandonar um branco em ilha tão remota como Angatau.

Após algumas curiosas experiências, Knut escapuliu e dirigiu-se a toda a pressa


para o botezinho, rodeado de admiradores de ambos os sexos. Sua fala e suas
gesticulações internacionais não podiam deixar de ser compreendidas;
perceberam que ele devia e queria voltar, no meio da noite, para a estranha
embarcação, a qual com tanta pressa tinha de seguir imediatamente. Então os
habitantes tentaram um expediente; deram a entender por sinais que estávamos
desembarcando na outra ponta da ilha. Durante alguns minutos Knut ficou
atarantado, mas depois foram ouvidos vários gritos do lado da praia, onde as
mulheres e crianças estavam alimentando a fogueira vacilante. As três canoas
tinham regressado e os homens trouxeram o bilhete para Knut. Este viu-se em
maus lençóis.

De um lado lhe recomendavam que não se metesse no mar só, mas como fazer se
os do lugar se negavam terminantemente a ir com ele? Verificou-se terrível e
ruidosa discussão entre os nativos. Os que tinham estado no mar e visto a
jangada perceberam cabalmente que era quase inútil reter Knut na esperança de
atrair o resto à terra. O fim de tudo aquilo foi que as promessas e ameaças de
Knut feitas em acenos internacionais induziram as tripulações de três canoas a
acompanhá-la no mar em perseguição da Kon-Tiki. E fizeram-se ao mar na noite
tropical com botezinho a reboque, enquanto os ilhéus, de pé e imóveis perto da
fogueira a extinguir-se, viam o seu recente amigo louro desaparecer com a
mesma rapidez com que viera.

Knut e seus companheiros podiam ver os frouxos sinais da lâmpada vindos da


jangada bem longe no mar quando as ondas levantavam as embarcações. As
compridas e frágeis canoas polinésias, enrijecidas por pontudos flutuadores
laterais, cortavam a água como facas, mas afigurou-se uma eternidade a Knut até
ele sentir novamente debaixo dos pés os toros grossos e redondos da Kon-Tiki.

- Divertiu-se muito em terra? - perguntou Torstein com inveja.

- Oh, você devia ver as dançarinas de hula - disse Knut para espicaçá-la.

Amainamos a vela e recolhemos o remo para dentro, entramos os seis na cabana


de bambu e dormimos pesado como os seixos da praia de Angatau.

Três dias singramos pelo mar sem ver terra. Estávamos vogando diretamente
para os negregados recifes de Takume e de Raroia que juntos bloqueavam 40 a
50 milhas de mar à frente. Fizemos desesperados esforços para evitá-los,
marcando para norte desses perigosos escolhos, e tudo parecia correr bem até
que uma noite o homem que estava de plantão entrou precipitadamente na
cabana e nos chamou para fora.

O vento havia mudado. Estávamos indo diretamente para o recife de Takume.


Começara a chover e a visibilidade era nula. O recife não devia estar longe.

No meio da noite tivemos um conselho de guerra. Tratava-se agora de salvar a


vida. Já não era possível passar pelo lado norte. Urgia tentar a passagem pelo
lado sul. Aprestamos a vela, pusemos o remo na água e começamos uma
arriscada navegação, tendo o incerto vento norte por trás de nós. Se o vento leste
tornasse antes de termos passado diante das cinquenta milhas de recifes,
seríamos arrojados no meio dos vagalhões, ficando à mercê deles.

Combinamos o que se devia fazer se o naufrágio estivesse iminente.


Permaneceríamos a todo custo a bordo da Kon-Tiki. Não havíamos de trepar ao
mastro, do qual seríamos derrubados como fruta podre, mas nos agarraríamos
fortemente aos estais do mastro se as ondas nos acometessem. Deixamos solto
no convés o botezinho de borracha e amarramos nele um pequeno transmissor
radiotelefônico impermeável, pequena quantidade de provisões, garrafas de água
e petrechos de medicina. As ondas arrastariam para a terra todas estas coisas
independentemente de nós, se conseguíssemos passar por cima do escolho,
salvos mas com as mãos vazias. A popa da Kon-Tiki amarramos uma corda
comprida com um flutuador que também seria lançado à terra, de maneira que
poderíamos tentar arrastar toda a jangada caso ela desse em seco no recife. E
assim nos metemos na cama, deixando o timoneiro na chuva.

Enquanto o vento norte soprou, deslizamos morosamente mas com segurança ao


longo da fachada dos recifes de coral que lá estavam de emboscada abaixo do
horizonte. Mas eis que um dia, mais para a tarde, o vento cessou e, ao voltar,
soprava para leste. Segundo a posição de Erik, estávamos já tão longe que agora
tínhamos alguma esperança de evitar a ponta meridional extrema do recife de
Raroia. Tentaríamos contorná-la e pôr-nos a coberto antes de irmos dar a outros
recifes situados para lá daquele. Quando o dia terminou, fazia cem dias que
estávamos no mar. Alta noite acordei sobressaltado e inquieto. Havia qualquer
coisa desusada no movimento das ondas. O balouço da Kon-Tiki estava
ligeiramente diferente do que em geral era em tais condições. Nós nos havíamos
tornado sensíveis às mudanças no ritmo dos troncos. Pensei lago em sucção de
uma costa que se aproximava, e ora me achava no convés, ora subia ao mastro.
Não se via mais que o mar. Mas não pude conciliar um sono tranquilo. O tempo
se escoava.

Ao amanhecer, pouco antes das seis, Torstein desceu depressa do topo do


mastro. Tinha visto muito longe uma linha de ilhotas cobertas de coqueiros.
Antes de mais nada, viramos o remo para o sul o mais possível. O que Torstein
tinha visto deviam ser as pequenas ilhas de coral que estavam espalhadas como
pérolas num fio por trás do recife de Raroia. Devíamos ter sido apanhados por
uma corrente que ia para o norte. As sete e meia, ilhotas cobertas de coqueiros
apareceram em fila ao longo do horizonte, para as bandas do oeste. A que se
achava mais para o sul ficava mais ou menos defronte da nossa proa, e daí havia
ilhas e grupos de coqueiros ao longo do horizonte no lado de estibordo até
desaparecerem como pontos ao norte. As mais próximas achavam-se a quatro ou
cinco milhas de distância. Pelo exame a que havíamos procedido da ponta do
mastro, vimos que, embora a proa apontasse para a última das ilhas, a deriva
para o lado era tão grande que não estávamos avançando na direção para a qual a
proa apontava. Estávamos sendo impelidos diagonalmente para o cachopo. Com
quilhas corrediças firmes ainda teríamos alguma esperança de afastar-nos deles.
Mas os tubarões nos seguiam de perto, sendo portanto impossível mergulhar por
baixo da jangada e amarrar com calabres as quilhas soltas.

Percebemos que agora só dispúnhamos de mais algumas horas a bordo da Kon-


Tiki. Elas deviam ser empregadas nos preparativos para o inevitável naufrágio no
recife de coral. Cada homem ficou ciente do que tinha de fazer quando o
momento chegasse; cada um sabia onde se situava sua limitada esfera de
responsabilidade, de maneira que não nos víssemos aos atropelos e a pisar nos
calos uns dos outros quando viesse a hora em que cada segundo valia a vida. A
medida que o vento nos empurrava para a zona perigosa, a Kon-Tiki zimbrava e
arfava. Não havia dúvida de que estava ali o torvelinho das ondas formado pelo
recife, e enquanto algumas ondas avançavam, outras eram atiradas para trás
depois de colidirem inutilmente com a parede circunvizinha. íamos ainda a todo
o pano na esperança de, mesmo naquele momento, passar de largo. À proporção
que nos aproximávamos, meio de lado, vimos do mastro como a enfiada de
ilhotas cobertas de coqueiros estava ligada a um recife de coral, uma parte acima
da água, outra debaixo dela, que fazia de dique onde o mar espumava e saltava a
grande altura. O atol de Raroia é de forma oval, tendo vinte e cinco milhas de
diâmetro, sem contar os vizinhos recifes de Takume. Em seu maior comprimento
a face lateral olha o mar para leste, a área onde íamos penetrando a trancas e
barrancos. O recife propriamente dito, que corre numa só linha de horizonte a
horizonte, não tem nada adiante de si por algumas centenas de metros; atrás
estão umas ilhotas idílicas como que numa fieira em volta da plácida lagoa
interior. Veio-nos uma impressão estranha vendo o Pacífico azul
implacavelmente revolvido e arremessado ao ar em toda a extensão do horizonte
diante de nós. Eu sabia o que nos esperava; tinha visitado antes o grupo Tuamotu
e muito a salvo tinha visto de terra o imenso espetáculo de este, onde a ressaca
do Pacífico rebentava sobre o recife. Novos recifes e ilhas continuavam, pouco a
pouco, a aparecer ao sul. Devíamos estar à altura do centro da parede de coral.

A bordo da Kon-Tiki estavam sendo feitos todos os preparativos para o fim da


viagem.

Tudo que era de valor foi transportado para o interior da cabana e fortemente
amarrado.

Documentos e papéis foram metidos dentro de sacos impermeáveis, junto com


filmes e outras coisas que estragariam se mergulhadas no mar. Cobriu-se de lona
a cabana de bambu e fortes cordas foram atadas em torno dela. Quando demos
por perdida toda esperança, abrimos a coberta de bambu e cortamos com
machetes as cordas que mantinham embaixo as quilhas corrediças. Não foi fácil
puxar para cima aquelas quilhas, porque estavam totalmente cobertas de
bernaclas. Com as quilhas corrediças em cima, o calado da embarcação não era
maior que o fundo dos toros de madeira e podíamos assim ser varridos pelas
ondas sobre o recife.

Sem quilhas corrediças e com a vela arriada, a jangada ficou completamente


oblíqua, estando de todo em todo à mercê do vento e do mar.

Amarramos o cabo mais comprido à âncora que fabricáramos e ligamo-la


firmemente ao degrau do mastro no lado esquerdo, de maneira que a Kon-Tiki
entraria na ressaca primeiro pela popa quando a âncora fosse arremessada à
água. A âncora consistia numas latas d’água vazias que havíamos atochado de
baterias de rádio usadas e outras coisas para fazer peso, ressaindo delas sólidos
paus de mangueiro, postos de través.

A ordem número um, em primeiro e último lugar, era: permanecer na jangada.


Acontecesse o que acontecesse, devíamos ficar a bordo e deixar que os nove
grandes troncos aguentassem a pressão do recife. Quanto a nós, tínhamos
bastante que fazer resistindo à massa de água. Se saltássemos ao mar, nos
tornaríamos vítimas indefesas da sucção que ora nos tragaria, ora nos arrojaria
sobre os agudos corais. A jangada cairia de borco sobre as ondas escarpadas, ou
carregada com o nosso peso se despedaçaria contra o escolho. Mas os toros de
madeira seriam lançados a terra mais cedo ou mais tarde e nós com eles, uma
vez que nos agarrássemos bem.

Em seguida houve ordem para que todos, que nada trazíamos nos pés havia cem
dias, nos calçássemos e tivéssemos à mão o cinto salva-vidas. Todavia, os
últimos objetos mencionados não eram de grande valor, porque, se um homem
caísse no mar, morreria não afogado mas à força de receber pancadas. Também
tivemos tempo de meter nos bolsos os passaportes e os poucos dólares que nos
restavam. Mas o que nos preocupava não era falta de tempo.

Foram horas de dolorosa expectativa as que decorreram enquanto vogávamos ao


deus-dará, levados inelutavelmente para o recife. A bordo, o silêncio era notável;
entrávamos na cabana ou dela saíamos para o convés, calados ou lacônicos, e
íamos executando as tarefas. Nossos semblantes sérios mostravam que nenhum
tinha dúvidas sobre o que nos aguardava, e a ausência de nervosismo provava
que todos havíamos pouco a pouco adquirido inabalável confiança na jangada.
Se ela conseguira fazer a travessia do mar, tinha também de levar-nos a terra. No
interior da cabana havia completa barafunda de caixinhas de mantimento e de
carga amarrada. Com dificuldade Torstein tinha achado seu lugar ao pé do rádio,
onde conseguira pôr a funcionar o transmissor de ondas-curtas. Estávamos agora
a mais de 4.000 milhas marítimas da velha base de Callao, onde a Escola de
Guerra Naval do Peru havia mantido contato regular conosco, e ainda mais longe
de Hal e de Frank e dos outros radioamadores dos Estados Unidos. Quis,
entretanto, o acaso que na véspera entrássemos em contato com um competente
radioamador que tinha seu aparelho em Rarotonga, nas ilhas Cook. Os
operadores em completo desacordo com nossa prática usual, tinham obtido uma
ligação suplementar para ele de manhã cedo. E durante todo o tempo que
vogávamos rumo ao recife, Torstein sentado ia batendo na tecla e chamando
Rarotonga.

No diário de navegação da Kon-Tiki lê-se:

8,15: Estamo-nos lentamente avizinhando de terra, iodemos agora, com os olhos


desarmados, distinguir as palmeiras do interior, no lado de estibordo.

8,45: O vento tornou direção ainda mais desfavorável a nós, por isso não temos
nenhuma esperança de passar de largo. Não há nervosismo a bordo, mas
preparativos febris no convés. Há qualquer coisa no recife diante de nós
parecendo os restos de uma embarcação de vela, mas pode ser apenas uma
pilha de madeira para lá carreada.

9,45: O vento estamos levando diretamente para a penúltima ilha que


enxergamos por trás do recife. Agora podemos ver claramente o coral inteiro;
tem a aparência de uma parede pintada de vermelho e branco, que emerge da
água formando uma faixa em frente às ilhas. Ao longo do recife a ressaca de
alva espuma sobe a grande altura. E Engt está nos servindo uma refeição
quente, a derradeira antes da grande façanha! O que lá está junto ao recife é
um barco naufragado.

Estamos agora tão perto que podemos abarcar com a vista a espelhenta lagoa
atrás do recife, e podemos ver os contornos de outras ilhas no outro lado da
lagoa. Depois que isto fora escrito, o ronco sinistro da ressaca avizinhou-se de
novo; esse ronco vinha do interior do recife e enchia o ar como os rufos trêmulos
de um tambor, anunciando o último ato da Kon-Tiki:

9,50: Estamos pertinho agora. Vogamos ao longo do recife. A distância que nos
separa não chega a cem metros. Torstein está falando com o homem de
Rarotonga. Tudo claro. Agora é preciso guardar o diário. Reina aqui o bom
humor; o aspecto é tenebroso, mas havemos de vencer!

Alguns minutos depois a âncora caiu na água e atingiu o fundo, de modo que a
Kon-Tiki rodou e virou a popa para o lado da rebentação. Ela nos segurou por
alguns minutos preciosos, enquanto Torstein continuava a martelar
desesperadamente na tecla. Apanhara agora Rarotonga. Os vagalhões bramiam
no ar e a água subia e se despenhava com fúria.

Todos se atarefavam no convés, e Torstein conseguiu transmitir o seu recado.


Disse que íamos na direção do recife de Raroia. Pediu a Rarotonga que ouvisse
na mesma faixa cada hora. Se guardássemos silêncio por mais de trinta e seis
horas, Rarotonga devia comunicar à embaixada norueguesa em Washington. As
últimas palavras de Torstein foram: ”Estamos a menos de cinquenta metros. Já
vamos. Adeus.” Depois fechou a estação, Knut guardou os papéis, e ambos se
arrastaram para fora com a necessária presteza, a fim de se juntarem a nós, pois
se tornara evidente que a âncora atingia a ponto máximo.

O mar tornava-se cada vez mais revolto, com profundas voragens entre onda e
onda, e sentíamos o balouço subir sempre de ponto. Novamente foi dada a
ordem em altos brados:

”Ficar na jangada, a carga pouco importa, ficar firme.” Estávamos agora tão
perto da catadupa interior que já nem ouvíamos o incessante estrondo que
atroava na extensão toda do recife. Ouvíamos apenas um estridor distinto cada
vez que o vagalhão mais próximo quebrava nas rochas.

Todos os homens estavam de prontidão, aferrado cada um à corda que julgava


mais segura.

Somente Erik, no último momento, penetrou na cabana; havia uma parte do


programa que ainda não tinha sido executada: ele não havia encontrado os
sapatos!
Ninguém ficou na parte posterior da embarcação, porque ali se daria o primeiro
embate do recife. Tampouco ofereciam segurança os dois firmes estais que
corriam do topo do mastro até a popa, porquanto, se o mastro caísse, eles
ficariam pendurados entre o mar e o cachopo. Herman, Bengt e Torstein tinham
trepado sobre uns caixotes que estavam amarrados junto à parede da cabana, e
enquanto Herman se firmava nos patarrases que vinham do cavalete do telhado
da cabana, os outros dois se seguravam às cordas da ponta do mastro por meio
das quais, em outros tempos, a vela era colhida. Eu e Knut escolhemos o estai
que ligava a proa ao alto do mastro, porque, se mastro, cabana e tudo mais caísse
no mar, pensávamos, o cabo vindo de proa ainda assim continuaria sobre a
jangada, achando-nos, então, como nos achávamos, de frente para as ondas.

Quando percebemos que estávamos em poder dos vagalhões a amarra da âncora


foi cortada e partimos. Uma vaga se ergueu bem por baixo de nós, e sentimos
que a Kon-Tiki se suspendia no ar. O grande momento tinha chegado; estávamos
passando em velocidade máxima por cima do dorso de uma onda, enquanto a
desconjuntada embarcação rangia e estalava por baixo de nós. A excitação fez
ferver o sangue. Lembro-me que, à falta de inspiração melhor, acenei com o
braço e berrei ”hurra!” com toda a força dos pulmões; isto, sem fazer mal algum,
não deixou de incutir certa animação. Os outros certamente pensaram que eu
tinha enlouquecido, mas se mostraram radiantes e sorriram entusiasmados.
Fomos andando para a frente, tendo as ondas a acossar-nos por trás; aquilo era o
batismo de fogo da Kon-Tiki; tudo havia de correr bem.

Mas o entusiasmo foi de curta duração. Nova onda se ergueu por trás de nós
como se fosse uma cristalina e refulgente parede verde; ao baixarmos, ela veio
rolando no nosso encalço, e no mesmo instante em que vi aquela coluna líquida
por cima de mim, senti um golpe violento e vime submerso num dilúvio de água.
Percebia a sucção rodear-me o corpo todo com tamanha violência que me foi
preciso o esforço de cada músculo e só tinha uma ideia fixa - resistir, resistir
sempre! Penso que em tal situação de desespero os braços serão arrancados antes
que o cérebro consinta em soltá-los, sendo evidente, como é, o resultado. Depois
percebi que a formidável massa d’água prosseguia sua marcha, desprendendo do
meu corpo sua garra infernal. Uma vez varrida toda a montanha líquida, com
ensurdecedor ribombo e estrépito, vi novamente Knut dependurado a meu lado e
tão encolhido que parecia uma bola.
Vista de trás a grande onda era quase lisa e cinzenta; avançando, se arrojou por
cima da cumeeira do telhado da cabana que ressaltava da água, e lá estavam
pendurados os outros três, comprimidos contra o telhado da cabana enquanto a
água passava por cima deles.

Ainda nos achávamos a bordo.

Num instante reforcei minha posição de segurança, com as pernas e os braços


agarrados ao forte cabo. Knut deixou-se cair e com um pulo de tigre se reuniu
aos outros em cima dos caixotes, no ponto onde a cabana tinha a sua resistência.
Eles diziam coisas confortadoras, mas vi logo nova parede verde levantar-se e
dirigir-se para nós com entono. Bradei avisando e me fiz tão pequeno e rijo
quanto pude no meu lugar. Num momento, de novo o inferno se despenhava
sobre nós, e a Kon-Tiki desapareceu completamente sob a massa líquida. O mar
despejava toda a sua veemência sobre o mísero fardo de um corpo humano. A
segunda vaga se precipitou sobre nós, o mesmo fazendo uma terceira.

Então ouvi um grito triunfante de Knut, que agora estava pendurado na escada
de corda:

- Veja como a jangada aguenta!

Com o ímpeto de três vagalhões, somente o duplo mastro e a cabana tinham


vergado um pouco. Tivemos mais uma sensação de triunfo sobre os elementos, e
o júbilo da vitória deu-nos novo vigor.

Em seguida vi que avançava a onda seguinte, mais sobranceira que as


precedentes, e dei novo berro de advertência aos outros atrás, enquanto, com a
maior presteza, subi o mais que pude para o estai ao qual me aferrei com força.
Depois desapareci de lado no meio da parede verde que desabava sobre nós; os
outros, que estavam atrás e mais retirados e me viram desaparecer primeiro,
calcularam a altura da massa de água nuns oito metros, enquanto que a crista
espumante passava a uns cinco metros acima da parte da parede cristalina em
que eu me sumira. Então a grande onda os alcançou, e tivemos um único
pensamento - resistir, resistir e não ceder!

Dessa vez devíamos ter atingido o recife. Eu senti apenas a tensão do estai, que
parecia dobrar-se e afrouxar com intermitências. Mas se os embates vinham de
cima ou de baixo eu não podia dize-lo, pendurado onde estava. A submersão não
durou mais que segundos, mas exigiu maior vigor do que o que os nossos corpos
em geral oferecem. Há mais energia no mecanismo humano do que a que existe
apenas nos músculos. Resolvi que, se tivesse de morrer, morreria naquela
posição, como um nó no estai. O vagalhão foi rugindo adiante, e depois que
passou, deixou patente um espetáculo contristador. A Kon-Tiki estava
inteiramente mudada, como se a houvesse tangido uma vara mágica; em poucos
segundos a nossa aprazível moradia achava-se reduzida a um estado miserando.

Só vi um homem a bordo além de mim. Estava deitado de través sobre a


cumeeira do telhado da cabana, com o rosto para baixo, os braços estendidos de
um lado e de outro, estando a própria cabana achatada como uma casa feita de
papelão, pendendo para a popa e para o lado de estibordo. O vulto imóvel era
Herman. Não havia outro sinal de vida, enquanto a possante coluna de água
estrondeava ali perto, tendo atravessado o recife. O mastro feito de madeira dura,
do lado de estibordo, estava quebrado como se fosse um palito de fósforo, e a
parte superior, ao cair, havia-se despedaçado contra o telhado da cabana, de
maneira que o mastro e seus acessórios pendiam em ângulo baixo sobre o recife
do lado de estibordo. A ré, o cepo de direção se achava todo torcido e a travessa
quebrada, ao passo que o remo de governo estava em pedaços. Os guarda-
borrifos tinham-se partido como caixas de charuto, e todo o convés se achava
desfeito e convertido numa pasta, como se fosse papel molhado, contra a parede
dianteira da cabana, o mesmo acontecendo com os caixotes, as latas, a lona e o
resto da carga. Por toda parte viam-se varas de bambu e pedaços de corda, e a
impressão geral era de completo caos.

Um arrepio de medo perpassou-me pelo corpo. Que me valia não ter cedido? Se
eu perdia ali um só homem que fosse, ao penetrar na área perigosa, tudo estaria
arruinado, e, no momento, passada a última refrega, só se via uma figura
humana. Naquele instante a forma corcovada de Torstein apareceu do lado de
fora da jangada. Parecia um macaco dependurado nos cabos da ponta do mastro.
Conseguiu alcançar os toros e foi andando de rojo até perto dos destroços que se
achavam defronte da cabana. Herman voltou, então, a cabeça e para me
tranquilizar esboçou um sorriso amarelo, mas não se mexeu. Dei um berro, na
esperança de localizar os outros, e ouvi a voz calma de Bengt gritar que todos se
encontravam a bordo. Deitados, estavam agarrados às cordas por trás da
emaranhada barreira que o sólido trançado da coberta de bambu havia formado.

Tudo isto se deu no decurso de alguns segundos, enquanto a K0#- Tiki estava
sendo arrastada para fora da zona perigosa pelas águas impetuosas que vinham
de trás, e novo vagalhão veio rolando sobre ela.

Pela última vez gritei ”resistir!” com toda a minha força no meio daquele
estrondo, e foi tudo quanto eu próprio pude fazer; mantive-me firme sob aquela
massa d’água que desabava sobre nós naqueles dois ou três infindáveis
segundos. Aquilo para mim foi o suficiente. Vi as extremidades dos toros bater e
chocar-se contra um degrau pontudo no recife de coral sem o transporem.
Depois o vórtice das águas novamente nos fez recuar. Vi também os dois
homens estendidos de través sobre o cavalete do telhado da cabana, mas nenhum
de nós agora sorria. Detrás do caos de bambu ouvi uma voz calma gritar: -
Assim não vai.

Senti-me igualmente desalentado. A medida que a ponta do mastro se afundava


cada vez mais longe, para o lado de estibordo, eu me vi pendurado numa frágil
corda fora da jangada.

Veio a onda seguinte.

Depois que ela se foi, eu estava extenuado e meu único pensamento era ver se
chegava até os toros para postar-me atrás da barricada. Depois que o turbilhão
d’água se retirou, vi pela primeira vez, bem a descoberto e atrás de nós, o
escarpado recife vermelho, e avistei Torstein de pé e curvado sobre rútilos corais
vermelhos, segurando-se às pontas de um monte de cordas do mastro. Knut, de
pé na parte posterior, estava a pique de dar um pulo.

Gritei que devíamos todos permanecer sobre os toros, e Torstein, que tinha caído
no mar com a pressão da água, tornou a saltar à tona como um gato.

Mais duas ou três ondas rolaram sobre nós com força menor, e o que sucedeu
depois eu não me lembro, exceto que a água espumava ao entrar e ao sair, e que
eu mesmo me afundava cada vez mais na direção do recife vermelho, sobre o
qual íamos sendo içados. Depois, somente vinham rodopiando cristas de espuma
cheias de borrifos salinos, e logrei achar caminho para a jangada, na qual nos
dirigimos para a extremidade posterior dos troncos, que mais se elevava no
sentido do recife.

No mesmo momento Knut se agachou e deu um salto para o recife com o cabo
que ficara livre à popa. Enquanto o turbilhão se desfazia, andou a vau uns vinte e
tantos metros, chegando ileso à ponta do cabo quando a onda seguinte se
encaminhou espumante na sua direção, esmoreceu e se escoou do recife plano
como uma corrente caudalosa.

Nisso Erik saiu de rojo da cabana tombada, tendo os sapatos nos pés. Se
tivéssemos seguido seu exemplo, escaparíamos com menos dificuldade. Como a
cabana não tinha sido cuspida ao mar pela violência das ondas, tendo apenas
cedido completamente ao peso da lona, Erik permaneceu calmamente estendido
entre a carga, ouvindo o fragor das águas que desabavam por cima dele,
enquanto as abaladas paredes de bambu se inclinavam cada vez mais. Com a
queda do mastro, Bengt sofrerá ligeira contusão, mas conseguiu arrastar-se para
debaixo da desmoronada cabana, ficando ao lado de Erik. Devíamos ternos
estendido lá, se tivéssemos antes percebido quão firmemente as inúmeras
amarras e escotas de bambu trançado se aferrariam aos toros principais com a
pressão da água.

Erik achava-se agora de pé e de prontidão sobre os toros traseiros, e depois que o


vagalhão recuou, ele também deu um pulo para o recife. Em seguida foi a vez de
Herman e depois a de Bengt. Cada vez mais a jangada recebia novo impulso
para o interior da zona do recife.

Quando chegou o meu turno e o de Torstein, já a embarcação se aproximara


tanto do escolho que não havia mais nenhum motivo para abandoná-la. Todos se
aprestaram para os trabalhos de salvamento.

Achávamo-nos agora a pouco menos de vinte metros do fatídico degrau que


conduzia ao recife, e era ali e para lá dele que os vagalhões se sucediam
encapelados uns após outros. Os pólipos de coral tinham tido o cuidado de fazer
o atol tão elevado que somente o cimo das vagas podia, ao passar, salpicar-nos
com uns borrifos de água salgada, que depois se entranhavam na piscosa lagoa.
Era ali dentro o verdadeiro mundo do coral, de que havia uma real orgia de
formas e cores as mais estranhas. A boa distância, no interior do recife, os outros
acharam a jangada de borracha, a vogar, completamente invadida pela água.
Esvaziaram-na e puxaram-na para junto da embarcação arruinada, e carregamo-
la até as bordas com o material mais necessário, como o aparelho de rádio,
provisões e garrafas de água. Arrastamos tudo através do recife, amontoando no
alto de um enorme bloco de coral que lá estava solitário no lado de dentro do
recife como um grande meteorito. Depois voltamos à embarcação inutilizada, em
busca de mais coisas. Nunca podíamos saber de que seria capaz o mar quando as
correntes de marés começassem a borbulhar em redor de nós.

Na água pouco funda do interior do recife vimos qualquer coisa que faiscava ao
sol. Fomos até lá patinhando para apanhá-la e com espanto verificamos que eram
duas latas vazias. Não era bem isso que esperávamos encontrar, e ainda mais
admirados ficamos quando vimos que se tratava de latas recentemente abertas e
nas quais se lia ’abacaxi’ nos mesmos caracteres das novas rações de campanha
que estávamos experimentando para a intendência. Eram realmente duas das
latas de abacaxi atiradas ao mar depois da nossa última refeição a bordo da Kon-
Tiki. Tínhamo-las seguido bem de perto até o recife. Estávamos agora sobre
agudos e ásperos blocos de coral e sobre o fundo irregular andávamos a vau,
com água ora até o tornozelo, ora até a cintura, conforme os canais existentes no
recife. Anêmonas e corais davam ao recife a aparência de um jardim cravado na
rocha em que houvesse muito musgo e cacto de plantas fósseis, vermelhas,
verdes, amarelas e brancas. Não havia cor que ali não estivesse representada, ou
em corais ou em algas, ou em conchas e lesmas do mar e em peixes fantásticos
que por ali rabeavam. Nos canais mais profundos, pequenos tubarões de pouco
mais de um metro se aproximavam sorrateiramente de nós na água límpida.
Bastava-nos, porém, dar uma palmada na água para fazê-lo voltar e conservar-se
a distância.

No ponto em que encalháramos só havia em torno de nós poças de água e


charcos de coral, e um pouco mais longe a serena lagoa azul. A maré esmorecia
e víamos constantemente novos corais surgindo da água em volta de nós,
enquanto a ressaca que bramia sem cessar ao longo do recife baixava, por assim
dizer, um andar. O que aconteceria ali no estreito cachopo, quando a maré
principiasse de novo a correr, era incerto. Tínhamos de ir-nos embora.

O recife se estendia como uma parede de fortaleza meio submersa, acima para o
norte e abaixo para o sul. No extremo sul estava uma ilha comprida, toda coberta
de coqueiros. E logo acima, ao norte, a uns 500 ou 600 metros, ficava outra ilha
de coqueiros, mas consideravelmente menor: achava-se no interior do recife, os
cimos da palmeira erguendo-se para o céu e as praias de areia alvíssima
estendendo-se até se perderem na plácida lagoa.

A ilha toda parecia um verde açafate de flores, um pedacinho onde se


concentrara o paraíso.

Foi essa ilha que escolhemos.

A meu lado, Herman, muito barbudo, mostrava-se radiante. Não disse nenhuma
palavra, apenas estendeu a mão e riu tranquilamente. A Kon-Tiki permanecia a
distância, no recife, recebendo o esguicho das ondas. Era uma embarcação
naufragada, mas era-o com muita honra. Tudo que estivera por cima do convés
achava-se esfacelado, mas os nove troncos de pau-de-balsa da floresta de
Quevedo no Equador estavam intatos. Tinham salvado a nossa vida. A carga que
o mar tornara para si fora pouca, e nenhuma da que havíamos depositado dentro
da cabana. Nós é que tínhamos despojado a jangada de tudo quanto representava
real valor e que agora se achava em segurança no cume da grande rocha
castigada pelo sol no interior do recife. Desde que eu saltara da jangada, havia
notado a falta dos peixes pilotos que cirandavam defronte. Agora os grandes
toros de balsa estavam no recife, metidos na água quinze centímetros, e lesmas
pardas do mar se retorciam debaixo da proa. Os pilotos tinham-se ido embora, os
dourados também. Apenas alguns peixes desconhecidos, chatos, com uns
desenhos de plumagem de pavão e rabos de forma esquisita, se rebuliam
curiosos entre os toros. Tínhamos chegado a um novo mundo. Johannes havia
saído do seu buraco.

Tinha com certeza achado aqui outro esconderijo. Relanceei um último olhar
pela embarcação naufragada e vi um coqueirinho novo num cesto amassado.
Projetava-se de um olho num coco a uns quarenta e cinco centímetros de
comprimento, e por baixo saíam duas raízes. Fui andando a vau até a ilha com o
coco na mão. A certa distância de mim vi Knut, também satisfeito dirigindo-se
para a terra, e carregando debaixo do braço uma miniatura da jangada que tinha
feito com muito trabalho durante a viagem. Pouco depois passamos por Bengt.
Excelente despenseiro. Com um galo na testa e água salgada a gotejar da barba,
vinha curvado empurrando um caixote que oscilava para diante cada vez que lá
fora os vagalhões enviavam uma corrente para o interior da lagoa. Com orgulho
levantou a tampa. Era o caixote da cozinha, e dentro dele iam o Primus e demais
trens em boa ordem.

Nunca esquecerei a vadeação através do recife em demanda da ilha paradisíaca


que se fazia maior à medida que vinha ao nosso encontro. Quando alcancei a
praia cheia de sol, tirei os sapatos e pus os pés nus sobre a areia quente e seca.
Era como se me causasse prazer ver cada vestígio deixado por mim na arenosa
praia virgem que ia dar aos troncos dos coqueiros. Logo depois, achava-me
debaixo deles e fui andando na direção do centro da insignificante ilhota. Cocos
verdes pendiam dos ramos e algumas moitas densas encobriam flores alvíssimas
de perfume tão suave e sedutor que quase me sentia desfalecer. No interior da
ilha duas andorinhas do mar, mansíssimas, voavam quase sobre os meus ombros.
Eram tão brancas e leves como farrapos de nuvens. Pequenos lagartos passavam
rápidos quase debaixo de meus pés, e os habitantes mais importantes da ilha
eram grandes bernardos eremitas, vermelhos cor de sangue, que andavam
pesadamente em todas as direções, tendo aderentes à traseira conchas de
caracóis.

Sentia-me verdadeiramente esmagado. Caí de joelhos e enterrei os dedos na


areia quente e seca.

A viagem estava terminada. Estávamos vivos. Tínhamos encalhado numa ilhota


desabitada dos mares do Sul. E que ilha! Torstein chegou, jogou no chão sua
sacola, deitou-se ao comprido e pôs-se a olhar para os coqueiros e para os
pássaros brancos, leves como penugem, que giravam em silêncio pouco acima
de nós. Logo depois nós seis nos estiramos por ali. Herman, sempre lépido,
subiu num coqueiro baixo e atirou ao solo um cacho de grandes cocos verdes.
Cortamo-los no alto como se fossem ovos, tão macios eram, e entornamos pela
garganta abaixo a bebida mais deliciosa e refrescante do mundo o leite doce e
frio de um coco verde e sem semente. Lá fora no recife ressoava o rufo
monótono dos tambores da guarda aos portões do paraíso.

- O purgatório era um pouquinho úmido - disse Bengt - mas o céu é mais ou


menos como eu o imaginava.

Espreguiçamo-nos à vontade no chão e sorrimos para as nuvens brancas de vento


alísio dirigindo-se para oeste acima dos coqueiros. Nós agora já não as
estávamos seguindo inevitavelmente; achávamo-nos numa ilha fixa, imóvel,
realmente na Polinésia.

E enquanto, ali deitados, nos estirávamos, lá fora os vagalhões atroavam como


um trem, num vaivém ininterrupto, ao longo do horizonte.

Sim. Bengt tinha razão; aquilo era o céu.


CAPÍTULO VIII
ENTRE POLINÉSIOS

Laivos de Robinson - Medo de que nos socorram - Tudo bem, Kon-


Tiki! - Mais restos de naufrágio - Ilhas desabitadas - Luta com enguias
marítimas - Os nativos nos encontram - fantasmas no recife - Um
mensageiro é enviado ao chefe - O chefe nos visita - A Kon-Tiki é
reconhecida - Uma maré cheia - Cruzeiro terrestre da nossa
embarcação - Somente quatro na ilha - Os naturais vêm buscar-nos -
decepção na aldeia - Antepassados oriundos do nascente - A festa da
hula - Medicina por via aérea - Tornamo-nos pessoas régias - Outro
naufrágio - A Tamara salva a Maoae - Para Taiti - Encontro no cais -
Hospedagem principesca - Seis coroas.

Nossa pequena ilha era desabitada. Ficamos logo conhecendo cada grupo de
coqueiros e cada praia, pois a ilha não tinha nem duzentos metros de diâmetro. O
ponto mais elevado ficava a pouco mais de um metro e meio acima da lagoa.
Sobre nossas cabeças, da grimpa dos coqueiros, pendiam grandes cachos de coco
verde, cuja casca grossa isolava do sol tropical o seu conteúdo líquido frio, de
maneira que, nas primeiras semanas, não sentiríamos sede. Havia também cocos
maduros, grande quantidade de bernardos eremitas, e na lagoa toda a casta de
peixes. Quanto a isto, portanto, não tínhamos nenhuma preocupação.

No lado norte da ilha encontramos os restos de uma velha cruz de pau sem
pintura, meio enterrada na areia de coral. Daqui se enxergava para as bandas do
norte, ao longo do recife, o barco naufragado de listas que só tínhamos visto
mais de perto ao aproximar-nos do lugar onde encalháramos. Ainda mais para o
norte vimos numa bruma azulada as frondes dos coqueiros de outra ilhota. Bem
mais próxima estava a ilha do lado meridional, na qual o arvoredo era muito
cerrado. Tampouco descobríamos ali qualquer sinal de vida, mas no momento
tínhamos outras coisas em que pensar.

Tendo na cabeça o seu enorme chapéu de palha, lá vinha coxeando o nosso


Robinson’

Hesselberg, com os braços cheios de buliçosos bernardos eremitas. Knut pôs


fogo a um pouco de madeira seca, e pouco depois tínhamos caranguejo e leite de
coco com café para sobremesa.

- Bem bom aqui em terra, hem, companheiros? - disse Knut, encantado.

Ele já tinha tido essa experiência na viagem. Enquanto falava, tropeçou e


entornou meia chaleira de água fervente nos pés descalços de Bengt. Estávamos
todos pouco firmes no primeiro dia que passávamos em terra, depois de 101 dias
a bordo da jangada, e não era raro começarmos de repente a cambalear por entre
os troncos dos coqueiros, porque tínhamos fincado um pé no chão para
resistirmos a uma onda que não vinha. Quando Bengt nos entregou os
respectivos utensílios de mesa, a fisionomia de Erik alargou-se num sorriso.

Lembro-me de que, depois da última refeição, me inclinara sobre a beira da


jangada e me pusera a lavar, como de costume, os utensílios de que me havia
servido, enquanto Erik relanceava um olhar pela embarcação, dizendo: ”Acho
que a gente hoje nem precisa preocupar-se com lavar isto.” Quando encontrou
suas coisas no caixote da cozinha, elas estavam tão limpas quanto as minhas.
Findo o repasto e depois de descansarmos um pouco estirados no chão, pusemo-
nos em atividade para arrumar convenientemente o rádio; não podíamos perder
tempo, porque se Torstein e Knut não conseguissem comunicar-se com o homem
de Rarotonga, este teria de transmitir a notícia do nosso triste fim.

Quase todo o nosso material radiotelefônico já estava em terra, e, entre as coisas


que boiavam no recife, Bengt achou um caixote sobre o qual botou as mãos. Deu
um pulo para o ar em razão de um choque elétrico; não havia dúvida que o
conteúdo pertencia à seção de rádio.

E enquanto os operadores desatarraxavam, encaixavam e reuniam, nós outros


fomos armar a barraca.

Entre os salvados encontramos a pesada vela, completamente encharcada, e


arrastamo-la para a praia. Estendemo-la entre dois grandes coqueiros numa
pequena abertura que dava para a lagoa e escoramos as outras duas extremidades
com paus de bambu que a água havia trazido da embarcação varada. Densa sebe
formada pelo matagal virente como que unia duas partes da vela fechando-a, de
modo que tínhamos um telhado e três paredes, tendo além disso uma vista clara
da brilhante lagoa, enquanto um suave perfume de flores nos enchia as narinas.
Era bom estar ali. Todos ríamos tranquilos, gozando aquele conforto; cada um
fez sua cama de folhas de coqueiro, arrancando ramos de coral que emergiam da
areia. Antes de cair a noite, tivemos um descanso bem aprazível, e sobre nossas
cabeças vimos a imensa cara barbada do velho e bom Kon-Tiki. Não mais
intumescia o peito, tendo a enfuná-lo por trás o vento leste. Agora permanecia
imóvel, deitado de costas, a olhar para as estrelas que lá do alto piscavam sobre a
Polinésia. Sobre os matos que nos cingiam estavam estendidas bandeiras e sacos
de dormir, tudo muito molhado, e outros objetos empapados se achavam na areia
a secar. Mais um dia passado nessa ilha exposta ao sol e tudo estaria
completamente enxuto. Os próprios homens do rádio tiveram de cruzar os braços
até que, no dia seguinte, o sol secasse o interior do aparelho. Retiramos das
moitas e dos galhos os sacos de dormir e nos deitamos, disputando
jactanciosamente para saber quem tinha os trastes mais enxutos.

Bengt ganhou, pois os dele não faziam ruído quando ele se mexia. Céus! Como
era bom poder dormir! Quando acordamos no dia seguinte ao nascer do sol, a
vela estava curvada e cheia de água de chuva, pura como cristal. Bengt recolheu-
a e depois desceu até a lagoa, conseguindo trazer para terra alguns peixes
interessantes que atraíra a uns canais abertos na areia.

Nessa noite Herman tinha sentido dores no pescoço e nas costas, lugares onde se
magoara antes da partida de Lima, e a Erik voltou o seu lumbago que havia
desaparecido. De resto, da excursão

pelo recife tínhamo-nos saído bastante bem, apenas com arranhões e ligeiros
ferimentos, exceto Bengt que recebera um golpe na testa com a queda, ficando-
lhe uma leve contusão.

Quanto a mim, tinha as pernas e os braços moídos e com equimoses causadas


pela pressão das cordas.

Mas nenhum de nós se achava em tão ruim estado que não lhe apetecesse um
ágil mergulho na límpida lagoa antes do almoço. Era uma lagoa imensa. Mais
para longe era azul e encrespada pelo vento alísio, e tão larga que mal podíamos
lobrigar os altos de uma fila de ilhas azuis perdidas na bruma, que serviam de
marco à curva do atol no outro lado. Aqui, porém, a sotavento das ilhas, o vento
alísio sussurrava brandamente nas frondes rendadas dos coqueiros, fazendo-as
bulir e oscilar, enquanto a lagoa parecia um espelho imóvel lá embaixo, a refletir
todo o encanto das árvores. A água fortemente salina era tão pura e clara que
corais de cores alegres a menos de três metros de profundidade pareciam tão
próximos da superfície que podíamos cortar os pés neles ao nadar. E na água
havia lindas variedades de peixes coloridos. Era um mundo maravilhoso e
divertido. A água era fria e refrescante e o ar agradavelmente quente e seco
devido ao sol. Hoje, porém, tínhamos de voltar depressa para terra; Rarotonga
irradiaria notícias alarmantes se até o fim do dia nada se transmitisse da jangada.

Bobinas e partes do rádio estavam estendidas ao sol tropical sobre lajes de coral
bem enxutas, e Torstein e Knut aparafusavam e encaixavam. Passou-se o dia
todo, e o ambiente foi-se tornando cada vez mais eletrizante. Deixamos de lado
todas as outras tarefas e nos agrupamos em torno dos encarregados do rádio
esperando ser-lhes útil de qualquer maneira. Devíamos estar no ar antes das 10
da noite. Então expiraria o limite de 36 horas, e o radioamador de Rarotonga
faria apelos no sentido de serem trazidos socorros por avião.

Veio o meio-dia, passou-se o meio-dia, o sol se pôs. Quem dera que o homem de
Rarotonga se contivesse um pouco! Sete horas, oito, nove. A tensão dos ânimos
era incomportável. No transmissor nenhum sinal de vida, mas o receptor, um N
C - 173, principiou a animar-se lá num ponto, no fundo da escala, onde ouvimos
música muito ao longe. Não porém no comprimento da onda do amador. Ia-se,
contudo, chegando a um resultado qualquer, talvez animador; seria
provavelmente uma bobina úmida que se secava na parte interna por uma das
pontas. O transmissor estava ainda completamente inativo; de todos os lados,
curtos-circuitos e faíscas.

Faltava menos de uma hora. Abandonou-se o transmissor, e tornou-se a


experimentar um transmissorzinho de sabotagem do tempo da guerra. Antes já o
tínhamos provado várias vezes no decurso do dia, mas sem resultado. Talvez
agora ele estivesse um pouco mais seco.

Todas as baterias estavam completamente estragadas, e obtínhamos força


tocando à manivela um pequeno acumulador de mão. Era pesado, e nós quatro,
leigos em matéria de rádio, nos revezamos o dia todo a rodar aquela coisa
infernal. As trinta e seis horas em breve estariam no fim. Recordo-me que
alguém dizia baixinho ”mais sete minutos”, ”cinco minutos mais”, e depois disso
ninguém tornou a olhar o relógio. O transmissor continuava mudo como sempre,
mas o receptor ’cuspia’ para o comprimento de onda do lado direito. Súbito,
houve uma crepitação na frequência do homem de Rarotonga, donde inferimos
que ele se achava em ativo contato com a estação telegráfica de Taiti. Pouco
depois apanhamos o seguinte fragmento de mensagem enviada de Rarotonga:
”...nenhum avião deste lado de Samoa. Tenho plena certeza...”

Depois o mesmo silêncio de antes. O nervosismo chegava ao auge. Que se


passaria lá longe?

Já teriam começado a mandar aviões de socorro? Não havia dúvida de que,


naquele momento, se cruzavam no ar em todas as direções mensagens de que
nós éramos o objeto.

Os dois operadores trabalhavam febrilmente. O suor escorria-lhes do rosto como


escorria do nosso pois rodávamos a manivela. A força principiou lentamente a
comunicar-se à antena do transmissor, e Torstein, entusiasmado, apontou a
flecha que oscilava para cima, vagarosamente, na escala quando ele calçou o
manipulador telegráfico. Agora vinha!

Girávamos vertiginosamente a manivela enquanto Torstein chamava Rarotonga.


Ninguém nos ouvia. Mais uma vez. Agora o receptor tornara a despertar, porém
Rarotonga não nos ouvia.

Chamamos Hal e Frank em Los Angeles e a Escola Naval de Lima, mas


ninguém nos ouvia.

Então Torstein transmitiu uma mensagem CQ, isto é, chamou todas as estações
do mundo que nos pudessem ouvir no nosso comprimento de onda de amador.

Isto valeu alguma coisa. Agora uma voz fraca no ar começou a chamar-nos
lentamente. Chamamos de novo e dissemos que estávamos ouvindo. Então a voz
vagarosa disse no ar: - Meu nome é Paulo. Moro no Colorado. Qual é o seu
nome e onde mora?

Era um radioamador. Torstein bateu na tecla enquanto rodávamos a manivela e


respondeu: - Isto é a Kon-Tiki; estamos encalhados numa ilha deserta do
Pacífico.
Paulo não quis acreditar nessa informação. Pensou que era algum radioamador
da rua próxima que queria passar-lhe um trote, e não voltou ao ar. Desesperados,
arrepelamos os cabelos.

Ali nos achávamos, sentados à sombra dos coqueiros e debaixo do céu estrelado
numa ilha deserta e ninguém queria acreditar no que dizíamos.

Torstein não desanimou; tornou a bater na tecla transmitindo incessantemente


”tudo bem, tudo bem, tudo bem”. Tínhamos de impedir a qualquer custo que
toda aquela aparelhagem de salvamento atravessasse o Pacífico por nossa causa.

Ouvimos, então, um tanto frouxamente, no receptor: - Se tudo está bem, por que
preocupar-se?

Depois fez-se silêncio no ar. E foi só.

Vieram-nos ímpetos - tão desesperados nos achávamos - de dar um pulo e trepar


a uma daquelas árvores e de uma sacudidela deitar abaixo todos os cocos, e sabe
Deus o que não teríamos feito se tanto Rarotonga como o bom Hal de repente
não nos tivessem ouvido. Hal chorou de alegria, disse-nos, ao ouvir novamente
LI 2 B. Toda aquela trapalhada cessou como por encanto; achávamo-nos outra
vez sós e em paz na nossa ilha dos mares do Sul, e, esfalfados, nos deitamos nas
camas feitas de folhas de coqueiro.

O dia seguinte correu tranquilo, e gozamos a vida à perna solta. Uns tornavam
banho, outros pescavam ou foram dar uma batida no recife à cata de curiosos
animais marítimos, enquanto que outros mais ativos fizeram uma limpeza em
regra no acampamento, tornando aprazíveis os seus arredores. Bem num ponto
que dava diretamente para a Kon-Tiki, cavamos um buraco na orla das árvores,
forramo-lo com folhas e nele plantamos um belo coco do Peru. Ao lado
levantamos um montão de corais, bem defronte do lugar onde a Kon-Tiki dera
em seco. A Kon-Tiki tinha sido empurrada pela força das águas um pouco mais
para o interior durante a noite e estava quase seca dentro de umas poças, e
espremida entre um grupo de enormes blocos de coral que se atravessavam no
recife.

Depois de um bom banho de sol na areia quente, Erik e Herman achavam-se de


novo em excelentes condições, e estavam ansiosos para ir para o sul contornando
o recife, na esperança de alcançar a grande ilha que lá ficava. Preveni-os mais
contra as enguias do que contra os tubarões, e cada um meteu no cinto seu
comprido machete. O recife de coral é o lugar predileto de temíveis enguias de
dentes compridos e venenosos que podem facilmente decepar a perna de um
homem. Enroscam-se para o ataque com rapidez fulminante e são o terror dos
nativos, os quais não têm medo de nadar perto de um tubarão.

Os dois conseguiram vadear longos trechos do recife para as bandas do sul, mas
um ou outro trecho tiveram de pular ou de atravessar a nado. Alcançaram ilesos
a grande ilha e foram a vau para a terra. A ilha, comprida e estreita e coberta de
coqueirais, estendia-se mais para o sul entre praias banhadas de sol e abrigadas
pelo recife. Continuaram sua excursão até chegarem à extremidade

meridional. Daí o recife, coberto de branca espuma, se estendia para o sul até
outras ilhas distantes. Acharam os restos de um enorme navio que ali dera à
praia; tinha quatro mastros e jazia na praia partido em dois pedaços. Era um
velho navio à vela espanhol que tinha vindo carregado de barras de ferro, e
essas, todas enferrujadas, estavam dispersas ao longo do recife. Voltaram pelo
outro lado da ilha, mas não viram na areia um vestígio sequer.

No regresso através do recife iam, a cada passo, perturbando o sossego de


curiosos peixes e procuravam apanhar alguns deles quando, subitamente, se
viram atacados por nada menos de oito grandes enguias. Viram-nas quando
vinham na água clara e pularam para cima de um enorme bloco de coral, em
roda do qual as enguias se agitavam. Os viscosos animais eram da grossura da
barriga da perna de um homem e tinham malhas verdes e pretas como as das
serpentes peçonhentas, com a cabeça pequena, olhos malignos de cobra e dentes
de vinte e cinco milímetros de comprimento e pontudos como sovelas.
Brandindo os seus machetes na direção das cabecinhas rabigas que se dirigiam
contra eles, os dois homens cortaram uma e feriram outra. O sangue espalhado
na água atraiu um cardume de tubarõezinhos azuis que atacaram a enguia morta
e a ferida, enquanto Erik e Hermann conseguiam pular para outro bloco de coral
e fugir.

No mesmo dia ia eu a vau para a ilha quando uma coisa, num movimento
rapidíssimo, se agarrou ao meu tornozelo, apertando-o dos dois lados. Era uma
siba. Não era grande, mas não deixava de causar horror a pressão daqueles
braços frios no pé e verse a gente obrigada a trocar olhares com aqueles olhinhos
perversos metidos no saco vermelho-azulado que formava o corpo. Sacudi com
força o pé em todas as direções, mas a lula, que teria pouco mais de meio metro
de comprimento, não o largava. Fui-me arrastando aos pulos e sacudidelas para a
praia, com o nojento monstrengo pendurado no meu pé. Só quando cheguei à
orla da areia seca foi que ela me soltou, metendo-se lentamente na água rasa,
com os braços estendidos e os olhos voltados para a praia, como se se mostrasse
disposta a novo ataque, caso eu desejasse. Atirei-lhe uns pedaços de coral e ela
desapareceu incontinenti.

Nossas aventuras no recife tornavam simplesmente adorável a existência naquela


ilha paradisíaca. Mas não podíamos ficar ali a vida inteira e era preciso pensar
no modo de tornar ao mundo exterior. Passada uma semana, a Kon-Tiki dera
com os costados no centro do recife onde encalhou de vez. Os enormes troncos
haviam partido grandes lajes de coral ao forçarem caminho para a lagoa, mas
agora a jangada de pau estava imota, e de nada valia empurrá-la ou tentar
arrastá-la.

Se ao menos conseguíssemos puxá-la até a lagoa, sempre poderíamos ajustar o


mastro e pôr a embarcação sinistrada em condições de navegar com o vento que
perpassasse pela lagoa amiga, e ver o que havia do outro lado. Se alguma das
ilhas era habitada, devia ser a que ficava ao longo do horizonte, a oeste, onde o
atol tinha a frente para o lado de sotavento. Os dias passaram.

Eis que certa manhã uns companheiros vieram correndo dizer que tinham visto
uma vela branca na lagoa. Por entre os fustes dos coqueiros podíamos ver uma
diminuta mancha muito branca, a contrastar com o azul cor de opala da lagoa.
Era evidentemente uma vela próxima da terra, do outro lado. Pudemos ver que
estava abordando. Pouco depois apareceu outra. A proporção que o tempo
passava, foram crescendo de tamanho e aproximando-se.

Vinham na nossa direção. Içamos a bandeira francesa num coqueiro e acenamos


com a nossa bandeira norueguesa espetada num pau. Uma das velas estava agora
tão perto que pudemos ver que pertencia a uma canoa polinésia. A equipagem da
canoa era de um tipo mais recente. Dois vultos morenos achavam-se de pé a
bordo olhando para nós. Fizemos-lhes acenos. Eles nos abanaram a mão e
marcaram diretamente para os baixos.
- Ia ora na - saudámo-los em polinésio.

- Ia ora na - responderam em coro, e um saltou para fora e arrastou a canoa atrás


de si enquanto atravessava a vau os baixos arenosos, vindo no nosso rumo.

Os dois tinham roupas de homens brancos, mas corpos de homens morenos.


Traziam as pernas nuas, tinham boa conformação física e usavam chapéus de
palha de fabricação caseira para protegê-los do sol. Desembarcaram e
aproximaram-se de nós meio vacilantes, mas quando sorrimos para eles e cada
um de nós por sua vez lhes apertou a mão, eles se puseram risonhos mostrando
filas de dentes alvíssimos que diziam mais que palavras.

Nossa saudação polinésia tinha espantado e estimulado os canoeiros da mesma


maneira que nós nos havíamos enganado quando os seus parentes de Angatau
gritaram boa noite’, e começaram a desfiar uma longa história em polinésio até
perceberem que estavam perdendo o tempo e a saliva. Então nada mais tiveram
que dizer e limitaram-se a rir amavelmente apontando para a outra canoa que se
aproximava. Nesta havia três homens e quando vieram para terra e nos
saudaram, pareceu-nos que um deles sabia um pouco de francês. Ficamos
sabendo da existência de uma aldeia nativa numa das ilhas situadas à beira da
lagoa, e dela tinham os polinésios visto a nossa fogueira várias noites antes.
Como só havia uma passagem através do recife de Raroia até o círculo de ilhas
que rodeavam a lagoa, e como essa passagem se estendia até além da vila,
ninguém podia aproximar-se das ilhas que ficavam no interior do recife sem ser
visto pelos habitantes. Por isso os velhos do lugar tinham chegado à conclusão
de que a luz que viam no recife a leste não podia ser obra de homens, e devia ser
algo de sobrenatural. Isto amortecera neles todo desejo de atravessar a lagoa e ir
ver por si mesmos. Mas eis que parte de um caixote viera boiando pela lagoa e
nele estavam pintados uns sinais. Dois dos nativos, que tinham estado em Taiti e
aprendido o alfabeto, decifraram a inscrição e leram TIKI em grandes letras
negras na tábua do caixote. Então não houve mais dúvida de que havia espíritos
no recife, porquanto Tiki, todos eles o sabiam, era o fundador da sua raça, morto
havia muito tempo. Mas depois veio boiando pela lagoa uma porção de coisas,
pão enlatado, cigarros, coco e um caixote contendo um sapato velho. Então
compreenderam que tinha havido um naufrágio no lado leste do recife, e o chefe
mandara duas canoas para procurar os sobreviventes cujo fogo tinham visto na
ilha.
A instâncias dos outros, o homem trigueiro que falava francês perguntou por que
razão a tábua do caixote que viera pela lagoa trazia inscrita a palavra ”Tiki”.
Explicamos que ”Kon-Tiki” estava escrito em todo o nosso material e que esse
era o nome da embarcação na qual tínhamos vindo.

Os nossos novos amigos mostraram-se assombrados ao saberem que todos os


tripulantes se haviam salvado quando a embarcação varara, e que aquela
almanjarra chata que se achava lá no recife era, sem tirar nem pôr, a embarcação
que nos trouxera até ali. Queriam pôr-nos imediatamente dentro das canoas e
levar-nos para a aldeia. Agradecemos-lhes e recusamos, pois era nosso desejo
permanecer ali até safarmos a Kon-Tiki. Olharam horrorizados para o incrível
calhambeque encalhado no recife; não era possível que pensássemos em pôr
aquela ruína de madeira novamente a navegar! Por fim o nosso interlocutor disse
enfaticamente que tínhamos de ir com eles; o chefe dera-lhes ordem expressa de
não tornarem sem nós.

Então deliberamos destacar um dos nossos para ir com os nativos na qualidade


de enviado junto ao chefe, e depois voltar com as necessárias informações a
respeito da outra ilha. Não deixaríamos a jangada ficar no recife, e não podíamos
abandonar todo o material na nossa pequena ilha. Bengt foi com os nativos. As
duas canoas foram puxadas para a água e pouco depois desapareceram a oeste
com bom vento.

No dia seguinte o horizonte enxameava de velas brancas. Parecia que os nativos


tinham vindo buscar-nos com toda a sua frota. O comboio fez um bordo no
nosso rumo, e quando foi chegando perto, vimos o nosso bom amigo Bengt
acenando com o chapéu na primeira canoa, cercado de figuras trigueiras. Disse-
nos aos berros que o chefe em pessoa estava com ele, e formamos
respeitosamente na praia enquanto eles vinham a vau ao nosso encontro.

Bengt nos apresentou ao chefe com grande cerimônia. O nome do chefe,


informou Bengt, era Tepiuraiarii Teriifaatau, mas ele entenderia também se lhe
chamássemos simplesmente Teka.

O chefe Teka era um polinésio alto e esbelto, de olhos vivos e inteligentes.


Importante personagem, descendente da antiga estirpe real de Taiti, era chefe das
ilhas Raroia e Takume. Em Taiti havia frequentado a escola, falava francês e
sabia ler e escrever. Disse-me que a capital da Noruega era Cristiânia e me
perguntou se eu conhecia Bing Crosby.

Disse-nos também que apenas três navios estrangeiros tinham aportado em


Raroia nos últimos dez anos, mas que a aldeia era visitada várias vezes no ano
pela escuna de copra vinda de Taiti, trazendo mercadorias e levando coco. Há
semanas que estavam esperando a escuna, de maneira que chegaria a qualquer
momento.

Bengt disse em resumidas palavras que em Raroia não havia escola, nem rádio,
nem homens brancos, mas que os 120 habitantes do lugar tinham feito tudo para
estarmos lá à vontade e que nos haviam preparado uma grande recepção.

O primeiro pedido do chefe foi ver o bote que nos tinha trazido vivos a terra.
Vadeamos o trajeto até a Kon-Tiki, seguidos de uma fila de nativos. Quando
chegamos perto, eles estacaram e prorromperam em exclamações de espanto,
falando todos ao mesmo tempo, em grazinada. Agora podíamos ver
perfeitamente os toros da Kon-Tiki, e um dos nativos gritou: - Não é um bote, é
um paepae!

- Paepae! - repetiram todos em coro.

Foram patejando à desfilada através do recife e subiram à Kon-Tiki.

Esquadrinharam todos os cantos como meninos curiosos, apalparam os toros, o


trançado de bambu e as cordas. O chefe mostrava o mesmo entusiasmo que os
demais; ao voltar, repetiu com jeito de quem indaga alguma coisa: - A Tiki não é
um bote, é um paepae.

Paepae em polinésio quer dizer ”jangada” e ”plataforma”, e é na ilha de Páscoa


também o termo usado para designar as canoas do lugar. Disse-nos o chefe que
esses paepaes já não existiam, mas que as pessoas mais idosas da povoação
sabiam de antigas tradições a respeito deles. Todos competiam em admiração
diante dos grandes toros de balsa, mas torceram o nariz ao referirem-se às
cordas. Cordas assim não duravam muitos meses na água salgada e ao sol.
Mostraram-nos com orgulho os cabos de suas canoas; eles mesmos os tinham
fabricado de fibra trançada de coco, e essas cordas se conservavam boas por
cinco anos no mar. Quando fizemos a vau o percurso de regresso à nossa
pequena ilha, ela recebeu o nome de Fenua Kon-Tiki, ou seja, ilha de Kon-Tiki.
Este era um nome que todos podíamos pronunciar, mas os nossos amigos
morenos suaram o topete tentando pronunciar os nossos outros curtos nomes de
batismo nórdicos. Gostaram muito quando eu lhes disse que podiam chamar-me
Terai Mateata, porque o grande chefe de Taiti me tinha dado esse nome ao
adotar-me como seu ”filho” a primeira vez que estive por aquelas bandas.

Os nativos trouxeram das canoas galinhas, ovos e fruta-pão, enquanto outros


fisgavam grandes peixes na lagoa com arpões trifurcados, e foi-nos oferecido um
banquete ao ar livre.

Tivemos de narrar todas as aventuras no oceano a bordo do paepae, e quiseram


que lhes repetíssemos várias vezes o caso do tubarão gigante. E cada vez que
chegávamos ao ponto da história em que Erik embebera o arpão no crânio do
monstro, prorrompiam em gritos de entusiasmo. Reconheciam imediatamente
cada peixe de que lhes mostrávamos os desenhos, dizendo prontamente seus
nomes em polinésio. Mas nunca tinham visto o tubarão gigante ou o Gempylus,
ou sequer ouvido falar nele. A noite ligamos o rádio, o que causou imenso prazer
a toda a assembleia. Apreciaram muito música de igreja até que, com espanto
nosso, apanhamos da América verdadeira música de bula. Então os mais
espevitados começaram a saracotear-se com os braços curvados sobre a cabeça,
e daí a pouco o grupo todo movia os quadris dançando a hula-hula ao compasso
da música. Depois nos reunimos todos em redor de uma fogueira na praia. Foi
divertido não só para os naturais mas também para nós. Quando despertamos na
manhã seguinte, já eles estavam de pé frigindo peixes que acabavam de pegar,
enquanto seis cocos recentemente abertos estavam à nossa disposição para matar
a nossa sede matinal.

Naquele dia o recife atroava mais que de costume; o vento recrudescera, e a


rebentação subia a grande altura por trás do barco naufragado.

- Hoje a Tiki virá para dentro, disse o chefe, apontando para os restos da jangada.
Vamos ter a preamar.

Pelas onze horas a água começou a correr à nossa frente em direção à lagoa. Esta
principiou a encher-se como uma imensa bacia, e a água se elevava em redor da
ilha. Mais tarde iniciou-se, vindo do mar, o verdadeiro afluxo. A proporção que
as ondas se avolumavam, o recife se submergia abaixo da superfície do mar. As
massas de água rolavam para a frente em toda a extensão da ilha. Arrancavam
enormes blocos de coral e cavavam grandes bancos de areia que desapareciam
como farelo ao vento, enquanto que outros se formavam.

Bambus soltos da embarcação naufragada passavam por nós boiando, e a Kon-


Tiki começou a mover-se. Tudo que se achava ao longo da praia teve de ser
transportado para o interior da ilha para não ir com a maré. Dentro em pouco,
somente eram visíveis as pedras mais altas do recife, tendo-se sumido todas as
praias que rodeavam a ilha, enquanto a água corria invadindo o mato da ilhota
plana. Era de meter medo. Parecia que o oceano se preparava para nos tragar. A
Kon-Tiki vinha rodando e vogou até se deter junto a outros blocos de coral.

Os indígenas atiraram-se na água e nadaram e vadearam vencendo os


redemoinhos, até que, indo de um baixio a outro, alcançaram a jangada. Knut e
Erik os seguiram. Os cabos lá estavam prestes, a bordo da jangada, e quando ela
passou pelos últimos blocos de coral e se livrou do recife, os naturais saltaram e
procuraram detê-la. Eles não conheciam a Kon-Tiki e sua incoercível tendência a
rumar para oeste; de modo que foram inelutavelmente rebocados com ela, ao
passo que daí a pouco a jangada atravessava com grande velocidade o recife e
penetrava na lagoa. Viu-se ligeiramente embaraçada ao atingir água mais
tranquila e parecia que olhava em torno estudando suas novas possibilidades.
Antes de começar a mover-se outra vez e de descobrir a saída pela lagoa, já os
nativos tinham conseguido enrolar num coqueiro em terra a extremidade do
cabo. E ali ficou a Kon-Tiki, bem amarrada na lagoa. A embarcação que andara
em terra e na água, transposta a barreira, tinha penetrado na lagoa, no interior de
Raroia.

Com entusiásticos gritos de guerra, a que servia de estribilho ”keketehuruhuru”,


arrastamos Kon-Tiki, unindo os nossos esforços, para a praia da ilha do seu
próprio nome. A maré atingiu 1,20m acima do nível normal da água. Chegamos
a pensar que a ilha toda ia desaparecer.

As ondas açoitadas pelo vento vinham quebrar na lagoa, e grande parte do


material não cabia nas canoas estreitas e molhadas. Os nativos tiveram de tornar
apressadamente à aldeia, e Bengt e Herman foram com eles para ver um menino
que estava lá à morte com um abscesso na cabeça. Nós tínhamos penicilina.
No dia seguinte estávamos os quatro sós na ilha de Kon-Tiki. O vento leste
soprava com tanta violência que os nativos não puderam atravessar a lagoa, pois
esta era toda marchetada de pontudas formações coralinas e de parcéis. A maré,
que havia cedido um pouco, fluiu de novo com ferocidade, formando como que
degraus impetuosos.

No outro dia tinha voltado a bonança. Podíamos agora mergulhar debaixo da


Kon-Tiki, certificando-nos de que os nove toros se achavam intatos, apesar de
lhes ter o recife desbastado o fundo uma ou duas polegadas. O cordame estava
tão embebido nos seus sulcos que apenas quatro das numerosas cordas tinham
sido cortadas pelos corais. Encetamos uma limpeza a bordo. A soberba
embarcação apresentou melhor aparência depois de se ter posto um pouco de
ordem no convés, de se desmanchar a cabana que parecia uma concertina, e de
se reparar o mastro e pô-la no lugar.

No decurso do dia as velas tornaram a aparecer no horizonte; os naturais vinham


buscar-nos e o resto da carga. Com eles Herman e Bengt, que nos disseram que
os habitantes da aldeia tinham preparado lá grandes festejos. Ao chegarmos à
outra ilha, não devíamos deixar as canoas até que o chefe nos dissesse que
podíamos descer.

Fomos sulcando a lagoa, que aqui tinha mais de onze quilômetros de largura,
enquanto soprava uma fresca brisa. Foi com verdadeiro pesar que vimos os
coqueiros familiares da ilha de Kon-Tiki acenar-nos com as suas frondes, ao
mesmo tempo que se iam tornando indistintas na pequena ilha que foi aos
poucos confundindo-se com as outras ao longo do recife a leste. Mas diante de
nós vinham avultando ilhas maiores. E numa delas vimos um quebra-mar e
fumaça saindo de choças entre os coqueiros.

A aldeia parecia morta; não se via vivalma. Que estaria acontecendo? Na praia,
por trás de um molhe formado por blocos de coral, estavam de pé dois vultos
solitários, um magro e alto, outro robusto e gordo como uma pipa. Ao
aportarmos, saudámos os dois. Eram o chefe Teka e o vice-chefe Tupuhoe.
Ganhou-nos logo o coração o sorriso afável e franco de Tupuhoe. Teka era
homem de inteligência lúcida e um diplomata, mas Tupuhoe tinha índole de
criança, tanta sinceridade, um sentido de humor e uma força primitiva tão
intensos como raramente se encontram num só indivíduo. Com a sua corpulência
e as suas feições regias, ele era exatamente o que um chefe polinésio devia ser.
Tupuhoe era de fato o verdadeiro chefe da ilha, mas Teka havia paulatinamente
conquistado a posição suprema porque sabia falar francês e contar e escrever, de
modo que os aldeões não eram enganados quando a escuna vinha de Taiti para
buscar compra.

Teka explicou que tínhamos de marchar juntos até o templo da aldeia, e depois
que todos haviam chegado a terra, partimos para aquele local em cerimonioso
cortejo, precedidos de Herman com a bandeira a tremular na lança de um arpão;
eu vinha depois ladeado dos dois chefes.

A aldeia ostentava sinais evidentes do seu comércio de copra com Taiti; tanto as
tábuas como o ferro ondulado tinham vindo na escuna. Enquanto algumas
choças eram construídas num pitoresco estilo antiquado, com varas e folhas de
palmeira trançadas, outras eram feitas de um modo tosco com pregos e tábuas
como pequenos bangalôs tropicais. Uma grande casa feita de tábuas e que lá
estava solitária entre os coqueiros, era o novo templo da aldeia; ali deviam ficar
os seis brancos. Entramos com a bandeira por uma portinha dos fundos e saímos
postando-nos numa larga série de degraus diante da fachada. Defronte de nós, na
praça, achava-se toda a gente da aldeia que tinha podido acorrer ao local
andando ou arrastando-se - mulheres e crianças, velhos e moços. Estavam todos
profundamente sérios; até os nossos alegres amigos da ilha de Kon-Tiki
formavam entre os demais e não davam mostras de nos reconhecer. Quando
aparecemos, parando sobre os degraus, toda aquela gente abriu a boca
simultaneamente e começou a cantar... a Marselhesa! Teka, que sabia a letra,
tirava o canto que ia bastante bem, apesar de algumas velhas se atrapalharem um
pouco nas notas altas. Tinham-se exercitado bastante para isso. A bandeira
francesa e a norueguesa foram hasteadas em frente aos degraus, e com isto
terminou a recepção oficial dada pelo chefe Teka; ele se retirou tranquilamente
para o segundo plano, e então o robusto Tupuhoe passou rápido para a frente,
tornando-se mestre-de-cerimônias. A um sinal seu, a assembleia inteira entoou
novo cântico. Dessa vez foi melhor, pois a toada era deles mesmos e bem assim
as palavras, que eram da própria língua, e a bula eles a sabiam cantar. Tão
encantadora era a melodia na sua tocante simplicidade, que sentimos um como
arrepio na espinha lembrando-nos do estrondo dos mares do Sul, tão conhecido
nosso. Alguns tiravam o canto e todo o coro entrava em perfeito ritmo; apesar de
haver variações na melodia, as palavras eram sempre as mesmas: ”Bom dia,
Terai Mateata, e os vossos homens, que viestes através do mar num paepae até
nós em Raroia; sim, bom dia.

Oxalá fiqueis muito tempo entre nós, contando-nos os vossos casos, e contando-
vos nós os nossos, de modo que estejamos sempre juntos, ainda quando partirdes
para uma terra longínqua. Bom dia.”

Tivemos de pedir-lhes que repetissem o cântico, e aquela boa gente, sentindo-se


menos constrangida, cantou ainda com mais alma. Em seguida Tupuhoe me
pediu que dissesse algumas palavras ao povo a respeito do motivo que nos fizera
atravessar o mar num paepae; estavam todos esperando por isso. Eu ia falar em
francês e Teka traduziria aos poucos.

Achava-me diante de um povo sem cultura mas muito inteligente que contava
com a minha palavra. Disse-lhes que já tinha estado antes com seus patrícios nas
ilhas dos mares do Sul, e que ouvira falar do seu primeiro chefe Tiki que tinha
trazido seus antepassados para as ilhas vindo de um país misterioso, cujas
paragens ninguém mais sabia. Mas numa terra distante chamada Peru, disse eu,
havia reinado outrora um chefe poderoso cujo nome era Tiki. O povo chamou-o
Kon-Tiki ou Sol-Tiki, porque ele se dizia descendente do Sol. Tiki e muitos dos
seus seguidores tinham por fim desaparecido de seu país em grandes paepaes;
por isso nós seis pensamos que ele era o mesmo Tiki que tinha vindo para
aquelas ilhas. Como ninguém quisesse acreditar que um paepae podia fazer a
viagem através do mar, havíamos partido do Peru num paepae e ali estávamos;
por isso era certo que a viagem podia ser realizada.

Quando o pequeno discurso foi traduzido por Teka, Tupuhoe inflamou-se todo e
pulou para a frente da assembleia como que tomado de um arroubo. Foi falando
na sua língua, atirava os braços para o alto, apontava para o céu e para nós, e no
seu dilúvio verbal repetia continuamente a palavra Tiki. Falava tão depressa que
era impossível seguir o fio do que dizia, mas a assembleia em peso bebia-lhe as
palavras e estava visivelmente eletrizada. Teka, ao contrário, deu mostras de
muito embaraçado quando teve de traduzir.

Tupuhoe dissera que seu pai e seu avô e os pais deste tinham falado de Tiki e
haviam dito que Tiki fora o seu primeiro chefe que agora estava no céu. Mas eis
que vieram os brancos e disseram que as tradições de seus antepassados eram
mentiras. Tiki nunca existira. No céu ele não estava, pois lá estava Jeová. Tiki
era um deus pagão e eles não deviam continuar crendo nele. Mas agora nós seis
tínhamos atravessado o mar num paepae. Éramos nós os primeiros brancos que
reconheciam que seus antepassados haviam falado a verdade. Tiki vivera, tinha
sido real, mas agora estava morto e se achava no céu.

Apavorado com a ideia de estar estragando o trabalho dos missionários, dei um


passo à frente para explicar que Tiki tinha existido, isto era absolutamente certo,
e que agora estava morto. Mas se hoje ele estava no céu ou no inferno só Jeová
sabia, porque Jeová estava no céu, ao passo que Tiki havia sido um homem
mortal, um grande chefe como Teka e Tupuhoe, talvez ainda maior.

Isto provocou grande contentamento entre aqueles homens trigueiros, e os sinais


de aprovação que faziam com a cabeça e os murmúrios que se ouviam
mostravam claramente que a explicação havia caído em bom terreno. Tiki
existira, isto era o principal. Se agora estava no inferno, pior para ele; pelo
contrário, insinuou Tupuhoe, isto talvez até aumentasse as probabilidades de se
tornar a vê-la.

Três velhos se adiantaram e quiseram cumprimentar-nos. Não havia dúvida que


eram eles que tinham conservado viva entre a população a memória de Tiki, e o
chefe nos disse que um daqueles velhos sabia uma quantidade imensa de
tradições e baladas históricas do tempo de seus antepassados. Perguntei ao
ancião se, entre as suas lembranças, existia alguma coisa referente à direção de
onde Tiki tinha vindo. Não. Nenhum dos velhos se recordava de ter ouvido falar
nisso. Mas depois de demorada e cuidadosa reflexão, o mais idoso dos três disse
que Tiki tinha um parente próximo que se chamava Maui, e na balada de Maui
se dizia que ele viera das ilhas de Pura, e a palavra pura queria dizer a parte do
céu onde o sol nasce. Se Maui tinha vindo de Pura, disse o velho, sem dúvida
Tiki viera do mesmo lugar, e nós seis tínhamos vindo do Pura no paepae. Isto
era coisa certa. Eu disse aos homens morenos que numa ilha solitária chamada
Mangareva, perto da ilha de Páscoa, a população nunca se utilizara de canoas,
continuando a fazer uso de enormes paepaes no mar até o tempo atual. Isso os
velhos não sabiam, mas sabiam que seus avós também tinham usado grandes
paepaes, mas estes pouco a pouco haviam sido postos de lado, e agora deles só
restava o nome e a tradição. Em época muito afastada, disse o mais idoso, eram
conhecidos por rongorongo, mas essa palavra não mais existia na língua.
Entretanto, o rongorongo é mencionado nas mais antigas lendas.

Este nome era interessante, porquanto Rongo - pronunciado Lono em certas ilhas
- era como se chamava um dos mais conhecidos heróis lendários dos polinésios.
Descreviam-no até como homem branco e de cabelos louros. Quando o Capitão
Cook chegou pela primeira vez a Havaí, foi recebido de braços abertos pelos
ilhéus, porque pensaram que ele era o seu parente branco Rongo que, depois de
várias gerações, tinha voltado da pátria de seus antepassados no seu colossal
navio de vela. E na ilha de Páscoa a palavra rongorongo era a designação usada
para os misteriosos hieróglifos cujo segredo se perdera com os últimos ”orelhas
compridas” que sabiam escrever.

Enquanto os velhos queriam discutir a respeito de Tiki e do rongorongo, os


moços preferiam ouvir falar no tubarão gigante e na viagem através do mar. Mas
a comida estava esperando, e Teka já se cansara de servir de intérprete. Nesse
momento a aldeia inteira teve permissão de chegar-se e cumprimentar cada um
de nós. Os homens diziam em voz baixa ”iaorana” e quase nos arrancavam a
mão da articulação, enquanto as moças vinham saracoteando-se e, um tanto
tímidas, nos saudavam graciosamente, e as velhas chalravam e cacarejavam
apontando para as nossas barbas e para a cor da nossa pele. Todos os rostos
respiravam amizade, por isso não tinha a mínima importância a enorme
balbúrdia linguística que ali reinava. Se eles diziam em polinésio qualquer coisa
para nós incompreensível, nós lhes pagávamos na mesma moeda em norueguês,
e todos nos divertíamos com o caso. A primeira palavra vernácula que
aprendemos foi a equivalente a ”gostar”, e quando a gente podia apontar para
uma coisa de que gostava, com a certeza de obtê-la imediatamente, era muito
simples. Se se torcia o nariz quando se dizia ”gostar”, isso queria dizer que ”não
gostava”, e nessa base pudemos ir longe.

Depois que ficamos conhecendo os 127 habitantes da aldeia, foi posta uma longa
mesa para os dois chefes e para nós seis, e as jovens aldeãs trouxeram pratos
deliciosos. Enquanto algumas arrumavam a mesa, outras penduravam grinaldas
de flores em volta de nosso pescoço, e coroas menores eram colocadas em torno
de nossa cabeça. As flores exalavam um lânguido perfume e eram um refrigério
no calor que fazia. E assim teve começo uma festa de boas-vindas que só
terminou quando deixamos a ilha semanas depois. Arregalamos os olhos e veio-
nos água à boca, pois as mesas estavam cobertas de leitões assados, galinhas,
patos assados, lagostas frescas, peixadas polinésias, fruta-pão, mamão e leite de
coco. E enquanto nos atirávamos àquelas iguarias, a multidão nos distraía
cantando canções próprias para a dança da bula, enquanto moçoilas dançavam
em redor da mesa. Os meninos riam e se divertiam à nossa custa, e não era para
menos, pois cada um de nós parecia mais ridículo que o vizinho, a comer como
esfaimados, com umas barbas respeitáveis e com grinaldas de flores na cabeça.
Os dois chefes gozavam a vida com igual desenvoltura.

Depois do repasto houve dança de bula em grande escala. A aldeia I queria fazer
uma exibição de danças populares locais. Enquanto Teka, Tupuhoe e nós seis
nos sentávamos nuns escanos junto à orquestra, dois tocadores de guitarra se
adiantaram, puseram-se de cócoras e começaram a tocar, lá a seu modo,
genuínas melodias dos mares do Sul. Duas filas de dançarinos e dançarinas, com
saias farfalhantes de folhas de coqueiro em volta dos quadris, vinham deslizando
e saracoteando por entre os espectadores que estavam de cócoras, formando um
círculo, e cantavam. Dirigia o canto com entusiasmo e vivacidade uma gorda
vahine a quem os dentes agudos de um tubarão haviam arrebatado um braço. No
começo os dançarinos se mostraram um tanto teatrais e pareciam nervosos, mas
quando viram que os homens brancos do paepae não desgostavam das danças
populares de seus avós, o baile foi-se tornando cada vez mais animado. Algumas
pessoas de mais idade vieram-se juntar aos primeiros; aquelas tinham um ritmo
esplêndido e sabiam danças que certamente não estavam mais em voga. E
enquanto o sol ia descambando no Pacífico, as danças que estavam sendo
executadas debaixo dos coqueiros iam em entusiasmo crescente, tornando-se
cada vez mais espontâneo o aplauso dos espectadores. Tinham-se esquecido que
nós que os observávamos éramos seis estrangeiros; éramos agora seis dos seus, a
distrair-nos com eles.

O repertório era inesgotável; um número fascinante era seguido de outro.


Finalmente, vários moços se agacharam em apertado círculo diante de nós e, a
um sinal de Tupuhoe, principiaram a marcar compasso ritmicamente no solo
com as palmas das mãos. Primeiro devagar, depois mais depressa, tornando-se o
ritmo cada vez mais perfeito quando um tamborileiro de repente se associou aos
primeiros e os acompanhou, batendo vertiginosamente com duas baquetas num
bloco de madeira oca e muito seca, que emitia som forte e agudo. Quando o
ritmo atingiu o grau de animação que se desejava, começou o canto e, de súbito,
pulou para dentro do círculo uma dançarina de bula que trazia em volta do
pescoço uma grinalda de flores, tendo também flores debaixo da orelha.

Dançava ao compasso da música, tendo os pés descalços e dobrados os joelhos,


meneando airosamente os quadris e curvando os braços acima da cabeça em
legítimo estilo polinésio.

Dançava magnificamente, e dentro em pouco toda a assembleia marcava


compasso com as mãos. Outra jovem pulou para o círculo e depois uma terceira.

Moviam-se com incrível agilidade em ritmo perfeito, resvalando uma em torno


da outra como se fossem graciosas sombras. O soturno bater das mãos no chão, o
canto e o alegre tambor de pau lhes aumentaram o entusiasmo, fazendo-as
rodopiar vertiginosas, atingindo uma animação incrível, ao mesmo tempo que os
espectadores gritavam e batiam palmas em ritmo impecável.

Era essa a vida nos mares do Sul como a haviam conhecido os dias de antanho.
As estrelas tremeluziam e os ramos balouçavam. A noite corria branda e parecia
interminável, cheia de aromas e de cricris de grilos. Tupuhoe estava radiante e
me bateu no ombro.

- Maitai? - perguntou.

- Sim, maitai, - respondi.

- Maitai? - perguntou aos outros.

- Maitai - responderam todos com entusiasmo que, bem se via, não era fingido.

- Maitai - repetiu Tupohoe, meneando afirmativamente a cabeça e apontando


para si mesmo; também ele naquele momento estava se divertindo.

A festa até mesmo no conceito de Teka estava muito boa; era a primeira vez que
brancos tinham presenciado suas danças em Raroia, disse ele. Cada vez mais
depressa, num crescendo constante iam os rufos dos tambores, o bater das mãos,
os cantos e bailados. De repente, uma das dançarinas deteve os movimentos em
torno do círculo e permaneceu no mesmo lugar, executando uma dança em
terrífico rodopio, com os braços estendidos para Herman. Pela barba nosso
companheiro escondia uma risota; não sabia absolutamente como interpretar
aquilo.

- Não se faça de rogado - cochichei-lhe - você que é bom parceiro e que sabe
dançar tão bem!

E com imenso prazer da multidão, Herman pulou na roda e, meio agachado,


empreendeu os difíceis meneios da bula. O júbilo agora não conhecia limites.
Pouco depois, Bengt e Torstein também aderiram à dança, esforçando-se até o
suor para seguir o rodopio que não cessava nunca, até que o tambor ficou
batendo sozinho com uma espécie de longo zumbido, e as três verdadeiras
dançarinas de bula se puseram a tremer como folhas de faia, deixando-se cair no
final da execução, momento em que os rufos surdos do tambor emudeceram
abruptamente. A noite agora era nossa. O entusiasmo não esmorecia. O número
seguinte do programa era a dança do pássaro, uma das cerimônias mais antigas
de Raroia. Em duas filas, pulavam para a frente numa dança rítmica, imitando
bandos de pássaros, homens e mulheres conduzidos pelo diretor de bailados. Ele
tinha o título de chefe dos pássaros e executava curiosas manobras sem
realmente tomar parte na dança. Acabada esta, Tupuhoe explicou que ela fora
executada em honra da jangada e que agora seria repetida, porém o regente do
bailado ia ser substituído por mim. Como me pareceu que a principal tarefa do
regente consistia em dar berras selvagens e saltar girando sobre as ancas,
sacudindo o traseiro e mexendo as mãos por cima da cabeça, firmei bem a
grinalda de flores e penetrei na arena.

Enquanto eu macaqueava a meu modo a tal quadrilha, vi o velho Tupuhoe rir


tanto que quase caia do seu banquinho, e a música afrouxou um pouco, porque
os cantores e os músicos seguiram o exemplo de Tupuhoe.

Todos agora queriam dançar, jovens e velhos. Estavam de novo a postos o


tamborileiro e os que davam palmadas na terra, iniciando o primeiro movimento
de uma fogosa hula-hula.

Logo saltaram as dançarinas para dentro do círculo e se puseram a bailar com


desenvoltura sempre crescente, sendo nós, pouco depois, convidados a tomar
parte no rodopio, enquanto mais gente vinha bater com os pés e piruetar com
admirável presteza. Mas não havia quem induzisse Erik a mexer-se. As correntes
de ar e a umidade a bordo da jangada tinham feito voltar o seu desaparecido
lumbago, e lá estava ele sentado, como um velho patrão de barco, teso e
barbado, tirando baforadas do cachimbo. Não se deixava seduzir pelas
dançarinas de bula que procuravam atraí-lo para a arena. Vestia calças largas de
pele de carneiro que usara nas noites gélidas passadas na corrente de Humboldt,
e, sentado ali debaixo dos coqueiros, a barba crescida, o corpo nu até a cintura e
as bombachas de pele de carneiro, parecia uma imagem viva de Robinson
Crusoe.

Lindas mocinhas se sucediam procurando insinuar-se-lhe, mas em vão. Sentado


a um canto, fumava sisudamente, com a coroa de flores metida no cabelo
intonso.

Então uma matrona bem fornida de carnes e de músculos rijos entrou na arena,
executou com mais ou menos graça alguns passos de bula e depois marchou
deliberadamente para Erik. Este assustou-se, mas a amazona lhe mostrou o
melhor sorriso, agarrou-o resolutamente pelo braço, arrancando-o do tamborete
em que estava sentado. A cômica bombacha de Erik tinha a lã de carneiro para
dentro e o carnaz para o lado de fora, havendo na parte posterior das calças um
rasgão, de modo que ressaía um pedaço branco de lã à guisa de coto de rabo,
como o de coelho. Erik acompanhou-a com relutância e entrou na roda
maneando, com o cachimbo numa das mãos e apertando com a outra o lugar
onde o lumbago lhe doía. Quando procurava dar o salto de estilo, teve de largar
as calças para amparar a coroa que ameaçava cair. E então, com a coroa de
banda, teve de segurar de novo as calças que estavam descendo lentamente, com
o próprio peso. Não era menos desopilante o espetáculo que a robusta dama
oferecia dançando a bula com sua corpulência, de modo que ríamos até chorar.
Os que se achavam na roda pararam, e estrepitosas gargalhadas ressoaram pelo
coqueiral, enquanto Erik, dançarino de bula, e o peso-pesado feminino
rodopiavam guapamente pela arena. Por fim até os dois tiveram de parar, porque
tanto os músicos como os cantores, não mais aguentando a cena, se torciam de
rir.

A festa continuou até dia claro; aí nos concederam licença para uma pequena
pausa, depois de termos novamente cumprimentado cada um dos 127 aldeões.
Durante a permanência na ilha, toda manhã e toda noite apertávamos a mão de
cada um deles. Percorrendo todas as choças da povoação, recolheram seis leitos,
que foram colocados lado a lado junto da parede do templo, e neles dormimos
em fila como os sete anõezinhos da história de fadas, com grinaldas de flores
balsâmicas a coroar-nos a cabeça.

No dia seguinte, o menino de seis anos que tinha um abscesso na cabeça parecia
ter piorado.

A temperatura era elevadíssima e o tumor era do tamanho do punho de um


adulto e latejava dolorosamente.

Teka declarou que tinham perdido dessa maneira várias crianças e que, se não
tivéssemos nenhum jeito de medicar o doentinho, este não teria muitos dias de
vida. Trazíamos conosco alguns frascos de penicilina preparada em pastilhas,
mas não sabíamos a dose que uma criança podia tomar. Se o menino morresse
com o tratamento, podia acarretar-nos consequências bem sérias. Knut e Torstein
instalaram de novo o rádio suspendendo a antena entre os coqueiros mais altos.
À noite tornaram a comunicar-se com nossos invisíveis amigos Hal e Frank,
comodamente sentados em seus aposentos em Los Angeles. Frank chamou um
médico ao telefone, e com o manipulador Morse demos todos os sintomas do
enfermo e uma lista do que trazíamos na farmácia portátil. Frank transmitiu a
resposta do médico e, naquela noite, fomos à choupana onde Haumata se agitava
no ardor da febre, tendo a metade da aldeia a chorar e a fazer barulho em redor
dele.

A Herman e Knut coube o papel de médicos, enquanto os outros tinham bastante


que fazer para conservar fora da cabana os aldeões. A mãe ficou histérica
quando chegamos com uma faca afiada e pedimos água fervente. Rapou-se o
cabelo do doentinho e o abscesso foi aberto. O pus esguichou quase até o teto, e
vários nativos, em fúria, quiseram forçar a entrada, tendo de ser postos para fora.
Não foi nada fácil. Esvurmado o abscesso e convenientemente esterilizado, a
cabeça foi enfaixada e começamos a medicação com a penicilina. Durante dois
dias e duas noites fazíamos o tratamento do menino de quatro em quatro horas,
enquanto a febre ia no auge e o abscesso se conservava aberto. Cada noite
consultávamos o médico de Los Angeles. Então a temperatura do menino baixou
de repente, o pus foi substituído por plasma que se foi deixando cicatrizar, e o
menino parecia todo satisfeito, querendo ver ilustrações do estranho mundo do
homem branco onde havia automóveis e vacas e casas com vários andares.
Uma semana depois, Haumata brincava na praia com as outras crianças, tendo a
cabeça envolvida numa grande atadura, que pouco depois teve licença de tirar.

Tendo tido sucesso este caso, não tivemos mãos a medir com as doenças que
surgiam na aldeia. Por toda parte dores de dente e embaraços gástricos, e tanto
moços como velhos tinham algum furúnculo em algum lugar. Mandávamos os
pacientes ao Dr. Knut e ao Dr.

Herman, que receitando dietas, esvaziaram a caixa de remédios, tantas foram as


pílulas e unguentos que dela saíram. Alguns ficaram curados e ninguém piorou.
Quando a farmácia ficou inteiramente vazia, fizemos papa de coco com farinha
de aveia, que se revelou um remédio de primeira ordem para mulheres histéricas.

Não havia muitos dias que estávamos no meio dos nossos admiradores morenos,
quando os festejos vieram culminar numa nova cerimônia. Seríamos adotados
como cidadãos de Raroia e receberíamos nomes polinésios. Eu não me chamaria
mais Terai Mateata; podia chamar-me assim em Taiti, mas não ali, entre eles.
Seis tamboretes foram colocados para nós no centro da praça, e a vila toda saiu
cedo procurando bons lugares na roda que se ia formar.

Teka sentou-se solenemente no meio deles; era chefe, claro, mas não quando se
tratava de antigas cerimônias locais. Então Tupuhoe assumiu a presidência.

Todos se sentaram, pondo-se à espera, em silêncio e profundamente sérios,


enquanto o enorme e gordo Tupuhoe se aproximava imponente e devagar,
trazendo a nodosa e sólida bengala. Estava cônscio da solenidade do momento.
Os olhos de todos se fixaram nele quando chegou, imerso em reflexão, tomando
lugar defronte de nós. Ele era líder nato, ator e orador brilhante.

Voltou-se para os cantores principais, para os tamborileiros e regentes da dança,


apontou alternativamente para eles com a nodosa bengala e deu-lhes ordens
breves em tom baixo e comedido. Depois tornou a virar-se para nós e de súbito
arregalou os grandes olhos, de maneira que o globo ocular, volumoso e branco,
teve o mesmo brilho dos dentes na expressiva face acobreada. Ergueu a bengala
e as palavras lhe rebentaram dos lábios como contas de um fio que se partira
recitando antigos rituais que ninguém entendia - a não ser a gente de mais idade
- pois eram expressos em dialeto há muito esquecido.
Depois, tomando Teka por intérprete, nos disse que Tikaroa era o nome do
primeiro rei que se estabelecera na ilha, e que ele havia reinado nesse mesmo
atol, de norte a sul e de leste a oeste, até o céu acima das cabeças dos homens.

Enquanto o coro cantava a velha balada do rei Tikaroa, Tupuhoe pôs a mão
enorme no meu peito e, voltando-se para a assistência, disse que me nomeava
Varoa Tikaroa, isto é, Espírito de Tikaroa. Acabado o canto, foi a vez de Herman
e de Bengt. Colocando a mão morena no peito de um e depois no do outro, deu-
lhes os nomes, respectivamente, de Tupuhoe -

Itetahua e Topokino. Estes eram os nomes de dois antigos heróis que haviam
lutado com um monstro marinho e morto à entrada do recife de Raroia. O
tamborileiro executou alguns rufos enérgicos, e dois homens robustos pularam
para a frente vestidos de tangas cheias de nós e com uma lança comprida em
cada mão. Deram início a uma marcha de passo rápido, erguendo os joelhos à
altura do peito, apontando a lança para o alto e virando a cabeça de um lado para
o outro. A novo toque do tambor ’deram um salto para o ar e, em ritmo perfeito,
começaram uma batalha ritual no mais puro estilo de bale. Tudo foi executado
com a maior rapidez, representando o combate dos heróis com o monstro
marinho. Depois veio o batismo de Torstein, acompanhado da mesma cerimônia
e canto; foi chamado de Maroake, nome de um rei antigo da atual povoação, e
Erik e Knut receberam os nomes de Tane-Matarau e Tefaunui, dois navegadores
e heróis do passado. A longa e monótona recitação que acompanhava a
imposição de nomes era feita com grande velocidade e com um jorro contínuo
de palavras, cuja incrível rapidez tinha o intuito não só de impressionar mas
também de divertir.

Estava terminada a cerimônia. Havia outra vez chefes brancos e barbudos entre o
povo polinésio de Raroia. Duas filas de dançarinos e dançarinas se adiantaram,
portando saias de palha trançada e tendo n cabeça, postas de banda, coroas feitas
de esparto. A medida que dançavam, aproximavam-se de nós, transferindo as
coroas das próprias cabeças para as nossas. Em redor das nossas cinturas
puseram farfalhantes saias de palha. E as festividades continuaram.

Uma noite, os enflorados radiotelegrafistas entraram em contato com o


radioamador de Rarotonga, que lhes transmitiu uma mensagem de Taiti. Era do
governador das colônias francesas do Pacífico, enviando-nos cordiais boas-
vindas.

De acordo com instruções recebidas de Paris, ele tinha mandado a escuna oficial
Tamara buscar-nos em Taiti, para não termos de esperar pela chegada incerta da
escuna de copra.

Taiti era o ponto central das colônias francesas e a única ilha que tinha contato
com o mundo em geral. Teríamos de ir por Taiti para apanharmos o cruzeiro
regular que nos levaria à pátria. Em Raroia as festas continuaram. Uma noite
ouviram-se gritos estranhos partidos do mar, e os vigias desceram dos altos
coqueiros para informar que havia uma embarcação parada à entrada da lagoa.
Atravessamos correndo o coqueiral rumo à praia, do lado de sotavento. Aí
olhamos para a direção aposta àquela de que tínhamos vindo. A rebentação era
muito menor dessa banda, que ficava ao abrigo do atol e do recife. Logo fora da
entrada da lagoa enxergamos as luzes de uma embarcação. Como era fartamente
iluminada, vimos-lhe os contornos: uma escuna bem larga, de dois mastros.
Seria o navio do governador que vinha buscar-nos? Por que não entrava? Os
nativos estavam visivelmente aflitos. Agora também nós víamos a causa. A
escuna levava grande inclinação, ameaçando virar. Encalhara num recife
invisível de coral.

Torstein agarrou uma lâmpada e estabeleceu comunicação por sinais: - Quel


bateau?

- Maoae - foi a resposta.

A Maoae era a escuna de copra que fazia o percurso entre as ilhas. Estava a
caminho de Raroia para buscar copra. O capitão e a tripulação eram polinésios e
conheciam os recifes da entrada. Mas no escuro a corrente era traiçoeira. Por
felicidade a embarcação se achava a sotavento da ilha e o tempo estava calmo.
Porém, a correnteza fora da lagoa era bastante perigosa. A inclinação da Maoae.
se acentuando sempre mais, a tripulação se dirigiu ao bote. Fortes cabos foram
amarrados aos topos dos mastros e puxados até a terra, onde nativos os
prenderam em volta de troncos de coqueiros para impedir que a escuna virasse.
A tripulação, munida de outros cabos, postou-se próximo à abertura do recife, no
bote, com a esperança de desencalhar a Maoae quando a corrente da maré se
escoasse da lagoa. A população da aldeia lançou à água todas as canoas e
começou a pôr a salvo a carga de copra. Noventa toneladas de copra valiosa.
Sacos e mais sacos foram transportados da escuna oscilante para a terra firme.
Com a maré alta a Maoae continuava virada, rolando e batendo contra os corais,
até que principiou a fazer água. Quando o dia raiou, permanecia no recife, em
posição pior do que antes. A tripulação nada podia fazer; era inútil tentar puxar
as 150 toneladas da escuna com o bote e as canoas. Se continuasse batendo onde
se achava, acabaria espatifando-se e, se o tempo mudasse, seria levantada pela
sucção sofrendo perda total na ressaca que castigava o atol.

A Maoae não tinha rádio. Nós tínhamos. Ao mesmo tempo, era impossível vir de
Taiti uma embarcação de socorro antes que a Maoae tivesse tempo de se livrar
do naufrágio. Mas, pela segunda vez naquele mês, foi arrebatada ao recife de
Raroia a sua presa. Cerca das doze horas do mesmo dia, a escuna Tamara surgiu
no horizonte do lado de oeste. Tinha sido enviada para nos apanhar em Raroia, e
não foi pequeno o espanto da tripulação ao ver, em vez de uma jangada, os dois
mastros de uma grande escuna debatendo-se desesperadamente no recife.

A bordo da Tamara achava-se o administrador francês dos grupos Tuamotu e


Tubuai, M. Frédéric Ahnne, a quem o governador mandara de Taiti com a
embarcação ao nosso encontro. Vinham também a bordo um operador de cinema
francês e um telegrafista também francês; mas o capitão e a tripulação eram
polinésios. M. Ahnne tinha nascido em Taiti, sendo filho de franceses, e era
consumado marinheiro. Assumiu o comando da embarcação após consentimento
do capitão taitiano, que muito folgou por se ver livre da responsabilidade
naquelas águas perigosas. Enquanto a Tamara evitava um sem número de recifes
submersos e de redemoinhos, possantes cabos foram estendidos entre as duas
escunas, e M. Ahnne começou suas hábeis e perigosas evoluções, enquanto a
maré ameaçava arrastar ambas as embarcações para o mesmo banco de coral.

Na maré alta a Maoae safou-se do recife, e a Tamara rebocou-a para a água


funda. Agora, porém, a água entrava a toda pelo casco da Maoae, tendo ela de
ser puxada às pressas até os baixos da lagoa. Três dias permaneceu a Maoae à
altura da aldeia quase a soçobrar, com todas as bombas trabalhando dia e noite.
Os melhores búzios entre os nossos amigos da ilha mergulharam munidos de
chapas de chumbo e de pregos e taparam os principais rombos, de modo que a
Maoae pôde ser escoltada pela Tamara até o estaleiro de Taiti, com as bombas a
funcionar. Quando a Maoae ficou em condições de ser comboiada, M. Ahnne
manobrou a Tamara entre os baixios de coral nas lagoas e ao longo da ilha Kon-
Tiki. A jangada foi posta a reboque, e então o comandante dirigiu a rota de
regresso à abertura, com a Kon-Tiki à sirga e a Maoae atrás e tão perto que a
tripulação podia ser retirada se os rombos oferecessem perigo.

Muito triste foi o nosso adeus a Raroia. Todos quantos podiam caminhar ou
arrastar-se estavam no quebra-mar, tocando e cantando nossas canções favoritas,
enquanto o bote nos levava para a Tamara.

No centro destacava-se o espadaúdo Tupuhoe, segurando pela mão o pequeno


Haumata. O garoto chorava, e mesmo pelas faces do poderoso chefe as lágrimas
corriam. No quebra-mar não havia ninguém de olhos enxutos, mas continuaram
a cantar e tocar até muito depois que a rebentação abafou os demais sons em
nossos ouvidos.

Aquelas pessoas sinceras e fiéis que estavam em pé no ancoradouro cantando


perdiam seis amigos.

Nós, silenciosos, de pé e debruçados ao parapeito da Tamara até que os


coqueiros encobrissem o molhe e eles próprios se perdessem no mar, perdíamos
127. Ainda nos soava aos ouvidos da alma a música estranha: ”...contando-nos
os vossos casos, e contando-vos nós os nossos, deste modo estejamos sempre
juntos, mesmo quando partirdes para uma terra longínqua. Bom dia. ”

Quatro dias depois Taiti surgiu do oceano. Não como um fio de pérolas com
frondes de coqueiros, mas como denteadas montanhas azuis arremessando-se ao
céu, com farrapos de nuvens que pareciam festões a engrinaldar os picos.
Enquanto pouco a pouco nos aproximávamos, as montanhas azuis revelavam aos
nossos olhos as encostas verdejantes. Com o verde a sobrepor-se ao verde, a
luxuriante vegetação do sul ondulava estendendo-se sobre morros e fragas de um
vermelho-ferrugem, até se abismarem em profundos barrancos e vales que
pareciam correr para o oceano.

E quando a costa ficou mais próxima de nós, vimos esguios coqueiros muito
juntos em toda a extensão dos vales e ao longo da costa por trás de uma praia
maravilhosa. Taiti foi construída por antigos vulcões. Agora estavam extintos, e
os pólipos de coral haviam estendido seu recife protetor em volta da ilha para
que o mar não a carcomesse.
Certa manhã, bem cedo, metemos a dianteira da escuna pela abertura do recife e
entramos no porto de Papeete. Diante de nós surgiram agulhas de torres de igreja
e telhados vermelhos meio escondidos pela folhagem de árvores gigantescas e de
grimpas de coqueiros.

Papeete é a capital de Taiti, a única cidade da Oceania francesa. Cidade de


diversões, sede do governo e centro do tráfico do Pacífico oriental.

Quando abicamos no porto, a população de Taiti nos estava esperando, numa


pinha tão densa de gente, que parecia uma garrida parede humana. Em Taiti as
notícias se espalham como o vento, e o paepae que tinha vindo da América era
uma coisa que todo mundo queria ver.

À Kon-Tiki coube o lugar de honra ao longo do passeio da praia; o prefeito de


Papeete deu-nos as boas-vindas, e uma menininha polinésia nos brindou com um
enorme buquê de flores silvestres de Taiti, em nome da sociedade polinésia. Em
seguida algumas jovens se adiantaram e nos cingiram o pescoço com grinaldas
brancos de flores odoríferas, em sinal da boa acolhida que nos fazia Taiti, a
pérola dos mares do Sul. Havia um semblante especial do qual eu andava à
procura no meio daquela multidão: o do meu velho pai adotivo em Taiti,
Teriieroo, chefe supremo dos dezessete chefes nativos da ilha. Ele não faltou.
Grande e corpulento, e cheio da mesma vivacidade de outros tempos, emergiu
dentre a turba gritando

”Terai Mateata!” e transbordando alegria por todo o largo rosto. Ficara velho,
mas era a mesma impressionante figura de chefe.

- Você chega tarde - disse ele sorrindo - mas traz uma boa nova. O seu paepae
trouxe verdadeiramente céu azul (temi mateata) a Taiti, pois agora sabemos de
onde nossos pais vieram. Houve recepção no palácio do governo e uma festa na
Prefeitura, tendo nós recebido inúmeros convites de todos os recantos da
hospitaleira ilha.

Como em dias idos, o chefe Teriieroo deu uma grande festa em casa no vale
Papeno que eu tão bem conhecia, e, como Raroia não era Taiti, houve nova
cerimônia durante a qual foram dados nomes novos àqueles que ainda não
tinham recebido nenhum. Foram dias de completa despreocupação, passados ao
sol e ao ar livre. Tornávamos banho na lagoa, subíamos às montanhas e
dançávamos a bula na relva debaixo dos coqueiros. Os dias passaram e
tornaram-se semanas. Parecia que as semanas se tornariam meses antes que
chegasse um navio que nos levasse à pátria onde nos esperavam deveres
indeclináveis. Veio então uma mensagem da Noruega comunicando que Lars
Christensen tinha dado ordem ao navio Thor I para ir de Samoa a Taiti apanhar a
expedição e conduzi-la à América. Uma manhã, bem cedo, o grande vapor
norueguês entrou no porto de Papeete, e a Kon-Tiki foi rebocada por uma
embarcação naval francesa para o lado da sua gigantesca patrícia que,
estendendo para fora um braço colossal de ferro, ergueu sua pequena
companheira até o convés. Fortes apitos da sirene ecoaram pela ilha coberta de
coqueiros. Gente branca e morena se aglomerava no cais de Papeete, penetrando
de roldão pelo navio com presentes de despedida e coroas de flores. Nós
estávamos de pé junto ao parapeito esticando o pescoço como girafas para livrar
o queixo da pilha sempre crescente de flores.

- Se desejam voltar a Taiti - gritou o chefe Teriieroo, quando o apito ressoou


sobre a ilha pela derradeira vez - devem jogar uma coroa dentro da lagoa quando
o bote partir! Foram soltados os cabos. As máquinas roncaram e, com o rodar da
hélice, a água fez-se verde.

Deslizando de lado, nos distanciamos do cais.

Dentro em pouco os telhados vermelhos desapareciam por trás dos coqueiros.


Estes iam-se perdendo na voragem azul das montanhas que se engolfavam como
sombras no Pacifico. As ondas quebravam no oceano azul. Já não nos era dado,
inclinando-nos, atingi-las. Nuvens brancas, formadas pelos ventos alísios,
corriam pelo céu. Não estávamos mais viajando da antiga maneira. Agora
podíamos desafiar a natureza. Viajávamos em direção ao século XX, que se
achava distante, muito distante. Mas nós seis, no convés, de pé ao lado dos nove
grandes toros de balsa, estávamos todos vivos. E, na lagoa de Taiti, seis coroas
brancas boiavam solitárias, para um lado e para o outro, ao sabor das marolas da
praia.

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