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EXPEDIÇÃO KON-TlKI
Thor Heyerdahl
CAPÍTULO I
UMA TEORIA
Se, por exemplo, o leitor empreende uma viagem marítima numa jangada com
um papagaio e cinco companheiros, mais cedo ou mais tarde, inevitavelmente,
acordará numa manhã em pleno mar, talvez um pouco mais descansado que de
costume, e começará a matutar no caso.
- Bengt - disse eu, empurrando para o lado o papagaio verde que queria
empoleirar-se no diário de navegação. - Você é capaz de me dizer como foi que
viemos parar aqui?
Seus polegares subiram três ripas e ele continuou a ler. Fora da cabana três
homens trabalhavam no convés de bambu sob um sol abrasador. Seminus,
trigueiros, barbados, com riscas de sal pelas costas, sua aparência era de que
nunca tivessem feito outra coisa senão atravessar o Pacífico em jangadas, rumo
ao oeste. Eric entrou pela abertura rastejando, na mão o sextante e um maço de
papéis.
- Noventa e oito graus e quarenta e seis minutos oeste por oito graus e dois
minutos sul, boa singradura a de ontem, rapazes! Pegou meu lápis e traçou um
minúsculo círculo no mapa pendurado na parede de bambu; esse minúsculo
círculo vinha juntar-se à série de outros dezenove que descreviam uma curva
partindo do porto de Callao, na costa do Peru.
- Estão vendo, meninos? - disse Herman com orgulho - isto significa que
estamos a 850 milhas marítimas da costa do Peru.
- E que temos ainda 3.500 até alcançarmos as ilhas mais próximas - acrescentou
Knut cautelosamente.
- E para falar com inteira exatidão - disse Torstein -, estamos a 4.877m acima do
fundo do mar e a algumas quadras abaixo da lua.
Para o papagaio a coisa era indiferente; o que ele queria era arrastar com o bico o
roteiro de navegação. E o mar continuava tão vasto como antes, inalterável na
sua cor azul-escura, tendo como limite longínquo a fímbria do céu.
Tudo começara talvez no inverno anterior, no escritório de um museu nova-
iorquino. Ou talvez já havia começado dez anos antes numa ilhota do
arquipélago das Marquesas, no meio do Pacífico. Talvez desembarcássemos
agora na mesma ilha, a não ser que o vento nordeste nos mandasse mais para o
sul, na direção de Taiti e do grupo de Tuamotu. Eu podia ver em espírito
claramente a pequena ilha, com suas denteadas montanhas de um vermelho
ferrugento, a mata verde que se estendia pelas encostas abaixo em direção ao
mar, e as esguias palmeiras que pareciam sentinelas agitando as palmas ao longo
da praia. O nome da ilha era Fatuhiva. Não havia terra firme entre ela e nós no
ponto onde navegávamos, e todavia ela se achava distante milhares de milhas
marítimas. Via o apertado vale de Ouia no sítio onde ele se abria rumo ao mar, e
me recordava muito bem de como nos sentávamos ali na erma praia e,
frequentemente, à noite, ficávamos a contemplar aquele mesmo mar
interminável. Estava eu então na minha lua-de-mel e não, como agora, no meio
de piratas barbados. Andávamos colecionando todas as espécies de seres vivos,
imagens e outras relíquias de uma cultura morta. Lembro-me muito bem e em
especial de certa noite.
Naquela noite, então, estávamos sentados, como tantas vezes fazíamos, na praia
enluarada, tendo à nossa frente o oceano. Bem despertos e impregnados do
romance que nos rodeava, não houve impressão que nos escapasse.
- Coisa curiosa - comentou Liv - é não existir vagalhões como este no outro lado
da ilha.
- Tiki - disse tranquilamente o velho - era ao mesmo tempo deus e chefe. Foi
Tiki quem trouxe meus antepassados para estas ilhas onde agora vivemos. Antes
nós morávamos numa grande região para lá do mar.
Com um graveto mexeu nos tições para que não se apagassem. O ancião sentou-
se e entrou a cismar. Ele vivia os tempos passados, aos quais se achava
firmemente ligado. Cultuava seus avós e as proezas destes, remontando até a
época dos deuses. Seu anelo era reunir-se de novo a eles. O velho Tei Tetua era
o único sobrevivente de todas as extintas tribos da costa oriental de Fatuhiva. A
idade ele não a sabia, mas a pele encarquilhada, coriácea, escura como a casca
das árvores, dava-lhe a aparência de ter sido curtida no sol e ao vento durante um
século. Ele era certamente um dos poucos naquelas ilhas que ainda se
lembravam das histórias lendárias do grande deus chefe polinésio Tiki, filho do
sol, e nelas acreditava.
Foi talvez, assim, que a coisa começou. Em todo caso, assim se iniciou a série de
fatos que tiveram como resultado dar com seis de nós e um papagaio verde numa
jangada na altura da costa sul-americana.
Recordo-me como espantei meu pai e assombrei minha mãe e meus amigos
quando, de regresso à Noruega, entreguei ao Museu Zoológico da Universidade
os meus frascos de vidro com escaravelhos e peixes de Fatuhiva. Eu queria dizer
adeus à Zoologia e dedicar-me ao estudo dos povos primitivos. Haviam-me
fascinado os mistérios ainda não decifrados dos mares do Sul. Devia haver uma
solução racional para eles, e era objetivo meu identificar o lendário herói Tiki.
Nos anos que se seguiram, as vagas do mar e as ruínas da selva foram uma
espécie de sonho remoto e irreal a formar o fundo e o acompanhamento dos
meus estudos acerca dos povos do Pacífico. Se é inútil procurar interpretar os
pensamentos e as ações de um povo primitivo lendo livros e visitando museus, é
igualmente inútil ao explorador do nosso tempo tentar atingir os horizontes que
uma única estante de livros pode abranger. Obras científicas, diários da época
das mais antigas explorações e intermináveis coleções existentes em museus da
Europa e da América ofereciam opulento material a ser por mim utilizado na
solução do enigma. Desde que a nossa raça alcançou as ilhas do Pacífico, depois
do descobrimento da América, investigadores de todas as províncias do saber
têm coligido um repositório quase inesgotável de informações a respeito dos
habitantes dos mares do Sul e dos povos que vivem nas suas cercanias. Mas
nunca existiu acordo quanto à origem desses ilhéus, ou quanto à razão pela qual
esse tipo só é encontrado disperso pelas ilhas solitárias da parte oriental do
Pacífico.
Pode-se dizer com segurança que as respostas dadas a esses enigmas quase têm
igualado em número as obras que deles trataram. Especialistas em diferentes
ramos apresentaram soluções diferentes, as quais posteriormente foram postas de
lado diante de argumentos lógicos oferecidos por sábios que encaram a questão
por facetas diferentes. Houve quem, com vigor, reivindicasse para a Malaia, para
a índia, para a China, para o Japão, para a Arábia, para o Egito, para o Cáucaso,
para a Atlântida, e até para a Alemanha e para a Noruega a glória de ter sido a
pátria dos polinésios. Mas eis que surgia de repente uma dificuldade de caráter
decisivo, que punha abaixo todos os argumentos apresentados. E onde parou a
ciência principiou a imaginação. Os misteriosos monólitos da ilha de Páscoa e
todas as outras relíquias de origem desconhecida existentes nessa ilha pouco
exposta, a qual fica em completa solidão a meio caminho entre as ilhas mais
próximas e a costa sul-americana, deram ensejo a todo o gênero de especulações.
Muitos repararam que os achados da ilha de Páscoa faziam lembrar de muitas
maneiras as relíquias das civilizações pré-históricas da América do Sul. Teria
existido outrora uma ponte de terra sobre o mar, e esta haveria submergido? Não
seria a ilha de Páscoa, e todas as demais ilhas do Mar do Sul que tinham
monumentos da mesma espécie, restos que um continente submerso deixara em
relevo na superfície do oceano? Tem sido esta entre leigos uma teoria popular e
uma explicação plausível, mas os geólogos e outros investigadores não lhe dão
importância. Demais, os zoólogos provam facilmente, pelo estudo de insetos e
caracóis das ilhas dos mares do Sul, que, durante toda a história da humanidade,
essas ilhas estiveram isoladas umas das outras e dos continentes que as rodeiam
tão completamente como o estão hoje.
Sabemos, portanto, com absoluta certeza, que a primitiva raça polinésia deve ter
vindo em alguma época, espontaneamente ou não, ao sabor das águas ou com a
força das velas de uma embarcação qualquer, até essas ilhas longínquas. E uma
observação mais atenta dirigida aos habitantes dos mares do Sul mostra que a
vinda deles não pode datar de muitos séculos.
Pois, se bem que os polinésios vivam dispersos sobre uma área de mar que tem
quatro vezes o tamanho de toda a Europa, contudo não lograram produzir
línguas diferentes nas diferentes ilhas. Há milhares de milhas marítimas, do
Havaí no norte à Nova Zelândia no sul, de Samoa no oeste à ilha de Páscoa no
leste, e no entanto todas estas tribos isoladas falam dialetos de uma língua
comum a que demos o nome de polinésio. A escritura era desconhecida em todas
as ilhas, existindo todavia algumas tabuinhas de madeira nas quais se viam
hieróglifos incompreensíveis que os naturais conservavam na ilha de Páscoa,
embora nem eles mesmos nem ninguém pudesse decifrá-los. Tinham, porém,
escolas, e sua disciplina mais importante era o estudo poético da história, pois na
Polinésia história era o mesmo que religião. Tinham o culto dos antepassados;
veneravam seus chefes mortos a partir da época de Tiki, sendo este tido como
filho do Sol. Em quase cada ilha os homens instruídos eram capazes de citar de
cor, a qualquer momento, os nomes de todos os chefes da ilha até o tempo em
que ela começara a ser habitada. E para auxiliar a memória usavam muitas vezes
um complicado sistema de nós em cordéis retorcidos, como faziam os incas no
Peru. Investigadores modernos recolheram todas estas genealogias locais nas
diversas ilhas, e verificaram que concordam umas com as outras, com espantosa
justeza, tanto nos nomes como no número de gerações. Deste modo, atribuindo-
se a uma geração polinésia uma média de vinte e cinco anos, descobriu-se que as
ilhas dos mares do Sul não foram habitadas antes do ano 500 da era cristã,
aproximadamente. Nova onda cultural com uma nova série de chefes mostra
que, bem mais tarde, outra leva de imigrantes chegou às mesmas ilhas mais ou
menos em 1100. De onde podiam ter vindo essas levas tardias de imigrantes?
Mui poucos investigadores parecem ter levado em conta o fator decisivo de que
o povo que desembarcou nas ilhas em data tão tardia se achava na idade da pedra
talhada.
Assim, não somente minhas suspeitas mas também minha atenção se afastaram
cada vez mais do Velho Mundo, onde tantos haviam procurado e nenhum havia
encontrado nada, e se voltaram para as civilizações indígenas da América, tanto
as conhecidas como as desconhecidas, as quais ninguém até então tinha levado
em conta. E na costa leste mais próxima, onde hoje a república sul-americana do
Peru se estende do Pacífico até as montanhas, não havia falta de vestígios, desde
que alguém os procurasse. Ali vivera outrora um povo desconhecido que havia
fundado uma das mais estranhas civilizações do mundo, até que, subitamente, há
muito, esse povo desaparecera como que varrido da face da terra.
Mas por toda a Polinésia encontrei indicações de que a pacífica raça de Kon-Tiki
não logrou conservar as ilhas só para si por muito tempo. I Consoante essas
indicações, barcaças guerreiras do tamanho dos navios dos vikings, e amarradas
duas a duas, haviam transportado por mar indígenas do nordeste para Havaí e
mais ao sul para todas as demais ilhas. Estes misturaram seu sangue com o da
raça de Kon-Tiki, trazendo nova civilização à ilha de regime monárquico. Foi
este o segundo povo da idade da pedra talhada, que veio para a Polinésia em
1100, ignorando a cerâmica, a existência dos metais, e sem rodas nem teares
nem qualquer cultivo de cereais.
Veio a paz. E um dia minha teoria estava completa. Eu devia ir à América e pô-
la à prova.
CAPÍTULO II
NASCE UMA EXPEDIÇÃO
Este foi o inicio do caso, ao pé de uma fogueira, numa ilha dos mares do Sul,
onde um velho filho do lugar, sentado no chão, nos narrou lendas e histórias de
sua tribo. Anos mais tarde, achava-me sentado em companhia de outro velho,
dessa vez no escuro escritório de um dos pavimentes superiores de vasto museu
de Nova Iorque.
Nas paredes, estantes pejadas de livros. Alguns deles tinham sido escritos por
um homem e sabe Deus se haviam sido lidos por dez! O velho, que tinha lido
todos aqueles livros e escrito alguns deles, estava sentado à mesa de trabalho.
Seus cabelos eram brancos, e ele mostrava bom humor. Agora, porém, eu com
certeza lhe pisara nos calos, pois, firmando-se agitado nos braços da cadeira,
tinha o ar de quem se sentia interrompido no melhor ponto de um jogo de
paciência.
Papai Noel teria feito o mesmo ar daquele velho, se alguém ousasse afirmar que
no ano seguinte o Natal ia cair no dia de São João.
- Mas o senhor ainda não leu os meus argumentos - insisti, fazendo com a cabeça
um esperançoso movimento na direção do manuscrito que estava em cima da
mesa.
- E bem verdade que a América do Sul foi a pátria de algumas das mais curiosas
civilizações da antiguidade, e que não sabemos nem quem eram seus
representantes nem para onde foram quando os incas passaram a dominar ali.
Uma coisa, porém, sabemos ao certo, e é que nenhum povo da América do Sul
se passou para as ilhas do Pacífico.
- E isto - tornou ele .- Todas as pessoas que você procurou pensam que se trata
de uma ideia passageira. Como sabe, aqui na América aparece gente com cada
ideia extravagante!
- Veja isto - disse ele. - Meu último trabalho sobre desenhos de pássaros em
bordado rústico chinês. Gastei nisto sete anos, mas foi imediatamente aceito para
publicação. O que hoje querem é obra detalhada.
Carl tinha razão. Resolver, porém, todos os problemas do Pacífico sem lançar
luz sobre ele de todos os lados parecia-me o mesmo que organizar um quebra-
cabeça dando apenas uma parte dos elementos. Tiramos a mesa, eu o ajudei a
lavar e enxugar a vasilha.
- E da Universidade de Chicago não veio nada de novo? -Não.
- Mas que foi que disse hoje o seu velho amigo do museu?
Eu falei com fleuma: - Não mostrou interesse. Disse que uma vez que os
indígenas dispunham apenas de jangadas abertas, era descabido considerar a
possibilidade de haverem sido eles os descobridores das ilhas do Pacífico. O
homenzinho de repente se pôs a enxugar com fúria o prato.
- Sim - disse ele afinal. - g falar a verdade, a mim também me parece uma
objeção de ordem prática à sua teoria.
Olhei com tristeza para o pequeno etnólogo que eu julgara um decidido aliado
meu.
- Por um lado acho que você têm razão, mas por outro me parece
incompreensível. Meu trabalho sobre desenhos vem em apoio de sua teoria.
- Carl - volvi - eu estou tão certo que os indígenas atravessaram o Pacífico nas
suas jangadas, que ando com vontade de construir eu mesmo uma jangada como
a deles e atravessar o mar para provar que é possível.
Meu amigo tomou aquilo como gracejo e riu-se, não sem mostrar certo pavor
diante de tal ideia.
O homem não sabia o que dizer e simplesmente me fitou com ar estranho, como
se esperasse de mim um sorriso, para mostrar que eu estava gracejando.
Meu aluguei vencia naquela semana. Ao mesmo tempo, uma carta do Banco da
Noruega me informava que eu já não poderia obter dólares: haviam sido
impostas restrições ao câmbio.
Tinha flutuado numa, à mercê das ondas e do vento, durante três semanas,
quando um torpedo alemão pusera a pique seu navio, em pleno oceano Atlântico.
- Entretanto, o senhor não pode governar uma jangada acrescentou o meu
informante. - Ela joga para um lado e para o outro, para a frente e para trás, ao
capricho do vento. Na biblioteca, fui desenterrar relatórios deixados pelos
primeiros europeus que haviam atingido a costa do Pacífico na América do Sul.
Não faltavam esboços ou descrições das enormes jangadas dos indígenas.
Portanto, se acontecia alguma coisa, podiam ser recolhidos pela jangada que
vinha atrás.
Ainda que você leve consigo um receptor para usá-lo num apuro, não cuide que
vai ser fácil encontrar uma jangadazinha entre as ondas a milhares de milhas da
terra. Numa tempestade você pode ser cuspido da jangada e lançado ao fundo
muito antes que alguém consiga aproximar-se de você. E melhor você esperar
aqui até que alguém tenha tempo de ler seu manuscrito. Escreva de novo e mexa
com essa gente; se o não fizer, pior para você.
- Então venha ficar aqui conosco. De qualquer maneira, como imagina organizar
uma expedição partindo da América do Sul sem dinheiro?
- É mais fácil despertar o interesse dos outros com uma expedição do que com
um manuscrito que ninguém lê.
- Vou destruir um dos mais poderosos argumentos contra a teoria, sem falar na
circunstância de que a ciência irá dar alguma atenção ao caso.
- As crianças saíram para jogar croquet, e naquele dia não discutimos mais o
assunto.
Depois da minha viagem às ilhas Marquesas, fora eleito sócio efetivo do clube, e
como sócio mais novo raramente perdia uma reunião quando me encontrava na
cidade. De modo que, quando, naquela ocasião, entrei no clube numa noite
chuvosa de novembro, fiquei bastante surpreendido ao encontrar o salão num
estado que não era o habitual.
Ele e um amigo esquimó conseguiram chegar à praia dessa vez num caiaque que
lhes veio em socorro. Estava certo de que nenhum brilhante inventor moderno
era capaz de, no silêncio de seu laboratório, excogitar qualquer coisa melhor do
que aquilo que a experiência de milhares de anos tinha ensinado os esquimós a
usarem nas suas próprias regiões.
Todo aquele material era ainda objeto de meus pensamentos durante o almoço, à
mesa do Lar dos Marinheiros no dia seguinte, quando um moço bem vestido e de
conformação atlética veio vindo com uma bandeja e se sentou à mesma mesa em
que eu estava.
- Quando?
- O mais breve possível. Se me demorar muito por aqui, virão as grandes rajadas
do Antártico e nas ilhas também começará a quadra dos furacões. Devo deixar o
Peru dentro de poucos meses, porém preciso antes arranjar dinheiro e organizar
o negócio todo.
- Pensei em ter comigo seis homens; isto sempre representa alguma companhia a
bordo, além de ser o número preciso para os quatro quartos de revezamento no
governo da embarcação. Meu companheiro ficou uns momentos como que a
ruminar uma ideia no seu íntimo e depois explodiu com ênfase: - Diabo! Eu
gostaria de ir também! Poderia pesquisar medidas e provas técnicas. É claro que
o amigo terá de amparar sua experiência com acuradas medidas de ventos e de
correntes de ondas. Lembre-se que vai cruzar vastos espaços de oceano
virtualmente desconhecidos porque ficam fora das rotas dos navios. Uma
expedição como a sua pode obter interessantes investigações hidrográficas e
meteorológicas. Eu podia fazer bom uso da termodinâmica.
Acerca daquele homem que estava ali à minha frente eu nada podia saber, a não
ser que tinha semblante bom e amigo - o que já era alguma coisa.
Alguns dias depois, levei Herman como meu hóspede ao Clube de Exploradores.
Lá demos com o explorador do Polo, Peter Freuchen.
Com o caloroso alento de Freuchen, o plano ganhou tal vivacidade que deixou
de ser segredo, sendo logo divulgado pela imprensa escandinava. Já na manhã
seguinte bateram com força à minha porta no Lar dos Marinheiros; chamavam-
me ao telefone! lá embaixo, no corredor. O resultado da conversa foi que
naquela mesma noite eu e Herman estávamos tocando a campainha de um
apartamento situado num bairro elegante da cidade. Fomos recebidos por um
guapo moço, de chinelas de pelica, que usava chambre de seda sobre terno azul.
Dava quase impressão de languidez e, tendo um lenço perfumado diante do
nariz, se desculpava alegando defluxo. Não obstante, sabíamos que aquele jovem
se tornara famoso na América pelas suas façanhas como aviador durante a
guerra. Além do dono da casa, visivelmente calmo, estavam presentes dois
jovens jornalistas, vibrantes de atividade e de ideias. Reconhecemos num deles
um hábil correspondente.
Enquanto era servido um bom uísque, o dono da casa nos explicou seu interesse
pela expedição. Ofereceu-se para levantar o necessário capital, se eu escrevesse
artigos para os jornais e fizesse conferências pelo país na volta. Por fim,
chegamos a um acordo e erguemos um brinde à auspiciosa colaboração entre os
patrocinadores da expedição e os que nela iam tomar parte. Dali por diante todos
os nossos problemas econômicos estariam resolvidos, uma vez que deles se
encarregariam os patrocinadores, o que nos tranquilizou bastante.
Cumpria-nos, a mim e a Herman, imediatamente providenciar a tripulação e a
equipagem, construir uma jangada e fazer-nos ao largo antes que principiasse a
época dos furacões.
Um grupo de homens que devia viajar juntos, a bordo de uma jangada, devia ser
escolhido com cuidado. Do contrário, haveria rebelião e outras complicações
depois de um mês de isolamento no mar. Eu não queria marinheiros para
dirigirem a jangada; do manejo de uma jangada eles entendiam mais ou menos
tanto quanto nós, e, levado a bom termo o empreendimento não queria que
depois viessem a dizer que o bom êxito era talvez devido ao fato de nós sermos
melhores marujos do que os antigos construtores de jangada do Peru. Contudo, a
bordo precisávamos de um homem que afinal soubesse usar o sextante e marcar
a rota numa carta que servisse de base para todos os relatórios científicos.
- De nenhum modo. Trata-se de uma precaução sem nenhum efeito na sua teoria,
enquanto não mandarmos nenhum S.O.S. pedindo socorro. E teremos
necessidade do aparelho para transmitir observações sobre o tempo e outras
comunicações. Ao mesmo tempo, para nós será inútil receber avisos de próximas
rajadas, porquanto não há transmissões para aquela parte do oceano e, que
houvesse, de que nos serviriam na jangada?
- O curioso é que - comentei - por ter entrado em contato, pelo rádio, sobre
grandes distâncias mediante aparelhos minúsculos, fiz os melhores
relacionamentos. Durante a guerra puseram-me numa seção de. Cada pessoa tem
seus afazeres, mas é certo que escreverei a Knut Haugland e a Torstein Raaby
sobre o caso.
- Você os conhece?
Reinava então por aquelas bandas verdadeiro inverno ártico, e a aurora boreal
bruxuleava no firmamento estrelado, que se arqueava sobre nós, escuro como
breu, dia e noite. Quando penetramos nas pilhas de cinza da área abrasada de
Finmark, roxos de frio e vestidos de peles, um tipo alegre de olhos azuis e cabelo
louro espetado saiu de rojo de uma choupanazinha nas montanhas. Era Torstein
Raaby. Ele primeiramente fugira para a Inglaterra onde frequentou um curso e
depois se passara clandestinamente à Noruega, nas proximidades de Tromso.
Escondera-se com um aparelhozinho transmissor perto do couraçado Tirpitz e
durante dez meses enviara comunicações diárias à Inglaterra acerca de tudo
quanto se passava a bordo. Mandava as comunicações à noite ligando o
transmissor secreto a uma antena receptora instalada por um oficial alemão. Suas
comunicações regulares guiaram os bombardeiros ingleses que afinal meteram a
pique o Tirpitz.
Torstein fugiu para a Suécia, e de lá novamente para a Inglaterra. Foi então que
saltou de paraquedas, com um novo aparelho receptor, atrás das linhas alemãs,
junto aos ermos de Finmark.
Quando os alemães se retiraram, percebeu que se achava atrás das nossas linhas
e saiu do esconderijo para nos ajudar com o pequeno receptor, visto que nossa
principal estação tinha sido destruída por uma mina. Sou capaz de apostar que
tanto Knut como Torstein atualmente estão fartos de ficar à toa na pátria, e
teriam gosto em fazer uma viajata numa jangada de pau.
Quando, no dia seguinte pela manhã, voltamos para buscar o documento, ele se
levantou de golpe e disse que seria melhor ir conosco pessoalmente. Partimos no
carro do coronel a caminho do edifício do Pentágono, o maior do mundo, onde
se acha instalado o Ministério da Guerra. O coronel e Bjorn iam no banco da
frente, envergando a melhor farda, enquanto que Herman e eu nos sentáramos
atrás e, pelo para-brisa, espiávamos o gigantesco prédio que se ostentava diante
de nós.
A ciclópica construção, com seus trinta mil funcionários e quase vinte e seis
quilômetros de corredores, ia formar a moldura da iminente ’conferência da
jangada’ com militares de alta patente.
Nunca, nem antes nem depois, a jangadazinha nos pareceu tão insignificante, a
Herman e a mim.
O coronel alto ia à frente mostrando todas aquelas boas coisas, e, depois de uma
volta completa pelas seções competentes, funcionários do estado-maior tinham
tomado nota dos diversos objetos de que iríamos precisar e respectivas
quantidades.
Parecia-me haver ganho a batalha e meu único desejo agora era correr para o
hotel a fim de, comodamente deitado na cama, pensar com calma no que me
cumpria fazer.
Nisso o amável coronelão diz-me de repente: - Bom. Agora vamos ter com o
patrão, pois a ele é que cabe resolver se lhes podemos dar estas coisas.
Caiu-me o coração aos pés. Com que então tínhamos de gastar de novo o nosso
latinório? E quem podia saber que espécie de homem era o ’patrão?
Verificamos que o patrão era um pequeno-oficial, de modos muito sisudos. Lá
detrás da mesa de trabalho ia-nos examinando com seus penetrantes olhos azuis
enquanto entrávamos no escritório. Fez-nos sentar.
Ainda me achava sentado, meio ébrio de prazer, no carro que nos reconduzia ao
hotel, quando Herman, a meu lado, se pôs a cacarejar uns risinhos esquisitos.
- Não - disse ele rindo abertamente - mas estive a calcular que as provisões que
nos foram concedidas incluem 648 caixotes de abacaxi, a fruta da minha
predileção.
Há centenas de coisas que fazer, e quase todas ao mesmo tempo, quando seis
homens, uma jangada e sua carga têm de reunir-se em determinado ponto da
costa do Peru. E nós tínhamos três meses de prazo, mas não dispúnhamos de
nenhuma lâmpada de Aladim.
Voamos para Nova Iorque com uma apresentação fornecida pelo escritório de
ligação e fomos procurar o Professor Behre na Universidade de Colúmbia. Ele
era chefe do Comitê de Pesquisas Geográficas do Departamento da Guerra, e a
ele se devem as providências que permitiam a Herman ter finalmente todos os
valiosos instrumentos e aparelhos destinados a medidas científicas.
Tudo o mais podia parecer obscuro, mas uma coisa era muito clara.
Seu exemplo encontrou vários seguidores. Logo o empréstimo privado tomou tal
vulto que nos dissipou as dificuldades sem ser preciso o auxilio de agentes ou de
outros. Devíamos voar para a América do Sul e encetar a construção da jangada.
As antigas jangadas peruanas eram feitas de pau-de-balsa, que, quando seco, é
mais leve que cortiça. A balsa dá bem no Peru, mas somente além dos Andes.
Assim sendo, os navegadores da época dos incas subiam beirando a costa até o
Equador, onde derribavam as gigantescas balsas bem abaixo, na orla do Pacífico.
Nós pretendíamos fazer o mesmo.
Os problemas criados por uma viagem nos tempos de hoje são diferentes dos que
existiam na época dos incas. Acham-se à nossa disposição automóveis e
aeroplanos e agências de turismo, mas, para contrabalançar essas facilidades,
temos também uma coisa chamada fronteiras, com guardas de botões dourados
que põem em dúvida o álibi do interessado em viajar, lhe remexem na bagagem
e assinalam o peso em formulários próprios, se é que ele tem sorte suficiente
para o deixarem entrar. Foi o medo desses homens de botões dourados que nos
aconselhou a não desembarcar na América do Sul com caixotes e malas cheias
de objetos estranhos, tirar o chapéu e pedir cortesmente em mau espanhol
permissão para entrar no país e fazer-nos de vela numa jangada.
desejo que tinha desde a infância de tocar com a mão uma palmeira, enquanto eu
tornava barrigadas de salada de frutas, resolvemos ir negociar o pau-de-balsa.
Infelizmente, a coisa era mais fácil de dizer do que de fazer. Podíamos, é claro,
comprar pau-de-balsa em quantidade, mas não em toros inteiros como
queríamos. Já haviam passado os dias em que as balsas eram acessíveis na costa.
A última guerra pusera-lhes fim; as árvores tinham sido derribadas aos milhares
e embarcadas em navios para as fábricas de aeroplanos, por causa da extrema
leveza da madeira.
Informaram-nos que o único lugar onde havia enormes balsas era na mata, no
interior do sertão.
- Meu irmão tem uma vasta plantação de balsa - disse Dom Gustavo. - Chama-se
Dom Federico e reside em Quevedo, pequena cidade do sertão. Ele é capaz de
lhes arranjar tudo que os senhores precisam logo que pudermos entrar em
contato com ele, depois das águas.
Agora é inútil, por causa do estado em que fica aquela zona do pais na época das
chuvas.
Se Dom Gustavo dizia que era inútil, todos os entendidos em balsa no Equador
diriam o mesmo. De modo que estávamos ali em Guayaquil sem madeira para a
jangada e impossibilitados de ir às matas cortar as árvores nós mesmos, a não ser
meses depois, quando já seria demasiado tarde.
- Alguns deles são degoladores profissionais - disse Jorge com voz cavernosa, ao
perceber que Herman, impassível, se servia de mais bife e vinho.
- Pensam que exagero? - prosseguiu ele em voz baixa. - Mas, embora seja
rigorosamente proibido, ainda há gente neste país que ganha a vida vendendo
cabeças humanas. É impossível impedi-lo, de modo que até hoje os índios das
matas cortam a cabeça de seus inimigos de outras tribos nômades. Despedaçam
o crânio e retiram tudo que ele contém e enchem de areia quente a pele vazia da
cabeça, de sorte que esta se contrai toda ficando reduzida a pouco mais que a
cabeça de um gato, sem perder a forma nem as feições. Estas cabeças encolhidas
de inimigos já foram, em outros tempos, valiosos troféus; atualmente não são
mais que artigos raros do câmbio negro. Intermediários mestiços procuram fazê-
los chegar às mãos dos compradores no litoral, os quais as vendem a turistas por
preços fabulosos.
Jorge olhou para nós, triunfante. Mal sabia ele que, naquele mesmo dia, eu e
Herman tínhamos sido atraídos ao cubículo de um carregador, onde nos foram
oferecidas duas cabeças dessas a 1.000 sucres cada uma. Hoje em dia muitas
dessas cabeças não são legítimas, não sendo mais que cabeças de macacos, mas
as duas que nos mostraram eram bem autênticas, de puros índios, e tão iguais a
uma cabeça humana natural que os traços mais insignificantes estavam
conservados. Eram cabeças de um homem e de uma mulher, do tamanho de duas
laranjas; a mulher era até bonita, conquanto apenas as pestanas e os longos
cabelos negros houvessem conservado seu tamanho natural. Arrepiei-me com tal
ideia, mas emiti minhas dúvidas sobre se haveria desses degoladores a oeste das
montanhas.
- Quem pode lá saber? - disse Jorge, hesitante. - E que diria o senhor se seu
amigo desaparecesse e a cabeça dele em miniatura fosse posta à venda? Foi o
que aconteceu uma vez com um amigo meu - acrescentou, encarando-me
inflexivelmente.
- Conte-nos como foi isso - disse Herman, mastigando bife mais devagar e
sentindo o gosto visivelmente aguado. Cuidadosamente pus de lado o garfo e
Jorge narrou sua história. Há tempos vivia ele com a mulher num posto
avançado da selva, bateando ouro e comprando todo ouro de outros bateadores.
O casal tinha, na ocasião, um amigo nativo do lugar, que trazia com regularidade
sua cota de ouro e a barganhava por outros objetos. Um dia esse amigo foi
assassinado na floresta. Jorge seguiu a pista do criminoso e ameaçou matá-lo
com um tiro. Ora, o assassino era um dos tais suspeitos de venderem cabeças
humanas em miniatura, e Jorge prometeu poupar-lhe a vida se ele lhe entregasse
imediatamente a cabeça. No mesmo instante o indivíduo exibiu a cabeça do
amigo de Jorge, agora do tamanho do punho de um homem. Jorge quase ficou
fora de si ao rever o amigo, que era o mesmíssimo, a não ser que se reduzira
àquele ponto.
Muito comovido, levou para casa a cabecinha e mostrou-a à sua mulher. Ao vê-
la, esta desfaleceu, e Jorge teve de esconder o amigo dentro de uma mala. Mas
havia tanta umidade na mala que a cabeça se cobriu de camadas de mofo,
obrigando Jorge a tirá-la dali de vez em quando e pô-la a secar ao sol. Amarrou-
a jeitosamente pelos cabelos num coradouro, mas a mulher de Jorge desmaiava
toda vez que a via. Um dia um ratinho conseguiu entrar na mala e deixou o
amigo muito maltratado. Jorge, penalizado, enterrou-o com todas as
formalidades num buraco aberto ao ar livre. Enfim, concluiu Jorge, tratava-se de
um ser humano.
Penetramos num mundo que jamais havíamos sonhado. Era o próprio mundo
montanhoso dos índios - a leste do sol e a oeste da lua - fora do tempo e além do
espaço.
Seguindo o percurso dado, fomos descendo encostas castigadas pelo sol e sem
uma moita ou árvore, até alcançarmos vales ermos e arenosos, onde só
medravam cactos, para afinal subirmos em linha reta até a eminência. Em volta
do cume viam-se campos de neve, e o vento frio era tão cortante que tivemos de
afrouxar a marcha para não nos enregelarmos de vez. Caindo aos pedaços e
metidos em camisas geladas, suspirávamos pelo ardor da selva.
Fomos colhidos pela corrente e rodopiamos com ímpeto rio abaixo, enquanto os
homens, empunhando as varas, a intervalos e lugares certos mantinham a
jangada numa rota diagonal através da corrente, superando-a, e afinal, em água
menos revolta, passando à outra margem. Foi esse nosso primeiro contato com o
pau-de-balsa e a primeira viagem numa prancha dessa madeira. Trouxemos a
jangada à terra, deixando-a em segurança na margem alcançada, e nos metemos
triunfalmente no jipe a caminho de Quevedo. Duas filas de casas de madeira
alcatroada, com urubus imóveis nos telhados de palmeira, formavam uma
espécie de rua, e era isto o lugar, sem tirar nem pôr. Os habitantes largaram o
que quer que estivessem carregando e, pretos e morenos, moços e velhos
apareceram em chusma nas portas e janelas. Aquela turba ameaçadora e tagarela
arremessou-se ao encontro do jipe. Subiram nele, enfiaram-se debaixo dele,
rodearam-no.
Sim, dizia ele, é claro que conhecia desde criança jangadas feitas de pau-de-
balsa. Há cinquenta anos, quando vivia perto do mar, os indígenas do Peru ainda
costumavam viajar ao longo da costa em enormes jangadas feitas de pau-de-
balsa para vender peixe em Guayaquil. Podiam trazer até duas toneladas de
peixe seco numa cabana de bambu no centro da jangada, ou levavam a bordo
mulheres, crianças, cães e galinhas. Agora, com as chuvas, não seria nada fácil
achar dessas colossais balsas como as que eles tinham usado em suas jangadas,
porquanto a água dos charcos e a lama já haviam tornado impossível chegar-se
até a plantação de balsas na floresta, mesmo a cavalo. Entretanto, Dom Federico
faria o que estivesse a seu alcance; podia ainda haver uma ou outra árvore na
floresta perto do bangalô, e não precisaríamos de muitas.
Quase à boca da noite, a chuva estiada por algum tempo, fomos dar uma volta
para ver as mangueiras que circundavam o bangalô. No mesmo lugar, Dom
Federico tinha todas as qualidades imagináveis de orquídeas silvestres,
pendentes dos ramos, servindo-lhes de vasos quengas de coco. Essas plantas
raras, diferentes das orquídeas comuns, exalavam admirável perfume. Herman
estava se inclinando para poder aspirar melhor o perfume de uma delas, quando
uma coisa parecida com uma comprida e fina enguia cintilante surdiu de entre as
folhas acima de sua cabeça. Um golpe fulminante do chicote de Ângelo atirou ao
solo uma agitada cobra. Mais alguns segundos e o réptil estava com o pescoço
pregado à terra por meio de uma forquilha que daí a pouco lhe esmagou a
cabeça.
- Mortal - disse Ângelo, exibindo duas recurvas presas cheias de veneno, para
mostrar convincentemente o que queria dizer. Agora, nos parecia enxergar
serpentes venenosas emboscadas na folhagem por toda parte. Por isso preferimos
entrar cautelosamente em casa com o troféu de Ângelo pendendo inerte de uma
vara. Herman sentou-se para tirar a pele do ofídio. Dom Federico estava
contando histórias fantásticas de cobras venenosas e de jiboias colossais quando,
de repente, reparamos na parede a sombra de dois enormes escorpiões do
tamanho de lagostas. Atiraram-se um contra o outro, e com as tenazes
empenharam-se numa luta de vida e morte, virando para cima a parte traseira
mantendo o venenoso ferrão da cauda curvado e já pronto para o golpe fatal.
Dormi bem, mas acordava pensando em bichos venenoso,” cada vez que um
morcego guinchava com mais ruído ou uma lagartixa passava perto demais do
meu travesseiro. No dia seguinte nos levantamos cedo para ir à procura de
balsas.
- Convém sacudirmos nossas roupas - disse Agurto, e ainda não acabara de falar
quando um escorpião lhe caiu da manga da camisa, enfiando-se, num abrir e
fechar de olhos, numa frincha do soalho.
Logo depois de nascer o sol, Dom Federico mandou seus homens a cavalo em
todas as direções para procurarem balsas acessíveis, ao longo dos caminhos. Nós
três, Dom Federico, Herman e eu, formamos nosso grupo, e não tardamos a
achar caminho para a clareira onde havia uma anosa árvore gigantesca, de cuja
existência Dom Federico sabia.
Indo já alto o dia, Ku permanecia de pé como um galo sobre uma perna só,
estremecendo debaixo dos golpes; pouco depois cambaleou e tombou com
tremendo estalido sobre as árvores vizinhas, arrastando na pesada queda
enormes galhos de árvores menores. Tínhamos arrancado os ramos do tronco e
íamos começar a tirar a casca :em ziguezague à maneira indígena, quando
Herman de repente deixou cair o machado e deu um pulo para o ar como se
estivesse executando uma dança guerreira da Polinésia, com a mão agarrada à
perna. Da calça caiu-lhe uma formiga brilhante do tamanho de um escorpião e
com longo dardo na cauda. Seu crânio devia ser como a tenaz de uma lagosta,
porque foi quase impossível esmigalhá-lo no chão com o salto do calçado.
Lá estava a selva como uma sólida muralha ao longo das margens, de um lado e
de outro.
Correu apenas até se ver a salvo e então sentou-se. Sua cor brilhante era azul e
verde. Ao passarmos, encarou-nos com olhos gélidos de cobra. Mais tarde
passamos por um outeiro coberto de feto, em cujo topo estava deitado o maior
iguana de todos. Parecia a silhueta de um dragão chinês com franjas, esculpido
em pedra, imóvel ali contra o céu, de cabeça e peito erguidos. Nem sequer
voltou a cabeça ao descrevermos a curva debaixo do outeiro, desaparecendo na
selva.
Mais abaixo sentimos fumaça e passamos por diversas cabanas cobertas de palha
que se achavam em clareiras ao longo da margem. Nós na jangada éramos alvo
da atenção de pessoas que estavam em terra e tinham ar sinistro, caldeamento
pouco agradável de índio, negro e espanhol. As embarcações que usavam,
grandes pirogas, ficavam amarradas na margem. Tendo chegado a hora do
repasto, rendemos nossos amigos nos remos de direção enquanto eles frigiam
peixe num fogareirinho regulado com barro úmido. Também faziam parte dos
pratos de bordo ovos, frango assado e frutas meridionais, enquanto os toros de
madeira se transportavam a si próprios e a nós, a boa velocidade, através da
selva, na direção do mar. Que importância tinha agora que a água molhasse e
jorrasse em torno de nós? Quanto mais chovia, mais rápida era a correnteza.
Quando as trevas caíram sobre o rio, instalou-se na margem uma orquestra
torturante para os ouvidos. Rãs e sapos coaxavam, grilos cricrilavam e
mosquitos zumbiam num arrastado coro de muitas vozes. De vez em quando o
grito agudo de um gato selvagem vibrava na escuridão, logo seguido de outro e
ainda de outros, soltados por aves que o susto causado pelos animais noctívagos
da selva punha em fuga. Uma vez ou duas vimos o brilho de uma fogueira em
choça longínqua e, de caminho, ouvíamos vozes humanas esganiçadas e latidos
de cães. Mas, na maior parte do tempo, sentíamo-nos sós a ouvir a orquestra da
selva sob as estrelas. Então o sono e a chuva nos impeliam para dentro da cabana
de folhas, onde íamos dormir mantendo as pistolas nos coldres, prontos para
qualquer eventualidade.
Em Guayaquil nos separamos Herman e eu. Ele ficou na foz do Guaias, para
deter os toros de balsa que vinham vogando. Daí tinha de levá-los como carga
num vapor costeiro, até o Peru, onde ia dirigir a construção da jangada e fazer
uma cópia fiel das vetustas embarcações indígenas. Quanto a mim, tornei o avião
de carreira que se dirigia para Lima, capital do Peru, a fim de procurar local
adequado à construção da jangada. O aeroplano subiu a grande altura
perlongando a costa do Pacífico, tendo a um lado as desertas montanhas do Peru
e do outro o cintilante oceano muito longe, abaixo de nós. Era aqui que nos
faríamos ao mar a bordo da jangada. Visto de tais eminências, o oceano se
afigurava infindo. Céu e mar se confundiam num horizonte longínquo,
indefinível, lá para as bandas do ocidente, e eu não me podia livrar da ideia de
que ainda para lá daquele horizonte muitas centenas de planícies oceânicas
semelhantes se curvavam em torno de um quinto da terra, antes de haver algum
outro continente, na Polinésia. Tentei lançar meus pensamentos algumas
semanas adiante, quando estaríamos vogando numa insignificante jangada sobre
aquele vastíssimo campo azul lá embaixo, mas depressa afugentei o pensamento,
porquanto me dava a mesma desagradável impressão que eu sentiria se me visse
forçado a saltar de paraquedas.
Eu me sentiria feliz se pudesse ajudá-lo, mas a ordem tem de vir por intermédio
do ministro do Exterior. Não posso deixar que estrangeiros penetrem na área
naval nem facultar-lhes o uso do estaleiro como fosse uma coisa muito natural.
Dirija-se por escrito ao ministro do Exterior, e felicidades!
A Noruega não tinha legação local no Peru, não podendo, portanto, o nosso
prestimoso Cônsul-Geral Bahr levar-me senão até os consultores do Ministério
do Exterior. Receei que o negócio houvesse chegado a um ponto terminal. A
carta do Dr. Cohen ao presidente da República podia me ser útil agora. Ai, por
intermédio do ajudante-de-ordens, solicitei uma audiência com Sua Excelência,
Dom José Bustamante y Rivero, presidente do Peru. Um ou dois dias depois
comunicaram-me que eu devia estar em Palácio às doze horas.
Lima é uma cidade moderna com uns 500.000 habitantes, e acha-se esparramada
sobre verde planície, no sopé das montanhas desertas. Pela sua arquitetura, e
graças não menos a seus jardins e pomares, é certamente uma das mais belas
capitais do mundo tendo um pouco da Riviera moderna e da Califórnia,
salpicadas aqui e ali da velha arquitetura espanhola. O palácio presidencial fica
no centro da cidade e é fortemente guardado por sentinelas armadas que se
trajam de cores alegres. Uma audiência no Peru é artigo de luxo, e pouca gente
terá visto o presidente, a não ser na tela de cinema. Soldados portando brilhantes
bandoleiras me escoltaram escada acima até o fim do longo corredor; aí meu
nome foi tomado e registrado por três civis que me introduziram, por uma
descomunal porta de carvalho, na sala que continha uma mesa comprida e duas
filas de cadeiras. Um homem de branco me recebeu, mandou-me sentar e sumiu.
Momentos depois, abriu-se uma grande porta e eu fui introduzido numa sala
muito mais bonita, onde uma personagem imponente, em uniforme impecável,
se adiantou ao meu encontro.
Pedi desculpas pelo equívoco e disse que não era do aeródromo que eu estava
requerendo franquia, mas do porto naval. O general riu-se e explicou que só
havia sido chamado como intérprete. A teoria foi sendo traduzida aos poucos
para o presidente, que escutava com atenção e fazia atiladas perguntas mediante
o Gen. Roveredo. Por fim disse: - Se é admissível que as ilhas do Pacífico
tenham sido descobertas por intermédio do Peru, este país tem interesse na
expedição. Diga-nos se podemos fazer alguma coisa pelo senhor.
Pedi que me concedesse um local dentro da, área naval, onde pudéssemos
construir a jangada; acesso às oficinas navais; lugar para depósito de material e
franquia para introduzi-lo no país; uso da doca seca e pessoal naval para nos
ajudar no trabalho, bem como uma embarcação que nos rebocasse à sirga, ao
sairmos da costa para o alto-mar.
- Que pede ele? - perguntou com ansiedade o presidente, de tal sorte que até eu
entendi.
- Não muito - respondeu Roveredo, piscando-me um olho.
Em breve nós seis iríamos ser amontoados como micróbios numa conchinha, lá
onde a água era tanta que parecia alagar todo o longínquo horizonte ocidental.
Tínhamos de encarar aquele mundo desolado, sem podermos dispor senão de
alguns passos a separar-nos uns dos outros.
Em todo caso, por ora havia espaço bastante dando-nos liberdade de ação.
Herman estava no Equador esperando a madeira. Knut Haugland e Torstein
Raaby acabavam de chegar a Nova Iorque por via aérea. Erik Hesselberg vinha
de Oslo por mar, com destino ao Panamá.
Em tais circunstâncias, uma boa piada era muitas vezes tão prestadia quanto um
salva-vidas.
Quando eu voltei era fevereiro. Bjorn tornara a seu cargo o rádio e havia
interessado a Liga Americana de Radioamadores pela recepção de comunicações
vindas da jangada. Knut e Torstein estavam atarefados em ajustar a transmissão,
que seria feita ora com transmissores de onda curta construídos especialmente
para o nosso propósito, ora com aparelhos de sabotagem usados durante a
guerra. Havia mil coisas para preparar, grandes e miúdas, se quiséssemos levar a
bom termo o que planejávamos fazer na viagem.
- Sou capaz de jurar que esta correspondência aí pesa uns nove quilos - disse um
dia Knut em desespero, curvado sobre a máquina de escrever.
Minha mãe deve ter tido uma noção bem clara da situação, naqueles dias de
dramáticos preparativos, ao escrever-me: ”A única coisa que eu queria era saber
que vocês seis já estão a bordo da jangada.”
E eis que um dia chega de Lima um telegrama urgente. Colhido pela cauda de
um vagalhão, Herman fora arrojado ao chão, malferido, com grave deslocamento
do pescoço. Achava-se em tratamento num hospital em Lima.
Os descendentes dos incas Mudaram com os tempos; como nós, têm vincos nas
calças e estão bem protegidos pelos canhões do poder naval. Balsa e bambus são
coisas do passado; aqui também as coisas marcham para a blindagem e o aço. O
ultramoderno estaleiro foi-nos de incalculável valia. Tendo Bengt como
intérprete e Herman como construtor chefe, usávamos e abusávamos das oficinas
de carpinteiro e de veleiro. Usávamos ainda metade do espaço destinado ao
trapiche para depósito do material, além de uma pequena doca flutuante onde a
madeira foi posta na água quando principiou a construção.
A construção era uma cópia fiel das antigas embarcações do Peru e do Equador,
com exceção dos guarda-borrifos, colocados nas proas, que posteriormente
verificamos serem inteiramente desnecessários. Respeitadas as linhas gerais,
podíamos, é claro, arrumar os detalhes a bordo como nos aprouvesse, desde que
isto não tivesse influência sobre a embarcação. Sabíamos que aquela jangada ia
ser todo nosso mundo pelo tempo que se estendia à nossa frente, e que,
consequentemente, o mínimo detalhe a bordo cresceria em dimensão e
importância à medida que as semanas passassem.
Por isso fizemos o pequeno convés variar o mais possível. As lascas de bambu
não tapavam toda a jangada, mas formavam um piso em frente da cabana e a
estibordo, onde ficava a porta. O costado de bombordo da cabana era uma
espécie de pátio interior cheio de caixotes e utensílios domésticos, tudo
convenientemente atado no diminuto espaço livre para se poder andar. A frente,
na proa, e à ré, até a parede traseira da cabana, os gigantescos troncos não
tinham coberta alguma. Assim, quando saíamos da cabina de bambu,
passávamos dos bambus amarelos, e do trançado de vime, para os redondos toros
cinzentos à popa, subindo daí até a carga amontoada no outro lado. Não eram
muitos passos, mas o efeito psicológico da irregularidade nos oferecia variação,
e nos compensava da limitada liberdade de movimento.
Como amigo particular, pediu-me que desistisse da viagem enquanto ainda era
tempo. O almirante que havia examinado a jangada dissera-lhe que, vivos, não
conseguiríamos fazer a travessia. Em primeiro lugar, estavam erradas as
dimensões da jangada. Ela era tão pequena que soçobraria num mar picado; mas
tinha o comprimento adequado para ser levantada por duas linhas de onda ao
mesmo tempo, e, com os homens e a carga, os frágeis toros de balsa se partiriam.
E algo pior: o maior exportador de paus-de-balsa do país lhe dissera que os
porosos troncos de balsa boiariam apenas um quarto da longa travessia do
oceano, antes de ficarem tão encharcados que iriam ao fundo.
Os prognósticos não eram nada bons, mas como nos mostrávamos persistentes,
deram-nos de presente uma Bíblia para levarmos na viagem. Bem-lançadas as
contas, pouco estímulo se auferia dos peritos que examinaram a jangada.
Rajadas de ventos e talvez furacões nos arrebatariam à baixa e exposta
embarcação, que ficaria ao desamparo e a bailar pelo oceano, à mercê do vento e
das águas. Mesmo em mar normalmente agitado, ficaríamos de contínuo
encharcados de água salgada, que acabaria por arrancar-nos a pele das pernas e
estragaria tudo a bordo. E se fôssemos somar tudo quanto os diferentes peritos,
cada um por sua vez, tinham indicado como a falha vital na própria construção,
não havia na jangada toda um comprimento de corda, um nó, uma medida, um
pedaço de madeira que não nos fosse levar para o fundo do mar. Foram feitas
valiosas apostas em torno dos dias que duraria a jangada, e um petulante adido
naval apostou pagar todo o uísque que os membros da expedição poderiam beber
pelo resto da vida se chegássemos vivos a uma ilha dos mares do Sul. Pior foi
quando, entrado no porto um navio norueguês, levamos ao estaleiro o capitão e
um ou dois dos seus mais experimentados lobos-do-mar. Ficamos ansiosos por
testemunhar as reações práticas desses homens. E grande foi a decepção quando
todos eles opinaram que a tosca jangada, com aquela proa absurda, jamais
obteria da vela qualquer ajuda, enquanto o capitão sustentava que, se
conseguíssemos manter-nos à flor d’água, a embarcação gastaria um ano ou mais
para atravessar a corrente de Humboldt. Olhando para as amarras, o
contramestre abanou a cabeça. Não havia a menor dúvida: não passariam duas
semanas e cada corda da pobre embarcação se gastaria de todo, porque, dentro
da água, os enormes toros se movimentariam sem cessar esfregando-se uns nos
outros. Se não usássemos cabos de arame ou correntes, podíamos esquecer a
aventura. Não era fácil demolir esses argumentos. Se um deles sequer fosse
verdadeiro, as nossas possibilidades seriam inexistentes. Creio que várias vezes
perguntei a mim mesmo o que estávamos fazendo ali. Eu não podia contestar as
advertências uma por uma, porque não era marinheiro. Tinha, porém, comigo
um único trunfo, no qual estava baseada toda a viagem.
No meu íntimo havia uma voz que sempre me segredava que uma civilização
pré-histórica se espalhara, indo do Peru e pelo mar até as ilhas, numa época em
que jangadas como aquela eram a única embarcação. E aí tirava a conclusão
geral de que se o pau-de-balsa havia flutuado e as amarras resistido para Kon-
Tiki no ano 500 da nossa era, haviam de fazer o mesmo para nós agora, se
fizéssemos cegamente da nossa jangada uma cópia exata da dele.
- Acontece, repito - disse Bengt delicadamente - que não vou sair do Peru em
navio, mas numa jangada.
Numa fonte que jorrava de alta montanha enchemos 56 latões de água cristalina
ao todo 1.120 litros de água potável. Estas também foram amarradas entre as
vigas transversais de maneira que a água do mar pudesse sempre borrifá-las.
Sobre o convés de bambu amarramos o resto do material e cestões de vime
cheios de fruta e coco.
Como Erik tinha trazido vários rolos de papel de desenho e uma guitarra, seu
caixote ficou tão cheio que teve que pôr parte das coisas no de Torstein. Depois
quatro marinheiros trouxeram o caixote de Bengt.
Bengt não trazia outra coisa a não ser livros, e conseguiu atulhar seu caixote de
73 obras de sociologia e etnologia. Pusemos em cima dos caixotes esteiras de
junco trançado e colchões de palha. E estávamos afinal aparelhados para partir.
Primeiro a jangada foi rebocada para fora da área naval e tocada a remos em
volta da baía durante algum tempo para se verificar se a carga estava distribuída
com equilíbrio. Em seguida foi levada à sirga, atravessando o Iate Clube de
Callao, onde convidados e outras pessoas interessadas deviam estar presentes
para a cerimônia de batismo da embarcação, na véspera da partida.
Havia uma azáfama insólita no porto de Callao no dia em que a Kon-Tiki ia ser
rebocada para o mar. O ministro da Marinha tinha dado ordens para que o
rebocador naval Guardian Rios nos levasse à sirga, até fora da barra, e nos
colocasse bem longe do movimento costeiro, lá no ponto distante, onde, em
tempos passados, os índios costumavam pescar a bordo de suas jangadas. Os
jornais haviam publicado a notícia em cabeçalhos vermelhos e pretos, e desde as
primeiras horas da manhã de 28 de abril verdadeira multidão acudira ao cais.
Nós seis, que devíamos estar a bordo, todos tínhamos, até a última hora, alguma
providência que tomar, e quando cheguei ao cais, somente Herman estava,
mantendo guarda à jangada.
Pulei para dentro da jangada, cujo aspecto era verdadeiramente caótico: cachos
de banana, cestos e sacos de fruta tinham sido jogados ali no último momento,
devendo ser devidamente empilhados e amarrados assim que pudéssemos pensar
um pouco em pôr as coisas em ordem. Herman, sentado, aguardava
resignadamente, tendo nos joelhos a gaiola de um papagaio verde, presente de
despedida de uma pessoa amiga, em Lima.
Mal Herman desapareceu entre a turba que fervilhava no cais, o povo pôs-se a
apontar algo e a agitar-se. E que da parte indicada vinha, a toda a velocidade, o
rebocador Guardian Rios. Deitou âncora muito além da ondulante floresta de
mastros que interceptava o caminho à Kon-Tiki, e enviou uma espaçosa lancha
movida a gasolina para nos rebocar dali, tirando-nos daquele labirinto de velas.
A lancha vinha cheia de marinheiros, oficiais e fotógrafos e enquanto as ordens
soavam e as câmaras fotográficas entravam em ação uma sólida sirga foi
amarrada à proa da jangada.
- Isso não é possível - disse Erik, mostrando um embrulho aqui está a lanterna!
Já passava muito do meio-dia quando afinal partimos, e o Guardian Rios não nos
quis deixar ao largo enquanto não nos visse desembaraçados do movimento
costeiro na manhã seguinte. Assim que nos afastamos da atracação, encontramos
um pouco de mar pela proa, e os pequenos botes que nos estavam
acompanhando voltaram.
Apenas alguns iates maiores foram conosco até a entrada da baía para ver como
iriam as coisas. A Kon-Tiki seguiu a sirga como um bode raivoso amarrado a
corda.
Deu marradas com a parte dianteira no mar de proa de modo que a água entrou a
bordo, invadindo-a. Isto não parecia muito animador, pois aquele era um mar
calmo comparado com o que íamos encontrar.
No meio da baía o cabo do reboque quebrou; a ponta que estava do nosso lado
foi paulatinamente para o fundo, enquanto o rebocador continuava a marcha.
Jogamo-nos ao pé da jangada a ver se pescávamos a ponta submersa do cabo,
enquanto os iates seguiam em frente tentando parar o rebocador. Arraias
causticantes e pegajosas, do tamanho de uma cuba de borracha, subiam pela
jangada e desciam com a água, cobrindo as cordas de espessa e escorregadia
gelatina. Quando a jangada zimbrava para um lado, nos debruçávamos o mais
possível para que nossos dedos tocassem o cabo viscoso. Quando a jangada
rolava para o lado oposto, metíamos a cabeça bem dentro do mar, enquanto as
nossas costas eram banhadas pela água salgada e por elas escorregavam enormes
arraias. Cuspíamos praguejando e arrancávamos dos cabelos fibras de águas-
marinhas. Mas quando o rebocador retornou, a ponta do cabo já tinha sido
fisgada e pronta para o conserto.
- Quando uma coisa principia de maneira tão infernal, é sinal que terminará bem
- disse Herman. - Se ao menos parasse esta sirgagem!
Durante o dia todo, havia ali um vento soprando da praia; à noite o vento
soprando para a praia, alcançava o mesmo ponto, ajudando-os a voltar para casa
se o desejassem. O rebocador permanecia perto, e nós tivemos cuidado de pôr a
jangada a salvo da proa dele, enquanto lançávamos à água o pequeno bote de
borracha cheio de ar. Ele boiava como uma bola e bailava comigo, com Erik e
Bengt, até quando agarramos a escada de corda do Guardian Rios e trepamos a
bordo. Com Bengt como intérprete, nos mostraram no mapa a posição certa em
que nos achávamos. Estávamos a 50 milhas da terra a noroeste de Callao, e
tínhamos de acender luzes nas primeiras noites para não sermos afundados por
navios costeiros.
No alto-mar não havia um único navio, pois não existia nenhuma rota marítima
naquela parte do Pacífico.
Rimo-nos e fomos ver o vento. Havia uma ligeira brisa que tinha virado de sul
para sudeste.
Içamos com a verga de bambu a enorme vela quadrada. Ela ficou um pouco
frouxa, dando à cara de Kon-Tiki uma aparência rugosa, de descontentamento.
- O velho não está gostando - disse Erik. - Quando ele era mais moço, as brisas
eram mais frescas.
- Numa coisa nós estamos bem servidos agora - começou Erik, risonho. Andava
de um lado para outro metido em largas calças de pele de carneiro, debaixo de
imenso chapéu indiano, com o papagaio ao ombro.
À tardinha já o vento alísio soprava com toda a força. O resultado foi que o
oceano se tornou agitado e roncador, enquanto as águas invadiam pela parte de
trás. Foi então que percebemos, pela primeira vez, que o mar aguardava ali para
investir contra nós. O negócio agora era sério. Nossas comunicações estavam
cortadas. Ali no oceano imenso, as coisas só correriam bem se as qualidades da
jangada fossem realmente boas. Sabíamos que dali em diante não teríamos vento
que soprasse para a terra, nem jeito de tornar atrás. Havíamos entrado nos
domínios do legítimo vento alísio, e cada dia nos faria penetrar sempre mais no
mar alto. A única coisa a fazer era seguir avante a todo o pano; se tentássemos
tornar atrás, derivaríamos em alto-mar e com a popa para a frente. Só havia uma
alternativa: navegar ao sabor do vento com a proa voltada para poente. Era essa,
afinal, a meta da nossa viagem: acompanhar o sol no seu curso, como
supúnhamos que Kon-Tiki e os antigos adoradores do sol deviam ter feito
quando foram postos em fuga do Peru. Notamos, entre triunfantes e aliviados,
que a jangada resistia galhardamente às primeiras cristas de onda ameaçadoras
que vinham espumantes na nossa direção. Ao timoneiro, porém, era impossível
manter firme o remo quando as vagas avançavam para ele e erguiam o remo dos
toletes ou o arremessavam para um lado imprimindo um rodopio ao timoneiro
como se ele fosse um pobre acrobata.
Nem dois homens juntos conseguiam segurar o remo com firmeza quando os
vagalhões se levantavam indo quebrar atrás do piloto. Tivemos a ideia de passar
umas cordas desde a pá do remo até cada um dos lados da jangada, e, mantendo
com outras cordas o remo no seu lugar entre os toletes, ele passou a ter limitada
liberdade de movimento e podia desafiar o furor das águas contanto que nós
próprios lográssemos fazê-lo.
Quando as trevas caíram sobre o oceano, teve começo o nosso primeiro duelo
com os elementos. O mar ainda não nos inspirava confiança; era ainda incerto se
se mostraria amigo ou inimigo naquela intimidade que havia sido iniciativa
nossa. Quando, já completamente envolvidos pelas trevas, ouvimos o motim
generalizado do mar em torno de nós, subitamente abafado pelo silvo de uma
vaga próxima, e vimos uma crista branca vir, como que às apalpadelas, no nosso
rumo, ao nível do telhado da cabana, permanecemos na nossa posição de firmeza
e quietação, esperando sentir a massa de água despenhar-se sobre nós e sobre a
jangada. Mas cada vez era a mesma surpresa e o mesmo alívio. A Kon-Tiki
calmamente meneava para cima sua popa e se erguia imperturbável, enquanto a
massa de água lhe resvalava pelos lados. Então nos abismávamos de novo no
espaço compreendido entre duas ondas, aguardando outro embate. Muitas vezes
os vagalhões vinham aos atropelos, dois ou três em seguida, com uma longa
série de ondas menores nos intervalos.
Quando duas ondas grandes se seguiam uma à outra muito próximas, a segunda
rebentava à ré, porque a primeira ainda estava maltratando no ar a nossa proa.
Era, portanto, entre nós lei invariável que os que se achavam no quarto de
direção tivessem cordas em volta da cintura, cujas pontas ficavam atadas à
jangada, pois não havia amuradas. A tarefa era conservar panda a vela,
oferecendo a popa ao mar e ao vento. Tínhamos amarrado a bússola de um bote
velho a um caixote à ré, de modo que Erik pudesse registrar a rota e calcular
posição e velocidade. No momento, não sabíamos bem onde nos achávamos,
porque o céu estava coberto, e o horizonte um grande caos de vagalhões. Dois
homens juntos faziam o quarto de direção e, um ao lado do outro, punha toda a
energia na luta com o remo saltador, enquanto os outros tratavam de dormir um
pouco no interior da cabana de bambu. Quando se avizinhava uma onda
verdadeiramente grande, os homens deixavam o governo do leme às cordas e de
um pulo se agarravam ao forte bambu do telhado da cabana, enquanto as massas
de água os acometiam em cheio por detrás, desaparecendo entre os troncos ou
pelo lado da jangada. Então tinham de se atirar novamente ao remo antes que a
jangada fizesse uma reviravolta e a vela ficasse batendo a esmo. Se as ondas
penetrassem na jangada por determinado ângulo, facilmente invadiriam a cabana
de bambu. Quando entravam pela popa, imediatamente desapareciam entre os
toros mais compridos e, quando muito e mesmo assim raramente, alcançavam a
parede da cabana.
Os troncos redondos da parte posterior deixavam a água passar como por entre
os dentes de um garfo. A vantagem de uma jangada era esta, evidentemente:
quanto mais buracos, melhor; pelas fendas do chão da embarcação a água saía,
mas nunca entrava.
Cerca da meia-noite, passou na direção norte uma luz de navio. As três horas,
passou outra no mesmo rumo. Acenamos com nossa lampadazinha de parafina e
lhes fizemos repetidos sinais com um maçarico elétrico, mas eles não nos viram,
e as luzes passaram lentamente rumo ao norte, sumindo-se na treva. Mal podiam
adivinhar que uma real e viva jangada inca estava bem perto deles arfando entre
as ondas. E mal podíamos adivinhar, nós tripulantes da jangada, que esse era o
último navio e o derradeiro vestígio de homens que veríamos até atingirmos a
outra banda do oceano. Agarramo-nos como moscas, dois a dois, ao remo de
direção, no escuro, e sentimos a água fresca do mar caindo-nos sobre o cabelo,
enquanto o remo nos magoava até nos deixar extenuados, ficando nossas mãos
crispadas com o esforço de apoiar-nos nele. Aqueles primeiros dias e noites
foram para nós uma boa escola; converteram marujos bisonhos em embarcadiços
experimentados. Durante as primeiras vinte e quatro horas, cada homem, em
ininterrupta sucessão, teve duas horas de leme e três de descanso. Dispusemos a
escala de tal maneira que, a cada hora, um homem repousado rendesse durante
duas horas um dos dois timoneiros que tivesse estado ao leme. Cada músculo do
corpo era exigido ao máximo, para estar à altura de dirigir a embarcação.
Erik mediu a posição ao meio-dia e verificou que, além da rota efetuada sob o
impulso da vela, tínhamos feito enorme desvio para o norte ao longo da costa.
Estávamos ainda na corrente de Humboldt, exatamente a 100 milhas da terra. A
grande questão era saber se escaparíamos dos traiçoeiros redemoinhos ao sul das
Galápagos. Isto podia ter consequências fatais, pois, uma vez lá, podíamos ser
arrastados em todos os sentidos por fortes correntes oceânicas que se dirigiam à
costa da América Central. Se, porém, as coisas corressem segundo os nossos
cálculos, nos desviaríamos para oeste com a corrente principal antes de
chegarmos ao ponto norte onde se achavam as Galápagos. O vento soprava ainda
diretamente de sueste. Içamos a vela, virando a popa da jangada para o mar mais
picado e continuamos nossos plantões de direção.
Disseram que o avião do embaixador americano havia partido da costa para nos
dar o último adeus e ver o aspecto que apresentávamos no mar. Pouco depois
obtivemos ligação direta com o radio-operador do avião e então mantivemos
uma conversa, que absolutamente não esperávamos, com a secretária da
expedição, Gerd Vold, que viajava nele. Demos nossa posição com a exatidão
possível e durante horas enviamos sinais indicadores da direção. E a voz no éter
se tornava ora mais forte ora mais fraca, enquanto o ARMY119 rodava perto ou
longe e procurava. Mas não ouvimos o ronco dos motores e não vimos o
aeroplano. Não era fácil encontrar a pequena jangada na cavidade das ondas, e a
nossa vista era estritamente limitada. Por fim o avião teve de desistir e tornou à
costa. Foi a última vez que alguém tentou sair em nossa busca. O mar andou
revolto nos dias que se seguiram, mas as ondas vinham de sueste silvando, com
intervalos iguais umas das outras, e o domínio da jangada correu mais suave.
Enfrentamos o mar e o vento da quadra de popa, de modo que o piloto estava
menos exposto aos vagalhões e a jangada ia com mais firmeza e sem jogar tanto.
- Sei lá - disse eu. - Contam que o inca Tupac Yupanqui navegou do Equador às
Galápagos pouco antes de Colombo, mas nem ele nem outro qualquer se fixou lá
porque não havia água.
- Bem, bem - retrucou Knut. - Então não queremos ir lá. Pelo menos, espero que
não.
Estávamos já tão habituados a ver a dança do oceano em torno de nós que não
fizemos caso disto. Que importava se tivéssemos de bailar um pouco tendo
debaixo de nós mil quadras de água, contanto que nós e a jangada estivéssemos
sempre no topo? Neste ponto foi que surgiu outra questão: quanto tempo, de
acordo com os nossos cálculos e esperanças, podíamos nos conservar no topo?
Era fácil ver que os toros de balsa absorviam água. A viga transversal posterior
era pior que as outras; podíamos fincar a ponta inteira do dedo nela sentindo a
madeira encharcada e o som característico do líquido causado pela pressão. Sem
dizer nada, parti um pedaço de madeira ensopada e atirei-a ao mar.
Se, porém, enterrávamos uma faca na madeira, víamos com alegria que ela
estava mais ou menos seca abaixo da superfície. Calculamos que, se a água
continuasse a penetrar no pau na mesma proporção, a jangada flutuaria sob a
superfície da água pelo tempo que esperávamos estar nos aproximando da terra.
Mas tínhamos esperança de que, mais no cerne, a seiva operaria como agente
impregnador moderando a absorção.
Eram as cordas. Durante o dia estávamos tão ocupados que pouco pensávamos
no assunto, mas quando as trevas caíam e nos metíamos na cama sobre o chão da
cabana, tínhamos mais tempo para pensar, sentir e escutar. Deitados nos
colchões de palha, podíamos sentir o entrançado em que jazíamos arfando
ritmicamente com os toros de pau.
Mais ou menos depois de uma semana, o mar tornou-se mais calmo, e notamos
que a água tinha passado de verde a azul. Principiamos a mover-nos a oeste-
noroeste em vez de a noroeste, e tornamos isto como o primeiro débil sinal de
que havíamos saído da corrente costeira e sobreveio alguma esperança de
estarmos sendo levados para o mar alto.
Logo no primeiro dia em que ficamos a sós no mar, reparamos nuns peixes que
rodeavam a jangada -, mas estávamos muito atarefados com o governo da
embarcação para pensarmos em pescaria. No segundo dia, deparou-se-nos um
cardume de sardinhas. Logo depois um tubarão azul de 2,40m veio vindo a rolar
sua barriga branca para cima enquanto roçava na popa alagada da embarcação,
onde Herman e Bengt de pé e descalços, estavam dirigindo.
Isto foi algumas noites mais tarde. Estava sombrio e escuro como breu, e
Torstein havia colocado a lâmpada de parafina perto da cabeça. Por volta das
quatro horas, acordou com a lâmpada revirada e uma coisa fria e úmida a roçar-
lhe pelas orelhas. ”Peixe-voador”, pensou ele, tateando no escuro vendo se o
agarrava para o atirar longe. Pegou numa coisa comprida e molhada que se
agitava como uma cobra, e largou-a ao perceber que as mãos lhe ardiam como se
estivessem queimando. O visitante invisível, enroscando-se, escapuliu, indo
passar por cima de Herman, enquanto Torstein procurava acender a lâmpada.
Herman também acordou assustado. Pondo-me igualmente desperto, pensei no
polvo que, naquelas águas, surge à noite. Depois que conseguimos acender a
lâmpada, Herman, triunfante, sentado, segurava com a mão o pescoço de um
peixe comprido e fino que se retorcia nas suas mãos como uma enguia. O peixe
tinha uns 95 centímetros de comprimento, era delgado como uma serpente, tendo
feios olhos pretos, e focinho comprido com uma voraz mandíbula cheia de
dentes longos e agudos. Os dentes eram afiados como navalha e podiam dobrar-
se até o céu da boca para dar passagem ao que ele engolisse. Ao ser pressionado
pelos dedos de Herman, eis que um peixe branco de olhos grandes, com cerca de
20 cm de comprimento, aí subitamente expelido do estômago e da boca do peixe
rapace, logo seguido por outro semelhante. Sem dúvida estes dois peixes
habitavam as grandes profundidades, e estavam bastante maltratados pelos
dentes do peixe-cobra. A pele fina do peixe-cobra era de um azul violáceo nas
costas e de um azul de aço por baixo e se foi descarnando todo quando o
agarramos.
Bengt também acordara, afinal, com o barulho, e nós aproximamos do nariz dele
a lâmpada e o comprido peixe. Estremunhado, sentou-se sobre o saco de dormir
e disse com solenidade:
Disse e, virando-se pacatamente para o lado, tornou a dormir. Bengt não andava
muito longe da verdade. Mais tarde verificou-se que nós seis sentados em redor
da lâmpada na cabana de bambu fomos os primeiros homens a ver esse peixe
vivo. Apenas esqueletos de peixes como esse tinham sido achados algumas
vezes na costa da América do Sul e nas ilhas Galápagos; os ictiólogos
chamaram-lhe Gempylus ou cavalinhas-serpente e supunham que ele vivia no
fundo do mar a grandes profundidades, porque ninguém jamais o tinha visto
vivo. Se, porém, ele vivia a grande profundidade, isto devia ser de dia, quando o
sol lhe cegava os enormes olhos, porquanto em noites escuras o Gempylus
andava bem à superfície do mar; nós na jangada tivemos experiência disto.
Uma semana depois que o raro peixe viera parar no saco de dormir de Torstein,
tivemos outra visita. Eram também quatro horas da manhã e a lua nova tinha
desaparecido, de maneira que estava escuro, mas as estrelas brilhavam no
firmamento. A jangada ia sendo dirigida com facilidade, e quando o meu plantão
terminou, dei uma volta pela beirada da embarcação para ver se tudo estava em
ordem para o novo plantonista. Eu tinha uma corda em volta da cintura, como
todo vigia sempre tinha, e, com a lâmpada de parafina na mão, andava
cuidadosamente ao longo do tronco extremo para evitar o mastro. O tronco
estava úmido e escorregadio, e fiquei furioso quando alguém agarrou de surpresa
a corda atrás de mim e a puxou até quase eu perder o equilíbrio. Voltei
enraivecido a lanterna, mas não vi por ali nem vivalma. Senti novo puxão na
corda e vi uma coisa brilhante deitada na coberta, a retorcer-se. Era um novo
Gempylus. Desta vez ele enterrara os dentes na corda com tanta vontade que
vários deles se quebraram, antes que eu conseguisse soltá-la. Provavelmente o
clarão da lanterna batera ao longo da corda branca, e o nosso visitante das
profundezas do oceano a tinha agarrado na esperança de, com um salto para
cima, abocanhar mais um pitéu comprido e gostoso. Acabou seus dias dentro de
um frasco de formalina.
O mar encerra muitas surpresas para quem tem o chão quase ao nível da
superfície oceânica e vai vogando devagar e sem fazer barulho.
Um homem dado a esportes que se embrenhe pelas matas, na volta pode dizer
que lá não viu nada demais. Outro que se sente num toco e se disponha a esperar,
muitas vezes terá percebido lá, entre o estalido das folhas secas e o ramalhar da
folhagem, olhos curiosos que espreitam cautelosamente. O mesmo se passa no
mar. Geralmente sulcamos as ondas com máquinas roncadoras e vaivéns de
êmbolos, a água a espumar em roda das proas. Depois regressamos e dizemos
que não há nada que ver em alto-mar. Não se passava dia sem que, enquanto
íamos flutuando à superfície do oceano, fôssemos visitados por hóspedes
curiosos que se debatiam e rabeavam em torno de nós, e alguns deles, tais como
dourados e pilotos, se familiarizavam tanto conosco que acompanhavam a
jangada pelo mar e ficavam junto dela dia e noite.
Nunca tivemos cabal explicação da visita noturna dos três monstros luminosos, a
não ser que a solução tenha sido dada por outra visita que recebemos dia e meio
mais tarde em pleno esplendor meridiano. Era dia 24 de maio, e vogávamos com
mar calmo exatamente a 95° oeste por 7° sul. Sendo quase meio-dia,
acabávamos de jogar na água as tripas de dois grandes dourados que tínhamos
pescado de manhã cedo. Eu dava um refrescante mergulho junto à proa, deitado
na água, com os olhos bem atentos na extensão que me rodeava e preso à ponta
de uma corda. Aí avistei um volumoso peixe pardo, de 1,80m de comprimento,
que vinha na minha direção fendendo a água cristalina do mar. De um pulo veloz
galguei a beira da jangada e sentei-me ao sol quente, a olhar o perigo que
passava tranquilamente, quando ouvi um formidando berro de Knut, que estava
sentado à ré detrás da cabana de bambu: ”Tubarão!” até sua voz rematar num
falsete. Como quase diariamente víamos, sem tamanho estardalhaço, tubarões
nadando ao lado da jangada, compreendemos que aquele devia ser um novo
espécime e nos reunimos na popa para auxiliar Knut.
Um dourado de uns 11kg, ligado a seis dos nossos maiores anzóis, estava
dependurado detrás da jangada para servir de engodo a tubarões, e um cardume
de pilotos passou por ali como uma bala, cheirou o dourado sem tocar-lhe e
depois correu de volta a seu senhor e mestre, o rei do mar. Como se fora um
monstro mecânico, ele pôs o seu maquinismo a funcionar e avizinhou-se
calmamente do dourado que ali estava, qual misérrima ninharia, diante de suas
mandíbulas. Tratamos de puxar o dourado para dentro, e o monstro marinho o
foi seguindo lentamente até um lado da jangada. Não abriu a boca, mas apenas
deixou o dourado bater contra ela, como se não valesse a pena escancarar a porta
para tão insignificante migalha. Quando o gigante chegou muito perto da
jangada, raspou o dorso no pesado remo de direção, que no momento se erguia
fora da água, dando-nos isto ampla oportunidade para examinarmos o monstro
bem de perto, tão de perto que cuidei havermos todos enlouquecido, pois quase
estouramos de tanto rir, soltando, ao mesmo tempo, em altos berras exclamações
de legítimo estupor ante o espetáculo fantástico que presenciávamos. O próprio
Walt Disney, com toda a força de sua imaginação, não poderia criar um monstro
marinho mais horripilante do que aquele que, assim tão subitamente, estava ali
com as suas terríficas mandíbulas ao lado de nossa jangada.
Na verdade, não fazia nem uma hora que o tubarão-gigante dava giros em torno
de nós, mas a visita nos parecia ter a duração de um dia inteiro. Afinal, aquilo se
afigurou demasiado irritante para Erik, que estava de pé a um canto da jangada,
com um arpão de 2,40m, e esporeado por gritos imprudentes, levantou o arpão
acima da cabeça. Quando o tubarão-gigante veio deslizando vagarosamente na
direção dele e sua larga cabeça surgiu bem debaixo do canto da jangada, Erik,
com toda a sua força gigantesca, arremessou por entre as pernas o arpão, que foi
cravar-se profundamente na cartilaginosa cabeça do tubarão gigante. Decorreram
uns dois segundos antes que o gigante percebesse cabalmente do que se tratava.
Então, repentinamente, o plácido lorpa se transformou numa montanha de
músculos de aço. Ouvimos um ruído sibilante quando a linha do arpão passou
violentamente sobre a beira da jangada. E vimos um cascatear de água quando o
monstro ergueu alto a cabeça para logo depois mergulhar nos abismos. Os três
homens que se achavam mais perto foram atirados de pernas para cima, e dois
deles ficaram esfolados e queimados pela linha quando ela fendia o ar. A linha
grossa, com força suficiente para amarrar um bote, ficou presa no lado da
jangada, mas partiu-se no mesmo momento como um pedaço de barbante, e uns
segundos depois o arpão quebrado surgiu à tona da água a mais de 180m de
distância.
Quando a onda se ergueu, divisamos uma frouxa claridade verde, azul e dourada
na água debaixo da tartaruga. Verificamos então que ela se achava empenhada
numa luta de vida e de morte com dourados. A peleja era evidentemente
desigual: uns doze ou quinze dourados de cabeça grande e de brilhante colorido
atacavam o pescoço e as pernas da tartaruga, a quem tentavam vencer pela
fadiga, porquanto o animal não podia ficar virado dias seguidos escondendo a
cabeça e os pés no interior da concha. Quando a tartaruga avistou a jangada,
mergulhou e se dirigiu para o nosso lado, perseguida pelos cintilantes peixes.
Avizinhou-se bastante da beira da jangada e já fazia menção de trepar na
madeira quando nos viu lá de pé.
Era como se o gosto fresco de sal que havia no ar e a imensa pureza azul que nos
rodeava nos tivessem lavado o corpo e purificado a alma. A nós, sobre aquela
jangada, os grandes problemas do homem civilizado se afiguravam falsos e
ilusórios, meros produtos pervertidos do espírito humano. Só os elementos se
revestiam de importância. E os elementos pareciam não fazer caso da jangada.
Ou talvez eles a estivessem aceitando como um objeto natural que não quebrava
a harmonia do mar, mas que se adaptava à corrente e ao oceano como a ave e o
peixe. Em vez de se mostrarem um inimigo temível, investindo contra nós a
espumar, os elementos se haviam tornado um amigo fiel que, com firmeza e
segurança, nos ajudava a avançar. Enquanto o vento e as ondas nos empurravam
e impeliam, a corrente oceânica permanecia debaixo de nós e nos transportava
sempre mais para a meta.
Knut e Torstein estavam sempre às voltas com úmidas baterias, ferros de soldar
e circuitos.
Todo o treino adquirido durante a guerra era exigido agora para, com os borrifos
de espuma e com o orvalho, manter em funcionamento a pequena estação de
rádio 30 centímetros acima da superfície da água. Todas as noites eles se
revezavam para enviar ao éter nossas informações e observações sobre o tempo.
Radioamadores avulsos as apanhavam e retransmitiam ao Instituto
Meteorológico de Washington e a outros destinos.
A alimentação não era passível de crítica. A cozinha estava dividida entre duas
experiências, uma dedicada ao intendente geral no século XX, outra a Kon-Tiki
no século V. Torstein e Bengt foram escolhidos para a primeira experiência e
restringiram seu regime alimentício aos pacotinhos de provisões especiais que
havíamos metido num buraco, entre os troncos e a coberta de bambu. Contudo,
peixe e comida marítima nunca tinham sido o seu forte.
Outra possibilidade era dirigir suas jangadas para a costa da América do Sul,
com o intento de desembarcar bem mais acima e fundar novo reino fora do
alcance de seus perseguidores.
Uma vez livre da perigosa costa de penedias e das tribos inimigas ao longo da
praia, teria, como se deu conosco, ficado à mercê dos ventos alísios de sudeste
da corrente de Humboldt e, à discrição dos elementos, teria caído exatamente no
mesmo grande semicírculo rumo ao poente.
Verificamos que, volvidos dois meses, a água doce começou a alterar-se e ter um
gosto ruim. Mas, a esse tempo, a gente já deixara bem atrás a primeira área do
oceano, onde há pouca chuva, e já chegara, há muito, a regiões nas quais grossas
pancadas de chuva podem equilibrar a provisão de água. Distribuíamos
diariamente para cada homem um bom litro de água, e raro era o dia em que a
dose se esgotava. Ainda mesmo que os nossos predecessores tivessem partido de
terra sem provisões adequadas, enquanto vogavam pelo mar, Ter-se-iam
arranjado com a corrente, na qual havia peixe em abundância. Não se passou um
dia em toda a nossa viagem em que não houvesse peixes em redor da jangada e
que não pudessem facilmente ser apanhados.
Quando, no calor, uma pessoa é atormentada pela sede, em geral supõe que o
organismo necessita de água, e isto pode gerar abuso na dose ordinária, sem
nenhum benefício para a saúde. Nos trópicos, em dias realmente quentes, pode
uma pessoa fazer descer água pela garganta abaixo até senti-la no fundo da boca,
e ter sede o mesmo. E que então o corpo não precisa de líquido mas de sal. E
curioso, mas é verdade. As rações especiais que tínhamos incluíam pastilhas de
sal que deviam ser tomadas com regularidade em dias excessivamente quentes,
porque a transpiração faz diminuir o sal do organismo. Tivemos dias assim, em
que a calmaria era completa e o sol dardejava impiedoso sobre a jangada. A dose
de água podia ser bebida toda de uma vez, a ponto de nos pesar no estômago,
mas a goela continuava a pedir muito mais. Em tais ocasiões, adicionávamos à
ração de água doce 20 a 40 por cento da salgadíssima água do mar, e com
surpresa verificávamos que essa água salobra nos mitigava a sede. Muito tempo
depois, sentíamos ainda na boca o saibo da água do mar, mas nunca nos fez mal.
Ademais, notamos considerável aumento em nossa ração de água.
Uma manhã, quando nos sentávamos para tomar a primeira refeição, uma onda
inesperada borrifou o caldo, ensinando-nos gratuitamente que o gosto da aveia
disfarçava em grande parte o enjoativo gosto da água do mar.
Ora, como se sabe, é a América o único lugar do mundo onde havia batata antes
da vinda dos europeus. E a batata-doce que Tiki trouxe consigo para as ilhas,
Ipomaea batatas, é exatamente a mesma que os índios cultivavam no Peru desde
os tempos mais antigos. A batata-doce seca era a mais importante provisão de
viagem, tanto para os navegadores da Polinésia como para os nativos do velho
Peru. Nas ilhas dos mares do Sul a batata só dá bem se for cuidadosamente
cultivada; e, como não tolera a água salgada, é ocioso explicar sua vasta
distribuição por aquelas ilhas dispersas declarando que ela terá sido transportada
sobre 4.000 milhas marítimas com correntes oceânicas do Peru. Esta tentativa de
explicação a partir de um ponto tão obscuro é bastante inútil, visto que os
filólogos mostraram que, em todas as ilhas dos mares do Sul, espalhadas em área
tão vasta, o nome da batata-doce é kumara, e kumara é justamente a
denominação que a batata-doce tinha entre os antigos indígenas do Peru. O nome
acompanhou a batata através do oceano.
Além de algumas frutas meridionais que comemos poucas semanas antes que
apodrecessem, tivemos a bordo uma terceira planta que, ao lado da batata-doce,
desempenhava importantíssimo papel na história do Pacífico. Levamos duzentos
cocos que deram enorme trabalho aos nossos dentes e nos forneceram bebidas
refrescantes. Várias nozes-da-índia logo principiaram a brotar, e quando fez dez
semanas que estávamos no mar, tínhamos meia dúzia de coqueirinhos de 30
centímetros, que haviam aberto seus renovos e formavam basta folhagem verde.
O coco já medrava antes de Colombo, tanto no istmo do Panamá como na
América do Sul. Escreve o cronista Oviedo que havia coqueiros em grande
número ao longo da costa peruana do Pacífico, quando os espanhóis chegaram.
Por essa época ele já existia em todas as ilhas do Pacífico. Os botânicos ainda
não sabem ao certo em que direção ele se espalhou pelo Pacífico. Mas de uma
coisa se sabe com certeza. Nem sequer o coco, com sua notória casca, pode
expandir-se através do oceano sem o auxílio do homem. Os cocos que tínhamos
em cestos no convés permaneceram comestíveis e aptos à germinação durante
todo o percurso rumo à Polinésia. Havíamos, porém, posto cerca de metade deles
entre as provisões especiais abaixo do convés, as ondas a banhá-los
incessantemente. Todos, sem exceção, foram estragados pela água salgada. E
nenhum coco desliza no oceano com maior rapidez do que a atingida por uma
jangada de pau-de-balsa, com o vento a impeli-la por trás. Foram os olhos do
coco que absorveram a água e o amoleceram, ocasionando a invasão da água
salgada. Ou então foram os ativos catadores de restos pelo oceano em fora que
se incumbiram de não permitir que coisa alguma comestível flutuante se
transferisse de um mundo para o outro.
Claro é que deve existir alimento bem nutritivo nestes plânctones, animálculos
quase invisíveis que, em número infinito, se movem com as correntes oceânicas.
Os peixes e as aves marítimas que não comem plâncton vivem, em todo caso, de
outros peixes e animais marinhos, pouco importando o tamanho destes. Plâncton
é um termo geral com que se designam as milhares de espécies de
microrganismos visíveis e invisíveis que vogam quase à superfície do mar.
Alguns são plantas (fito plâncton), enquanto que outros são ovos de peixe e
minúsculos seres vivos (zooplâncton). O plâncton animal vive de plâncton
vegetal e este último vive de amoníaco, nitritos e nitratos formados de plâncton
animal morto. E enquanto eles vivem reciprocamente um do outro, todos
formam alimento para tudo que se move sobre o mar e dentro do mar. O que não
podem oferecer em tamanho oferecem em número.
Que estes pequenos organismos contêm bastantes calorias foi provado pela
baleia azul, que é o maior animal do mundo e se alimenta de plânctones. O nosso
método de captura, com a redezinha que muitas vezes foi mastigada por peixes
famintos, nos pareceu bastante primitivo quando, sentados na jangada, vimos
passar uma baleia que atirava ao alto jorros d’água simplesmente ao coar
plânctones através da sua barba de celuloide. E um belo dia perdemos a rede no
mar.
- Por que é que vocês, comedores de plâncton, não fazem como ela?
- disseram a nós quatro, com desdém, Torstein e Bengt, apontando para uma
baleia que fazia repuxo. - E só encherem a boca e soprarem a água para fora pelo
bigode!
Fomos muitas vezes visitados por baleias. Na maioria dos casos eram pequenos
porcos-do-mar e baleias guarnecidas de dentes que, em cardumes, se
movimentavam alegremente em volta de nós, à flor d’água.
Os peixes que mais atração sentiam pela jangada eram os dourados e os pilotos.
Desde o momento em que os primeiros dourados se reuniram a nós na altura de
Callao, não houve dia, durante toda a viagem, em que não tivéssemos grandes
dourados rebolando-se em redor de nós. Não sabemos o que os atraía para a
jangada: ou existiria uma atração mágica em poder nadar à sombra, com um
telhado móvel por cima deles, ou havia comida na nossa horta de algas e
bernaclas que pendiam como festões de todos os toros e do remo de governo. Ela
começou com uma fina camada de verde macio, e dai a pouco ramos verdes de
alga marinha se desenvolveram com rapidez incrível, de sorte que a Kon-Tiki
tinha o aspecto de um deus marinho barbado, enquanto ia aos ziguezagues por
entre as ondas. E o interior das algas verdes era o sítio favorito de miúdas
petingas e dos clandestinos caranguejos.
Um dia, durante o jantar, Torstein tornou real a mais incrível das histórias de
pescadores. De repente, largou o garfo no chão e pôs a mão no mar, e antes que
pudéssemos saber de que se tratava, a água pareceu ferver e um enorme dourado
surgiu entre nós, a debater-se terrivelmente. Torstein havia agarrado a ponta
superior de uma linha de pescar que ia deslizando pela corrente e na outra ponta
estava pendurado um dourado, completamente aturdido, que dias antes quebrara
a linha com que Erik estava pescando.
Não havia um dia em que não tivéssemos seis ou sete dourados a acompanhar-
nos, descrevendo círculos em redor da jangada. Se, em certos dias, apareciam
apenas dois ou três, em compensação, no dia seguinte, podiam surgir uns trinta
ou quarenta. Em geral, se queríamos peixe fresco para o jantar, era bastante
avisar o cozinheiro com vinte minutos de antecedência. Ele então amarrava uma
linha numa vara curta de bambu e punha no anzol metade de um peixe-voador.
No mesmo instante estava lá um dourado, sulcando a superfície com a cabeça,
ao mesmo tempo que perseguia o anzol, e tendo mais dois ou três nas suas
águas. Era um peixe divertido e, quando preparado fresco, sua carne era sólida e
deliciosa, misto de bacalhau e de salmão. Durava dois dias, e era quanto
necessitávamos, pois peixe havia bastante no mar.
Antes de mais nada nós tínhamos grande respeito aos tubarões em atenção à sua
fama e aparência assustadora. Havia uma força indomável naquele corpo
aerodinâmico, que apenas constava de um grande feixe de músculos de aço, e na
tremenda voracidade daquela vasta cabeça chata, com olhinhos verdes de gato e
imensas mandíbulas capazes de engolir bolas de futebol. Quando o timoneiro
gritava ”tubarão a estibordo” ou ”tubarão a bombordo”, costumávamos sair à
procura de arpões e fateixas, e postar-nos à beira da jangada.
Geralmente o peixe deslizava em volta de nós com a barbatana dorsal rente aos
toros da embarcação. E o nosso respeito pelo animal subiu de ponto quando
vimos as fateixas vergar como espaguetes ao baterem contra o arnês de lixa das
costas do peixe, ao passo que as pontas das lanças dos arpões portáteis se
rompiam no aceso da batalha. O que resultava de termos atingido a pele do
tubarão, a cartilagem ou os músculos, era tão-somente uma luta febril, durante a
qual a água fervia ao redor de nós até que o peixe lograva soltar-se e lá se ia
embora, enquanto um pouco de óleo ficava a boiar e se espalhava sobre a
superfície.
Para salvar a ponta do último arpão amarramos num feixe os maiores anzóis e os
escondemos no interior da carcaça de um dourado inteiro. Jogamos ao mar a isca
com infinitas precauções, depois de havermos amarrado muitas linhas de aço em
certa parte do parapeito. O tubarão veio vindo, confiado e vagaroso, e ao mesmo
tempo que levantava o focinho acima da água, abria de golpe as grandes
mandíbulas em forma de crescente e fazia resvalar por elas adentro o dourado
inteiro, que lá ficou. Houve uma batalha durante a qual o peixe vergastava a
água espumante, mas nós segurávamos a corda com muita firmeza, e a custo
arrastávamos o rebelde até os toros posteriores, onde ele ficou à espera do que
podia vir, e apenas abriu a boca como para nos intimidar com as filas paralelas
de dentes que pareciam serrotes. Aí nos aproveitamos de uma onda mais forte
para fazer o tubarão deslizar, suspendendo-o pela extremidade mais baixa dos
toros, escorregadia por causa da alga, e depois de laçar com uma corda a
barbatana caudal, puxamo-lo facilmente para bordo.
Nós não tivemos sorte. Cada vez que soltávamos uma rêmora com uma linha
atada no rabo, ela partia como uma bala e se agarrava firmemente a um dos
troncos da jangada, na crença de haver encontrado mais um respeitável tubarão.
E lá se deixava ficar, por maior força que empregássemos puxando a linha.
Pouco a pouco fomos adquirindo uma porção dessas remorazinhas que se
penduravam e ficavam teimosamente a balançar no meio das conchas no lado da
jangada, fazendo conosco a travessia do Pacifico. Mas a rêmora era burra e feia,
e nunca se tornou um peixinho agradável como o seu vivaz companheiro, o
piloto. O piloto é um peixe zebrado, tendo a forma de um charuto, que nada com
rapidez num cardume à frente do focinho do tubarão. Recebeu este nome porque
era crença que ele servia de guia no mar ao seu peticego amigo, o tubarão. Na
realidade, o piloto simplesmente vai com o tubarão, e se procede com
independência é apenas porque enxerga alimento dentro do seu raio visual. O
piloto acompanhava seu senhor e mestre até o último segundo. Como, porém,
não tinha, como a rêmora, a faculdade de apegar-se à pele do gigante, ficava
completamente desnorteado quando o seu velho mestre de repente desaparecia
no ar e não mais baixava. Então andava aflito, a nadar para aqui e para acolá,
procurando, e sempre volvia e se saracoteava ao longo da popa da jangada, onde
o tubarão tinha desaparecido na direção do céu. Mas como o tempo passava e o
tubarão não descia, eles tinham de procurar nos arredores outra senhor e mestre.
E nenhum se achava mais à mão que a própria Kon-Tiki.
Contávamos no nosso séquito pilotos que, com certeza, estavam na infância, pois
mal tinham 25 milímetros, ao passo que a maior parte media uns 25 centímetros.
Quando o tubarão gigante, depois que o arpão de Erik se lhe entranhou no
crânio, se precipitou nos abismos como um bólide, alguns dos seus antigos
pilotos, perdendo o rumo, foram ter com o vencedor; esses tinham exatamente
60 centímetros. Após uma série contínua de vitórias, a Kon-Tiki em breve teve
um séquito de quarenta a cinquenta pilotos, e muitos deles gostaram tanto do
nosso tranquilo avanço e das nossas sobras diárias, que nos foram
acompanhando por milhares de milhas.
Mas às vezes alguns não eram fiéis. Achando-me um dia ao remo de governo,
notei de repente que o mar fervia para as partes do sul, e vi um imenso cardume
de dourados sulcando as águas como se fossem torpedos de prata. Não vinham
como de costume, nadando comodamente de lado, mas desenvolviam uma
velocidade tal que pareciam cortar mais os ares que as águas. As ondas glaucas
estavam convertidas em branca espuma com a agitação frenética dos fugitivos, e
atrás deles vinha um dorso negro singrando numa rota em ziguezague, qual um
bote de corrida. Os peixes desesperados ora apareciam à superfície, ora sumiam
abaixo dela, quase rente à jangada; aí mergulhavam, enquanto uns cem se
ajuntavam densamente em cardume e tornavam o rumo de leste, de modo que o
mar à popa era uma resplandecente massa de cores. O dorso brilhante que vinha
atrás deles ergueu-se a meio na superfície, mergulhou em graciosa curva sob a
jangada e arremessou-se à ré como um torpedo após o cardume de dourados.
Era, nada mais nada menos, que um descomunal tubarão que parecia ter pouco
mais de seis metros de comprimento. Quando o monstro desapareceu, grande
numero de pilotos também se fora com ele. Tinham encontrado um herói
marinho mais airoso e este os seduziu.
Durante muito tempo não vimos nenhum sinal de lula nem a bordo nem no mar.
Mas uma manhã tivemos o primeiro aviso de que elas deviam estar naquelas
águas. Quando o sol nasceu, achamos uma cria de polvo, na forma de um
animalzinho do tamanho de um gato.
Tinha subido à jangada durante a noite, sem auxílio, e jazia morta, com os
braços enrolados no bambu, em frente à porta da cabana. Um líquido grosso e
preto, semelhante a tinta, estava espalhado sobre a coberta de bambu, formando
uma poça em redor da lula.
Lulas novas continuaram a chegar a bordo. Numa manhã de sol, todos nós vimos
um cintilante cardume de qualquer coisa que pulava fora da água e voava pelo ar
como se fossem grossos pingos de chuva, enquanto o mar era um fervedouro de
dourados a perseguir a chusma. A princípio, tornamos a coisa por um cardume
de peixes-voadores, pois já tínhamos visto três diferentes espécies deles.
Quando, porém, chegaram mais perto e alguns navegavam sobre a jangada à
altura de um metro e vinte a um metro e meio, algo veio bater de chapa no peito
de Bengt para estatelar-se no chão. Era uma lula pequena.
Nosso espanto foi grande. Quando a pusemos num balde de lona, continuou a
erguer-se e a dar saltos para a superfície, mas não desenvolvia no baldezinho
velocidade bastante para emergir da água nem com metade do corpo. E fato
conhecido que a lula geralmente nada segundo o princípio do avião-foguete.
Expele, com força, água do mar através de um tubo fechado, existente no lado
do corpo, podendo assim saltar para trás com movimento velocíssimo; e com os
tentáculos dependurados na parte posterior da cabeça e aí agrupados, torna-se
aerodinâmica como um peixe. Tem nos lados dois refegos de pele, redondos e
carnudos, ordinariamente usados para regular os movimentos ao nadar. Com isto
ficou provado que lulas novas indefesas, que são o alimento preferido de muitos
peixes grandes, podem escapar de seus inimigos indo para o ar como fazem os
peixes-voadores.
Como hóspede de nativos do Pacífico, muitas vezes comi lula; tem um gosto
muito de lagosta e borracha. Mas, a borda da Kon-Tiki, as lulas vinham em
último lugar na nossa lista.
Fazíamos a troca atirando à água um anzol com a lula e tornando a puxá-lo para
dentro com um grande peixe a debater-se na ponta. Até o atum e o bonito
gostavam de lulas novas, e eles eram iguaria que vinha em primeiro lugar na
nossa lista.
11/5. Hoje um enorme animal marinho subiu duas vezes à tona, ao lado da
jangada, enquanto ceávamos sentados na beira da mesma. Fez terrível barulho
na água e desapareceu. Não temos ideia do que seja.
6/6. Herman viu um peixe roliço de cor escura, corpo largo e branco, cauda
delgada e aguilhões.
No dia seguinte: Erik estava sentado no topo do mastro, às 12 horas, quando viu
trinta ou quarenta peixes compridos, finos e pardos, da mesma espécie que o de
ontem. Vinham com grande velocidade do lado esquerdo da embarcação e
desapareceram à ré, como grande sombra escura e chata no mar.
Com tais companhias na água, o tempo nunca passava devagar. Pior era quando
tínhamos de dar um mergulho para examinar as cordas por baixo da jangada. Um
dia uma das quilhas corrediças se soltou e foi resvalando para baixo da jangada
até que foi colhida pelas cordas, sem termos jeito de detê-la. Herman e Knut
eram os melhores mergulhadores. Duas vezes Herman nadou por baixo da
embarcação, ficando lá no meio de dourados e pilotos, a puxar pela prancha.
Acabava de subir pela segunda vez e estava sentado na beira da jangada para
tomar fôlego, quando um tubarão de 2,40m foi descoberto a não mais de 3m de
suas pernas, movendo-se resolutamente para cima, depois de tomar impulso das
profundezas rumo à ponta dos dedos dos pés de Herman. Talvez tenhamos sido
injustos com o tubarão, mas desconfiamos de suas intenções e embebemos-lhe
no crânio um arpão. O peixe ressentiu-se e houve um tremendo espadanar
d’água, e em consequência disto o tubarão desapareceu, deixando na superfície
um lençol de óleo, enquanto que a quilha corrediça continuava enredada debaixo
da embarcação. Então Erik teve a ideia de fazer um cesto de imersão. Não
dispúnhamos de muita matéria-prima, porém tínhamos bambus e cordas e um
velho cesto, no qual havíamos guardado cocos. Aumentamos o cesto na parte
superior com bambus e corda trançada, e depois, metidos nele, deixamos que
rios descessem ao lado da jangada. As pernas atraentes estavam agora
escondidas no cesto, e, ainda que a corda trançada na parte superior do açafate
tivesse apenas efeito psicológico tanto sobre nós como sobre os peixes, sempre
podíamos, em dado momento, encolher-nos dentro do cabaz, se qualquer coisa
com intenções hostis desse um bote em nós, ou pedir que os do convés nos
alassem para fora da água.
Este cesto de imersão não foi apenas útil; aos poucos tornou-se um objeto de
distração.
Os pilotos nadavam em boa ordem, cada qual em seu lugar, parecendo zebras
com pele de peixe, enquanto grandes dourados faziam círculos com movimentos
inquietos, vigilantes, na ânsia de achar presa. Aqui e ali a luz batia na seivosa
madeira vermelha da quilha corrediça, que ressaía na parte inferior por uma
frincha, e na madeira se achavam perfeitamente instaladas pacíficas colônias de
bernaclas, cujas franjadas guelras amarelas se moviam com ritmo, como que
acenando para o oxigênio e para a comida. Se alguém se aproximasse demais
apressadamente fechava suas conchas vermelhas de orlas amarelas, e assim se
mantinham de portas fechadas até passar o perigo. A luz lá embaixo era
maravilhosamente clara e branda para nós, acostumados ao sol tropical no
convés. Mesmo quando olhávamos para baixo, para as profundezas insondáveis
do oceano onde a noite é eterna, ela nos parecia um ameno azul-claro por causa
dos raios do sol que vinham de volta. Com espanto nosso, víamos peixes bem
embaixo, nas profundezas do azul claro e límpido, quando, afinal, nos
achávamos apenas pouco abaixo da superfície. Seriam talvez os peixes
chamados bonitos, havendo outras espécies que nadavam em tal profundidade
que não as podíamos reconhecer. Às vezes faziam parte de imensos cardumes, e
vinha-nos, frequentemente, vontade de saber se toda a corrente oceânica estava
cheia de peixes, ou se aqueles que revoluteavam nos abismos se haviam reunido
de propósito debaixo da Kon-Tiki para nos fazer companhia por alguns dias. O
que mais apreciávamos era um mergulho quando os grandes atuns de nadadeiras
douradas nos estavam fazendo uma visita. De quando em quando eles vinham
até a jangada em grandes cardumes, mas as mais das vezes apareciam juntos uns
dois ou três e nadavam em volta de nós em tranquilos círculos, dias a fio, a não
ser que conseguíssemos atraí-los ao anzol.
Quanto mais íntimo se fazia nosso contato com o mar e com tudo o que aí tinha
o seu habitat, menos estranho ele se tornava, e mais à vontade também nos íamos
sentindo naquele lugar. E aprendemos a respeitar os velhos povos primitivos que
viviam na maior intimidade com o Pacífico, e por isso o conheciam de um ponto
de vista completamente diferente do nosso. Talvez tenhamos calculado a
quantidade de sal que ele contém e tenhamos dado nomes latinos aos dourados e
aos atuns. Isto eles não fizeram. Contudo, não duvido nada que a ideia que eles
tinham do mar correspondesse melhor à verdade do que a nossa. Não havia,
neste ponto do mar onde estávamos, muitos marcos fixos. Ondas e peixes, sol e
estrelas vinham e iam. Não se supunha existir nenhuma espécie de terra nas
4.300 milhas marítimas que separavam do Peru as ilhas dos mares do Sul.
Ficamos, pois, muito surpreendidos quando, ao aproximar-nos de 100° oeste,
descobrimos que o mapa do Pacífico que tínhamos à vista assinalava a existência
de um recife na rota que íamos seguindo. Era marcado com um pequeno círculo,
e como o mapa havia sido editado no mesmo ano, procuramos a referência em
Direções Náuticas para a América do Sul. Eis o que lemos: ”Em 1906 e
novamente em 1926 foi assinalada a existência de cachopos a cerca de 600
milhas a sudoeste das ilhas Galápagos, na latitude de 6°42’sul, e na longitude de
99°43’oeste. Em 1927 um vapor passou a uma milha a oeste desta posição, mas
não observou ressaca, e em 1934 outro vapor passou a uma milha na direção sul
e não viu indício algum de escolhos. Em 1935 o navio-motor Cowrie não obteve
fundo a 160 toesas nesta posição.” De acordo com os mapas, o lugar era
claramente considerado como perigoso para a navegação, e como um navio de
grande calado, aproximando-se demasiado de um baixio, corre maior risco do
que nós correríamos com uma jangada, deliberamos dirigir a nossa rota para o
ponto marcado no mapa e ver o que encontraríamos. O recife estava assinalado
um pouco mais para o norte do que o ponto para o qual parecia que nos
estávamos dirigindo; por isso pusemos o remo de governo a estibordo e
orientamos a vela quadrada de maneira que a proa apontasse mais ou menos para
o norte, ficando nós com o mar e o vento do lado de estibordo. Ora, aconteceu
que as águas do Pacífico borrifaram os sacos de dormir um pouco mais que de
costume, acrescendo que, ao mesmo tempo, o ar começou a refrescar
consideravelmente.
Quando veio a noite, improvisamos em frente à porta uma barricada feita com
caixotes de mantimentos, e nem assim o repouso foi dos melhores. Mal
acabávamos de pegar no sono ouvia-se o primeiro estalo na parede de bambu, e
enquanto mil esguichos de água penetravam por entre as frestas, uma torrente
espumante se arrojava sobre as provisões e logo sobre nós.
- Telefonem para o encanador - ouvi alguém dizer com voz de sono, enquanto
tratávamos de erguer-nos para dar passagem à água que alagava o chão. O
encanador não veio, e naquela noite tornamos bastante banho sem sair da cama.
Até um enorme dourado, sem querer, veio parar a bordo durante o plantão de
Herman.
No dia seguinte o mar estava menos conturbado por ter o vento alísio resolvido
soprar de leste durante algum tempo. Nós nos revezamos no topo do mastro, pois
agora esperávamos poder chegar pela tarde ao ponto para o qual estávamos com
a proa voltada. Reparamos que, nesse dia, havia no mar mais vida que de
costume. Talvez fosse por causa da nossa atenção, que era maior. Depois do
meio-dia vimos um enorme espadarte que se aproximava da jangada quase à
superfície. As duas pontudas barbatanas que ressaíam da água estavam a 1,80m
uma da outra e o esporão parecia tão comprido quanto o corpo. O peixe
descreveu uma curva bem perto do homem do leme e sumiu-se por trás das
cristas das ondas. Quando fazíamos a refeição meridiana, um tanto úmida e
salgada, um vagalhão sibilante ergueu bem junto de nosso nariz uma grande
tartaruga marítima com cabeça, carapaça e patas. Depois que àquela onda
sucederam-se duas outras, a tartaruga se foi tão subitamente como tinha
aparecido.
Também desta vez vimos as barrigas brilhantes verde-esbranquiçadas dos
dourados, de roldão pela água, por baixo do animal couraçado.
- Talvez haja por aí, de qualquer forma, um escolho ou algum banco de areia -
pensaram alguns. E os mais otimistas disseram:
- Imaginem se acharmos uma ilhota virente e relvosa!... Quem pode saber disso
ao certo, quando tão pouca gente andou por aqui antes de nós?
Então teremos descoberto uma nova terra: a ilha de Kon-Tiki! A partir do meio-
dia, Erik não fazia outra coisa senão trepar ao caixote da cozinha e, de pé,
piscando muito, olhava pelo sextante. Às 6h20min da tarde informou que a nossa
posição era 6°42’ sul de latitude por 99°42’ oeste de longitude. Estávamos a uma
milha marítima a leste do recife assinalado no mapa. A verga de bambu foi
baixada e a vela enrolada na coberta. Devia haver vento a leste que nos
conduzisse lentamente ao lugar marcado. Quando o sol velozmente descambou
no mar, surgiu a lua cheia que, com todo o seu resplendor, iluminou a superfície
do oceano, em ondulações pretas e prateadas de um horizonte a outro. Do topo
do mastro a visibilidade era boa. Víamos marulhos em toda parte, numa
verdadeira série, mas não ressaca regular que pudesse denotar a existência de
escolho ou baixio. Ninguém quis ir deitar-se; estavam todos atentos e dois ou
três subiram imediatamente ao mastro. E como nos achávamos no centro da área
marcada, íamos sempre fazendo sondagens. Todos os prumos de chumbo que
tínhamos a bordo foram atados à ponta de uma corda de seda de 54 fios de mais
de 500 braças de comprimento, e embora a corda ficasse um tanto torta por
causa da deriva da jangada, em todo caso o chumbo se encontrava a uma
profundidade de cerca de 400 braças.
E a verdade é que não havia fundo, nem a leste do lugar, nem no centro, nem a
oeste dele.
Demos um último olhar pela superfície do oceano e depois de termos certeza de
que a área se achava devidamente inspecionada, estando livre de baixios de
qualquer espécie, fizemo-nos de vela e colocamos o remo no seu lugar habitual,
de modo que tínhamos de novo o vento e o mar na nossa quadra de bombordo. E
assim seguiu a jangada na sua rota natural e livre. O vaivém das ondas
continuava como antes, entre os toros abertos à ré. Podíamos agora comer e
dormir enxutos, ainda mesmo recrudescendo, como por vários dias sucedeu, a
fúria das ondas, enquanto os ventos alísios vacilavam de este para sueste.
Nessa curta excursão rumo ao falso escolho, aprendemos muita coisa acerca da
eficiência das quilhas corrediças e quando, posteriormente, no decorrer da
viagem, Herman e Knut mergulharam juntos debaixo da jangada e salvaram a
quinta quilha corrediça, ficamos sabendo ainda mais particularidades a respeito
dessas curiosas pranchas, coisa que ninguém entendeu desde que os próprios
índios abandonaram este esquecido esporte. Que a tábua fizesse o trabalho de
uma quilha, permitindo à jangada mover-se num ângulo com o vento, era coisa
da navegação ordinária. Quando, porém, os antigos espanhóis declararam que os
índios em grande parte ’dirigiam’ suas jangadas de pau-de-balsa no mar com
”certas quilhas corrediças que introduziam nas fendas entre os toros de pau”, isto
parecia incompreensível tanto para nós como para todos que se haviam ocupado
com o problema. Como a quilha corrediça ficava segura simplesmente numa
frincha estreita, não podia ser virada para o lado e servir de leme.
A jangada era tal qual um velho depósito de feno norueguês que estivesse a boiar
ao desamparo no meio do oceano, um palheiro fora de prumo e cheio de
indivíduos barbudos e tisnados de sol. Se algum banhista tivesse vindo atrás de
nós a nadar pelo mar em fora, teríamos sentido a mesma vontade de rir.
Qualquer onda um pouco maior rolava até o meio da cabana e dava impressão de
que invadiria tudo, sem resistência, pela larga abertura da porta diante da qual se
achavam os barbaças boquiabertos. Mas nisso a pobre jangada tornava a surgir
sobre a superfície, e os vagabundos lá estavam, tão enxutos, hirsutos e intatos
como antes. Se vinha passando algum vagalhão de mais respeito, dir-se-ia que
cabana, vela e o mastro inteiro iam ser tragados pela montanha de água, mas era
mais que certo estar ela novamente ali, no mesmo momento, com os seus
vagabundos.
Sua aparência era má, e não podíamos compreender como as coisas tinham
corrido tão bem a bordo da estrambótica embarcação.
Na outra vez que fomos dar umas remadas fora para rirmos um pouco de nós
mesmos, quase nos aconteceu um desastre. O vento e o mar estavam mais
impetuosos do que supúnhamos, e a Kon-Tiki ia abrindo caminho para si mesma
sobre as vagas com muito mais celeridade que julgávamos. Os que íamos no
bote tivemos de remar no mar-alto para salvar nossas vidas, envidando esforços
para alcançarmos a ingovernável jangada que não podia parar e esperar, e
provavelmente não podia virar-se e voltar atrás. Mesmo depois que os tripulantes
da Kon-Tiki amainaram a vela, o vento maltratou tanto a cabana de bambu que a
jangada de pau-de-balsa derivou para oeste, e eis-nos a acompanhá-la de rota
batida no gigante botezinho de borracha, com os seus insignificantes remos de
brinquedo. Havia um único pensamento na cabeça de cada homem - nós não
podíamos ficar separados. Foram horríveis aqueles minutos passados no mar, até
que nos foi dado de novo aferrar a fugitiva jangada e arrastar-nos para bordo,
para junto dos companheiros.
Desse dia em diante foi expressamente proibido sair no botezinho de borracha
sem primeiro se amarrar à proa uma linha comprida de modo que os que ficavam
a bordo pudessem, sendo necessário, puxar para dentro o botezinho. Por isso
nunca mais nos afastamos muito da jangada, exceto quando o vento era brando e
o Pacífico fazia jus ao nome. Mas só tivemos essas condições quando a jangada
se achava a meio caminho da Polinésia, e o oceano, dominando tudo, se
arqueava em redor do globo, em todos os rumos dos ventos.
Então pudemos com segurança deixar a Kon-Tiki e dar umas remadas pelo
espaço azul entre o céu e o mar. Quando víamos os contornos da nossa
embarcação irem minguando sempre mais com a distância, e a grande vela
reduzir-se afinal a um vago quadrado negro no horizonte, às vezes nos invadia o
sentimento da solidão. O mar se curvava debaixo de nós num azul infindo como
o céu por cima, e onde os dois se encontravam todo o azul confluía,
confundindo-se. Quase nos sentíamos suspensos no espaço; todo o nosso mundo
era vazio e azul; não havia nele nenhum ponto fixo, a não ser o sol tropical,
dourado e quente, que nos queimava o pescoço. Então a vela distante da solitária
jangada nos atraía a si como um ponto magnético no horizonte. Voltávamos,
metíamo-nos a bordo e percebíamos estar de novo no nosso mundo, a bordo,
sim, mas em solo firme e seguro. E no interior da cabana de bambu
encontrávamos sombra, sentíamos o cheiro de bambu e de folhas murchas de
palmeira. A pureza azul do sol lá de fora agora nos era servida em larga escala,
através da parede aberta da cabana. Assim, estávamos habituados àquilo e o
achávamos bom por algum tempo, pois que o azul vasto e límpido nos tentava de
novo a sair.
Às vezes também saíamos no pequeno bote de borracha para ver como éramos à
noite. De todos os lados erguiam-se os paredões negros das ondas, e miríades de
cintilantes estrelas tropicais provocavam um frouxo reflexo dos plânctones na
água. O mundo era simples: estrelas na escuridão. Se o ano em que estávamos
era 1947 d.C. ou 1947 a.C., tornava-se subitamente coisa sem importância.
Estávamos vivos, e isto o sentíamos com plena intensidade. Compreendíamos
que a vida também tinha sido cheia para os homens que existiram antes da idade
da técnica, mais cheia até e mais rica sob muitos aspectos do que a vida do
homem moderno. O tempo e a evolução, de certo modo, cessavam de existir;
tudo o que era real e tudo o que tinha importância era o mesmo hoje como
sempre o tinha sido e sempre seria; estávamos, por assim dizer, engolidos pela
medida comum absoluta da história, escuridão intérmina e ininterrupta sob um
cardume de estrelas. Diante de nós, nas trevas, a Kon-Tiki se erguia de entre as
vagas para de novo mergulhar por trás de negras massas de água, que se
elevavam como torreões entre ela e nós. À claridade do luar havia uma curiosa
atmosfera em volta da jangada. Sólidos toros franjados de algas, o negríssimo
contorno quadrado da vela que fazia lembrar a dos velhos vikings, a cerdosa
choupana de bambu sob a luz amarela de uma lâmpada de parafina na parte
posterior - aquele conjunto trazia à mente antes a representação de um conto de
fadas do que a pura realidade. De vez em quando a jangada desaparecia
completamente por trás das ondas negras; depois tornava a levantar-se e se
recortava em silhueta contra as estrelas, enquanto a água faiscante escorria dos
troncos.
A velha civilização deixou nesta ilha traços que a patina do tempo não logrou
apagar.
A ilha de Páscoa é o cume de um antigo vulcão extinto. Estradas calçadas, feitas
pelos antigos habitantes civilizados, levam a desembarcadouros em bom estado
existentes na costa e mostram que a profundidade da água em torno da ilha era
exatamente a mesma que é hoje.
Muitas estátuas descomunais não concluídas estão ainda onde foram começadas,
no interior da cratera da ilha de Páscoa, e mostram como o trabalho era
executado nas diferentes fases.
transporte de cada estátua pronta era feito com mais rapidez, mas, por outro lado,
requeria maior quantidade de homens. A pequena ilha de Páscoa era então rica
em peixes e inteiramente cultivada, existindo grandes plantações de batata-doce
do Peru. Opinam os entendidos que a ilha, na sua época de esplendor, pode ter
tido uma população de sete ou oito mil almas. Uns mil homens eram mais que
suficientes para puxar as descomunais estátuas para cima da parede íngreme da
cratera, ao passo que bastavam quinhentos homens para as arrastar para a frente,
ao longo da ilha.
Quando a estátua chegava ao alto, passava rapidamente sobre uma quina aguda e
escorregava dali para baixo, de modo que a parte inferior se encaixava numa
cavidade adrede preparada. Como o plano-inclinado completo ainda lá estava,
roçando na parte posterior da cabeça do gigante, rolavam para cima dela mais
um cilindro de pedra e o punham no alto, antes de ser removido todo o plano-
inclinado. Planos-inclinados, prontos de antemão como este, encontravam-se em
vários lugares da ilha de Páscoa, aguardando figuras colossais que nunca vieram.
A técnica era admirável, mas de modo algum misteriosa se deixarmos de
subestimar a inteligência dos homens de outras épocas, e o tempo e o material
humano de que dispunham.
Mas por que faziam essas estátuas? E por que era necessário ir diretamente dali a
outra pedreira, que ficava a mais de seis quilômetros da oficina da cratera para
achar uma qualidade especial de pedra vermelha para pôr sobre a cabeça da
estátua? Tanto na América do Sul como nas ilhas Marquesas, muitas vezes a
estátua inteira era dessa pedra vermelha, e faziam grandes caminhadas para obtê-
la. Os toucados vermelhos eram um traço característico das pessoas de posição
tanto na Polinésia como no Peru.
Ora, as lendas incas do Peru dizem que o rei-sol Kon-Tiki governava um povo
branco barbado, ao qual os incas davam o nome de ’orelhas grandes’ por
haverem aumentado artificialmente os orelhas, que desciam até os ombros.
Acentuavam os incas que tinham sido os ’orelhas grandes’ de Kon-Tiki que
erigiram as abandonadas estátuas gigantescas nas montanhas andinas antes de
serem exterminados ou expulsos pelos próprios incas na batalha travada numa
ilha junto do lago Titicaca.
Apanhávamos com a maior facilidade mais dourados do que era preciso para o
consumo.
Para manter viva uma forma popular de diversão sem ter de esperdiçar comida,
descobrimos um cômico sistema de pescar sem anzol, para mútuo
entretenimento nosso e dos dourados.
Um dia, uma vara de bambu, com a comida para tubarões amarrada num
barbante, estava na beira da jangada pronta para ser utilizada quando um golpe
de mar a arrebatou violentamente. A vara ainda boiava a mais de cem metros da
parte posterior da jangada, quando de repente ficou em j) é na água e
precipitadamente veio vindo sozinha atrás da jangada, como se tivesse intenção
de voltar espontaneamente para o antigo lugar.
Se é verdade que, pouco a pouco, passamos a olhar para o tubarão com olhos
bem diferentes, jamais desapareceu o respeito que nos infundiam aquelas cinco
ou seis carreiras de dentes afiados como navalhas, sempre de emboscada no
interior das colossais mandíbulas.
A derradeira fase das nossas relações com tubarões foi que começamos a puxá-
los pelo rabo. Puxar a cauda dos animais passa por ser uma forma inferior de
esporte, mas isto dizem os que não experimentaram fazê-lo com a de um
tubarão. Porque era esta, na verdade, uma excitante forma de esporte. Para
aferrar um tubarão pelo rabo, primeiro tínhamos de entretê-lo com um bom
pitéu. Ele se mostrava pronto a pôr a cabeça fora da água para recebê-lo. Em
geral a comida lhe era servida dentro dum saco balouçante, pois dar-lha
diretamente da mão não é muito divertido. Se uma pessoa alimenta cães ou ursos
mansos na mão, eles metem os dentes na carne e a vão rasgando aos poucos ou,
quando o conseguem, arrebatam-na toda para si. Se, porém, a gente segura um
grande dourado a boa distância da cabeça do tubarão, este se ergue e dá um
estalo com as mandíbulas, e, sem se ter percebido nenhum puxão, lá se foi de
repente metade do dourado, e o pescador fica sentado e com o restante na mão.
Não fora sem dificuldade que havíamos cortado em dois pedaços o dourado,
mas, numa fração de segundo, o tubarão, movendo rapidamente para os lados
seus dentes triangulares que pareciam serrotes, tinha imperceptivelmente
triturado a espinha dorsal e o resto como uma máquina de fazer linguiça. Quando
o tubarão tranquilamente se virava para de novo descer, meneava o rabo acima
da superfície e era fácil agarrá-la. Pegar na pele do peixe era o mesmo que passar
a mão sobre lixa, e dentro da ponta superior de sua cauda havia um entalhe que
parecia bem a propósito. Se se colocava ali a mão com firmeza, o peixe estava
seguro. Tinha-se então de dar um sacalão antes que ele voltasse a si, e puxar com
força para os troncos a maior parte possível da cauda agarrada. Durante um ou
dois segundos o animal parecia nada haver entendido, mas súbito começava a
saracotear-se e debater-se sem grande energia com a parte dianteira do corpo,
pois que sem o auxílio da cauda o tubarão não consegue fazer muita coisa. As
outras barbatanas servem apenas para equilíbrio e direção. Após algumas
desesperadas sacudidelas, durante as quais tínhamos de segurar a cauda com
toda a firmeza, o surpreso tubarão se tornava abatido e apático, e, como o
estômago desamparado principiava a afundar-se na direção da cabeça, afinal o
peixe ficava totalmente paralisado. Quando o prisioneiro se aquietava e, todo
hirto, estava como que aguardando os acontecimentos, era hora de o puxarmos
todo para dentro, com toda a força. Raramente levantávamos para fora da água
mais da metade do peixe, mas então ele também despertava e se incumbia do
resto. Com violentos repelões meneava a cabeça para os lados e na direção dos
toros, e então cumpria-nos puxar com toda a energia e sair do caminho com a
maior rapidez, se tínhamos amor às pernas. Pois, nesse momento, o tubarão já
não era para gracejos. Debatendo-se e dando grandes saltos, surrava a parede de
bambu com a cauda que parecia um martelo. Agora o peixe não poupava mais os
músculos de ferro. As imensas mandíbulas estavam escancaradas, e as fileiras de
dentes procuravam morder no ar qualquer coisa que lhes estivesse ao alcance.
Podia acontecer que o saracoteio terminasse com a queda mais ou menos
involuntária do peixe na água e seu desaparecimento definitivo após tão
vergonhosa humilhação, mas as mais das vezes ele se arrojava ao acaso sobre os
mesmos toros traseiros, até que passássemos um nó corredio em volta da raiz da
sua cauda, ou até que ele deixasse para sempre de exibir aqueles seus dentes
diabólicos.
Por dois meses o papagaio nos deliciou com o seu humorismo e as suas cores
brilhantes, até que um golpe de mar invadiu a embarcação pela popa enquanto a
ave, vindo da ponta do mastro, descia pelo estai. Quando averiguamos que o
papagaio havia sido carregado pelo vagalhão, era demasiado tarde. Não o vimos
mais. E a Kon-Tiki não podia fazer meia-volta nem parar; se qualquer coisa caía
da jangada no mar, era impossível voltar para reavê-la. Inúmeras experiências o
tinham mostrado.
Pensamos a mesma coisa outra vez em que a corda da rede de plâncton se partiu,
ficando a rede de pano sozinha atrás de nós, a flutuar na nossa esteira. Lançamos
à água o botezinho, munido de uma corda para as remadas de volta. Ficamos,
porém, surpreendidos ao ver que o vento e o mar conservavam o bote a
distância, e que a linha proveniente da Kon-Tiki tinha tão violenta ação de freio
na água, que não poderíamos jamais voltar remando ao ponto de que havíamos
saído.
Podíamos chegar a alguns metros daquilo que queríamos recolher, mas nessa
ocasião a linha inteira estava na água e a Kon-Tiki nos arrastava para oeste. ”O
que no mar cai no mar fica” - eis a lição que aos poucos se gravara
indelevelmente na nossa consciência a bordo. Se quiséssemos ir com o resto,
tínhamos de agarrar-nos bem até que a proa da Kon-Tiki tocasse em terra na
outra banda. O papagaio deixou um lugar vazio no canto do rádio, mas quando,
no dia seguinte, o sol tropical brilhou sobre o Pacífico, a tristeza foi de pouca
duração. Nos dias que se seguiram arrastamos para bordo vários tubarões e
constantemente achávamos na barriga do peixe, entre cabeças de atuns e outras
curiosidades, bicos pretos e curvos de papagaios. Mas, depois, de mais detido
exame, verificávamos que os bicos pretos pertenciam a sibas digeridas.
Tentaram suspender a antena com uma pandorga, mas com a primeira lufada
forte a pandorga mergulhou numa crista de onda e desapareceu. Experimentaram
depois levantá-la com um balão, mas o sol dos trópicos queimou-o fazendo-lhe
buracos, de modo que o balão murchou e caiu no mar. Finalmente houve o caso
com o papagaio. Demais, estivemos duas semanas na corrente de Humboldt
antes de sairmos de uma zona morta dos Andes na qual a onda-curta era muda e
sem vida como o ar numa caixa de sabão vazia.
Apenas durante alguns dias no meio do oceano penetrou muita água salgada no
canto do rádio e a estação deixou de funcionar totalmente. Os dois encarregados
andavam dia e noite às voltas com parafusos e ferros de soldar, e todos os
radioamadores distantes deram como findos os dias da jangada. Mas eis que,
uma noite, o prefixo LI 2B se fez ouvir no ar, e num instante o canto do rádio
zumbia como um vespeiro por terem várias centenas de radioamadores da
América batido em suas teclas simultaneamente, respondendo à chamada.
Depois da visita do tubarão gigante, ele não pôde mais conter-se, e uma noite
misturou as substâncias químicas com água, de acordo com as instruções, e
revelou dois filmes. Os negativos pareciam fotografias tiradas de muito longe;
não eram mais que manchas obscuras e enrugadas. O filme ficou estragado.
Telegrafamos aos que costumavam ter contato conosco, pedindo-lhes conselhos,
e a nossa mensagem foi apanhada por um radioamador de Hollywood; este
telefonou para um laboratório, e pouco depois nos falava advertindo que o
revelador estava demasiado quente; se não queríamos que o negativo se
enrugasse, não devíamos usar água acima de 60°. Agradecemos-lhe o conselho e
informamos que a mais baixa temperatura que nos cercava era a da própria
corrente oceânica, mais ou menos de 80°. Ora, Herman era engenheiro de
frigoríficos, e eu lhe disse por gracejo que fizesse a temperatura da água baixar a
60°. Herman pediu permissão para se utilizar da garrafinha de ácido carbônico
pertencente ao pequeno bote de borracha já cheio de ar. Depois de umas
ligeirezas de mãos numa caldadora coberta com um saco de dormir e um colete
de lã, de repente apareceu neve na barba intensa do engenheiro, e ele entrou com
um enorme pedaço de gelo branco na caldadora. Erik tornou a revelar e, dessa
vez, com esplêndidos resultados.
Depois que entramos na área mais próxima das ilhas dos mares do Sul, o tempo
se tornou um pouco mais inconstante, com aguaceiros esparsos, e o vento alísio
tinha mudado de direção. Tinha soprado invariavelmente de sueste até nos
acharmos já bem avançados na corrente equatorial; depois virará cada vez mais
para leste. Alcançamos a nossa posição mais setentrional a
10 de junho, com a latitude 6° 19’ sul. Estávamos tão perto do equador que se
tinha a impressão de que íamos navegar até mesmo acima das ilhas mais
setentrionais do grupo das Marquesas, e sumir-nos completamente no mar sem
achar terra.
Mas então o vento alísio rodopiou para mais longe, de este para nordeste, e,
numa curva, nos impeliu para a latitude do mundo das ilhas.
Havia casos em que uma ilha tinha o nome da estrela que tinha sua culminação
sobre ela noites e noites a fio em anos e anos seguidos.
Além do fato de que o céu estrelado era como uma gigantesca bússola cintilante
a revolutear de este para oeste, compreendiam que as diferentes estrelas que se
achavam exatamente sobre suas cabeças lhes mostravam sempre a que distância
estavam para o norte ou para o sul. Quando os polinésios exploraram e
constituíram seu atual domínio, que é toda a parte do mar que está mais próxima
da América, mantiveram tráfico entre algumas das ilhas durante muitas gerações.
Rezam tradições históricas que quando os chefes de Haiti visitaram Havaí, sita a
mais de 2.000 milhas marítimas para o norte e vários graus para o oeste, o
timoneiro dirigia primeiro a embarcação para o norte guiando-se pelo sol e pelas
estrelas, até que as estrelas que tinham acima de suas cabeças lhes dissessem que
estavam na latitude de Havaí. Então faziam um ângulo reto e dirigiam a
embarcação para oeste até se acharem tão perto que as aves e as nuvens lhes
diziam onde ficava o grupo de ilhas.
Tivemos um vento forte e mar banzeiro depois de vários dias de ligeira brisa de
nordeste.
Sendo já noite avançada, tivemos luar brilhante e vento muito fresco. Medíamos
a velocidade contando os segundos que gastávamos para passar por uma lasca de
pau atirada para a frente a um dos lados da jangada, e averiguamos que
estávamos estabelecendo um recorde de velocidade. Ao passo que a velocidade
média era de doze a dezoito ’lascas de pau”, segundo a gíria corrente a bordo,
descíamos agora, durante algum tempo, a ”seis lascas de pau”, e a fosforescência
remoinhava numa esteira regular por trás da jangada.
Quando o primeiro vagalhão nos atingiu, a jangada levantou para o lado a popa e
passou por cima do dorso da onda que acabava de quebrar, de modo que silvava
e fervia ao longo de toda a crista. Cavalgávamos aquele caldeirão de espuma que
se escoava de um e outro lado da jangada, ao mesmo tempo que, por baixo de
nós, o mar escachoava furibundo. A proa ergueu-se por fim enquanto a onda
passava, e nós resvalamos para o abismo cavado entre as vagas, inclinando-se
para ele primeiro a popa. Imediatamente depois, veio outra muralha de água e
empinou-se, enquanto nós éramos novamente levantados ao ar e claras massas
de água estrugiam sobre nós, à ré.
Para proteger o rádio estendemos lona na parede dos fundos e no lado esquerdo
da cabana.
Toda a carga solta foi amarrada com firmeza e a vela foi arriada e atada em torno
da verga de bambu. Encapotando-se o céu, o mar fez-se escuro e sinistro, e em
todas as direções viam-se cristas brancas de ondas que rebentavam. Havia longas
faixas de espuma do lado do vento, na raiz do dorso de grandes vagas, e em
qualquer parte onde os espinhaços das ondas haviam quebrado e se submergiam,
massas verdes, como se fossem chagas abertas no oceano, ficavam espumando
por muito tempo na água azul-escura. Ao rebentarem, as cristas se
desmanchavam, caindo sobre o mar uma chuva de salpicos salgados. Quando a
chuva tropical se desfazia em cima de nós em aguaceiros horizontais e açoitava a
superfície do mar, invisível ao redor de nós, a água que nos escorria dos cabelos
e da barba tinha gosto salobro, enquanto andávamos pelo convés cambaleando e
fazendo arco com o corpo, nus e enregelados, cuidando de que tudo estivesse em
ordem para fazer face à procela.
Quando o temporal se armou no horizonte sobre nós pela primeira vez, podia-se
ler nos nossos olhares a ansiedade e a inquietação. Mas quando realmente
desabou e a Kon-Tiki vencia com facilidade e até com entusiasmo tudo quanto
se lhe punha no caminho, o temporal tornou-se uma excitante forma de esporte.
Todos nos deleitávamos com a fúria que borbulhava em redor de nós, a qual a
jangada de pau-de-balsa superava tão airosamente, mantendo-se sempre
sobranceira no topo das ondas, leve como cortiça, enquanto que toda a
preponderância da água sanhuda escachoava sempre alguns centímetros por
baixo. O mar tinha muita coisa em comum com as montanhas num tempo
desses. Era como sair para o ermo durante uma tempestade, galgando os mais
elevados planaltos nus e cinzentos das montanhas. Conquanto nos achássemos
no coração dos trópicos toda vez que a jangada deslizava para cima e para baixo
sobre a espumante vastidão do oceano, sempre imaginávamos estar descendo
pelo morro abaixo entre massas de neve e rochedos.
Num tempo desses o leme devia ter lume no olho. Quando as ondas mais a pique
passavam debaixo da metade dianteira da jangada, os toros de trás se erguiam
para fora da água, mas no momento seguinte tornavam a mergulhar para subir
pela nova crista. De cada vez as ondas vinham tão perto uma da outra que a que
estava mais atrás nos alcançava enquanto a primeira ainda suspendia no ar a
proa; então os sólidos lençóis de água desabavam sobre o leme em catadupa
terrífica, mas no instante seguinte a popa ia para cima e a cachoeira desaparecia
como que através dos dentes de um garfo.
Calculamos que, num mar calmo ordinário, onde em geral decorriam sete
segundos entre as ondas mais altas, haviam entrado pela popa, em vinte e quatro
horas, duzentas toneladas de água, o que mal notamos, porque a água assim
como penetrava tranquilamente ao redor das pernas nuas do timoneiro,
assim tranquilamente se escoava por entre os toros. Mas, numa tempestade forte,
mais de dez mil toneladas de água entravam a bordo pela popa no decurso de
vinte e quatro horas, visto que massas de água variando de alguns galões a duas
ou três jardas cúbicas, e às vezes muito mais, penetravam na embarcação de
cinco em cinco segundos. A torrente algumas vezes irrompia com violento
fragor, e o timoneiro se via com água até a cintura e tinha a impressão de estar
lutando com a correnteza num rio caudaloso. A jangada parecia tremer por um
momento, mas depois a carga cruel que a oprimia à ré tornava a despenhar-se no
mar em grandes cascatas.
Não era possível verse um único pacato pilotinho. Ou tinham sido devorados
pelos furibundos atuns, ou haviam-se escondido nas frinchas por baixo da
jangada, ou fugiram para longe do campo de batalha. Não ousávamos pôr a
cabeça dentro da água para ver.
Senti desagradável empurrão (e depois não pude deixar de rir de meu completo
desnorteamento) quando me achava na parte posterior da jangada obedecendo a
imperioso chamado da natureza. Estávamos acostumados a um regular marulho
quando nos achávamos na privada, mas afigurou-se-me contrário a todas as
probabilidades razoáveis receber à popa, como de maneira totalmente inesperada
recebi, uma violenta pancada desfechada por qualquer coisa grande, fria e
pesadona que me dava marradas, como se fosse a cabeça de um tubarão. Quando
eu fazia menção de subir ao estai do mastro, com a sensação de ter um tubarão
pendurado no posterior, antes de sarar do susto, Herman que, curvado sobre o
remo de direção, ria a bandeiras despregadas, informou-me que um atum
colossal com seus setenta e tantos quilos de carne fria pespegara de lado uma
beijoca na minha nudez. Posteriormente, quando Herman e depois Torstein
estavam de plantão, o mesmo peixe tentou saltar para bordo com as ondas
rebentando de popa, e duas vezes o enorme animal quase subia pela ponta dos
toros, mas logo descaía para o mar antes que conseguíssemos aferrar aquele
corpo escorregadio. Depois disto, um robusto e desnorteado bonito veio
diretamente parar a bordo, trazido por um vagalhão; aí, com ele e mais um atum
apanhado na véspera, deliberamos pescar, a fim de pôr ordem no caos sangrento
que fervia em redor de nós. Diz o nosso diário:
Um tubarão de 1,80m foi colhido no anzol e depois puxado para bordo. Logo
que o anzol de novo desceu à água, foi engolido por um tubarão de 2,40m, que
igualmente puxamos para bordo. Lançado o anzol pela terceira vez ao mar,
pegamos outro tubarão de 1,80m e já o tínhamos puxado para a beira da
jangada quando ele se soltou e submergiu. Lançado de novo no mar o anzol,
chegou-se a ele um tubarão de 2,40m que nos deu o que fazer. Já tínhamos sua
cabeça sobre os toros quando as quatro linhas de aço foram cortadas e o peixe
sumiu-se no abismo. Atirado ainda uma vez o anzol à água, foi arrastado para
bordo um tubarão de 2 metros e pouco. No momento era perigoso ficar de pé
sobre os resvaladiços troncos, porquanto os três tubarões continuavam a lançar
para o alto as cabeças querendo morder, muito tempo depois que pensávamos
terem morrido. Arrastamos os tubarões pela cauda amontoando-os na coberta
da proa, e logo depois ficou preso no anzol um grande atum, o qual nos deu
mais trabalho do que qualquer tubarão, antes de o termos a bordo. Era tão
gordo e pesado que nenhum de nós pôde erguê-lo pela cauda.
Numa daquelas noites, pela primeira vez ouvi um dos companheiros dizer que
havia de ser agradável poder espreguiçar-se à vontade sobre a relva verde de
uma ilha cheia de coqueiros; folgaria de ver alguma coisa que não fosse peixe
frio e mar grosso.
O tempo se tornara inteiramente calmo de novo, mas nunca mais foi tão
constante que se pudesse contar com ele. Violentas e inesperadas rajadas de
vento traziam consigo, de vez em quando, fortes pancadas de chuva que
bendizíamos, porque grande parte da provisão de água tinha principiado a
estragar-se, apresentando gosto de malcheirosa água de brejo.
Quando a chuva caía com mais força, apanhávamos água do telhado da cabana e
ficávamos nus no convés, para dar-nos ao luxo de tirar com água doce o sal
entranhado em nossos corpos.
Herman tentou agarrar o saco que se afundava, deu um passo em falso e caiu na
água.
Ouvimos um débil grito pedindo socorro no meio do motim das ondas, e vimos a
cabeça de Herman e um braço a acenar, e ainda um vago objeto de cor verde
rodopiando na água perto dele. Fazia esforços hercúleos para volver à jangada
através das vagas que o levantavam afastando-o do lado esquerdo da
embarcação. Torstein, que estava ao remo de governo na popa, e eu na proa,
fomos os primeiros a avistá-lo e ficamos gelados de medo.
”Homem ao mar!” berramos com quanta força tínhamos, ao mesmo tempo que
corríamos a agarrar o salva-vidas mais próximo. Os outros não tinham ouvido o
grito de Herman por causa do barulho do mar, mas num instante houve uma
lufa-lufa no convés. Herman era excelente nadador, e conquanto percebêssemos
imediatamente que sua vida corria perigo, tínhamos muita esperança de vê-lo,
com umas braçadas, alcançar a beira da embarcação antes que fosse tarde
demais. Torstein, que se achava mais próximo, agarrou a caixa de bambu em
volta da qual estava a linha que usávamos para o bote, pois ela se encontrava ao
seu alcance. Foi a única vez em toda a viagem que se lançou mão daquela linha.
Tudo sucedeu em poucos segundos. Herman estava agora no nível da popa da
jangada, mas a poucos metros de distância, e sua derradeira esperança era dar
umas braçadas até a pá do remo de governo e pendurar-se nela. Tendo-lhe
escapado a ponta dos toros, quis ver se agarrava a pá do remo, mas esta lhe
resvalou também. E lá estava ele, justamente onde a experiência havia
demonstrado que o que caía não voltava. Enquanto Bengt e eu lançávamos o
botezinho à água, Knut e Erik atiravam o cinto salva-vidas. Trazendo uma linha
comprida, esse cinto estava bem à mão, pendurado no canto do telhado da
cabana. Após alguns malogrados lanços, Herman achava-se já bem afastado do
remo de direção, nadando desesperadamente para acompanhar a jangada,
enquanto a distância aumentava com cada rajada de vento.
Percebeu que, dali por diante, a brecha tenderia a aumentar, mas pôs uma ligeira
esperança no botezinho que agora estava na água. Se não fosse a linha que
funcionava como uma espécie de freio, talvez teria sido possível dirigir a
embarcaçãozinha de borracha ao encontro do nadador, mas se o bote
conseguiria, ou não, voltar à Kon-Tiki era outra questão.
Nisso, eis que vemos Knut erguer-se num ímpeto e mergulhar de cabeça no
oceano. Tinha numa das mãos o salva-vidas e lá se foi nadando com a outra.
Cada vez que a cabeça de Herman aparecia sobre o dorso de uma onda, não se
via a de Knut, e cada vez que Knut aparecia em certo ponto, ali não estava
Herman. Mas de repente vimos as duas cabeças ao mesmo tempo; os dois
homens nadavam um para o outro e ambos aferraram o salva-vidas.
Knut fez sinal com o braço, e como entrementes o bote de borracha tivesse sido
puxado para bordo, nós quatro agarramos a linha do salva-vidas e puxamos a
todo vapor, com os olhos cravados no grande objeto escuro que se podia ver
logo atrás dos dois homens. Esse mesmo misterioso animal que estava na água ia
empurrando um grande triângulo preto-esverdeado acima das cristas das ondas, e
quase deu um empurrão em Knut quando este se dirigia ao encontro de Herman.
Somente Knut sabia então que o triângulo não pertencia a um tubarão ou a
qualquer outro monstro marinho. Era a extremidade cheia de ar do saco de
dormir impermeável de Torstein.
O saco de dormir submergiu pouco tempo depois que puxamos para bordo, sãos
e salvos, os dois homens. Seja o que for que tenha arrastado para o fundo o saco
de dormir, perdeu uma presa bem melhor.
- Antes ele do que eu - disse Torstein e pegou no remo de governo onde o tinha
largado.
Mas, naquela noite, não houve outros comentários tão alegres. Muito tempo
depois, nós ainda sentíamos um frio correr-nos pelos nervos e ossos. Entretanto,
nossos arrepios se misturavam com um cálido sentimento de gratidão por
estarmos de novo todos seis a bordo.
Naquele dia tivemos muita coisa agradável para dizer a Knut, a Herman e até a
nós mesmos.
Não houve, porém, muito tempo para refletir no que já havia sucedido, porque,
enquanto o céu se toldava por cima de nossas cabeças, as lufadas de vento
recrudesciam, e, antes de cair a noite, nova trabuzana pairava sobre nós. Afinal
resolvemos pendurar o cinto salva-vidas atrás da jangada numa linha comprida,
de modo que tivéssemos alguma coisa atrás do remo de direção para o qual
pudéssemos apelar se um de nós tornasse a cair na água durante uma borrasca.
Em seguida ficou totalmente escuro à nossa volta, enquanto a noite caia
encobrindo a jangada e o mar. Atirados para aqui e para ali no meio das trevas,
apenas ouvíamos a ventania esfuziando nos mastros e patarrases, enquanto as
rabanadas investiam com tanta fúria contra a cabana, que pensamos que ela seria
cuspida à água. Mas a nossa choça era coberta de lona e solidamente amarrada
com cabos. E percebemos que a Kon-Tiki servia de joguete às vagas espumantes,
enquanto os toros se moviam para cima e para baixo com a oscilação das ondas
como as chaves de um instrumento musical. Nós nos espantávamos ao ver que
catadupas de água não esguichassem pelas largas fisgas do soalho; elas apenas
funcionavam como um fole regular através do qual o ar úmido corria para cima e
para baixo. Durante cinco dias completos o tempo oscilou entre temporal
desfeito e ventania moderada; o mar se cavava formando amplos vales cheios de
vapor proveniente de espumantes ondas azul-cinzentas que pareciam estar com
os dorsos achatados sob a pressão do vento. Então, no quinto dia, os céus se
rasgaram, deixando ver uma nesga azul, e o negro manto tristonho das nuvens
cedeu lugar ao firmamento azulado, enquanto a tempestade ia amainando.
Havíamos atravessado o mau tempo com o remo de direção partido e a vela
rasgada, ao passo que as quilhas corrediças, tendo-se soltado, ficavam batendo
nos toros como alavancas de unha, porque todas as cordas que as tinham presas
debaixo da água estavam completamente gastas. Mas nós e a carga íamos sem
novidade.
Todavia, depois da ultima tempestade, era claro que devíamos boiar e resistir
durante a curta distância que nos separava das ilhas à frente. E eis que surgia
agora novo problema: como iria terminar a viagem?
A Kon-Tiki devia continuar inexoravelmente a sua rota para oeste até dar com a
proa num sólido rochedo ou em algum outro objeto fixo que lhe detivesse o
movimento. A viagem só terminaria quando todos os homens houvessem
desembarcado sãos e salvos em alguma das numerosas ilhas polinésias que
tínhamos diante de nós.
Depois de termos arrostado a última tempestade, era bastante incerto aonde iria
acabar a jangada. Estávamos a igual distância das ilhas Marquesas e do grupo
Tuamotu, e em tal posição que era perfeitamente possível passarmos entre os
dois grupos de ilhas sem nem de longe lobrigar qualquer uma delas. Do grupo
das Marquesas a ilha mais próxima ficava a 300 milhas marítimas a noroeste, e
no grupo Tuamotu a mais próxima ficava a 300 milhas marítimas a sudeste, ao
passo que corrente e vento eram incertos, com o rumo geral para oeste e para a
vasta brecha oceânica entre os dois grupos de ilhas.
A ilha que ficava mais próxima de noroeste não era outra senão Fatuhiva, a
ilhota montanhosa e coberta de matas onde eu havia morado numa cabana
construída sobre estacas na praia, e onde ouvi as vividas histórias que o velho
me contava do avito herói Tiki. Se a Kon-Tiki singrasse para aquela praia, eu
encontraria muitos conhecidos, menos, provavelmente, o velho narrador de
histórias. Ele já devia ter partido há muito, na esperança de encontrar de novo o
Tiki verdadeiro. Se ela dirigisse o seu curso para aquelas serranias do grupo das
Marquesas, as poucas ilhas desse grupo estavam muito separadas umas das
outras, e ali o mar bramia indômito quebrando em fragas escarpadas. Nesses
lugares devíamos ficar de alcatéia, ao dirigirmos a jangada para a boca dos
poucos vales que sempre iam terminar numa estreita faixa de praia.
Se, pelo contrário, ela tornasse o rumo dos recifes de coral do grupo Tuamotu, lá
as inúmeras ilhas ficavam bem juntas e cobriam vasto espaço do oceano. Mas
esse grupo de ilhas é também conhecido como o Baixo Arquipélago ou
Arquipélago Perigoso, porque é todo formado de pólipos de coral e consta de
traiçoeiros escolhos submersos e atóis cobertos de palmeiras que se erguem
somente a dois ou três metros acima da superfície do mar. Perigosos recifes
anulares ali se levantam em redor de cada atol, como que a protegê-lo,
constituindo uma ameaça à navegação em toda a área. Mas ainda que os atóis de
Tuamotu sejam formados por pólipos de coral, enquanto que as ilhas Marquesas
são restos de vulcões extintos, ambos os grupos são habitados pela mesma raça
polinésia, e as famílias reais de ambos consideram Tiki como seu primeiro
antepassado. Pouco antes de 3 de julho, quando estávamos ainda a 1.000 milhas
marítimas da Polinésia, a própria natureza se incumbiu de dizer-nos como no
tempo deles ela se incumbira de dizer aos viajantes de jangada vindos do Peru,
que realmente havia terra em certo ponto do oceano, à frente. Enquanto nos
achávamos a umas mil milhas da costa do Peru, vimos pequenos bandos de
fragatas. Essas aves desapareceram mais ou menos a 100° oeste, e depois disto
só vimos pequenas procelárias que têm sua morada no mar. Mas no dia 3 de
julho as fragatas reapareceram, a 125° oeste, e a partir daquela data pequenos
bandos dessas aves podiam ser vistos frequentemente, já nas alturas, já sobre as
cristas das ondas, onde pegavam peixes-voadores que saltavam ao ar fugindo dos
dourados. Como essas aves não vinham da América atrás de nós, sua morada
devia ficar em outra região à frente.
E no dia seguinte tivemos a primeira visita certa, vinda diretamente das ilhas da
Polinésia.
Foi uma festa quando dois grandes sulas patolas foram avistados acima do
horizonte para as bandas do oeste e logo depois passaram sobre o mastro, em
voo baixo. Com uma envergadura de metro e meio descreveram vários círculos
em torno de nós, depois dobraram as asas e se instalaram no mar, a nosso lado.
Uns dourados compareceram imediatamente ao local e, curiosos, se rebuliam em
volta dos grandes pássaros que nadavam, mas nem estes atacaram aqueles, nem
aqueles mexeram com estes. Foram eles os primeiros mensageiros vivos que nos
vieram dar as boas-vindas à Polinésia. A noite não voltaram, preferindo
descansar no mar, e depois da meia-noite ainda os ouvimos voar em redor do
mastro soltando gritos roucos.
Ficávamos cada dia sabendo a direção e a força da corrente pela diferença entre
a posição calculada por Erik e a por ele medida.
O vento alísio, afinal, não teve ânimo de nos decepcionar já na última hora.
Compareceu de novo ao seu posto e imprimiu alguns empurrões na mísera
embarcação que se preparava para fazer entrada numa nova e estranha parte do
mundo. Cada dia que passava, maiores bandos de aves marítimas vinham e
descreviam círculos ao redor de nós, sem destino e em todas as direções. Uma
tarde, quando já o sol ia sumindo no oceano, percebemos claramente que as aves
tinham recebido violento ímpeto. Voavam tomando o rumo de oeste sem prestar
atenção a nós nem aos peixes-voadores. E do alto do mastro podíamos observar
que assim como vinham, voavam todas na mesma direção. Talvez que lá da
altura estivessem vendo alguma coisa que não víamos.
Talvez voassem por instinto. Em todo caso, voavam com um plano, dirigiam-se
à ilha mais próxima, a seu lugar de origem.
Fomos em direção à nuvem até ela desaparecer com o sol. O vento estava firme
e, com o remo de governo bem amarrado, a Kon-Tiki foi seguindo sozinha a sua
rota, como tantas vezes fazia quando o tempo era bom. O que agora competia ao
homem do plantão era sentar-se o maior tempo possível na prancha junto ao topo
do mastro, que reluzia com o uso, e prestar atenção a qualquer indício de terra.
Durante toda aquela noite houve uma ensurdecedora bulha de pássaros por cima
da jangada.
Tinha o rosto radiante. Pus-me em pé de um salto, sendo imitado por Bengt que
ainda não pegara no sono. Um atrás do outro, amontoamo-nos no lugar mais alto
que pudemos atingir, no ponto onde os mastros se cruzavam. Muitas aves
esvoaçavam em redor de nós, e um pálido véu roxo-azulado estendido sobre o
firmamento se refletia no mar, como uma derradeira lembrança da noite que se
despedia. Mas sobre o horizonte a leste começara a espalhar-se um frouxo clarão
avermelhado, que longe, a sueste, formava aos poucos um fundo purpurino para
uma débil sombra, como se fosse uma linha traçada por lápis azul quase à
superfície do mar.
Nosso primeiro pensamento foi que a ilha não estava onde devia estar. E como
ela não podia ter mudado de lugar, a jangada é que, durante a noite, devia ter
sido colhida numa corrente que se dirigia para o norte. Bastava-nos lançar os
olhos sobre o mar para logo percebermos, pela direção das ondas, que as trevas
nos tinham feito perder a oportunidade. Em nossa posição atual, o vento não
mais nos permitia colocar a jangada no rumo da ilha. A região que ficava em
redor do arquipélago de Tuamotu estava cheia de fortes correntes oceânicas
locais que se ramificavam em vários sentidos quando se dirigiam ao encontro da
terra, e muitas delas mudavam de rumo ao encontrarem poderosas correntes de
marés dirigindo-se para dentro e para fora sobre escolhos e lagoas.
Procuramos virar o remo de governo, embora soubéssemos muito bem que era
inútil. Às seis e meia o sol emergiu do mar e subiu diretamente, como acontece
nos trópicos. A ilha ficava distante algumas milhas marítimas e de longe parecia
uma faixa de floresta que se estendia pelo horizonte além. As árvores se
apinhavam por trás de uma estreita praia clara, situada tão baixo que, a
intervalos regulares, as ondas a ocultavam. De acordo com as posições de Erik,
era Puka-Puka, primeiro posto avançado do grupo Tuamotu. As Direções
náuticas para as ilhas do Pacífico, ano de 1940, os nossos dois mapas diferentes
e as observações de Erik davam quatro posições distintas para essa ilha, mas,
como não havia outras ilhas em toda aquela redondeza, não podia haver dúvida
quanto à identidade da que estávamos avistando. Não se verificaram assomos
extravagantes a bordo. Depois de se orientar a vela e capear o leme, formamos
um grupo silencioso junto ao topo do mastro ou ficamos de pé no convés, com
os olhos fitos na terra que subitamente surgira no meio do oceano intérmino e
avassalador. Até que enfim tínhamos uma prova visível de que realmente nos
havíamos mexido durante todos aqueles meses; não estiváramos apenas a
cambalear de um lado para outro no centro do mesmo eterno horizonte circular.
Tínhamos a impressão de que a ilha era móvel e que, de repente, havia entrado
na esfera do oceano azul e vazio em cujo centro estava a nossa residência
permanente, como se ela viesse vogando lentamente para o nosso domínio, em
direção ao horizonte oriental. Todos nos sentimos cheios de uma satisfação plena
e tranquila por havermos de fato alcançado a Polinésia, mas a essa satisfação
vinha misturar-se ligeiro e momentâneo desencantamento por termos de nos
submeter irremediavelmente a ver a ilha que lá permanecia como uma miragem,
enquanto continuávamos o eterno cruzeiro para oeste.
Pouco depois de nascer o sol, espessa nuvem negra de fumaça se ergueu acima
das copas das árvores, à esquerda do centro da ilha. Acompanhamo-la com os
olhos e pensamos conosco que os habitantes do lugar se estavam levantando e
preparando a primeira refeição.
Não nos passou pela ideia, então, que os postos locais de observação nos tinham
visto e que com aquela fumaça nos enviavam sinais convidando-nos a
desembarcar. Por volta das sete horas percebemos um fraco cheiro de pau-de-
borao queimado que nos fez cócegas nas narinas impregnadas de sal. O cheiro
despertou em mim imediatamente fugitivas lembranças da fogueira na praia de
Fatuhiva. Meia hora depois sentimos cheiro de madeira recentemente cortada e
de mata. A ilha agora começara a diminuir e a ficar à retaguarda, de modo que
recebíamos dela ligeiros sopros de aragem. Durante uns quinze minutos eu e
Herman, agarrados à ponta do mastro, deixamos o cheiro quente de folhagem e
verdura coar-se pelas nossas narinas. Aquilo era a Polinésia - aquele rico cheiro
de terra seca após noventa e três dias de água salgada no meio das ondas. Bengt
já ressonava no seu saco de dormir. Erik e Torstein estavam na cabana deitados
de costas, meditando, e Knut corria para dentro e para fora, aspirava o cheiro de
folhagem e escrevia no seu diário.
Às oito e meia Puka-puka afundou-se no mar atrás de nós, mas até às onze horas
pudemos ver, trepados ao mastro, uma esgarçada lista azul acima do horizonte, a
leste. Depois, também isto desapareceu, e uma nuvem alta, elevando-se quase
imóvel para o céu, era o único indício que se tinha da situação de Puka-Puka. As
aves haviam desaparecido. Elas ficavam de preferência no lado em que o vento
soprava para a ilha, e assim teriam o vento consigo quando à noite voltassem
para casa, com o papo cheio. Os dourados também tinham diminuído
sensivelmente, e havia outra vez um ou outro piloto debaixo da jangada.
Naquela noite Bengt disse que suspirava por uma mesa e uma cadeira, pois
estava cansado de ficar deitado ora de costas, ora de bruços enquanto lia. Por
outro lado, folgava de que não tivéssemos podido desembarcar, porquanto tinha
ainda três livros para ler. A Torstein veio de repente o desejo de comer uma
maçã, e quanto a mim, acordei durante a noite por ter sentido nitidamente um
delicioso cheiro de bife acebolado. Mas sabem o que era? Apenas uma camisa
suja.
Na manhã do dia seguinte descobrimos duas novas nuvens que se erguiam como
o vapor de duas locomotivas abaixo do horizonte. O mapa nos esclareceu que os
nomes das ilhas de coral de onde as nuvens subiam eram Fangahina e Angatau.
A nuvem que se librava sobre esta última era a mais favorável para nós,
enquanto havia vento, por isso rumamos para lá, amarramos solidamente o remo
e gozamos a maravilhosa paz e liberdade do Pacífico. Tão bela era a vida num
dia bonito passado sob a coberta de bambu da Kon-Tiki, que fomos sorvendo
todas as impressões, na certeza de que a viagem se achava quase no seu termo,
fosse qual fosse a sorte que nos aguardava.
Três dias e três noites dirigimos o rumo sem perder de vista a nuvem que pairava
sobre Angatau; o tempo estava magnífico. Somente o remo regulava a marcha, e
a corrente não nos pregava partidas. Na quarta manhã Torstein rendeu Herman
depois do plantão de 4 às 6, recebendo deste a comunicação de que lhe parecera
ter visto à claridade do luar os contornos de uma ilha baixa. Quando, pouco
depois, o sol surgiu, Torstein meteu a cabeça pela porta da cabana dentro e
gritou: - Terra à vista! Precipitamo-nos todos para o convés, e o que vimos nos
fez içar todas as nossas bandeiras. Primeiro a norueguesa à popa, depois a da
França na ponta do mastro porque estávamos rumando para uma colônia
francesa. Daí a pouco toda a coleção de bandeiras da jangada tremulava aos
frescos ventos alísios, a bandeira americana, a inglesa, a peruana e a sueca, além
da bandeira do Clube de Exploradores, de modo que a bordo não havia dúvida
de que agora a Kon-Tiki estava empavesada.
Desta vez a posição da ilha era ideal, ficando justamente na nossa rota e um
pouco mais afastada de nós do que estivera Puka-Puka quando, quatro dias antes,
surgira ao nascer do sol. Quando o astro se ergueu no céu por trás de nós,
pudemos ver um clarão verde que se elevava na direção do sol brumoso sobre a
ilha. Era o reflexo da tranquila lagoa verde no interior do recife circunvizinho.
Alguns dos atóis baixos lançavam ao alto miragens dessa espécie por vários
milhares de metros, de sorte que mostravam sua posição aos primitivos
navegantes muitos dias antes que a própria ilha se fizesse visível acima do
horizonte. Pelas dez horas, nós mesmos tornamos o remo de governo; cabia-nos
agora decidir para que parte da ilha rumaríamos. Já podíamos distinguir
separadamente umas das outras as franças das árvores, brilhando no sol, que
servia de fundo de quadro à basta folhagem.
Sabíamos que nalgum lugar existente entre nós e a ilha havia perigoso cachopo
submerso, que se achava de emboscada contra o que quer que se aproximasse da
inocente ilha. Esse escolho ficava logo abaixo do profundo marulho das ondas
da parte leste, e como as imensas massas de água perdiam o equilíbrio por cima
do cachopo, oscilavam no ar e submergiam, reboando e fremindo, sobre o recife
de coral a pique.
Do mar nada víamos dessa insidiosa armadilha, íamos navegando no sentido das
ondas, e apenas víamos o dorso curvo e brilhante de onda e mais onda a
desaparecer no rumo da ilha.
Tanto o recife quanto toda a sarabanda espumante dos gênios do mal sobre ele
ficavam ocultos por trás de séries e mais séries de largos dorsos de ondas à
frente. Mas ao longo de ambas as extremidades da ilha, onde víamos o contorno
da praia, assim ao norte como ao sul, percebemos que a algumas centenas de
metros de terra o mar era uma branca massa fervente que subia a grande altura.
Regulamos a marcha de modo que roçássemos de leve a parte externa do
boqueirão sinistro à altura da ponta meridional da ilha, e esperávamos, ao chegar
lá, poder navegar perlongando o atol até que ou rodeássemos a ponta do lado de
sotavento, ou que, em todo caso, tocássemos, antes de por lá passarmos, um
lugar tão pouco fundo que conseguíssemos deter a marcha com uma âncora
provisória e aguardar a mudança de vento que nos pusesse a sotavento da ilha.
Por volta do meio-dia pudemos ver pelo binóculo que a vegetação da praia
consistia em coqueiros novos e verdes, cujas copas se confundiam com a sebe
ondulante formada pela luxuriante vegetação do primeiro plano. Defronte deles,
a praia cintilante estava juncada de bom número de grandes blocos de coral. O
único sinal de vida eram uns pássaros brancos voando sobre os penachos dos
coqueiros.
As duas horas nos achávamos tão perto que começamos a navegar ao longo da
ilha, quase costeando o desconcertante recife. À proporção que nos
avizinhávamos, ouvíamos o quebrar das vagas, como uma cascata constante, de
encontro ao escolho, e em breve elas soavam como um trem rápido que corresse
paralelo a nós, a umas centenas de metros do lado de estibordo. Agora também
podíamos ver o alvo borrifo que de vez em quando era atirado ao ar por trás dos
encaracolados dorsos das ondas já dentro da área, onde o ”trem” roncava
sempre. Dois homens ao mesmo tempo faziam girar o remo de direção; estavam
atrás da cabana de bambu e por isso nada enxergavam à frente. Erik como piloto
estava em pé sobre o caixote da cozinha e transmitia indicações aos dois homens
junto do pesado remo de governo. O nosso plano era ficarmos o mais próximo
possível do perigoso recife, uma vez que não corrêssemos risco. Da ponta do
mastro observávamos com atenção continua, procurando uma brecha ou abertura
no recife por onde pudéssemos tentar a passagem da jangada. A corrente nos
levava agora ao longo da extensão toda do recife, e não mais nos enganava. As
quilhas corrediças nos permitiam dirigir a embarcação a um ângulo de cerca de
20° em relação ao vento em ambos os lados, e o vento soprava ao longo do
recife.
Quanto podia alcançar a vista ao longo da costa, não havia brecha nem
passagem. Por isso Erik orientou a vela apertando as escotas de bombordo e
afrouxando as de estibordo, e os timoneiros o acompanharam com o remo de
governo, de modo que a Kon-Tiki tornou a virar para fora o bico da proa e
escapou da zona de perigo até seu próximo impulso para dentro.
Cada vez que a Kon-Tiki dirigia a dianteira para o recife e outra vez se desviava,
nós dois que íamos à sirga no botezinho ficávamos com o coração aos pulos,
pois nos aproximávamos tanto que sentíamos o embate das ondas tornar-se cada
vez mais intenso, enquanto elas mais se enfureciam e mais alto se elevavam. E
em cada uma dessas vezes nos convencíamos que Erik tinha avançado demais e
que já não havia esperança de novamente tirar de lá a Kon-Tiki, pondo-a a salvo
dos vagalhões que nos impeliam para o diabólico recife vermelho. Erik, porém,
sempre se saía galhardamente na sua manobra, e de novo a Kon-Tiki se safava
ilesa para o mar largo, desembaraçando-se das garras da sucção. E íamos durante
todo o tempo deslizando ao longo da ilha, tão perto que víamos todos os detalhes
da praia, e contudo sua celestial formosura nos era inacessível por causa do
abismo espumante que se interpunha entre ela e nós.
Pelas três horas o coqueiral da praia se abriu e pela larga brecha vimos uma
lagoa verde e cristalina. Mas o recife circundante lá estava, compacto como
nunca, mordiscando sinistramente a espuma com os seus dentes de um vermelho
sanguíneo. Passagem não havia e o coqueiral tornou a fechar-se enquanto
penosamente prosseguíamos o curso costeando a ilha e o vento por trás de nós.
Depois o coqueiral se tornou cada vez mais ralo permitindo-nos ver o interior da
ilha de coral. Esta consistia numa lindíssima lagoa de água salgada, qual imenso
poço silencioso, rodeado de coqueiros oscilantes e de claras praias de banho. A
sedutora ilha de coqueiros verdes formava um largo e macio anel de areia em
torno da hospitaleira lagoa, e um segundo anel cintava a ilha toda - como espada
de um vermelho ferrugento que defendia os portões do céu.
Mais ou menos às cinco horas, passamos por duas choças de telhado de palmas
que ficavam entre as árvores da praia. Não se via fumaça nem qualquer sinal de
vida.
Marcamos a jangada ao longo do recife, o mais próximo que nos foi possível
aventurar-nos.
O vento cessara de todo, de modo que percebemos que nos achávamos quase a
sotavento da ilha. Nisso vimos que lançavam à água uma canoa e duas pessoas
pularam para dentro e entraram a remar no outro lado do recife. Lá, num ponto
longínquo, viraram para fora a vante do bote, e vimo-la atirado ao alto pelas
ondas quando atravessou como uma bala a passagem do recife, vindo direto para
o nosso lado. Portanto, a abertura do recife se achava lá; lá estava a nossa única
esperança. Agora também podíamos ver a aldeia inteira pousada entre os fustes
dos coqueiros. Mas as sombras já se estavam alongando.
Os dois homens na canoa acenaram com a mão. Também acenamos ansiosos, e
eles aumentaram a velocidade. Era uma canoa polinésia, e dois vultos trigueiros,
vestindo camisa de meia, remavam, de frente para nós. Viriam agora as
dificuldades para nos entendermos.
Seu vocabulário inglês não ia além dessas duas palavras, e ainda assim levava
vantagem sobre seu modesto amigo que se conservava atrás, também sorridente,
e impressionado com o saber do companheiro.
Erik também cabeceou ufano. Ele tinha razão: estávamos onde o sol lhe dissera
que estávamos.
Tivemos então de recorrer aos remos, e com toda a presteza, antes que o vento
ganhasse preponderância. A toda a pressa colhemos a vela e cada um foi buscar
o seu remo grande.
Eu quis dar mais um remo a cada um dos dois nativos, que se estavam deliciando
com os cigarros que lhes tínhamos dado. Eles se limitaram a abanar
energicamente a cabeça, indicaram a direção e se mostraram confusos. Fiz sinal
de que devíamos todos empunhar o remo e repeti as palavras ”queremos ir para
terra”. Então o mais espevitado dos dois se inclinou, fez com a mão direita no ar
o movimento de quem aciona uma manivela e disse:
- Brrrrrr... !
Não havia dúvida alguma de que ele queria que puséssemos a máquina a
funcionar.
Escurecia, e estávamos sós mais uma vez, remando desesperadamente para não
sermos de novo arrastados para o mar.
Com esses homens, que conheciam bem o lugar, não havia perigo; eles não nos
deixariam ir outra vez para o mar largo e não nos perderiam de vista; de modo
que naquela noite estaríamos em terra!
Mais que depressa amarramos cordas da popa de todas as canoas à proa da Kon-
Tiki, e as quatro sólidas canoas se estenderam em forma de leque, como uma
parelha de cães, à frente da jangada. Knut pulou para o botezinho e achou um
lugar como cão de tiro entre as canoas, e nós outros, munidos de remos, nos
postamos nos dois toros exteriores da Kon-Tiki. E assim se iniciou, pela vez
primeira, uma luta contra o vento leste, que tinha estado tanto tempo às nossas
costas.
Estava então completamente escuro, até que a lua se mostrou. Corria um vento
fresco. Em terra os habitantes da aldeia, tendo ajuntado mato seco, acenderam
uma grande fogueira para nos mostrar a direção da passagem através do recife. O
ribombo que vinha do recife nos rodeava na escuridão como incessante e
ensurdecedora catadupa, e o barulho se tornou cada vez maior. Não podíamos
ver a parelha que nos puxava nas canoas à frente, mas ouvíamos as respectivas
tripulações entoando entusiásticos cantos de guerra em polinésio, com toda a
força dos pulmões. Sabíamos que Knut ia com eles porque, toda vez que a
música polinésia se interrompia, ouvíamos a voz solitária de Knut cantando
canções populares norueguesas no meio do coro dos polinésios. Para completar o
caos nós, na jangada, encetamos uma modinha gaiata, e tanto os homens brancos
como os morenos ofegavam junto aos remos, ao mesmo tempo que riam e
cantavam.
Estávamos de muito bom humor. E não era para menos, pois, após noventa e
sete dias de viagem, chegáramos à Polinésia. Naquela noite ia haver uma festa
na aldeia. Os nativos ovacionavam e berravam. Havia um desembarque em
Angatau apenas uma vez por ano, quando vinha de Taiti a escuna-de-copra para
buscar cocos secos.
Assim, naquela noite ia realmente haver em terra uma festa em redor do fogo.
Foi quando, apesar da escuridão, Knut apareceu com o botezinho. Tivera uma
ideia: podia ir no bote de borracha buscar mais gente. Em caso de necessidade,
cinco ou seis homens podiam apinhar-se na embarcaçãozinha.
Era arriscar muito. Knut não conhecia o lugar; jamais atinaria com a abertura do
recife de coral naquela escuridão absoluta. Então propôs levar consigo o chefe
dos nativos, que lhe podia mostrar o caminho. Tampouco esse plano me
inspirava confiança, pois que o nativo não tinha experiência em manobrar um
canhestro botezinho de borracha através da estreita e perigosa passagem.
Todavia, pedi a Knut que fosse buscar o chefe, o qual estava sentado a remar no
escuro à nossa frente, para ouvirmos o que ele pensava da situação. Era bastante
evidente que já não conseguíamos impedir que a corrente nos levasse para trás.
O nosso companheiro desapareceu no escuro pondo-se à procura do chefe.
Passado algum tempo, como Knut não voltasse com o líder, gritamos por eles,
mas não recebemos outra resposta senão umas guinadas de risos dos polinésios
que iam à frente. Knut sumira nas trevas. Nesse momento percebemos o que
tinha acontecido. No meio de toda aquela bulha e barafunda, Knut baralhara o
que havia sido combinado e rumara para a praia com o chefe. Podíamos berrar à
vontade, que onde Knut agora estava todos os outros sons eram abafados pelo
motim que estrondeava em toda a extensão da barreira.
Daí a pouco as três cordas restantes se afrouxaram e as três canoas bateram com
força no costado da jangada. Um dos nativos pulou para bordo e disse
tranquilamente com um movimento de cabeça: - luta. (Para terra.) Olhava
ansiosamente para a fogueira, que agora desaparecia durante muito tempo de
cada vez, e apenas clareava de quando em quando como uma fagulha.
Estávamos derivando rapidamente. A arrebentação cessara; somente o mar rugia
como de costume, e todas as cordas da jangada estalavam e rangiam.
Três canoas emergiram das trevas, passando por cima das ondas, e Knut foi o
primeiro a pôr os pés dentro da querida Kon-Tiki, seguido de seis homens
trigueiros. O tempo era pouco para explicações; tínhamos de dar alguns
presentes aos nativos que deviam logo empreender a arriscada viagem de volta à
ilha. Sem ver luz nem terra, sem uma estrela sequer que os guiasse, tinham de
achar a rota remando contra o vento e o mar até avistarem o clarão da fogueira.
Recompensamo-los generosamente com mantimentos, cigarros e outros brindes,
e cada um deles, à despedida, nos deu um cordial aperto de mão. Mostravam-se
visivelmente preocupados conosco; apontaram para oeste, indicando que
estávamos no rumo de perigosos parcéis. O chefe tinha os olhos rasos de água e
me osculou carinhosamente no queixo, o que me fez agradecer à Providência
estar eu bastante barbado. Depois, transferiram-se para as canoas e nós seis
ficamos a sós na jangada.
Esse nosso companheiro tinha-se dirigido, com a melhor das intenções, à terra
no botezinho, tendo a bordo o chefe dos nativos. Este, sentado e empunhando os
remozinhos, os manobrava na direção da abertura do recife, quando Knut foi
surpreendido com os sinais luminosos da Kon-Tiki chamando-o de volta. Fez
sinais ao remador para virar, mas o nativo se recusou a obedecer. Então Knut
pegou nos remos ele próprio, mas o chefe arrancou-lhos das mãos e, com o
recife a troar ali perto, era inútil travar luta. Estavam justamente à entrada do
recife. Entraram por ele e, de repente, se viram levantados à altura de um sólido
bloco de coral, abicando daí na própria ilha. Uma multidão de nativos agarrou o
botezinho, arrastou-o para a praia, e quando Knut deu fé, estava sozinho debaixo
dos coqueiros e cercado de uma verdadeira pinha de gente pairando
descompassadamente numa algaravia desconhecida. Homens morenos, seminus,
mulheres e crianças de todas as idades se aglomeraram em torno dele a apalpar o
pano de que eram feitas sua camisa e suas calças.
Quanto a eles, usavam roupas europeias caindo em farrapos, mas não havia
homens brancos na ilha. Knut agarrou alguns dos indivíduos mais robustos e
com sinais lhes deu a entender que deviam ir com ele no botezinho. Então veio
chegando um homem enorme e gordo, de andar bamboleante, que Knut
presumiu ser o chefe porque tinha na cabeça um velho quepe de uniforme e
falava em voz alta e autoritária. Todos abriram caminho para ele. Knut explicou
em norueguês e depois em inglês que precisava de homens e tinha de voltar à
jangada antes que os outros se fossem. A cara do chefe se abriu num sorriso
largo, mas ele nada entendeu, e Knut, apesar de seus mais veementes protestos,
foi arrastado para a aldeia pela turba que gritava. Lá o receberam cães e porcos e
formosas jovens dos mares do Sul que vinham carregando frutas frescas. Era
evidente que aquela gente estava resolvida a tornar a estada de Knut ali a mais
amena possível, mas Knut não se deixou embelecar. O seu pensamento voou
tristonho para a jangada que ia desaparecendo rumo ao oeste. A intenção dos
nativos era óbvia. Necessitavam muito da nossa companhia e sabiam que os
navios dos brancos estavam cheios de coisas boas. Se pudessem reter Knut ali,
nós outros e a extravagante embarcação certamente também viríamos. Nenhum
navio iria abandonar um branco em ilha tão remota como Angatau.
De um lado lhe recomendavam que não se metesse no mar só, mas como fazer se
os do lugar se negavam terminantemente a ir com ele? Verificou-se terrível e
ruidosa discussão entre os nativos. Os que tinham estado no mar e visto a
jangada perceberam cabalmente que era quase inútil reter Knut na esperança de
atrair o resto à terra. O fim de tudo aquilo foi que as promessas e ameaças de
Knut feitas em acenos internacionais induziram as tripulações de três canoas a
acompanhá-la no mar em perseguição da Kon-Tiki. E fizeram-se ao mar na noite
tropical com botezinho a reboque, enquanto os ilhéus, de pé e imóveis perto da
fogueira a extinguir-se, viam o seu recente amigo louro desaparecer com a
mesma rapidez com que viera.
- Oh, você devia ver as dançarinas de hula - disse Knut para espicaçá-la.
Três dias singramos pelo mar sem ver terra. Estávamos vogando diretamente
para os negregados recifes de Takume e de Raroia que juntos bloqueavam 40 a
50 milhas de mar à frente. Fizemos desesperados esforços para evitá-los,
marcando para norte desses perigosos escolhos, e tudo parecia correr bem até
que uma noite o homem que estava de plantão entrou precipitadamente na
cabana e nos chamou para fora.
Tudo que era de valor foi transportado para o interior da cabana e fortemente
amarrado.
Em seguida houve ordem para que todos, que nada trazíamos nos pés havia cem
dias, nos calçássemos e tivéssemos à mão o cinto salva-vidas. Todavia, os
últimos objetos mencionados não eram de grande valor, porque, se um homem
caísse no mar, morreria não afogado mas à força de receber pancadas. Também
tivemos tempo de meter nos bolsos os passaportes e os poucos dólares que nos
restavam. Mas o que nos preocupava não era falta de tempo.
8,45: O vento tornou direção ainda mais desfavorável a nós, por isso não temos
nenhuma esperança de passar de largo. Não há nervosismo a bordo, mas
preparativos febris no convés. Há qualquer coisa no recife diante de nós
parecendo os restos de uma embarcação de vela, mas pode ser apenas uma
pilha de madeira para lá carreada.
Estamos agora tão perto que podemos abarcar com a vista a espelhenta lagoa
atrás do recife, e podemos ver os contornos de outras ilhas no outro lado da
lagoa. Depois que isto fora escrito, o ronco sinistro da ressaca avizinhou-se de
novo; esse ronco vinha do interior do recife e enchia o ar como os rufos trêmulos
de um tambor, anunciando o último ato da Kon-Tiki:
9,50: Estamos pertinho agora. Vogamos ao longo do recife. A distância que nos
separa não chega a cem metros. Torstein está falando com o homem de
Rarotonga. Tudo claro. Agora é preciso guardar o diário. Reina aqui o bom
humor; o aspecto é tenebroso, mas havemos de vencer!
Alguns minutos depois a âncora caiu na água e atingiu o fundo, de modo que a
Kon-Tiki rodou e virou a popa para o lado da rebentação. Ela nos segurou por
alguns minutos preciosos, enquanto Torstein continuava a martelar
desesperadamente na tecla. Apanhara agora Rarotonga. Os vagalhões bramiam
no ar e a água subia e se despenhava com fúria.
O mar tornava-se cada vez mais revolto, com profundas voragens entre onda e
onda, e sentíamos o balouço subir sempre de ponto. Novamente foi dada a
ordem em altos brados:
”Ficar na jangada, a carga pouco importa, ficar firme.” Estávamos agora tão
perto da catadupa interior que já nem ouvíamos o incessante estrondo que
atroava na extensão toda do recife. Ouvíamos apenas um estridor distinto cada
vez que o vagalhão mais próximo quebrava nas rochas.
Mas o entusiasmo foi de curta duração. Nova onda se ergueu por trás de nós
como se fosse uma cristalina e refulgente parede verde; ao baixarmos, ela veio
rolando no nosso encalço, e no mesmo instante em que vi aquela coluna líquida
por cima de mim, senti um golpe violento e vime submerso num dilúvio de água.
Percebia a sucção rodear-me o corpo todo com tamanha violência que me foi
preciso o esforço de cada músculo e só tinha uma ideia fixa - resistir, resistir
sempre! Penso que em tal situação de desespero os braços serão arrancados antes
que o cérebro consinta em soltá-los, sendo evidente, como é, o resultado. Depois
percebi que a formidável massa d’água prosseguia sua marcha, desprendendo do
meu corpo sua garra infernal. Uma vez varrida toda a montanha líquida, com
ensurdecedor ribombo e estrépito, vi novamente Knut dependurado a meu lado e
tão encolhido que parecia uma bola.
Vista de trás a grande onda era quase lisa e cinzenta; avançando, se arrojou por
cima da cumeeira do telhado da cabana que ressaltava da água, e lá estavam
pendurados os outros três, comprimidos contra o telhado da cabana enquanto a
água passava por cima deles.
Então ouvi um grito triunfante de Knut, que agora estava pendurado na escada
de corda:
Dessa vez devíamos ter atingido o recife. Eu senti apenas a tensão do estai, que
parecia dobrar-se e afrouxar com intermitências. Mas se os embates vinham de
cima ou de baixo eu não podia dize-lo, pendurado onde estava. A submersão não
durou mais que segundos, mas exigiu maior vigor do que o que os nossos corpos
em geral oferecem. Há mais energia no mecanismo humano do que a que existe
apenas nos músculos. Resolvi que, se tivesse de morrer, morreria naquela
posição, como um nó no estai. O vagalhão foi rugindo adiante, e depois que
passou, deixou patente um espetáculo contristador. A Kon-Tiki estava
inteiramente mudada, como se a houvesse tangido uma vara mágica; em poucos
segundos a nossa aprazível moradia achava-se reduzida a um estado miserando.
Um arrepio de medo perpassou-me pelo corpo. Que me valia não ter cedido? Se
eu perdia ali um só homem que fosse, ao penetrar na área perigosa, tudo estaria
arruinado, e, no momento, passada a última refrega, só se via uma figura
humana. Naquele instante a forma corcovada de Torstein apareceu do lado de
fora da jangada. Parecia um macaco dependurado nos cabos da ponta do mastro.
Conseguiu alcançar os toros e foi andando de rojo até perto dos destroços que se
achavam defronte da cabana. Herman voltou, então, a cabeça e para me
tranquilizar esboçou um sorriso amarelo, mas não se mexeu. Dei um berro, na
esperança de localizar os outros, e ouvi a voz calma de Bengt gritar que todos se
encontravam a bordo. Deitados, estavam agarrados às cordas por trás da
emaranhada barreira que o sólido trançado da coberta de bambu havia formado.
Tudo isto se deu no decurso de alguns segundos, enquanto a K0#- Tiki estava
sendo arrastada para fora da zona perigosa pelas águas impetuosas que vinham
de trás, e novo vagalhão veio rolando sobre ela.
Pela última vez gritei ”resistir!” com toda a minha força no meio daquele
estrondo, e foi tudo quanto eu próprio pude fazer; mantive-me firme sob aquela
massa d’água que desabava sobre nós naqueles dois ou três infindáveis
segundos. Aquilo para mim foi o suficiente. Vi as extremidades dos toros bater e
chocar-se contra um degrau pontudo no recife de coral sem o transporem.
Depois o vórtice das águas novamente nos fez recuar. Vi também os dois
homens estendidos de través sobre o cavalete do telhado da cabana, mas nenhum
de nós agora sorria. Detrás do caos de bambu ouvi uma voz calma gritar: -
Assim não vai.
Depois que ela se foi, eu estava extenuado e meu único pensamento era ver se
chegava até os toros para postar-me atrás da barricada. Depois que o turbilhão
d’água se retirou, vi pela primeira vez, bem a descoberto e atrás de nós, o
escarpado recife vermelho, e avistei Torstein de pé e curvado sobre rútilos corais
vermelhos, segurando-se às pontas de um monte de cordas do mastro. Knut, de
pé na parte posterior, estava a pique de dar um pulo.
Gritei que devíamos todos permanecer sobre os toros, e Torstein, que tinha caído
no mar com a pressão da água, tornou a saltar à tona como um gato.
Mais duas ou três ondas rolaram sobre nós com força menor, e o que sucedeu
depois eu não me lembro, exceto que a água espumava ao entrar e ao sair, e que
eu mesmo me afundava cada vez mais na direção do recife vermelho, sobre o
qual íamos sendo içados. Depois, somente vinham rodopiando cristas de espuma
cheias de borrifos salinos, e logrei achar caminho para a jangada, na qual nos
dirigimos para a extremidade posterior dos troncos, que mais se elevava no
sentido do recife.
No mesmo momento Knut se agachou e deu um salto para o recife com o cabo
que ficara livre à popa. Enquanto o turbilhão se desfazia, andou a vau uns vinte e
tantos metros, chegando ileso à ponta do cabo quando a onda seguinte se
encaminhou espumante na sua direção, esmoreceu e se escoou do recife plano
como uma corrente caudalosa.
Nisso Erik saiu de rojo da cabana tombada, tendo os sapatos nos pés. Se
tivéssemos seguido seu exemplo, escaparíamos com menos dificuldade. Como a
cabana não tinha sido cuspida ao mar pela violência das ondas, tendo apenas
cedido completamente ao peso da lona, Erik permaneceu calmamente estendido
entre a carga, ouvindo o fragor das águas que desabavam por cima dele,
enquanto as abaladas paredes de bambu se inclinavam cada vez mais. Com a
queda do mastro, Bengt sofrerá ligeira contusão, mas conseguiu arrastar-se para
debaixo da desmoronada cabana, ficando ao lado de Erik. Devíamos ternos
estendido lá, se tivéssemos antes percebido quão firmemente as inúmeras
amarras e escotas de bambu trançado se aferrariam aos toros principais com a
pressão da água.
Na água pouco funda do interior do recife vimos qualquer coisa que faiscava ao
sol. Fomos até lá patinhando para apanhá-la e com espanto verificamos que eram
duas latas vazias. Não era bem isso que esperávamos encontrar, e ainda mais
admirados ficamos quando vimos que se tratava de latas recentemente abertas e
nas quais se lia ’abacaxi’ nos mesmos caracteres das novas rações de campanha
que estávamos experimentando para a intendência. Eram realmente duas das
latas de abacaxi atiradas ao mar depois da nossa última refeição a bordo da Kon-
Tiki. Tínhamo-las seguido bem de perto até o recife. Estávamos agora sobre
agudos e ásperos blocos de coral e sobre o fundo irregular andávamos a vau,
com água ora até o tornozelo, ora até a cintura, conforme os canais existentes no
recife. Anêmonas e corais davam ao recife a aparência de um jardim cravado na
rocha em que houvesse muito musgo e cacto de plantas fósseis, vermelhas,
verdes, amarelas e brancas. Não havia cor que ali não estivesse representada, ou
em corais ou em algas, ou em conchas e lesmas do mar e em peixes fantásticos
que por ali rabeavam. Nos canais mais profundos, pequenos tubarões de pouco
mais de um metro se aproximavam sorrateiramente de nós na água límpida.
Bastava-nos, porém, dar uma palmada na água para fazê-lo voltar e conservar-se
a distância.
O recife se estendia como uma parede de fortaleza meio submersa, acima para o
norte e abaixo para o sul. No extremo sul estava uma ilha comprida, toda coberta
de coqueiros. E logo acima, ao norte, a uns 500 ou 600 metros, ficava outra ilha
de coqueiros, mas consideravelmente menor: achava-se no interior do recife, os
cimos da palmeira erguendo-se para o céu e as praias de areia alvíssima
estendendo-se até se perderem na plácida lagoa.
A meu lado, Herman, muito barbudo, mostrava-se radiante. Não disse nenhuma
palavra, apenas estendeu a mão e riu tranquilamente. A Kon-Tiki permanecia a
distância, no recife, recebendo o esguicho das ondas. Era uma embarcação
naufragada, mas era-o com muita honra. Tudo que estivera por cima do convés
achava-se esfacelado, mas os nove troncos de pau-de-balsa da floresta de
Quevedo no Equador estavam intatos. Tinham salvado a nossa vida. A carga que
o mar tornara para si fora pouca, e nenhuma da que havíamos depositado dentro
da cabana. Nós é que tínhamos despojado a jangada de tudo quanto representava
real valor e que agora se achava em segurança no cume da grande rocha
castigada pelo sol no interior do recife. Desde que eu saltara da jangada, havia
notado a falta dos peixes pilotos que cirandavam defronte. Agora os grandes
toros de balsa estavam no recife, metidos na água quinze centímetros, e lesmas
pardas do mar se retorciam debaixo da proa. Os pilotos tinham-se ido embora, os
dourados também. Apenas alguns peixes desconhecidos, chatos, com uns
desenhos de plumagem de pavão e rabos de forma esquisita, se rebuliam
curiosos entre os toros. Tínhamos chegado a um novo mundo. Johannes havia
saído do seu buraco.
Tinha com certeza achado aqui outro esconderijo. Relanceei um último olhar
pela embarcação naufragada e vi um coqueirinho novo num cesto amassado.
Projetava-se de um olho num coco a uns quarenta e cinco centímetros de
comprimento, e por baixo saíam duas raízes. Fui andando a vau até a ilha com o
coco na mão. A certa distância de mim vi Knut, também satisfeito dirigindo-se
para a terra, e carregando debaixo do braço uma miniatura da jangada que tinha
feito com muito trabalho durante a viagem. Pouco depois passamos por Bengt.
Excelente despenseiro. Com um galo na testa e água salgada a gotejar da barba,
vinha curvado empurrando um caixote que oscilava para diante cada vez que lá
fora os vagalhões enviavam uma corrente para o interior da lagoa. Com orgulho
levantou a tampa. Era o caixote da cozinha, e dentro dele iam o Primus e demais
trens em boa ordem.
Nossa pequena ilha era desabitada. Ficamos logo conhecendo cada grupo de
coqueiros e cada praia, pois a ilha não tinha nem duzentos metros de diâmetro. O
ponto mais elevado ficava a pouco mais de um metro e meio acima da lagoa.
Sobre nossas cabeças, da grimpa dos coqueiros, pendiam grandes cachos de coco
verde, cuja casca grossa isolava do sol tropical o seu conteúdo líquido frio, de
maneira que, nas primeiras semanas, não sentiríamos sede. Havia também cocos
maduros, grande quantidade de bernardos eremitas, e na lagoa toda a casta de
peixes. Quanto a isto, portanto, não tínhamos nenhuma preocupação.
No lado norte da ilha encontramos os restos de uma velha cruz de pau sem
pintura, meio enterrada na areia de coral. Daqui se enxergava para as bandas do
norte, ao longo do recife, o barco naufragado de listas que só tínhamos visto
mais de perto ao aproximar-nos do lugar onde encalháramos. Ainda mais para o
norte vimos numa bruma azulada as frondes dos coqueiros de outra ilhota. Bem
mais próxima estava a ilha do lado meridional, na qual o arvoredo era muito
cerrado. Tampouco descobríamos ali qualquer sinal de vida, mas no momento
tínhamos outras coisas em que pensar.
Bengt ganhou, pois os dele não faziam ruído quando ele se mexia. Céus! Como
era bom poder dormir! Quando acordamos no dia seguinte ao nascer do sol, a
vela estava curvada e cheia de água de chuva, pura como cristal. Bengt recolheu-
a e depois desceu até a lagoa, conseguindo trazer para terra alguns peixes
interessantes que atraíra a uns canais abertos na areia.
Nessa noite Herman tinha sentido dores no pescoço e nas costas, lugares onde se
magoara antes da partida de Lima, e a Erik voltou o seu lumbago que havia
desaparecido. De resto, da excursão
pelo recife tínhamo-nos saído bastante bem, apenas com arranhões e ligeiros
ferimentos, exceto Bengt que recebera um golpe na testa com a queda, ficando-
lhe uma leve contusão.
Mas nenhum de nós se achava em tão ruim estado que não lhe apetecesse um
ágil mergulho na límpida lagoa antes do almoço. Era uma lagoa imensa. Mais
para longe era azul e encrespada pelo vento alísio, e tão larga que mal podíamos
lobrigar os altos de uma fila de ilhas azuis perdidas na bruma, que serviam de
marco à curva do atol no outro lado. Aqui, porém, a sotavento das ilhas, o vento
alísio sussurrava brandamente nas frondes rendadas dos coqueiros, fazendo-as
bulir e oscilar, enquanto a lagoa parecia um espelho imóvel lá embaixo, a refletir
todo o encanto das árvores. A água fortemente salina era tão pura e clara que
corais de cores alegres a menos de três metros de profundidade pareciam tão
próximos da superfície que podíamos cortar os pés neles ao nadar. E na água
havia lindas variedades de peixes coloridos. Era um mundo maravilhoso e
divertido. A água era fria e refrescante e o ar agradavelmente quente e seco
devido ao sol. Hoje, porém, tínhamos de voltar depressa para terra; Rarotonga
irradiaria notícias alarmantes se até o fim do dia nada se transmitisse da jangada.
Bobinas e partes do rádio estavam estendidas ao sol tropical sobre lajes de coral
bem enxutas, e Torstein e Knut aparafusavam e encaixavam. Passou-se o dia
todo, e o ambiente foi-se tornando cada vez mais eletrizante. Deixamos de lado
todas as outras tarefas e nos agrupamos em torno dos encarregados do rádio
esperando ser-lhes útil de qualquer maneira. Devíamos estar no ar antes das 10
da noite. Então expiraria o limite de 36 horas, e o radioamador de Rarotonga
faria apelos no sentido de serem trazidos socorros por avião.
Veio o meio-dia, passou-se o meio-dia, o sol se pôs. Quem dera que o homem de
Rarotonga se contivesse um pouco! Sete horas, oito, nove. A tensão dos ânimos
era incomportável. No transmissor nenhum sinal de vida, mas o receptor, um N
C - 173, principiou a animar-se lá num ponto, no fundo da escala, onde ouvimos
música muito ao longe. Não porém no comprimento da onda do amador. Ia-se,
contudo, chegando a um resultado qualquer, talvez animador; seria
provavelmente uma bobina úmida que se secava na parte interna por uma das
pontas. O transmissor estava ainda completamente inativo; de todos os lados,
curtos-circuitos e faíscas.
Então Torstein transmitiu uma mensagem CQ, isto é, chamou todas as estações
do mundo que nos pudessem ouvir no nosso comprimento de onda de amador.
Isto valeu alguma coisa. Agora uma voz fraca no ar começou a chamar-nos
lentamente. Chamamos de novo e dissemos que estávamos ouvindo. Então a voz
vagarosa disse no ar: - Meu nome é Paulo. Moro no Colorado. Qual é o seu
nome e onde mora?
Ali nos achávamos, sentados à sombra dos coqueiros e debaixo do céu estrelado
numa ilha deserta e ninguém queria acreditar no que dizíamos.
Ouvimos, então, um tanto frouxamente, no receptor: - Se tudo está bem, por que
preocupar-se?
O dia seguinte correu tranquilo, e gozamos a vida à perna solta. Uns tornavam
banho, outros pescavam ou foram dar uma batida no recife à cata de curiosos
animais marítimos, enquanto que outros mais ativos fizeram uma limpeza em
regra no acampamento, tornando aprazíveis os seus arredores. Bem num ponto
que dava diretamente para a Kon-Tiki, cavamos um buraco na orla das árvores,
forramo-lo com folhas e nele plantamos um belo coco do Peru. Ao lado
levantamos um montão de corais, bem defronte do lugar onde a Kon-Tiki dera
em seco. A Kon-Tiki tinha sido empurrada pela força das águas um pouco mais
para o interior durante a noite e estava quase seca dentro de umas poças, e
espremida entre um grupo de enormes blocos de coral que se atravessavam no
recife.
Os dois conseguiram vadear longos trechos do recife para as bandas do sul, mas
um ou outro trecho tiveram de pular ou de atravessar a nado. Alcançaram ilesos
a grande ilha e foram a vau para a terra. A ilha, comprida e estreita e coberta de
coqueirais, estendia-se mais para o sul entre praias banhadas de sol e abrigadas
pelo recife. Continuaram sua excursão até chegarem à extremidade
meridional. Daí o recife, coberto de branca espuma, se estendia para o sul até
outras ilhas distantes. Acharam os restos de um enorme navio que ali dera à
praia; tinha quatro mastros e jazia na praia partido em dois pedaços. Era um
velho navio à vela espanhol que tinha vindo carregado de barras de ferro, e
essas, todas enferrujadas, estavam dispersas ao longo do recife. Voltaram pelo
outro lado da ilha, mas não viram na areia um vestígio sequer.
No mesmo dia ia eu a vau para a ilha quando uma coisa, num movimento
rapidíssimo, se agarrou ao meu tornozelo, apertando-o dos dois lados. Era uma
siba. Não era grande, mas não deixava de causar horror a pressão daqueles
braços frios no pé e verse a gente obrigada a trocar olhares com aqueles olhinhos
perversos metidos no saco vermelho-azulado que formava o corpo. Sacudi com
força o pé em todas as direções, mas a lula, que teria pouco mais de meio metro
de comprimento, não o largava. Fui-me arrastando aos pulos e sacudidelas para a
praia, com o nojento monstrengo pendurado no meu pé. Só quando cheguei à
orla da areia seca foi que ela me soltou, metendo-se lentamente na água rasa,
com os braços estendidos e os olhos voltados para a praia, como se se mostrasse
disposta a novo ataque, caso eu desejasse. Atirei-lhe uns pedaços de coral e ela
desapareceu incontinenti.
Eis que certa manhã uns companheiros vieram correndo dizer que tinham visto
uma vela branca na lagoa. Por entre os fustes dos coqueiros podíamos ver uma
diminuta mancha muito branca, a contrastar com o azul cor de opala da lagoa.
Era evidentemente uma vela próxima da terra, do outro lado. Pudemos ver que
estava abordando. Pouco depois apareceu outra. A proporção que o tempo
passava, foram crescendo de tamanho e aproximando-se.
Bengt disse em resumidas palavras que em Raroia não havia escola, nem rádio,
nem homens brancos, mas que os 120 habitantes do lugar tinham feito tudo para
estarmos lá à vontade e que nos haviam preparado uma grande recepção.
O primeiro pedido do chefe foi ver o bote que nos tinha trazido vivos a terra.
Vadeamos o trajeto até a Kon-Tiki, seguidos de uma fila de nativos. Quando
chegamos perto, eles estacaram e prorromperam em exclamações de espanto,
falando todos ao mesmo tempo, em grazinada. Agora podíamos ver
perfeitamente os toros da Kon-Tiki, e um dos nativos gritou: - Não é um bote, é
um paepae!
- Hoje a Tiki virá para dentro, disse o chefe, apontando para os restos da jangada.
Vamos ter a preamar.
Pelas onze horas a água começou a correr à nossa frente em direção à lagoa. Esta
principiou a encher-se como uma imensa bacia, e a água se elevava em redor da
ilha. Mais tarde iniciou-se, vindo do mar, o verdadeiro afluxo. A proporção que
as ondas se avolumavam, o recife se submergia abaixo da superfície do mar. As
massas de água rolavam para a frente em toda a extensão da ilha. Arrancavam
enormes blocos de coral e cavavam grandes bancos de areia que desapareciam
como farelo ao vento, enquanto que outros se formavam.
Fomos sulcando a lagoa, que aqui tinha mais de onze quilômetros de largura,
enquanto soprava uma fresca brisa. Foi com verdadeiro pesar que vimos os
coqueiros familiares da ilha de Kon-Tiki acenar-nos com as suas frondes, ao
mesmo tempo que se iam tornando indistintas na pequena ilha que foi aos
poucos confundindo-se com as outras ao longo do recife a leste. Mas diante de
nós vinham avultando ilhas maiores. E numa delas vimos um quebra-mar e
fumaça saindo de choças entre os coqueiros.
A aldeia parecia morta; não se via vivalma. Que estaria acontecendo? Na praia,
por trás de um molhe formado por blocos de coral, estavam de pé dois vultos
solitários, um magro e alto, outro robusto e gordo como uma pipa. Ao
aportarmos, saudámos os dois. Eram o chefe Teka e o vice-chefe Tupuhoe.
Ganhou-nos logo o coração o sorriso afável e franco de Tupuhoe. Teka era
homem de inteligência lúcida e um diplomata, mas Tupuhoe tinha índole de
criança, tanta sinceridade, um sentido de humor e uma força primitiva tão
intensos como raramente se encontram num só indivíduo. Com a sua corpulência
e as suas feições regias, ele era exatamente o que um chefe polinésio devia ser.
Tupuhoe era de fato o verdadeiro chefe da ilha, mas Teka havia paulatinamente
conquistado a posição suprema porque sabia falar francês e contar e escrever, de
modo que os aldeões não eram enganados quando a escuna vinha de Taiti para
buscar compra.
Teka explicou que tínhamos de marchar juntos até o templo da aldeia, e depois
que todos haviam chegado a terra, partimos para aquele local em cerimonioso
cortejo, precedidos de Herman com a bandeira a tremular na lança de um arpão;
eu vinha depois ladeado dos dois chefes.
A aldeia ostentava sinais evidentes do seu comércio de copra com Taiti; tanto as
tábuas como o ferro ondulado tinham vindo na escuna. Enquanto algumas
choças eram construídas num pitoresco estilo antiquado, com varas e folhas de
palmeira trançadas, outras eram feitas de um modo tosco com pregos e tábuas
como pequenos bangalôs tropicais. Uma grande casa feita de tábuas e que lá
estava solitária entre os coqueiros, era o novo templo da aldeia; ali deviam ficar
os seis brancos. Entramos com a bandeira por uma portinha dos fundos e saímos
postando-nos numa larga série de degraus diante da fachada. Defronte de nós, na
praça, achava-se toda a gente da aldeia que tinha podido acorrer ao local
andando ou arrastando-se - mulheres e crianças, velhos e moços. Estavam todos
profundamente sérios; até os nossos alegres amigos da ilha de Kon-Tiki
formavam entre os demais e não davam mostras de nos reconhecer. Quando
aparecemos, parando sobre os degraus, toda aquela gente abriu a boca
simultaneamente e começou a cantar... a Marselhesa! Teka, que sabia a letra,
tirava o canto que ia bastante bem, apesar de algumas velhas se atrapalharem um
pouco nas notas altas. Tinham-se exercitado bastante para isso. A bandeira
francesa e a norueguesa foram hasteadas em frente aos degraus, e com isto
terminou a recepção oficial dada pelo chefe Teka; ele se retirou tranquilamente
para o segundo plano, e então o robusto Tupuhoe passou rápido para a frente,
tornando-se mestre-de-cerimônias. A um sinal seu, a assembleia inteira entoou
novo cântico. Dessa vez foi melhor, pois a toada era deles mesmos e bem assim
as palavras, que eram da própria língua, e a bula eles a sabiam cantar. Tão
encantadora era a melodia na sua tocante simplicidade, que sentimos um como
arrepio na espinha lembrando-nos do estrondo dos mares do Sul, tão conhecido
nosso. Alguns tiravam o canto e todo o coro entrava em perfeito ritmo; apesar de
haver variações na melodia, as palavras eram sempre as mesmas: ”Bom dia,
Terai Mateata, e os vossos homens, que viestes através do mar num paepae até
nós em Raroia; sim, bom dia.
Oxalá fiqueis muito tempo entre nós, contando-nos os vossos casos, e contando-
vos nós os nossos, de modo que estejamos sempre juntos, ainda quando partirdes
para uma terra longínqua. Bom dia.”
Achava-me diante de um povo sem cultura mas muito inteligente que contava
com a minha palavra. Disse-lhes que já tinha estado antes com seus patrícios nas
ilhas dos mares do Sul, e que ouvira falar do seu primeiro chefe Tiki que tinha
trazido seus antepassados para as ilhas vindo de um país misterioso, cujas
paragens ninguém mais sabia. Mas numa terra distante chamada Peru, disse eu,
havia reinado outrora um chefe poderoso cujo nome era Tiki. O povo chamou-o
Kon-Tiki ou Sol-Tiki, porque ele se dizia descendente do Sol. Tiki e muitos dos
seus seguidores tinham por fim desaparecido de seu país em grandes paepaes;
por isso nós seis pensamos que ele era o mesmo Tiki que tinha vindo para
aquelas ilhas. Como ninguém quisesse acreditar que um paepae podia fazer a
viagem através do mar, havíamos partido do Peru num paepae e ali estávamos;
por isso era certo que a viagem podia ser realizada.
Quando o pequeno discurso foi traduzido por Teka, Tupuhoe inflamou-se todo e
pulou para a frente da assembleia como que tomado de um arroubo. Foi falando
na sua língua, atirava os braços para o alto, apontava para o céu e para nós, e no
seu dilúvio verbal repetia continuamente a palavra Tiki. Falava tão depressa que
era impossível seguir o fio do que dizia, mas a assembleia em peso bebia-lhe as
palavras e estava visivelmente eletrizada. Teka, ao contrário, deu mostras de
muito embaraçado quando teve de traduzir.
Tupuhoe dissera que seu pai e seu avô e os pais deste tinham falado de Tiki e
haviam dito que Tiki fora o seu primeiro chefe que agora estava no céu. Mas eis
que vieram os brancos e disseram que as tradições de seus antepassados eram
mentiras. Tiki nunca existira. No céu ele não estava, pois lá estava Jeová. Tiki
era um deus pagão e eles não deviam continuar crendo nele. Mas agora nós seis
tínhamos atravessado o mar num paepae. Éramos nós os primeiros brancos que
reconheciam que seus antepassados haviam falado a verdade. Tiki vivera, tinha
sido real, mas agora estava morto e se achava no céu.
Este nome era interessante, porquanto Rongo - pronunciado Lono em certas ilhas
- era como se chamava um dos mais conhecidos heróis lendários dos polinésios.
Descreviam-no até como homem branco e de cabelos louros. Quando o Capitão
Cook chegou pela primeira vez a Havaí, foi recebido de braços abertos pelos
ilhéus, porque pensaram que ele era o seu parente branco Rongo que, depois de
várias gerações, tinha voltado da pátria de seus antepassados no seu colossal
navio de vela. E na ilha de Páscoa a palavra rongorongo era a designação usada
para os misteriosos hieróglifos cujo segredo se perdera com os últimos ”orelhas
compridas” que sabiam escrever.
Depois que ficamos conhecendo os 127 habitantes da aldeia, foi posta uma longa
mesa para os dois chefes e para nós seis, e as jovens aldeãs trouxeram pratos
deliciosos. Enquanto algumas arrumavam a mesa, outras penduravam grinaldas
de flores em volta de nosso pescoço, e coroas menores eram colocadas em torno
de nossa cabeça. As flores exalavam um lânguido perfume e eram um refrigério
no calor que fazia. E assim teve começo uma festa de boas-vindas que só
terminou quando deixamos a ilha semanas depois. Arregalamos os olhos e veio-
nos água à boca, pois as mesas estavam cobertas de leitões assados, galinhas,
patos assados, lagostas frescas, peixadas polinésias, fruta-pão, mamão e leite de
coco. E enquanto nos atirávamos àquelas iguarias, a multidão nos distraía
cantando canções próprias para a dança da bula, enquanto moçoilas dançavam
em redor da mesa. Os meninos riam e se divertiam à nossa custa, e não era para
menos, pois cada um de nós parecia mais ridículo que o vizinho, a comer como
esfaimados, com umas barbas respeitáveis e com grinaldas de flores na cabeça.
Os dois chefes gozavam a vida com igual desenvoltura.
Depois do repasto houve dança de bula em grande escala. A aldeia I queria fazer
uma exibição de danças populares locais. Enquanto Teka, Tupuhoe e nós seis
nos sentávamos nuns escanos junto à orquestra, dois tocadores de guitarra se
adiantaram, puseram-se de cócoras e começaram a tocar, lá a seu modo,
genuínas melodias dos mares do Sul. Duas filas de dançarinos e dançarinas, com
saias farfalhantes de folhas de coqueiro em volta dos quadris, vinham deslizando
e saracoteando por entre os espectadores que estavam de cócoras, formando um
círculo, e cantavam. Dirigia o canto com entusiasmo e vivacidade uma gorda
vahine a quem os dentes agudos de um tubarão haviam arrebatado um braço. No
começo os dançarinos se mostraram um tanto teatrais e pareciam nervosos, mas
quando viram que os homens brancos do paepae não desgostavam das danças
populares de seus avós, o baile foi-se tornando cada vez mais animado. Algumas
pessoas de mais idade vieram-se juntar aos primeiros; aquelas tinham um ritmo
esplêndido e sabiam danças que certamente não estavam mais em voga. E
enquanto o sol ia descambando no Pacífico, as danças que estavam sendo
executadas debaixo dos coqueiros iam em entusiasmo crescente, tornando-se
cada vez mais espontâneo o aplauso dos espectadores. Tinham-se esquecido que
nós que os observávamos éramos seis estrangeiros; éramos agora seis dos seus, a
distrair-nos com eles.
Era essa a vida nos mares do Sul como a haviam conhecido os dias de antanho.
As estrelas tremeluziam e os ramos balouçavam. A noite corria branda e parecia
interminável, cheia de aromas e de cricris de grilos. Tupuhoe estava radiante e
me bateu no ombro.
- Maitai? - perguntou.
- Maitai - responderam todos com entusiasmo que, bem se via, não era fingido.
A festa até mesmo no conceito de Teka estava muito boa; era a primeira vez que
brancos tinham presenciado suas danças em Raroia, disse ele. Cada vez mais
depressa, num crescendo constante iam os rufos dos tambores, o bater das mãos,
os cantos e bailados. De repente, uma das dançarinas deteve os movimentos em
torno do círculo e permaneceu no mesmo lugar, executando uma dança em
terrífico rodopio, com os braços estendidos para Herman. Pela barba nosso
companheiro escondia uma risota; não sabia absolutamente como interpretar
aquilo.
- Não se faça de rogado - cochichei-lhe - você que é bom parceiro e que sabe
dançar tão bem!
Então uma matrona bem fornida de carnes e de músculos rijos entrou na arena,
executou com mais ou menos graça alguns passos de bula e depois marchou
deliberadamente para Erik. Este assustou-se, mas a amazona lhe mostrou o
melhor sorriso, agarrou-o resolutamente pelo braço, arrancando-o do tamborete
em que estava sentado. A cômica bombacha de Erik tinha a lã de carneiro para
dentro e o carnaz para o lado de fora, havendo na parte posterior das calças um
rasgão, de modo que ressaía um pedaço branco de lã à guisa de coto de rabo,
como o de coelho. Erik acompanhou-a com relutância e entrou na roda
maneando, com o cachimbo numa das mãos e apertando com a outra o lugar
onde o lumbago lhe doía. Quando procurava dar o salto de estilo, teve de largar
as calças para amparar a coroa que ameaçava cair. E então, com a coroa de
banda, teve de segurar de novo as calças que estavam descendo lentamente, com
o próprio peso. Não era menos desopilante o espetáculo que a robusta dama
oferecia dançando a bula com sua corpulência, de modo que ríamos até chorar.
Os que se achavam na roda pararam, e estrepitosas gargalhadas ressoaram pelo
coqueiral, enquanto Erik, dançarino de bula, e o peso-pesado feminino
rodopiavam guapamente pela arena. Por fim até os dois tiveram de parar, porque
tanto os músicos como os cantores, não mais aguentando a cena, se torciam de
rir.
A festa continuou até dia claro; aí nos concederam licença para uma pequena
pausa, depois de termos novamente cumprimentado cada um dos 127 aldeões.
Durante a permanência na ilha, toda manhã e toda noite apertávamos a mão de
cada um deles. Percorrendo todas as choças da povoação, recolheram seis leitos,
que foram colocados lado a lado junto da parede do templo, e neles dormimos
em fila como os sete anõezinhos da história de fadas, com grinaldas de flores
balsâmicas a coroar-nos a cabeça.
No dia seguinte, o menino de seis anos que tinha um abscesso na cabeça parecia
ter piorado.
Teka declarou que tinham perdido dessa maneira várias crianças e que, se não
tivéssemos nenhum jeito de medicar o doentinho, este não teria muitos dias de
vida. Trazíamos conosco alguns frascos de penicilina preparada em pastilhas,
mas não sabíamos a dose que uma criança podia tomar. Se o menino morresse
com o tratamento, podia acarretar-nos consequências bem sérias. Knut e Torstein
instalaram de novo o rádio suspendendo a antena entre os coqueiros mais altos.
À noite tornaram a comunicar-se com nossos invisíveis amigos Hal e Frank,
comodamente sentados em seus aposentos em Los Angeles. Frank chamou um
médico ao telefone, e com o manipulador Morse demos todos os sintomas do
enfermo e uma lista do que trazíamos na farmácia portátil. Frank transmitiu a
resposta do médico e, naquela noite, fomos à choupana onde Haumata se agitava
no ardor da febre, tendo a metade da aldeia a chorar e a fazer barulho em redor
dele.
Tendo tido sucesso este caso, não tivemos mãos a medir com as doenças que
surgiam na aldeia. Por toda parte dores de dente e embaraços gástricos, e tanto
moços como velhos tinham algum furúnculo em algum lugar. Mandávamos os
pacientes ao Dr. Knut e ao Dr.
Não havia muitos dias que estávamos no meio dos nossos admiradores morenos,
quando os festejos vieram culminar numa nova cerimônia. Seríamos adotados
como cidadãos de Raroia e receberíamos nomes polinésios. Eu não me chamaria
mais Terai Mateata; podia chamar-me assim em Taiti, mas não ali, entre eles.
Seis tamboretes foram colocados para nós no centro da praça, e a vila toda saiu
cedo procurando bons lugares na roda que se ia formar.
Teka sentou-se solenemente no meio deles; era chefe, claro, mas não quando se
tratava de antigas cerimônias locais. Então Tupuhoe assumiu a presidência.
Enquanto o coro cantava a velha balada do rei Tikaroa, Tupuhoe pôs a mão
enorme no meu peito e, voltando-se para a assistência, disse que me nomeava
Varoa Tikaroa, isto é, Espírito de Tikaroa. Acabado o canto, foi a vez de Herman
e de Bengt. Colocando a mão morena no peito de um e depois no do outro, deu-
lhes os nomes, respectivamente, de Tupuhoe -
Itetahua e Topokino. Estes eram os nomes de dois antigos heróis que haviam
lutado com um monstro marinho e morto à entrada do recife de Raroia. O
tamborileiro executou alguns rufos enérgicos, e dois homens robustos pularam
para a frente vestidos de tangas cheias de nós e com uma lança comprida em
cada mão. Deram início a uma marcha de passo rápido, erguendo os joelhos à
altura do peito, apontando a lança para o alto e virando a cabeça de um lado para
o outro. A novo toque do tambor ’deram um salto para o ar e, em ritmo perfeito,
começaram uma batalha ritual no mais puro estilo de bale. Tudo foi executado
com a maior rapidez, representando o combate dos heróis com o monstro
marinho. Depois veio o batismo de Torstein, acompanhado da mesma cerimônia
e canto; foi chamado de Maroake, nome de um rei antigo da atual povoação, e
Erik e Knut receberam os nomes de Tane-Matarau e Tefaunui, dois navegadores
e heróis do passado. A longa e monótona recitação que acompanhava a
imposição de nomes era feita com grande velocidade e com um jorro contínuo
de palavras, cuja incrível rapidez tinha o intuito não só de impressionar mas
também de divertir.
Estava terminada a cerimônia. Havia outra vez chefes brancos e barbudos entre o
povo polinésio de Raroia. Duas filas de dançarinos e dançarinas se adiantaram,
portando saias de palha trançada e tendo n cabeça, postas de banda, coroas feitas
de esparto. A medida que dançavam, aproximavam-se de nós, transferindo as
coroas das próprias cabeças para as nossas. Em redor das nossas cinturas
puseram farfalhantes saias de palha. E as festividades continuaram.
De acordo com instruções recebidas de Paris, ele tinha mandado a escuna oficial
Tamara buscar-nos em Taiti, para não termos de esperar pela chegada incerta da
escuna de copra.
Taiti era o ponto central das colônias francesas e a única ilha que tinha contato
com o mundo em geral. Teríamos de ir por Taiti para apanharmos o cruzeiro
regular que nos levaria à pátria. Em Raroia as festas continuaram. Uma noite
ouviram-se gritos estranhos partidos do mar, e os vigias desceram dos altos
coqueiros para informar que havia uma embarcação parada à entrada da lagoa.
Atravessamos correndo o coqueiral rumo à praia, do lado de sotavento. Aí
olhamos para a direção aposta àquela de que tínhamos vindo. A rebentação era
muito menor dessa banda, que ficava ao abrigo do atol e do recife. Logo fora da
entrada da lagoa enxergamos as luzes de uma embarcação. Como era fartamente
iluminada, vimos-lhe os contornos: uma escuna bem larga, de dois mastros.
Seria o navio do governador que vinha buscar-nos? Por que não entrava? Os
nativos estavam visivelmente aflitos. Agora também nós víamos a causa. A
escuna levava grande inclinação, ameaçando virar. Encalhara num recife
invisível de coral.
A Maoae era a escuna de copra que fazia o percurso entre as ilhas. Estava a
caminho de Raroia para buscar copra. O capitão e a tripulação eram polinésios e
conheciam os recifes da entrada. Mas no escuro a corrente era traiçoeira. Por
felicidade a embarcação se achava a sotavento da ilha e o tempo estava calmo.
Porém, a correnteza fora da lagoa era bastante perigosa. A inclinação da Maoae.
se acentuando sempre mais, a tripulação se dirigiu ao bote. Fortes cabos foram
amarrados aos topos dos mastros e puxados até a terra, onde nativos os
prenderam em volta de troncos de coqueiros para impedir que a escuna virasse.
A tripulação, munida de outros cabos, postou-se próximo à abertura do recife, no
bote, com a esperança de desencalhar a Maoae quando a corrente da maré se
escoasse da lagoa. A população da aldeia lançou à água todas as canoas e
começou a pôr a salvo a carga de copra. Noventa toneladas de copra valiosa.
Sacos e mais sacos foram transportados da escuna oscilante para a terra firme.
Com a maré alta a Maoae continuava virada, rolando e batendo contra os corais,
até que principiou a fazer água. Quando o dia raiou, permanecia no recife, em
posição pior do que antes. A tripulação nada podia fazer; era inútil tentar puxar
as 150 toneladas da escuna com o bote e as canoas. Se continuasse batendo onde
se achava, acabaria espatifando-se e, se o tempo mudasse, seria levantada pela
sucção sofrendo perda total na ressaca que castigava o atol.
A Maoae não tinha rádio. Nós tínhamos. Ao mesmo tempo, era impossível vir de
Taiti uma embarcação de socorro antes que a Maoae tivesse tempo de se livrar
do naufrágio. Mas, pela segunda vez naquele mês, foi arrebatada ao recife de
Raroia a sua presa. Cerca das doze horas do mesmo dia, a escuna Tamara surgiu
no horizonte do lado de oeste. Tinha sido enviada para nos apanhar em Raroia, e
não foi pequeno o espanto da tripulação ao ver, em vez de uma jangada, os dois
mastros de uma grande escuna debatendo-se desesperadamente no recife.
Muito triste foi o nosso adeus a Raroia. Todos quantos podiam caminhar ou
arrastar-se estavam no quebra-mar, tocando e cantando nossas canções favoritas,
enquanto o bote nos levava para a Tamara.
Quatro dias depois Taiti surgiu do oceano. Não como um fio de pérolas com
frondes de coqueiros, mas como denteadas montanhas azuis arremessando-se ao
céu, com farrapos de nuvens que pareciam festões a engrinaldar os picos.
Enquanto pouco a pouco nos aproximávamos, as montanhas azuis revelavam aos
nossos olhos as encostas verdejantes. Com o verde a sobrepor-se ao verde, a
luxuriante vegetação do sul ondulava estendendo-se sobre morros e fragas de um
vermelho-ferrugem, até se abismarem em profundos barrancos e vales que
pareciam correr para o oceano.
E quando a costa ficou mais próxima de nós, vimos esguios coqueiros muito
juntos em toda a extensão dos vales e ao longo da costa por trás de uma praia
maravilhosa. Taiti foi construída por antigos vulcões. Agora estavam extintos, e
os pólipos de coral haviam estendido seu recife protetor em volta da ilha para
que o mar não a carcomesse.
Certa manhã, bem cedo, metemos a dianteira da escuna pela abertura do recife e
entramos no porto de Papeete. Diante de nós surgiram agulhas de torres de igreja
e telhados vermelhos meio escondidos pela folhagem de árvores gigantescas e de
grimpas de coqueiros.
”Terai Mateata!” e transbordando alegria por todo o largo rosto. Ficara velho,
mas era a mesma impressionante figura de chefe.
- Você chega tarde - disse ele sorrindo - mas traz uma boa nova. O seu paepae
trouxe verdadeiramente céu azul (temi mateata) a Taiti, pois agora sabemos de
onde nossos pais vieram. Houve recepção no palácio do governo e uma festa na
Prefeitura, tendo nós recebido inúmeros convites de todos os recantos da
hospitaleira ilha.
Como em dias idos, o chefe Teriieroo deu uma grande festa em casa no vale
Papeno que eu tão bem conhecia, e, como Raroia não era Taiti, houve nova
cerimônia durante a qual foram dados nomes novos àqueles que ainda não
tinham recebido nenhum. Foram dias de completa despreocupação, passados ao
sol e ao ar livre. Tornávamos banho na lagoa, subíamos às montanhas e
dançávamos a bula na relva debaixo dos coqueiros. Os dias passaram e
tornaram-se semanas. Parecia que as semanas se tornariam meses antes que
chegasse um navio que nos levasse à pátria onde nos esperavam deveres
indeclináveis. Veio então uma mensagem da Noruega comunicando que Lars
Christensen tinha dado ordem ao navio Thor I para ir de Samoa a Taiti apanhar a
expedição e conduzi-la à América. Uma manhã, bem cedo, o grande vapor
norueguês entrou no porto de Papeete, e a Kon-Tiki foi rebocada por uma
embarcação naval francesa para o lado da sua gigantesca patrícia que,
estendendo para fora um braço colossal de ferro, ergueu sua pequena
companheira até o convés. Fortes apitos da sirene ecoaram pela ilha coberta de
coqueiros. Gente branca e morena se aglomerava no cais de Papeete, penetrando
de roldão pelo navio com presentes de despedida e coroas de flores. Nós
estávamos de pé junto ao parapeito esticando o pescoço como girafas para livrar
o queixo da pilha sempre crescente de flores.