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Dedico este livro aos jovens brasileiros.

“Vamos lá gente, o mar nos


espera.” Rendo homenagem a meus pais, que não me ensinaram a ter medo do
escuro.
Sobre o Autor

Aleixo Belov, nascido na Ucrânia, vive no Brasil desde os 6 meses de idade.


Naturalizado brasileiro, engenheiro civil, formado em 1967, cm experiência em obras
marítimas e fluviais, projetos, construção e recuperação de obras de acostagem,
proteção, plataforma de concreto off-shore para exploração de petróleo, combate a
erosão costeira. Mergulhador profissional, Escritor e professor de portos pela
universidade Federal da Bahia e Universidade Católica de Salvador. O autor já
completou a terceira viagem de circunavegação após a descrita neste livro. A Segunda
viagem rendeu uma trilogia composta pelos volumes: Em busca do Oriente, Em
busca das Raízes e a Caminho de Casa. Site oficial do autor:
http://www.aleixobelov.com.br
“Para todos os que acreditam em milagres”
Sumário

01. O Surgimento da Ideia


02. Primeira Tentativa de Patrocínio
03. A Construção do Barco
04. Segunda Tentativa de Patrocínio
05. Reportagens Cedidas às Vésperas da Partida
06. Salvador a Panamá
07. Do Panamá ao Taiti
08. Do Taiti à Austrália
09. Da Austrália à Indonésia
10. De Bali a Cape Town
11. De Cape Town ao Rio de Janeiro
12. O Caminho de Casa
13. Epílogo Apêndice Glossário
Roteiro da Viagem
Uma velha cantiga de saveiristas diz:

Água com areia


Brigam na beira do mar
A água passa, a areia fica No lugar.

Pois é, como na cantiga, Aleixo pegou uma onda com crista de maravilha e foi
ser dono do mar, andou por todas as águas do mundo, saiu para o norte e de repente
apareceu pelo sul. Nós estávamos no lugar. Na areia. Esperando, torcendo. Seus entes
queridos, as filhinhas, os pais e uma porrada de amigos, nas areias da Bahia dita “A
Mulata Grande”, que de cima da encosta também espiava o horizonte.
No ombro de outra onda arribou, grande alegria, abraços, alguma lagriminha
emocionada, e foguetes, porque na Bahia quando chegam os Orixás, ou Nossa
Senhora chega de andor na rua, chega Aleixo ou Caramuru, é preciso que se soltem
foguetes, muitos foguetes, muitas bolinhas de fumaça no céu.
Hoje, Aleixo e o mar se olham, como quem diz, de homem para homem, mas
isso custou muito, enjoos no começo, paciência e desespero nas calmarias e brigas
para valer nas tempestades, noites insones de orelha em pé esperando vento e também
sol, cores e a beleza puríssima dos azuis.
No mar.

Garybé
01. O SURGIMENTO DA IDEIA

Lembro-me muito bem. Jadiel Oliveira, um amigo nosso, resolveu estudar no


Itamarati. Assim sendo, mudou-se, naquele tempo, para o Rio de Janeiro e, entre as
coisas que resolveu não levar e distribuir com os amigos, me coube uns óculos de
mergulho. Isto foi em 1957, creio que fora a primeira vez que tive a oportunidade de
ver uma máscara de mergulho. O seu uso me era desconhecido.
Morando ali, na Ladeira do Paiva, numa casa pequena, de aluguei. Dormindo na
sala, numa cama de armar, jamais imaginei aonde estes óculos um dia iriam me levar.
Resolvi estreá-los.
Desci a pé para Água de Meninos, naquele tempo, uma grande feira popular,
quase uma cidade que, por trás, tinha uma bacia natural, o mar.
Com água nos joelhos, admirava os peixinhos. Mal sabia nadar.
Sei que assim terminei encontrando nas brechas das pedras um polvo. Enquanto
admirava o bicho, veio chegando Góes. Já o conhecia da Ladeira do Paiva, ele estava
jogando bola, ali na praia, com o povo da feira.
Passamos uma meia hora, tentando capturar o animal, até que passou por ali um
pescador com um bicheiro (um anzol amarrado na ponta de um vergalhão) e levou-o.
Perdemos o polvo, mas a equipe de mergulho estava formada. Resolvemos
preparar uma ferramenta semelhante e voltar outro dia. Depois, um vergalhão com
uma borracha seria o arpão. Só muito tempo depois compramos o pé de pato. Um
mergulhava e o outro aguardava. Era um equipamento para dois.
Foi muito feliz a minha aproximação com Góes, Antônio Góes Magalhães, mais
conhecido como “Caracu”. Naquele tempo ele já era o melhor subidor de árvores da
região, um campeão de corridas e, antes de tudo, um grande amigo.
Logo nossos mergulhos foram se espalhando por todas as praias de Salvador.
Como éramos pobres, não tínhamos barco, nossa pesca partia sempre da praia,
rompendo a arrebentação.
Um dia resolvemos ir mais longe, à praia de Busca Vida. Tomamos o ônibus às
10 da noite, na Calçada, que chegaria à meia-noite em Portão. De lá atravessamos
uma região alagadiça, um mangue, para cortar caminho. No escuro, a única maneira
de sentir o caminho era na sola dos pés descalços. Aqui está firme, aqui está
afundando, até chegar a uma cancela, onde era a fazenda de Giovaldo Pinho, que
mais tarde tornou-se o Condomínio Busca Vida.
Enveredando pelo caminho da fazenda, terminamos na praia, onde armamos
com umas palhas de coqueiro uma cobertura, estendemos uma lona para descansar
um pouco antes de amanhecer.
É interessante como torna-se difícil imaginar o local, quando se chega, pela
primeira vez, de noite. As pedras negras na beira da praia pareciam enormes baleias,
tudo cheirava a maresia.
A primeira luz do dia desfez, porém, toda a magia do primeiro contato no escuro
com aquele lugar misterioso.
Foi só na volta que vimos quantos espinhos podiam ter nos furado os pés, mas
guiados por um sentimento mágico, não levamos sequer uma espetada.
Procuramos uma brecha na arrebentação e fomos lá fora.
A correnteza era tamanha que nunca se podia voltar ao lugar de origem. Tinha
que se sair em outro lugar. Uma outra brecha entre as pedras. Terminei conhecendo o
Givaldo Pinho, dono da fazenda, e o seu capataz que sempre nos enxotava.
Feita a pescaria, tornávamos o caminho de volta. Já não podia ser por dentro da
fazenda, pois, de dia, o capataz estava acordado. Tinha que se andar muito mais,
atravessar o Rio Joanes e pegar um caminho de areia.
Lembro-me muito bem. Andar de sapato na areia tornava-se cansativo.
Descalço, a areia queimava os pés.
Carregados com sacolas de equipamentos, peixe e naturalmente cocos, a coisa
não era mole.
Góes já era campeão de corridas, andava rápido, e eu, que não queria dar o braço
a torcer, tive que aprender a andar.
E foi assim que aprendi a andar e a pescar.
Um dia, encontrei-me com Heraldo Gama Lobo, naquele tempo, o maior
matador de peixes de Salvador. Falou-me que ia para Porto Seguro, mergulhar nos
arrecifes de fora, onde a água era clara e o peixe abundante.
Fomos os três. A água por azar estava escura, Heraldo voltou no segundo dia.
Tinha que levar as filhas ao baile do carnaval. Nós ficamos mais 16 dias.
A água clareou. Pescávamos todos os dias, saindo às 5 horas da manhã, numa
canoa à vela, aproveitando a leve brisa do terral, e voltávamos à tarde, a remo.
Vendíamos o peixe na tarifa, para cobrir as despesas de avião e de hotel.
O certo é que, encantado com a vida marinha, e tendo visto alguns barcos que
iam pescar nos Abrolhos, já tendo lido também Expedição Moana, voltei de Porto
Seguro com o firme propósito de arrumar um barco e correr o mundo.
Como fazê-la era uma outra coisa. Nunca tinha içado uma vela em minha vida,
mas a decisão já estava tomada.
Esta foi sem dúvida a primeira razão, mas, no decorrer do tempo, as coisas
evoluíram.
Pelas próprias anotações do livro, pode-se concluir que, além das belezas
naturais, a viagem pela mente humana, o estudo do homem em si toma um lugar de
destaque. 0 livro começa devagar, e transforma-se, do meio para o fim, em um
documentário social e político; sem abandonar, porém, o canto da natureza.
Só quatorze anos depois, saio a bordo do Três Marias, deixando o porto de
Salvador. A intenção era dar a volta ao mu do, em solitário, a bordo de um barco à
vela de bandeira brasileira.
Naturalmente, muita coisa se passou nestes quatorze anos.
Voltando de Porto Seguro a Salvador, fui dar uma espiada nos barcos da Ribeira
e, para meu espanto, vejo um enorme iniciando a reforma. Era o Santa Cruz. O seu
proprietário, Lev Smarcevski, arquiteto, pintor, sonhador, comprou um saveiro de
dois paus, de 24,60m, o antigo Vera Cruz, para transformá-lo em barco de cruzeiro.
Seu roteiro, dar a volta ao mundo. Logo engajei.
Durante quatro anos, não falhei um sábado, um só domingo ou feriado. Não
brinquei mais carnaval.
No primeiro dia me deram uma lata de tinta e um pincel, fui pintar os parafusos.
Terminei encarregado de navegação do barco.
Só por um milagre, e por insistência de meu Pai, não abandonei o curso de
Engenharia. Como estava no 4.º ano, e o barco ia sair dentro de um ano, não daria de
qualquer forma tempo de concluir o curso, mas o meu sonho estaria se transformando
em realidade.
Como sempre, a reforma de um ano terminou durando quatro anos. Deu tempo
de concluir o curso, ganhar algum dinheiro, fazer o curso de capitão amador,
conhecer Da Graça, minha ex-mulher, fazer Marúcia, casar, e sair mundo a fora.
Naquele tempo, saveiro só carregava louça de barro e banana. Uma embarcação
extremamente forte feita para encalhar carregada nos mil riachos que desembocam na
Baía de Todos os Santos. Descarregar na maré baixa, tornar a carregar e voltar a
fazer viagem.
Saveiro era coisa de pobre. Gente de sociedade não punha o pé num saveiro. Lev
foi um pioneiro. Foi Lev quem primeiro teve a visão e transformou o Vera Cruz, um
bom saveiro, na escuna mais bonita que já vi na minha vida.
Suas madeiras eram imensas, todas esculpidas por Carybé. Levava trabalhos de
Mário Cravo, e entalhada, com aplicações em ouro, a frase célebre de Jorge Amado:
“Saveiro da Bahia co duz seus mistérios de povo, sua rosa de amor, e sua
fraternidade”.
Depois de sair em duas Manchetes, em todos os jornais, depois de um almoço de
150 talheres no Iate Clube da Bahia, o Santa Cruz deixa o Porto de Salvador.
Seu destino, Caribe, Estados Unidos, Europa, o mundo …
Lev era um grande artista, um sonhador, um precursor da escuna na Bahia. Hoje
o Porto dos Tainheiros está coalhado de escunas, muitas sendo vendidas para o Rio, e
até para o exterior. Mas, de artista e sonhador, talvez o maior dos seus méritos, para
capitão, falta muito.
Saí em Porto Rico após navegar 4.000 milhas em 4 meses. No dia seguinte saiu
Lobo Britos.
O ar a bordo estava irrespirável. O Santa Cruz terminou sendo vendido ali
naquele mesmo porto.
Não dei a volta ao mundo, mas aprendi muito. Com Arlindo, Fulô, com Lobo
Britos que já tinha corrido o mundo.
Saí do Santa Cruz, mas não voltei para casa. Engajei no Ariels, uma escuna de
33m, com bandeira inglesa, comandante francês e proprietário americano. Oito
nacionalidades a bordo. Minha função, marinheiro raso.
O destino, Europa via Bermudas. Estava cortado o cordão umbilical.
Aprendi muita coisa e andei por aí vendo tudo. Terminei voltando, pois minha
filha Marúcia já tinha nascido e nem a tinha visto ainda.
Voltei, assumi a família, mas não parei de pensar em barco. Ainda não tinha
conseguido dar a volta ao mundo. Tudo aquilo não passava de um preparativo.
Os anos foram passando e fiz várias pequenas viagens.
Rio de Janeiro, Recife, etc…
Finalmente em 1973, indo novamente à Ribeira visitar Brancaccio, terminei indo
a bordo de um barco francês, o Concorde. Estava com destino a Cape Town, África
do Sul.
O seu comandante estava sozinho e procurava um tripulante, mas, caso não
encontrasse, partiria de qualquer jeito sozinho no domingo seguinte.
Criado na Indochina, Pierre Chassin era um francês que tinha participado
inclusive como solitário de diversas regatas transoceânicas, homem de grande
conhecimento de mar.
Estava naquela época trabalhando na Cobrazil, com Petrônio, e os trabalhos do
Porto de Aratu estavam atrasados. Mesmo assim, arrisquei-me a contar o convite que
tive e aconteceu o inesperado. Recebi luz verde.
Fiquei louco.
Passaporte, vacinas, arrumei tudo, fiz o supermercado do barco e saí navegando
com um indivíduo que nunca tinha visto em minha vida.
Saímos em primeiro de setembro. Não era boa época. O vento era contra e
tivemos que orçar a maior parte do tempo, mas o barco era de regata. Pierre estava
com pressa pois tinha que fazer uma regata de Cape Town a Sidney. Fizemos 4.000
milhas e a viagem durou 34 dias, uma volta imensa quase até o Uruguai, para só
depois atravessar o Atlântico, forçados pelo vento.
Eramos dois. Um dormia e o outro trabalhava. E foi nesta viagem que me senti
em condições de manobrar o barco sozinho.
A nossa chegada foi assunto de primeira página dos jornais locais. Passei 6 dias
em Cape Town e voltei via Luanda para trabalhar, mas uma coisa estava decidida:
Resolvi que tentaria dar a volta ao mundo. Mas seria em solitário.
Dar a volta ao mundo com tripulação, ou em solitário, seria comparável a
escalar uma montanha menor ou tentar logo o pico mais alto da cordilheira. Se me
sentia em condições, para que deixar por menos?
Sozinho, teria oportunidade de pensar, pensar sem sofrer interferência, ou
qualquer outro tipo de vibração. Me colocar frente a frente com as forças da natureza
e deixar o barco correr.
Isto foi em 1973. Só em março de 1980 o “Três Marias” deixou o Porto de
Salvador. Passaram-se sete anos, e neste tempo não parei de estudar as coisas do mar,
principalmente ler os livros dos navegadores solitários.
Aprendi a ganhar dinheiro, desta vez, uma questão de necessidade, construí o
barco e saí.
O desquite depois de 10 anos de casado pode ter tido as suas desvantagens, mas
facilitou muito as coisas.
02. PRIMEIRA TENTATIVA DE PATROCÍNIO

Não tendo barco, nem nada, apenas a ideia, procurei alguém que talvez pudesse
comprá-la.
“Dar a volta ao mu do em solitário, a bordo de um barco à vela de bandeira
brasileira”.
Quem sabe, talvez a Marinha do Brasil. Em nome do mar, do esporte náutico,
com a finalidade de atrair a juventude brasileira para a importância do mar.
Fiz então uma carta ao Ministro da Marinha, solicitando que pusesse um dos
veleiros da Marinha à disposição da viagem.
Meu ex-sogro encarregou-se de entregá-la, ele que trabalhava em Brasília, e que
chegou a alterar alguns detalhes da carta. Como seria ele o estafeta, não pude opor-
me às alterações.
A carta foi a Brasília, mas nunca foi entregue. Um dia respondeu-me que havia
consultado alguém no Ministério, e que o momento para a entrega da carta não era
oportuno. Tinha que esperar um pouco.
Até hoje espero.
O tempo foi passando e cheguei à seguinte conclusão: “Pedinte sem saco, não é
pedinte”. Finalmente onde iria pôr as esmolas. E o saco, no meu caso, seria o barco.
Tinha que arrumar grana para fazer, pelo menos, o barco, depois pediria ajuda
para o resto.
03. A CONSTRUÇÃO DO BARCO

Formaram-se em Salvador dois grupos que compraram um desenho de Bruce


Roberts 25 pés. Na época, Brancaccio me chamou para fazer parte. Não aceitei, pois
sabia não tratar-se de um barco definitivo. Com um 25 pés não se vai longe. Só com
muita sorte.
Os anos foram passando e procurei parceiros para fazer um barco maior. A ideia
era dividir o preço do molde.
O próprio Brancaccio chegou mais tarde à conclusão de que precisava de um
barco maior. Escolhemos um Bruce Roberts 36 pés, quilha longa, convencional. Nada
de desenho novo. Um barco que fosse estável no rumo, permitindo uma dormida
tranquila e um bom governo com leme de vento.
Importamos o projeto.
Logo em seguida Brancaccio adoece, vindo a morrer, um ano depois, vítima de
um mal incurável. Eduardo Di Nunzio desistiu com a saída de Brancaccio, e minha
casa foi declarada desapropriada.
Tudo de uma só vez.
O pouco dinheiro que juntara foi gasto como entrada para a compra de um lote
de terreno, onde, com o dinheiro da desapropriação, sempre ridículo, construiria a
minha nova casa.
Passaram-se mais seis meses. A desapropriação foi engavetada, mas o dinheiro
já tinha sido gasto. Além de ter agora que arcar com as mensalidades do terreno.
Comecei a fazer um molde de madeira comum, para revesti-lo de papel,
plástico, encerá-lo para evitar aderência e aplicar a fibra de vidro. Estava sozinho, e
não poderia fazer um verdadeiro molde, que custa geralmente, devido aos reforços,
mais do que o casco do próprio barco.
Brancaccio, mesmo doente, ainda veio várias vezes me ajudar a interpretar as
plantas. Além de conhecer muito de barco, tinha um inglês perfeito.
Ele faleceu no fim daquele ano e nem viu o barco chegar à metade.
Comprei a fibra de vidro e a resina faturadas para pagar em três meses, pois não
tinha um tostão no bolso. Resolvi que na hora dos vencimentos, tornaria um
empréstimo no banco, mas o casco tinha que sair de qualquer jeito.
A necessidade de ganhar dinheiro tornou-se tão grande que em três meses
arrumei uns projetos para fazer, de marinas, portos, estudo de canteiros para off-
shore, etc…
O fato é que não tive que tomar mais o empréstimo. Daí em diante a coisa não
parou mais.
Quando não tinha dinheiro para comprar material, íamos lixando, dando
acabamento, até que o dinheiro aparecesse para dar prosseguimento efetivo à obra.
Gildo, um carpinteiro de Arembepe, que já tinha trabalhado quatro anos em
outro barco, foi a grande revelação. Não só mostrou-se muito dedicado, mas uma
pessoa que cumpria a programação tanto na minha presença, como na minha
ausência.
Era bom de trabalho.
Assim, passava o dia na obra e à noite discutíamos os assuntos do barco, e
trabalhávamos juntos até tarde às vezes. No outro dia tinha que sair, mas o trabalho
do barco não parava.
Dois anos e nove meses depois, o barco foi lançado n’água. Minhas filhas foram
as madrinhas do barco.
Durante a construção recebi muita ajuda de amigos a quem fico eternamente
agradecido.
Poderia citar alguns padrinhos do barco.
Serraria Bonfim Ltda. O meu amigo José Serra não só forneceu madeira por um
ótimo preço para pagar quando pudesse, como vinha a bordo me ajudar a tomar as
decisões, projetar os detalhes em madeira etc.
Arinete Fernandes forneceu gratuitamente a mão de obra para a instalação
elétrica.
Imosa. Srs. Carlos e Osmar me fizeram gratuitamente os tanques d’água em
inox, e uma pia sob medida.
Alpes Guinchos. Sr. Almiro ofereceu a carreta para o transporte do barco até o
cais.
Prontoferro ofereceu o guindaste para o lançamento do barco n’água.
Angra dos Veleiros, onde fiquei fundeado os últimos seis meses, acabando de
equipar o barco para a viagem, sem nada pagar, apesar de não ser sócio do clube.
Tintas Hempel, na última hora, não me deixou pagar as tintas que ia levar para a
viagem.
Cobrazil ofereceu a mão de obra, gratuitamente, para pintar os interiores do
barco. Também ofereceu um radiogoniômetro.
Devo ressaltar a grande ajuda de Adolirio do Carmo e Paulo Menezes na
fabricação das ferragens do barco.
Geraldo Albuquerque forneceu, gratuitamente, a espuma flexível e rígida para
estafados e isolamento térmico.
Ravazano, representante da Carbrasmar, alinhou o motor e abriu o nome do
barco, além do apoio geral.
A estes e tantos outros não citados, a minha eterna gratidão.
04. SEGUNDA TENTATIVA DE PATROCÍNIO

Quando o barco estava quase pronto, comecei a me preocupar com o patrocínio


da viagem em si.
Surgiram muitas ideias, todas elas calcadas na importância que esta viagem
poderia ter, em chamar a atenção do jovem brasileiro para o mar.
A meu ver, esta viagem era de muita importância. O difícil era fazer com que
outros a olhassem com os meus olhos.
O primeiro passo foi fazer uma relação de 50 amigos que, caso não saísse
nenhum patrocínio, nem conseguisse o mínimo necessário, me dariam uma
contribuição mensal, com a qual viajaria.
O segundo passo foi fazer um relatório, tipo projeto, com exposição de motivos
e tudo da viagem proposta e encaminhá-la à Construtora Mendes Júnior, onde
trabalhava.
Fui a Belo Horizonte, entregar o relatório em mãos ao Dr. Marcos Mendes,
diretor e um dos donos da construtora.
Fui muito bem recebido. Mostrei umas cinquenta reportagens de viagens que
participei anteriormente, e finalmente lemos juntos o relatório.
O Dr. Marcos Mendes dedicou mais de uma hora à minha causa, ele, que tem a
agenda superlotada, prometeu submeter o meu pedido à apreciação do Conselho e ao
Diretor-Presidente.
Depois de alguns meses veio finalmente a resposta.
A Mendes olhava com bons olhos o meu ideal, mas, visando não abrir
precedentes na Empresa, o meu projeto não pôde ser aprovado.
Quando o barco ficou pronto, às vésperas da saída, revelei pelo jornal que
aceitaria um patrocinador.
Apesar de já ter o mínimo, um patrocínio poderia me fornecer uma balsa salva
vidas, um rádio transmissor, e mais equipamentos que poderiam consolidar mais um
possível sucesso.
“Ninguém apareceu”.
Cheguei a uma fase da minha vida, em que a gente vê com clareza que ganhar
dinheiro não é um objetivo mas apenas um meio.
“0 melhor da vida, o amor, a amizade, o mar, as coisas belas da natureza são
grátis”.
“Larguei tudo e parti”.
A única contribuição que recebi foram as cartas e publicações doadas pela
Marinha do Brasil, esforço dos Almirantes Dilmar de Vasconcelos Rosa e Luís Carlos
Freitas.
05. REPORTAGENS CEDIDAS ÀS VÉSPERAS DA PARTIDA

Para dar uma ideia do que tinha na cabeça, às vésperas da partida, reproduzo
aqui trechos de reportagens que considero mais fiéis ao meu pensamento, naquele
instante.

TRÊS MARIAS LEVA BELOV AO REDOR DO


MUNDO

Reportagem – Vela e Motor, março de 1980, às vésperas da saída. Maria do


Carmo Calmon.

Primeiro ele tentou fazer a viagem uma escuna, depois de ter ajudado em sua
construção durante quatro anos. Não deu certo. E tão o “baiano” Aleixo Belov
decidiu juntar dinheiro e construir seu próprio barco, com o qual está partindo para a
realização de um sonho que acalenta à 14 anos.
Foram dez anos de preparo, durante os quais Aleixo Belov, de 36 anos, leu tudo
sobre navegação, aprendeu a ganhar dinheiro e juntou suas economias para construir
um barco. Agora, ele está de partida para realizar uma volta ao mundo em solitário, a
bordo do Três Marias, num roteiro que parte de Salvador e passa, entre j outros
lugares, por Trinidad, Panamá, Galápagos, Marquisas, Tahiti, Nova Caledônia,
Estreito de Torres, Timor, Bali, Moçambique e Cidade do Cabo.
0 Três Marias é um projeto Robert Bruce de 36 pés, adquirido por Aleixo em
1976. Sua construção levou três anos, pois o barco foi feito no quintal da casa do
iatista, que contou apenas com o auxílio de um carpinteiro. Em abril de 1979 a
embarcação foi lançada ao mar com uma cerimônia de batismo, sendo as duas filhas
de Aleixo, Marúcia (9 anos) e Mariana (6 anos), as madrinhas.
Após o lançamento na água, o iatista foi equipando seu barco, a fim de prepará-
la para a viagem. Realizou alguns testes, em passeios e regatas, nos quais se saiu
muito bem: Três Marias conquistou o 3.º lugar do Campeonato Baiano de vela de
Oceano. A vida de Aleixo Belov – cidadão brasileiro de origem soviética, como se
define – sempre esteve ligada ao mar: é mergulhador profissional, Capitão Amador há
10 anos, professor da cadeira de Portos da Universidade Federal da Bahia e
engenheiro Civil da Construtora Mendes Júnior, onde foi Superintendente de
produção da obra de plataformas da Petrobrás.
– O mar exerce uma atração muito grande sobre mim – diz Belov. – Estou em
permanente contato com ele, mesmo trabalhando. Além disso, sempre fiz esportes
náuticos, numa espécie de preparativo para esta viagem em solitário. Acho que viajar
sozinho é um teste para a gente ver se realmente pode ficar só. Quando fico sozinho
no barco, faço mi ha cabeça. Gosto de ler e escrever durante as viagens. Pretendo,
inclusive, escrever um livro, se conseguir terminar meu roteiro, o que, espero,
acontecerá daqui a dois anos.
A solidão durante meses a fio, as possíveis tormentas em meio ao oceano, nada
parece assustar o velejador como a ideia de não mais rever seu pai, com 83 anos. A
falta de recursos – ele não conseguiu um patrocinador – pode ser considerada um
problema, que Aleixo pretende resolver trabalhando como mergulhador nos portos
onde ancorar, e sobrevivendo sem contar com coisas supérfluas.
-Medo? – pergunta. – Ninguém pode dizer que não tem medo do mar. No
entanto, a atração que exerce é maior do que qualquer outro sentimento, embora em
certas horas ele realmente seja assustador. Meu maior receio fica por conta dos
materiais, porque eles podem não aguentar: esta é a neurose que existe, a dos
materiais. Sabe, se o barco estiver bem preparado e o navegador souber usar a
técnica carreta no momento exato, a segurança para enfrentar o mau tempo é maior. E
as tempestades não são a constante de uma viagem. Em geral, o tempo está bom.
O importante é a gente estar preparado para o que der e vier; se vier a tormenta,
a gente passa por um teste de autocontrole, autodomínio. Isso, desde que o mau
tempo não seja superior à dimensão do próprio homem. Acredito que minha
experiência como mergulhador vá me valer bastante neste sentido: depois de
ultrapassar os 50 metros de profundidade, tive oportunidade de testar meu
autocontrole e pude também aprender a controlar as pulsações cardíacas. Além de
tudo, estou estudando as cartas náuticas dos lugares por onde passarei. Espero evitar
as tormentas, escolhendo as melhores épocas para os diversos pontos do roteiro.
A única religião de Aleixo Belov é o mar. Sua fé se deposita na força do
pensamento e da natureza e na energia mental do ser humano.
-A vida é muito complicada, e ter paz é uma coisa bastante difícil – desabafa. –
Os credos religiosos me parecem uma resposta fácil para quem não busca grandes
coisas. E eu quero construir, quero mergulhar na grande banheira de coral da
Austrália... E saber que estou vivo!
FICHA TÉCNICA
Comprimento - 36 pés (11,30m)
Boca - 3,40m
Pontal - 3,40m
Calado - 1,60m
Deslocamento - 8 toneladas
Motorização 23 HP (Volvo Penta)
Velas Pellicano
Leme de vento Aries
Obs.: Armado em Cuter (duas velas de proa e uma grande).
ALEIXO BELOV: SÓ, PELO MAR, NUMA VIAGEM AO REDOR
DO MUNDO

Transcrito de “Á TARDE” – 24.02.80 Reportagem: Carlos Alberto Reis

No dia 16 de março, um homem vai sair só, de Salvador, para uma viagem em
solitário, ao redor do mundo, a bordo de um iate de 11 metros. Quando o barco cruzar
o Farol da Barra em direção a Natal e Trinidad, suas primeiras escalas, Aleixo Belov
um engenheiro de 37 anos estará começando a realizar um plano antigo, vivido desde
1973 e posto em prática com a construção, no quintal da sua casa, do “Três Marias”,
uma embarcação em fibra de vidro, seguindo planta de Robert Bruce, trabalho que
durou três anos.
A ligação de Belov com o mar é antiga, mas tomou muita força quando ele,
mergulhador, conheceu Porto Seguro, isso em 1965: “Levei 16 dias mergulhando até
acabar todo meu equipamento”, conta. “Andando pelos arrecifes lá de fora me surgiu
uma vibração muito intensa, e achei, num estalo, que teria de viajar, e só. Voltei de
Porto Seguro. Nesta época era estudante de engenharia e conheci o Santa Cruz, um
barco que estava sendo reformado para uma longa viagem pelo mundo. Logo me
engajei na tripulação.
Éramos oito. A viagem, que deveria ser longa, durou quatro meses e fomos até
Porto Rico. Fiquei frustrado por não ter condições de seguir viagem com o Santa
Cruz, que acabou sendo vendido lá mesmo, e não voltei para casa. Ao invés disso,
embarquei em Porto Rico, num barco inglês – Ariels – com o qual viajei pelas
Bermudas, Açores e Europa, saltando em Cannes, na França; foi quando recebi um
telegrama dando conta do nascimento da minha primeira filha (agora são duas).
Mesmo assim, ainda corri toda a Europa e URSS, de onde, apesar de brasileiro, sou
originário, voltando depois a Salvador, para seguir a vida como engenheiro.
-A vontade de dar a volta ao mundo era cada vez mais forte – continua Belov – e
apesar de o Santa Cruz não ter afinal realizado todo o roteiro, pude sentir que havia
rompido meu “cordão umbilical” pela convivência mais demorada com a água. Mas,
me aprofundei em meus estudos, de engenharia procurando melhorar meu currículo, e
me voltando para a especialização em áreas portuárias, quando cheguei a ensinar a
cadeira de Portos, na Universidade Federal da Bahia, e por último me especializei em
“Off-Shore”. Chefiei então a produção das três plataformas em concreto construídas
em Aratu para a exploração de petróleo no mar. Hoje, estas plataformas se encontram
no Rio Grande do Norte em operação”.
A construção do barco

Aleixo Belov conta que todos estes anos, enquanto alimentava o seu sonho,
voltou-se para a especialização em atividades marítimas, e procurando ganhar o
suficiente para tornar realidade sua viagem, já que os custos de construção do seu
barco seriam caríssimos. Mas, retornando ao tempo, ele explica porque,
especificamente, s6 em 73 é que lhe ocorreu que viajaria em solitário: “A ideia de
viajar surgiu em 73, quando viajei a bordo do Concorde, um barco à vela de bandeira
francesa, com 42 pés. Éramos apenas dois tripulantes, eu e o Pierre, que era o dono
do veleiro. A viagem que fizemos durou 34 dias, de Salvador a Cape Town sem
escala: passamos 33 dias sem ver terra, um dormindo enquanto o outro trabalhava.
Foi neste período, principalmente, enquanto estava só, manobrando o barco, com
Pierre dormindo, que me ocorreu a possibilidade de viajar só, na minha volta ao
mundo”.
Belov procurava manobrar só o barco, sem acordar o companheiro, testando a
possibilidade de operar sem qualquer ajuda o grande veleiro: “Deste período em
diante não tive mais dúvidas. Iria só”.
Roteiro

Em sua viagem, Belov e o Três Marias sairão de Salvador com destino inicial a
Natal, depois para Trinidad-Galápagos-Panamá-Tahiti-Austrália (Estreito de Torres) –
Bali-Madagascar-Cape Town-Rio-Salvador. Neste roteiro, ele passará por dezenas de
ilhas menores, muitas delas sem vestígio de civilização moderna. O Três Marias,
Belov o construiu todo no quintal da sua casa, em Quintas dos Lázaros, num trabalho
que durou três anos. Ele lamenta que os equipamentos de que dispõe a bordo ainda
não sejam completos, pelas dificuldades financeiras para obtê-los.
Na sua ficha técnica, o Três Marias apresenta um comprimento de 36 pés (11,30
metros); boca 3,40m; calado 1,60m e deslocamento de oito toneladas. Para auxiliar a
propulsão, quando faltar o vento, um motor Volvo Penta de 23 HP. Conta com uma
área vélica de 65 metros quadrados (de Pellicano), e o equipamento mais importante
é o leme de vento que permite a viagem sem que o timoneiro fique preso ao leme,
bastando para isso fugir das rotas dos navios.
Aleixo co versou lo game te com o repórter sobre a viagem. Ele pensa em co
seguir um patrocinador.
A maior dificuldade encontrada por Belov até agora é de ordem econômica: ele
ainda não conseguiu nenhum patrocinador para a viagem. "Eu veria com bons olhos
se aparecesse algum que se dispusesse a financiar mesmo em parte a viagem. Já tenho
um mínimo necessário para seguir, mas a aquisição de alguns outros equipamentos
aumentaria em muito minhas chances de que tudo corra tranquilo. Belov conseguiu
com a Marinha cartas náuticas, roteiros e publicações necessárias para a viagem e
essa foi toda ajuda conseguida até o momento.
Por que navegar em solitário
“Quando passo mais de dez dias no mar começo a ter um sentimento muito
especial. Uma espécie de transcendência, com uma paz interior muito grande.
Começo então a ver com clareza o mundo. Acredito que este sentimento é muito
maior quando estou só... Vivemos nesta civilização num amontoado de gente, e
sequer podemos pensar por que sofremos frequentes interferências,
condicionamentos, motivações de toda espécie.
“Isso termina nos desviando dos nossos objetivos, e há um determinado
momento que nem se sabe por que se está fazendo as coisas, por que se está seguindo
determinado caminho. Quando se passa determinado período no mar, se começa a
enxergar perfeitamente a si próprio... Depois vem uma certeza do que fazer quando
chegar em terra. Ao chegar, a gente é novamente envolvido, e muito pouco do que se
pensou, se faz, na prática”.
“Conhecer o mundo... outros países, outros povos, outros costumes, outras
mentalidades c se situar melhor no planeta. Que pode haver de mais importante?
Importante também divulgar e mostrar ao jovem brasileiro, a importância do mar”.
(Aleixo Belov)
06. SALVADOR A PANAMÁ
19 de março de 1980

Hoje completei três dias de mar. Ainda não pronunciei uma só palavra.
Após marcar a data e hora com dois meses de antecedência, saí, solitário, no dia
16 de março às 10 horas da manhã, após me despedir no cais de meu Pai, de minhas
filhas e meus amigos. De minha Mãe me despedi em casa, pois Ela disse que não
gostaria de chorar no cais.
Estes três dias tiveram várias fases.
Saindo no motor e genoa, fui logo embora, pois estava muito emocionado.
Ao abraçar meu Pai com 83 anos, senti que estava ficando fraco. Mas, quando
minha filha menorzinha, Mariana, me disse: “Painho, ão vá ão”, não pude conter as
lágrimas.
Eu escondia o meu rosto no seu ombro, mas os fotógrafos não me poupavam.
Resolvi sumir no mundo. Saí às pressas, não dei chance aos amigos, nos barcos
menores a me acompanharem. Saí à vela e motor, correndo feito louco, para dar fim
àquele sofrimento.
Para que adiar o inevitável, que era ficar só.
Após afastar-me bastante, parei a máquina. O barco avançava num rumo
qualquer, desde que fosse se afastando da terra.
Às cinco da tarde, resolvi retirar a genoa e içar o yankee, uma vela menor,
preparando-me para a noite. Estava muito enjoado e terminei me arriando sobre o
saco de vela na proa, todo amarrado e vomitando pela borda. Fiquei muito fraco e
desanimado, mas, a muito custo, concluí a manobra e me deitei.
A uma hora da madrugada o barco virou de bordo sozinho, mas como o rumo
estava bom, deixei, voltei a dormir, levantando esporadicamente para dar uma
espiada. Estava me
Sentindo tão mal, que mais me preocupava em ficar bom do enjoo que de outra
coisa. Sabia, porém, que isto era função do tempo, que teria de esperar.
Só fiquei bom após completar dois dias. Então veio uma fome negra e cozinhei
uma sopa caseira.
Quatro batatas, um tablete de caldo de carne, uma cebola, umas colheres de
aveia para engrossar.
Cozinho primeiro as batatas no caldo, a aveia e, quando está quase pronta,
coloco as cebolas cortadas, uma colher de manteiga para dar gosto, e viva o Brasil.
Tornei um litro de sopa, a ponto de ficar cansado.
Daí em diante não parei, e a vida foi ficando boa. Repolho refogado na
manteiga, farofa, frutas, pão de mel, chá com limão, cenouras cruas, tomates, e já tirei
o atraso dos dias que passei enjoado.
O tempo continua bom, mas andei na orça apertada os três primeiros dias. Só
hoje o vento deu chance de folgar um pouco as escotas e o barco mostrou o que tinha.
Este privilégio só teria em Recife, mas, como orcei bastante, me dei este luxo, agora,
de ver o barco correr.
Como estive fraco, andei estes dias apenas com o yankee e a vela grande no 2.º
riso. Não tive coragem de pôr a genoa, ainda mais que teria que retirá-la ao
entardecer.
À noite sempre tem mais vento, além da possibilidade de surpresas, e sozinho,
mesmo amarrado, a gente sempre corre o risco de cometer um erro.
Tentando pôr a segurança em primeiro lugar, me acomodei, e estou até o
momento com área vélica reduzida.
21 de março de 1980

Passaram-se mais dois dias, e muita coisa evoluiu.


Ficando mais forte, resolvi içar a 2.' vela de proa, a trinqueta. Agora está
andando em cuter. Duas velas na proa e a vela grande continua no 2.º riso. O rumo
também foi mudando à medida que avançávamos, e o vento foi ficando cada vez mais
favorável até chegar ao través e passar dele.
O barco já não anda, voa. Às vezes faz mais de sete nós. No último dia, fiz uma
média superior a seis nós, e, com isto, todas as perspectivas de chegada mudaram.
Nós que prevíamos chegar em Natal no domingo, temos agora a chance de
chegar no sábado, à tarde. Por isso torna-se necessário montar toda uma estratégia
para não chegar à noite e ter que ficar bordejando em frente ao porto até o amanhecer.
De repente vieram umas nuvens e chuva pela proa.
Talvez falte visibilidade, o que não é bom.
As nuvens foram embora, mas o vento reduziu de intensidade. Talvez já não dê
para chegar lá ainda com luz do dia.
Estas são as nossas variáveis, mas ninguém sabe o que virá. Tudo é suspense e
inquietação.
Suspendi a linha de arrasto. Agora não é hora de pescar e sim de pensar na
chegada. Felizmente o que não falta é comida.
Pepinos com sal, tomates com pão e manteiga, sopa de lentilhas, ovo maltine,
leite em pó, mingau, ameixas secas, passas, chá com limão e mel, frutas etc... Se todo
brasileiro tivesse a sua disposição o que eu comi nestes dias, boa parte dos problemas
estariam resolvidos.
Devagarzinho, vou assumindo a rotina de bordo.
Comecei a ler um livro, fiz retas de posição, retirei um resto de água dos porões,
que vinha ainda de Salvador, cortei as unhas, tornei banho salgado no convés, regulo
as velas à medida que o vento muda, ouço o rádio, escrevo o diário.
Estudei todas as cartas náuticas até o Porto de Natal, e já estava ficando
tranquilo, quando avistei um navio que passou a uma milha de distância.
Pronto. Foi o suficiente para’' não poder mais dormir tranquilo. Passei a dormir
e a acordar de hora em hora, mesmo sem despertador. Se acordo, acredito que foi por
instinto, por pressentimento, e me vejo na obrigação de abando ar o beliche quentinho
e dar um pulo até o convés, dar uma espiada. Assim passei a me levantar umas 10
vezes por noite, mas esta última noite vai ser ainda pior, pois agora estamos nos
aproximando da terra. É a noite que antecede a chegada e que estaremos a menos de
100 milhas da costa. Portanto não conseguirei mais dormir.
Para não gastar a bateria, não acendo as luzes de navegação, e o “Três Marias”
navegava em completa escuridão.
Geralmente ando solto, mas ponho o cinto de segurança toda vez que vou fazer
uma manobra ou vou sentar-me na balaustrada, lá no bico de proa, um dos meus
lugares prediletos. De lá vejo todo o barco e a espuma que fica para trás. É de lá que
sonho e aos poucos vou vestindo a camisa de um navegador solitário.
Até agora, não senti falta de ninguém, apesar de ter tido alguns sonhos.
Quando a gente confia na gente, prefere fazer as manobras sozinho.
Um outro tripulante ajudaria, mas também traria uma série de inconvenientes.
Até agora estou muito satisfeito de estar só. Vamos ver no futuro.
22 de março de 1980

Feitas as contas, cheguei à conclusão de que a correnteza estava nos ajudando


muito, e que daria para chegar mesmo no sábado, bastando para isso manter uma
maior área vélica.
Com o vento pela popa, tive que usar o tango na genoa, e a vela grande no outro
bordo, o que deixava o barco rolando muito.
O barco andava muito, e como o gônio não conseguiu sintonizar Natal, as
preocupações aumentavam. Tive que ficar acordado toda a noite, dando umas
cochiladas ao lado do leme. Na realidade, estava tão agitado, que nem conseguiria
dormir.
O céu todo nublado, dificultando a navegação astronômica, e o radiogoniômetro
sem conseguir a sintonia, me fizeram suar frio para me localizar. O barco por sua vez
andava muito mais do que o previsto.
Uma espécie de névoa escondeu a terra, e quando pude avistá-la, estava a 3
horas do porto.
Para investir no canal, reduzi o pano, entrando à vela, mas com o motor ligado
por precaução. E, assim, concluí a minha primeira travessia como solitário, de
aproximadamente 600 milhas.
Fiz todas as manobras nos últimos dias sem usar cinto de segurança, pois estava
muito agitado. Mas, vencida esta primeira etapa, prometi a mim mesmo, tornar-me
mais profissional. Pediria a minha mente que fosse mais honesta com o meu corpo.
Chega de euforia. Vamos fazer a coisa direito pois a vida é bela.
3 de abril de 1980

Há quatro dias que estou no mar. Deixei Natal, o último porto brasileiro, no dia
30 de março às 10 horas.
Fernando M. Virgem, e Godói com toda a sua família, mãe, irmã, parentes e
amigos vieram assistir à minha saída e queimaram um monte de fogos.
Fernando e Godói vieram de Salvador. Alguns dias atrás, estivera aqui Tereza,
acompanhada da mãe. Isto tudo é muito bom, a amizade, mas veio adiar apenas o
inevitável. A solidão total. É a esta que espero, ansiosamente. Vamos ver o que vai
pintar.
Os quatro dias foram monótonos. Logo ao sair de Natal e dobrar o cabo
Calcanhar, o vento reduziu e avançamos bem devagar, com vento de popa.
Apesar do vento fraco, não desfiz os risos da vela grande, nem substituí o
yankee pela genoa. Deixei o tempo correr.
Uma gaivota de rabo comprido, provavelmente cansada, tentou sentar no topo
do mastro. Uns peixes pularam do lado do barco e já me levaram a linha que vinha
arrastando. Fora isto, foram dias sem novidades.
Tentava recapitular os cálculos para navegar pelas estrelas, que há cinco anos
não fazia, e estava dando uns foras. Estes cálculos se tornaram importantes nestes
dias, quando a declinação do sol estava coincidindo com a latitude, dificultando o
cálculo da passagem meridiana, e as retas do sol da manhã eram paralelas às da tarde,
impossibilitando o cruzamento tão necessário. Isto é função do lugar e da época do
ano.
Foi assim : ontem me preparei para tomar a altura das estrelas e percebi que iam
se formando a N.E. umas nuvens. O vento era S.E., e estávamos nas proximidades do
equador.
Percebi que o céu ia cobrir e o tempo ia virar. O barômetro estava normal, tudo
bem. Consogui Canopus, e as demais estrelas foram encobertas pelas nuvens que
vinham atiçando, e começou a ventar.
Entrei, guardei o sextante, e determinei a posição interceptando a única estrela
que consegui, com a reta do sol da tarde.
Logo começou a chover. Pus a roupa de tempo e saí. A escuridão era total,
estava ofuscado pela luz do interior. Tinha saído de repente.
Amarrei-me com o cinto de segurança e fui retirar o tangon, sempre
inconveniente ao ser manobrado com muito vento. O vento rondou para N.E.
Soltei a contra escota da grande, e ela ficou meio louca. Fui caçando a escota
devagar para reduzir o tombo. Dei no leme de vento uns 20º e cambei a grande. Uma
vez conseguida a estabilidade, fui à proa, e na sombra da grande retirei o tangon.
Estando sozinho, é comum mudar o rumo para fazer as manobras, na posição
mais favorável, e depois voltar a seguir caminho. Mas foi o bastante.
Finda a manobra, começaram as rajadas de vento forte. O barco andava que era
uma beleza. Apesar da escuridão, já acostumara a vista, sentei-me junto ao leme, para
ver o barco correr.
Pensei logo o que faria caso o vento aumentasse, mas já estava com pouco pano.
Assim, foi quebrada a monotonia ao assistir, como num teatro de arena, a um
confronto de forças da natureza, e o barco, ali, sem ter sido convidado.
A luta durou pouco, logo tudo voltou ao normal, ao equilíbrio. Sentei-me agora
junto ao mastro, recostei-me nele e fui pensando na vida. O mastro é de alumínio e
tem vários furos, assim, quando sopra o vento, entoa uma flauta triste. A melancolia
tomou conta do ambiente, sentia um misto de alegria e tristeza, por ter saído bem e
assistido a um belo espetáculo.
Passou o vento e veio aquela chuva fina. Entrei e fui dormir. Sem uma só luz,
para economizar bateria, o “TRÊS MARIAS” continuava seguindo o seu rumo pelos
mares, em completa escuridão.
8 de abril de 1980

Nono dia no mar, caminhando para o décimo.


Hoje estou mais relaxado. Estive muito tenso estes dias, principalmente ao
descobrir que estava muito ao sul, e fui me encurralando junto à foz do Amazonas.'
Passei estes três últimos dias empenhado em orçar o máximo, tentando ganhar
latitude e passar as Guianas. Hoje, então, resolvi folgar um pouco as escotas para
ganhar velocidade.
Os dias, que se passaram, tiveram várias fases.
O céu muito nublado impedia a navegação pelas estrelas. O sol sozinho não
estava dando resultado, como já descrevi, devido à coincidência da latitude com a
declinação. Assim, suei frio, várias vezes na mesa de navegação, tentando descobrir
aonde estava, e se iria ou não, à noite, montar por cima dos bancos em frente ao
Território do Amapá.
Esta preocupação se tornou tão grande que me deixou desanimado. Tive
momentos de fraqueza.
Revi tudo, se não tinha posto o chapéu onde minha mão não alcançava.
Pensei nos pais, nos amigos, nos filhos, no trabalho que abandonei, e ainda mais
na proposta de última hora que rejeitei da Mendes Júnior, ir para a Colômbia, ganhar
dobrado, um salário no Brasil e outro no exterior.
Na Colômbia ia ficar rico. Estaria agora no ar-condicionado, ou no canteiro da
obra. Revi tudo o que dei e em troca de quê.
Estes dias foram duros. Procurei me lembrar, quais tinham sido as motivações
que me levaram a assumir este papel.
Sim, a Polinésia. Então fui folhear as revistas do Geografic Magazine, mas logo
a depressão voltou. A tardinha, porém, fiquei sentado junto ao leme, olhando o mar,
as ondas, o vento, o barco correr, e tive a impressão de que isto é que era a maior
motivação, a viagem em si.
Conhecer outros povos pode-se ir de avião, é mais rápido.
A decisão que me levou a tomar a resolução de largar tudo, e sair navegando, foi
o mar.
Passei várias horas sem entrar, só olhando o mar, fiquei bem melhor.
Esta foi e está sendo uma fase dura. A fase em que estou no mar, mas ainda
pensando em terra. E quando a isto se juntam dificuldades, como não saber aonde se
está, a coisa fica quente.
Felizmente não tornei ninguém comigo. Se fosse uma mulher, estaria agoniada,
principalmente se não entendesse nada de mar, se fosse fiada em mim. Ao ver se
desmoronar toda a solidez e a dúvida se instalar em toda a parte.
Assim, tive os meus problemas e as minhas dúvidas, e estou digerindo-as bem
lentamente.
11 de abril de 1980

Estou há doze dias no mar.


Depois de tantos dias nublados, tivemos hoje e ontem dois dias de sol. Também,
as estrelas têm sido visíveis. A navegação fechou entre a reta do sol, as estrelas e o
gônio. Tudo em cima.
O barco anda bem, e o ânimo chegou a mudar. Agora faço conta de quanto falta
para chegar.
Se tudo correr bem, são quatro dias para avistar Tobago e mais umas doze horas
para chegar ao destino que seria Port of Spain, Trinidad.
Aproveitei hoje para ouvir música e cuidar para tudo dar certo.
Estudei as cartas até o Panamá e fiz as contas dos dias.
Depois até Tahiti, passando por Galápagos. Não é tão longe assim.
Com o sol quente, e novamente confiante, tornei a tirar a roupa.
É curioso. Por ser acostumado a andar vestido sinto-me menos seguro quando
sem roupa. Portanto, quando as coisas estiveram apertadas, me enfiei na roupa para
sentir-me mais protegido.
Andei reestudando o Pilot Chart, onde, em uma edição à parte, encontrei a
explicação para o encurralamento junto ao Amapá. E que em frente ao Amazonas,
passa uma corrente mais do norte e outra mais ao sul, junto de terra. E, entre elas,
uma reversa, deve ter sido esta que eu peguei. Andava feito louco e só avançava 50 a
70 milhas por dia, mesmo assim, mais de lado do que para frente.
Agora que escapamos dela, faço um mínimo de 120 milhas todo dia.
Durmo aos pedaços, acordando de hora em hora, sem precisar de despertador.
Dou uma olhada lá fora, desço de novo e vou dormir. Quando clareia é que fico mais
à vontade e vou dormir um sono mais tranquilo e prolongado.
Faço o ponto pelo sol às 9, a meridiana ao meio dia, e se houver dúvida, as
estrelas no crepúsculo.
Agora já estou bom nas estrelas, após reestudar todos os cálculos. Saí de
Salvador, sem recapitular. Eram tantos os problemas emocionais que os técnicos
foram, sem dúvida, relegados a segundo plano.
Lembro-me agora de Pierre Chassin e a viagem que fizemos a dois para Cape
Town.
Antes de sairmos do Porto de Salvador ele me fez assinar uma carta, de que não
era responsável por mim em caso de acidente. Esta carta me criou uma espécie de
desconfiança latente. Sempre pensava o que me aconteceria caso caísse n’água. E
nunca tinha visto o Pierre antes na minha vida.
A dúvida era cruel. Será que ele tentaria me resgatar caso eu caísse n’água.
Ainda mais que é uma manobra difícil, quase impossível à noite. Acobertado pela
carta, e sem nenhuma ligação afetiva, ele poderia simplesmente nem tentar.
Já tinha, do meio para o fim da viagem, me tornado senhor da situação.
Conseguia dominar o barco com perfeição e me sentia em condições de levá-lo
avante sozinho. E foi aí que veio a recíproca:
“Caso a Pierre caísse n’água, teria a minha chance de levar o barco em
solitário.”

Esta ideia me preocupou, ao descobrir o animal perigoso que mora dentro de


mim. E foi nessa viagem que tive pela primeira vez vontade de conduzir um barco
sozinho pelos mares. E foi no fim dessa viagem, quando nos tornamos, eu e Pierre,
grandes amigos, que resolvi que daria a volta ao mundo, mas seria em solitário.
Lembrei-me de tudo isto agora, navegando sozinho, sentado aqui junto ao leme,
na mesma posição. Água passando, barco avançando. Uma tremenda viagem.
14 de abril de 1980

Como não podia deixar de ser, ontem foi domingo e fez um dia lindo. Sol
brilhante e vento fresco mas na dose exata. Tudo estava em tal harmonia que dava
para desconfiar.
Tornei banho no convés, ouvi música, cozinhei um feijão gostoso, mas o
coração já começava a apertar, pois era véspera do dia em que deveria avistar terra.

É muito bom se ver terra depois de 15 dias no mar, mas custa caro. Paga-se em
sono e vigília muitas contas na navegação, tudo feito duas vezes. Gasta-se muita vista
olhando o horizonte.
À. noite do dia 13 para o dia 14 já foi assim. Feitas as contas das milhas que
faltavam, com as folgas para os possíveis erros de navegação, as correntes, a deriva
do barco, a velocidade estimada a olho pois não tenho odômetro, percebi que já tinha
entrado na faixa de emergência, onde a atenção. .passa a ser dobrada.
Depois do último ponto astronômico, fazemos a estimada, quase sem tirar o olho
da bússola, pois qualquer mudança na direção do vento ou na sua intensidade o leme
de vento acompanha, e as ilhas às vezes são pequenas.
Pela previsão avistaria Tobago às 4 horas da madrugada, mas após a meia-noite,
já não pude mais dormir, nem deitar mais. Além da proximidade de terra, as rotas
dos navios se afunilavam entre Trinidad e Tobago, rota quase obrigatória para quem
vem do Atlântico Sul para a Venezuela, Canal do Panamá, México, Sul dos Estados
Unidos. Assim iria entrar no funil junto com toda esta gente, e a possibilidade de
confronto cresceu bastante. Portanto, perdi mesmo a vontade de dormir.
Aqui sou comandante, marinheiro, taifeiro, padre, juiz, prefeito, presidente.
Tudo quem decide sou eu, a bordo deste meu país flutuante, mas nem assim consigo
dormir.
Dando umas cochiladas, sentado junto ao leme, esperava a luz do farol de
Tobago que não aparecia.
Quando vi que ia clarear, e iria perder a chance de ver a luz do farol, resolvi
subir no mastro até meia altura, me segurando com todas as minhas forças, e avistei
um clarão apenas por baixo das nuvens. Estava 30º a bombordo.
Corrigi o rumo e vamos lá. Uma alegria muito grande tomou conta de mim.
Uma animação dentro do peito.
Clareou, mas só fui avistar terra às 8 da manhã, quando se dissipou a névoa, que
por um capricho escondia ilha desejada.
Resolvi pôr, então, a genoa, a maior logo, para tentar chegar em Trinidad com
luz do dia, seria a corrida contra o tempo, mas com poucas esperanças, pois ainda
faltava muito e só fui avistar Trinidad pela tardinha.
Vendo que de nada adiantava correr, pois ainda faltavam 45 milhas até a Boca
do Dragão, passagem estreita para investida noturna, resolvi reduzir o pano. Deixei
apenas a vela grande no 3.º riso e arriei o resto.
Cheguei à Boca de Uevos às 3 da manhã e os navios passavam aos montes.
Deitado no convés, pensava na vida. O vento reduziu, indo quase a zero, e o mar
acalmou. O cansaço era grande, a vontade de entrar no porto era tentadora.
Já tinha passado aqui, 10 anos atrás, a bordo do Santa Cruz. Por isso, liguei a
máquina e resolvi investir o canal, me aproximando bem devagarzinho.
A noite era muito escura, noite de lua nova, só o clarão da cidade iluminava o
céu por detrás dos montes, e dava um reflexo nas águas.
À medida que fui me aproximando, a sombra das montanhas cobriu o clarão e
resolvi voltar. Fiquei boiando ao sabor das correntes sobre um mar espelhado. A vista
acostumou e veio a vontade de tentar de novo.
Avancei devagarzinho. As Bocas do Dragão são várias, são passagens bem
estreitas entre montanhas altas e abruptas, e aquela noite parecia assustadora.
Não tinha vento, mas à medida que me aproximava, peguei umas rajadas fortes,
de vento canalizado que se afunilava por entre os montes e a correnteza fazia o mar
ferver. Tornei vergonha e resolvi voltar.
Que burrice, pensei eu, arriscar, jogar o barco nas pedras. Levei tanto tempo
fazendo, depois sonhando, para arriscar tudo em uma só cartada.
Se alguém me pedisse um conselho, jamais iria sugerir investir em um canal
destes à noite, quando ter uma ilusão ética é muito fácil.
Voltei, aquartelei o pano, regulei o leme de vento na orça, como faz um
iniciante, e o barco ficou apeado, boiava tonto.
Como o sol demorava a nascer, e os olhos ardiam, deitei no convés para
descansar a vista e pensar na vida. Dava os meus cochilos em dos-- homeopáticas.
16 de abril de 1980

Mesmo de dia a passagem foi um sacrifício. Vento canalizado e correntes, mas


tudo bem. As 12 horas do dia 15, estava atracado ao cais da Capitania do Porto com a
bandeira amarela içada. Veio o inspetor da imigração, depois o da saúde, o da
alfândega. Estava liberado para o iate clube.
Até o sono já tinha passado. Dezesseis dias sem pronunciar uma palavra, entre
céu e mar, sem ver um só ser humano, e agora, vendo toda esta gente, batei o meu
inglês para fora. Abri o verbo.
Fiz logo amizades, e quando dizia que acabei de cruzar 2.100 milhas em
completa solidão, todas as portas se abriam.
Depois de beber uns gelados e comer um filé acompanhado com verduras, arroz,
e muito molho, fui para o barco descansar. Recostei-me um pouco pensando na vida e
adormeci sem sentir. Acordei a uma da madrugada. O barco estava todo aberto e o
sereno umedecera o ambiente. Fechei tudo e mergulhei no beliche. Merecia um
descanso.
Estávamos no exterior, e, enquanto eu dormia, tremulava na popa do Três
Marias a bandeira brasileira.
26 de abril de 1980

Deixei Trinidad no dia 24 às 7 horas da manhã, e sem saudades. Nada me


prendeu àquela terra, a não ser o fato de ser uma nova gente com os seus valores.
Uma população com 60% de negros, 30% de índios e o resto de todas as raças.
Tem um governo negro que conduz o destino da nação com bastante dignidade.
Apesar de ter sido colônia espanhola, e por último inglesa, copiam o “American
Way of Life”.
Montados em cima da energia, exportando petróleo e importando alimentos. A
eletricidade e a siderurgia são movidas a gás natural, cujas reservas são incalculáveis.
Além do óleo e do asfalto, produzem também açúcar, copra, mas em baixa escala.
Apesar de o sistema ser capitalista, todos os vales férteis são do governo, onde é
exercida a agricultura experimental.
O plano é tornar-se autossuficiente em alimentos dentro de 20 anos, mas, com o
aumento constante do petróleo, dá até preguiça de plantar. Mais algumas gotas de
óleo e tudo bem.
Acordei às 5:30h, arrumei o barco e deixei às 7 horas o Yachting Association,
lugar por demais pacato.
A noite lembrava mais um cemitério, e os barcos ficavam na maioria das vezes
abertos.
Levantei a âncora, manobrei, saí. No cais ninguém notou que ia embora.
Nenhum adeus, nenhuma despedida. Tudo como deveria ser.
Fiz amizade com Gabriel, o comandante espanhol de um barco inglês que
zarpara um dia antes.
O interessante é que encontrei-o em Salvador na minha chegada, mas já em
outro barco. Como o mundo é pequeno!
Depois de deixar a Boca do Dragão às 9, saí orçando para evitar os Testigos,
umas ilhas pequeninas logo ao N.W. Assim rumei para o N, e mais tarde, à noite, fui
rumando para W, e peguei o empoupado, já por dois dias. Vela grande de um lado, e
genoa com pau de Spinaker do outro. Vento leve, mas com a corrente favorável,
estamos fazendo um mínimo de 120 milhas diariamente.
Estou também negando pelos planetas. Em Trinidad reli os livros e Vênus é
agora uma constante em meus cálculos. Em outras palavras, vamos nos aprimorando,
pois ninguém sabe o que vem pela frente.
Apesar de ser rota de navins, tenho dormido bem.
Na noite passada, uma gaivota cansada sentou-se na cabine, depois no púlpito,
na popa, desaparecendo sem aviso com o raiar do dia.
Nosso destino, Aruba, já estamos a meio de caminho.
28 de abril de 1980

O vento refrescou nos últimos dias, com isto, aumentamos o rendimento, via-se
a possibilidade de chegar em Aruba hoje à tarde. Por isso mantive, apesar de tudo, a
genoa que estava em cima desde Trinidad. Também a gente vai tomando coragem.
São aqueles passos que a gente vai dando muito cautelosamente. Com o avanço do
último dia, previu-se a chegada pela manhã.
Preocupado com a proximidade de terra, perdi o sono. Deitava, fechava os olhos
e procurava descansar, mas nada. Cansado de embolar de um lado para outro no
beliche, resolvi me levantar às 2 da manhã e não deitar mais. Também deveria avistar
o farol antes do amanhecer.
O vento continuou refrescando, e tive mesmo que arriar a genoa e substituí-la
pelo yankee, pois estava começando a ficar perigoso.
As 5 da manhã, quando a lua desapareceu por trás do horizonte, avistei o clarão
verde e branco do farol de Aruba. Também mais ao sul, o clarão da Refinaria de São
Nicolas. Desta vez a navegação foi em cima da mosca.
Confirmado o período das oclusões, e não tendo nenhuma dúvida do que se
tratava, fiz rumo para contornar a ilha pelo N.
O barco andava de vento em popa, a toda velocidade, e assim que fui dobrando
o cabo, e o vento passou a través, foi aí que pude ver a sua intensidade. Como não
tinha medidor de vento, só o sentia pelo efeito. O barco adernava muito e as velas
tremulavam. Fui forçado a apelar para o 3.º riso e foi assim que cheguei até o porto.
O vento chegou a ficar tão forte que pensei, por um instante, desistir de Aruba e
seguir em frente. Mas depois voltei a tentar. Arriei a vela de proa e investi o canal no
motor e a vela grande com 3 risos.
O canal estava balizado e tudo bem visível. Vencendo o canal me vi navegando
no interior da laguna, com águas mais tranquilas. Reduzi a marcha e fui identificando
as coisas uma por uma. Logo adiante avistei 3 iates oceânicos, mas tive que voltar ao
Cais do Porto, de onde várias pessoas me faziam um sinal para atracar.
As autoridades vieram, fizeram os papéis e levaram o meu rifle com a munição
para devolver quando fosse deixar a ilha.
Finda a burocracia, voltei ao local onde estavam os outros iates, dos quais dois
eram de bandeira francesa. Logo que fundeei, eles vieram a bordo me dar as boas
vindas e tornamos um chá. À noite fui jantar com Charles e fui me informando das
coisas.
Eles iriam para San Blás e de lá para o Panamá. No jantar fizemos mais amizade
e vimos a possibilidade de atravessar o canal juntos, levando um barco de cada vez e
voltando de trem, pois as autoridades do canal exigem um mínimo de 5 pessoas a
bordo. Um em cada dos 4 cabos, além do timoneiro. O piloto é fornecido pela
companhia do Canal do Panamá.
Assim as coisas já vão ficando mais fáceis, e a amizade traz alegria de viver.
Como estava muito cansado, resolvi me despedir e ir dormir.
1 de maio de 1980

Primeiro de Maio, dia do Trabalhador.


Lembrei-me da obra, principalmente da minha última obra, onde chefiei quase
duas mil pessoas, quando superintendente de produção das Plataformas Petrobrás.
Como é bom o nosso trabalhador. Obediente, submisso, às vezes, coisa que não
deveria ser. Alegre, apesar da miséria, está sempre a sorrir, mostrando a boca
desdentada.
Tão jovens e já sem dentes.
Creio que pode-se medir o desenvolvimento social de um país pela boca de um
povo.
Estas lembranças me trazem tristeza.
Quando é que este povo vai melhorar de vida?
As leis do nosso país são tão injustas. São feitas por quem está por cima, para
quem está por cima.
Mas vamos lá. Já estou em Oranjestad, Aruba, há vários dias, e aqui encontrei
algo novo. Pelo menos nunca tinha estado aqui. Foi o meu primeiro porto novo, no
decorrer da viagem.
Empolgado, pisando em terras por mim ainda desconhecidas, saí andando pelas
ruas. A cidade é uma vitrine e o turismo é a 2.' maior indústria, após as refinarias de
petróleo.
O número de hotéis à beira mar, todos lotados, é realmente inacreditável.
Apartamentos com jardins onde o mar, na maré cheia, chega a poucos metros.
Mas não foi isto que me impressionou, e sim, a aridez da ilha.
Sendo pequena, e eternamente açoitada pelo vento, a ilha, quase não tem direito
a chuva. O seu solo rochoso é quase todo um deserto, principalmente a barravento. A
sota-vento, é recoberta por cactus e espinhos.
A única árvore local é a Divi-Divi que leva 100 anos para atingir 3 metros de
altura e não consegue crescer na vertical. O açoite do vento a inclina e a sua copa
assume a forma de rabo de cavalo.
Saí para a descoberta. Resolvi ir a pé até o Hooiberg, o monte mais alto da ilha.
As botas, calça americana, sacola a tiracolo, máquina de retrato, faca, facão,
laranjas, e pus o pé na estrada. Fui andando até lá e escalei o monte.
Lá em cima estava o farol que avistara na madrugada da chegada. Sentei-me no
topo do monte a contemplar a paisagem e fiz uma merenda. De lá se descortinava
uma paisagem maravilhosa, de toda a ilha.
Sentia-me novo, começara ali a minha viagem de fantasia. Após saciar o meu
instinto, resolvi descer devagarinho, seguindo o caminho das cabras, os únicos
animais que se adaptavam à agressividade do meio.
Conheci muita gente. Um holandês, professor, um casal de americanos de Nova
York, outro de Los Angeles, alguns artistas que faziam um show no hotel, e assim por
diante. Quando se está viajando, as amizades progridem depressa. Todo mundo torna-
se consciente de que tem pouco tempo para dar tudo de si. Às vezes se tenta dar tudo
no primeiro dia, não se deixa para depois, e com isto a vida torna-se de uma
intensidade pouco vista. Cada desconhecido passa a ser encarado como um tesouro. É
a fascinante viagem pela mente humana, sem complexos e sem fronteiras, deixando-
se levar pelo puro sentimento instintivo. Sem o rótulo que acompanha geralmente o
relacionamento em sociedade.
Os desconhecidos geralmente abrem o coração, e deixam brotar os mais puros
sentimentos. É por isso que vejo em cada desconhecido uma preciosidade, um
verdadeiro tesouro humano.
Assim corre por aí a vida, na nossa ilha encantada. Passarei mais uns dias por
aqui, enquanto aguardo um catálogo telefônico que pedi de Salvador, onde poderei
encontrar os endereços de amigos, a quem gostaria de escrever.
O certo é que, por bem ou por mal, tornei-me o que sempre sonhei, um
navegador solitário, a descortinar novos horizontes.
Ainda que a viagem esteja no começo, quando travo conhecimento e me
perguntam de onde sou? Onde estou hospedado? No barco, são quantos, sozinho; as
coisas terminam vindo à tona. E de tanto ter que explicar aos outros terminei me
convencendo de que finalmente realizou-se a profecia. Posso dizer que sou um
navegador solitário.

Perguntam-me se me sinto só, mas é tão bom estar sozinho às vezes, sem
interferências. Assumir a si mesmo, curtir as suas próprias ideias, seus próprios
sonhos, longe da influência constante do grupo, longe da vida em rebanho. Curtir o
seu ego, sem censura, consciente e inconsciente, tudo enfim que possa existir dentro
de um ser humano, pouco importa o nome.
Curtir a si mesmo, como parte da natureza, o céu, o vento, o mar. As estrelas, o
balanço, sentir o poder da natureza nas rajadas de vento, conduzir o barco e juntar
com ele o seu destino.
E assim segue a vida, calma e serena, enquanto vou fazendo a cabeça.
Tenho que avançar. Passar logo este Canal do Panamá, me afastar o mais
possível de casa, navegar olhando para a frente e não olhar mais para trás.
Cortar uma a uma as raízes que ainda me restam. Soltar uma a uma as amarras
que ainda me prendem, e flutuar.
Ninguém sabe o que vai me acontecer, nem eu mesmo garanto pela minha
cabeça. O certo é que não vou tentar contê-la, não vou cortar as suas asas, nem apear
os seus pés.
Deixa andar.
6 de maio de 1980

Já estou aqui há 9 dias, e o tempo voa. Pretendo sair amanhã e seguir o meu
destino.
Foi aqui que fiz um maior número de amizades.
Dei aula de navegação e me pagaram um almoço. Cacei submarino, peguei o
meu primeiro peixe, a primeira lagosta.
Pintei o meu primeiro quadro.
Agora quero ir embora, seguir o meu destino. Ir para o Panamá, partir para o
Pacífico. De lá não se tem retorno. Só pelo outro lado.
8 de maio de 1980

Deixei ontem Aruba, às 11 da manhã. Meu destino, Colon, Panamá, rumo ao


Canal.
Após receber o meu rifle de volta, arrumei as coisas e levantei âncora. Dei mais
uma volta para despedir-me de Marciel, um francês que viaja com 3 filhos menores, e
ele me fez uma saudação, levantando os dois punhos cerrados, como quem diz: força
homem.
Até o Canal, gritei, até o Canal. Fizemos com ele uma boa amizade.
Médico francês, vendeu o consultório para comprar o barco e alugou a casa para
ir vivendo. Já está no mar há dois anos e só fez 60º de longitude. Segundo ele o
importante é ir vivendo. Se continuar neste ritmo, vai levar 12 anos para concluir a
volta ao mundo, mas está muito bem, cabeça no lugar.
Segundo ele, nunca estivera antes a bordo de um barco grande. Quando tomou a
decisão, esforçou-se para ganhar mais dinheiro e sair.
“Eu não aguento a medicina, é uma profissão muito suja”.
Despedi-me de Marciel e fui saindo. Confesso que estava nervoso, não sei
porquê. Talvez por já ter demorado em demasia, e já começara a criar raízes. Até o
caíque estava cheio de limo.
E assim saí à vela. A grande no mesmo 3.º riso, devido ao vento forte da
chegada, mas o barco avançava. Lá fora o vento soprava.
Conversando com o pessoal dos outros barcos, da razão deste vento tão forte,
chegamos à conclusão de estarmos nas proximidades de um cabo, a península de
Guajira. É que, geralmente, todos os cabos do mundo são chegados a vento.
Deve ser o choque térmico do avanço de uma ponta de terra mar a dentro,
mudança do rumo da corrente, etc…
Saí com o rumo 330º magnético, procurando me afastar da península de Guajira,
na Colômbia, onde segundo todos os barcos, está o maior índice de pirataria desta
região. O seguro se nega a pagar os barcos que se perdem nesta região, pois já pagou
demais.
Segundo consta, trata-se de uma área extremamente árida e deserta à semelhança
de Aruba, onde só o índio se adaptou. O restante dos colombianos não se estabeleceu
nesta região, quase desabitada, e foi ali que se instalou o tráfico organizado das
drogas.
Os traficantes têm barcos rápidos, munidos de radar e metralhadoras. Eles
assaltam os barcos, jogam a tripulação n’água, e apossam-se dele para fazer uma
viagem carregados de marijuana, cocaína, etc... aos Estados Unidos. O barco à vela,
disfarçado pelo esporte, serve muito bem para a finalidade.
Concluído o negócio, o barco é afundado para não dar na pinta. E como roubar
um carro para fazer um assalto, e isto já é do conhecimento de todos.
Os dois barcos franceses saíram de Aruba juntos, assim se sentiam mais seguros.
Quando saí, resolvi passar bem ao norte, por via das dúvidas, e até agora tudo
bem.
Hoje pela manhã, quando já tinha me afastado pelo menos 100 milhas da costa,
resolvi ir mudando o rumo, indo mais para o W, mas continuo subindo um pouco,
fugindo do empoupado puro.
De Aruba a Panamá, pela rota que escolhemos, são 750 milhas. Previsão de 6
dias.
Com a subida que estou dando vai aumentar o percurso, mas tudo bem. Estou
um pouco cansado do balanço do empoupado, mas talvez tenha que enfrentá-la de
qualquer jeito.
Na saída do porto, estava tão agitado, que tinha a certeza de que iria enjoar.
Geralmente a ansiedade faz juntar uma grande quantidade de suco gástrico e bílis no
estômago, a ponto de tornar-se inabsorvível. Torna-se necessário vomitar pelo menos
uma vez, para ficar bom logo em seguida.
Com o nervosismo que me assolou, tinha a certeza que iria enjoar, mas me
enganei.
Em Aruba, não recebi uma só correspondência, apenas um telegrama. Nenhuma
notícia de nada, de ninguém.
Aos poucos vou perdendo o contato. Apesar de enviar de cada porto várias
cartas e cartões, umas 20 talvez, o pessoal da terra limita-se a ler e guardar.
Parece que eles não sabem como me sinto feliz, quando recebo umas linhas
escritas, seja lá o que for. O próximo passo será escrever cobrando, e o último é
deixar também de escrever.
O barco continua subindo um pouco, mas não faz mal, pois, em frente a
Barranquilha, onde as cartas indicam um confronto de correntes, uma indo e outra
vindo, temos geralmente um mar bem agitado, e que tem inundado diversos barcos.
Este encontro de correntes sempre levanta um mar de ondas curtas, e se o vento
é força 4, o mar é força 6 ou 7. Portanto, ainda que esteja perdendo em distância
estou ganhando em tranquilidade. Acredito que só vou mudar o rumo amanhã de
manhã. Assim veremos.
11 de maio de 1980

Hoje estou novamente tranquilo, mas, lembro-me bem, que há uns 2 dias, de
repente, fui tomado por um sentimento de angústia, insegurança, medo. E foi aí que
me lembrei dos versos que canta Fafá de Belém:

“Me ponha de novo no colo E faça de mim um menino Não deixe que eu morra
de medo Não deixe que eu fique sozinho”.
Lembrei-me de minha Mãe.
Parei de ler e pus a vista no horizonte, olhei em todas as direções e me localizei
no mundo, no que me cercava, e perguntei a mim mesmo.
O que tens Aleixo?

Ainda há pouco, esta era a sua causa, pela qual estavas disposto a dar a vida se
preciso fosse. E que a vida de nada vale, se não tens um ideal, pelo qual estás
disposto a dar esta vida.
Tornei a olhar o horizonte, o mar, as nuvens. Senti o vento no rosto e lembrei-me
da minha infância.
Se hoje estou em movimento, ele, na realidade, não começou aqui.
Foi durante a guerra que começamos a nossa peregrinação, como verdadeiros
ciganos.
Ao deixarmos a União Soviética, exatamente a Ucrânia, ocupada por tropas
alemãs, eu tinha apenas 7 meses de nascido.
Ao partir, minha avó, mãe de minha mãe, deu a ela na hora da despedida, na
hora derradeira, pois nunca mais se viram, uma colher de estimação.
Foi com esta colher que comi toda a minha infância, e posso dizer que até os 26
anos, quando casei e saí de casa.
Agora, ao sair para esta viagem solitária ao redor do mundo, minha mãe, entre
prantos, me ofertou esta colher, que pendurei no barco, como símbolo do nosso
eterno movimento. Este movimento que está impregnado em minha alma, e que não
consegue sair mais.
Parei, sem dúvida, uns tempos para estudar, para me formar, mas logo em
seguida saí no Santa Cruz que daria a volta ao mundo.
Fracassando esta viagem, passei para o Ariels e fui até a Europa. Depois no
Concorde até a África, e finalmente agora, tento de novo dar a volta ao mundo, só
que desta vez em solitário, a bordo do “Três Marias”.
Como um alpinista, me proponho agora subir o mais alto dos montes. Caso
conclua esta viagem que considero o meu destino, o que me restará a fazer na face da
terra?
Por isso, não se tem porque olhar para trás, nem razão de ter medo. Este é o meu
próprio caminho, o caminho do meu próprio destino, o caminho do navegador
solitário.
Aqui ninguém me segura a escada. Aqui estou só.
Aqui ninguém fareja o meu rastro, e o próprio mar se encarrega de apagá-la.
Dias e dias sozinho, a contemplar o horizonte.
Só eu desconfio onde estou. Em terra ninguém sabe o meu paradeiro. Sabem que
estou no mar.
Agora estou próximo do Panamá. Do outro lado, como dizem, está o Oceano
Pacífico. Conhecê-la sempre foi o meu sonho de infância.
12 de maio de 1980

Está prevista para hoje a chegada no Panamá. Infelizmente só chegaremos à


noite ou pela madrugada. Hoje, após me levantar diversas vezes durante a noite,
emendei o sono de repente, até as 7 da manhã.
Sonhei que estava em Angra dos Reis, com Sérgio Audino e Betty.
Pro sonho que me prende no sono. Esqueço que estou aqui a bordo e me
transporto para outro lugar. Assim cessam as preocupações do barco, desligo o
relógio mental e não acordo.
Desde que saí de Aruba, avisto pelo menos 1 navio por dia. Este número pode
ser multiplicado por 3, pois ora estou dormindo, ora não estou olhando. Mesmo
acordado, quando longe da costa, é raro a gente ficar olhando para proa. A gente se
concentra no nosso mundo e deixa o resto para lá.
Inicialmente, no trecho Aruba-Panamá, tinha previsto muito pouco sono, devido
ao grande tráfego de navios, mas, depois, resolvi dormir e pronto. Continuo sem
acender a luz de navegação, é uma questão de opção.
Aqui não tem ninguém que o aconselhe, o julgue ou o confunda. Assim, tomar
as decisões não é tão difícil.
No meu sonho, estava tão ausente, que nem acordei quando começou a chover,
para fechar as escotilhas. Quando acordei o chão estava todo molhado.
Outro dia sonhei que tinha pegado um avião e ido para casa. De repente me
perguntaram, onde tinha deixado o barco, em que porto, e não soube responder. Na
agonia acordei e matei a charada. Estava em pleno mar.
O céu lá fora está todo nublado, e começo a me preocupar, pois, a navegação
astronômica será impraticável. Logo hoje, que estamos chegando.
Às 8:30h, quando abriu um buraco no céu, peguei o sol, que logo desapareceu,
por trás de espessas nuvens.
Próximo do Canal do Panamá, mudou a regra do jogo. O navio passou a ser
bom, pois mostra o caminho, a rota em direção ao canal. O que tanto navio faria por
este fim de mundo senão ir em busca de um Pacífico, e a rota coincidia, tudo bem.
Com o céu todo encoberto, agora navego pelos navios, pelo vento, pelas ondas.
Por último, achei que as algas estavam arrumadas na superfície do mar, todas
paralelas, coincidindo também com a direção do vento.
Só o que faltava era navegar pela arrumação das algas. Lembrei-me dos terreiros
de candomblé, onde o Pai de Santo prevê o futuro pela arrumação dos búzios.
Lembrei-me de Jean Pierre, do Artaban, perdidos nas proximidades de Fernando de
Noronha, foram guiados até a ilha por um grupo de golfinhos. E este é um perigo
muito poético.
Assim sendo, ao contrário do que acontecia antigamente, os navios passaram a
ser bem-vindos, e eu, de vigília, junto ao leme, com o sextante na mão, esperando a
mínima chance para pegar o sol.
Mas o que veio foi a chuva, e aproveitei para tomar aquele banho. Esfreguei-me
bem, depois me enxuguei e troquei de roupa.
A água de chuva faz muito bem ao cabelo, que fica lustroso.
Para combater o frio, tornei um chá quente, com o pão velho, assado na
frigideira, mel e limão.
O ruim são estas nuvens, que agora, além de taparem o céu, reduziram muito a
visibilidade.
O vento continuou rodando, o que me obrigou a constantes manobras,
esquentando o sangue e me animando todo por dentro.
Enquanto o sol não dá chance, vamos tentar o radiogoniômetro. Mas, o pior é
que, na minha lista de auxílios rádio, nada foi encontrado para Colon, e serei forçado
a aplicar a mesma técnica de Aruba.
Reduzo o volume, e vou para A.M. Então só entram as estações mais próximas.
Como sei mais ou menos onde estou, cada rádio que pego vejo a direção. Caso esteja
coincidindo espero até que anuncie a procedência, e foi assim que peguei na chegada
de Aruba a Rádio Victória.
Era um programa chato, mas que no final disse: “Qualquer dúvida, escreva para
a Rádio Victória, Aruba”.
Usando a mesma técnica, tentava a rádio de Colon. Pegava várias estações, mas
nunca se tinha a certeza da procedência, até que o locutor falou: “El armazen 15 no
siera al media dia, em Colon”. É aqui mesmo que ficaremos.
O céu prometia uma abertura, mas era semelhante às promessas políticas.
Promessas feitas ao povo.
Aqui nem greve adianta, nem temos luta de classes. Aqui a gente se defende
como pode, e usa-se os recursos que se conhece. O resto é ter paciência.
De repente, não mais que de repente, veio uma brisa mais forte e espantou as
nuvens. O mar de negro readquiriu aquele azul roxo, e o sol voltou a brilhar,
mostrando toda a sua energia.
O barco avançou firme e consegui fazer a meridiana. Fiz outras retas pela tarde,
e, quando escureceu, fiz as contas. Estava previsto avistar o farol de Isla Grande às 8
da noite.
Carreguei as baterias, assim poderei usar as luzes de navegação caso se torne
necessário.
Como temos dois faróis, fiz a proa no meio dos dois.
Assim terei que ver pelo menos um deles inevitavelmente.
Fiz as contas da correnteza, da possível deriva, e parece tudo bem, mas, cada
aterrada é acompanhada de uma expectativa, como se fosse um parto. Quem sofre do
coração deve considerar este o pior dos momentos.
Caso chegue à hora prevista e o farol não apareça o que fazer? Qual será o
rumo? Fico aqui por fora, ou continuo me aproximando de terra? São tantas as
possibilidades.
As montanhas, que atingem a mais de 3.000m de altitude, seriam vistas a mais
de 40 milhas de distância. Mas, infelizmente, a névoa as pinta de cinza, a mesma cor
do horizonte, escondendo-as como por um capricho da natureza.
Enquanto aguardo, ouço música em espanhol, vinda de Colon.
Deu 8, deu 9, e nada de farol, e o pior é que os navios, que deveriam estar cada
vez mais presentes, simplesmente desapareceram. Estranho isso.
Vou continuar talvez neste rumo até a meia-noite, caso não aviste nada, ponho o
barco na capa e vou esperar o amanhecer. Aterrar, com uma noite escura,
relampejando, com os faróis que não aparecem, é dose para quem tem muita
coragem. Ainda não cheguei lá.
Aproveito o clarão do relâmpago, para ver se tem terra pela frente, mas é
ofuscante e dura um pequeno instante.
Tentando chegar em Colon, bati todos os recordes de inovação, tentando me
guiar pelas coisas mais diversas e métodos mais absurdos.
Deitei no convés para descansar. Hoje ninguém deita no beliche, senão vai
sonhar e esquece do barco.
Deu meia-noite, e nada de farol. Não sei se foi a correnteza ou erros no cálculo.
Finalmente passaram 2 navios, duas luzes por bombordo. Isto pelo menos nos indica
que temos água naquela direção.
Ligo o ecobatímetro de meia em meia hora, mas ainda não encontrei o fundo.
Cansado de adivinhar o que me espera pela frente, virei de bordo e tornei o rumo
do abandono, ou seja, um rumo onde não pode haver terra.
Arriei a vela de proa, e só com a vela grande, avanço, devagarzinho, no novo
rumo, e agora posso ir dormir.
Amanheceu, mas a estação demorou a entrar no ar. O céu novamente encoberta
nos obriga a chegar aqui, na mesma base que Colon, Cristóvão Colombo, aquele que
deu o nome à cidade.
Hoje o locutor é outro, e demorou de se confirmar a estação. Finalmente o céu
deu uma chance, e um navio vai na mesma direção. Vamos lá. Não adianta
desesperar.
Deu meio dia. Avançamos normalmente mas nada de terra à vista.
O vento pára e ligo o motor, pois pelos cálculos estou a 22 milhas da cidade.
Cai a chuva e as nuvens vêm para a frente. Ronca o trovão e arrio a corrente que
arrasto como Para-Raios, manilhada no estai de popa.
De repente vejo uma vela, é um iate que deve se deslocar paralelo à costa, O
vento ronda de novo e vem na cara. Estou todo confuso. Caso não entre hoje,
ninguém sabe quando.
Já ia perdendo a fé nas coisas quando, no meio das nuvens baixas, que descem
até o mar, abriu um buraco.
“Terra à vista”.
Mas foi só um instante. Foi só para recuperar a confiança perdida, e logo tudo se
fechou novamente.
Inicialmente víamos apenas as montanhas altas de Porto Belo, e que ficam a
leste do Canal, mas agora vemos terra de fora afora, e o Canal deve ser num trecho
onde a terra é baixa, quase ao nível do mar.
O barco à vela, que vinha de Porto Belo, deve estar indo também para o canal.
Ele está costeando com vento de través, enquanto eu estou orçando duro, com ajuda
do motor. Ele deveria entrar primeiro caso o vento não mudasse.
O vento rondou, agora é ele que está orçando, e eu disparei para a frente.
Vejo o que devem ser os primeiros edifícios de Colon, e talvez o farol do
quebra-mar.
Que parto difícil.
Um navio sai, outro entra. Recolhi o meu para-raios.
Recolhi a linha de pesca, o único peixe que me interessa chama-se Colon.
Via-se o sinal da civilização. A fumaça das chaminés, a poluição das águas.
Cruzei os faróis da entrada do molhe de Colon e Cristobal às 18 horas do dia 13
de maio, quando faltavam 3 dias para completar dois meses, desde que deixei
Salvador. Chegando ao clube, encontrei os dois barcos franceses que conheci em
Aruba. O Oxigene de Jack e o Pemor-Pen de Charles. Eles tinham acabado de chegar
de San Blás.
07. DO PANAMÁ AO TAHITI

27 de maio de 1980

Vieram as autoridades panamenhas e americanas e mandaram medir o barco


para calcular os custos da passagem no Canal.
Mediram, paguei US$ 75 e recebi um número para o Três Marias.
O preço na realidade é menor, mas sendo a primeira vez, paga-se a arqueação e
uma margem a mais que seria devolvida depois de todas as contas no computador.
Fizemos um consórcio de mão de obra, e atravessamos um barco de cada vez,
voltando em seguida de trem.
Sobe-se as eclusas, anda-se no Gatun Laque e desce-se as eclusas. O total da
viagem demora 10 horas e o total da distância são 45 milhas.
Barcos com motores pequenos, e que não conseguem fazer pelo menos 5 nós,
sofrem restrições, precisando às vezes de rebocador, pois nas eclusas a correnteza
pode ser forte.
Aproveitamos sempre, um espaço sobrando, quando entra um navio menor e
ficamos sujeitos à correnteza desenvolvida pelo cargueiro, que empurra a água nas
eclusas, como se fosse um rodo.
O piloto nos deixa sempre no Balboa Yacht Club, onde a estada é paga, e é
pouca a simpatia por barcos de passagem.
Aproveita-se para reforçar as provisões, pois nas ilhas do Pacífico, só
encontramos coqueiros e belas morenas. Em Tahiti, tem tudo, mas os preços são
acessíveis apenas aos turistas americanos.
No Panamá, por se tratar de um país latino-americano, os preços são razoáveis.
No Panamá, temos uma zona livre, onde a mercadoria adquirida é entregue a
bordo, na hora da partida. Esta zona livre
Abastece os contrabandistas dos países mais próximos, pois aqui se compra um
relógio suíço mais barato que na própria Suíça. Isenção de impostos tanto lá como cá.
Distingue-se em Colon duas áreas bem definidas. A parte americana, rica e
organizada, e a parte panamenha, com a favela de 2 ou 3 andares. Uma verdadeira
África.
Estes edifícios são de uma arquitetura de baixo nível, muita tábua e madeira em
geral. Separados por corredores com 2m de largura. Edifícios quase montados uns
nos outros, cordas de roupa para todo o lado, vidraças todas arrebentadas, ruas
esburacadas.
Como não pára de chover, as crianças não param de correr, de gritar, e de
banhar-se nas poças de lama, dos becos escuros destes cortiços humanos.
Com 60% de desempregados, os assaltos fazem parte do cotidiano.
Em plena luz do dia, eles vêm em grupo, e, após encostar a faca no pescoço,
limpam os gringos menos avisados. Fazem por assim dizer, uma melhor distribuição
das riquezas, muito mal distribuídas por estas bandas.
Os bordéis estão por toda a parte, e as mulheres, já cansadas, tentam ganhar uns
trocados, com os marinheiros de todas as nacionalidades.
O Panamá, como todos dizem, surgiu de uma manobra americana.
Sonhando com o Canal, fomentaram uma revolução fictícia. Financiaram uma
desordem, e criou-se um estado separatista, que já de combinação, pediu apoio aos
americanos. Tudo de cartas marcadas. E assim chegaram os americanos para defender
seus supostos aliados. Roubaram um pedaço da Costa Rica, outro da Colômbia, e
criaram um país inexistente. Assinaram com este fantasma o contrato para construir o
Canal de Panamá, com toda a sua importância estratégica.
Hoje, 50 anos depois, o Panamá tem 1,8 milhão de habitantes, um pequeno
comércio e muito desemprego. Os americanos minam sem parar a economia do país,
para que se retarde ao máximo qualquer privilégio.
O lago artificial atuou sobre o clima, e hoje não pára de chover.
Cansado com a sangria de US$ 10 por dia, no iate clube de Balboa, pretendo sair
amanhã para Toboga, uma pequena ilha em frente, onde o fundeio é livre.
Enquanto isto, vou fazendo a cabeça, e preparando-me para a grande travessia
do Pacífico.
Em Balboa, o primeiro romance desde a saída de Natal. Filha de espanhola com
alemão, vivendo em San Diego, Califórnia, veio passar uma semana de férias a bordo
do barco de seu primo que estava ao lado do Três Marias.
Olhares, adeusinhos, visitas recíprocas, e o Três Marias ganha por 2 dias uma
tripulante que entre outras coisas é aeromoça, mas antes de tudo uma grande mulher.
Prometeu voltar talvez, quando estivesse pelas ilhas do Pacífico Sul, quem sabe.
4 de junho de 1980

Deixei a ilha de Toboga às 9 horas, após um adeus aos demais barcos. Eram uns
dez, e todos já tinham se tornado conhecidos após estas 3 semanas no Panamá.
Taboga tornou-se para mim um lugar agradável.
O topo da montanha tem um bom astral. Após escalar o monte, subindo pela
estrada, avistei do outro lado as ilhas distantes, assim como o continente panamenho.
Sobre a encosta, desabitada, milhares de pelicanos faziam seus ninhos nas copas
das árvores, e a floresta, quase virgem, tinha uma beleza selvagem. As flores
tornavam o mato perfumado naturalmente.
Fui conquistado por uma planta agreste, com flores e frutos estranhos. Assim,
adiei de um dia a minha partida para poder pintá-la. Mas a véspera da saída não é um
bom dia, estamos sempre apreensivos e contraídos. Bom é quando nada se tem a
fazer.
No mato, muitas mangueiras e uma plantação de limoeiros abandonados que me
renderam uns frutos.
É curioso como procura desenvolver em mim o instinto encoberto do nativo.
Deixei um emprego de grana alta, em Salvador, para ganhar alguns frutos em Toboga,
e isto, ainda assim, me dá uma grande satisfação.
Saí no motor e icei logo a genoa, mas, assim que dobrei a ilha, o terral
desapareceu e veio um mar liso, um espelho, a calmaria.
Avanço no motor, pois geralmente lá fora tem vento, apesar de já saber, que
daqui a Galápagos, as calmarias são constantes e os ventos variáveis.
Em vez dos alísios, temos o Doldrums, região entre os alísios de N.E. e S.E.,
com pouco vento e muita calmaria.
Finalmente para o motor, apesar de ter me afastado pouco, mas uma leve brisa
faz o barco deslizar vagarosamente. O Pacífico é muito grande e não há diesel que
chegue.
Tudo parece um encanto, estou navegando no Pacífico tentando a sua travessia.
Sempre pensei que um dia, finalmente, chegaria este momento e ele chegou
antes mesmo do esperado. Talvez nem tivesse o devido tempo para analisar o que isto
pode significar. O fato é que iniciei a travessia do Pacífico, o maior dos oceanos.
O vento é fraco a ponto de Aries nem funcionar. O calor é intenso e estou
eternamente encharcado.
É grande o número de troncos de árvore, paus, tonéis, boias e outros que passam
boiando, servindo de descanso para os pássaros, ¿; carona para siris. Navios passam
sem cessar. Esta noite não vai dar para ficar às escuras, teremos que acender as luzes
de navegação.
Acabou de passar boiando uma cobra preta, da barriga amarela, e ainda passou
me olhando.
Que perigo. Se ela sobe pelo leme de vento e vem ao convés, a gente pisa nela à
noite e acabou-se o sonho. Sinto muito, mas não dá pra dar carona.
Ao chegar em Galápagos, fui informado que são serpentes marinhas e que são
venenosas.
O vento continua louco, rodando sem parar. A única solução é sair do Golfo do
Panamá, mas ainda faltam 60 milhas.
Golfinhos passam para todo lado, pulam peixes enormes, agulhões, espadartes.
Agora tenho que avançar de qualquer maneira, pois já passei muito tempo no
Panamá. Tenho que estar na Austrália antes dos ciclones, senão terei que passar 6
meses no Tahiti, pelo menos até março, para então poder prosseguir.
O meu plano é chegar na Austrália em novembro, ou no máximo no início de
dezembro.
Finalmente avançamos bem, ninguém sabe por quanto tempo. Hesitei várias
vezes em ligar o motor, quando o vento esteve ausente, mas felizmente não faltou
paciência.
No horizonte foi surgindo um dourado. É o pôr-do-sol. Pela primeira vez desejo
ansiosamente a chegada da noite.
Antes a noite significava preocupação, dormir, navios na rota, falta de
visibilidade.
Com o calor de hoje, a noite foi aguardada com muito desejo, e com ela a fresca
da noite.
5 de junho de 1980

Acordei com a chuva que se abateu com o clarear do dia. Pulei da cama para
tomar um banho, e logo o vento acalmou indo quase a zero. E novamente a calmaria.
Com o balanço, as velas iam de um lado a outro. Deu vontade de arriar tudo e
ligar o motor, ou, pelo menos, arriar as velas, aliviar o sofrimento do tecido, mas, fui
assim mesmo, ganhando de meia em meia milha.
Voltei a estudar as cartas de vento, e nada se pode fazer. As calmarias estão
previstas nesta região. A única solução é ir descendo para o sul, ir em busca dos
ventos alísios, mas eles ainda estão muito longe.
Só à tarde a brisa foi se firmando, e avançávamos a 3 nós.
Esta noite foi curioso. Avistei um farol que não estava na minha lista, e em um
lugar que não tinha terra. Era só o que faltava. Será que fui arrastado por uma
correnteza? Ele piscava de 3 em 3 segundos. Mas logo descobri, era um barco. A
noite era muito escura e não parava de relampejar. Quando nos aproximamos, era um
veleiro. Via o seu contorno contra o clarão do relâmpago.
Depois vi acender uma segunda luz, também fiz o meu sinal, e, assim nos
comunicamos em completa escuridão. Estávamos solidários, mas nunca nos vimos.
Pela manhã a brisa era tão leve que metia raiva. Desfiz os risos, pela primeira
vez desde que saí do Brasil e icei a vela toda. Agora estamos em águas livres, prestes
a sair do Golfo do Panamá.
Está tudo nublado, mas o mormaço é terrível, e sem vento, fico sempre
encharcado. Busco a todo custo uma sombra no convés. Consumo muita água,
temendo a desidratação, vou bebendo uns goles de água salgada, ou ponho um pouco
no fundo do copo e completo com água potável.
6 de junho de 1980

Devido a tamanha falta de vento, ordenei-me dormir tranquilo, já estávamos em


mar aberto, bem longe de terra, já tínhamos dobrado o último cabo que limita o Golfo
do Panamá.
Acordava esporadicamente para dar uma espiada lá fora e numa destas avistei
terra.
Esfreguei bem os olhos, não, é uma nuvem negra, baixa, e o relâmpago a
iluminava por baixo.
Normalmente uma tal nuvem é motivo de preocupação, mas, no Panamá passei
3 semanas vendo estas nuvens carregadas, e que não trazem senão chuva e
relâmpagos, trovões fortes.
Lembro-me, ao aproximar-me de Colon, tudo sugeria uma verdadeira batalha.
As montanhas muito altas entram em curto com as nuvens e o pau come direto. É um
curto circuito na natureza. Um dia o homem ainda vai aprender a utilizar estes pontos
estratégicos para captação de energia.
Olhei a nuvem que se aproximava lentamente e fui dormir. Que não fique mal
acostumado, pensei.
Não sei quantos minutos permaneci deitado.
De repente o barco adernou, só faltou deitar, os panos bateram, e o vento
assobiava no estacamento.
Me enganaram desta vez.
Pulei da cama, folguei a vela grande e o barco disparou em louca caminhada. O
vento rondava sem parar e o rumo era qualquer, mas sabia que seriam apenas alguns
minutos.
Esta nuvem negra vinha com um bocado de “poder", de energia. E como este
poder ia marear a sua presença, se espalhar, era justamente o mistério. Tratava-se de
uma proveta em tamanho natural, onde se processava uma conferência de forças. Mas
logo passou.
Clareou. Acovardado, dei um riso na vela grande e fui dormir.
Fiquei pensando. A navegada pelo Pacífico está se mostrando para mim uma
experiência inédita. Correr mares com regras novas, tudo diferente. São novos
sintomas, tudo a aprender.
Apesar de considerar-me hoje em razoáveis condições, comparando com gente
que encontrei navegando por aí, não deixo de me preocupar.
A travessia do Pacífico inspira muito cuidado. As distâncias são grandes e a
solidão pode ser maior ainda.
Comprei um rádio de ondas curtas e este será, sem dúvida, o meu amigo
inseparável durante esta travessia.
Acordo, e a calmaria é total. Cansado de ver o desgaste das velas que ficam se
batendo de um lado para o outro, com o passar das ondas, resolvo arriar tudo.
Se as distâncias já são grandes, com este tipo de vento, a coisa piora ainda mais.
Continuo olhando o rumo por hábito. De que vale o rumo se o barco está parado.
Já são 10 horas e avançamos a meio nó. Não tenho vontade de fazer nada.
Espero desesperadamente o vento chegar.
Céu encoberto, navegação impossível, mas o que não falta é água pela frente.
Ouço música, para tentar animar-me. É realmente o que faz a cabeça. Enquanto
ouço, vou associando minha vida às palavras do poeta, são coisas da imaginação.
Saí no convés para regular um pouco as velas, avançávamos talvez a meio nó, e
percebi, nas águas transparentes que nem cristal, que um peixe navegava à sombra do
barco. Ora ele saía para conferir algo e logo voltava. Tinha que dar um jeito de
apanhá-la.
Tentei o anzol com um pedaço de carne seca. Ele saiu, olhou, mas não mordeu.
Eram dois e estavam fazendo ninho aí em baixo. Até que um peixe fresco não
faz mal a ninguém. Sim, a espingarda e o arpão.
Não seria um suicídio.
Preparo tudo, folgo as escotas, para caso o vento venha de repente, e pulo
n’água amarrado, com o cinto de segurança.
Foi dito e certo. Eles deram a chance, disparei o arpão e ei-la fisgado.
Subi escorregando, com a arma na mão, mas subi a toda. Puxei o peixe para
bordo, um tipo estranho, com um chifrinho comprido.
Tratei-o com todo o cuidado o peixe que não se conhece, não se esmaga o
fígado, onde pode estar o veneno.
Sal, alho e frigideira são os complementos. Uma beleza. E assim peguei o meu
primeiro peixe de mergulho em pleno oceano.
Foi mais a aventura, e não a fome. O barco está cheio de ì comida, mas não se
deve deixar para treinar quando a fome vier.
Será tarde, tem que se manter a forma e a imaginação. Mais um pouco de
música. Clara Nunes e o nosso samba.
Geraldo Vandré e a tristeza, a injustiça que recaem sobre o nosso povo. Chega a
arrepiar.
Mas é ouvindo a nossa música popular, matando a saudade que a gente vai
vivendo por aqui. E é quando a gente está longe que dá valor ao que é nosso.
Até agora não consegui perdoar a um conhecido que resolveu me levar 3 das
melhores fitas, nas vésperas da largada.
-Para que você quer tantas?
-Lá fora não tem, a gente tem que levar o que é nosso para ir matando a saudade.
Ele não entendeu as minhas palavras, meteu a mão no estojo e levou três.
Não ofereci resistência maior, pensando que compraria outras, mas foram tantos
os problemas que, na hora da saída, passou, e fiquei sem as fitas. Agora que elas estão
me fazendo falta.
7 de junho de 1980

Fizemos 150 milhas em 3 dias de esforço e agonia. As calmarias minam as


forças da gente, desmoralizam, diminuem as esperanças, gastam a paciência.
O vento fraquinho vai embalando o barco. Deixamos tudo regulado e vamos
dormir.
Quando acordamos, a proa do barco aponta para o inferno, o barco anda de lado,
as velas não funcionam sem vento.
Arreio tudo e vou dormir.
Acordo, uma brisa bem leve se estabelece, mas estou cansado de catar migalhas.
A brisa que se dane, vou dormir até o amanhecer.
Com a luz do dia, vem uma aragem, e o barco se arrasta. Agora fazemos dois
nós, um nó, zero.
Tinha jogado fora um doce bichado, que por azar caiu no convés. Ao avistá-lo,
resolvi desembarcar o bruto, mas ao me aproximar, descobri uma pequena borboleta,
sentada no doce, sugando o seu mel.
Está aí a prova de que até as borboletas se defendem.
Aqui quem não se adapta, não volta para contar a história.
Passou um navio rumo ao Panamá, isto é que seria uma boa carona para a
borboleta. A minha carona vai cada vez mais ao mar aberto, e não tem futuro.
Deu vontade de espantá-la, mas o navio estava longe, assim deixei-a em paz.
O pior é que esta borboleta vai morrer no mar, por ter investido em regiões para
ela proibidas .
Continuo fazendo pesquisas nos roteiros americanos que a nossa marinha me
ofereceu.
Pelos roteiros, a calmaria é um problema local, e tenho que dar o fora daqui, mas
como?
Os alísios estão mais ao sul. Estou cansado de ver isto. Mas saber, certas horas
não ajuda. Com um pouco de paciência chegaremos lá e hoje já avançamos um pouco
melhor.
Também, a única satisfação é saber que estamos navegando neste mar imenso,
nós, que vínhamos costeando os continentes desde o Brasil até o Panamá, nos
lançamos agora em alto-mar, em mar aberto.
E uma nova etapa da nossa viagem, e navegar é bem bonito, mais ainda quando
se está só em um veleiro, quando se está dando todas as cartas.
Do outro lado, joga a natureza, e quem conhece as regras do jogo tem mais
chance. Mas, não são só as chances. Também a beleza de ver este horizonte nos
circundando em todas as direções, e a gente aqui a bordo.
O mar e seus encantos, navegar, são assuntos presentes e bem marcantes em
quase todos os poemas, em quase todas as canções.
No meu caso, fui por outro caminho. Não sou poeta, não sou cantor, mas sou
navegador, e por último, um navegador solitário.
Quisera eu poder exprimir com palavras o sentimento que me vem ao peito,
quando sentado ao lado do leme, fico olhando o horizonte, o horizonte sem fim.
Não há como explicar. E, preciso vir aqui para ver.
12 de junho de 1980

Completamos hoje oito dias de mar. As nuvens cobriram o céu, e o ar ficou


envolto em mistério.
Os três primeiros dias foram de calmaria, mas logo em seguida, o Pacífico
resolveu “mostrar que faz samba também”.
Veio o vento. Primeiro riso na grande, tira a genoa, põe o yankee, segundo riso
na grande, etc... Veio vento, muita chuva e nuvens baixas, e o pior é que o vento era
bem na cara.
Foram 3 dias duros, pois não andávamos, apenas nos batíamos contra o mar, e a
safra no fim do dia era de 40 milhas, percorridas às vezes em uma direção, que não
era exatamente a desejada.
De vez em quando as nuvens dispersavam, o vento acalmava mais, o sol dava as
caras, noites estreladas após um crepúsculo belíssimo. Mas, logo fechava de novo.
Com as mudanças constantes de clima, a mudança de humor.
Nestes oito dias fizemos apenas 400 milhas, e mesmo assim indo mais para o sul
e não em busca de Galápagos, que fica a S.W. Fomos descendo, o que, aliás, é
estrategicamente carreto, mas esta estratégia só é válida quando não se pode ir direto
ao objetivo, e gasta-se tempo em posicionamento. Infelizmente os alísios só vão
entrar lá pertinho de Galápagos. Também a correnteza, aqui, segundo os roteiros, atua
em todas as direções, não permitindo tomar pé.
O mar andou cruzado, ondas em todas as direções, e com isto as frutas andaram
voando, até o lampião a querosene caiu. Temos muito a aprender.
Nos dias que usei luz de navegação, na saída do Panamá, fiz uma descoberta.
Durmo bem melhor com a luz acesa, me despreocupando dos navios, podendo
aproveitar melhor o dia seguinte para ler, fazer as coisas a bordo que ficaram
pendentes.
Com a calmaria, tudo fazia crer ser mais fácil um acidente, pois caso eu visse o
navio no último instante não seria possível manobrar para evitá-la.
Com a luz e em pleno oceano, pude deixar de acordar de hora em hora. Ficava
acordado até as 9 da noite ouvindo o som, depois acendia a luz e ia dormir, acordando
apenas algumas vezes durante a noite, para corrigir o rumo, mas sem hora exata nem
preocupação. Apenas quando sinto algo estranho, um movimento diferente então dou
um pulo da cama, olho tudo e volto a dormir. O vento não melhora, nem tem
previsões para isto.
Alimentemos a paciência, pois vamos precisar dela.
16 de junho de 1980

Hoje completamos 3 meses que deixamos Salvador. Nestes 3 meses que são
10% do tempo máximo previsto, percorremos 4.700 milhas, ou seja,
aproximadamente 15% do percurso total.
Pouco a pouco, vou me habituando com o Oceano Pacífico, e as regras de seu
jogo.
Quando o barômetro baixa, aparecem logo as nuvens, chuva fina, mas nem
sempre quer dizer vento. Isto depende também da região e da época do ano.
Quando vem o vento, ele varre as nuvens do céu. Geralmente tem mais vento
com céu limpo que com céu encoberto.
Também o mar aqui é permanentemente cruzado, com ondas vindo de todas as
direções.
Talvez seja consequência da dimensão do oceano, o maior deles. Estas ondas
viajam, percorrem o vasto oceano, provenientes dos lugares mais distantes, passando
por regiões onde o vento é outro, e o mar que se forma em decorrência disto, nada
tem a ver com o vento local.
Isto tira, sem dúvida, um pouco o conforto da viagem.
Reapareceram aqui os peixes voadores. Nos 3 primeiros dias de calmaria, não os
tinha visto, o que me faz crer que são como os aviões, decolam sempre contra o
vento. Não tendo vento eles ficam n’água, pois têm problemas na sustentação.
Fiquei também observando as aves marinhas, pois elas não voam, velejam.
Estão sempre voltadas contra o vento, no máximo pelo través, e pouco batem as asas,
tirando proveito das correntes de ar.
Durante a calmaria, estas aves parecem cansadas. Elas se deslocam ao bater
incessante das asas.
Ontem avistei um destes pássaros raros, lá no alto. Permanecia imóvel sem bater
as asas. De vez em quando as encolhia e novamente estirava, e plainava, velejava, era
um ás do voo. Era pura elegância.
O vento continua ruim, e orçamos sem parar. Por um instante parece até que
acostumamos, como se isto fosse a própria vida. Fizemos 700 milhas em 12 dias, a
pior média em toda a viagem.
As vezes parece que posso folgar um pouco as escotas, mas logo tudo volta ao
ponto de partida.
Orçar com ondas fortes é um problema. A onda quebra na proa e o seu baque
estanca o barco, jogando a proa a sota-vento, o que proporciona uma deriva
indesejável. Orçar é bem mais fácil com o mar liso, quando rende mais.
A cor do mar aqui é mais escura. Não sei se é o reflexo das nuvens, ou trata-se
de saudosismo. Só sei que gosto mais do Atlântico. Vamos ver o que acontece quando
chegarmos às ilhas bem-aventuradas, as ilhas dos mares do Sul, as ilhas da Polinésia.
Espero que o mar lá seja como nos sonhos.
17 de junho de 1980

E chegou o dia 17, e com ele todo o seu mistério, mistério que acompanha
inevitavelmente todas as vésperas de chegada.
Hoje às 7 da manhã já fiz um ponto. Ninguém sabe quando se terá a
oportunidade de fazer outro.
Às vésperas da chegada faço pontos de hora em hora, para ver o
desenvolvimento, se tudo está correndo bem, se os pontos estão saindo coerentes uns
com os outros.
Quem poderia me dizer se hoje o céu estará encoberto, ou se me permitirá a
navegação? Já basta a entrada em Colon, na chegada do Panamá, sendo que o
problema aqui se agrava, pois as ilhas são pequenas.
De um dia para o outro pode-se fazer um erro superior a 30 milhas na previsão,
principalmente quando a gente dorme à noite, e em cada rajada, o barco foge do rumo
em torno de 20º. Depois ele volta, ou a gente acorda, mas neste último dia, depois de
se determinar a última posição, o rumo será observado com rigor, e levada em conta a
deriva, as correntes fortes por estas bandas e tudo enfim.
Após escolher o lado estrategicamente mais conveniente para abordar a ilha,
ficamos com os sentidos aguçados e a vontade de prever o futuro é muito grande, mas
faltam poderes. Somos mortais comuns, mas não pecamos por tentar.
O dia começou com o recolhimento sobre o convés de um calamar pequeno e
um peixe-voador. Ontem escrevi umas linhas sobre os voadores, e eis um, logo em
seguida, sobre o convés. Provavelmente ouviu o meu canto. E eu, com pouca
sensibilidade, o fritei, o comi, em vez de lhe recitar um poema.
Agora o céu está fechado, mas como aqui tudo muda em poucas horas, temos
tempo de sobra. A paciência, nestas horas, é uma boa companheira, e precisa ser
cultivada para que dure eternamente.
18 de junho de 1980

E o dia fez-se lindo. Desapareceram todas as nuvens e veio um sol vermelho e


quente.
Tirei logo a roupa para aproveitar, pois ultimamente tenho andado com suéter de
lã, apesar de estar no equador. É que por aqui passa uma corrente fria, a mesma que
passa no Peru.
Tudo ficou tão lindo, tão maravilhoso, um dia daqueles que a gente se sente feliz
por estar vivo, e ali.
A brisa era suave, e fui buscar a genoa, aquela maior, que me ajudou nas regatas
em Salvador. O barco readquiriu um ritmo bom, e logo o vento foi aumentando, e já
andávamos a toda.
No crepúsculo, fiz um ponto pelas estrelas, e fui descansar um pouco, pois a
partir de 1 hora da manhã, ficaria em vigília permanente, devido à proximidade de
terra. A gente nunca sabe se uma corrente mais forte, ou as rajadas de vento
antecipam a chegada.
A gente deita, mas é difícil dormir na última noite. Deitei, mas já levantei 3
vezes na primeira hora.
É quando a gente deita, que pára daquele corre-corre, é justamente quando se
começa a ouvir as coisas.
Uma coisa que bate, uma driça folgada no interior do mastro, os estais de sota-
vento folgados, dando seus estalinhos, a gente levanta e vai conferir. Se teimar, não
levantar, é pior ainda, e então é que a gente não dorme mesmo.
Também, uma rajada mais forte sempre muda o rumo de uns 10º ou 20º, e neste
último dia, o rumo tem que ser seguido a caráter.
Nem sei quantas vezes me levantei até 1 hora da manhã mas daí em diante,
resolvi não deitar mais.
A noite estava toda estrelada, e uma brisa suave levava o barco macio, sem
muito barulho, só um pouco adernado com aquele balanço gostoso.
No meio da madrugada, em pleno Equador, devido à corrente vinda do sul,
começou a fazer frio.
Fiz um chá quente, depois coloquei a capa por cima do pulôver, depois o chapéu
de lã daqueles que cobrem o rosto, orelhas, pescoço e tudo, têm apenas os furos dos
olhos.
Como o frio apertava fui forçado a vestir uma calça comprida por cima da
bermuda e mais chá quente. Uma sopa de cebola em seguida, e assim a noite foi
passando.
De meia em meia hora, ia lá na proa, para ver melhor alguma sombra de terra,
mas nada.
Como o dia já ia clarear, comecei a preparar-me para as retas de posição das
estrelas, no nascer do sol. Fiz o estudo do céu para aquela hora, e comecei a
identificar os astros com antecedência.
E fácil identificar as estrelas, principalmente quando se faz navegação todos os
dias. Mas, no amanhecer, as estrelas são outras. Portanto, com antecedência fui
tomando altura só para identificá-las.
Finalmente veio a barra do dia, tornei quatro estrelas, quando concluí, avistei
uma sombra de terra por boreste, lá quase na proa. É São Cristóvão.
Guardei as estrelas e o sextante, indo estudar o relevo da ilha na carta,
identificando os picos mais altos e comparando com o que se descortinava. Não há
dúvida.
Chegamos com tal perfeição, que, após avistar terra, mantive o rumo ainda por
muito tempo.
Assim sendo, fiquei mais tranquilo.
Moitessier fala em seu livro de uns amigos que passaram uma semana
procurando estas ilhas, e Hiscock cita casos de barcos que saíram do Equador e
voltaram sem tê-las encontrado.
Nuvens baixas, chuva, céu encoberto, neblina são as razões principais do
desencontro.
Quando as ilhas aparecem e o vento é fraco, não dá para alcançá-las com a luz
do dia. Vem a noite, as correntezas desviam o barco, as bússolas sofrem o efeito das
perturbações magnéticas, e no amanhecer a ilha sumiu de novo.
Mas está aí a ilha, bem na nossa frente.
Passa do meio dia, contornando a ilha, já avistei ao longe a pequena cidade. Tive
que passar em um trecho que o mar estava virado, como se estivéssemos montando
por cima de pedra, mas o ecobatímetro não encontrava fundo. Era a reversa da maré.
Os alinhamentos dizem que está tudo bem.
À medida que contornávamos, fomos ficando em uma região mais calma, mas o
canal não é balizado. Temos que nos guiar por um alinhamento de bússola e uma
torre lá dentro. Investi o canal com a vela grande e motor.
No caminho as gaivotas me comeram a colher de arrastro, uma foca se
aproximou do barco, e um cação passou nadando bem de mansinho.
São os recepcionistas que estão chegando. Vamos lá Três Marias.
25 de junho de 1980

Deixei hoje pela manhã o Porto de Baquerizo Moreno, na ilha de San Cristobal,
com destino a Fatu Hiva, Marquisas.
Assim que cheguei em Galápagos dei duas voltas na área de fundeio e deixei
cair o ferro.
Enquanto ajeitava as coisas, chegou um barco a motor com as autoridades da
marinha, o capitão do porto substituto e três marinheiros. O capitão voltaria, segundo
informaram, pela noite proveniente de Quito, Equador.
Os marinheiros manobravam mal, e deram logo uma porrada no Três Marias.
Existe uma diferença entre ser marinheiro por vocação e por obrigação.
Entraram a bordo e, muito educadamente, perguntaram a minha procedência, o
meu destino, e por aí foi.
Sabendo das dificuldades, tentei vender o meu peixe.
Falei que navegava solitário, que eu mesmo construíra o barco, e que estava
escrevendo um livro sobre os lugares de passagem, e principalmente sobre os seres
humanos que encontrava, seus hábitos, suas mentalidades, como quem diz, se for
maltratado, isto ficará gravado nos anais da história.
Falei depois do meu último trabalho, sobre as aulas na Universidade, e assim por
diante.
Eles eram tão educados, mas só estavam reconhecendo o terreno. Só no final
perguntaram se tinha permissão para vir a Galápagos, e o zarpe do último porto.
Convidaram-me para fazer uma pequena visita à capitania, mas que só poderia
ficar ali no máximo 3 dias, como a lei previa.
Como não tinha a bandeira de cortesia, me obrigaram a comprar uma feita de
pano barato, e que eles me empurraram a preço de ouro. Logo em seguida paguei
mais $US 6 para o parque nacional, e o zarpe me custaria US$ 40. Começou a
sangria.
O pior é que tinha aterrado na ilha errada, onde não se tem nada para ver.
Devido ao curto período que ficaria na ilha, procurei aproveitar o mais possível.
A cidade é bem pequena, e tem um outro vilarejo, lá no topo da montanha, com umas
50 casas, chamado Progresso. Acabou aí.
Fui olhando rapidamente as lojas, os armazéns, apressando as mercadorias, pois
teria que começar a comprar frutas e legumes. Enquanto travava conhecimento, a
cada pessoa eu perguntava o que deveria fazer para prolongar a minha estada na ilha.
Tinha que haver um jeito.
Foi o próprio preposto da imigração quem falou que uma boa solução seria, para
conhecer as ilhas, embarcar em um destes navios de turismo, o Calicuchima, por
exemplo, que acabara de chegar com 70 estudantes secundários a bordo, e que
voltaria a este mesmo porto dentro de 4 dias, antes de retornar a Guaiaquil. Teria que
falar com o Capitão do Porto que acabara de chegar.
O capitão concordou, mas para isto teria que pagar custódia da capitania, uma
soma de 40 sucres por hora.
Agradeci mas não estava em condições de fazer tal despesa. Então mandou que
viesse mais tarde e tudo se ajeitaria.
Aproveitei para ir a bordo do navio e combinar tudo, mas teria que pagar 400
sucres por 4 dias. Também teria que trazer meu saco de dormir, pois todos os beliches
estavam ocupados, com os 70 estudantes.
Na capitania, acabei acertando por 500 sucres a custódia para 4 dias. Teria que
mudar o barco de lugar, deixando-o em frente ao escritório do capitão do porto.
Lancei a âncora no lugar indicado, com 50m de corrente em 8m de
profundidade, dei máquina à ré até a âncora unhar bem, pois o barco ficaria sozinho,
sem o seu comandante.
Fechei o gás, desliguei a luz, fechei todas as válvulas, fechei todo o barco e
aproveitei as horas que me restavam para visitar a ilha. Dormiria esta noite a bordo
do navio que sairia pela madrugada.
Um ônibus me levou até Progresso, de lá, soltei o pé na estrada, tentando chegar
à cratera de um vulcão, onde se formara um lago.
É interessante como o clima vai mudando à medida que subimos, em busca do
topo do vulcão.
Junto ao mar, só temos rochas vulcânicas, lavas, pedras enormes quebradas
como montes em uma pedreira que acabou de detonar a carga de dinamite. A lava
descendo o morro, sofreu um resfriamento brusco ao encontrar o mar, partindo-se
toda. A única vegetação que cresce nesta região são os cactus, espinhos ou árvores
sem folhas. O clima é extremamente árido. Parece que tudo está morto.
Na realidade, a natureza está hibernada.
Quando cai a chuva, imediatamente as árvores se vestem de folhas, surgem mil
insetos, e uma exuberante vida, toda apressada, se estabelece nesta região. Mas a
festa dura pouco, uma questão de semanas, e logo tudo volta ao que era. A natureza
adormece, hiberna, até a próxima chuva, talvez no ano que vem.
à medida que subimos a montanha, o clima vai mudando e a vegetação torna-se
cada vez mais frequente. A vida vegetal é intensa, o terreno de uma fertilidade
incrível. A rocha vulcânica foi intemperizada com ajuda da umidade permanente
vinda das nuvens. Todo o ambiente é envolto em uma permanente garoa, o ar está no
ponto de orvalho. Andando, os cabelos dos braços se cobriram de pequeninas
gotinhas de água, que estão em todo o ar, tapando o sol e escondendo os topos das
montanhas.
Árvores frondosas crescem por todo o lado. Laranjeiras, limoeiros carregados
deixam apodrecer os frutos no chão pois aqui não temos mercado. Aproveitei para
encher as sacolas. O preço é grátis.
Pequenos passarinhos, tão mansos que quase os pego de mão, estão por toda a
parte e alguns tentam me acompanhar à medida que avanço pelo caminho. A natureza
aqui ainda não está aviltada, e os animais não desenvolveram o instinto de fuga.
Segundo os estudiosos, os sedimentos encontrados no fundo do lago, no interior
da cratera acusam 10.000 anos, a última data em que o vulcão entrou em erupção.
Como ia ficando tarde, fui descendo a montanha. A sacola estava superlotada de
frutas e deixava o corpo relaxado, que como um rio morro a baixo, descia em busca
do mar.
Como ultimamente não vinha calçando sapatos, eles me causaram uns calos
terríveis. Tinha perdido o costume.
Concluído o passeio, dirigi-me para bordo do Calicuchima, para me instalar. A
lei aqui é dura, mas aquele jeitinho brasileiro existe em toda a parte. O navio deixou o
porto às quatro da manhã e amanhecemos em Santa Cruz. O navio ficou ancorado ao
largo, e os botes levavam os turistas à terra, onde iríamos conhecer a Estação Darwin,
encarregada de estudar os animais e aves, procurando defendê-los do homem, e
ajudá-los na luta contra os animais introduzidos que alteraram o equilíbrio ecológico
da região.
Assistimos a uma conferência, onde se falou desde a formação geológica das
ilhas vulcânicas, seu clima, suas aves, seus animais e os Galápagos, as tartarugas
gigantes que moram nos altos vulcões, pesando 100kg às vezes, e que já estavam em
vias de extinção.
Além da Estação Darwin, temos o Parque Nacional e a Instituição de Defesa
Animal. Os três unidos e assessorados pelos cientistas que continuam aí os seus
estudos tentam salvar os espécimes já em vias de extinção.
Segundo consta, foi exatamente nestas ilhas que Darwin encontrou as maiores
provas que o levaram a desenvolver a teoria da evolução dos espécimes.
Logo que cheguei de barco, e só podia ficar 3 dias, fiquei com raiva. (O turista
sem barco pode ficar 3 meses). Mas, logo em seguida, a gente termina entendendo
que o trabalho aqui é sério.
A maior luta é para tentar salvar as Galápagos, que enquanto pequenas são
comidas pelos ratos, ou pelos cães introduzidos, hoje selvagens. A vegetação que lhes
serve de alimento é devastada pelas cabras, porcos e gado, que foram introduzidos na
ilha por piratas ou baleeiros há alguns séculos atrás. Estes animais se reproduziram e
hoje alteram o equilíbrio existente.
Nas grandes ilhas, onde o homem se instalou várias vezes, e depois abandonou,
os animais nativos praticamente desapareceram.
Nas pequenas ilhas, onde não houve colonização, os animais nativos estão
intactos, vivendo em perfeito equilíbrio. É comum se ver em uma área de 10m, lobos
marinhos, iguanas marinhas, iguanas terrestres e um sem número de biqueiros e
outras aves. Todos vivem em paz, sem ferir a cadeia da natureza.
A luta aqui é para tentar ajudar na sobrevivência dos animais nativos.
Caça-se as cabras que acabam com a vegetação, chegando a comer as cascas das
árvores às vezes.
Para isto vieram da Alemanha, caçadores profissionais, introduzindo novas
técnicas de caça e rifles modernos.
Nunca se deve matar o líder do rebanho, senão ele se dissolve.
O cão selvagem é o maior dos inimigos. A sua erradicação é um desafio à
inteligência humana.
Ele não pode ser visto, só se ouve o seu uivado. Com o faro aguçado, não
permite aproximação e já aprendeu a beber água salgada.
O terreno extremamente acidentado e o sem número de cavernas, deixados pela
lava que desceu morro abaixo, lhes servem de abrigo. Também os espinhos, e o
tamanho das ilhas impedem uma movimentação rápida do ser humano, a ponto de
encurralá-los.
A técnica proposta é cevá-los e depois envenená-los.
Os ratos também comem os ovos e roem as carapaças ainda moles dos
galápagos recém-nascidos. Por isso, são levados para o laboratório da Estação
Darwin, onde os galápagos ficam até completar 6 anos, quando atingem um porte de
difícil ataque, são então levados de volta ao local de origem.
Após ouvirmos a conferência, fomos a uma pequena ilha repleta de animais e
plantas nativas. O Parque Nacional marcou com piquetes os caminhos a seguir pelos
turistas, não é permitido sair deles para não pisar nas plantas, insetos ou filhotes de
animais.
Aqui tenta-se preservar ao máximo a natureza. Encontramos aqui um grande
número de lobos marinhos, este animal eternamente alegre e brincalhão. Quando o
vejo, pergunto quem foi que inventou o trabalho. Mas lembro-me logo em seguida,
que foi o trabalho que fez o homem, e o fez ficar diferente do animal comum.
Os lobos são mansos e carinhosos.
As iguanas marinhas são lagartos que atingem no máximo uns 80cm, são
mansas, e, apesar de um aspecto terrível são inofensivas.
Tiramos fotos delas a 0,5m, e depois fomos observar os pássaros.
Biqueiros comuns, biqueiros de patas azuis, gaivotas, etc.
Deixando Plaza, fomos para Baltra, onde fica a Base Naval, e em seguida para
Bucaneer Bay (baía dos piratas), na ilha James ou Santiago. Visitamos uma cratera de
vulcão, de onde se descortina uma paisagem lunar.
É. Muito bonito, mas a aridez parece agressiva ao homem. Fundeamos em um
canal entre Santiago e uma ilhota, onde antigamente ficavam escondidos os navios
piratas, deixando no topo do penhasco os marinheiros de vigília.
Contam que se pegados dormindo, os vigias eram jogados morro abaixo.
Era um lugar bem protegido, onde se juntavam 2 ou 3 piratas, e jogavam cartas
ou dados, apostando os butins que tinham conseguido. Foi sem dúvida uma bela
época, que nós perdemos.
Quando acabava o ouro, jogavam apostando as mulheres bonitas que tinham
raptado.
Os tubarões passeavam em águas rasas, e uns pinguins, que erraram o caminho,
vieram parar sobre umas pedras destas ilhas fantásticas.
Existem outras ilhas, onde as pesquisas são mais intensas, onde o turista não tem
acesso.
No dia seguinte fomos para Floriana, onde encontramos a família Wittmer,
colonos alemães, que estavam ali há 50 anos. Vendiam biscoito e vinho de laranja.
Comprei também o livro escrito por Margaret Wittmer, que o autografou gentilmente,
onde ela descreve os primeiros anos da colonização, a luta que se travou pela posse
da terra, que não foi fácil.
Visitamos também o primeiro Barril de Correio, onde piratas ou baleeiros
colocavam as suas cartas. Outros que vinham, caso as cartas coincidissem com o seu
destino, as levavam para as partes mais diversas do mundo. Assim a carta levava, às
vezes, um ano para chegar ao seu destino, após sobreviver a ventos e tempestades,
ataque de piratas e outros imprevistos. Às vezes a viagem da carta tinha mais a contar
que as próprias linhas que vinham nelas escritas.
No último dia fomos para a ilha Hood, onde além de lobos, iguanas,
encontramos biqueiros, gaivotas e um grande número de albatrozes, que vêm aqui
fazer os seus ninhos.
O acasalamento entre estas aves gigantes é mais conhecido como a dança dos
albatrozes. Quando em pé, batem bico contra bico, dançando e tentando se entender.
Dizem os nativos que o amor entre os lobos marinhos é um mar de afetividade.
Fazem um inteiro preparo que às vezes dura horas e superam as carícias dos
humanos.
Finalmente voltamos à noite para San Cristobal. Já estava ansioso para ver o
Três Marias, fiquei satisfeito ao pisar a bordo, certificar-me de que tudo estava bem.
Na manhã seguinte, o capitão do porto mandou me chamar. Disse que já tinha
abusado bastante, que tinha que ir imediatamente.
Ao tomar conhecimento do fato, o capitão do Calicuchima foi pedir por mim,
assim pude dormir uma noite tranquila e fazer todas as provisões.
Saí bem cedo. Meu plano era passar por entre as ilhas ainda com a luz do dia.
Passei por Floriana, a última ilha ao Sul, às quatro da tarde, e tive dificuldade de tirar
os olhos de terra, quando, ao pôr do sol, ela ia se perdendo dissolvida na bruma
encarnada do crepúsculo.
Sabia que tão cedo não veria terra.
29 de junho de 1980

Passaram-se quatro dias e quatro noites, já fizemos 600 milhas. Desde San
Cristobal estou com a genoa em cima, tentando avançar o máximo.
O clima mudou um pouco, ficou mais quente, as nuvens vêm acompanhadas de
rajadas de vento, como na nossa região. Já é o alísio de S.E. que sopra firme.
Enquanto o barco avança mar adentro, vou lembrando de Galápagos,
principalmente dos estudantes do Calicuchima, jovens de 17 a 19 anos, às vésperas da
universidade.
E sem dúvida uma bela idade, a idade da descoberta, hora de avaliar o que o
mundo nos oferece, hora também de contestar o prato feito que nos espera lá fora.
Eu era o mais velho do grupo, o mais surrado pela vida, o mais vivido, estava ali
sempre cercado pelos estudantes que queriam saber porque escolhi navegar em
solitário, meus pensamentos a respeito do mundo, da humanidade, da política, etc…
Terminei falando bastante sobre a vida em geral. Tentei dizer-lhes o que gostaria
de ter ouvido nos meus 17 anos.
Muito jovens, puros, ingênuos às vezes, sempre ávidos de aprender, eles
prendem-se muito à verdade, à razão, como se elas fossem coisas palpáveis. Sofrem
muito a influência dos ensinamentos que lhes são transmitidos no colégio de jesuítas,
em Quito.
Foi duro ter que dizer-lhes que aos meus 37 anos, descobri que a verdade não
existe, nem tampouco a razão.
Não percam tempo buscando-as, pois o que existe realmente é a verdade e a
razão de cada um. Cada um tem a sua própria verdade e a sua própria razão, e que
esta análise poderia, sem dúvida, ser aplicada, também, às minhas próprias palavras.
O que acabo de lhes dizer, nada mais é do que a minha verdade.
Cada um deve lutar para defender a sua verdade e a sua razão, mas esta luta não
deve ser levada às últimas consequências, pois, dentro de 10 anos, teremos novas
ideias, talvez até nos envergonhemos das atuais, mas ninguém poderá ressuscitar os
mortos, aqueles que em nome dela morreram.
A verdade, meus jovens, é um pouco como a beleza, não é universal.
Perguntaram sobre tanta coisa, queriam saber sobre tóxicos, sobre o Brasil.
Disse que tinha alguns amigos que consumiam uma razoável quantidade de
tóxicos, mas a maior incidência encontrei entre os americanos, talvez por possuírem o
dinheiro para adquiri-los.
Quando a gente é jovem, nos ensinam que quem fuma marijuana é um viciado.
Também já partilhei desta opinião, mas, hoje, considero o problema muito mais
complexo.
Os motivos, na realidade, podem ser os mais diversos.
Os adolescentes fumam para agredir os pais ou a sociedade.
Entre adultos encontrei médicos, engenheiros, gente inclusive bem situada na
sociedade, fumando.
A coisa mudou muito desde que Castañeda escreveu o seu 1.º livro, A Erva do
Diabo, uma quase apologia à droga. O interessante é que nos seus últimos livros ele
contesta seus próprios pensamentos, os quais classifica como próprios de um
iniciante, desnecessários a uma mente evoluída, capaz de utilizar o poder da vontade.
Entre adultos, as pessoas fumam maconha na tentativa de atingirem um poder.
Ver algo mais do que se pode ver a olho nu. Seria como empunhar um binóculo, um
telescópio. São geralmente pessoas que não aceitam o mundo como ele é e querem de
qualquer forma dar um passo à frente, ver além do horizonte.
Eles são de certa forma parecidos com as pessoas que tentam ganhar muito
dinheiro para, através dele, atingir um certo poder. Apesar de haver certa semelhança,
existem nesta comparação, também, muitas diferenças.
Conheci uma pessoa que, viajando de barco com a família, me revelou, após nos
tornarmos muito amigos e conversarmos muito, estar juntando um punhado de
sementes para, em um atol perdido do Pacifico, fazer uma grande plantação.
Ele pretende fumar bastante, na tentativa de dar um passo à frente na percepção,
transcender por assim dizer. Perguntei-lhe se não tinha medo de entrar em órbita e
não conseguir voltar.
Revelou-me que, após fumar o que já fumou, isto torna-se praticamente
impossível. Aliás, isto só acontece com quem está brincando com coisas sérias. E isto
é poder, é coisa muito séria.
Conheço outros que fumam para relaxar, para esquecer, como um relaxante,
adiando assim os problemas do dia a dia, sem no entanto resolvê-los.
Como veem, as razões podem ser as mais diversas possíveis, e torna-se difícil
emitir um juízo de valor.
Ora me lembro dos moradores das ilhas. Lembro-me perfeitamente de seu povo.
Isolado do mundo, vivendo nestas ilhas vulcânicas, o seu interesse pelos visitantes
era muito grande.
Aproveitava o último dia, fazendo as provisões. Após tudo pronto, resolvi andar,
perambulando pelas ruas, pois pisar em terra firme seria impossível nas próximas
semanas. E assim tornei a passar em frente à loja, onde, logo no primeiro dia,
comprara um pulôver de lá.
O dono da loja, reconhecendo-me logo, voltou a conversar sobre o mar, viagens,
etc., mas a moça da loja não me reconheceu.
Ela era uma menina linda, com uma camiseta negra vestida em cima da pele,
seios muito sugestivos.
Começamos a conversar.
Eu sou aquele rapaz louro, do iate, que comprou aqui o pulôver que você foi
buscar no depósito. Aliás, foi você mesma quem escolheu a cor azul-escura, que
combinaria melhor com os meus cabelos. Lembra-se? Paguei em dólares, etc.
Ela não me ter reconhecido, em um lugar onde as novidades são raras, era
estranho. Caso tivesse mais tempo, tentaria matar a charada, mas como já ia embora
na manhã do dia seguinte, desisti.
A ilha era pequena, e o sexo muito reprimido. Aqui todo mundo termina sabendo
de todas as coisas.
O amor vai do namoro ao noivado e talvez ao casamento.
O amor roubado é raro e extremamente difícil.
Ainda há pouco, a rapaziada da ilha me perguntou como era que viajava sem
mulher.
-Bem, aqui, nesta ilha pequena, a coisa torna-se difícil, mas nos iates clubes,
sempre acontece uma identificação, e a gente termina se arranjando.
É, disse um deles, aqui não tem, todas são comprometidas.
Achei que ele não podia afirmar algo, com tanta certeza.
Despedi-me e fui andando.
Lembro-me que saí da loja, e já ia escurecer. Resolvi jantar cedo, para ganhar
tempo. Por isso atravessei a rua, fui para um restaurante, uma casinha isolada que
ficava bem na beira da praia.
A comida ali era boa e barata.
Jantei, e quando já ia terminando de pagar, a moça da loja apareceu, perguntou
por algo que não tinha, saímos juntos.
Cumprimentei-a, apertando as suas mãos macias, senti que ela estava agitada.
Na praça, olhares de pessoas desocupadas acompanhavam os nossos movimentos.
Perguntei-lhe aonde ela ia, então me falou para esperá-la, ali na praia, que logo
voltaria.
Foi grande o meu espanto, logo vi que não tinha me enganado ao levantar
suspeita de não me ter reconhecido.
Sentei-me em um caíque emborcado, que largaram à beira da praia. De lá, via a
loja que fechava as suas portas.
Tinha acabado de escurecer, e acenderam as luzes da cidade.
Ela atravessou a rua correndo, sumiu. Depois veio caminhando pela praia, jogou
um bilhete e disse:
-“Te espero no armazém, pela manhã.”
Concluí, logo, que o patrão provavelmente não estaria lá pela manhã. Era o
único lugar que poderíamos nos ver sem suspeitas, disfarçando-me em cliente.
Tive vontade de correr atrás dela, e explicar que amanhã já não estaria mais
aqui, mas deixei pra lá.
Como eu gostaria de tomá-la nos meus braços. Corresponder-lhe no amor, mas
as leis equatorianas não permitiam que adiasse a minha partida.
Tornei o caíque e fui para bordo, mas fui arrasado. Agora, que já passaram uns
dias, o mar vai lavando da memória as lembranças das ilhas.
30 de junho de 1980

Ultimo dia do mês. Fizemos hoje apenas 135 milhas. O tempo é bom,
intercalado com nuvens trazendo chuviscos e bastante vento. Para manter o ritmo,
mantenho a genoa, a maior delas, em cima desde Galápagos, o que vem me dando
uma média geral de 5 a 6 nós.
Cada nuvem que se aproxima, me deixa em guarda, na expectativa de tirar ou
não a genoa.
Caso se resolva atender o vento, mantendo a cada instante a área vélica ideal,
teríamos que fazer um mínimo de dez manobras por dia.
A noite a coisa piora ainda mais. A preocupação com as rajadas aumenta, mas,
como aqui as distâncias são grandes, não se tem previsão de mau tempo. Vou
aproveitando. O perigo é quebrar algo ou rasgar a vela.
Se o vento aumenta de intensidade reduzo a vela, vou numa boa, mas, até fazê-
la, fico olhando o mastro, os estais, o pano, etc.
Como é bonito ver um barco correr, como é perigoso também. Não sei o que
faço. Enquanto aguardo na indecisão, a nuvem passa e cinco minutos depois já
passou a rajada, e a viagem prossegue, tranquila.
Passei estes dias todos comendo peixe. Frito no alho e sal, e ainda umas cebolas,
depois envolto em farinha do reino. Sempre salgo uma parte e ponho para secar.
Acaba se transformando em bacalhau, de que a gente vai tirando as lasquinhas e
comendo cru.
Hoje, pela manhã, estava distraído no cockpit, quando ouvi um ronco, um
estrondo. Virei-me rapidamente, procurando ver qual era a entidade que se
apresentava, e só vi, há uns 40m, o dorso negro de uma baleia a mergulhar. Sumiu e
só foi aparecer já bem distante. Só vi o seu jato de água e vapor a subir.
Logo em seguida avistei uma tartaruga boiando e um cardume de golfinhos
passou dando saltos.
Deve ser festa no mar. É pena, mas eu não fui convidado.
2 de julho de 1980

Hoje é dois de julho, dia de festa na Bahia, mas aqui só temos água de todos os
lados.
Fui dormir tarde, fiquei ouvindo música e vendo o barco correr. Era um vento de
popa e o barco rolava de um lado para o outro.
Quando fui me deitar, o vento aumentou ainda mais, e com o balanço, deslisava,
escorregando sobre o lençol, apesar de escorar os cotovelos, os joelhos, etc.
Já passava de meia-noite, mas não conseguia pegar no sono, e dava impressão
de que o barco cada vez andava mais.
Numa das vezes que levantei, avistei uma série de gaivotas, aliás raríssimo por
aqui, esvoaçando o barco e dando os seus gritos. Ora estavam na altura das águas, ora
subiam e via o seu contraste contra o véu de nuvens iluminadas pela lua.
Pareciam loucas. Não sabia o que era, algum presságio.
Gostaria de entendê-las.
No horizonte se formavam nuvens mais escuras, fiquei atento para ver se o
tempo iria mudar.
As nuvens passaram, o tempo ficou no mesmo. A genoa continua no alto desde
que saímos.
Um navio passa no horizonte, com um mundo de luz. Deve ser um navio de
passageiros. É o primeiro sinal de vida depois que se perdeu na bruma a ilha de
Floriana.
Como tinha dormido pouco à noite, permaneci deitado após o amanhecer.
Depois levantei-me, fiz o almoço, a sesta, e me lancei na leitura, como faço todos os
dias.
Além da minha viagem de barco, faço uma viagem paralela em outro mundo,
através dos livros, e outras tantas através dos sonhos e pensamentos. Leio geralmente
até antes do pôr do sol.
Assisto todos os dias religiosamente ao pôr do sol. Considero quase uma
necessidade ver o dia transformar-se em noite.
Assim, além da beleza da transformação que já justificaria ver o espetáculo, a
noite se torna amiga e conhecida, pois a vi nascer do dia que termina.
Isto vem se tornando uma praxe e assim a noite não me é estranha, pois conheço
as suas origens, as suas raízes.
Depois vêm surgindo as estrelas e fico a apreciar a metamorfose por horas a fio.
Antes de dormir, ouço o rádio, com as notícias internacionais. Está se tornando
cada vez mais difícil ouvir a Rádio Nacional, a única que chega aqui.
Ouço também Londres, Voice of America, Rádio Moscou, Rádio França
Internacional. É incrível escutar o que dizem, cada um diz uma coisa diferente.
Enquanto aqui no mar estamos em uma completa paz, eles fazem entre si uma
guerra ideológica, se acusam reciprocamente, tentam a todo custo obter o domínio
sobre o mundo. A sede de poder é muito grande, eles são escravos desta sede.
Para finalizar ouço música popular brasileira e vou dormir com o samba na
mente, o samba e as coisas boas da nossa terra.
3 de julho de 1980

Mais 166 milhas percorridas, o que dá uma média diária de 7 nós.


Esta noite, mais uma vez não foi fácil. A indecisão se deixo ou retiro a genoa
voltou a pairar sobre o Três Marias.
O barco andava demais com o vento pela aleta, quando a onda vinha,
alcançando primeiro a popa, fazia o barco girar. Com isso o leme de vento vinha todo
de um lado até bater no fim de curso, sem amortecedor.
Apesar da lua, a noite é sempre envolta em mistérios, e nunca se vê as coisas
como à luz do dia. Por isso jurei que pela manhã arriava a genoa, mas é tão bonito ver
o barco andar, e cadê o homem? A genoa continuava em cima.
Sinto-me dividido nesta hora em dois. Um imortal que quer pular, quer voar, e
outro que me segura pela manga da camisa e diz: “Homem, tu não tens asas, aguenta
a mão”.
Este é o calmo, cuidadoso, cuida do outro como de seu irmão gêmeo.
Por aqui esperava encontrar os albatrozes, que são as águias do oceano, reis do
planeio, mas nada.
Em Galápagos, os estudiosos disseram tratar-se de uma ave capaz de percorrer
em planeio 400 milhas diárias. Os que nascem em Galápagos são logo cadastrados,
com uma placa numerada, e uma inscrição com um endereço para onde devemos
remetê-la, pelo correio, ganhando US$ 25. Vários foram encontrados, embaraçados
nas redes de pesca do Japão. Eles voam acompanhando as principais correntes, e vão
pescando.
Eu que os aguardo, estou sem sorte. Por aqui só encontro umas aves pequeninas,
pretinhas, com a barriga branca na parte traseira, que voam a 0,5m das águas. Umas
gaivotas brancas, também pequenas, que devem dormir sobre as águas ou em pleno
voo.
Hoje o mar está todo coberto de carneirinhos brancos, é o S.E. duro, parece ser o
vento normal desta região, nesta época do ano. Aproveito para examinar os pontos
onde as escotas roçam nas polias, onde a genoa roça no balcão. Felizmente as velas
estão todas com 3 costuras, além dos reforços adicionais. E nestas horas que nos
preocupamos com o mastro.
Quando leio nos livros que Tabarly, o grande regatista francês, derrubou 3 vezes
o mastro de um de seus barcos, e Bernard Moitessier, o grande dos cruzeiros,
naufragou duas vezes antes de se tornar famoso, eu que não derrubei nenhum mastro,
nem o quero e ainda não naufraguei nenhuma vez, não sei o que me espera. Tem
horas que a gente se apavora com estas estatísticas. A gente se lembra deles quando o
mar está agitado e o vento assobia nos estais.
Fico olhando o mastro e digo: “Aguenta, aguenta filho, que a gente tem que
chegar lá”.
Pela tarde, a fera foi dominada. O animal foi amordaçado e amarrado, apesar de
ficar espumando. É aquele animal que quer voar, que pensa que pode tudo, que não
quer usar o cinto de segurança.
Em consequência disto, a genoa foi para dentro do saco e o yankee assumiu o
seu posto.
Como o yankee me pareceu pequeno, após ficar com a genoa 8 dias no ar. Mas,
as rajadas aumentaram, e o Três Marias partiu em louca disparada.
Pensei que ia ter uma noite tranquila. Assisti ao pôr do sol, estava lindo e
navegar voltou a ser agradável. Cheguei a cantarolar um sambinha me despedindo da
genoa.
Já que não existe paz Nem um amor tão profundo O melhor que a gente faz 6
separar nosso mundo.
A redução da área vélica fez com que o barco ficasse menos arisco, mas o
governo no leme não alterou em nada.
Desci e fui ouvir a Rádio Nacional, levando ao ar os sambas da saudade, mas,
para ouvir melhor o que se passava lá fora, tive que desligar o rádio.
Tentava dormir, mas não conseguia.
Com o balançar do mar, toda a hora a ponta da retranca mergulhava na água.
Quando a onda vinha, alcançava primeiro a popa, e o barco descia a cascata,
tendendo a orçar, a ficar paralelo à onda, e o pano a bater. Neste instante, o leme de
vento, tentando desesperadamente corrigir o rumo, vinha ao fim de curso.
Para evitar um desastre, resolvi dar o 3.º riso na vela grande. Já com o
impermeável, estava junto ao leme colocando o cinto de segurança, quando uma onda
rompeu dando-me um banho completo para me acordar.
Apressei o passo. Fui até o mastro, e o vento soprava duro. Comecei a fazer a
manobra bem devagarzinho.
Lembrei-me de Fernando Kaster, que risando o pano me quebrou uma pequena
catraca. Mas, como hoje não estávamos em regata, isto seria imperdoável.
Fernando era um dos meus melhores tripulantes. Apesar de não ser muito forte,
era dotado de uma força de vontade descomunal.
Concluí a manobra, veio aquela satisfação do dever cumprido. O barco andava
bem.
O barômetro continua baixando, mas ainda não é mau tempo. Apenas um vento
duro, previsto para esta região. O primeiro sinal de mau tempo é quando o vento
começa a rondar. Mas este apenas vai aumentando de intensidade, gradativamente.
Recapitulei tudo o que teria de fazer caso o vento aumentasse.
Arriar a grande, trocar o yankee pelo tormentim, depois arriar tudo e ficar talvez
em árvore seca. O vento é quem manda, a gente apenas cumpre as ordens.
Já passa da meia-noite, mas perdi completamente o sono. A lua vem nascendo lá
no horizonte, por trás das nuvens, fico sentado junto ao leme, apreciando as forças da
natureza.
O mar com as suas ondas. O vento com suas rajadas. Pro poder.
Quem sabe manipulá-la vai bem. Quem não sabe, pode ser banido.
Com o balanço do mar a antepara (a quebra onda) do interior do tanque de água
doce soltou, e está fazendo um barulho terrível.
O soldador resolveu provavelmente economizar, dando apenas uns pontinhos de
solda. Ele coitado não sabe o que é o mar. Aliásx Nem imagina.
5 de julho de 1980

Completei 10 dias no mar. Neste período percorremos 1536 milhas. A metade da


distância que separa Galápagos de Fatu Hiva, Marquisas.
Nestes dias corremos com o yankee e a grande no 3.º riso, fazendo 168, 170
milhas. Não era ilusão não, tinha vento.
Com as rajadas, com o tombo do mar, ele continuava a enfiar a ponta da retrata
dentro d’água, podendo provocar uma avaria. Resolvi optar pela tração dianteira.
Arriei tudo, depois de testar o barco em árvore seca, icei a genoa, a n.º 2, a
menor, nada de vela grande.
O leme ficou muito mais suave, mas começamos a perder em velocidade.
Pela manhã, um dourado cai na linha, vira peixe frito. Como sempre, salgo
uma parte para comer cru, ou em salada, acompanhado com batatas, cebolas, e um
bocado de azeite.
Como passamos da metade do percurso, fiz logo o estudo da aterragem. Viria
pelo sul, depois rumaria para N.W., tentando evitar um obstáculo a N.E. de Fatu
Hiva.
Apesar de alta, a ilha é pequena, caso se perca ela de vista por alguma razão,
teremos neste rumo, outras bem em frente, sem obstáculos perigosos, encobertos pelo
mar. Aqui tudo é fundo, até se chegar bem perto da praia.
Considero a estratégia da abordagem, avaliar os obstáculos, a posição do vento e
da corrente, a provável visibilidade, avaliar tudo, uma das mais importantes coisas em
navegação. Às vezes, a escolha do lado a aterrar, pode se tornar a causa principal do
sucesso, ou a causa de uma infelicidade, pondo em risco a embarcação.
Enquanto estudo as coisas, percebo que o barômetro vem descendo lentamente.
7 de julho de 1980

Hoje é aniversário da minha filhinha mais velha, Marúcia. Ela completa hoje 10
anos. Nem posso mandar-lhe um telegrama, como fiz no aniversário de Mariana,
quando estava em Colon.
O mar acalmou um pouco, mas está sempre cruzado. O vento reduziu, icei
novamente a vela grande.
Os peixes voadores aqui andam aos cardumes, quando os encontro, saem
voando que nem gafanhotos.
A noite eles caem sobre o convés, eu os frito pela manhã.
Quando amanhece, a primeira coisa que faço é ir recolhê-los.
Faltam 1200 milhas até Fatu Hiva, agora estudo a 2.' possibilidade. Em vez de
voltar via Cape Town, África do Sul, que já conheço, tento pegar o Mar Vermelho, o
Canal de Suez, voltar via Europa. Esta possibilidade é remota, pois o Mar Vermelho é
muito perigoso para um homem só. Muitos arrecifes pelos lados, muito tráfego de
navios pelo centro. Navios vindos nos dois sentidos. Seria muito difícil para dormir, e
deixar o barco ao acaso.
Também o vento é contra em um grande trecho, sujeito a tempestade de areia.
Como ainda temos tanto mar pela frente, daqui pra lá a gente resolve.
11 de julho de 1980

Completamos 16 dias de mar.


Estes dias o vento tem estado mais fraco, o mar manso, e aproveito para relaxar.
Ler, descansar. Tenho aproveitado maravilhosamente o tempo, através dos livros,
tenho feito grandes viagens na minha imaginação, me transportando para as partes
mais distantes do mundo.
Com a nova possibilidade de enfrentar o mar Vermelho, estou lendo um livro
maravilhoso sobre os países árabes, para compreender melhor o seu povo.
Os livros de Hiseock têm sido de grande valia.
Ler um Moitessier, um Tabarly, é importante, mas eles têm barcos maiores e
com mais recursos. O barco de Moitessier tem o dobro da minha área vélica, e o de
Tabarly 5 vezes.
Hiscock, há muitos anos atrás, quando os recursos eram menores, deu 3 voltas
ao mundo com um barco de madeira, com uns 10 m, e escreveu 5 livros, que tenho a
bordo. Se não é um livro, será outro, que trata dos lugares que pretendo passar.
O Três Marias tem muito mais recursos, portanto a fé em um possível sucesso
aumenta. Apesar de viajar com a mulher, ele não tinha leme de vento.
As suas descrições são modestas. É um cara cuidadoso antes de tudo, no final as
coisas terminam dando certo. Também descreve quantos barcos se perderam,
enquanto foi fazendo a travessia donde se conclui que cuidado é muito importante.
Como o mar continua calmo, vou aproveitando o tempo. Estudei mais uma vez
as passagens mais difíceis desta volta ao mundo, como o Estreito de Torres, depois os
planos para a Indonésia, a alternativa para o Mar Vermelho, que é sem dúvida uma
parada.
As coisas têm que ser estudadas várias vezes, a gente vai amadurecendo aos
poucos. A resolução final fica para depois, quando estivermos no Oceano Índico, pois
ninguém sabe ao certo quando chegaremos lá, apesar de também não se poder
navegar à toa.
Na Austrália, temos a época dos ciclones, idem no oceano Índico Sul. Caso
cheguemos em tempo na Indonésia, para fugir dos ciclones, poderemos ir para o
norte, atravessar o Mar Vermelho, passando pelo Canal de Suez.
Enquanto a gente pensa, lê, escreve, o Três Marias desliza suavemente.
Estes dias tenho sido muito feliz, nem me lembro que estou só, aliás felizmente
só. Meus pensamentos são livres, sem interferência, sem censura. Livres como o
vento em mar aberto.
l2 de julho de 1980

Protegido por um barômetro em alta, 756, dormia tranquilamente. Mas, como já


desenvolvi este hábito, acordo de hora em hora, ou no máximo duas horas, e dou uma
espiada lá fora.
Eram duas horas da manhã, uma brisa leve ia conduzindo o Três Marias, talvez a
2 nós.
O céu estava estrelado, mas, bem na proa, uma mancha escura parecia terra,
apesar de estarmos a 700 milhas da ilha mais próxima.
Era uma nuvem, e o vento começou a rondar. Achei melhor agir.
Coloquei uma roupa, não gosto de manobras despido. A roupa sempre protege,
comecei a tirar o pau de spinaker, que sempre é trabalhoso para um homem só. Nesta
manobra, quebrou a pulseira do meu relógio, que felizmente caiu no convés.
Foi só terminar a manobra, que o vento veio com vontade. Fui regulando as
coisas e dentro de meia hora voltara tudo ao normal, mas desta vez com amura a
bombordo.
O vento foi diminuindo cada vez mais, fui dormir. Agora ao meio dia nos
arrastamos talvez a 1 nó, tentamos, palmo a palmo, vencer as 600 milhas que nos
faltam.
O resto do dia passamos encalmados, surrando as velas. Quando o sol se pôs,
uma leve brisa novamente empurrava o Três Marias em direção ao seu objetivo. O
céu ficou todo nublado, prometendo mudanças dentro em breve.
No mar, as eternas preocupações, ora calmaria, ora vento demais.
A calmaria mina a moral de qualquer navegador. Faz-se todo o possível e o
barco não anda. Quando se tem pouco vento, aproveitamos bem o tempo, mas,
quando se está totalmente parado, nada se consegue fazer. Esperamos apenas o vento.
A impaciência nos atormenta.
Quando as nuvens cobrem o céu vem a apreensão. O que será que vem por aí?
Escureceu. Apareceu uma luz no horizonte, depois foi se aproximando, vi
perfeitamente as duas luzes dos dois mastros. Era um navio que ia no mesmo rumo
do Três Marias e passou a umas 4 milhas por boreste. É o segundo que avistamos em
18 dias.
Enquanto tornava um chá, o vento começou a assobiar no estaiamento, trazendo
chuvas.
Coloquei o cinto de segurança, e fui deixando o barco correr. Também já estava
cansado de calmaria, mas agora tinha vento demais, apliquei o 2.º riso mantendo
porém a genoa.
Meia hora depois, o vento arriou e fui dormir, descansar. Temos que nos manter
sempre em forma, pois, mesmo nos trópicos, nunca se sabe quando vai surgir a
próxima oportunidade para deitar.
O tanque de óleo diesel apresentou um pequeno vazamento, que torna o ar
irrespirável, principalmente quando se é obrigado a manter o barco todo fechado por
um longo período de tempo.
Deitei-me e tentei dormir, mas era impossível. O vento era de rajadas, e a cada
rajada me levantava para conferir as coisas.
Ficou impraticável, fui obrigado a lançar mão do 3.º riso, pois o leme de vento
estava todo de lado, e o barco só faltava voar.
De repente, lembrei-me de casa, parece que olhei para a frente. “O milagre”. Há
muito tempo que aguardava chegar a uma tal fase da viagem, em que pela frente
faltasse menos água que para trás, ou em que ir em frente se tornasse mais fácil do
que voltar. E, agora, parece que olhando para casa, olho para a frente. É o Milagre.
Parece que hoje cedo é dia de dormir, e a coisa aperta de novo. Pensei tratar-se
de uma nuvem, mas a nuvem passou e o vento não cedeu, pelo contrário, aumentou.
E então fui forçado a tirar a genoa. Pensei ser melhor tirar o relógio do pulso, mas
depois pensei. Caso caísse n’água não saberia a hora. Que pensamento macabro. É
bom mesmo deixar de brincadeiras. Pus o cinto de segurança e fui à proa. O vento
estava tão forte que não sabia como iria arriar aquela genoa. Pra dentro d'água,
naturalmente, pois parecia não haver força humana capaz de puxar aquela vela para
dentro. Lembrei-me de Jack e o riso irlandês. O camarada passa a faca na vela para
salvar o barco. Fui soltando a driça devagarzinho e a vela foi descendo. Fui à proa
com a driça na mão, aproveitando o balanço, fui botando a genoa para dentro até que
ela ficou dominada. Icei o yankee, mas parecia ser muito pano. Pensei em apelar para
o tormentim. O tempo foi passando, mas o vento não cedeu. Apenas o mar ficou mais
grosso. O leme sempre no fim de curso e a água correndo por cima do convés. Tornei
a decisão de arriar a grande, ficando apenas com o yankee na proa. O barco continua
andando bem, tornando-se porém mais fácil manter o rumo. Tudo faz crer que a vela
grande já devia ter sido arriada há mais tempo, pois não está fazendo falta nenhuma.
13 de julho de 1980

Amanheceu, o vento espantou as nuvens, mas ele não cedeu, continuou duro. De
vez em quando, uma onda se precipitava sobre o convés, e o ponto astronômico,
apesar do sol visível, tornava-se muito difícil por causa do balanço, e do horizonte
indefinido. Em vez da linha do horizonte tínhamos verdadeiras montanhas formadas
pelos vagalhões. Os tombos do mar arriscavam quebrar o sextante, e seus espelhos
funcionavam mal, sempre molhados. Com muito esforço fiz o ponto. Apesar de não
estar chegando, navegador sente uma necessidade constante de saber aonde está,
mesmo se está longe da terra.
Resolvi fazer uma sopa de aspargos. Nestes dias, procura fazer sempre algo que
gosto mais. A receita é fácil.
Uma lata de aspargos, uma de creme de leite, um pouco de aveia para engrossar.
Ferver durante 5 minutos, e pronto.
Faltam 480 milhas. Espero que o mar se ajeite antes da gente chegar. O
barômetro não tem vergonha, continua em alta, nem tomou conhecimento dos fatos.
Ainda estes dias, estava pensando, não vou demorar muito pelas ilhas, pois
tenho que voltar ao Brasil e dar logo esta mensagem aos “jovens brasileiros”, de que
isto aqui é lindo e de que é preciso navegar.
No Brasil, com uma tão vasta extensão da costa marítima, o esporte à vela é
pouco difundido, são pouquíssimos os que o praticam. Daí a razão da minha
mensagem, mas faltava acrescentar, “venham, mas venham com raça”.
Mas não tive outro jeito. Antes que escureça, e a gente fique se batendo no
escuro, o yankee desce, o tormentim sobe. É a primeira vez que o Três Marias veste
esta camisa.
Pareceu tão pequeno, e capaz de suportar ventos muito mais fortes, aliás
felizmente.
É de pano grosso, armado com cabo de aço e uma costura impecável. Ele me foi
ofertado gentilmente por Dick Johnson, comandante do Ingrid, quando passou por
Salvador.
É realmente bom ter um tormentim. Aliás, indispensável.
Com vento de través, avançamos com 2 ou 3 nós, e está dando provavelmente
uma deriva considerável.
Segundo a rádio de Tahiti, nas Marquisas, o vento é sul, com 20 a 30 nós, e mar
agitado. Tudo bem.
Sintonizo a Rádio Nacional, o programa Brasil Saudade, me lembrei de minha
Mãe.
14 de julho de 1980

Durante a madrugada o vento rondou ficando mais brando pela manhã. Mas já
não confio mais nele. Vou aguardar um pouco mais para ver as suas intensões.
As nuvens vão prejudicando a navegação e estamos a apenas 380 milhas das
Marquisas.
Depois de tantas mudanças, quem quiser que preveja o tempo, eu é que não me
arrisco.
Com a instabilidade, estudei tudo de novo, inclusive as alternativas caso ele se
complique. Aos poucos vou me adaptando aos novos parâmetros deste oceano, mas
leva tempo.
O vento melhora um pouco, mas resolvo ficar com pouco pano até recuperar o
sono atrasado, só depois iço a vela grande.
15 de julho de 1980

Tempo bom.
Acordei antes de amanhecer, icei a genoa. Novamente estamos contando as
milhas que faltam. E um vício.
Fiz a manobra e voltei a dormir, aproveitando a fresca da manhã. P, sem dúvida,
a melhor hora para dormir.
Quero ver se chegando às Marquisas tiro uma noite para dormir direito, mas,
talvez nem consiga. Acordar já virou rotina, mas o certo é que preciso de uma
descansada. Um repouso merecido, para quem atravessou sozinho o Oceano Pacífico.
O problema do solitário é que ele está eternamente de quarto, amanhã já
completo quatro meses que deixei Salvador, já tenho hoje 67 dias de mar, sempre de
quarto, sempre pronto, sempre dormindo acordado.
Qualquer ruído estranho, um balanço diferente, qualquer suspeita, a gente
levanta, olha as coisas lá fora, confere o rumo. Mas a gente nunca desliga.
17 de julho de 1980

Passaram-se mais dois dias e completamos 22 dias de mar. Pela manhã, faltavam
75 milhas até Fatu Hiva.
As chances de avistar a ilha, ainda com luz do dia são remotas, principalmente
porque não fazemos rumo direto. De popa não dá no rumo, nem pela aleta. E aquela
brecha que não dá para um nem para o outro.
Agora o céu está encoberto, não se pode fazer a navegação. Aguardemos.
A bombordo temos nuvens meio escuras, mas nada podemos fazer,
principalmente porque estamos com todo o pano, em cima.
A nuvem de bombordo passou, agora temos outra pela popa.

E o impasse. Se arrio a genoa, não chego. Se deixo, posso ter embaraços.


Chegar lá com a luz do dia é impossível, mas gostaria de pelo menos avistá-la
ainda com luz, o que seria uma grande vantagem.
Mal passa uma formação e já vem outra enfiada.
A ilha, apesar de pequenina, tem 1000m de altura. Em dias claros, poderia ser
vista facilmente a 30 milhas, mas, geralmente, se forma um nevoeiro, na parte
superior dos montes, reduzindo a visibilidade.
Os aguaceiros foram passando um atrás do outro, mas não eram pesados.
Ameaçavam mais do que faziam, e com isto, iam trazendo mais um pouquinho de
vento.
São 3 horas da tarde, faltam, pelas minhas contas, apenas 30 milhas.
Como último recurso, ligo também o motor, para garantir um mínimo de 6 nós,
pois o vento reduziu. O resto agora é aguardar, e gastar os olhos no horizonte.
Às quatro da tarde, veio um aguaceiro que tapou tudo. Veio muito vento e muita
chuva. Tive que risar a grande apesar de deixar a genoa facejando um pouco.
Um bando de aves marinhas enfrentava comigo o aguaceiro. Eu só queria saber
falar a sua linguagem, e perguntar-lhes aonde fica a ilha.
O aguaceiro durou hora e meia. Já ia desistir, pôr o barco na capa, quando
clareou um pouco e avistei a ilha.
A emoção foi grande, após 22 dias entre céu e mar. Tinha concluído a travessia
da parte deserta do Pacífico.
Umas nuvens negras vão se formando por bombordo, acabou o vento. Tudo
fechou, mas já tinha marcado o rumo.
Escureceu quando estávamos a 6 milhas da ilha, tudo ficou turvo. Nada se via.
Na ilha, nem uma só luz.
A ilha desapareceu, e o seu lugar se distinguia apenas pela indefinição da linha
do horizonte.
Dificilmente teríamos uma chance de entrar à noite. A lua de quarto estava
coberta pelas nuvens, não existe ali um só farol.
Instalei o barco na capa, avançava talvez a um nó. Enquanto o barco se afasta da
ilha bem devagarzinho, vou tirando meus cochilas. As 2 horas da manhã, virei de
bordo, vim voltando, à mesma velocidade, percorrendo exatamente o mesmo
caminho, só que desta vez, no sentido contrário.
As quatro da manhã já avistava a ilha de novo. Como era cedo tornei a voltar
para repetir a manobra. O importante era não perder a ilha de vista.
100 Com o barco na capa, o tormentim passado ao contrário, e a vela grande no
3.º riso, criava-se um rebojo que inclusive amansava as ondas, dando ainda mais
conforto. Esperamos clarear, enquanto o vento assobia lá fora... Vênus aparece
dizendo que o sol já vem aí. Aproveito para fazer um mingau, e descansar os olhos no
interior da cabine, que de tanto encarar o vento estavam doloridos.
18 de julho de 1980

E começaram a aparecer as primeiras cores. Como é desejado este alvorecer.


Viramos de bordo novamente, indo agora em busca da ilha. Vemos no momento
apenas uma sombra muito vaga, mas pelo rumo só pode ser ela. E a ilha foi crescendo
à minha frente. Pouco a pouco os seus detalhes foram aparecendo. A vegetação, o
relevo, os pontos de terra avançados para o mar.
Tive que tomar uma série de alinhamentos para poder ver com clareza o local
procurado. Até agora vemos uma ilha deserta, a Baía das Virgens ainda não foi
localizada. De repente uma vela, deve ser lá. Aproveitei para ligar o motor, tínhamos
o vento de proa.
O barco surgiu todo de repente, só pode ter saído de uma baía. Como ele vem
costeando a praia, é sinal de que lá é fundo, e podemos nos aproximar mais um
pouco. Infelizmente não tenho a carta de aproximação. Temos a de escala geral, e o
detalhe do interior da baía. Aos poucos fomos entrando a sotavento da ilha, e pude
aumentar a máquina. O relevo de Fatu Hiva é algo impressionante. São aquelas
cumieiras descendo do alto até o mar, cobertas com vegetação rala em alguns lugares,
com diferentes matizes ou cores, desde o verde cana ao verde azulado. No fundo da
baía, 6 barcos. Um vai saindo, o Três Marias vai entrando. A região rasa é muito
pequena e tem Swell. Assim tive que ficar em um lugar apertado e com 8m de água,
que logo em seguida desce para 20m. A corrente, durante todo o tempo, faz um ruído
de quem se arrasta sobre pedras. Felizmente, consegui esta corrente com Carlos
Alberto, do Brisa, é a corrente mágica que vem me salvando. Aqui perderei parte da
galvanização, mas caso fosse cabo de nylon, seria um cabo por dia.
Mas o importante é que tinha chegado à Polinésia.
19 de julho de 1980

Aproveitei para conhecer um pouco a ilha, matar a saudade de pisar em terra


firme, mas tive que dormir cedo, pois, a noite anterior fiquei na capa e dormi muito
pouco.
Entrar à noite, aqui, seria duro. Mesmo de dia tive que dar várias voltas até
encontrar um lugar razoável. Sinto que cada vez mais vou aprendendo, e, aos poucos,
vou estabelecendo o meu domínio sobre as manobras do barco. Cada dia conheço
melhor o Três Marias. Cada barco tem, por assim dizer, o seu caráter.
Lembrei-me agora, novamente, de quando estava umas 25 milhas da ilha, e caiu
aquele aguaceiro. Bandos de gaivotas estavam lá fora, e faltava pouco para escurecer.
Era chuva grossa, muito vento, mas elas voavam na sua. Naquele instante
ninguém sabe como, mas só elas sabiam aonde estava a ilha tão procurada.
As aves marinhas exercem sobre mim um verdadeiro fascínio, principalmente as
que planam, as que voam ser bater as asas, as que encontraram uma maneira racional
de aproveitar a energia existente na própria natureza. Estão a milhões de anos na
frente, de quem tem que queimar gasolina para se locomover.
O homem não desenvolveu em si estas habilidades, mas desenvolveu a cabeça.
Assim sendo, invejou a todas as aves e animais.
Com um bastão como ferramenta, afugentou as feras mais ferozes. Amarrando
nele uma lasca de pedra, dominou todos os animais.
Cobiçou o voo das aves, e fez o avião, a asa voadora, e foi além. Com o foguete
foi ao cosmos.
O homem chegou à conclusão de que através da evolução, valendo-se da teoria
de Darwin, levaria milênios se exercitando até criar as asas. Úteis para voar, seriam
inconvenientes para outras manobras.
Mas não foi só as aves que o homem invejou, e roubou-lhes o segredo do voo.
Dominou também as feras. O leão enjaulado e faminto veio comer na mão dos
homens, o rei dos animais.
A todos transformou em animais domados, em animais domésticos.
Com a experiência que adquiriu nesta última manobra ele foi adiante.
Se foi com a fome que ele dominou o leão, foi com a mesma fome que ele
dominou o seu semelhante, e “fez do próprio homem o seu melhor animal
doméstico”.
Cansado de caçar feras inferiores, fez as guerras, a caça ao próprio homem. A
caça ao animal mais perigoso. A caça ao animal inteligente. E hoje, vivemos um
momento, em uma sociedade, onde tentamos escapar de ser caça, tentando escapar,
ou pelo menos, ser menos animal doméstico do sistema. Da exploração do homem
pelo homem.
Por estes dias estou em fuga, como um animal doméstico que partiu a coleira,
que furou a gaiola, ou pulou a cerca, e está vagando por aí, até que a fome que
domara a todos os seres livres deste planeta faça com que eu pule a cerca de volta,
entre de volta pelo furo da gaiola, ou novamente vista a canga, e me desespere com
os outros a girar a grande roda de engrenagem da nossa sociedade.
O homem castrou o próprio homem. Criou leis, fronteiras, religião, burocracia,
estado, tudo em nome do bem. Mas, na realidade, isso tudo tirou todo o gosto de
viver. Reduziu a vida a um preencher de formulários, a um pagar impostos, entrar em
filas, cumprir regulamentos, bater cartão de ponto.
Quando a gente está na cidade, às vezes, nem se lembra que poderia existir um
outro tipo de vida, sem estes embaraços, sem tanta teia de aranha, sem tanto espeto
pra quebrar nos peitos.
O homem cansa, e quando olha para trás, não fez nada a não ser lutar contra
dificuldades fictícias, e não dificuldades reais, naturais.
Lutou apenas, ou na maioria das vezes, contra dificuldades que ele próprio
criou, como se fosse um jogo. Fazer da vida um saltar de obstáculos. Só para ver
como fica.
É como lutar esgrima com a sua sombra. Nunca se ganha e se termina vencido
pelo cansaço.
E é de longe que se vê isto com maior clareza. Ds bens da civilização não
compensam. Pois, em troca, lhes damos, na bandeja, a nossa liberdade.
Se a gente puder dar umas fugidas, ainda que temporárias, vale a pena.
23 de julho de 1980

Passei 5 dias em Fatu Hiva. Na realidade, lá não é um porto de entrada.


Teria que aterrar primeiro em Nuku Hiva ou Hiva Oa, e de lá, após depositar
uma quantia suficiente para comprar uma passagem de avião até o país de origem,
garantindo um possível repatriamento em caso de naufrágio, é que a gente pode
passear a vontade.
O dinheiro da caução seria devolvido em Tahiti, antes da saída, ou de outra ilha
que tivesse banco.
Apesar de não poder ficar, terminei dando um jeitinho e fiquei 5 dias. Fazendo
amizade e batendo papo a gente vai longe. Não queria ir a Hiva Oa, depositar a
caução e voltar aqui, pois o mundo é muito grande, e a gente não pode se dar ao luxo
de estar repetindo viagens.
Logo no primeiro dia fui fazendo amizade com os habitantes locais. Gente muito
boa.
O lugar aqui é tão bom que o dólar não foi aceito. Eles preferiram a troca. Creio
que isto, da troca, define qualquer parâmetro.
Troquei esparadrapo, caneta esferográfica, camisa de meia, aspirina, balas de
rifle 22, por frutos da terra, bananas secas, carne de bode caçado nas montanhas.
A Baía das Virgens é na realidade chamada Hanavave, e tem 100 habitantes.
O relevo muito acidentado, cheio de cristas, entrecortadas por vales, onde os
córregos nunca secam, e a água não pára de correr.
Os picos das montanhas, sempre nas nuvens, terminam sendo uma fábrica
natural de água, tornando os vales de uma fertilidade impressionante.
Aqui tive medo de deixar cair uma moeda, e nascer um pé de dinheiro.
Fui passear pelos vales, seguindo os córregos até chegar a uma bacia natural,
escavada na rocha por uma queda d’água de 60m de altura. Na bacia, um punhado de
camarões de água doce.
No segundo dia, que era domingo, fizemos um passeio à cidade que ficava mais
ao sul, Umoa. A expedição era formada de 6 pessoas, todos de outros barcos e com as
mais diversas nacionalidades.
Como as rochas descem quase a pique para dentro do mar, o único caminho
viável é por cima das montanhas.
Subimos a uns 700m e descemos para o outro lado da ilha, após apreciar uma
vista belíssima.
No topo das montanhas, o vento soprava com vontade. Sentia-se a pureza do ar.
A medida que caminhava, e cansava, eu parava, voltava-me contra o vento, abria os
braços, abria a boca, e respirava com vontade de engolir o mundo.
Umoa, apesar de ser maior, e ter 300 habitantes, tem um porto menos protegido.
Foi por isso que não fomos lá de barco e sim a pé, pelas montanhas.
Hanavave também não é protegida, mas ainda dá para ficar.
O pior é o vento que desce canalizado das montanhas, assobiando nos estais e
adernando o barco, mesmo sem uma só vela, ancorado na pequena baía. Neste
instante a corrente faz um barulho muito desagradável, arrastando-se pelo fundo das
pedras.
O povo é bonito, tranquilo e bem alimentado. Aqui não se conhece a fome.
Os homens trabalham, assim como as mulheres – na copra, no café, ou no
cultivo de laranjas.
Os homens pescam de arrasto, com suas canoas estilizadas, hoje feitas em
compensado leve, e munidos com motor de popa, além dos remos para emergência.
A canoa tem sempre um flutuador do lado, que a impede de virar. É o catamarã
polinésio.
O homem usa calção, camisa e chapéu. As mulheres usam a calcinha e um pano
amarrado por cima dos peitos, que lhes serve de vestido. As cores são lindas.
As jovens, quando se juntam para jogar vôlei, é um tal de cair o pano, enrolar o
pano, que dá gosto.
As famílias são bem estruturadas, não tinha ninguém separado na ilha, e na
maioria das vezes tinham de cinco filhos para cima.
Todos, adultos e crianças, trabalham no cultivo da terra ou na construção das
casas. As mulheres carregavam sacos de coco nas costas, sem frescura.
Enquanto as jovens são esbeltas, as mais velhas vão engordando, mas, mesmo
assim, continuam bonitas.
Com tantos barcos no porto, cada dia o jantar era em um barco diferente e nos
cinco dias que passei aqui só preparei uma refeição a bordo. A gente se diverte, troca
idéias, informações sobre o roteiro, sobre a vida em geral.
Hoje deixo o porto de Hanavave às 8 da manhã, com apenas o yankee e o grande
na 3.' forra de riso, do mesmo jeito que tinha entrado.
O vento soprava, canalizado por entre as montanhas, mas assim que me afastei
um pouco da ilha aquela brisa suave nos envolveu, e o tempo claro nos permitiu ver
as ilhas do norte a 35 milhas de distância.
Apesar de brando o vento, mantive o pano reduzido, pois o dia era tão lindo e
me envolveu uma preguiça danada. Nuku Hiva fica a 130 milhas, e como tinha
dormido pouco a noite anterior, nas farras dos outros barcos, resolvi repousar. Depois
me levantei e fui comer carne de bode que fritei pela manhã.
Tinha trocado um pernil de bode e o fígado por 10 cartuchos calibre 22. O pernil
dormiu no sal e alho, e hoje cedo foi para o fogo. É a primeira vez que preparo carne
fresca a bordo em toda a viagem.
Carne de bode frita, com arroz e laranjas cortadas, água de coco verde da
Polinésia, foi o meu almoço e sono de novo.
Via as ilhas. A navegação era pelo olhômetro.
O tempo era maravilhoso. Aproveitei para cortar as unhas, fazer o planejamento
econômico, o orçamento, o balanço do que gastei até chegar a esta parte do mundo, e
só depois resolvi aumentar a área vélica, passando da 3.‘ para a 2.' forra de riso.
Avançamos a 4 nós. Para que mais, se a vida está correndo suave. Só vou
aumentar o pano provavelmente amanhã de madrugada. Estou no mundo da
tranquilidade, somente aquele murmúrio do mar.
Em Hanavave fui informado de que Jack, do Oxigene, estava em Nuku Hiva, e
provavelmente iríamos nos encontrar. Tínhamos nos tornado grandes amigos, e este
seria o 5.º porto de encontro, desde Aruba.
A viagem prosseguiu tranquila, mas, à noitinha, ao passar a sotavento da
Tahuata, apesar de deixar uma boa distância da ilha, ficamos encalmados. E que estas
ilhas são muito altas, barrando o vento com facilidade.
Para evitar perder a entrada em Nuku Hiva à luz do dia, liguei a máquina. Foi
bastante sair detrás da ilha que o vento apareceu, aliás ele sempre esteve aí.
Pela manhã avistei Ua Pou, Ua Ruka, e logo em seguida a 40 milhas avistei
Nuku Hiva. Resolvi içar a genoa, para aumentar o seguimento, apesar de estar com
muita preguiça. Parece que a natureza me envolvera, com a sua beleza, a ponto de me
deixar abestalhado.
São 2 da tarde, e aproximo-me da entrada da Baía de Taiohae. A formação
montanhosa, como aliás de todas as Marquisas, é muito bonita. Posso afirmar que
Fatu Hiva tem a mais bela formação montanhosa que conheço, comparável à Cidade
do Cabo. Só que aqui a beleza é mais pura.
Cruzamos, no início da tarde, a entrada da baía, demarcada por duas ilhotas,
Sentinela de Leste e Sentinela de Oeste, aliás solenemente, como se fossem duas
balizas instaladas pela própria natureza.
De longe, avistei um barco com dois mastros. Só pode ser o Oxigene.
29 de julho de 1980

Dexei Nuku Hiva, a Baía da Taiohae, às 9 da manhã. Tinha acabado de entrar


um novo barco, e já éramos 8 barcos no porto.
Levantei a âncora, fui no motor dando umas voltas, para me despedir dos
amigos. Por último me despedi de Jack, Arianne e sua filhinha, a pequena Natalie. A
nossa amizade foi aumentando em cada porto, este era o 5.º porto. Aruba, Colon,
Balboa, Toboga, Nau Hiva.
Saímos aqui com Jack para mergulhar e catar búzios que era o passatempo
preferido de Arianne, que já tem uma grande coleção.
O pior é que a maioria dos peixes é venenosa. Após pescá-los, temos que
mostrar aos nativos, para saber se podemos comê-los. Também o local em que foram
pescados é importante. Em caso de engano, a pessoa pode morrer, ou pelo menos,
ficar toda inchada, com os olhos arregalados por uns 4 dias.
Daqui seguimos para os Tuamotus, o arquipélago dos atóis, das ilhas baixas, das
passagens estreitas para o interior das lagunas, onde a correnteza pode atingir, às
vezes, até 8 nós de velocidade, e a gente tem que esperar, para entrar na estofa.
As passagens para o interior dos atóis, de suas lagunas, são estreitas e perigosas,
e um sem número de barcos tem deixado sua história terminar neste arquipélago,
deixando as suas quilhas dependuradas nos corais. Todo cuidado aqui é pouco.
Os calos que fiz nos pés, indo de Hanavave para Umoa, em Fatu Hiva,
inflamaram, criando uma íngua, tive a impressão de ter um pouco de febre, aquele
estremecimento no corpo, mas como hoje acordei mais animado, resolvi não adiar a
viagem.
Ontem jantei a bordo do Oxigene, comemos o peixe que pegamos no mergulho,
preparado ao forno por Arianne, comandando a cozinha francesa.
A gente do mar é fraternal, muito amiga, a solidariedade está sempre presente.
O vento está firme, o Três Marias avança bem, e ao longe, meio dentro das
brumas, ainda se avista Nuku Hiva.
Este lugar deu o que pensar.
Trata-se de uma cidade com mais de 1000 habitantes, onde já se sente a reação,
a presença do francês como colonizador.
Aqui já tem alfândega, armada, coletoria fiscal, etc..., cargos todos ocupados por
franceses, impostos sem dúvida.
Vejo, com muita simpatia, este movimento, pois nada mais é do que uma
tentativa de preservar o que há de mais sagrado de um povo, sua cultura, sua tradição.
O europeu pouco acrescentou à sua arte, e vem, na realidade, comprar as suas
esculturas, que até hoje são feitas à moda antiga.
A religião, hoje são quase todos católicos, não tem servido a outra causa, senão a
de tornar os nativos animais domésticos. Torná-los submissos aos colonos. Os
religiosos trabalham sempre ao lado dos franceses e são incalculáveis os prejuízos
que estes jesuítas vêm trazendo à comunidade local.
Dizem que antigamente as tribos eram guerreiras, se digladiavam e se comiam.
Eram canibais. Mas antes canibais do que submissos e inúteis.
É por isso que tenho o maior amor por um povo quando rebelde, quando não se
adapta ao colonizador, e um dia o põe para fora, antes que seja tarde.
Aqui felizmente a natureza é agreste. As montanhas têm abismos e grotas
intransponíveis, e o francês ainda nem conseguiu fazer uma estrada carroçável que
ligue um extremo ao outro da ilha.
As febres e os mosquitos são os maiores aliados dos nativos.
Lembro-me sempre do Hawai, pobre gente.
Há anos atrás, com a desculpa de não ter que pagar a taxa sobre a importação do
açúcar, convenceram os antigos reis locais a assinar um tratado, fazendo parte dos
Estados Unidos da América do Norte. Logo em seguida fomentaram um golpe,
encarceraram os reis, os últimos líderes daquele povo, e incorporaram
definitivamente o território. Correu dinheiro grande na manobra.
Em seguida começou a invasão pelo estrangeiro. Hoje, os pobres nativos, que
venderam as suas terras e gastaram naturalmente o dinheiro tomando coca-cola, ou
outro produto que a sociedade de consumo introduziu como uma nova necessidade,
estão reduzidos a 15% da população, não conseguindo nem mesmo escolher o seu
prefeito. São olhados como inconvenientes, indesejáveis, ou até mesmo intrusos.
Os pobres nativos não souberam fechar as portas na hora certa.
Já não são mais eles que fazem as suas leis, nem elas são feitas a seu favor. O
máximo que ainda lhes é permitido é que suas filhas lindas dancem balançando as
cadeiras para o prazer dos gringos.“Esta é a triste história de um povo”.
Aqui os franceses ainda são apenas 10%, mas a luta já começou.
Eu não tenho nada com isso, mas a gente termina sofrendo por um povo que não
tem amadurecimento político, nem visão suficiente, para fazer frente a esta grande
máquina que é o sistema ocidental, que corrompe e corrói qualquer povo, com a
maior facilidade.
Eles geralmente são amáveis com os turistas, mas se você vem tentando se
estabelecer, por aqui, eles boicotam, não ajudam, o que aliás está muito certo.
Não sou contra o francês. Sou contra o colono. Não há colono bom, nem mesmo
pintado de ouro.
Segundo os próprios franceses, eles vão perder as ilhas, começando pelas do
Caribe, como a Martinica e Dominica, e já está demorando muito.
Se os ingleses colonizaram a Índia, a China, lá, os nativos eram milhões; os
ingleses foram absorvidos e se retiraram. Mas aqui os nativos são pouquíssimos e
facilmente seriam passados para trás.
É um povo calmo, muito limpo e passa a vida a banhar-se nos mil córregos e a
adornar-se com flores perfumadas. Suas casas estão sempre rodeadas de árvores
ornamentais de todas as cores.
Suas festas são coloridas, vestes, comida, a mesa sempre forrada com folhas
verdes e a casa cheia de flores silvestres.
Sua música doce reflete a paz que ainda reina em suas almas.
A febre do dólar ainda não baixou por aqui. O homem não tem pressa de ganhar
dinheiro.
Isto aqui ainda é um paraíso esquecido, que, com a invasão do homem branco,
do homem ocidental, poderá se transformar facilmente em inferno.
31 de julho de 1980

Mar calmo, vento suave. O Três Marias está fazendo 130 milhas diárias.
Céu estrelado, mar azul, dias maravilhosos. Exatamente tudo aquilo que vou
precisar daqui a dois dias, quando deveremos estar às portas do arquipélago dos
Tuamotus.
Os atóis são pequeninas ilhas, que às vezes até já submergiram, deixando em
volta de si um enorme anel de coral, formando uma grande laguna ligada ao mar por
pequenas entradas, por onde toda a água se precipita nas enchentes ou desce em louca
disparada nas vazantes.
A entrada noturna é impraticável, mas, mesmo de dia, o ideal é entrar na estofa,
na parada da maré, quando a correnteza, que varia de 4 a 8 nós, pára por uma meia
hora, para inverter o seu sentido.
Fiz logo um estudo múltiplo, para Manihi e para Rangiroa, para entrar no atol
mais próximo no momento mais adequado.
A hora da parada da maré se dá em função da posição da lua, que no momento é
de quarto minguante.
O Sailing Directions americano diz o seguinte a respeito das marés nesta região.
Gorre te de maré: Na maioria das entradas para as lagunas, nestes atóis, existe
uma forte correnteza de maré que se apresenta e se inverte em intervalos de
aproximadamente 6 horas. A altura da maré é de aproximadamente 2 pés (0,60m).
O tempo, em condições normais, quando a corrente muda de direção, pode ser
estabelecido da seguinte forma: Três ou quatro horas após o nascer da lua, água
parada. Quatro horas após o nascer da lua, começa a corrente para dentro.
Uma hora antes do pôr do sol, a corrente para fora começa.
Três ou quatro horas após o pôr do sol, água parada.
Uma hora antes da passagem da lua pelo meridiano inferior, começa a corrente
para dentro.
Uma hora antes do nascer da lua, água parada por pouco tempo.
Como pode-se ver, não basta chegar lá de dia. Tem que se chegar lá de dia e na
hora certa de entrar.
Aproximar-se das ilhas à noite é muito perigoso, pois só se tornam visíveis a
meia milha, ou menos. Num caso de chuva ou aguaceiro, a pessoa corre sério risco de
não saber para onde ir, a fim de evitar o perigo, e são muitos atóis, uns quase pegados
nos outros.
Se o vento se mantiver, a chegada se dará quando a lua se põe, às 11 horas da
manhã, e 3 horas depois teremos água parada. Quatro horas depois a corrente começa
para dentro.
Entretanto, na enchente a correnteza nas bocas de entrada é menor, pois as ondas
jogam água para dentro, quando a arrebentação consegue passar por cima dos
arrecifes. Na saída a correnteza é maior, pois toda a água tem que passar pelas bocas
estreitas das pequenas falhas no arrecife que forma a laguna.
Aproximar-se dos atóis à noite é muito perigoso, portanto nosso plano é chegar
lá às 2 horas da tarde.
Os atóis são tão baixinhos que vê-los à noite é quase impossível. Teremos que
fazer navegação à noite, pelas estrelas, utilizando o horizonte iluminado pela luz da
lua.
Para utilizar este processo, treinei em Nuku Hiva, enquanto ancorado no porto e
conhecendo perfeitamente a minha posição, apenas para aferir o olho, para saber se
estou conseguindo ver o horizonte iluminado pela lua. Chegou-se à conclusão que,
com os meus olhos, precisa-se sempre adicionar à leitura do sextante 5 minutos e
pronto. Este processo é descrito com perfeição no livro de Bernard Moitessier.
Feito o estudo, de posse de todos os dados, tomo coragem, e o Três Marias
avança rumo a Tuamotus, um arquipélago formado por atóis, que nem cavernas
lunares arrodeadas de água, com muita correntada e pouca visibilidade. A expectativa
é grande.
O tempo está lindo, mas ainda faltam 2 dias para chegar, e prever o futuro em
meteorologia é algo muito difícil.
Aproveito para ouvir o rádio e descansar. A gente tem que estar sempre bem
descansado e tranquilo.
Ontem caiu um peixe na linha, virou peixe-frito, salgando sempre uma parte.
Hoje, por ser o último dia do mês, fiz o resumo.
Total de dias 136 dias no mar 72 dias em terra
64 milhas navegadas 8.390 média diária no mar 116 milhas/dia média global
(terra e mar) 62 humilhas/dia.
A média baixou muito após o trecho Panamá-Galápagos.
Como resultado destes dias todos a bordo, sinto a circulação ficar um pouco
deficiente, por falta de exercícios. Aqui a gente quase não anda. Fica-se mais em pé,
na descida da escotilha, ou sentado.
Lembro-me que ao chegar em Fatu Hiva e dar uma longa caminhada senti
cãibras nas pernas, mas, no outro dia, já estava bom.
1 de agosto de 1980

Nestes três dias percorremos 400 milhas. Faltam 97 para Manihi.


Dias maravilhosos. Céu sem uma s6 nuvem. Tudo perfeito, que dá para
desconfiar.
Saudades do Brasil.
Ponho uma fita de Diana Pequeno, esta voz de anjo que enche o barco e aperta o
coração da gente.
Ontem, pela primeira vez, ouvi o radiogoniômetro acusar Manihi ( – – ...) em
280 KHZ, isto é muito bom.
Hoje consegui escutar a rádio de Tahiti, em ondas longas, isto tudo é sinal de
proximidade.
A gente vai se aproximando, mas aqui não há nada fácil. Fácil é o que ficou para
trás. O que está para frente é sempre difícil.
Agora é a vez de Clara Nunes. Que saudade de casa, dos filhos, dos pais, dos
amigos, daqueles locais queridos, das praias de Arembepe, da Ribeira, das Ilhas da
Baía de Todos os Santos, do Nosso Samba, do Nosso Povo.
São 18h 30m. O sol vai se pondo, fazendo um contraste forte do seu vermelho
intenso, por baixo das nuvens.
O tempo mudou, mas ainda são nuvens de bom tempo, nuvens ralas, espaçadas.
Aguardo agora para fazer o ponto pelas estrelas. Durante o dia, fazia pontos
regularmente, de duas em duas horas. Só pontos consecutivos, através da análise da
progressão, nos oferecem a certeza da posição.
Estamos a 60 milhas da ilha, a 80 milhas do porto, mas como estes atóis talvez
só sejam visíveis à noite, quando se está montando por cima da arrebentação, todo
cuidado é pouco.
Lá pela meia-noite, a lua foi nascendo no horizonte, e resolvi não deitar mais.
Sentado junto ao leme ou indo toda hora lá na proa, tentava ver o menor sinal de
rompente, ou algo que me pudesse indicar um perigo.
Lembrei-me que Fatu Hiva, com 1000m de altura, a 5 milhas de distância, era
nada mais que uma sombra difusa, capaz de ser vista apenas por se saber onde ficava.
Não sei quem foi que me contou sobre um alguém que desceu para fazer um café e
pronto.
Foi o suficiente. Montou por cima dos arrecifes.
É nestas horas que tomo o maior cuidado, sinto como é grande a vontade de
chegar em casa com este barco.
O vento refrescou e andamos a pelo menos 5 nós.
Gostaria de andar mais devagar, nesta noite de expectativa.
Fiz rumo com 20º fora da ilha, para corrigi-lo no amanhecer.
Não tive coragem de fazer proa direto em cima dos corais.
2 de agosto de 1980

Continuo a olhar o horizonte, tentando ver, na escuridão, algum sinal de perigo.


Esta noite vai ser longa e o dia vai demorar de se fazer presente.
Às quatro da manhã, arriei a genoa, estávamos andando demais e, caso
passássemos do ponto desejado, a volta seria mais difícil.
Quando me virei, avistei aquela luz que confundi com um veleiro e por isso
acendi as luzes de navegação, mas era Vênus. Não o reconheci logo, pois, com a
mudança do rumo, este planeta apareceu em outra posição.
Pensei em aproveitar para fazer um ponto, mas, com o horizonte pouco visível, o
resultado seria de pouca confiança. A ter um resultado duvidoso, é melhor não tê-la.
Deu cinco da madrugada e nenhum sinal de terra. Aliás, felizmente.
Uma luz branca veio se aproximando, e acendi de novo as luzes de navegação.
Desta vez era mesmo um veleiro.
Será que foi precognição a confusão anterior de Vênus? Como consegui
confundi-lo com um barco, se o conheço tão bem? Provavelmente, de alguma forma,
sabia que um veleiro estava próximo, algum tipo de sentimento, não me pergunte
qual. O barco veio se aproximando, e dei sinal de luz. Ele apagou a luz branca no
topo do mastro e acendeu as luzes de navegação. Via a luz encarnada.
O perigo é olhar para trás, para o veleiro, e esquecer de olhar para a frente, para
os possíveis arrecifes.
Clareou, e fiz o ponto pelas estrelas. Faltavam 24 milhas até o porto, mas
tínhamos que orçar, pois o vento tinha mudado. O vento mudava a toda hora,
melhorava, piorava, etc.
E bom a gente ver outro veleiro em pleno mar, principalmente por aqui, em
águas pacíficas.
Lá pela Indonésia, já estaria enchendo o pente da carabina de bala. Pois dizem
que tem muito pirata naquela zona.
Com a guerra do Vietnã, se espalharam tantas armas pela região, que será
preciso um século, para limpar a área. Todos os marginais andam por lá com
metralhadoras, montados em barcos velozes.
Continuei fazendo pontos pelo sol e utilizando radiogoniômetro. As 9 horas da
manhã, avistei o atol.
É como se víssemos um navio de muito longe, aqueles mastros, s6 que aqui os
muitos mastros são os coqueiros.
Ainda bem, pois, há uma hora atrás, com as rajadas, o vento negando, a borda
n’água, a genoa pescando, um ilhós da genoa no primeiro garruncho cedendo, e o
guincho já não estava dando conta da genoa, enquanto o barco se defendia como
podia. Agora a coisa melhorou muito, pois já avistei o atol. E se o vento mentir de
novo, o motor entra em funcionamento, para chegar lá na hora prevista, mas tentarei
vencer o que falta na vela.
Inicialmente os coqueiros apareceram em um lugar, depois passaram a 2, 3, 5
lugares, como diversas ilhotas, que finalmente se fundiram formando uma só ilha.
Dizem que alguns atóis nem atingem Sm acima do nível do mar, que as águas
levam toda a ilha, quando surgem maremotos.
Do mar, geralmente vemos nada mais que coqueiros crescendo em cima das
águas, só de bem perto se avista a ilha em si.
São onze horas, e como estamos a apenas 3 milhas, tirei a genoa, e icei o yankee
que é menor e mais fácil de manobrar. O porto porém é do outro lado, uma passagem
estreita entre os arrecifes.
Aqui, não temos carta de aproximação. Tudo é muito fundo ou muito raso. A
navegação é no olho, observando as quebranças.
A medida que contornávamos o atol, apareciam uns telhados. Talvez seja ali.
Vemos também uma clareira adiante, só vendo de perto.
O vento era contra. Tive que ir lá longe, então virar de bordo ao meio dia,
tentando então me aproximar de um lugar mais baixo que parecia a falha, a entrada
na laguna. Avançava devagar à vela e motor, tentando entrar lá na hora prevista.
A segunda clareira era bem maior, parecia ser a entrada, o “Passe” indicado nas
cartas francesas.
A carta que tenho é tão imprecisa, que nem permite usar bússola de alidade.
Fui bordejando. Ao me aproximar pelo outro lado, descobri que a grande clareira
não passava de uma parte baixa, mas o mar rasgava de fora a fora.
O mar estava revolto. As ondas que se propagavam à vontade, em fundo de
4000m, de repente encontram um atol, que sobe a pique, e a profundidade vai de
repente a zero. As ondas se chocam aí, refletindo, e na volta se encontram com as
outras que vêm vindo, formando um caldeirão fervendo.
O mar fica intragável. As ondas se transformam em vagalhões, são verdadeiros
montes móveis, que, zangados, só faltam derrubar tudo.
Tive que ficar o tempo todo amarrado. Não só não conseguia manobrar bem,
mas segurar a mim mesmo já era difícil.
Resolvi voltar para a primeira clareira.
Nas Marquisas me informaram que, bem no “Passe”, tínhamos um pequeno cais,
e em caso de emergência, seria possível atracar. Por isso instalei defensas dos dois
lados, preparei dois cabos de amarração, e com vento de través, fui em frente.
Resolvi arriar a vela de proa, pois, quando estivesse no "Passe” estreito, sujeito a
correntada, seria bom saber se iria segurar o leme, controlar a máquina, as velas, os
cabos de amarração. Um homem só para todas estas manobras. Neste instante eu
queria ter 10 mãos.
Arriando a vela de proa, tinha uma manobra a menos. O vento soprava duro.
Reduzi também a vela grande, empregando o 3.º riso, para tornar a manobra
mais fácil.
Ainda faltavam 2 horas para o momento ideal, mas teria que me aproximar mais,
para ver com clareza a passagem. Depois decidiria o resto.
A medida que me aproximava da barreira de coral, as vagas iam ficando mais
altas e o mar cada vez mais revolto.
Comecei a avistar os detalhes, as balizas da entrada, mas cadê os 80m que me
falaram? A passagem talvez nem tinha 30m.
O cais de um lado, o arrecife do outro, nunca mais de 30m.
Fui me aproximando, me afunilando, até que chegou a hora de decidir. Se não
voltasse naquele instante, já não daria mais para manobrar, pois estaríamos num
trecho tão estreito, que com a correnteza não seria possível manobrar. Ainda faltavam
2 horas, para a parada da corrente de maré, para o momento ideal.
Sabia que as águas estavam saindo da laguna, a corrente contra e a lua era de
quarto.
É sempre menos perigoso investir contra a maré, o que permite manter o barco
numa velocidade mínima, que a favor, como quem desce uma ladeira sem freio.
E de repente, me deu aquela vontade de enfrentar esta barra e acabar com este
sofrimento.
Aqui fora, o mar não estava fácil, só faltava me jogar fora do barco.
Provavelmente lá dentro estaria melhor.
Avistei um homem no cais. Me animei e aumentei a máquina. As vagas rompiam
de todo lado e o vento assobiava, enquanto o Três Marias investia pelo “Passe”.
Era tudo ou ada.
Naturalmente, os Polinésios estavam acostumados com estas barras. Mas é bom
lembrar que vim de Salvador, onde a entrada da baía tem 6 milhas de largura, onde
até um cego poderia ser piloto, e, mesmo assim, sempre temos um navio no Banco da
Panela.
Tinha que enfrentar. Se corresse desta vez, não iria mais parar de correr, pois o
Pacífico é todo cheio de atóis com lugares ainda piores. Quando escolhi Manihi, uma
das razões foi a entrada mais fácil, mais acessível, mas também ninguém poderia
prever o vento que deu pela manhã.
Se o vento estivesse fraco, não chegaria aqui a tempo: teria que seguir para
Rangiroa e de lá, com certeza, para Tahiti, sem escala, perdendo a chance de conhecer
os Tuamotus.
Mas o Três Marias já estava no funil. Voltar a esta altura seria tão difícil, que era
melhor investir; e vamos lá. Toda a máquina avante, e a vela ajudando. Contra,
tínhamos a corrente de maré.
O barco ia lá, ia cá. E eu dava no leme para corrigir a sua proa, e íamos
vencendo devagarinho.
Vencida a zona de quebranças, e estando já no canal, as ondas reduziram muito,
mas a correnteza aumentou. Era aquele mar fervendo, rebojo de todo o lado, e o leme
obedece mal em águas turbulentas, o barco perde muito o controle.
Fui me aproximando do cais, mas atracar seria muito difícil. Com este rebojo,
forçosamente iria danificar o barco, dar uma raspada no cais. O ideal seria entrar
direto.
As duas defensas que instalei de um lado não seriam suficientes para amortecer
a porrada, quando a correnteza desgovernasse o barco. Passar as outras duas para este
lado era impraticável, pois não podia nem por um instante soltar o leme.
Gritei para o homem do cais: “E o canal”? Ele me indicou com a mão.
O seu sinal era tão vago, mas eu mesmo podia ver as laterais amareladas onde o
coral aflorava e o meio esverdeado, um tanto mais fundo.
A esta altura os problemas eram dois. Ou conseguiria vencer a correnteza, ou
teria que reduzir um pouco a máquina, e esperar que a própria correnteza me
abordasse, pois dar a volta no canal era impraticável.
Caso vencesse a correnteza, o problema se agravaria logo adiante, onde o mar
parecia ferver todo por igual.
Era a parte mais rasa do “Passe”, segundo a carta, logo teria que fazer uma curva
para bombordo. Era o ponto de estrangulamento.
Já não sabia o que fazer, quando passou um catamarã com nativos, usando um
motor de popa possante.
Acenei com a mão, perguntei pelo canal. Eles foram na frente me indicando a
direção. Caso não tivesse aparecido ninguém, teria que me virar sozinho. Mas, já que
eles estavam ali, teria que ser justo com o barco, pedir ajuda.
Estávamos indo bem, mas, de repente, o Três Marias resolve atravessar no canal.
Dei todo o leme e não obedeceu. As pedras estavam tão perto que veio o
impasse.
Acelerar tudo, para tentar recuperar o governo do barco, ou dar ré, para
amortecer a porrada.
Só tinha uma fração de segundos para pensar, senão tudo estaria perdido.
Acelerei. Foi difícil tomar esta decisão.
O barco vacilou, mas finalmente recuperou o governo passando a alguns palmos
das navalhas afiadas dos corais.
O que me assustava era a frieza com que tornava as decisões. Sem paixão, sem
coração. Tornava-me um indivíduo racional, o que geralmente não sou. O afeto
sempre foi a minha maior arma, e sempre fui o seu escravo.
Recobrando o meio do canal avançávamos bem. A medida que girávamos para
bombordo, o barco aumentava de velocidade: tive que reduzir para não atropelar o
meu guia.
Finalmente um deles subiu a bordo, para me servir de piloto até o local do
fundeio, em frente a um hotel. Navegávamos no interior da laguna, cabeças de coral
afloravam por toda a parte.
Os livros citam que sempre deve ficar um no leme, o outro subir no mastro, até a
altura da cruzeta, de onde se pode distinguir perfeitamente o raso do fundo com as
mudanças de cor.
O fato é que estava só. Ou bem no leme, ou bem na cruzeta, mas agora, com o
meu guia, tudo se arranjará.
Distinguir o canal era ainda mais difícil, com este vento, que arrepia a superfície
da água, reduzindo a visibilidade, a transparência.
Com a máquina no mínimo, no quanto vira arriei a grande e procurei andar o
menos possível.
Em frente ao Hotel só tínhamos um barco, que já esteve em Nuku Hiva, um
trimarã. Fundeei. O vento assobiava tanto que resolvi lançar 50m de corrente em 11m
de água, e quando afilou a popa estava bem perto de um cabeça de coral que estava à
flor da água. Aqui é fundo, mas, de repente, vai a zero. São aqueles corais que
crescem até atingir a flor da água e então param. Estes cabeças estão por toda a área.
O barco veio buscar o rapaz que me serviu de piloto, e lhe paguei uma cerveja,
que só aceitou depois de muita insistência. Tive que adulá-la. Chamava-se Patrice, era
muito amável.
Arrumei um pouco o barco, fui logo a bordo do trimarã, para saber das novas.
Eles me contaram que chegaram aqui há uns dois dias, que o mar estava um
lago, também entraram na estofa, quando a maré parou, e quase não tinha correnteza.
A vida é assim mesmo. Ora a calmaria, ora o mar revolto, Quando surgem uns
dias impecáveis, pode esperar. Vem coisa aí pela frente.
A tripulação de trimarã era de 4 homens e 3 mulheres.
Quatro nacionalidades diferentes a bordo. Gente boa.
Estavam comendo àquela hora, logo me passaram um prato de arroz com peixe.
Foi uma boa, pois a última vez que comi foi antes de clarear.
Após me informar das coisas, voltei a bordo e fui dormir.
Estava muito cansado.
Acordei às 9 horas da noite, com a chuva lá fora e o vento assobiando. Deitar de
dia e acordar de noite dá um sentimento estranho, mas logo me acostumei.
As luzes do hotel, das casinhas exóticas à beira da laguna com a frente de vidro,
davam um ar diferente ao ambiente.
Para amortecer os trancos que a corrente dava na ferragem de proa intercalei um
pedaço curto de cabo de nylon.
Também pendurei um manilhão no meio do cabo do caíque inflável, pois o
vento e o mar davam açoites sem parar, forçando o ponto de amarração da proa. Mais
cedo ou mais tarde, a borracha acaba por ceder. Um peso no meio do cabo faz sempre
um efeito de mola.
5 de agosto de 1980

Passei 3 dias em Manihi.


Apesar de estar bom, tenho muito o que fazer em Tahiti, prefiro demorar-me
mais por lá.
Deixei o ancoradouro em frente ao hotel ao meio-dia, depois de passar uma hora
desenganchando a corrente dos corais.
Logo após a chegada, tinha dado um mergulho para ver a posição da âncora. Ela
estava neutra, sem funcionar, mas a corrente estirada que nem corda de roupa.
Com o movimento do barco, a corrente ora puxava, ora estirava, serrando as
cabeças de coral, como quem serra um tronco de árvore. Com isso, perdeu-se uma
boa parte da galvanização, e nestes lugares irá instalar-se dentro em breve a ferrugem.
Visando a saída de hoje, confirmei a hora de maré parada com os nativos e fui a
pé, ver o comportamento das águas no “Passe”.
O vento tinha mudado para E, o mar estava um lago.
Saí no motor e a vela grande no 3.º riso, somente por garantia. Instalei o leme de
vento e fui navegando pela laguna.
Da proa do barco, via com muita clareza os arrecifes mais rasos, devido à
transparência das águas.
Não é difícil, mas, para tudo, tem que se ter conhecimento.
No “Passe”, do lado de dentro, com a corrente entrando devagar, formavam-se
escamas na superfície das águas. Uma espécie de ondinhas curtas e nervosas, que
turvavam um pouco o cristalino das águas – mesmo assim era suficiente para se
distinguir o canal.
Passei bem, fui batizado no meu primeiro atol.
Os investimentos do Hotel são significativos, com alojamentos para 45 pessoas.
São casinhas exóticas, construídas à beira da laguna, sobre pilotis, como os nossos
alagados, só que de luxo. A frente é de vidro, tem uma varanda descoberta, um
estrado de madeira como se fosse um convés, onde as grã-finas expõem suas nádegas
brancas, a frigir sob o sol tropical.
Umas seminuas, outras totalmente nuas, pagam caro para ter o direito de ficar à
vontade, direito que nos foi roubado pelo emaranhado das leis sociais.
Um bom restaurante, uma butique com preços para matar a vontade de qualquer
turista que goste de gastar dinheiro completam o ambiente.
Andei bastante pela ilha. O seu solo é formado por areia de conchas e
fragmentos de coral.
Foi Darwin quem estudou os atóis. Segundo ele, são ilhas vulcânicas que iam
afundando por um processo de isostasia.
A medida que ia afundando, o coral que crescia em águas rasas em sua volta
aumentava o peso da ilha, provocando um afundamento ainda mais rápido.
Quanto mais a ilha afundava, mais o coral crescia tentando alcançar a superfície
das águas, até que a ilha desaparecia, deixando apenas a coroa de coral formando o
atol.
Como aqui chove bastante, a água é retirada do subsolo. O coqueiro nasce
sozinho e o peixe é de extrema abundância. Aqui, como em toda a Polinésia, ninguém
conhece a fome e trabalha-se apenas dois a três dias na semana.
Os nativos conseguiram um equilíbrio de vida que o socialismo talvez não
consiga em um século.
Conscientes de que o homem trabalha demais e vive de menos, o socialismo
fixou como meta reduzir a jornada de trabalho para 6 horas, mas por enquanto os
homens trabalham 10, tentando ainda construir o realismo socialista.
Na sociedade de consumo trabalhamos demais, porque tornamos sorvete em
copo de papelão pintado com 5 cores diferentes, na tentativa de vender mais, e,
tomado o sorvete, jogamos o copo no chão, de preferência para que outro o venha
varrer. Nesta sociedade estamos sempre atrasados, apressados, endividados e
insatisfeitos. Na luta, a gente toma este sorvete sem ter às vezes nem tempo de
apreciar as cores.
O homem polinésio colhe os cocos em um dia, pesca no outro e vive nos
demais. Está na frente de toda a humanidade.
Conversei muito com Sílvia, uma francesa que estava no “Pura Vida”, que
passou um ano lecionando nas Marquisas, em Hiva Oa.
Segundo Sílvia, os nativos gostam dos estrangeiros, mas não gostam é dos
franceses.
Sempre dorme-se de portas e janelas abertas, pois não existem ladrões. Mas, um
dia, ao acordar descobriu que alguém lhe cortara os cabelos longos.
Os franceses estão muito preocupados em perder as ilhas, e estão espalhando
muito dinheiro, financiando qualquer francês que queira se instalar na Polinésia.
Procuram criar, o mais possível, nos nativos a dependência da sociedade de consumo.
Do chicletes à televisão a cores, para que o divórcio entre os colonizadores e
colonizados se torne cada vez mais difícil.
Pelo menos são melhores do que os ingleses que, para enfraquecer a China,
introduziram o ópio, para desgastar, desintegrar a força e a cultura daquele povo.
Neste sentido, os missionários, os jesuítas estão fazendo também um grande
trabalho a favor dos colonos, e os pobres nativos vão de inocentes.
As mulheres aqui eram liberadas, mas agora, com a religião, a coisa está
mudando. Enquanto, em todo o mundo, o movimento feminino em prol da
liberalização avança, aqui a coisa regride.
A religião aqui firma as suas raízes, enquanto entre os cultos franceses são tão
poucos os religiosos. Aqui se vende para os nativos as ideias arcaicas, que já não
encontram mercado na intelectualidade francesa, como algo novo. Dá raiva de ver os
nativos ludibriados e a má-fé dos colonizadores.
Sinto-me às vezes cansado de ter que nadar contra a corrente, raciocinar fora dos
trilhos traçados pelo sistema, mas é que não dá para aceitar.
No barco me sinto livre, e às vezes dá vontade de navegar sem parar sem voltar
à terra, numa fuga total e definitiva.
É difícil evitar que os nossos pensamentos pareçam loucuras ou até crimes aos
olhos de pessoas que não podem entender. É a velha história, a verdade do colono, a
do colonizado, e a do observador.
Deixando Manihi, vou navegando lentamente em direção a Ahé, que fica a dez
milhas. Vou matando o tempo aqui fora, pois só vou passar por entre os atóis;
contornando Rangiroa amanhã com a luz do dia. Também não quis sair de Manihi
tarde, quando os corais são menos visíveis. Assim sendo, vou me distraindo por aqui.
Esta noite me aconteceu um fato curioso.
Já tinha dormido mal a primeira noite com o assobio do vento.
Mas, nesta última, o vento era tão suave, mas fui acordado várias vezes por um
barulho estranho, como se alguém estivesse subindo a bordo. Peguei a lanterna e
comecei a percorrer o barco. Nada.
Voltei a deitar, e logo o ruído reapareceu. Assim várias vezes, até que algo caiu
em cima de mim.
No dia anterior, andando pela praia, tinha achado um búzio engraçado, que era
habitado por um crustáceo parecido com uma lagosta. Ele estava no seco, onde a
água do mar nem chega.
Como estava imóvel, não tinha nenhum cheiro, acreditei que o animal tinha
morrido, que só restou mesmo a carapaça. Joguei o bicho na sacola e segui viagem.
Chegando a bordo, larguei a sacola no beliche, só fui desarrumar as coisas mais
tarde, não encontrando porém o búzio. Naturalmente tinha caído numa das manobras
de tirar a roupa ou os sapatos da sacola.
Na realidade, o bicho saiu da sacola e passou mais de um dia rastejando por aí,
passou aquela noite tentando escalar a antepara, subindo pela instalação elétrica.
Como ele conseguiu subir, para mim foi um mistério. Ouvia as suas unhas
arranhando a antepara, bem perto do meu ouvido, a ponto de me levar à loucura.
Sentia a presença de um ser vivo bem perto de mim, porém, invisível. A bordo, os
sentidos ficam aguçados, e só vim a decifrar o enigma quando ele escapoliu e caiu em
cima de mim. Eu o devolvi ao mar, e ele recobrou a liberdade.
O fato me fez lembrar de “Alien, o oitavo passageiro”. Uma vida extraterrena
que é trazida por acaso por um dos cosmonautas para dentro da nave, e os dramas que
aí se desenvolvem.
Aliás, sempre imaginei os extraterrenos amigos; um encontro com eles sempre
me pareceu simpático.
Os filmes de ficção mudaram esta imagem, e, se um dia houver este confronto, o
pânico entre a população não vai ser nada pequeno; boa parte desta responsabilidade
caberá, sem dúvida, aos diretores de cinema.
O barco continua o seu passeio sem compromisso. Estamos a 150 milhas de
Aratua, a 60 de Rangiroa, e somente começaremos a avançar no rumo às nove da
noite.
Como ia escurecer, aproveitei o resto da luz do dia, fiz umas visadas para Ahé e
Manihi para determinar a minha posição.
Estudei o rumo, 155º até as 10 h da noite, e então 240º, tentando permanecer
perto do objetivo, até amanhecer, mas o quanto possível fora do perigo.
6 de agosto de 1980

São quatro da manhã. Andei dando umas cochiladas até as 3 h e então levantei-
me definitivamente.
Tempo bom. A lua bem fininha acaba de nascer, mas a sua luz é mínima.
Navegamos só com a vela grande no 3.º riso. Arriei o yankee às 2 da manhã, para
reduzir ainda mais a carreira. Hoje não temos passe de atol a vencer, mas apenas
passar entre os atóis com a luz do dia.
As cinco da manhã começaram a surgir nuvens e chuviscos. Receei que a
visibilidade pudesse ficar prejudicada, mas logo passou.
Com as primeiras luzes, fiz o ponto pelas estrelas, fui tirar um cochilo após
corrigir o rumo. As nove, quando acordei, o atol já estava bem visível. É uma
dormida sacrificada, com uma preocupação latente. Qualquer descuido, basta não
acordar, está tudo perdido.
Aratua já vai ficando pra trás. Tahiti está a 205 milhas. Ainda temos Kankura
por bombordo, e Makatea por boreste, mas a 30 milhas da rota. Tudo bem. Agora vou
dormir mais um pouco, após ter escutado bastante a rádio de Tahiti.
lìormi até as 3 h da tarde sem escala, e acordei com um dia de verão belíssimo.
Depois da tensão nervosa, devido à passagem entre os atóis, o que quero é
descanso, relax total. Ainda estou com o 3.º riso na grande e o yankee. Não quero
saber de carreira. Hoje vai ser dia de muito som, muito chá.
Amanhã, começaremos uma nova regata, visando a chegada em Papeete.
Rita Lee, com Mania de Você, ocupa o 9.º lugar na parada de sucessos de Tahiti,
São os brasileiros que estão chegando.
7 de agosto de 1980

Esta noite voltei a pensar na vida, assim só fui dormir bem tarde. Apesar de estar
em águas livres, me levantei uma dezena de vezes. Como se pode ver, a
desmobilização não é imediata.
Ao amanhecer fiz o ponto pelas estrelas, sem preparo do céu. Elas já são todas
minhas conhecidas.
O céu sem uma nuvem, o mar manso, uma brisa embala o barco na maior paz do
mundo.
Adoro estes momentos, que são realmente raros em terra.
Há muita gente, muitos problemas.
Em Manihi, a turma do “Pura Vida” me perguntou porque me demorava tão
pouco em terra. Disse que não sabia, mas talvez porque gostasse de navegar.
Sempre projeto parar para descansar. Se planejo ficar uma semana, com 3 ou 4
dias me dá uma vontade de voltar ao mar, assim sempre saio antes do dia previsto.
Faltam 140 milhas até Papeete. Avançamos pouco esta noite, mas descansamos
muito. Arriei o yankee e icei a genoa. Papeete nos espera.
A rádio de Tahiti leva ao ar uma boa programação; de repente, interrompe para
dar notícias.
“No Caribe o ciclone Alen já causou 68 mortes. Ontem a rádio de Havana
colocara em prontidão aquela região; já hoje anuncia as mortes e a evacuação no
Golfo do México do pessoal que trabalha nas plataformas de petróleo off-shore”.
Isto vem reforçar a necessidade de escolher bem as épocas de passagem pelas
diversas regiões do globo terrestre.
Estudar é fácil, mas passar sempre na melhor época requer tempo. Só mesmo
dando a volta ao mundo em 3 ou 4 anos. Parando para esperar as boas épocas, isto,
entre outras coisas, requer recursos, ou parar para trabalhar.
Apesar de fazer um dia belíssimo, no pôr do sol vieram umas nuvens e só
consegui pegar 2 estrelas, e mesmo assim com o horizonte mascarado.
Resultado, retas de posição paralelas, afastadas entre si de 20 milhas.
Qual das duas estaria certa?
Nenhuma, provavelmente. Pouca precisão, isto me levou a uma noite nervosa.
Apesar de ter feito retas de posição pelo sol às 11, 13, 15, 17 e 18 horas, isto só
me deu uma ideia da longitude, acusou uma forte correnteza indo para NW, indo com
o vento. E é justamente na N de Tahiti que existe uma pequena ilha, inclusive sem
nome na minha carta, que passou a ser um obstáculo no nosso rumo.
Dormi acordando de hora em hora, depois de meia em meia hora, até a meia-
noite. E então vi o clarão do farol por baixo das nuvens que se formavam no
horizonte. Com isto corrigi o rumo e o obstáculo está agora fora de perigo.
Como é bom se ter um farol de longo alcance. Vou tomar um chá e descansar.
Com certeza estamos a umas 30 milhas da costa.
O despertador tocou, mas não me lembro de ter ouvido. É geralmente no fim da
manhã que dá mais sono, e deitar é sempre um perigo. Foi uma falha.
Só acordei às sete, e ao pular da cama preocupado a primeira impressão foi de
ter passado do ponto, já estar a W de Morea. Poderia estar em cima das pedras.
Estava tonto. Tinha acabado de acordar.
Tirei os alinhamentos e descobri que estava muito bem. Estava a NE e não a NW
da ilha. Morea apareceu logo com a melhora da luz, mas dormir quando tão perto de
terra não deixou de ser uma falha.
Fui conferir o despertador, a corda estava frouxa. Ele tinha cumprido o seu
papel, mas eu não acordei.
Ao avistar o farol, desliguei a minha preocupação, o meu relógio interno.
Conclusão: acordo melhor sem relógio, às vezes.
Vamos nos aproximando, e a ilha de cinza vai se tornando esverdeada. Com
2500m de altitude, os picos da ilha são imponentes e majestosos.
O vento é brando. Avançamos devagar mas no rumo certo. Devemos estar a
umas 20 milhas do porto.
Aos poucos nos aproximamos, e a alegria é grande. Aproveito para tirar o sal,
arrumar o barco, preparar os cabos de amarração e as defensas.
Estamos através de Venus Point, são 11h 30 m. Acabei de almoçar e o vento
refresca. Creio ser influência das montanhas.
Faltam umas 5 milhas para o “Passe do Papeete”.
Um navio acaba de entrar, 3 barcos pequenos se divertem velejando. A brisa está
ótima, o sol brilhante, aquele dia de verão.
Vamos contornando a ilha e o vento veio de popa. A genoa começou a murchar e
foi para dentro do saco. E tempo de desamarrar a âncora, conferir se a corrente não
está embaraçada. Estamos perto.
Uma escuna destas que servem às ilhas acaba de me passar e entra no “Rade de
Papeete”, entre as boias vermelha e preta, uma certeza a mais.
Solto a contra escota, e deixo a retranca livre para manobrar. Ponho o ecossonda
em funcionamento, vou dando a volta devagarzinho. O motor em ponto morto.
O rumo de entrada é 140 mg. O pano bate, eu casso a escota. Estamos entrando
na pura vela. Finalmente também no motor.
Continuo rumando para bombordo, o vento dá na proa e arrio a vela.
Uma surpresa, dois pequenos rasgões na vela. Como aconteceu isto?
Resolvo passear, dar várias voltas, conhecer todo o lugar antes de fundear, para
escolher, dentro do possível, o melhor lugar.
Finalmente, a âncora toca o fundo. Manobro, vou folgando a corrente e passo
dois cabos de popa no cais.
Ajeito o barco e salto em terra firme. Só me veio uma idéia.
“Já não morro sem ver Tahiti”.
8. DO WAHITI À AUSTRÁLIA
21 de agosto de 1980

Deixei Papeete no dia 21 de agosto, às 8 da manhã. O dia amanheceu ventando,


com chuvas, mas não quis adiar a saída.
Assim que a chuva deu um tempo, levantei o ferro e fui saindo, dando, assim, a
minha última olhada naqueles morros. Sabia que tão cedo não voltaria por aqui, ou
talvez nunca.
Tahiti foi um grande marco na minha viagem. Foi o primeiro terço da volta ao
mundo. Vencida esta parte, parece que a responsabilidade aumentou. Cada vez falta
menos, a gente se esmera cada vez mais, para ver se completa a volta, para ver se
conclui o que começou. Temos, às vezes, a impressão que somos pura consciência,
fundidos em um só. Eu e o barco em busca do objetivo comum.
Esta fusão aumenta a esperança. Sinto-me um equipamento do barco, o cérebro
do barco, e o barco o meu grande corpo, aumentado, capaz de locomover-se
cavalgando o vento. Inseparáveis, vamos tramando os nossos planos, escolhendo os
nossos roteiros, sofrendo juntos nos momentos difíceis e perigosos, como se
fôssemos um só, uma cabeça de homem montada num corpo de navio.
Agora, com a aproximação da época dos ciclones no norte da Austrália, esta
fusão torna-se de grande importância, ela veio justamente neste momento difícil em
que teremos que enfrentar 6000 milhas, até a Indonésia, em menos de 3 meses. Caso
contrário, teríamos que passar aqui pelas ilhas uns 5 meses, esperando o fim de uma
época. Outra solução seria guardar o barco em um destes portos seguros na Nova
Zelândia ou Austrália, e trabalhar por este período.
Depois de muito refletir, achei que teria que seguir, pois fiz o barco foi para
navegar.
Então vamos. Achei que seguiria, nem que tivesse que passar 2 meses direto no
mar, o mais importante seria vencer mais esta etapa, o resto seria secundário.
Foi por esta razão que só passei 13 dias em Papeete, em vez de 3 semanas.
Também não tinha consulado por aqui, nem da Austrália nem da Indonésia. Logo,
tenho que ir para Noumea, Nova Caledônia, e tentar resolver por lá este problema.
Como sempre, no primeiro dia a gente vai beijar a mão das autoridades.
Imigração, Aduana e Capitania dos Portos. Por aqui, tudo simples, nada de protocolo.
O preposto da Capitania, muito simpático, um nativo de uns 25 anos, me
atendeu de bermuda e descalço.
Papeete é uma cidade europeia, mal situada, no paraíso tropical.
Seu povo, muito bonito.
A mistura de nativos com chineses dá algo de cair o queixo. Mulheres
extremamente bonitas, morenas, com um equilíbrio muito bom na face, e cabelos
longos, escorridos abaixo da cintura.
As praias exóticas de areias negras, que queimam facilmente os pés, estão
entulhadas de surfistas, ou de garotas de topless.
Apesar da vida ser extremamente cara, principalmente para quem ganha no
Brasil e gasta em Tahiti, o comércio é sortido e dominado pelos chineses. Eles vieram
aqui quase como escravos, para a colheita do algodão.
Hoje não se planta mais algodão, e, trabalhando como formigas, de escravos
passaram a donos do comércio local, a custa de muito suor.
Apesar da França ser o país da cultura, aqui não tem universidade. Os colonos
não têm interesse de instruir o povo, que instruído pediria mais cedo a sua
independência, a sua retirada. Os jovens, frustrados, limitam-se a fazer o seu protesto,
imprimindo camisetas.
“Universidade do Tahiti, a kelhor do kundo”
Os nativos são ricos, devido à terra, que ainda lhes pertence na sua maioria.
Os franceses estão um pouco por toda parte. Como colonos, vivem do privilégio.
O monopólio do ensino, das companhias aéreas, etc., mas, conscientes de que vão,
muito em breve, perder as ilhas, para tentar ficar vão mandando cada vez menos.
Hoje só tem um representante no governo, os demais são locais.
Dão subsídios para ter o direito de fazer as experiências nucleares nos atóis do
sul.
Conheci um comandante de um navio de guerra francês, que não tem culpa de
estar ali e sabe muito bem que o seu trabalho é de pouca valia, que a história dentro
em breve vai apagar o seu rastro e nada vai restar do seu trabalho. Como tal, procura
aproveitar o melhor possível a vida longe da família, a serviço do governo francês,
vai vendendo o seu uísque de contrabando, aqui caríssimo, e guardando os níquéis
para quando voltar à França, pois ganhar dinheiro por lá é mais duro.
Voltando um dia a bordo, encontrei um bilhete de Luiz Gonzaga Trigo, guia de
turismo da Abreutur. Fui então visitar o grupo de brasileiros, instalados no Hotel
Tahara, pendurado no morro, de onde se descortina uma vista belíssima. Encontrei
também Sérgio, um surfista brasileiro, que, há 10 meses, está perambulando pelo
mundo com a sua prancha.
O amor aqui é livre. Começa-se cedo, mas não se faz família. Os filhos
prematuros são entregues à avó, que os cria com muito carinho. As moças só vão se
amarrar mais tarde.
Aqui é matriarcado, é a mulher quem decide tudo, quem mais trabalha. Mas,
quando o marido bebe, elas apanham em plena rua: todos veem, mas ninguém diz
nada. E o costume local. Os homens trabalham menos, ficam obesos mais cedo,
adoram deitar-se ao sol com a barriga para cima.
As boates estão cheias de mulheres, mas não são prostitutas. A prostituição é
proibida. Você tem que batalhar para conquistá-las. Também o número de travestis é
grande.
A noite, aos sábados principalmente, a coisa esquenta, e se você se sentir só, por
acaso achar que o mundo lhe fechou as portas, o submundo está aí para lhe acolher de
braços (e pernas) abertos.
E neste dia você terá dúvida entre o bem e o mal.
Conheci uma francesa, Elisabeth, e assim mudei uns dias para a cozinha
francesa. Era uma intelectual de extrema direita, me ganhava no xadrez, mas quando
a discussão mudava para política o caldo engrossava.
E destas mulheres que, se você não concordar, você não leva nada. Achei muito
caro e perdi, sem dúvida, a mulher.
Conheci muitos brancos – alguns tripulantes já estiveram no Brasil, um outro me
vira em La Rochelle, outros eram amigos de amigos meus. Como o mundo é
pequeno.
Estive a bordo do Club Mediterranée, o veleiro de quatro mastros de Alain
Colas, o famoso francês que desaparecera no mar.
Apesar da carestia, comprei alguns equipamentos, e mesmo uma fita de Vinícius
de Morais, que falecera durante a minha travessia do Pacífico.
Tendo descansado bem, passeado bastante, gastado uma nota, resolvi cair fora
enquanto era tempo.
Me fiz ao mar, pois a cada dia me aparecia uma mulher mais bonita querendo ir
em direção a Fiji, Austrália, Nova Caledônia. Dava aquela vontade de embarcar a
peça. Jurei que seria a última viagem solitária. Na outra, caso houvesse, iria
embarcando o material aqui, desembarcando ali, deixando o barco correr.
25 de agosto de 1980

É o quarto dia de mar.


Nosso destino, Rarotonga, Cook Islands, que fazem parte da Nova Zelândia.
A saída de Tahiti foi acompanhada de nuvens baixas, rajadas de vento, mas só
depois de nos afastarmos vimos o céu limpo, lá ao sul. Os picos de Tahiti pareciam
mais chaminés de fábricas. Só que, em vez de soltar fumaça, provocavam nuvens de
condensação, fruto da subida brusca e consequente resfriamento do ar saturado de
umidade.
O vento era de rajadas, canalizado por entre os montes. Saindo desta região,
após achar que já tínhamos nos afastado o bastante, rumamos um pouco para o Sul e
ficamos encalmados. A influência do Tahiti, com os seus montes altos, se fez sentir
por mais de 20 milhas. É o tipo de calmaria que pode durar dias, uma calmaria na
microrregião, quando tínhamos vento por toda parte. Liguei o motor, para sair da sota
da ilha, enquanto o mar continuava agitado.
O segundo dia foi marcado por um vento fresco, seguro, nada de rajadas, e
percorremos 144 milhas. Idem no 3.º dia.
Mas, já no fim da tarde, o céu foi juntando nuvens densas, com aquela cor cinza
azulada, nada agradável, prometendo uma noite pouco acolhedora.
Fiz uma revisão total, reparei bem onde e como estavam as coisas, pois em caso
de urgência não teria que procurá-las.
O vento, pelo contrário, baixou de intensidade e começou a rondar.
De E, passou para NE, N, NW, e às 2h da madrugada acordei com o barco indo
para um rumo totalmente diferente, pois o vento tinha passado a SW, vento agora
com rajadas e tudo. Tive que virar de bordo. A lua cheia não deu as caras, víamos
apenas a sua sombra por trás das nuvens.
Quando o vento esteve pelo N, a preocupação era grande, por ser Rarotonga um
porto pequeno e desabrigado para ventos do Norte.
Caso o vento se mantivesse, teria que passar direto, não daria para entrar. Mas,
por outro lado, como ainda faltavam 2 dias e o vento tem mudado tanto ultimamente,
era difícil ele estabilizar por aí, foi o que aconteceu nesta madrugada.
Avançamos devagar, rumo ao W vento brando, céu todo encoberto.
As 8h da manhã, as nuvens vacilaram, fiz um ponto. Mas, logo em seguida, tudo
fechou novamente.
O radiogônio captava com nitidez o sinal da ilha.
Devido à instabilidade do tempo, estudei o rumo para uma debandada geral,
caso a coisa viesse a piorar. Teria que abandonar a ideia de ir para Rarotonga e seguir
direto.
Pela frente temos ilhas ao Norte e ao Sul, Rarotonga a W, e umas pedras a SW.
O importante é sempre se ter uma saída, caso o tempo degenere e a navegação com
céu encoberto se torne impossível.
Sozinho a bordo, vou jogando o meu xadrez com as forças da natureza. Só que
a natureza joga bem. Ganhar é impossível e visamos apenas o empate.
Às vezes as dificuldades do jogo nos deprimem, mas surgem umas manobras, o
sangue esquenta, e dá aquele tesão, aquela vontade de viver a aventura, que de
repente a gente sente que a vida não importa, que a gente põe ela na mesa do jogo.
Chegou a hora da meridiana e nada de sol. Falo contrário, veio mais vento e
chuva.
Eu que vinha mantendo a genoa, devido ao prazo que tenho para chegar na
Indonésia, tive que arriá-la, apesar da vela grande já estar na 3.¿ forra de riso.
Logo no início da operação veio uma onda e me deu um banho completo, como
quem diz: “você demorou muito”.
A genoa desceu e o yankee subiu.
O vento voltou a refrescar, mas fui deixando para ver se dava para passar, assim
vou indo aos tombos.
Fiz o ponto com o radiogoniômetro utilizando duas estações: Aitutaki e
Rarotonga.
Com a mudança de tempo, cai o rendimento do barco, já não vai dar para chegar
com 5 dias, nem sei mesmo se vai dar para chegar.
O barômetro desceu um pouco, mas estabilizou. Ele é pouco sensível nestas
latitudes.
Resolvi tomar um pouco de chá e dar uma cochilada, pois a noite está
imprevisível. Antes de deitar, uma espiada lá fora. Chove muito.
Deitei, mas o vento refrescou, não consegui dormir. Fui arriar o yankee e icei o
tormentim. Agora avançamos com o tormentim e a grande na 3ª forra de riso, e
mesmo assim com borda n’água e onda passando por cima de vez em quando.
Lá pra meia-noite o vento espantou as nuvens e as estrelas voltaram a brilhar no
céu.
No amanhecer fiz um ponto preciso, usando desta vez as novas tábuas,
atualizadas, que comprei em Papeete. Faltavam 46 milhas. A correnteza deve ter nos
ajudado bastante.
Às 10 horas, saio com o sextante para fazer o ponto; de repente, bem na minha
frente, avisto a sombra de terra.
Isto não faz mal a ninguém.
Vou ligar o motor, para chegar lá antes do anoitecer, inicialmente no quanto vira,
depois 1200 e finalmente 1300 rotações, a vela grande no 3.º riso e o tormentim.
Foi bom não ter içado o yankee, pois logo veio uma rajada mais forte, o barco
chegou a deitar, a água correr pelo convés.
A vantagem da vela e motor nestas horas é que eles ajudam, sem adernar mais o
barco, o que faria o barco entrar na onda desbragadamente.
Quando avistei a ilha, foi aquela alegria, mas ter que vencer um canal com 40m
de largura com um mar destes desanima um pouco.
Voltei a estudar tudo, com muita vontade de pisar em uma nova ilha.
Uma da tarde, a ilha continua longe. Motor a 1450 rotações. Chego à conclusão
de que esta ilha foi avistada há mais de 35 milhas de distância. Apesar de ter apenas 6
milhas na maior dimensão e 700m de altura.
São 16h 30m, já avisto umas casas, mas ainda faltam umas 10 milhas. Motor a
1700 rotações, tem que dar pra entrar hoje. O mar vai amansando, pois começamos a
ficar por sotavento da ilha.
Chegamos em tempo. Como a entrada é pelo N e o vento vinha do sul, a entrada
do porto estava um lago.
Aproximei-me, arriei todo o pano, e entrei. Mar liso, canal bem balizado, sem
dificuldades. Tudo claro e fácil.
Entrei devagar. A bacia era pequena e apertada, além de já ter 8 barcos e 2
navios pequenos atracados. Fui me aproximando, deixava o motor em ponto morto,
apenas no seguimento, e ia lá para proa para ver melhor.
A âncora tocou o fundo, quando o sol já declinava no horizonte. Manobrei e fui
de ré, ocupando uma vaga entre dois veleiros. O pessoal de bordo me ajudou a passar
os cabos nos cabeças de amarração.
Tudo calmo e tranquilo. Valeu o esforço.
Devido à hora, as autoridades não apareceram a bordo, mas o vizinho me
informou que são em número de 5, e que inclusive põem inseticida a bordo.
Já que não podia descer antes do famoso “Clearance”, resolvi arrumar o barco,
tomar chá, um banho com água morna, pois fazia um frio infernal. Ouvir Vinícius de
Morais com Toquinho e Maria Creusa, depois a 5.' sinfonia de Beethoven, e
finalmente dormir.
As etapas têm que ser vencidas uma a uma. Investir cada vez todo o seu
sentimento, sua preocupação, sua dedicação, entregar-se completamente à manobra.
Finda uma etapa, convém esquecer, pois não se pode viver de recordações, e
começa tudo de novo.
Quantas ainda me faltam para chegar ao Brasil, quem sabe? Mas pode abater
650 milhas de Tahiti a Rarotonga.
Dizem que aqui as provisões são baratas, mas naturalmente esqueceram de
incluir no custo a viagem, que foi um inferno. Mas de tanto puxar cabos cheguei aqui
na maior forma.
2 de setembro de 1980

Deixei Rarotonga no dia 2 de setembro, mas com o coração partido. A largada


foi acompanhada de sofrimento. Não queria por nada deixar aquele lugar, e à medida
que o barco ia se afastando eu rezava para o tempo passar logo e apagar aquela
imagem tão viva dentro do peito, do afeto, do amor e da amizade que ali encontrei.
Em poucos dias as raízes se tornaram profundas, e a rotura na separação
extremamente dolorosa. Estava tão hipnotizado que larguei-me para uma travessia de
2000 milhas, como se estivesse indo a um piquenique.
A vontade de ficar entrava em choque com a consciência exata de que tinha que
seguir, que a má época estava próxima, e que tínhamos muito mar pela frente.
Estava nublado, logo começou a chover. Parece que até a natureza estava
solidária aos meus sentimentos.
Estou aqui mole. Não sei se olho pra frente ou se olho pra trás. Soltei mil beijos
em direção à ilha que vai se perdendo entre as brumas.
Vai dar 6 horas, vai escurecer. Vou dormir arrasado. É melhor talvez não amar
para não ter que sofrer. Vou ligar o rádio, ouvir o noticiário internacional, algo bem
longe daqui, deixar que as estações me ponham novas idéias na cabeça e me tirem do
pensamento fixo.
Nunca consegui pôr a razão na frente do coração. Fui lá, fui cá e terminei
sintonizando a rádio de Rarotonga, ouvindo a sua música, morto de saudade.
A estada em Rarotonga foi simplesmente maravilhosa.
Logo no primeiro dia fui andando pela rua, aquele pessoal simpático, acolhedor.
Fui fazendo umas compras, tudo bem barato, nada parecido com Tahiti, onde tudo é
um assalto.
O povo alegre nos olha nos olhos, vê-se a confiança. Isto aqui não é colônia.
Colônia fede. Aqui é Nova Zelândia, um país do Pacífico para um povo do Pacífico.
Aluguei uma moto e fui dar uma volta ria ilha, com suas praias arrodeadas de
areia branca, vegetação exuberante.
A costa é toda habitada e ao centro da ilha fica a montanha coberta de vegetação.
As flores são uma constante, arrodeando as casas, e as mulheres não cansam de se
enfeitar pondo-as no cabelo ou fazendo colares.
A terra é fértil, e mais uma vez aqui ninguém conhece a fome ou a miséria. Todo
o mundo é bem-vestido, e o amor reina entre os jovens.
A gravidez não é problema, os filhos nascem e são criados com carinho,
legítimos ou não. Ninguém se preocupa com isto, e amar é antes de tudo a ordem do
dia.
Após um bom passeio pela ilha, fui informado que à noite, no Banana Court Bar,
teremos uma festa.
Inicialmente vacilei, mas insistiram, dizendo que toda a turma dos barcos ali
ancorados estaria presente. Resolvi acompanhá-los.
Olho os clubes noturnos com reserva, pois são na maioria uma armadilha para
extorquir dinheiro, mas aqui era razoável.
Um salão com orquestra, onde o ritmo quente e extremamente erótico vai
tomando conta da gente, mesas e cadeiras por todo lado e um bar.
Aqui só vai ao bar quem quer, e você mesmo compra a sua bebida, trazendo-a
para a mesa. Cada um gasta o que quer.
Foi exatamente neste bar que fiz tanta amizade. Arrumei logo duas nativas,
ficando depois com uma delas, além de muita gente que vai se conhecendo.
A coisa foi esquentando e fui treinando dançar o ritmo local, que foi cada vez
mais tomando conta de mim, a ponto de me levar à loucura.
Dancei feito louco quarta-feira, quinta, quando teve um show, sexta e sábado.
Quando o show acabava, sempre tinha outra festa, uma serenata em um dos barcos,
ou na casa de um dos nativos.
As nativas são doces e amorosas, e se derretem que nem manteiga.
Como no domingo era fechado, e a gente, um grupo pra frente que se formou,
não podia parar, organizou-se uma festa na casa da Princesa. Ela era uma mulher de
50 com espírito de 20, uma descendente da família real, que casou com um
americano, teve 10 filhos e na velhice voltou à ilha, onde mora em seu palácio de
madeira.
O dia para a gente começava às 8 da noite, e vinha terminar com o raiar do outro
dia. A gente não conseguia parar, pois a coisa ia se tornando cada dia mais gostosa.
Além de fitas gravadas, vieram dois nativos, John e Mata, que tocaram e
cantaram de maneira maravilhosa.
Quando soube que Mata tocava com violão emprestado, e que não tinha um
violão, não pude resistir. Ela, além de tocar bem, era tão meiga e delicada como uma
flor.
Peguei a moto, saí correndo, fui a bordo e trouxe o meu violão para lhe fazer um
presente, só que Mata não sabe que, com o violão, fui junto, me doei também.
A noite continuou quente, estava marcado para sair na segunda-feira, mas o
barco estava uma baderna. Tinha dedicado todo o meu tempo para amar e dançar.
Como no dia seguinte era aniversário de Jim, do Rebell Yell, meu vizinho, e suas
duas tripulantes, a linda loura Diana e a morena, resolveram fazer um bolo e uma
festa surpresa, não pude evitar. Adiei a minha saída.
Cada um traga as suas bebidas, avisou a Princesa. Água para mim que não bebo.
Já cheguei na festa pulando. Tinha acabado todo o trabalho a bordo, fiz todos os
papéis, tudo pronto. Era só aproveitar a minha última noite e sair.
O sangue já fervia. O ritmo já tinha se impregnado na minha carne, esta foi a
melhor de todas as noites.
Estava inspirado, dei um show de dança com Diana, este anjo de loura. Bonita,
antropóloga, que toca violão e dança com uma graça pouco vista.
O amor reinou no grupo antes de tudo. Todos dançavam e se beijavam, não
importava a quem. Se acariciavam, se mordiam e se lambiam.
Dancei com todos e no fim da dança nos abraçávamos aos grupos, e era aquele
bolo, aquela melança quente e gostosa.
Mais tarde, chegaram mais 4 violões. As mulheres da ilha tocam muito bem e
cantam melhor ainda. A festa virou loucura.
Dançava com Diana hipnotizado. Há muito que tinha perdido o senso da
gravidade e simplesmente flutuava no ar. Quando a música parava, os nossos corpos
se juntavam, se saboreavam, ela me dava aquele beijo gostoso, de olhos
semicerrados. Depois parava, abria os olhos, dava aquele sorriso e tudo começava
outra vez.
Deixei a ilha quando estava no auge e creio que será difícil apagar esta imagem
que permanecerá gravada em minh’alma por muito tempo.
Na despedida, Mata tirou seu colar e pendurou em meu pescoço.
Com Rosemary, meu amor de nativa, foi tão difícil. Nos despedíamos e nos
abraçávamos mil vezes. Esta despedida foi meu sofrimento. Deixei o porto com um
sentimento que há muito tempo não habitava em meu coração.
5 de setembro de 1980

Completamos hoje 3 dias de mar. Saímos com o tempo nublado, todo armado,
com a vela grande, no 3º riso, como entramos, e o yankee. Nunca o vento do porto é o
mesmo lá fora, portanto não adianta pressa, deixa ver o que vem por aí.
O tempo estava tão armado que não ouguei aumentar a área vélica; também
estava envolto em contemplação.
O vento foi rondando de S para SE, E, NE e finalmente
N. Avançávamos com média de 5 nós.
Já estamos pela latitude 24ºS e o Pacífico por estas bandas me é totalmente
desconhecido. Por isso avanço com cautela, procurando observá-la.
Nosso destino, Noumea, Nova Caledônia, e que fica a 2000 milhas. Teremos que
descer bastante, lá pela latitude de 25ºS, para passar por fora dos arrecifes do Tonga
Islands, e depois retornar à latitude 21ºS, Nova Caledônia.
Já nos afastamos bastante e a rádio de Rarotonga chega aqui tão rouca que não
se ouve mais nada.
Vida nova, não adianta se olhar pra trás. Pra frente é que se anda
Com esta largada para Nova Caledônia, devido. à aproximação da época dos
ciclones no norte da Austrália, vou deixar de ver Tonga, Somoa, Fiji e outros grupos
de ilhas, mas são as opções. Se paro, tenho que ficar por aqui. Se quero atravessar,
tenho que seguir.
Para um navegador solitário, creio até estar passeando bastante. Conheci outros
que levam direto face às dificuldades nas entradas dos portos e as aproximações de
terra.
Finalmente, tem que se decidir se queremos fazer circunavegação ou
vagabundear por aí. Caso se conclua esta viagem, poderei começar outra mais
devagar.
Depois de perder várias linhas, pois os peixes aqui não respeitam nada, terminei
embarcando uma tuna. Assim, ficou assegurada a proteína fresca a bordo. Um pouco
de pão, frutas e verduras e está pronta a refeição. Peixe 3 vezes ao dia, variando
apenas o acompanhamento.
6 de setembro de 1980

A noite esteve armada e o tempo incerto. O vento reduziu e veio aquela chuva
fina, com neblina, a ponto de se ver quase nada. Nem é possível ver o céu. É como se
estivéssemos debaixo de uma campânula de vidro fosco.
Tudo é mistério. Sozinho no meio do mar, boiando sem vento nem visibilidade.
O que vem aí?
Depois da última calmaria, veio vento de sobra e fui forçado a usar tormentim. E
agora?
Esperemos, enquanto a natureza dorme. Arriemos as velas para evitar o
desgaste.
Já nem sei cantar o mar. Aquelas mulheres de Rarotonga, como fantasmas me
perseguem. Não me saem da cabeça.
Cinco e meia da tarde. O vento apareceu e sumiu várias vezes vindo do NW, e
agora estamos encalmados outra vez. O céu todo nublado, com aquela cor de
chumbo. O barômetro está normal.
Aproveito a calmaria para pintar sobre um couro o tabuleiro de xadrez.
Acordei no meio da noite com o vento assobiando. Ele veio pelo SE e querendo
tirar o atraso.
O yankee, que estava dobrado no convés, foi para dentro do saco e icei o
tormentim. A noite não é de confiança.
Com uma hora de vento, o mar já estava grosso, mas avançamos bem.
São três da madrugada e o vento urra lá fora. O barco avança bem. Chupo uns
queimados e vou enfiar a cabeça no travesseiro, esperando o amanhecer.
7 de setembro de 1980

Amanheceu mais calmo e o tormentim foi substituído. Tudo nublado, aquelas


rugas. Tínhamos saído dos ventos alísios; estando agora na zona de ventos variáveis,
e com toda a instabilidade do tempo, a gente fica receoso de içar a grande toda
desfraldada para, de repente, ter que arriá-la às pressas.
Vamos devagar e com muita cautela.
Hoje é 7 de setembro, feriado nacional, Dia da Independência. A turma deve
estar triste de ter caído num domingo.
E o vento rondou mais uma vez, está novamente pelo NE, deu nestes 5 dias uma
volta e meia.
Tenho de sair toda hora para regular o barco e chove lá fora. O barômetro
continua em alta.
E, finalmente, a refrega, o barco sai em disparada. Foi bom não ter posto a
genoa. Deixa andar.
Deixa andar como? O vento aumentou ainda mais, borda n’água, o barco entrou
em orça forçada, não adiantou leme nem nada. Os panos folgaram, tudo bateu. O
mastro balançou como quem sacode uma bananeira para arrancar com raiz e tudo.
Já ia correndo para a proa, mas parei, vesti o colete do cinto de segurança, tirei o
relógio, arriei a trinqueta, arriei a yankee. A trinqueta eu pus logo no saco, a yankee
deixei fracassada contra o balcão, aguardando a intenção do vento.
Se passa, torno a içá-la; se continua, iço o tormentim.
Hoje, foi o recorde em manobras. Assim vou terminar me cansando e forçando o
barco.
No meio de toda esta confusão, aparece um clarão, o sol por entre as nuvens.
Faço o ponto ainda que com pouca precisão. O vento reduz mas o tormentim está
posto.
Estou só e não estamos em regata. Já são duas da tarde e jurei que só o trocava
amanhã pela manhã. Não quero passar outro vexame.
O vento voltou a refrescar, são sete da noite, mas acabou logo em seguida. O
barco não governa. Vou dormir.
As nove, acordo com o assobio do vento que passou a S e o barco indo para E,
voltando. Recomeça tudo de novo.
Vou parar de fazer os registros para não cansar os nossos leitores, mas
continuarei a fazer as manobras, caso queira chegar lá. A paciência tem que durar até
a âncora tocar o fundo lamacento do porto.
No interior da cabine, a temperatura é de 20ºC, a umidade é intensa, o céu
continua cinza, todo fechado, apesar da pressão normal.
14 de setembro de 1980
E passaram-se mais sete dias. Sete dias trabalhados, suados e bastante
preocupados.
O vento extremamente variável, muita chuva, frio, 19º no interior da cabine.
As rajadas me obrigavam a fazer manobras rápidas, e no contexto geral a nossa
média diária baixou.
Foi num destes dias, ao entardecer, o vento tinha refrescado, saí para dar o 3º
riso na vela grande, quando percebi que estava sentado no convés um pássaro
marrom acinzentado.
Como tive que manobrar, ele espantou-se mas logo sentou na popa.
Concluí a manobra e escureceu. Chovia muito. Peguei ele de mão e coloquei no
interior do cockpit, onde ficava um pouco mais abrigado do vento, que queria
incessantemente varrê-lo do convés.
Geralmente estas aves pernoitam, e no amanhecer abandonam o barco sem dar
aviso. Mas esta estava liquidada.
Com a luz do dia pude observá-la de perto. Não era uma ave de mar alto, e sim
tipo o nosso Maçarico, que marisca pelas praias, nos arrecifes. Ele deve ter perdido o
rumo e veio parar aqui, há 100 milhas da terra mais próxima. Podia-se ver
perfeitamente a tristeza instalada em seu olhar. A morte já o estava rondando.
Ele tinha compreendido que era o seu fim.
Ainda tentei dar-lhe biscoitos, mas eram coisas estranhas para o seu mundo, e,
pelo seu estado, comer deixou de ser parte integrante das suas atividades.
Mais tarde o expus ao sol, para aquecê-lo.
Mas foi numa destas vezes que tive que manobrar, e ele tomou coragem e alçou
voo, o voo para a morte.
Voou em círculo, há uns 50m do barco, e, quando percebeu que não tinha mais
forças, resolveu voltar, mas as forças acabaram antes e ele caiu nas águas geladas a
alguns metros do barco.
Naquele instante ele deve ter entendida que chegara o seu fim. Deve ter acabado
para ele toda a pressa do mundo e com muita calma ele passou a viver a última de
suas experiências, a morte.
Este pássaro me fez refletir muito. A gente sabe que vai morrer, mas não sabe
quando e não quer nem mesmo lembrar desta realidade. Mas a morte pode ser
precoce, quando a gente põe o chapéu onde a mão não alcança.
Resolvi lavar o convés, onde ele pernoitou e fez o serviço, para esquecê-lo mais
rapidamente.
Ontem pela tarde o vento começou a soprar com força, parece que resolveu tirar
o atraso.
A linha de pesca partiu o selo, embarquei com grande dificuldade um atum.
O tempo estava ruim e já ia escurecer, além disto era tão grande.
Ter que matá-lo, para tirar um filé e jogar o resto no mar. Desisti. Tirei o anzol e
devolvi o peixe para o azul dos mares.
Não sei se estou de coração mole, ou é preguiça, nem tampouco sei qual dos
dois é o pior.
Ajeitei as coisas e fui para dentro da cabine, mas sempre ansioso. Tentava
dormir, mas o assobio do vento e o tombo do mar não me deixavam tranquilo.
Resolvi arriar a yankee.
Quando iniciei a manobra ela desceu 2/3 e prendeu.
Tentei puxá-la de todo o jeito e não consegui. A força do vento era tanta que ao
segurar a vela doía a mão.
Logo percebi a causa. Quando dei o 3.º riso na grande, sua driça embaraçou na
escada do mastro, prendendo a driça do yankee. Tive que arriar um pouco a grande,
desenganchar e logo tudo se ajeitou, mas o vento soprava tanto que dava medo
encostar no mastro. Se ele alça voo, leva a gente consigo.
Após dominar a vela e pô-la no saco, icei o tormentim e o barco continuou a
andar em louca disparada. O vento se manteve durante toda a noite; pela manhã, o
mar estava muito grosso. As ondas arrebentavam contra o casco, e a água passava por
cima do convés.
O seu choque fazia o barco dar um salto e sair de banda, mas logo ele voltava ao
rumo. Tínhamos que manter o rumo, pois ao norte temos os arrecifes de Tanga
Islands.
Passaremos entre ilhas, que oferecem uma folga de 200 milhas, mas com este
vento 200 milhas não é nada.
No mar não existe passagem larga. Para mim, não sei porque tudo é estreito. O
canal da passagem de um atol com 25m é estreito. Um canal com 200 milhas é
estreito. A gente se preocupa sempre com a segurança, em escolher o melhor
caminho. Se a gente, com vento de popa, tiver que correr uns dias escarrerado, sem
poder fazer navegação não há espaço que chegue.
Durante todo o dia de hoje o vento está aí firme e, de vez em quando, uma onda
dá aquele baque, tudo sacode, tudo treme. É a arrebentação, e a espuma corre por
cima das águas açoitada pelo vento.
Contornando o perigo de Tonga Islands, vou agora ganhando um pouco de norte,
pois estamos na latitude 27ºS. Subimos um pouco e iremos em busca do W.
Hoje cruzamos o meridiano inferior de Greenwich, ou seja, a longitude de 180º.
Com isto trocamos a data. Não sei se ganhei ou perdi um dia, só sei que assistirei um
pôr do sol a menos.
Hoje é um dia diferente a bordo, a gente fica pensativo. Como é longe o
caminho de casa. Quantos arrecifes ainda me separam de casa, terei que contorná-los,
um por um, empregar em cada instante toda a minha emoção, e cada trecho parece o
mais difícil. Falta muito para me tornar um verdadeiro navegador, falta muito a
aprender.
15 de setembro de 1980
Sorte e fortuna mudam como o vento. E o vento mudou. A genoa tomou o lugar
do tormentim, foram também retiradas as botas e meias de lã. O sol amanheceu
quente, apesar do vento ainda um pouco frio, dando aquele contraste gostoso.
Este trecho de viagem foi por assim dizer bastante vivo, cheio de emoções. Tive
dias de intensa alegria. Ouvia música, dançava sozinho, e os livros iam acabando um
atrás do outro.
Li “As Palavras”, de Sartre, sem dizer uma palavra.
Por outro lado, foi também uma viagem ansiosa. A alegria era de vez em quando
substituída por uma preocupação latente, a ponto de provocar acidez no estômago. E
que aqui o mar é bem mais agressivo, e o barco está todo branco, parece mais uma
salina, interessante o desenvolvimento desta última frente que passou.
Normalmente, olho o barômetro pela manhã, à tarde, à noite, e toda vez que
acordo, tentando prever o tempo. Na realidade não é prever o tempo que tento, mas,
antes de tudo, aprender a ler o barômetro, aprender esta linguagem que realmente
desconheço.
Na tarde anterior ao vento forte, o barômetro esteve em 760mm, por vários dias.
De repente resolveu descer rapidamente para 754, e aí ficou. A medida que o vento
foi aumentando de intensidade, a pressão foi retornando devagar para 760mm, e foi aí
que o vento ficou ainda mais forte, por várias horas, e o mar engrossou.
Posso assim dizer que pela primeira vez o barômetro registrou um movimento
que poderia realmente predizer a vinda da frente.
Mas é como dizem vários autores: “quem sofre do coração não deve consultar o
barômetro”, pois este vai lhe fazer sofrer 10 vezes e prever uma, podendo até lhe
matar de raiva.
16 de setembro de 1980
Completamos hoje 6 meses que deixamos Salvador e percorremos 11.200
milhas. O dia de reflexões.
Eu só queria saber se vou conseguir concluir esta viagem, este meu sonho
dourado, se vou conseguir superar uma por uma as dificuldades, as dúvidas, as
incertezas, as fraquezas, a solidão, o medo.
São tantos os obstáculos, mas a gente está fazendo força e mora no peito uma
vontade imensa; às vezes penso que ela nem cabe no meu peito, no meu corpo e deve
sobrar pela roupa, sair pela boca, pelos ouvidos, pelo nariz, por todos os poros e me
acompanha para todo lugar que vou, como uma nuvem. Nem sei se cabe a bordo, só
sei que tenho que chegar lá.
Ponho a fita de Amelinha, Frevo Mulher, e começo a dançar feito louco, feito
índio, para espantar os espíritos, carregando a bateria interna.
Quero chegar e dizer a esta “Juventude Brasileira” que venha ao mar. “E
possível”, eu garanto. Mas para poder fazê-lo é necessário concluir a viagem, para
poder dar a mensagem. E esta é mais uma das razões por que paro pouco nos portos,
quero logo chegar e dar a mensagem de fé, de esperança, nem que tenha que partir de
novo.
Sinto falta de todos, de meus pais, de minhas filhas, de meus amigos.
Por outro lado, sinto-me um desertor frente ao operariado brasileiro. Não me sai
da mente aquela imagem dos
2.000 homens da última obra, as Plataformas Petrobras.
O nosso operário é um homem bom, alegre, ainda que vivendo em padrões
desumanos. Aliás como todo o povo brasileiro.
Um país com tanta terra, e o povo passando fome. A terra na mão de uma
minoria.
Os militares estão ganhando bem. Os senadores são latifundiários. Quem é que
vai resolver o problema de nosso povo? Quando é que vão surgir os verdadeiros
políticos, que vão planejar um futuro melhor para as nossos filhos. Nós não temos
planejamento. Os assessores do governo se baseiam na livre iniciativa, quando
Darwin no século passado já disse que “a livre competição e a luta pela
sobrevivência, que os economistas celebram como sendo a maior conquista histórica
do homem, constitui exatamente o estado natural do reino animal”.
Mas os nossos assessores são surdos, ou cegos; continuam batendo nesta antiga
tecla. É triste.
A única vantagem é que tristeza, segundo Vinícius de Morais, ajuda a fazer
samba.
Nem estando tão longe consigo deixar de pensar no Brasil.
Cada árvore que vejo, me vem logo o pensamento.
Cada árvore é como uma indústria e produz os seus frutos com um mínimo de
tecnologia. A agricultura é a solução óbvia.
O cacaueiro, o cafezeiro, a seringueira, a cana-de-açúcar Tanta terra e tanta
fome.
O Brasil não vai pra frente enquanto não fizer uma reforma agrária. O último
dos tabus.
É só plantar.
Com tanta terra, tantos desempregados, famintos, indo aos grandes centros, atrás
de empregos. Malsucedidos, vão ao subemprego, ao submundo, vão ser marginais.
Daí o florescimento das empresas de segurança. Guardas, vigias, policiais militares,
etc.
Só a terra seria capaz de empregar todo o mundo, alimentar todo mundo e ainda
sobrava. Mas está na mão de uma minoria que planta um pouquinho, sem técnica.
Buscando seu lucro através de um salário cada vez mais baixo do homem do campo,
ou cedendo trechos para plantar de meia. O resto é cercado e pronto. Ninguém entra,
ninguém planta, e do outro lado da cerca o desemprego e a miséria são contemplados
como a lei natural da vida. O povo brasileiro nasce deserdado, com direito apenas às
estradas, por onde caminha descalço, à miséria.
Que merda: É para estes latifundiários que o Governo dá o dinheiro subsidiado.
Eles aplicam a metade, desviam o resto pensando mais nos seus interesses que nos
interesses do país.
Dá um desgosto danado, e mesmo de longe não se consegue parar de pensar
nestas coisas. Vemos as ondas do mar, podiam ser ondas nos canaviais.
Vamos ver se agora, com a Abertura Figueiredo, com a criação de novos
partidos, se consegue novamente, partindo quase da estaca zero, pois a revolução de
64 esfacelou todo e qualquer movimento operário, reorganizar as forças, as lideranças
que representam o trabalhador brasileiro em torno de um partido. Com a ajuda do
trabalho sindical, fundamentar o novo programa, a nova plataforma, as novas metas,
para melhorar, pelo menos um pouco, o estado miserável do trabalhador brasileiro,
vender pelo menos por um preço mais justo a sua força de trabalho.
Fazer algo, um pouquinho. Dar margem ao surgimento de novos líderes. Com
eles, conclamar o povo, amedrontado, a novamente ir se acostumando a pensar, a
reivindicar o que de direito. Fazer um trabalho de base, se a conquista do poder
político pela classe trabalhadora está ainda tão longe, que nem é bom sonhar por
enquanto.
Fazer antes de tudo um trabalho de base, reeducar o povo, lembrar-lhe que ele
tem direitos, já que tem deveres, já que carrega este Brasil pra frente.
19 de setembro de 1980
Hoje foi o dia previsto para a chegada, mas na realidade ainda faltam 355
milhas. Nos 3 últimos dias andamos pouco. Calmarias por 5 a 6 horas diariamente, e
depois um vento fraco. Vamos nos arrastando como podemos, tentando conquistar
cada palmo de chão, de água, mas até já perdi a pressa. Me esmerei para fazer o barco
andar, mas agora desisti. Quando ele quiser ele anda, mas o chato é que estamos
fazendo uma pequena regata com os ciclones para ver quem chega primeiro na
Indonésia.
22 de setembro de 1980
Hoje, como todo dia que antecede a chegada, é o dia dedicado à navegação.
Pontos e mais pontos, raciocínios e mais raciocínios, estamos a 60 milhas de Noumea
e são 3 da tarde. Isto quer dizer que a entrada provável é amanhã, após passar uma
noite de vigília, e na capa.
A Nova Caledônia é toda rodeada por uma barreira de corais. A SE esta barreira
chega a avançar 35 milhas mar adentro, e em frente a Noumea, está a mais de 10
milhas fora da costa. Como podemos ver não é uma abordagem fácil.
Esta barreira tem duas entradas principais. Uma ao sul, é por onde pretendemos
entrar, que fica a 20 milhas do porto.
Chegando às 6 da tarde, a um ponto que prefixamos como objetivo para esta
noite, que fica há 20 milhas da entrada e 40 do porto, deixaremos o barco na capa até
o amanhecer, procurando não ir para cima da barreira, mas também não perder
barravento, para não ser obrigado na manhã seguinte a orçar.
Com a proximidade de terra, centenas de gaivotas marcaram a sua presença.
Na capa, o barco ficou com a proa para o S, mas o vento aumentou e
derivávamos muito. Por isso, às 2 da manhã, virei de bordo e comecei a me
aproximar de terra.
Apesar da lua cheia, as nuvens cobriram tudo, e a noite se tornou escura.
O vento soprava, tentando espichar mais a driça do tormentim, que enrugara, fiz
um pouco mais de força no guincho menor do mastro, que saltou arrebentando a base.
Levei uma porretada no queixo, que fez subir uma laranja e começou a sangrar. Não
sei porque toda chegada tem que ter vento forte, uma triste coincidência. Também o
guincho estava subdimensionado, tinha faltado dinheiro.
Amanheceu. Nada de sol, nem estrelas. Vento forte, tombo de mar, espuma
correndo por cima das águas.
Tinha como último recurso apelar para o radiogônio, a estação local. Quando
sintonizei, liguei o motor para ajudar. Tínhamos uma direção, mas ninguém sabia a
distância do porto.
As dez da manhã, apareceu uma sombra de terra e sumiu, mas a arrebentação
nos arrecifes de fora era bem visível, assim como os 2 navios montados no arrecife e
o grande farol.
Toquei pra frente e peguei o canal de dentro mas o porto ainda estava a 15
milhas E foi no meio da laguna que peguei o vento mais forte, e muita chuva, que me
deixou com os olhos ardendo.
Via as boias com dificuldade.
Manobrando com cautela, todo apavorado, com medo de errar o canal, enquanto
o barco não parava de enfiar a borda n’água.
No meio de todo aquele sufoco, avistei por entre a cortina de grossos pingos de
chuva duas velas.
Só se for barco fantasma, mas logo vieram outros, e outros, era uma regata no
meio de todo aquele tempo.
Eles conhecem o canal de olhos fechados, enquanto eu investia em terreno
desconhecido.
Continuei avançando com dificuldade. Apareceram as casas, por último a
marina, com sua floresta de mastros.
Entrei marina adentro, na maior cara de pau, logo me informaram onde ficava o
cais de visitas.
Os vizinhos me ajudaram na atracação, logo um casal australiano, ao saber que
era solitário e tinha estado 21 dias no mar, me convidou para uma refeição que
estavam preparando.
Aqui hoje é feriado, mas não sinto diferença, para mim todos os dias são iguais.
No clube depois me informaram que o vento registrado foi de 40 nós com
rajadas de 50.
6 de outubro de 1980
Está previsto para amanhã, pela manhã, o zarpe do porto de Noumea. O destino,
Thursday Island, Austrália, mais exatamente o Estreito de Torres, um rio dentro do
mar, onde as correntes de maré são grandes, onde todas as águas passam do Pacífico
para o indico, e vice-versa, por entre os arrecifes da Grande Barreira.
Não vou mais a Papua Guiné, pois não só não encontrei a carta como já não
tenho tempo.
Logo que me instalei na marina, o C.N.C., onde pude ficar 15 dias sem qualquer
ônus, fui tratando de obter a visa para a Indonésia, e olhe a surpresa.
A visa de turista se consegue em 2 dias, mas, por se tratar de um país formado
por 13.000 ilhas, para obter uma permissão para ir de barco, deve-se escrever para a
embaixada brasileira em Jakarta, e aguardar, pelo menos 1 mês ou 2, pela
autorização.
Isto me apavorou, mas logo encontrei a saída. Pegaria aqui a visa pessoal e
aguardaria a autorização para o barco em qualquer porto adiante, pelo correio. Não
foi fácil convencê-los a me dar a visa sem ter passagem de ida e volta, um dos
requisitos.
Aparentemente, tudo arranjado.
Uma vez em Thursday Island receberia a visa, mas já teria passado o pior, que
seria a travessia do Estreito de Torres, onde as correntes de maré atingem às vezes
dimensões superiores à própria propulsão do veleiro.
Se é contra não se avança. Se é a favor, navegando por entre corais, apavora.
Esta travessia faz tremer as bases de qualquer marujo, e a cada dia que passa estamos
mais longe da boa época, que já se foi.
Demorei arrumando o barco. No primeiro dia, quando cheguei na embaixada, a
recepcionista já tinha saído. O embaixador me recebeu muito bem, mas teria que
voltar no dia seguinte para preencher os formulários.
A embaixada ficava numa rua, lá por cima do morro, na volta fui andando a pé,
descendo a ladeira, que nem rio em busca do mar, ia em busca do porto.
Passei em frente a uma butique de roupas bonitas. Parei e dei uma olhada. São
da Indonésia, explicou uma moça.
- Interessante - falei -,vim justamente da embaixada, mas a moça não estava.
Pois é comigo que você vai tratar amanhã.
Uma incrível coincidência. Terminei ficando amigo de Catherine, que veio com
o irmão Maurice me visitar a bordo, ficamos todos amigos.
Daí em diante não paramos. Festa na casa de uns, churrasco na casa de Alex e
Serge, dois vietnamitas nascidos na Nova Caledônia, passeios pela cidade, etc…
Assisti na televisão um show de Vinícius de Morais, Toquinho e Tom Jobim.
Vinícius falando em francês e eu me lembrando que a esta altura ele está debaixo do
chão.
Resta sem dúvida a lembrança e os seus poemas cantados pelo povo e
espalhados pelo vento.
Resolvi trabalhar.
Comprei uma catraca nova para repor a quebrada. Uma âncora de 45 libras
(22kg), mandei fazer um 4º riso na vela grande o que me possibilitará reduzir a área
vélica a 6m’, o que se tornou indispensável.
Na veleria, comparando a minha vela com as feitas na Nova Zelândia, vi que o
tecido, o mais pesado que encontrei no Brasil, era demasiadamente leve. A esta altura
o negócio é dar sorte, arriar o pano com antecedência.
Vedei uns vazamentos no tanque de óleo diesel, fiz uma driça suplementar para a
genoa, troquei o moitão fixo por um rotativo, inspecionei o topo do mastro. O tempo
passou que ninguém viu. De dia trabalhando no barco. De noite na casa dos amigos,
ou andando pelas ruas. Aos domingos, pelas praias enfeitadas com os bustos nus, das
louras e morenas, em frente ao Club Mediterranée.
Aqui, creio que a peça de cima está proibida, pois nem as velhas estão usando.
No último dia, peguei um ônibus, dei uma volta pelos arredores, fora da cidade,
para ver uma tribo. Mas só mais ao norte é que eles vivem em regime realmente
tribal, onde não se considera imprescindível a propriedade privada, e onde a terra
pertence à comuna.
Os nativos aqui são atenciosos, mas a raça não é tão bonita como nas demais
ilhas, nem a expressão facial transmite muita coisa. Talvez uma questão de gosto.
A Nova Caledônia é rica antes de tudo pelo níquel, tendo também fosfato,
carvão, prata e ouro.
A fertilidade do solo é bastante prejudicada pela erosão, fruto do desmatamento
e dos constantes incêndios, muito comuns nas épocas de estiagem.
Finalmente, me preparei para ir embora, e avisei a todos que me ia.
Os amigos vieram a bordo e me trouxeram tantos presentes, finalmente um livro
sobre a ilha, com a assinatura e palavras amigas dos familiares de Maurice e
Catherine.
Maurice desatracou o Três Marias, num ato simbólico, e adeus Nova Caledônia.
7 de outubro de 1980
Deixei o porto às 10 horas da manhã. O mar estava manso, apesar do vento SE
estar bem na cara. Venci o canal com a vela grande e motor. O caminho já era
conhecido, às 2 da tarde estava em águas livres, tentando me afastar do grande
arrecife antes do anoitecer.
Lembro-me dos demais barcos, da Nova Zelândia, da Austrália. Conversamos
muito. Sempre termino, involuntariamente, conduzindo o assunto para a vida dos
nativos, gente boa, indefesa.
Imagine que vivem ainda em regime tribal, não têm propriedade privada, a não
ser a roupa do corpo.
Os australianos me falaram que, antigamente, os nativos de seu continente, uma
gente de cor escura e de corpo grande, habitavam toda a costa australiana, região de
terras mais férteis. O homem branco foi os matando, intimidando, afugentando, e
hoje eles vivem mais na região de terras pobres, no interior semideserto, foi o que
lhes restou.
Os australianos os acusam de possuírem um baixo Q.I., mas, na realidade, o que
lhes falta é tino comercial, ganância, sede de poder, motivação pelo lucro.
Vivem procurando produzir o que consomem, em paz com a natureza, as
plantas, os animais enquanto o homem branco vem chegando com a civilização e
destruindo tudo. A natureza, já enfraquecida, se defende como pode.
Em Papua Guiné temos gente primitiva, vivendo ainda quase na idade da pedra,
e o que os protege é a agressividade do meio. Por lá tem um mosquito que em 24
horas faz o indivíduo despedir-se deste mundo. Só assim o homem branco mantém
certa distância.
Falei-lhes por fim dos nossos índios.
Açoitados, escorraçados, perseguidos pelos gananciosos que lhes querem tomar
as terras, tiveram que se afugentar nos confins da mata amazônica, onde a natureza, o
mundo vegetal ainda oferecem uma resistência ao homem branco. As árvores, os
cipós, os espinhos, a umidade, as cobras, aranhas e, por fim, o mais valente de todos
os seres vivos, o mosquito aliado ao índio, oferecem uma resistência silenciosa à
penetração do homem dito civilizado. Mas, por fim, esta mata amazônica, um dos
poucos lugares ainda virgem na face do nosso planeta, será, sem dúvida, domada e
destruída.
O homem branco só vê a natureza como matéria-prima para a sua
transformação. O mesmo homem que fará um dia da Amazônia um deserto, enquanto
irrigando, tenta plantar flores no Saara.
Mas é isto mesmo. O lucro rege a grande sinfonia. Na Austrália, no Havaí, na
Polinésia, na Amazônia, onde quer que esteja.
Uma coisa só resta a concluir.
Cada um que se defenda enquanto ainda pode, escreva a sua história, antes que
outro venha escrevê-la, história que jamais atenderá aos seus anseios, aos anseias de
seus filhos, de seu povo. Só lhe restará o subemprego, a exploração, a miséria,
enquanto “o lucro”, a musa inspiradora desta grande orquestra, passará, por cima de
tudo e de todos, sem dó nem piedade.
É o sistema. Quem não o aceita é logo tachado de comunista, e tem muita gente
que ainda vai nesta onda.
9 de outubro de 1980
Tempo bom, vento de SE brando. O mar manso e de um azul intenso.
Avançamos devagarzinho para o NW e o calor vai aumentando.
Por dois dias estamos vendo de longe as partes mais altas dos montes da Nova
Caledônia, visíveis há quase 50 milhas. Vamos manter este afastamento, pois para W
temos uma série de perigos isolados. Finalmente, estamos navegando no Mar de
Coral, nos aproximando aos poucos da grande Barreira de Corais da Austrália.
A Grande Barreira se estende por mais de 1000 milhas, e vai encontrar ao norte
a Nova Guiné. Lá teremos que atravessar esta barreira, tomando o canal de NE.
Hoje pela manhã, enquanto tirava o meu cochilo, acordei com os panos batendo
e um barulho estranho.
Pulei do beliche. Um navio liberiano me cortou a proa a poucos metros, depois
de contornar-me, como mostrara o rastro na água. Ele passou tão perto que sujou o
vento e os panos bateram. Não gostei nada desta brincadeira e tentava ajeitar as
coisas, ainda tonto de sono.
12 de outubro de 1980
É dia 12 em GW. Na realidade, não sei em que data estamos aqui, neste lugar,
me perdi no tempo e adotei a data de GW do meu relógio eletrônico. O tempo é bom,
botei todo o pano em cima, aproveito para estudar detalhadamente o Sailing
Directions do Estreito de Torres. São umas 30 páginas, recomendações em cima de
recomendações, é tanta coisa que a gente termina ficando tonto.
Levei 3 dias decifrando a tal bíblia, e parece que tornei assim uma consciência
pelo alto das dificuldades da região. Sempre receei ter que passar ali, principalmente
sozinho, e vejo que o dia se aproxima, a gente vai ter que enfrentá-la. Há dias que
estou covarde, há dias que acho que vou atravessar o estreito simplesmente no grito.
Com pouco vento, vou me atrasando, chegarei lá na lua cheia, cabeça d’água, quando
a correnteza está no máximo, mas que fazer? Segundo as instruções, correntezas de 3
a 4 nós são normais, podendo chegar a 7 nós, quando o efeito da corrente de maré se
soma à direção do vento.
Tem que se navegar de dia, fundeando à noite na sota das pequeninas ilhas. Não
temos portos, o fundeio é pouco confortável e Hiscock perdeu aí uma de suas
âncoras. Já afastei-me bastante, já não ouço a rádio da Nova Caledônia. Em Noumea
mergulhei para passar uma esponja rígida na carena do barco, ela estava quase limpa,
apenas uma poeirinha, que largou com o passar a esponja. A primeira vez que limpei
o casco mergulhando foi no Panamá, antes da travessia do Pacífico.
Cheguei nas Marquisas com uma horta sortida. Algas, mariscos, crustáceos,
mas, ficando fundeado na desembocadura do rio, eles caíram todos. Em Tahiti eles
voltaram a crescer, mas indo a 27ºS, com o frio, eles voltaram a sumir; em Noumea,
após 8 meses sem carenar, o barco está limpo. Vamos ver o que acontece com a volta
aos trópicos.
15 de outubro de 1980
Estes dias o vento tem refrescado, mas venho mantendo a genoa em cima a. todo
custo. Esta noite o barco só faltava alçar voo, surfando nas ondas.
Por enquanto, temos 120 milhas, de lado a lado, de águas livres, mas por estes
dias a coisa vai ficar mais apertada, 50 de cada lado, depois 30 e 15 de cada lado,
finalmente o Estreito de Torres, com mil ilhotas e arrecifes por todo lado.
Como o tempo esteve nublado e o sol andou se escondendo, andei preocupado.
Já nem sei que conta que faço, se é ruim por estar nublado hoje, ou bom, pois o
tempo vai abrir adiante, justamente quando a navegação será um imperativo, pois não
se pode ter bom tempo eternamente. Vamos gastar as nuvens agora que o rio está
largo.
Realmente tenho estado muito preocupado com o futuro destes dias que virão,
nesta passagem que ninguém sabe como será.
O mar, com o aumento do vento, se tornou nervoso e criaram-se ondas curtas a
ponto de me afetarem o pescoço, por ter que sustentar o peso da cabeça. Ele dói
estando em pé, mesmo deitado, quando a cabeça rola de um lado para o outro.
Nesta região, o convés tem amanhecido abarrotado de peixes voadores, há dias
que eles ultrapassam 50. O mar aqui é muito piscoso, os peixes grandes arrebentaram
as minhas melhores linhas, só com muito custo consegui embarcar um dourado, o que
me permitiu descansar das conservas.
Estudei novamente as rotas possíveis; de repente me senti animado, veio uma
idéia louca na cabeça.
“Indonésia - Gape To W direto, e o Brasil em seguida”.
Passaria apenas 15 dias na Indonésia e pronto.
Mas Aleixo, você que se sente cansado, às vezes esgotado, arrumou a desculpa
da época dos ciclones para quase não parar até chegar à Indonésia, agora já quer levar
direto de novo.
Quando é que você pára um pouco para viver? Para dormir melhor estas noites
preocupadas que passa acordando sem parar?
De tanto forçar a vista termina-se vendo luzes no horizonte. Quando o vento
refresca, não se consegue dormir. Sempre ligado, sempre atento, receoso de quebrar
algo, dia e noite.
Por que você não pára? Você não viu nada. Será que só o mar lhe basta?
E este é o meu diálogo interno, entre as duas metades.
Esta ideia louca de seguir me encheu o peito de entusiasmo, já não temia, pelo
menos naqueles instantes, a passagem pelo Estreito de Torres.
Era a vitória do outro, daquela minha metade que quer voar, que dominou a
primeira, a cautelosa, desconfiada, medrosa.
No momento, é grande a luta interna. Enquanto uma quer seguir direto, levar o
meu corpo aonde minha imaginação alcança, a outra, a metade cautelosa, quer
desfrutar a vida, passar uns tempos na Indonésia, depois subir para Sri Lanka e só
atravessar o indico na época certa, chegando em Cape Town no próximo verão.
Esta travessia direto que estou bolando representa jogar fora o Pilot Chart, o
Sailing Directions, fazer rumo para a África do Sul dê no que der, ocorra o que
ocorrer, sem lenço e sem documento. Seriam no mínimo 2 meses de mar sem escala,
percorrer 6000 milhas sem avistar terra, exatamente na época dos ciclones.
De uma coisa estou certo. Nunca dei ordens à minha cabeça, nem sei de onde as
ordens saem. Elas aparecem na hora exata, e as coisas acontecem. Sou um mero
expectador dos meus próprios passos, das minhas próprias loucuras.
18 de outubro de 1980
Está anoitecendo. Uma gaivota cansada, após mil voltas, terminou sentando na
ponta da retranca. Parece que aí ela vai passar a noite.
Provavelmente ela vai estranhar o balanço, ela que está acostumada a pernoitar
nos penhascos, imóveis rochedos, indiferentes a todo o movimento do mar.
O sol já foi faz tempo, e as nuvens cobriram o céu, não me dando a chance de
pegar sequer uma estrela. Logo hoje que estou me aproximando de terra. De um lado
a Nova Guiné, do outro, os arrecifes avançados da grande Barreira, os Eastern Fields.
Vou tentar passar no meio do canal, umas 30 milhas para cada lado, mas isto
para uma noite em mares sujeitos a grandes correntadas é canal apertado.
Principalmente se faltarem as estrelas no entardecer.
Estou portanto como a gaivota, no meio do mar, vamos juntos passar uma noite
pouco confortável. Ela pelo balanço, eu pela insegurança.
É o tão esperado Estreito de Torres que se aproxima, estamos a 230 milhas do
início do verdadeiro canal.
Voltei a estudar tudo, principalmente as distâncias. A conclusão é que o perigo
começa às 4 da madrugada. Assim sendo, me enfiei no beliche para recuperar as
forças. Não se sabe quando se poderá dormir novamente.
Às 10 da noite abriu um buraco no céu. Com pouca claridade da lua, que
deixava o horizonte meio turvo, peguei uma estrela, que só fez aumentar a confusão.
As 11h, porém, o céu ficou todo estrelado. Peguei 3 estrelas que fecharam com
um triângulo de erro mínimo. Creio que dá para confiar. Apesar de fictício, o
horizonte estava generosamente iluminado pela luz da lua.
Temos que confiar. Que jeito?
Esta é a vantagem do solitário. Você fica de quatro às 24 horas, mas também
ninguém lhe chateia. Se você quer falar, fala com o seu livro, escreve umas palavras,
desabafa, e segue em frente.
A uma da madrugada, pego 4 estrelas, mas o triângulo desta vez não fecha. O
jeito é esperar pelo amanhecer, fazer um bom ponto e então dormir.
Amanheceu. Os olhos ardem. A gaivota se foi sem dar aviso. Ela apenas
repousou as asas, mas não conseguiu dormir, acompanhou-me nesta noitada.
Imaginando ter que manobrar de repente, fui forçado a soltar a contra-escota da
retranca. Com isto, nos tombos de mar, ela era simplesmente projetada como por uma
catapulta, mas não desistia.
Dava umas voltas em torno do barco e assentava de novo.
O ponto do amanhecer fechou bem, também o gônio de Port Moresby. Aproveito
para descansar, pois a próxima noite será ainda pior.
O barco avança bem, mas de tão agitado não consigo dormir.
Faço o ponto de hora em hora.
O mar está manso, o barco avança e faltam apenas 130 milhas para o primeiro
farol, onde começa já o canal balizado do Estreito de Torres. É o Bramble Cay. Todo
segredo vai consistir em encontrá-la.
É uma ilha minúscula no meio do canal com um farol que bota 14 milhas.
Dezoito milhas ao sul, temos arrecifes, 14 milhas ao norte, temos novamente
arrecifes. No meio as correntadas.
Este é o nosso quadro clínico. Deitei-me após o almoço mas não consigo dormir.
Sei que de madrugada estarei morto de sono. Finalmente o tão temido, o tão esperado
Estreito de Torres.
Nos dias mais difíceis eu como gulodices – é sempre assim. Fico com uma
carência de doces, chocolates, biscoitos. O doce compensa a carência de afeto, de
segurança.
São quatro da tarde. Um marlin acaba de cair na linha. Eu o trago até a popa, é
enorme e lindo. Não sei o que faço com ele. Finalmente, ele vai embora após minutos
de emoção.
No céu, aquela névoa que não chega a ser nuvem, mas que também impede
aquele azul intenso. De repente, sinto uma alegria imensa, que substituiu a
preocupação. Que ela seja bem- vinda. O Três Marias deslizava suavemente.

20 de 0utubro de 1980

Fiz o ponto. Há dois dias que vou me embrenhando num funil cada vez mais
estreito e torto, no formato de um caracol. Há dias que navego próximo a obstáculos
submersos, sem poder
Sequer vê-los, confiando só nas estrelas. Hoje talvez o dia de ver o Bramble Cay
e seu farol, que está a 45 milhas, se é que os números não me abandonaram, não me
traíram.
Tentarei dormir na sota de uma pequena ilha, mas daqui para lá são 75 milhas.
Para ter uma chance, com este vento brando, apelei para a ajuda do motor, pois é o
lugar mais próximo possível de fundear. Caso não chegue lá, terei que passar uma
noite inteira na capa, sujeito a correntadas no meio dos arrecifes.
Estamos fazendo o possível mas os olhos ardem, o cansaço domina, o raciocínio
se torna lento, a gente começa a errar mesmo as contas de somar, tendo que se fazer
tudo duas vezes, antes de se plotar o ponto na carta.
Só uma coisa está impecável: o tempo; e que ninguém nos ouça.
São 11 horas, devemos estar a 18 milhas do farol, mas as retas de posição da
manhã não se cruzam.
Observo qualquer anormalidade ' na superfície do mar, corro para a proa, mas
não vejo nada.
O jeito é aguardar.
A meridiana saiu perfeita. Farol a 13 milhas. Uma hora depois não encontro
nada. De um lado, água, do outro, água, em cima o céu, e acabou. Estou cercado por
estes mistérios, mas nada de farol.
Aproveito que o mar está liso e subo no mastro, fico em pé em cima da cruzeta e
observo o horizonte. Nada.
Comecei a suar.
Lembrei-me de um tripulante que em Rarotonga criticava o seu comandante.
“Ele não sabe nada. Imagine que faz 5 a 6 observações para determinar a sua
posição”.
O que ele diria se soubesse que no desenvolvimento do caracol, nos últimos dois
dias, calculei, entre sol e estrelas, 34 retas de posição e ainda não encontrei o farol.
Hei.
Avistei o farol, é um palitinho, talvez à noite seja mais fácil de ver; mas de dia
estava da mesma cor da bruma.
A navegação estava impecável.
Vamos Três Marias, agora temos que vencer 35 milhas até o ancoradouro, até a
Steafens Island.
O barco andou a vela e motor. As 4h apareceu a ilha e às 7h estava fundeado,
talvez a uma milha de terra, um fundo de 9 metros.
Dei 50m de corrente e inaugurei a nova âncora, pela qual paguei uma fortuna em
Noumea, mas hoje durmo tranquilo. Só a âncora tem 22 quilos, fora a corrente.
Ouvia um samba, enquanto tornava chá e um mingau. O barco balançava um
pouco, pois fundeamos em mar aberto, sem porto, apenas na sota da ilha.
Pensando bem estou na Austrália, no outro lado do mundo.
E o que foi que eu vim fazer aqui sozinho?
21 de 0utubro de 1980
Acordei às quatro da manhã. Que beleza é dormir.
Ajeitei o barco, antes que o sol despontasse no horizonte.
Com a primeira claridade o Três Marias já ganhava caminho.
Aqui a navegação é visual. A cada 5 ou 10 milhas, uma ilha, um arrecife à flor
d’água, um farol.
Aqui o mar é calmo. O swell não penetra devido à barreira exterior, e a
ondulação local é enfraquecida pelo grande número de ilhas e arrecifes.
Pela manhã, a corrente esteve a favor e fizemos 45 milhas. À tarde só 23, e às 5h
já estava fundeado na sota da Sue Island.
A ilha tinha casas bonitas e um arrecife que a cercava. Deu vontade de ir em
terra mas fiquei. Amanhã, se tudo correr bem, estaremos em Thursday Island. Faltam
apenas 55 milhas, o tempo está ótimo.
22 de 0utubro de 1980
Já saímos com atraso; às 6 e meia, fizemos rumo para Hervey Rock,
contornamos e fomos em frente.
Como o fundeio de ontem me permitiu uma análise precisa da maré, à hora de
sua inversão, adiantei no motor, para na maré alta passar por cima de um banco.
Tomar o Flinders Passage, ganhando assim pelo menos 10 milhas.
Tudo correu bem, o balizamento aqui é caprichado, e às 13 horas estava atracado
a contrabordo do Lumen, que dá assistência aos faróis australianos.
As autoridades vieram a bordo e preencheram mais de 20 folhas de papel.
Tornaram as armas e lacraram em um armário todas as conservas de carne ou leite
para evitar trazer doenças para os animais locais.
O comandante do Lumen me convidou para jantar a bordo e ofereceu o navio
para tomar banho quente, ou o que precisasse.
A recepção foi calorosa, e após 15 dias sem pronunciar uma só palavra tirei o
atraso falando sobre o Brasil, sobre a viagem.
Analisando este último trecho, posso dizer que o mais difícil foi encontrar a
primeira ilha, o primeiro farol. Depois bastava prestar atenção se era de pedra ou
estrutura metálica, a sua cor, pois navegávamos apenas durante o dia. A água era tão
limpa, que a 200 m podia-se distinguir com precisão um lugar raso.
Mas, pessoal, o Três Marias acaba de atravessar um dos trechos mais difíceis de
toda a viagem, o Estreito de Torres. Cruzou a Grande Barreira e completou um pouco
mais de meia volta ao mundo.
9. DA AUSTRÁLIA À INDONÉSIA
28 de outubro de 1980

Amanhã completo uma semana por aqui e vou para Weipa, a 150 milhas, onde,
segundo os australianos, está a maior mina de bauxita do mundo. Passei dois dias a
contrabordo do Lumen e ganhei duas caixas de provisões, para não ter que comprar
outras, pois a quarentena trancafiou quase tudo.
Fiz muitas amizades. Colin Stewart e Terry, do departamento de assistência aos
aborígenes, vieram a bordo, depois me convidaram para jantar, para sair de lancha,
para pescar de mergulho nos arrecifes da Grande Barreira. Isto aqui é uma reserva de
aborígenes. São umas mil ilhas, como não se tem trabalho para todos a maioria vive
de ajuda governamental, em casas bonitas, rodeadas de jardins.
A matança dos nativos é uma coisa do passado. Todos contam que depois das
festas a rapaziada saía montada a caçar uns aborígenes como distração. Hoje o
governo cuida deles. A terra aqui é toda do governo. Isto evita que um americano
rico, ou um capitalista qualquer, compre as terras, e eles tenham que mendigar ou
roubar por aí.
São tantas ilhas, ilhas ao sol, de vida fácil, de amor ainda mais fácil, onde os
filhos nascem quase sem ter pais. Conheci muitos aborígenes e, também, gente das
ilhas, um pouco diferente. Os aborígenes são originários do continente, muitos deles
vivendo em tribos nômades, vivendo no deserto, com sua cultura própria. É uma
sociedade onde se respeita o velho, considerado enciclopédia ambulante, pois não
tem linguagem escrita. Eles, com sua cultura, conseguem sobreviver, no deserto, onde
nenhum homem branco se adaptou.
Aqui as atividades principais são a pesca da lagosta e a pesca de pérolas. Eles
pescam as conchas, para introduzir as esferas, para a formação das pérolas
semiartificiais.
Antigamente, quando eram pérolas totalmente naturais, esta atividade era muito
rendosa. Um grande número de mergulhadores japoneses e malaios vinha aqui ganhar
o salário do medo, mergulhando 50 braças, respirando ar comum, estourando
qualquer tabela de segurança.
A maioria morreu. Mas quem resistiu ficou milionário.
O cemitério, só em Thursday Island, tem 450 deles, e 700 em todo o Estreito de
Torres.
Hoje são pescadas as conchas jovens, transportadas para as fazendas marinhas,
onde, após o enxerto, são alimentadas por vários anos, até que a pérola semi-artificial
se forme.
Também barcos de pesca arrastam redes de camarão, durante a noite, quando
eles saem da lama para se alimentar.
A pesca da lagosta, do camarão e das pérolas, associada ao lucro das taxas que
os navios pagam para atravessar o Estreito de Torres, como no Canal do Panamá, são
mais do que suficientes para sustentar os aborígenes desempregados com pensões
altas. A região é autofinanciável, e o governo reinveste boa parte deste dinheiro nas
reservas.
Além de pensões, os aborígenes recebem casa, educação, orientação e
financiamentos nos negócios.
Tive a oportunidade de conhecer e mergulhar com Beny, o único da ilha a
terminar a universidade, que hoje orienta o seu povo no desenvolvimento industrial,
no departamento de assistência aos aborígenes.
O mais impressionante é que o homem aqui é anfíbio. Poucos têm carro, mas
todos têm um caiaque de alumínio com motor possante, capaz de vencer a forte
correnteza. Um pé em terra e outro na água, ninguém usa sapatos, mas uma sandália
de plástico.
Tive bastante contato com pescadores, nos barcos que arrastam camarão.
Geralmente são 4 tripulantes, dois homens e duas mulheres. Uma cozinha, e a outra é
marinheira de convés.
Eu que olhava os calos nas minhas mãos, com muito orgulho, tive que pôr a
viola no saco. Kathleen, lourinha de cabelo enrolado, tinha a mão que era um calo só,
sem perder no entanto a graça, a beleza, e aquele sorriso de mulher.
Aqui as mulheres vivem no mar e são ótimas tripulantes. Lembro-me da mulher
brasileira, na maioria das vezes inútil a bordo, uma verdadeira bunda-mole,
aguardando que alguém lhe abra a porta ou puxe a cadeira. Só na classe pobre é que a
mulher dá duro, acompanha o homem.
Kathleen, no barco de pesca, faz, por mês, o salário de um engenheiro no Brasil
com 2 anos de formado.
Conheci muita gente de Papua Guiné. Homens, mulheres, pescadores de pérolas,
com seus narizes compridos, sua pele escura e a cabeça pequena. Adoram conversar,
gente amiga e muito prestativa.
Contam que por lá ainda ezistem tribos que nunca viram o homem branco,
algumas canibais, como as que comeram o filho de Rockefeller, há poucos anos atrás.
O capitão do porto, um perito tocador de violão, me falou muito da Indonésia,
dos seus piratas, que andando em antigos juncos, hoje bem motorizados, assaltaram
outro dia um petroleiro.
Assaltaram um barco de turismo, mataram todos os homens e levaram as
mulheres para serem vendidas nos mercados de brancas do oriente, fazer parte dos
haréns, dos donos do petróleo, onde ninguém tem acesso, nem mesmo chega perto, e
nunca mais foram encontradas. Também barcos que íam à Indonésia sem permissão,
que tinham a sua tripulação enjaulada e muita corrupção.
Falaram dos ciclones. Houve um ano, creio que em 1974, passou um em
Barwin, norte da Austrália, que arrasou a cidade. Barcos atracados no porto saíram
barra afora e nunca mais foram encontrados. Oitenta por cento das casas foram
destruídas e a força aérea australiana, com ajuda da americana, evacuou a cidade em
3 dias.
Hoje Darwin está reconstruída.
O próprio capitão do porto me falou de um que pegou a bordo de um navio –
teve tanta gente ferida. Os pingos de água arrancaram toda a pintura do navio.
Atrasado na estação, adiantado porém na viagem por ter feito meia volta ao
mundo sozinho, em 7 meses, não sei se enfrento os piratas do norte ou os ciclones do
sul.
Por enquanto estou indo para Weipa, onde vou tentar arrumar um emprego, para
passar a má época, Caso não dê certo, tomo outro rumo.
4 de ovembro de 1980

Passei 4 dias em Weipa. Cidade que vive em torno da Comalco, empresa que
extrai e exporta a bauxita, o único produto da região.
Recomendado pelo Capitão do Porto de Thursday Island, Mr. Matheus, fui
muito bem atendido pelo superintendente-geral, Mr. Karl Stewart, que por sua vez me
encaminhou para o engenheiro sênior, Mr. Laurie Hikks.
Tudo bem, mas ninguém se interessa por um engenheiro que quer trabalhar
apenas 5 meses.
Antes mesmo que me dissessem não, resolvi tentar, atravessar até Bali. Muito
cedo descobri que estava procurando o emprego que não queria encontrar.
Aqui, neste fim de mundo, todos ganham bem. Um engenheiro não dobra o
salário de um carpinteiro. Um indivíduo que cavava buracos no chão, para fazer uma
cerca, ganhava US$ 1800 por mês. A carência de mão de obra aqui é tão grande que
todos ganham para viver, ter carro e tudo.
Quando cheguei em Weipa os transportes estavam em greve, queriam mais
dinheiro. Todos aqui são sindicalizados.
A Austrália, um país de tamanho continental, com apenas 13 milhões de
habitantes, tem um padrão de vida muito elevado. Associados ao capital estrangeiro,
retiram os minérios a todo o vapor, lembrando os filhos que torram a herança.
Aqui tudo se cópia do americano ou do inglês. Os australianos lutaram no
Vietnan ao lado dos americanos, e, quando o partido conservador ganha na Inglaterra,
ganha também na Austrália.
O fato é que vim a Weipa para conhecer um pouco mais da Austrália e tentei
arrumar um emprego, mais como treino para um dia de necessidade.
O norte da Austrália é como para nós a transamazônica. Quase desabitado, só
vai lá quem precisa de grana. A turma trabalha 2 meses com os subempreiteiros,
depois vai a Cairns, pois aqui só tem 50 mulheres solteiras para 500 homens
descomprometidos.
Conversei muito com os pescadores. Todos ou quase todos me aconselhavam
ficar. Quando o rádio desse o alarme, levaria o barco para os riachos, enfiava no meio
do mangue e amarrava para todos os lados. É assim que o pessoal daqui faz.
Conheci Tony, uma menina baixinha, morena linda, que tocava violão e flauta.
Trabalhava de cozinheira a bordo de um barco de pesca. Ela veio a bordo, e a
tentação de embarcar uma peça destas, dar adeus à viagem solitária era muito grande.
É por estas e outras razões que não posso parar, nem mesmo para ganhar
dinheiro, senão dá moleza no corpo e adeus viagem solitária.
Disse a todos que não gostei do lugar. “Lugar sem mulher eu não fico”. Foi a
desculpa.
Meti logo as cartas no correio, dizendo a todos que me ia, pedi o “Clearence” e
parti. P a constante luta interna, uma verdadeira batalha que se trava no meu íntimo.
Desta vez, a parte louca, violenta, que quer voar, ganhou. A minha banda
cuidadosa, medrosa, foi dominada, amordaçada, amarrada, até que o barco deixou o
porto e aqui estou, orçando, provavelmente estarei orçando a maior parte do tempo,
pois o vento já mudou.
A estação de SE já acabou. Ontem um tufão assolou as Filipinas e os pescadores
diziam: “Foi a estação que mudou”.
A época que precede a estação de ciclones tem ventos fracos, de W e NW, e
finalmente vem o mau tempo.
Para ganhar o mais possível, já saí com a genoa maior. O vento é fraco e contra,
mas com mar liso avançamos bem. Que ele continue assim.
Para trás, ficou o Mission River, infestado de crocodilos, o pó da bauxita, os
barcos de pesca e os homens de negócio.
Sigo em frente.
7 de Novembro de 1980

Vento calmo, tempo bom. Netuno e Eolo estão tramando, estão economizando
vento para mandar tudo de uma só vez. É assim o mês de novembro nestas paragens.
Estamos atravessando o Golfo de Carpentaria (300 milhas).
Agora está mais fresco. Mas há dias que o vento quase pára. O convés fica tão
quente que sou obrigado a calçar os pés. No interior da cabine, na sombra, o
termômetro acusa 35ºC.
Deitado no beliche, completamente despido, de braços e pernas abertos, procura
dissipar o calor. O corpo ensopa, em seguida ensopa o lençol, o travesseiro. Bebo
litros e litros de água, e vem na boca o gosto de má digestão, do suco gástrico diluído.
Come-se mas nada é aproveitado.
Pacientemente espero o fim da tarde, e finalmente a noite fresca.
Estou com a vela grande toda desfraldada e com a genoa.
O vento é fraco e já veio de todas as direções. A esta altura a ordem é andar.
Andar o mais que se pode, aproveitando tudo, e sair o quanto antes destas águas.
Por aqui ninguém toma banho no mar. Se nos rios o crocodilo espera de boca
aberta, no mar uma medusa (água viva) transparente é o maior dos perigos. Tocando
o braço lhe deixa paralisado. Tocando o corpo, você pode ir se despedindo dos
amigos, pois acabou de ganhar uma passagem grátis para o outro mundo. Elas
habitam as águas do norte da Austrália e são mais frequentes no verão.
Encontro diariamente, na superfície das águas, serpentes marinhas de diversas cores,
às vezes com 1m de comprimento e tendo uma nadadeira no rabo.
8 de Novembro de 1980

A calmaria se estabeleceu desde ontem à noite. O mar ficou liso que nem
espelho e refletia nitidamente as estrelas. Ao amanhecer, uma neblina impedia
distinguir o céu do mar.
O sol foi se elevando, o calor aumentando mas nada de vento.
Três dourados nadavam em círculo, cortejando o barco, e um monte de
peixinhos de todas as cores acompanhava o seu arrastar preguiçoso.
Com o mar liso, eles vinham até a superfície, ora beliscavam algum sargaço.
Parecia mais um parque de diversões. Davam saltos, cambalhotas e soltavam bolhas
de ar.
Me divertia jogando-lhes tudo quanto era besteira. Eles vinham, examinavam e
voltavam a brincar.
Fiquei pensando. Quem sabe por que saí mundo afora, a vagar pelas águas, e
agora estou aqui boiando, no meio de uma calmaria.
Veio uma aragem, os peixinhos sumiram, e o barco começou a avançar
lentamente.
11 de Novembro de 1980

Calmaria total. Como se isto fosse alguma novidade. Estamos fazendo uma
média diária de 40 milhas e de Weipa até Bali temos nada menos de 1.650 milhas.
Teremos que ir ao norte para evitar uns obstáculos ao sul, depois voltar a descer
e passar ao sul de Timor, por fora de suas águas territoriais. Timor é lugar de conflito
e está com os portos fechados ao estrangeiro.
Aproveitei estes dias para fazer um estudo detalhado das Cartas Piloto.
Esta região, o Mar de Arafura, aparece ora como Pacífico Oeste, sem muitos
dados, ora como Indico Leste, onde uma linha imaginária é traçada, entre o vento SE
e o NW, as monções. Naturalmente entre elas a calmaria, o Doldrums, mais uma vez.
Só em dezembro é que as monções de NW dominam.
Os primeiros ciclones registrados são datados do dia 12 de novembro, em
dezembro eles são frequentes.
Além de ter que orçar e ter a corrente contra, temos calmarias intermináveis. A
rádio australiana acusa ventos de 2 a 5 nós vindos de NW, mas nem estes aparecem e
a calmaria volta a reinar.
Creio que se não houver uma perturbação meteorológica maior, este ventinho
frouxo vai ficar aí até quando chegarem as monções, junto com os ciclones. A esta
velocidade, se as coisas não mudam, só chegaria na Indonésia nos meados de
dezembro, época já de grande perigo; seria expor o barco. Ninguém viaja a vela por
aqui, a esta época do ano.
Lembrei-me de Weipa, que não quis ficar. São tantos os motivos.
Meu Pai deve ter feito, há 3 dias atrás, 84 anos. Gostaria de voltar cedo, uma
maior chance de revê-la. Soube que operou- se de hérnia, que está bem, apesar de
debilitado.
Pelas suas cartas, vejo que acompanha apaixonadamente a minha viagem, é
talvez o maior dos meus fãs, atento às minhas dores e minhas alegrias.
Apesar de num esforço final ter deixado Weipa, me aventurado nesta travessia,
ainda que com o coração constrangido tenho que reconhecer que a travessia está
sendo difícil. Caso tivesse a permissão para a Indonésia, bastaria subir, ir ao norte,
fugir dos ciclones, ir pingando de ilha em ilha. Apesar de ser o vento contra, as
distâncias são pequenas.
Sem a licença, sou forçado a ir direto a Bali, um lugar turístico, onde espero não
ter problemas. Por via das dúvidas, estudei uma arribada para Darwin.
Darwin fica a 350 milhas, e não tenho a carta detalhada. Fiz os estudos
analisando a carta geral, com auxílio de uma lente. Marés com 10m de altura são
responsáveis por uma forte correnteza.
Soube que nesta época do ano a maioria dos barcos, nestas paragens, são
retirados da água. Eles cavam no chão um buraco para a quilha e assentam o barco,
que fica baixinho e cômodo para morar em terra, voltando ao mar na outra estação,
além de ficarem estáveis em caso de ciclone.
O pior é que este esforço agora em direção a Bali, em vez de resolver, apenas
abre a chance de ir direto de Bali a Cape Town e voltar ao Brasil após 13 meses. Isto
é, um grande esforço agora abre caminho apenas para um esforço ainda maior e
ninguém dá a volta ao mundo pegando apenas a boa estação. Ela não coincide. Isto
quer dizer que a próxima travessia seria numa época ainda pior.
De qualquer forma, só tomarei a decisão de ir a Darwin ou não daqui a 300
milhas. Chegando lá ou vou ao sul, para Darwin, ou sigo em frente, para Bali.
17 de Novembro de 1980

O vento melhorou. Fizemos 58, 86, 120 e 90 milhas. Ao completar 11 dias de


mar, já tínhamos percorrido a metade do caminho. Devagarzinho, fui subindo,
ganhando o norte, fugindo de Darwin como quem foge de uma doença. A ideia de
arribar, de ir a Darwin caiu, como cai o cascão de uma ferida já sarada.
De repente me vi navegando no Mar de Timor, o mar de Arafura ficara para trás.
Surgiu um impasse. Subir um pouco mais, ir acima da latitude 10º, onde o mau
tempo é inexistente, enfrentar as patrulhas da Indonésia, ou ir pelo sul de Timor,
contornar rapidamente, após entrar em faixa perigosa e subir logo em seguida.
O barco se arrasta devagarzinho. Deitado, calçado com um monte de almofadas,
devoro livro após livro. A noite, poupando a carga da bateria, prefiro ouvir música.
Aqui entram no ar as estações das Filipinas, da Coreia, do Vietnã. Não
compreendo o que dizem, mas a sua música fala a linguagem universal, me dá aquele
banho de oriente, com seu ritmo lento, meloso.
E ao escutar estas nações todas e mil outras pequeninas nacionalidades que
penso nelas e na força que fazem para sobreviver às pressões das grandes potências.
Os povos estão sempre expostos a dois perigos.
O externo, o imperialismo. Antigamente se conquistava e pronto. Hoje, isto
mudou de nome. Passou a chamar-se ajuda, apoio, proteção, mas no fundo é o
mesmo.
O outro perigo é o interno. Às vezes o governo está para o seu povo, como uma
doença qualquer, uma coceira braba, um cancro, uma sarna, contra quem luta
tentando livrar-se. Às vezes, ao passar uma, vem logo outra doença, não menos pior,
principalmente se o mal não foi bem erradicado.
E assim vou ouvindo o rádio, a música dolente do Oriente e vou pensando no
seu povo, na sua gente, na nossa gente.
Sou a favor de um governo mundial, mas, com respeito às diversas
nacionalidades, suas tradições e seus costumes, uma riqueza inalienável da
humanidade.
Os dias vão passando e eu envolto em sonhos. Com grande espanto, tenho que
confessar, sem medo de errar, sozinho no mar, posso sentir tudo, menos solidão. E
esta descoberta me apavora.
19 de Novembro de 1980

Hoje o dia se fez de grande claridade, e avistei as montanhas de Timor, com


2500m de altitude, há 40 milhas de distância. sempre bom avistar terra, mas convém
manter a distância.
Fui me aproximando por ser forçado a passar entre os arrecifes ao sul e Timor ao
norte, 30 milhas para cada lado.
A pressão vai baixando, o que preocupa. Mas com pressão alta era calmaria. Um
pouco mais, passando ao sul de Timor, e estaremos em águas mais livres, tendo terra
apenas pelo norte e muita água pelo sul.
23 de ovembro de 1980

Passaram-se mais uns dias, estamos a 170 milhas de Bali. Estes dias foram
acompanhados de chuvas, trovoadas e ventos de açoite. Mantendo a genoa em cima,
procurando andar o mais possível, tive que em um certo instante arriar a genoa dentro
d’água, pois já era tarde para fazê-la corretamente, só depois, a muito custo, tomando
chicotadas de todo jeito, pude trazê-la de volta ao convés. Depois foi a hora de aplicar
o 3º riso na vela grande, mas assim que passou voltou tudo ao normal, icei as velas de
novo.
Estamos agora na latitude 10ºS e já fora da área perigosa. A chegada a Bali está
quase assegurada, precisando sem dúvida tomar os cuidados de sempre.

Mal cessou uma preocupação, uma outra toma logo o seu lugar. Tem horas que
penso ser um eterno preocupado e novamente me rói o peito uma nova indecisão.
Ficar, aproveitar a vida, parar um pouco, descansar. Depois subir, ir a Cingapura,
Tailândia, Ceilão, India, matar a minha sede de conhecer povos, costumes, ou ir
diretamente daqui a Cape Town, África do Sul, e finalmente o Brasil.
Tenho lido bastante literatura russa, no original, isto tem me feito lembrar de
meu Pai, da minha Mãe, e de que nunca voltei à Ucrânia, o lugar onde nasci durante a
guerra, conhecendo apenas a história do meu nascimento. Meu Pai é, sem dúvida, o
laço mais forte que me une ao meu passado, porque ele fala, explica, conta muitas
vezes as coisas. Minha Mãe é calada, foi com ela que aprendi a gostar da solidão. Ela
adora ficar só.
Ir direto a Cape Town, atravessar o Oceano Índico, o mais ousado dos oceanos,
fora de época, em um só fôlego, tentar chegar na Africa do Sul no início do outono,
iria requerer de mim um sacrifício muito grande, além de não matar a minha sede de
conhecer povos, pois só conheci mares. Só parei para reparar, para abastecer e muito
mal para descansar. Pouco vi, pouco vivi, apenas andei, e esta volta prematura selaria
esta sorte.
Se por um lado esta volta rápida é boa, chego, publico o meu livro, dou a
mensagem aos jovens brasileiros. Revejo os meus Pais, os meus Filhos, meus
Amigos, por outro lado é ruim, pois não sei se conseguirei assentar, reiniciar uma
vida nova. Nova família, mais filhos, nova casa, novos ideais. Provavelmente partirei
de novo, pois voltei sem concluir todos os passos do meu sonho.
Tudo isto não sai da minha cabeça. Durmo e acordo com esta indecisão,
enquanto o Três Marias avança devagarzinho.
As vezes me volto para dentro de mim e penso como é fácil a vida.
Levando-a com o mínimo, sem luxo, pensando, admirando as coisas belgas da
natureza, tendo na mente apenas uma preocupação. E preciso chegar, não se pode
naufragar.
Apesar de tudo, sempre mora em meu peito um monte de revoltas.
Hoje sou forte, instruído, menos vulnerável às injustiças.
Lembro-me dos pobres e de que também já fui pequenino.
Lembro-me de quando chegamos, imigrantes, meu Pai, agrônomo, foi trabalhar
numa fazenda, e morávamos no socavão que existia abaixo da casa do patrão.
Meu Pai se desentendeu com a mulher do patrão, Lizete, sobre as técnicas a
empregar, e o contrato foi cancelado. Eles tinham que dar a meu Pai um prazo para
ele sair de casa, mas não.
Quando ele foi à cidade, Lizete chamou uma turma. Lembro-me muito bem,
tinha 11 anos, e os homens pareciam extremamente altos. Tudo nosso, o quase nada
foi parar no passeio, no outro lado da rua. Lembro-me que o armário abriu e a louça
caiu pelo chão quebrando em pedaços, enquanto Lizete dava as ordens.
Naquele tempo, o mundo me pareceu difícil, os homens agressivos. Com 11
anos nada podia fazer a não ser olhar apavorado, mas dentro de mim se formava uma
bandeira:
A luta eterna contra a injustiça, contra o privilégio dos ricos e poderosos.
Hoje, formado, instruído, não tenho maiores dificuldades. Mas nunca esta poeira
assentou na estrada da minha vida, nem o mar conseguiu lavar os tempos difíceis da
minha memória.
19 de dezembro de 1980

Deixei Bali às 10 horas da manhã, após passar 25 dias maravilhosos, que se


escoaram com uma rapidez incrível, apesar de ter sido a mais longa parada em toda a
viagem.
Lembro-me que chegando a correnteza no canal balizado era bem forte. Lá
dentro, 8 veleiros descansavam e o Três Marias também lançou a sua âncora.
Logo chegou um rapaz que fazia um trabalho autônomo, tomando conta dos
barcos, fornecendo informações, óleo diesel, pessoal para entalhar os barcos e tudo
que fosse do seu alcance.
Fui fazer os papéis do barco, o que levou 6 horas, pois são 7 carimbos, a saber:
Marinha, Capitania do Porto, Administração Portuária, Imigração, Polícia,
Quarentena, Aduana.
Uma vez tudo pronto voltei a bordo. Planejava descansar, pois muito pouco
fechara os olhos na noite anterior, regada a chuvas e trovoadas, mas não foi possível.
Os tripulantes do Júpiter, Steve, Gary e John, me levaram para jantar em Kuta, cidade
a 10 minutos de carro, onde está a maior concentração de turismo já vista.
E bom comer bem, após 21 dias de mar. Muita gente, muita mulher na rua,
muitas casas, só fui deitar-me bem tarde. Finalmente tudo isto merecia uma
comemoração. Saindo do Brasil, estava no Oriente, exatamente em Bali.
Benoa, onde está o barco, é apenas o porto, e está longe de todo o movimento.
Alguns botecos (warum) vendem comida (macan), que com meio dólar deixa
qualquer cristão de barriga cheia. A comida é tão barata que cozinhar a bordo dá
prejuízo, e foi aí que descobri a razão de tanto turista. O alojamento custa 2 dólares,
um quarto para dois, com banheiro.
No warum em frente conheci Cassie, que além de vender comida, cerveja, tem
também um livro de registro dos iatistas, e foi ela que me contou o que se passou com
Carlos, do El Milagro, e sua mulher Lúcia. Ela me contou que Carlos caiu da
motocicleta, quebrando a perna, foi levado para o hospital desacordado. Em outras
palavras, correu sangue brasileiro na ilha. Resolvi não andar de moto, pois aqui são
como formigas, e o tráfego louco, com estradas sem acostamento. São carroças,
bicicletas, motos, carros, triciclos, além dos pedestres que fazem verdadeiras
acrobacias para atravessar de um lado a outro. E o oriente.
Resolvi portanto andar a pé, pois já tinha o exemplo de Carlos, e o transporte
coletivo, o bimo, está por toda a parte.
Fui a Dempassar, recolhi o “Crusing Permit” que me aguardava no correio. Nas
ruas, o povo com o seu traje típico, muitas cores. Bali, segundo dizem, é bem
diferente do resto da Indonésia. A raça é outra e o povo todo especial.
Passeando pelas ruas, fui entrando de loja em loja, fui aprendendo a barganhar.
Você pode oferecer 30% do que pedem, que você leva na certa, é o mesmo costume
de Marrakech.
A feira de Batiks, frutas de todos os sabores, temperos de cheiro forte, são as
especiarias, vendidas por mulheres de olhos amendoados, com um ar misterioso.
Sempre que podia, ia à feira, comprava frutas, conversava com o povo por
sinais, pois aqui poucos falam outra língua, o que me forçou a aprender umas
palavras.
No meio da cidade, passa um rio que, apesar de bastante poluído, está sempre
cheio de banhistas. Banhar-se nos rios é o hábito querido dos habitantes de Bali. A
tarde, você pode vê-los aos montes, nos rios, nas valas de irrigação das plantações de
arroz, ou nos córregos que geralmente acompanham as estradas.
Os homens ficam completamente nus na frente das mulheres, isto do lado do
asfalto, os carros passando. As mulheres ficam de calcinha, até mergulhar, e aí tiram
o resto para lavar, e depois saem peladas e se enrolam na toalha.
Participei destes banhos, principalmente quando o grupo era interessante, mais
pelo prazer do contato que pelo prazer do banho.
Enquanto me banhava, conversava com a turma, era uma experiência nova e
interessante.
Aqui o ser humano não perdeu o direito de ficar despido, direito inato, que a
humanidade deve procurar recuperar sem nenhuma reserva.
Resolvi encomendar logo os serviços de entalhe do interior do barco. O suporte
do mastro ganhou um par de dragões entrelaçados, arrodeados de flores. Segundo o
artista, “a orgia dos dragões”. Também as estantes ressaltaram com os novos entalhes.
Nas anteparas foram pendurados uma série de trabalhos de artistas de Bali, hoje
incorporados ao Três Marias.
Aproveitei e encomendei um jogo de xadrez, com peças grandes, um verdadeiro
jogo de reis.
Os artesãos aqui são de mão cheia, trabalham com rapidez e perfeição. Também
pintam muito, são milhares de pintares, principalmente em Ubud, usando
infelizmente cores à base de água que, por isso mesmo, são pouco duráveis. Isto me
desestimulou a comprar um maior número de obras. Gosto de coisas poucas, mas
duráveis.
As pinturas de Bali são pouco duráveis, q quando bonitas apenas aumentam a
dor, por saber que logo logo vão desaparecer.
A mulher, no oriente, vale pouco. Em Bali, porém, ainda vale algo.
Com tanta religião, com mais de 1000 templos em uma pequena ilha, além das
pequenas capelas em cada casa, onde se fazem as oferendas, estas mulheres não se
entregam ao turista e têm um grande equilíbrio.
Elas não temem o turista. Você pode lhes segurar as mãos por ì meia hora,
enquanto conversa. Elas têm uma segurança total, são seguras de si. Nunca ouvi dizer
que um homem branco conseguira uma balinesa, apesar de serem fáceis nas outras
ilhas da Indonésia.
As mulheres de Bali seguem a religião do induísmo e nós, para elas, somos
descrentes. Enquanto os rapazes se divertem a valer com as louras australianas que
infestam as ruas. Aliás elas vêm da Austrália para isto mesmo, experimentar um
sangue novo.
O serviço que rende 50 dólares na Indonésia, rende 2000 dólares no norte da
Austrália. Por isso é só atravessar o mar de Timor, de avião, e se está no Paraíso.
Tudo barato, tudo lindo, muito indonésio para a mulher australiana.
Elas vêm de fogo aceso e querem um por dia. Os rapazes já nem se esforçam na
cantada. Perguntam apenas: “Já tens programa para hoje?” E está tudo arranjado.
É aqui que se sente na mulher a mesma vontade de variar, que, entre nós, só é
permitido aos homens, aos maridos.
Aqui deixa-se à vista o que entre nós está escondido, reprimindo, na mulher, o
mesmo desejo do homem, por isso que às vezes certas mulheres, quando
desquitam, vão logo pegando um atrás do outro, tirando o atraso. Tudo isto me fez
refletir muito e lembrei-me de Philipe, em Papeete, que me dizia: “Sei que a vida é
uma só e que não posso oferecer a minha mulher tudo o que o mundo tem. Por isso,
se ela quiser dormir com outro homem, eu aceito. Só não quero ser o último a saber”.
Já tinha visto opiniões como esta, antes, mas pela primeira vez algo assim
proveio de um jovem de 23 anos. Parece que a juventude perdeu a esperança no amor.
Antes estas opiniões partiam da boca de velhos, ou pelo menos cansados,
descrentes.
Os jovens formavam os seus ninhos, se amavam e esqueciam do mundo.
Mas não é só atrás de sexo que se vem a Bali.
Sexo, arte, artesanato, comida oriental, roupa barata, sol, mar, surf, montanhas e
finalmente as drogas.
Maconha em cada esquina, omelete de cogumelo alucinógeno em cada bar,
vendidos à luz do dia. A turma come à tarde, vai depois assistir ao pôr do sol e à noite
parte para as orgias. As autoridades fecham os olhos, por ser este talvez o maior
atrativo dos turistas. Mais da metade deles fumam, ou pelo menos experimentam algo
novo.
Mais reservadamente, o pico, a heroína. Gente magra sempre coçando as faces,
com aqueles olhos umedecidos, eternamente emocionados, eternamente distantes, que
só a muito custo se consegue trazer por um instante para este mundo. Estão sempre
sonhando ou cochilando.
Tudo isto me faz pensar demoradamente.
Como a humanidade está sedenta, como se procura avidamente o algo mais. Os
velhos valores estão enterrados, os novos ainda não surgiram. Enquanto isto, se tenta
através das psicovitaminas ver além do horizonte. O horizonte já não contenta, já não
mata a sede.
Daqui todos ou quase todos vão para a Tailândia. É lá que está o maior mercado
de sexo do mundo. As mulheres são extremamente bonitas, e com 5 ou 10 dólares por
dia aluga-se uma mulher que fará o papel de esposa.
Mora com você no hotel, faz a feira, lhe dá banho, cuida de sua roupa, uma
verdadeira esposa, lhe sendo fiel enquanto dura, fazendo todas as suas vontades.
Quando acabam suas férias, lhe acompanha ao aeroporto e derrama as lágrimas.
Dizem que choram de verdade, é um costume local, impossível de entender para um
homem ocidental. Isto, segundo dizem, em nada se parece com a prostituição. A
mulher é preparada para servir ao homem e ela o faz com boa vontade, com
sinceridade.
Conheci um que chegou a se apaixonar por uma tailandesa.
-Por que você não a levou consigo?
-Elas são como flores tropicais, são lindas em sua terra, no meio de sua gente,
em seu habitat. Se as tirar de lá, trouxer para o clima frio, elas murcham como as
flores, ou morrem de tristeza.
Terminei entendendo.
Mas não é só atrás de mulheres que se vai à Tailândia. Se vai também atrás do
ópio, nas montanhas.
Conheci uns jovens alemães que, desiludidos com o militarismo crescente na
Europa, resolveram ir à Tailândia.
Segundo eles, existe hoje na Alemanha um policial para cada 300 civis,
exclusivamente para controlar a mente. Que a guerra é inevitável. O capitalismo entra
em crise a cada 20 anos, precisa quebrar tudo para começar de novo. É como, depois
de muito se jogar, as fichas ficarem todas na mão de uns, e o jogo acabar.
Estas opiniões me deprimem horrivelmente, e o pior é que as ouço com
frequência.
Segundo eles, os jornais já preparam a opinião pública para o grande banquete,
anunciando a inevitabilidade de um conflito, preparando o espírito do povo, como
algo que não se poderá evitar.
Coincidentemente, o governo americano está pressionando a Europa a armar-se,
para o conflito que ele quer patrocinar, o conflito ocidente-oriente.
Esta mesma turma irá à Tailândia conhecer o ópio de perto.
Deve-se ir às montanhas de mãos vazias para não se correr o risco de morrer em
um assalto – é onde se pode fumar o ópio, onde ele existe há séculos e se consegue
experimentá-la gratuitamente.
Perguntei se não tinham medo de se perder, esquecer o próprio nome, e não mais
voltar.
-Que diferença faz. Enquanto eles estiverem no poder, a humanidade estará
fatalmente condenada. Enquanto estiver vivo, quero viver intensamente.
Fiquei sabendo dos seus propósitos enquanto jogávamos xadrez e jantávamos
diariamente no mesmo “Warum”. Este grupo de jovens alemães olhava o mundo por
um prisma diferente, que me despertava muito interesse e simpatia, mas que também
me assustava.
Eles deixaram de estudar. Na Alemanha a ciência e a tecnologia estão a serviço
do sistema, e as universidades não fazem outra coisa senão preparar gente bitolada
para mover a grande roda. Não se aprende pelo prazer de instruir-se, para
compreender melhor a natureza, mas sim para suprir a demanda crescente do sistema,
e eles tentam fugir dessa regra, aprender algo, de outra forma para outros fins.
Mas é assim em Bali, em Kuta, nesta colmeia humana, onde a vida é só festas e
novas experiências, às vezes passageiras como chuvas de verão, a vida dos turistas.
No norte, a coisa muda. São as montanhas, as plantações de arroz, os templos, as
procissões, as brigas de galo sangrentas onde se aposta alto. As festas religiosas,
como as nossas, arrodeiam os templos com barracas onde se vende de tudo.
O norte, onde a mulher trabalha igual ao homem na agricultura, colocando
asfalto nas ruas, fazendo massa e carregando tijolos na construção. Carregando e
descarregando caminhões.
Em Bali o roubo é proibido, e os ladrões são mortos na rua, pela multidão. Pro
costume local. Os ladrões vêm de Jawa, das outras ilhas, e de vez em quando some
algo nos alojamentos.
Aqui tem de tudo, é o oriente. A música, a dança nos templos, com suas roupas
típicas, quase sempre reproduzindo passagens bíblicas, a luta de Rama contra os
maus espíritos.
Tudo isto fez com que os 25 dias se escoassem que nem água, e durante este
tempo fui pensando aonde ir: vagabundear pelo Oceano Índico ou ir direto a Cape
Town.
Mudei de opinião mais de 10 vezes. Quando dizia aos colegas dos outros barcos
que pensava em ir direto, cruzar o Indico Sul, eles vinham a bordo, me mostravam o
Pilot Chart, com todas as passagens dos ciclones perto da Austrália, de Madagascar,
de Mauritius (teve um ano que um ciclone deixou Mauritius sem uma só árvore). Eu
então abria a gaveta, mostrava o mesmo Pilot Chart, eu o tinha, mas é impossível ver
quando não se quer ver.
Estudei e analisei tudo umas 50 vezes. Puxava as cartas várias vezes por dia,
dava uma olhada. Finalmente decidi ir direto a Cape Town. Aliás, já sabia que seria
esta a decisão. Estava apenas amadurecendo, criando coragem, fazendo a cabeça,
tentando encontrar nas cartas uma passagem melhor por entre os lugares preferidos
pelos ciclones, como quem procura uma passagem à margem da lei.
Lembro-me quando esta ideia surgiu e sei muito bem que nestes casos não faço
por menos.
Lembro-me que andava ao pôr do sol, pisando firme na areia da praia de Kuta,
sabia que tão cedo não veria areia, não pisaria em terra firme.
Fiz as compras, as frutas, as verduras, com 2 dias de antecedência. No penúltimo
dia, ao jantar com Marie, o meu amor de francesa, o último de tantos amores nesta
ilha de sonhos, tinha prometido que no dia seguinte, na última noite, iríamos dançar.
Na última noite não pude dançar, não joguei xadrez nem praticamos sexo. Pedi
perdão a Marie, mas expliquei que só estava ali o corpo. O pensamento, o coração já
tinham partido, me sentia um pássaro, estava sobrevoando o alto mar, o oceano,
tentando encontrar um caminho que me levasse a Cape Town.
10. DE BALI A GAPE WOWN
27 de dezembro de 1980

Passou uma semana.


Nos primeiros 3 dias, tanto o vento como a corrente eram contra. Já esperava
isto. O Pilot Chart era bem claro. Fui bordejando, pra lá e pra cá, e no fim de 3 dias
vencemos 120 milhas, em direção ao sul. Para W, o que mais interessa, só fizemos 20
milhas. O que a muito custo fazia, a correnteza tirava, minando assim todo o meu
avanço. Só que no quarto dia veio o vento, mas veio além da medida.
Começaram as manobras. Tira genoa põe yankee, tira yankee põe tormentim. Na
grande fui aplicando os risos, até dar o 4º, aquele encomendado na Nova Caledônia,
que se tornou da maior utilidade, quando me vi obrigado a bordejar, orçar contra o
mau tempo.
Foram os dias de mau tempo, e assim passei o Natal mais severo de que tenho
lembrança.
O vento duro, o mar agitadíssimo. As ondas quebravam contra o casco e
cobriam o convés de água, enquanto tentava orçar, fazendo talvez 60 ou 70º com o
vento, naquela condição era o melhor que podia fazer. O barco apanhava mas andava.
Com 7m‘ no tormentim e 6m’ na grande, somando 13m‘ em vez das 65 habituais.
Não podia dar pra trás. A Indonésia ao norte, a Austrália ao sul e obstáculos
isolados no meio. Além disso, se desse para trás, estaria em uma região cada vez mais
desfavorável. Por isso resolvi andar pra frente, enfrentar o tempo.
Trabalhando dia e noite, dormindo aos pedaços, tentava avançar custasse o que
custasse.
Quando o vento sopra duro em uma direção, a superfície do mar se transforma
em um rio a correr na direção do vento e as ondas ao chocarem-se na proa arrastam o
barco pra trás. Apesar de tudo isto, quatro dias depois, quando o tempo melhorou,
ficou provado que ganhamos mais 120 milhas e isto foi muito gratificante. Saber que
com um tempo desses posso andar para frente em caso de necessidade. Tinha relido
as instruções de Tabarly, para me certificar de que estava agindo certo.
Aqui a bordo não tive Natal. Lembrei-me das crianças, da ceia de Natal. Apesar
de não ser religioso, sempre nos reuníamos por hábito e era bonito.
Durante esta semana, sentimentos os mais diversos fizeram morada em meu
coração.
Inicialmente aquela alegria de quem vai finalmente para a grande batalha, a
tanto planejada. De tanto pensar nos perigos, nos receios, já tinha me acostumado
com eles; ia muito bem.
O negócio era aproveitar o bom tempo e preparar o barco.
Amarrei a âncora com mais 3 cabos, somando agora 5 ao todo, para que ela não
se solte do posto de vante, quando passar em frente a Mauritius.
Comecei a remanejar o peso, visando aumentar a estabilidade do barco, e evitar
também que as coisas caíssem.
Tirei todos os livros das estantes superiores e os coloquei sacados, apertados nos
compartimentos inferiores. Todos os enfeites, cerâmicas, taças ganhas em regatas
foram para o fundo do baú. Descer o peso e evitar que alcem voo. As ferramentas
pesadas foram para dentro do porão, da quilha, e o seu piso foi aparafusado. Prendi a
caixa de baterias, os tanques de óleo diesel. Amarrei os rádios, as espingardas de
mergulho, os arpões, os remos, aproveitando sempre os dias de bom tempo. Estava
preparando o barco para capotar, se preciso fosse.
Este preparativo estava me deixando com a moral alta, e animado, apesar de
progredir lentamente.
Sonhava com Cape Town, pensava nos amigos, a quem iria telefonar assim que
chegasse lá.
Com a vinda do mau tempo, todos os amigos me abandonaram, assim como
todos os meus sonhos. A triste
Realidade é que fiquei exausto, abatido e pouco confiante. A maior dúvida era se
as velas aguentariam até chegar lá, pois já estavam bem surradas e a festa começara
cedo. Qualquer problema na vela grande me colocaria fora de condições para
prosseguir, principalmente nas últimas 1000 milhas, no contorno do extremo sul da
África, onde a orça com vento duro parece ser inevitável.
Só nestes dias foi que pude ver as dimensões da tarefa que me propunha a
realizar, e não via de forma alguma o seu fim. A sua conclusão estava distante e o
sucesso completamente incerto.
Aquela certeza, aquela alegria, da batalha, dos dias anteriores, me abandonou.
Aquela certeza de que muita coisa existe no mundo para se fazer, mas, para mim, o
tempo parou, e tudo que restou foi fazer esta viagem.
Fiquei fraco e indeciso, mas, como hoje o tempo melhorou, descansei, fiz o
ponto e estou fazendo estas anotações.
1 de ja eiro de 1981

Foi-se o Natal, e agora é a vez do Ano Novo. Ontem, em Salvador, como em


todas as partes do mundo, dançou-se até a madrugada.
Por aqui não houve festa. Apenas ouvi o rádio falando do ano que passou e do
ano que ora se inicia, desejando a todos a realização de seus sonhos, muita saúde e
felicidade.
Lembrei-me dos anos anteriores. Íamos à festa, e não se dormia mais, indo em
seguida à Rampa do Mercado, de onde saía a procissão do Senhor dos Navegantes.
Sempre a bordo do Stela, o barco da Cobrazil, com Branco no leme, era lá que
se encontravam todos os amigos. Antes de tudo, os donos da casa, Petrônio e D.
Célia, este grande amigo e hoje meu procurador junto com René. Laranjeiras e D.
Lícia, Fernando Santana, Francisco Santana e D. Jacy, com suas empadas e
frigideiras de camarão, eu e Da Graça, minha ex-mulher, Caribé e um monte de
outros amigos, íamos comemorar o Ano Novo juntos, nesta procissão que terminava
na Boa Viagem. Muitos vinham conosco do Terreiro de Aladia, hoje de Rose, onde
tornávamos o tradicional banho de milho, ao som dos atabaques, em uma cerimônia
séria e ao mesmo tempo belíssima.
O primeiro do ano em Salvador é animado.
Quando sai a procissão são centenas e centenas de barcos, de saveiros,
acompanhando o Santo. Gente cantando, batucadas, chupando umbu e tomando muita
cachaça. Barcos se chocam, cai gente n’água, mas ninguém liga. A ordem é alegria
geral.
Lembrei-me de Góes, meu grande amigo, ele faz anos hoje e deve ter saído
como todo ano no seu barco de pesca, junto com seu filho, Aleixo, meu xará.
Tudo isto me veio na lembrança hoje, aqui, no meio do Oceano Índico.
Aproveitei para ouvir música brasileira, foi o melhor que pude, e olhar o mar, azul
estes últimos dias. Calmo apesar de uma ondulação de fundo, que a nós não
incomoda, mas indica que em algum lugar o pau está comendo.
Vou aproveitar para fazer panquecas com mel, tomar chá com doces da
Indonésia.
Não se trata de uma cozinha simples, veja a receita:
Farinha do reino do Panamá. Ovos e açúcar da Indonésia. Sal de Tahiti.
Fritar em azeite brasileiro. Confeitar com mel da Austrália.
Mas hoje é dia de festa, e não é à toa que estou com uma preguiça danada.
3 de Janeiro de 1981

Ora o tempo fecha ora faz sol. Não tiro o olho do barômetro, tentando prever
algo.
Estou realmente inquieto e com os olhos semicerrados por causa do vento
observo incessantemente o horizonte.
Esta inquietação, naturalmente, tem um fundamento. Vamos ver o que diz o
Sailling Directions, da U.S. Navy, a respeito do Oceano Índico Sul, nos meses de
janeiro e fevereiro.
Publicação n.º 65, pág. 19 (traduzido ao pé da letra). “Ciclones tropicais têm
sido registrados, mas eles são
Raros de junho a outubro. Aproximadamente 75% de todos os ciclones nesta
região ocorrem em 4 meses: de janeiro a abril. O número de tempestades
experimentadas em vários meses em um registro que vai de 109 a 1917 é dado na
tabela 4.
Tabela 4. Ciclones no 0cean o Índico Sul

Jan - 122
Fev - 128
Mas - 108
Abr - 76
Mai - 29
Jun - 3
Jul - 2
Ago - 0
Set - 1
Out - 8
Nov - 37
Dez - 61
Um total de 575 ciclones em um século. E é esta a razão da minha apreensão.
Tentando dar a volta ao mundo direto, parando apenas para pequenos descansos
e aprovisionamento, não se consegue navegar sempre na boa estação. Já consegui
chegar na Indonésia antes dos ciclones, mas, agora, estou navegando no Oceano
Índico, exatamente na época mais perigosa, como se pode ver na tabela.
Talvez, se tivesse aprontado o barco em dezembro e não em março, mas isto é se
fosse.
A realidade é outra, estou em pleno Indico, na pior época possível.
Que fazer?
Resta fazer uma análise detalhada do local por onde eles passam, pois o Oceano
Indico é grande. Apesar de no mar não existirem fronteiras, cercas de arame farpado,
os ciclones têm seus caminhos prediletos, e a estes tentaremos evitar cruzar, dentro
do possível.
Analisando bem o Pilot Chart, a quem consulto diariamente, e até várias vezes
por dia, tentando ver a chave das coisas, podemos dizer que os ciclones se
concentram na costa W e NW da Austrália, numa faixa de até 1000 milhas da costa, e
outra região próxima de Madagascar, das ilhas Mauritius, Reunion e Rodrigues.

Assim sendo dividimos o nosso trajeto em 3 etapas.


1 - Etapa: rumando para W, tentando evitar os ciclones nas proximidades da
Austrália.
2 - Etapa: desceremos, fazendo rumo SW, atravessando até um ponto que fica a
500 milhas ao sul de Mauritius.
3 - Etapa: rumando novamente para W até encontrar a costa do extremo sul da
África.

Contornar o extremo sul da África, o Cabo da Boa Esperança, é parte de uma


outra estratégia. Aquela região não está sujeita a ciclones e sim a mau tempo,
proveniente de depressões que passam mais ao sul. P um mar de grande agitação,
quando o vento sopra firme contra a corrente Agulhas. É, comum formarem-se ondas,
que arrebentam, tentando varrer os tripulantes do convés, inundar barcos, ou deitá-
los, enfiando os mastros por dentro d’água.
No momento estamos enfrentando a 1.' etapa. Mais dois dias e ela deverá estar
concluída. Daremos estão início à 2.¿ etapa, aparentemente mais tranquila, onde os
ciclones são menos frequentes, apesar de estarmos nos dois piores meses para esta
travessia.
A 3a e última etapa é a mais perigosa das três, pois é por onde já passou um
maior número de ciclones. Eles são mais frequentes porém entre as latitudes 15ºS e
32ºS.
Assim sendo, tentaremos contornar a última etapa, abaixo desta latitude,
enfrentando ventos menos favoráveis e corrente contra, desde que não seja um
ciclone.
Este é o nosso quadro clínico, após um estudo meticuloso do Oceano Índico Sul,
nestes dois meses.
Enquanto os estudos progridem, o Três Marias avança firme. Nos últimos dois
dias percorremos 302 milhas.
6 de janeiro de 1981

O barco continuava avançando bem, 6 nós em média, com todo o pano em cima.
Nestes 5 dias dei apenas o 1.º riso na vela grande para melhorar o equilíbrio no
leme e desfiz. Foi a única manobra. Apesar disso, não tiro o olho do barômetro, pois
o tempo continua instável. O sol aparece pálido por trás das nuvens, que nem uma
lua, e posso observá-la no sextante, sem ter que recorrer às lentes escuras.
O mar está relativamente calmo. Aproveito para fazer a cabeça. Releio Vito
Dumas, Hiscock, Tabarly, Moitessier, me preparando para o pior.
Continuo preparando também o barco para uma possível deitada, ou até mesmo
capotada. Ponho dobradiças nos compartimentos de conservas, continuo remanejando
os pesos visando melhorar a estabilidade, mas sempre com muita preguiça, uma
preguiça psicológica.
Também o convés ficou liso. Arriei a caixa de mantimentos de emergência e um
camburão de 10 litros de água, que estavam acoplados ao caíque inflável que vinha
mantendo, dobrado, no convés junto ao mastro, substituindo apenas emocionalmente
uma balsa salva-vidas. Assim o convés ficou liso, permitindo uma onda passar por
cima de tudo, sem encontrar maior resistência.
Preparando-me para esta travessia, em Bali, resolvi abrir o embrulho onde
estava por 5 meses, desde Panamá, dobrado o caíque inflável, e veja a surpresa. Ele
estava vazando, nos locais das dobras, em pelo menos 5 lugares. Há muito custo
vendi o caíque em Bali por US$ 150. É melhor não ter este equipamento mentiroso
que jamais seria capaz de salvar a minha vida.
Ia ajeitando o barco e lembrando do Capitão do Porto, em Benoa, Bali, com
quem conversei longamente. Ele se interessou pelo meu caso, quando soube que iria
direto a Cape Town nesta época. Mayan Dira, no tempo de cadete, ' contornara o
extremo sul da África por 3 vezes, mas só uma vez o tempo esteve ruim, nas demais
esteve até mesmo confortável.
Um dos problemas das longas travessias é o desgaste dos materiais, não se tendo
a chance de uma parada para reparos.
Ontem à noite, por exemplo, ouvi um baque no convés. Foi o balancim, o cabo
que sustenta o peso da retranca, que cortou por atrito na polia do topo do mastro e
caiu no convés. Tive que improvisar com uma driça de reserva, pois este cabo se
torna imprescindível, caso se resolva arriar o pano ou dar um riso, para garantir que a
retranca não caia n’água ou tombe sobre a cabine.
Lembrei-me agora que em Bali, em um dia de muito vento, Lui e Joe, do Sany
Goiana, vieram a bordo e içaram um balão que trouxeram, e ficamos voando,
enquanto o barco estava ancorado. Quando o balão enchia, subia de repente, e o
trapézio nos arrancava da água, nos projetando a grande altura, e voltava a cair.
Enquanto uns voavam, para fazer graça a Lorry, minha amiga canadense, eu subia
pelo cabo do balancim, até uma boa altura, e ficava me balançando que nem macaco.
Para provar a minha boa forma, descia de cabeça para baixo, fazendo piruetas.
Isto faz exatamente 15 dias e hoje este cabo que esteve em uso no mesmo lugar
por 2 anos acaba de partir. Por um triz não quebrei o pescoço, ou no mínimo meu
braço ou uma perna. Ia descer de cabeça, bem na entrada da escotilha.
Ao ver este cabo partir sozinho, um calafrio me percorreu o corpo.
Não sei quando o mar ficará calmo, a ponto de me convidar para ir ao topo do
mastro fazer este reparo. Aqui o Swell não pára, e ainda faltam 4000 milhas até o
próximo porto, até Cape Town.
O curioso é que já fiz uma lista do que fazer naquela cidade africana, como se a
minha chegada lá fosse certa.
13 de janeiro de 1981

Muitos dias se passaram, até meu aniversário passou, e completei os 38 anos em


pleno mar.
Não só não ganhei presentes, como apareceram em meu peito sentimentos
estranhos, que até tive medo de anotar e assim fui protelando este registro.
Finalmente resolvi fazê-lo, tentar fazê-lo ordenadamente, num esforço extremo
para expressar o que sinto, ou melhor, o que senti naqueles dias, ainda que hoje nem
tudo me pareça coerente, ou digno.
Conforme já me expressei anteriormente, às vezes me sinto como se recebesse
ordens, ou que em mim morasse um outro, um Alien, um estranho que aparece, dá as
ordens e desaparece deixando a confusão formada.
E foi este estranho que me empurrou para esta tarefa, atravessar este oceano, não
fora de época, mas justamente nos dois piores meses. Se alguém me pedisse uma
opinião, jamais aconselharia; no entanto, estou aqui a cumprir a sua ordem.
Quando acordei para o fato, veio em meu peito um verdadeiro sentimento de
angústia, de apreensão, de falta de confiança, enfim de medo.
Passei então a recordar alguns momentos da minha vida e vi que esta entidade já
há muito tempo vem se manifestando, não é de ontem, mas sim de muitos anos,
talvez logo após os 20 anos de .idade, e fui ligando os fatos.
A primeira vez foi no Irman, no navio que afundou na Pituba durante um
temporal e ia se desmantelando pela violência das ondas.
Quando ninguém conseguia ir até lá, após ter a tripulação abandonado o navio
nos botes salva-vidas, nem o barco da Capitania dos Portos conseguira encostar,
alguém me chamou e disse: “E agora”.
Eu via o navio se desmanchar a cada dia que passava, era um navio ainda
rebitado que ia afundando cada vez mais, só com a cabine superior de fora. Fui lá e
recuperei todo o equipamento de navegação, antes mesmo que o temporal acalmasse.
O povo dormia na praia, tentando recuperar tudo o que boiava.
Caí n’água à meia-noite, nadando no meio das ondas que arrebentavam. Fui com
Góes e quase fomos tragados pela sucção na hora da abordagem. Os pranchões
faziam no porão arrombado o barulho mais terrível que talvez já ouvira em toda a
minha vida.
Parece que o navio apenas nos esperava, pois, logo no dia seguinte, ficou
totalmente coberto pelas águas. Mas a operação foi executada.
Depois foi no Porto de Aratu. As betoneiras flutuantes cheias de concreto, a
ferragem colocada, a tremonha pronta para a concretagem submersa do tubulão,
fazendo a sondagem, percebeu-se que o nível subiu. O tubulão desmoronou.
Logo a sonda de corrente prendeu, e prendeu a segunda, a de reserva.
Tinha que se mergulhar, soltar as sondas e introduzir um tubo de ar na
extremidade inferior da tremonha para fazer a limpeza com o air-lift. Constatar a
causa do desmoronamento, se o material era lama ou folhelho, se o material
continuava caindo, ou foi apenas uma queda brusca.
Sempre se mergulhava, no interior do tubulão, sem a tremonha. A equipe estava
treinada, até mais do que eu, que só descia quando tínhamos problemas técnicos mais
graves, mas ninguém gostava de mergulhar com a tremonha instalada. A tremonha era
cheia de flanges, alças, espaçadores, centralizadores e tornava quase o espaço todo.
Do mesmo modo que prendera as sondas, seria capaz de prender a mangueira de
mergulho. Enquanto se vai descendo, contornando os obstáculos, esta tremonha torta
como um saca-rolha, ora encostando de um lado ora de outro.
A equipe de mergulho estava no flutuante ao lado, mas ninguém quis descer,
franziram a cara.
Eu estava na plataforma de concretagem e foi aí que ele apareceu de novo e
soprou no meu ouvido: “É sua vez”.
Ordenei que me jogassem a roupa de mergulho já tirando a camisa. Eram 49m a
descer, procurando o lugar mais folgado para passar, me ralando ora na ferragem ora
na tremonha, respirando pela mangueira e segurando na mão um pequeno aqualung
de reserva, que não cabia nas costas por falta de espaço. Fui lá, soltei as sondas, tirei
a amostra (era folhelho), introduzi a mangueira de ar na extremidade da tremonha
para limpeza e subi; tudo em completa ordem.
A limpeza se fez em 15 minutos e o concreto prosseguiu.
Não tive um pingo de medo, lembro-me disto como se fosse hoje. Creio que o
perigo me hipnotiza e sou atraído por ele, não conseguindo fugir, como um inseto de
uma lâmpada acesa.
Caso semelhante aconteceu nas Plataformas Petrobras.
Na saída da 1ª plataforma de concreto do dique, após batismo, champanhe e
discurso de autoridades vindas das partes mais distantes do Brasil, o rebocador deu o
seu primeiro puxavão no cabo. O rebocador deu o puxavão e parou, deixando que a
plataforma viesse saindo apenas no seguimento, na inércia.
Foi assim que o cabo de reboque, exatamente a cabresteira, folgou, desceu e
enganchou em uma das 23 peças da comporta metálica do dique. A plataforma veio e
montou por cima.
O rebocador puxava, mas nada. A hélice já tinha levantado toda a lama e a água
se transformara num café com leite.
A maré já vinha descendo. Se a plataforma não saísse, esmagaria as comportas,
além de sofrer esforços não previstos, podendo até partir, pois só alguns cabos tinham
sido protendidos, apenas aqueles previstos para o esforço de flutuação.
Estava de prontidão uma equipe de 10 mergulhadores, que acabara, no dia
anterior, de fazer a derrocagem do canal por onde a plataforma iria passar.
Eles foram lá e nada puderam fazer.
O comandante da operação vendo o tempo se escoar, a maré não espera, ficava
cada vez mais nervoso.
E foi aí que ele apareceu outra vez, soprou no meu ouvido: “Aleixo, é a sua
vez”.
Tirei a roupa. Estava a bordo de um de nossos barcos apreciando a manobra.
Pulei n’água, e seguindo o cabo, apenas no tato, pois não se via absolutamente
nada, percebi que ele ia para debaixo da plataforma.
Voltei, arranquei uma válvula da boca de um dos mergulhadores e entrei para
debaixo da plataforma.
Não só não se enxergava nada, como a folga entre o piso e o fundo da
plataforma era de 2 palmos.
Tinha que encontrar o lugar enganchado. Após localizado, apoiando os dois pés
na comporta, com as duas mãos no cabo, espremido entre o chão e a plataforma, com
todas as minhas forças puxei o cabo. Senti que ele cedeu. Isto dobrou as minhas
forças e terminei desenganchando-o completamente.
Por sorte ele não tinha mordido. Saí e dei a ordem para puxar.
Neste dia, a minha mão ficou doendo, mas não foi de puxar cabo, e sim de
apertar as mãos das autoridades, que ansiosamente esperavam ver desovar, do
dique, a primeira plataforma de concreto do Brasil, construída na Bahia.
Naturalmente que ninguém ficou sabendo que não fui eu que fiz o trabalho. Na
hora dos cumprimentos ele já tinha partido.
Mas naquela época eu não tinha compreendido o que sucedera comigo. Eu não
sabia distinguir os dois.
Coisas semelhantes me aconteceram outras vezes, em maior ou menor escala.
Eu só queria encontrar com ele, pedir-lhe para maneirar a barra. Pois se ele
acabar comigo, ficará a pé, cavaleiro sem cavalo, pesquisador sem cobaia.
Às vezes acho que, enquanto ele não me crucificar, ele não sossega.
Ele não se satisfez com as experiências passadas. Ele me atraiu, para o mar,
onde sabia bem que podia se esbanjar, tripudiar sobre esta carcaça. Que no mar não
lhe faltariam oportunidades de fazer uma grande farra.
O perigo sempre me atraiu enormemente e nunca consegui fugir dele.
Ele não me atrai de longe, mas, se por descuido chego perto, já não sei recuar.
O mesmo acontece agora.
Sei que me meti numa enrascada, que terei que passar ao sul de Mauritius, de
Madagascar, onde todos os ciclones passam. Mas não posso evitar.
Sei que se tentar vacilar ele volta para dar um reforço.
É como alguém que correndo para pular uma fogueira, ao ver de perto o seu
tamanho, resolve reduzir a marcha para desviar, mas, no momento exato, recebe um
empurrão pelas costas, que lhe aumenta a velocidade, e neste exato momento se
percebe que já não dá para desviar.
Só resta uma coisa. Fazer um esforço ainda maior, para tentar passar por cima do
fogo, procurar se queimar o menos possível.
E é isto, agora que estou mais calmo, que estou fazendo. Estudando
detalhadamente a passagem deles durante os anos anteriores, tentando bolar uma
lógica, que ainda que possa ser falsa, ou duvidosa, mas que seja suficiente para que
eu nela acredite, que com isto me restabeleça a confiança tão necessária, para trazer
de volta as forças vivas, as forças mentais, sem as quais qualquer ser humano, por
mais musculoso, não passa de um trapo. Estas forças provavelmente serão necessárias
para lutar até o fim, caso me veja de frente com um fenômeno natural de tamanha
grandeza.
16 de janeiro de 1981

Acabamos de percorrer 3000 milhas e faltam agora apenas 3000 milhas até Cape
Town.
Acabo de bater vários recordes, pessoais, pois 3000 milhas foi a maior distância
que já fiz sem escala em solitário. Também estou sozinho há 27 dias no mar, o meu
recorde anterior em solitário era de 23 dias.
Nesta 2ª metade da viagem as dificuldades, o clima, a estratégia em geral são
completamente diferentes. A única coisa igual é a distância, as mesmas 3000 milhas,
distância esta que já sei o que significa, pois já fiz por duas vezes. Mas desta vez não
saio do porto, e sim começo um trecho de 3000 milhas, após ter feito outro igual, e
não como antes, quando saía do porto, descansado e abastecido. Na realidade estou
na metade do caminho de um trecho de 6000 milhas sem escala. Além disto, devido à
época, temos aqueles problemas, dificuldades, apreensão latente que tiram de certa
forma um pouco daquela tranquilidade que sinto geralmente em alto mar, longe dos
homens, dos nossos semelhantes que são, sem dúvida, o maior e talvez o quase único
perigo verdadeiro para o próprio homem.
O tempo é bom, pode-se dizer até ótimo, e a genoa já está no ar por quase 15
dias.
Confiança no tempo, zero.
Sempre de guarda, não relaxo por nada, apesar de dormir horas e horas sem
acordar, por estar longe de qualquer ilha, arrecife ou obstáculo. Sei que posso dormir
tranquilo, enquanto o barômetro estiver como agora, em alta.
Conheço, ou pelo menos suponho conhecer, os sintomas do mal que me aflige,
que me preocupa. Enquanto ele estiver longe, aproveito para descansar.
Os preparativos de que me referi anteriormente estão praticamente concluídos.
Tudo lacrado, aparafusado, amarrado. Só falta amarrar a mim mesmo. O barco está
quase pronto para uma possível virada, capotada, o que espero que nunca aconteça,
apesar de tantos outros já terem passado por esta experiência.
Vito Dumas, o Damien, e dezenas de outros já capotaram ou enfiaram os
mastros por dentro d’água. Uns perderam o mastro, outros sofreram apenas uma
avaria geral, ou inundaram o barco de água. Alguns naufragaram. Outros quebraram
costelas, entortaram pescoço, mas a maior parte deles se saiu bem. Depende um
pouco de sorte e muito de técnica.
Portanto, não só preparo o barco, como preparo a mim mesmo, fundamentando-
me nas experiências dos outros colegas, navegadores mais antigos.
O importante é que a moral está lá em cima, a luta continua, e o Três Marias
avança.
Vamos lá gente, o Brasil nos espera.
19 de ja eiro de 1981

Hoje completamos 1 mês no mar. Nós, quer dizer, eu e o Três Marias. Cada vez
mais íntimos, ligados por um destino comum.
Nossa posição: Longitude 65º30’E Latitude 28ºS Faltam aproximadamente 2600
milhas até Cape Town.
Estamos saindo da região dos Alísios e com isto o vento tornou-se mais fraco.
Antes fazíamos 140, 150 milhas diárias. Agora baixamos para 120, 90 e finalmente
75 milhas.
O mar continua calmo, o sol quente, ainda um daqueles dias lembrando o verão.
Enquanto o barco avança devagarzinho aproveito para ler, tomar sol ou dormir.
Quando chove, recolho água de chuva para aumentar o estoque e bebo
diariamente dois goles de água do mar, treinando talvez para quando for necessário.
Com esta falta de movimento, sinto que os músculos estão relaxando, e resolvi
fazer um pouco de exercício, pois estou na maior parte do tempo deitado, lendo, ou
em pé, recostado na escotilha, apreciando este mar que me envolve completamente.
Quase não se tem manobras a fazer, uma vez ou outra.
No mais, folgo ou aperto a escota em 2 polegadas, para evitar o desgaste dela
em um só ponto.
Termina-se comendo mais do que o necessário e a gente sente que está
aumentando o peso. É a gula, o único pecado possível a sós, pois, geralmente, para
pecar é necessário dois.
Podemos dizer que estamos terminando aquela 2ª etapa da travessia do indico e
brevemente entraremos na 3ª etapa, aquela toda cheia de suspense, mas estou calmo e
confiante. Sempre se deu um jeito nas coisas e creio que desta vez não será diferente.
Na hora H a gente vira bicho, trabalha, se desdobra e a coisa tem que ir em
frente. Não adianta apavorar antes da hora, finalmente esta é a meta atual da minha
vida. Não há outra.
"E caminho único, mão única, sem acostamento em retorno”.
Por isso vamos em frente.
20 de ja eiro de 1981

Vento brando, brando e, por fim, calmaria no final da tarde.


Arriei a genoa para não gastar.
Quando o sol se pôs, veio uma leve brisa e o barco voltou a navegar
devagarzinho.
A lua cheia nasceu linda, e o céu todo estrelado, sem uma só nuvem. O mar liso,
apenas aquela respiração.
Deitado no cockpit, desfruto da leve brisa da noite. Ia ligar um som, mas depois
pensei.
É tão rara esta paz. Numa hora destas, até a música iria atrapalhar, pois na
realidade não faltava nada. Vamos desfrutar o momento ouvindo o chacoalhar da
água no casco.
Resolvi registrar este momento, sentado aqui fora, à luz da lua. Depois me
deitei, apreciando o seu reflexo nas águas do mar.
Mais tarde, quando o corpo deu sinal de cansaço, desci e fui dormir.
Quando acordei, a leve brisa tinha acabado, fazíamos proa para o E, estávamos à
deriva no meio do oceano.
Quando uma nova brisa se estabeleceu pelo NW icei novamente os panos,
estávamos orçando.
Já por vários dias um casal de peixinhos pequeninos acompanhava o Três
Marias, nadando na sua proa. Isto me fez concluir que o peixe não dorme. Eles vão
nadando, se adiantam e depois o barco os alcança, o que os força a dar uma nova
estirada. Nadam, vão mordendo algo na superfície, ora dão um mergulho mais
profundo. A fábrica não pára. O que eles comem vai se transformando em energia e
eles nadando e nadando, dia e noite.
Eles são listrados, de azul e marram, que nem roupa de prisioneiros, prisioneiros
da sombra do barco, e já se sentem donos dela.
A prova disto é que quando outros aparecem, eles os enxotam.
Sentado na proa, me divirto olhando as suas atividades e já nos tornamos
amigos.
Aqui a bordo também a plantinha que adotei a partir da Nova Caledônia se
desenvolveu bastante e já soltou a sua segunda folhinha.
Assim estou eu vivendo, em companhia de minha plantinha e dos meus
peixinhos, do sol, do mar, do vento e das ondas, dos meus sonhos.
21 de ja eiro de 1981

O vento agora é SW, fraco. Mar liso. Orçamos o mais que podemos. Devemos
estar avançando a 1 nó ou 2 pelo menos.
Apesar do mar liso, o Swell informa que em algum lugar distante existe bastante
vento. Este Swell fica ainda mais evidente com o mar liso. Parece uma verdadeira
respiração.
Ora estou sobre a montanha e avisto o vale lá embaixo ora estou embaixo e vejo
o horizonte se elevar. E difícil precisar o desnível, mas é grande.
Já estamos há 23 dias com bom tempo, mas ao sul apareceram umas
nuvenzinhas acinzentadas. Pela prática, já sei que é tempo de esperar algo em vista,
pois não pode continuar assim eternamente. É o próprio equilíbrio da natureza.
As nuvens foram ficando pretas, apesar de estarmos quase encalmados. Resolvi
dar o 2º riso na grande, pois em caso de golpe de surpresa bastaria arriar a genoa.
Algo me dizia de que não deveria facilitar. De qualquer forma já vai escurecer
em poucas horas e não vai dar para dormir tranquilo com todo este pano em cima,
com o céu que está aí fora e, principalmente, depois de uma calmaria.
Começou a soprar e as nuvens negras iam se aproximando.
Arriei logo a genoa, mas o vento parou, deu uma pausa e recomeçou.
Veio a chuva. Aproveitei para recolher água de beber. Não confio no serviço de
tratamento de água de Bali e por isso só tenho bebido água fervida, ainda mais que
aqui, em caso de doença, não se tem onde pedir arrego. Na Indonésia vi muita gente
sofrer de diarreia crônica, apesar de nunca ter sentido nada. Vivendo num país
subdesenvolvida a gente termina ficando imunizado.
Por isso bebo água de chuva, temperada com água do mar, aquela água roxa,
limpíssima por causa dos sais.
Passou a chuva, continua nublado, mas o vento é fraco.
Icei a genoa de novo e avançamos devagar como antes. O barômetro continua
estável, apesar de termos nuvens pesadas pela frente.
O vento acabou completamente, escureceu e por baixo das nuvens negras
apareceu a luz de um navio.
Depois foi a vez da lua. Nasceu vermelha, por trás das nuvens, nem parecia ser a
mesma lua de ontem.
Arriei a genoa. Acredito que vou dormir enquanto o tempo se decide.
O tempo ficou assim até o amanhecer, mas quando clareou o pau comeu. Isto só
para comemorar o meu 33º dia de mar.
A festa durou pouco, apenas umas rajadas fortes, o vento reduziu. Mas o céu
continuou caótico, o mar nervoso e desarrumado.
À tarde o vento voltou duro mas favorável. Favorável é outra coisa, a gente
segue em frente sem problemas.
Depois o mar se arrumou um pouco. Mas, como já ia escurecer novamente, não
aumentei a área vélica, para dormir mais despreocupado.
Constatei, na minha inspeção diária antes do anoitecer, que o contrapino, do
esticador do estai real (do 1º estai na proa), tinha partido. Aproveitei e coloquei outro.
Há muito tempo que andava desconfiado dele.
23 de ja eiro de 1981

Hoje bato o recorde de todos os meus recordes de permanência no mar, ao


completar 34 dias sem ver terra.
A bordo do Concorde, com Pierre Chassin, levei 34 dias para atravessar de
Salvador a Cape Town, sem escala, em 1973.
Hoje, bati este recorde, só que acima de tudo em solitário.
Com a melhora do tempo, apesar da instabilidade reinante, icei a genoa.
O barômetro está em alta, 758mm. Estamos na latitude de 30ºS e longitude 59º
30’ E. Isto quer dizer que estamos a 330 milhas do ponto considerado o mais
perigoso, o ponto onde ocorreu até hoje a maior incidência de ciclones. Por isso
vamos tentar passar por aí o mais rápido possível. Fazer uma pequena regata.
São ao todo 1000 milhas mais perigosas, onde os ciclones são mais frequentes.
Quanto mais rápido passarmos menor será a chance de encontrar de frente com
um fenômeno de tamanha grandeza.
Demos a partida.
Por enquanto avançamos para o perigo, mas não há outro jeito. Temos que
enfrentar.
24 de janeiro de 1981 (primeiro dia)

Tempo bom, mar calmo, pressão 759mm. O vento rondou para NE, calmo, e
fizemos 90 milhas.
Segundo o Pilot Chart, temos aqui uma correnteza exatamente contra e não há
como evitá-la.
Visando aumentar o seguimento, hoje pela manhã, desfraldei a vela grande,
completamente, e o sol brilha no horizonte. No interior da cabine 29ºC, apesar de já
estarmos bem ao sul.
O casal de peixinhos continuou na proa do barco, não nos abandonaram nem
mesmo naquelas horas das rajadas, há uns dias atrás. Já são os mascotes do barco e
está completamente fora de nossos planos aplicar-lhes qualquer cilada, ou tentar
pescá-los, pois já são nossos amigos e aliados nesta viagem, companheiros.
O mesmo não aconteceu com um dourado acompanhando o barco.
Tinha deixado de pescar, pois estamos em regata. Mas, ao vê-lo seguir o barco, a
poucos metros, não resisti e lancei a linha.
Ele veio correndo para conferir. O vento estava brando e não tínhamos
velocidade suficiente para dissimular bem a isca, pois não era um peixe e sim uma
porção de tiras de plástico coloridas, que amarrei em volta de um anzol.
Para ajudar, puxei aumentando a velocidade e ele mordeu, com a linha na minha
mão. Foi bonita a batalha que se travou logo em seguida, até embarcá-la no convés.
Assim ganhei proteínas para 2 semanas e por um bom preço.
No fim da tarde, consegui ouvir a rádio da ilha de Reunion (francesa), que fica
ao lado de Maeritius, que forneceu a previsão do tempo para amanhã.
Posso dormir tranqüilo, pois o tempo será bom.
25 de janeiro de 1981 (segundo dia)

Sol intenso. O vento passou a NW, mar manso.


Fizemos 85 milhas. Faltam 180 para o ponto crítico e 2000 milhas até Cape
Town. A pressão está em 760mm, igualzinha como nos livros de física, o que é muito
raro na natureza.
Sem nada para fazer, ouço música, o rádio.
Só não se pode ouvir mais a “Voice of America”, pois lá a vitrola está com
defeito. Toca, sem parar, o mesmo disco, ou seja, o discurso de posse do novo
presidente, Mr. Reagan.
Já nem queria mais pensar nisto, mas, de tanto ouvi-lo, fui forçado.
Exortou tanto os heróis americanos, na reconstrução do país, e veja como ele é
eficiente.
Dois dias depois da posse, classifica os 52 reféns americano". recém-liberados
pelo Irã de heróis.
Naturalmente, pensei que ele desconhecesse o termo vítimas, razão por que os
chamou de heróis, pois nada fizeram.
Estavam passando muito bem, na mordomia, e acobertados pela asa protetora do
Xá Reza Pahlevi, quando, como já disseram outros, o tirano caiu de maduro das
árvores de um povo. Eles, aliados do Xá, seus colaboradores na opressão, se viram
reféns.
Talvez, pensei, não fosse desconhecimento de Reagan do idioma inglês e sim
uma tentativa de provar a eficiência da sua nova administração.
A prova da renovação das forças da indústria seria produzir sem demora 52
heróis, tão badalados no seu discurso de posse.
Isto me fez lembrar uma peça de teatro, “uma obra do governo”, onde, após a
construção de um cemitério, o prefeito da cidade mandou matar alguém, para poder
inaugurar sem demora a sua obra-prima.
Bem-sucedido no seu primeiro ato, passou a economia americana e fala numa
total renovação.
Desejo-lhe o maior sucesso Mr. Reagan, desde que não resolva soerguer a
economia decadente dos Estados Unidos espremendo ainda mais o peito já magro
desta vaca leiteira, a América Latina.
Para soerguer a economia americana, usando os métodos que você conhece e
confia, seria necessário uma nova guerra.
Uma nova guerra, mas, como antes, não em território americano, e sim em
território alheio. Ganhar esta guerra sem quebrar uma só vidraça em casa. Destruir as
casas alheias, enfraquecer o seu povo e, depois, lhes vender os produtos
industrializados para a reconstrução.
A Europa costuma ser sempre o alvo para estes planos macabros.
Ganhar a guerra. Fazer novos filmes de heróis americanos, desembarcando
como antes, de fuzil em punho, nas praias ensolaradas do Pacífico, ou na costa da
Normandia, mas sempre heróis. Sempre jogando bombas em terreno alheio.
Baseados nesta imagem, tentar novamente vender proteção aos vizinhos mais
pobres, fazer contratos vantajosos após subornar os políticos. Trocar minérios por
canhões antiquados, que estão sobrando no seu arsenal, e “Ghamar o ovo otário de
aliado”.
Mas os tempos estão mudando Mr. Reagan. Isto seria piada contada pela 2ª vez,
e só se ri por educação.
Já descobriram este truque, bem verdade que nem todos. Alemães e japoneses,
que foram inimigos dos Estados Unidos na última guerra, estão sendo chamados
pelos americanos a armar-se, para juntos fazer frente ao Oriente.
-E quem morreu na guerra passada acreditando fielmente nas razões de sua luta?
-Ganhou uma coroa de flores no túmulo do soldado desconhecido e umas
palavras bonitas, que não custam caro, e que vão, de certa forma, assegurar os
inocentes para o próximo espetáculo.
Finalmente os soldados, o povo, não passam de peões no jogo de xadrez que o
sistema está a jogar.
Esta seria a única maneira de soerguer a economia americana.
Fora disto ela tem que decair, até chegar à realidade, pois está em uma altura
acima do seu nível real.
E, duro, o americano acostumado a seu carro com 6 cilindros, ter que apertar o
cinto e preferir o carrinho japonês. Não querendo aceitar a realidade, a General
Motors teve um deficit este ano, pelo menos é o que dizem os jornais.
Mr. Reagan, boa sorte, mas veja lá o que faz.
Também falou em armar-se, para não ter que usar as armas.
Foi assim mesmo que convenceram os cientistas a fabricar a bomba atômica, e,
depois, só para testar, para ver se funciona, em vez de soltá-las no deserto, soltaram
um casalzinho em cima do Japão, um dos lugares mais populosos do mundo.
E sempre assim. Querem fazer o mesmo jogo outra vez.
Não sou contra o povo americano – só não posso é concordar com Mr. Reagan.
Poucas declarações me deram tanta satisfação como as do Primeiro Ministro
japonês, em reunião com os países do sudeste asiático, respondendo ao convite de
Reagan para armar-se: “O Japão não quer nunca mais tornar-se uma potência militar.
Pode-se assegurar mais a paz pela maior cooperação técnica e econômica entre
os povos que pelas armas”.
Gostaria que a Alemanha entrasse também nesta linha, frustrando assim os
planos de Mr. Reagan, que parece ter lido um livro só.
Vemos que Maquiavel, para certos estadistas, não só não morreu como nem
chegou a ser enterrado.
Como já se disse acima, a guerra não conduz a nada. Inimigos em uma guerra,
aliados na outra. Parece brincadeira. Nada se ganha, apenas se troca bala.
To me fez lembrar a adaptação por Sartre, para a linguagem atual, da peça “As
troianas”, onde os bravos guerreiros, após destruir a ferro e fogo, a ponto de não
deixar pedra sobre pedra em Troia, voltam apressados para a Grécia, ao saber que na
sua ausência as suas mulheres foram violentadas. Enquanto a esquadra voltava, um
temporal, a fúria dos deuses, destrói os vitoriosos, o pouco que restou da guerra.
Creio que já é tempo de se estabelecer um consenso mundial sobre este assunto.
Estou a falar com vocês, políticos, homens que têm como dever conduzir o povo a
um final mais feliz.
É tempo de acabar com isto. Acabar com a lei marcial, que condena o soldado
desertor seria apenas aquele que se negasse a lutar em seu próprio território, defender
o solo da sua pátria.
No exército vejo perfeitamente dois grupos.
Primeiro: Soldados. O povo armado, lutando apenas em seu próprio território,
defendendo a Pátria.
Segundo: Mercenários, aventureiros, todo aquele que, por motivos particulares,
deseja ser bucha de canhão nos jogos dos nossos governantes.
Os governantes observam o front de longe e quando perdem a partida é só tomar
o avião, sempre pronto e com o tanque cheio, e pedir asilo a um colega no país
vizinho. Quanto à subsistência, a conta na Suíça está gorda.
Quem morreu não sabe porque morreu, nem por quem.
Apenas morreu.
São duas da tarde. Calmaria total. No interior da cabine 34ºC.

Arrio a genoa e vou dormir.


Acordo, faço duas horas de motor para carregar as baterias.
O sol se pôs. As estrelas surgiram no céu e também o seu reflexo no mar, liso
como um lago. Só resta esperar.
A calmaria continuou por toda a noite. Como os panos batiam, arriei tudo.
Quando amanheceu, uma leve brisa de NW fez o Três Marias deslizar
suavemente.
26 de janeiro de 1981 (terceiro dia)

Constatamos que o avanço neste dia foi de 40 milhas.


Faltam 140 para o ponto crítico.
27 de ja eiro de 1981 (quarto dia)

Ontem lá pelo meio-dia apareceu uma nuvem, num céu tão puro, que veio se
aproximando devagarzinho. Atrás dela veio o vento.
Primeiro pelo SW, depois S e por fim SE. À meia-noite o barco queria voar,
resolvi aparar-lhe as asas, dando o 2.º riso na vela grande.
Constatamos que fizemos hoje 140 milhas. Estamos no ponto crítico.
Continuaremos em um platô de igual perigo durante umas 450 milhas, depois o
perigo irá diminuir, será a descida da ladeira.
Com o nosso avanço, pensei que os mascotes tinham nos abandonados, mas foi
engano. Fizeram as 140 milhas, numa boa. Agora estamos mais íntimos.
Durante a calmaria dos dias anteriores, dei uma nadada, amarrado, é claro. Para
limpar umas coisas que começaram a crescer na paleta do leme de vento, e eles
vieram me saudar, nadando a 2 palmos de distância. Observando-os também nos dias
de pouco vento, com o mar liso, pude descobrir que eles comem os pequenos peixes
voadores, bem pequeninos às vezes, que ao tentar fugir dão aquele pulo no ar, caem
ali mesmo e são apanhados e devorados.
As leis do mar não são fáceis. São peixes prateados devorando peixes prateados,
com escama e tudo.
Aliás, por que o espanto, faz pouco tempo que deixamos de ser canibais.
Algumas tribos ainda o são, ainda praticam esta ceia macabra.
Em Bali me explicaram que alguns ainda enterram os seus mortos nas valas de
irrigação das plantações de arroz, para, por assim dizer, comendo o arroz, receberem
de volta as suas forças.
Mas hoje o tempo é bom. A pressão está alta. Céu 30% encoberto e vento fresco.
O barco avança. O que é que eu quero mais?
Acabei de almoçar e vou dormir, pois à noite passada, após risar a vela, fiquei
boquiaberto olhando o barco andar.
Enquanto isto, o Três Marias vai cortando uma por uma as trilhas percorridas
pelos ciclones em anos anteriores, novamente com todo o pano em cima.
28 de ja eiro de 1981 (quinto dia)

Avançamos 100 milhas.


O tempo tem sido bom, mas dando início à instabilidade. Nuvens com chuvas e
rajadas isoladas, obrigando a manobras rápidas.
A pressão baixou de 758,5 a 755mm, logo 3,5mm. Isto é um sinal de que o
tempo tende a mudar. O Sailing Directions diz que a pressão nesta região é muito
estável, e se, em 3 horas de relógio, se verificar uma queda de pressão de 3mm,
depois de abater a variação diurna, pode-se esperar o mau tempo.
A nossa variação foi de 3,5mm, mas em 24 horas, o que ainda está razoável.
Tentando usar o caningan, encurtar a vela grande que de tanto estirar estava
entrando na polia do topo do mastro, terminei criando um esforço suplementar e deu-
se um rasgo de 10cm. Lá vai remendo.
São todos pequenos, mas é o 6.º remendo na vela grande.
São cinco da tarde e o vento continua rondando. Já está pelo W.
Orçamos o mais que podemos. Fui dar finalmente mais um chega na genoa;
quando dei as costas ouvi um baque.
O cabo de aço da driça partiu lá em cima, junto da costura, e a genoa desceu.
Enquanto arrumava a genoa no convés fiquei pensando: Só me resta uma driça.
Eram 3. Gastei uma no lugar do balancim, a outra quebrou, ficamos com uma
só. Caso ela quebre quando estivermos contornando o Cabo da Boa Esperança, ou em
outro momento decisivo qualquer, será difícil subir no mastro para resolver o
problema.
Tem que ser agora, aproveitar o impacto do momento e fazer o reparo.
De repente me vi no topo do mastro, puxando a driça para baixo. Ela partiu mas
não desceu, pois o trecho mais grosso da costura não passou no moitão.

Arriando a ponta até o convés, fiz uma costura rápida com auxílio de 3 elipses,
para utilizá-la apenas em caso de emergência.
Felizmente deu tudo certo. Tinha horas que vinha aquela onda, eu me segurava
com todas as minhas forças para não ser projetado a distância.
Está quebrando muita coisa, é bom chegar logo.
O vento rondou mais uma vez, agora pelo SW, espantando as nuvens, veio um
pôr do sol belíssimo. Orçamos o mais que podemos, correndo atrás do sol, este sol
que não posso mais ver, mas que, agora mesmo, está aquecendo a nossa gente, nas
praias de Salvador.
O vento foi reduzindo, reduzindo e ficamos encalmados até o amanhecer.
Quando clareou uma leve brisa encheu timidamente as velas do Três Marias, e ele
tomou o seu rumo.
29 de janeiro de 1981 (sexto dia)

Hoje completamos 40 dias de silêncio. Acredito que isto diz tudo.


Fizemos também 40 milhas.
30 de janeiro de 1981 (sétimo dia)

Fizemos 90 milhas.
Tempo instável, o barômetro desceu para 754.
De hora em hora vem uma nuvem com chuva e um pouco de vento. Como temos
pressa de sair daqui, vou deixando tudo em cima e após 10 minutos tudo volta ao
normal.
Já estamos na latitude 32ºS, estamos descendo cada vez mais, esta região é de
ventos variáveis, ou seja, está tudo de acordo com a previsão.
Acabo de verificar, estamos a 900 milhas de Durban e 1600 de Cape Town.
As 3h da tarde, ligo o motor para carregar as baterias, mas cai o vento com
rajadas, nuvens carregadas de chuva e água passando por cima do convés. Obrigado a
fechar tudo, desligo o motor que estava aquecendo o interior.
Agora passa a soprar com toda a força. A vela grande no 2º riso fica sozinha no
ar. Deixa passar, estabilizar, para ver o que iço na proa.
Passaram as nuvens mas ficou um resto de vento.
Esperar o mau tempo é como esperar uma visita indesejada, mas que virá com
certeza, só não se sabe quando.
Ouço passos. É a visita, não é?
No mínimo rindo, será que é? Ainda não.
Finalmente chega-se a um ponto que a espera se torna mais dolorosa talvez do
que a própria visita.
Mas ainda não foi desta vez. Somente o estado de alerta. Continuamos com o
yankee e a vela grande no 2º riso, para relaxar. Nada de regata por hoje, para
descansar, relaxar o estado latente de tensão.
Este é o resultado destes programas fora de época, talvez o cansaço também,
pois são 41 dias de mar e bastante ansiedade.
Mas logo o vento frouxou e, como jurei não içar mais a genoa, icei a trinqueta,
que somada ao yankee dá praticamente no mesmo. Sem dúvida é mais fácil manejar 2
velas pequenas do que uma grande.
O importante é que enquanto converso com o meu livro o Três Marias não pára,
segue em frente.
31 de janeiro de 1981 (oitavo dia)

Pela madrugada, o vento voltou a fazer desmando. Quando amanheceu, após


uma noite em que o relâmpago não..."'ou de cortar as trevas, tudo armado, chovendo,
veio de repente um vento tão forte que tive que arriar o yankee dentro d’água, para
depois recoIhê-la no convés.
O vento durava pouco e logo tudo voltava ao normal, apesar da pressão
continuar descendo.
Fizemos mais 130 milhas, e estou novamente firme e forte.
1 de fevereiro de 1981 (nono dia)

Já é fevereiro, e fevereiro tem carnaval. Vou me fantasiar de quê?


De marinheiro. Aliás, já estou.
Tostado pelo sol, olhos queimados pelo vento. Cabelos e barba crescidos.
Andando e se balançando como se ainda estivesse no [convés, em pleno mar.
Calça de mescla, camisinha velha, sacola a tiracolo. Lá vai ele, o marinheiro.
Aquele que não se cansa de olhar a linha do horizonte. Para ele, é lá que mora a
esperança.
Lá atrás daquela linha haja talvez até felicidade. Se é que ele a busca.
Não há nada que mate a sua sede. Não há amor que o complete.
O amor, para ele, é o amor impossível. Quando se torna possível já é tempo de
partir. E assim vai ele, o marinheiro.
Quem sabe o que ele carrega em sua mochila? Quem sabe o que atormenta o seu
coração?
O que faz da sua busca eterna, a sua vida, a sua luta, seu dia a dia.
Mas, no fundo do seu coração, talvez só ele saiba.
Que não vai encontrar o que procura, mas nem assim desiste.
Pois procurar, buscar, é para ele a própria vida. Encontrar, seria morrer.

Mas o tempo melhorou, a pressão subiu 4mm e fizemos mais 80 milhas.


2 de fevereiro de 1981 (décimo dia)

Está soprando um SE duro, mas favorável. Fizemos 120 milhas nas últimas 24
horas. Barômetro 759, em alta.
O trecho mais perigoso de maior incidência de ciclones já passou. De agora em
diante, este perigo vai diminuindo cada vez mais, à medida que avançamos.
Foi depois do almoço que o vento foi aumentando de intensidade, com pressão
alta e tudo.
Fui deixando, mas me vi obrigado a dar o 2.º riso na grande e fui dormir.
Não conseguia dormir, pois o vento aumentou e o barco estava cada vez mais
nervoso e o mar agitado.
Tive que arriar a grande, apesar de lembrar de Tabarly, que fala em seu livro,
Guia Prático de Manobra, que com ventos favoráveis, de 50 a 70 nós, tem deixado
todo o pano, ou quase todo o pano, em cima. Basta que seja favorável.
Foi baseado na teoria dele que fui deixando o pano, mas ainda sou aprendiz de
feiticeiro. Também de tem uma dúzia de homens a bordo, velas da melhor qualidade,
tecido muito grosso. O seu barco não é mais barco, é um avião que voa baixo.
Sozinho, arriei a grande sem dificuldade, mas na hora de arriar o pau de spinaker
foi um deus nos acuda. A vela enrolou no estai, o balancim do tangon com a driça e
assim por diante. Acredito que estou desaprendendo, mas felizmente não rasgamos o
pano e finalmente me vi apenas com o tormentim de 7m.
Entrei para fazer o mingau, pois ia escurecer. O vento urrava lá fora e o mar
estava virado no cão.
De vez em quando, a onda enchia o cockpit de água, mas eu sabia porque tinha
reduzido demais o pano e estava faltando velocidade. Com isto o leme se torna menos
eficiente e o barco tende a atravessar na onda.
Depois de tomar o mingau, deitei-me mas não consegui dormir. Com o balanço,
deslizava sobre o lençol, de um lado para o outro do beliche. Escorava um joelho
aqui, um cotovelo ali, mas não adiantava. Ele era largo, confortável com bom tempo.
Mas, em mau tempo, o ideal é um lugar apertado, onde a pessoa possa cair e ficar
dormindo imprensado, quase imóvel.
São duas da manhã, acordei para olhar o ambiente lá fora e tomar um chá.
Acordei porque dormi um pouco; a única prova disto é que sonhei.
Aliás, tenho sonhado muito, apesar de não gostar de registrar os meus sonhos
em meu livro.
Quando o tempo está bom, sonhos de amor, com a natureza. Quando faz mau
tempo, os sonhos são sempre de luta, não dá outra coisa.
No sonho de hoje eu era um cavaleiro errante, de armadura e espada, que ao me
encontrar com outro, de igual espécie, a gente se saudava e partíamos para a luta.
Há muito tempo que já tinha optado por este caminho e a minha presença ali era
um testemunho de que vencera inúmeras batalhas.
Lembro-me bem, andava sobre um solo extremamente árido, um deserto, era a
própria superfície lunar.
Parei, o meu cavalo revolvia as pedras com sua pata. Aquela altura, não esperava
encontrar ninguém por ali, quando, de repente, apareceu um ponto que se movia no
horizonte, veio crescendo, crescendo, e já podia vê-la perfeitamente.
Tratava-se de um cavaleiro.
O seu cavalo, andando com elegância, passava por cima de rochas e buracos
deste solo árido, sem o menor tropeço.
Ele pára, faz a saudação de costume e eu o saúdo também.
E a saudação antes da luta.
Ele tem a armadura cinza como todos nós e a cor do seu escudo era verde e
laranja (as cores da Petrobras).
E ele ajeita a armadura sobre a cabeça, e, neste momento, as mechas de seus
cabelos longos sobram ao vento, e eu o reconheço, Digo Kaster. Ele reconhece a
minha voz e diz Aleixo.
P grande a alegria. O encontro de dois amigos em terras tão distantes.
Ele, como eu, saíra pelo mundo, andando em busca de luta.
Para saudar .o nosso reencontro, demos dois topes com as nossas armas e
partimos juntos pelo mundo.
Acordei.
Fui tomar chá, depois ouvir música, estava sem sono.
3 de fevereiro de 1981 (décimo primeiro dia)

Amanheceu. O mesmo vento, só o mar um pouco mais grosso. Fui tomar café e
ouvir mais música, mas veio algo que superou o som do toca-fita.
Uma onda enorme rompeu na popa e espirrava água, por todas as fendas, por
entre as tábuas do escotilhão. Eu que me orgulhava de ter um barco enxuto tive que
aceitar a nova realidade. O sol empenara as tábuas e teria que dar uma ajeitada nas
suas bordas.
A razão disto era mais uma vez a reduzida área vélica e a consequente pouca
velocidade. Do yankee de 25m reduzi para o tormentim de 7m. Faltava uma vela
intermediária, uma que não comprei por falta de recursos. Lembro-me de quando
encomendei as velas, fiquei sem dinheiro até para o sorvete.
A pressão baixou para 756. O tempo nublou um pouco e um grande albatroz,
com toda a serenidade, deu umas voltas em torno do barco e seguiu adiante.
O vento cedeu um pouco, mas deixei tudo como estava.
Amanhã será outro dia. Fizemos hoje, apesar de tudo, 130 milhas e acaba aqui a
nossa regata contra os ciclones, entrando agora em uma área completamente
diferente.
4 de fevereiro de 1981

Chove lá fora.
nossa posição, menos de 400 milhas da Costa Africana.
Ouço a rádio de Moçambique, falando em português, ou em dialeto local. O
Brasil é que silencia. Não consigo ouvir o Brasil.
Agora me preparo para contornar o extremo sul da África, o Cabo da Boa
Esperança. Temos que enfrentar.
5 de fevereiro de 1981

Faltam 1000 milhas até Cape Town.


O tempo está instável. Em duas horas, tudo pode mudar, de um céu estrelado
para um totalmente encoberto.
Estamos novamente com tormentim e vela grande no 3º riso, orçando o mais
possível.
Estamos na latitude 33ºS e acabou o trecho fora de época.
Para contornar o extremo sul da África, o melhor mês é o de janeiro. Estamos na
1ª quinzena de fevereiro, logo a época é boa. É que aqui é duro mesmo. Todo o
mundo sabe disto. O negócio é batalhar, ir orando lentamente para vencer o trecho.
Não há alternativa.
O vento é favorável do Atlântico para o Indico. Se estamos indo no sentido
contrário, não se pode reclamar.
São 3h da tarde. O vento refrescou e o pau está comendo lá fora. Apesar de tudo,
conseguimos avançar; devagar, sem dúvida.
Quando o vento rondou um pouco, folguei a escota e o barco deu uma arrancada
para frente.
O vento ronca nos estais, no mastro, pelas tomadas de ar, mas o Três Marias
avança.
Vencemos 5000 milhas e só faltam 1000. Mas de nada valerá o que já fizemos,
caso não se vença bem este último trecho.

Aqui não é mole, é bom ir andando, assim é a vida a bordo.

Fechado numa caixinha que balança sem parar. Com cotovelos e joelhos
doloridos de tanto se escorar no interior da cabine. Sem poder abrir nada, pois a água
passa em alta velocidade lá fora, diversos sentimentos vão habitando o meu coração.
Ora sinto-me feliz. Extremamente feliz. Ouço música e vou pensando na vida. E
sinto que sou livre. Não é só por causa do barco, mas sinto-me realmente livre, com
mil opções pela frente. Vou pensando e recapitulando as minhas possibilidades
imaginárias. Sonho alto.
Depois me canso de pensar.
O vento refresca e o barco todo estremesse. De repente, me vendo aqui
engaiolado, sinto-me pequenino, sozinho, perdido neste mar imenso, com todas estas
ondas a querer dar na gente.
Fico deprimido.
Ponho o impermeável e saio. Lá fora o ar fresco, água para todo o lado, me
seguro com todas as forças nos estais e vejo com que bravura o barco se defende das
ondas e segue em frente. De repente sinto-me um super-homem montado neste cavalo
mágico.
Fico um tempo assim a contemplar a natureza.
Os dedos ficam doloridos, sinto frio. Desço para a cabine e vou preparar o
jantar, pois sinto fome.
7 de fevereiro de 1981

Estava contando os dias errado. Hoje, na realidade, completamos 50 dias de mar.


O vento abrandou, finalmente ficamos encalmados, a 150 milhas da Costa
Africana e a 850 milhas de Cape Town.
Depois de 50 dias, percebemos uma baixa exagerada nas provisões. Não fiz uma
previsão carreta, já estamos racionando alguns produtos como açúcar, biscoitos, leite
em pó, mel, etc.
Ainda não faltou nada, pois cada dia vou consumindo menos estes produtos,
substituindo-os por outros. Além disto, o estaque de provisões baixou muito de uma
maneira geral, o que não é bom.
Quando se tem que racionar, aí é que a fome aumenta. O fato é que se come
demais. 6 um mau hábito.
Dizem que Gandhi tornava uma pequena xícara de chá e estava satisfeito,
enquanto hoje quase dei conta de uma panela de feijão.
Assim sendo, tudo aquilo que estava enfusado, há um ano, como sopa de pacote,
etc., passou a ser uma delícia.
Talvez ainda tenha provisões para um mês, ou talvez dois, mas é bom começar
cedo, pois nunca o estore esteve tão baixo. E a gente nunca sabe quando chega, nem
mesmo se chega. Só se tem certeza quando a âncora tocar o fundo lamacento do
porto, e o barco repousar nas suas águas tranquilas.
Aí é que o seu tripulante poderá dizer: “É, chegamos”, e desliga o permanente
estado de alerta. A prontidão infindável, dia e noite. Todos os sentidos, o 5º, o 6º, o 7º
e tantos outros que possam existir, ligados em torno de um só objetivo: A travessia do
5 dico.
É o sonho.
Lembro-me quando, em 1973, a bordo do Concorde, com Pierre Chassin
fizemos Salvador-Cape Town em 34 dias.
Faziam 10ºC e saltamos na passarela do Royal Cape Yacht Club, parecendo
astronautas. Três camisas, dois pulôveres, duas calças e por cima de tudo um
impermeável. Mal podia andar de tanta roupa. Mesmo com as pernas abertas, ia que
nem um bêbado.
Eram 10ºC, mas 10º molhados, debaixo de água salgada. Por mais que a gente se
cobrisse, a água fria, açoitada pelo vento do fim de setembro, penetrava e ia roubando
as calorias. Tirando o conforto.
Lembro-me quando chegamos. Um senhor de paletó e gravata desceu a
passarela e nos ajudou a passar os cabos. Dali seguimos pela passarela direto ao
banheiro do clube, onde permanecemos por mais de uma hora debaixo do chuveiro.
Depois vieram as autoridades e à noite jantamos no restaurante do clube, uma carne
deliciosa, depois de 34 dias de enlatados.
Fomos servidos por uma negra, aliás, somente ela e os dois do bar eram negros.
Todos os sócios eram brancos.
Ela deve ter estranhado eu tê-la olhado com bastante atenção e simpatia. Ela era
grande mas bem bonita, tinha os lábios grossos, bem carnudos, dava vontade de
morder.
Foi também nesta viagem que resolvi tentar um dia ser um navegador solitário.
E eis aqui, estou eu indo, tentando chegar de novo em Cape Town, partindo do
mesmo porto, Salvador, só que, em vez de fazer 4000 milhas, fiz mais de 20000,
vindo pelo outro lado e ainda por cima em solitário.
Se eu fosse realmente escritor, em vez de improvisador que sou, tentaria dizer
para vocês como é grande a minha vontade de chegar em Cape Town e saborear a
concretização deste velho sonho meu. É só no que tenho pensado estes últimos dias.
E novamente vêm as lembranças dos meus passeios por aquela cidade. Oito anos
se passaram, mas parece ontem. As lembranças fluem intensamente que nem olho
d’água após recente chuvarada. Tudo desperta em mim, aquilo que vinha guardando,
hibernado e que talvez um dia se tornasse necessário. No dia em que, por sorte ou por
destino, se realizasse a profecia do meu sonho.
E eis aqui, agora, estou indo pra lá. Tenho até medo de falar no assunto, mas,
finalmente, não me contive e falei.
9 de fevereiro de 1981

A calmaria acabou e estabeleceu-se um vento pelo NE, que com genoa e grande
no 3.º riso, permitiu um avanço de 130 milhas.
Depois, à noite, tive que mudar de rumo. Não queria rumar direto para cima de
terra, ainda que o ponto astronômico acusasse 100 milhas de East London.
Rumei para o sul.
A pressão foi baixando, estamos nas proximidades do extremo sul da África. A
rádio Capital anuncia para mais tarde vento de sul, ventos frios, já estamos beirando a
latitude de 35ºS.
Ontem à noite, avistei um navio, um só por enquanto, mas sei que aqui passam
muitos. É a rota para quem vem do Índico para o Atlântico e vice-versa. Aqui terei
que usar luz de navegação, nem que tenha que virar mais o motor e carregar as
baterias.
Ao completar o tanque, com óleo do camburão, descobri que gastei 18 litros de
diesel em 50 dias. Ainda me restam 200 litros. Por isso não vou me arriscar no
escuro, ainda mais que agora estamos nos aproximando, e sinto, ainda que remota,
uma chance de concluir esta volta ao mundo tão sonhada.
Agora passei a ter medo. Como alguém que anda geralmente despreocupado, em
alta madrugada, mas, ao carregar no bolso uma preciosidade, passou a ter medo de
ser assaltado. E o que carrego é 85% da volta ao mundo. Creio ser isto o que está se
passando comigo, enquanto me aproximo do Cabo da Boa Esperança.
10 de fevereiro de 1981

A pressão baixou até 750mm e aí parou.


O céu azul, aquele azul fosco, pois existia uma névoa espalhada no ar e apareceu
a sotavento uma formação de nuvens.
Aparentemente, elas se vão, se estão a sotavento, mas aí é que está o engano.
É. a frente.
Não é a frente popular e sim a frente fria.
Estas nuvens vão crescendo aos poucos, elas vêm por cima, enquanto por baixo
o vento continua o mesmo, só um pouco mais fraco.
Depois que as nuvens tornaram tudo e ficaram mais densas, começaram as
rajadas, e a cada rajada mais forte ele sofria uma rotação de 10 a 15º. Quando menos
se espera, o tempo muda. A genoa voltou ao aconchego da cabine, descansando no
saco, e o tormentim ocupou o seu lugar.
Pelas explicações dos livros, são depressões que passam lá, mais ao sul, entre os
paralelos 40 e 50, e o seu efeito se faz sentir por aqui.
Depois que cai o vento, a pressão começa a subir lentamente.
A duração destas frentes é de 1 a 2 dias, e depois o vento permanece um pouco
mais fraco por vários dias e o seu sentido vai sofrendo uma rotação.
Passada a frente, temos uns dias de trégua nestas paragens e depois começa tudo
de novo.
Às vezes, o vento vem realmente forte, às vezes são apenas umas rajadas.
Por precaução fiz mais um pouco de sul, mantendo sempre um mínimo de 100
milhas da costa, e a uma da manhã virei de bordo.
Ao içar ontem o tormentim, a driça embaraçou no topo do mastro e tive que ir lá
em cima, pela segunda vez neste Oceano Índico.
Tinha chovido e estava escorregando de meter medo.
De tanto manobrar, ir para o sul, só avançamos pra frente 60 milhas, mas a
forma física está a melhor possível.
13 de fevereiro de 1981

Hoje é sexta-feira 13, 13 de fevereiro. Não sou supersticioso, mas deixa passar a
meia hora que falta pois são 11h 30m da noite e <is aves marinhas não param de voar.
A gasolina para elas deve estar barata.
Nestes dois dias deu de tudo. Tormentim ao pôr do sol, calmaria ao amanhecer,
mas finalmente hoje deu um vento firme, um SE favorável e o barco avança que faz
gosto.
O vento começou de manhã, o mar estava liso, mas, pela tarde, a navegação já
estava impossível devido aos vagalhões que mascaravam o horizonte. O Caldeirão do
Cabo da Boa Esperança estava fervendo.
De teimoso tornei duas visadas, o resultado foi que ficaram a 50 milhas
afastadas uma da outra. Desisti, coloquei o sextante na caixa. Isto aconteceu
extamente quando estávamos beirando o banco Agulhas, na latitude pouco inferior a
36ºS.
Procurava tirar proveito da corrente Agulhas, em uma faixa onde ela é favorável,
espremida entre a contracorrente e a corrente geral, que passa mais ao sul e é contra.
Segundo os livros, quando sopra vento contracorrente, levanta-se aí, neste
trecho, um mar de meter medo, razão por que o Cabo da Boa Esperança foi, também,
batizado de Cabo das Tormentas.
Estamos, hoje, com vento a favor, mas ainda faltam 250 milhas até Cape Town,
é cedo para festejar.
Aproveitei para tirar umas fotos do mar, mas, nos melhores momentos, tive
mesmo que me segurar, quando a retranca com o balanço mergulhava nas ondas. Tive
que encolher um pouco esta retranca, reduzindo o rendimento da vela grande, já no 3º
riso, apesar da genoa em cima.
O fotógrafo não afina com o marinheiro. O fotógrafo quer ver o circo pegar
fogo, para tirar boas fotos, o marinheiro quer ver o mar acalmar, para ficar mais
tranquilo. Descansar o coração. Por isso tiro poucas fotos do mau tempo. Agora o mar
está revolto, mas está favorável, o que é muito importante para atravessar esta região
pouco hospitaleira.
Lembro-me que, quando, no barco dos outros, o caldo engrossava, eu era o
primeiro a pegar a câmara e passava a fotografar as ondas quebrando contra o casco.
Lembro-me do Concorde indo em 1973 para Cape Town. Pegamos um mau
tempo, o barco se torcia todo. As conservas armazenadas no armário debaixo dos
beliches arrancaram todos os compensados. O trabalho não estava bem-feito e a fibra
não aderiu bem.
Apesar do barco ser de fibra, o convés era de madeira, e, quando o barco se
torcia, caíam pedaços de madeira no piso, eram lascas de madeira do entalhe das latas
com as longarinas.
É. este o inconveniente do barco misto, os dois materiais não trabalham
igualmente, têm elasticidade diferente.
Lembro-me que Pierre estava ficando louco, o barco só faltava voar. Com
apenas um tormentim de 5m fazíamos 150 milhas diariamente.
Enquanto ele se preocupava, eu tirava as fotos do mau tempo, só parei quando o
filme terminou. Pierre não tirou uma só foto. Ele se preocupava com o barco.
Naquele tempo ele era o marinheiro e eu era o fotógrafo.
Mas deu meia-noite, já são 14 de fevereiro. Por isso posso tomar um gole de chá
e descansar, manter a forma.
14 de fevereiro de 1981

O tempo está bom, aproveito para me aquecer ao sol.


Contornamos o Cabo Agulhas, o ponto mais avançado do Continente Africano,
apesar do Cabo da Boa Esperança levar a fama. O fato é que de agora em diante
começamos a subir e faltam 185 milhas até Cape Town.
Já consigo sintonizar a rádio de Cape Town, com a sua programação fraca, típica
das rádios sob jurisdição governamental.
Hoje, completamos 57 dias de mar, sozinho, mas o que menos senti foi solidão.
Senti preocupação devido à época pouco apropriada, senti ansiedade e muita vontade
de vencer esta etapa, menos solidão.
Desenvolvi os meus raciocínios e mesmo me surgiram uma série de ideias
novas.
Cinquenta e sete dias sozinho, comigo mesmo, sarando as fissuras que a
sociedade imprimiu na minha unidade.
Se me dessem uma porcelana em pedaços, durante este tempo sozinho, sem
sofrer distrações nem motivações indesejáveis provavelmente poderia montar o
quebra-cabeça e colar, pedacinho por pedacinho, esta porcelana.
Assim também somos nós, frágeis em um mundo atormentado. Apesar de não
me considerar porcelana em pedaços, não posso negar a presença de fissuras
profundas, que, mesmo saradas, deixam marcas e cicatrizes.
Então, isto foi um tônico, um fortificante, para a unidade do meu ser. Me senti
mais compacto, coeso e solidário comigo mesmo. Isto é fundamental, para se poder
ser solidário, com o mundo que nos cerca.
A gente pensa, dialoga com o livro, mas o Três Marias não pára com ventos de
SE de popa a partir do instante em que começamos a subir, vela grande por um bordo,
genoa tangonada por outro, o Três Marias parece mais um enorme pássaro, de asas
abertas, que sobrevoa o oceano. E eu, montado nesta maravilha, me sinto livre, sinto
o mundo ao meu alcance, sinto-me um cidadão do universo.
15 de fevereiro de 1981

O ponto do meio-dia diz que estamos a 46 milhas do sul do Cabo da Boa


Esperança, mas desde cedo que olhamos o horizonte.
Os olhos não obedecem. Vão lá, vão cá e tornam a dar uma olhadinha em
direção ao cabo. A esperança é vê-lo antes do anoitecer. Isto seria bom para definir o
rumo da noite.
O vento de SE bate fresco e promete levantar bastante mar. O barco avança.
Como sempre, cercado por aquela apreensão comum nas vésperas de chegada.
Será que tudo vai dar certo?
Será que a terra esperada vai aparecer no horizonte? Esta apreensão é maior, sem
dúvida, quando há 58 dias não vemos um pedaço de chão.
Quando deu três e meia da tarde, tive a grata satisfação de registrar o
aparecimento, na proa, do Cabo da Boa Esperança, com toda a sua beleza.
Estava ansioso. E como um encontro marcado com a mulher amada. A gente fica
pensando se ela vem ou não de repente, ela dobra a esquina e está em nossa frente.
Após conferir tudo, aproveito para me deitar, tentar descansar, pois esta noite
passarei em claro, amando esta mulher.
Os navios começaram a se tornar mais frequentes, passando um atrás do outro, e
um curioso desviou a sua rota, veio me observar de perto. Foi assim que Bernard
Moitessier sofreu uma avaria.
Durante as últimas três horas, fizemos uma média de 8 nós. O barco andava à
toda, querendo entrar em delírio, o leme mal governava.
Tive que mudar de rumo, arriei a genoa. Vamos agora apenas com a grande no 3º
riso e a corrente a favor, para evitar um desastre de última hora.
São 6 da tarde e o Cabo da Boa Esperança ficou para trás, perdido na névoa. Só
faltam 30 milhas até Cape Town.
Iço o tormentim, mantendo o 3.º riso na grande. O barco está surfando.
A lua está quase cheia. Se der visibilidade, a gente vai tentar entrar de noite.
O fato é que é muito grande a responsabilidade. Uma travessia belíssima destas
vai agora depender dos últimos momentos. Pode-se ganhar ou perder tudo.
Estamos nos beneficiando do clarão da lua, vai aparecendo monte atrás de
monte, depois as luzes de Haut Baai. É a civilização.
Do lado do Atlântico é mais frio, são 10º a menos do que no Índico, fui forçado
a calçar as botas, meias e gorro de lã. Nos armamos para a batalha final, enquanto no
interior da cabine o termômetro acusa 17ºC. Lá fora, quem sabe?
Pensei que, à medida que avançávamos, a coisa ia melhorar. Mas foi engano.
Aparentemente estaríamos na sota dos morros. Mas o vento ficou irregular e, de vez
em quando, descia canalizado, que não tinha leme que aguentasse. O barco chegava a
deitar entrando em orça forçada.
Arriei o tormentim. Não podia arriar a grande, que considero o 2.º leme do
barco. Ficar sem ela seria ficar nu. Resolvi pegar o leme, olhando sempre para trás.
As ondas cresceram tanto que pareciam mais bichos de boca aberta, tentando engolir
o barco.
As rajadas se sucederam e depois o vento parou. Então liguei o motor e avancei,
mas, logo em seguida, o vento voltava com dobrada intensidade.
Apliquei o 4.º riso na grande, mas, mesmo assim, o barco deitava todo, quando
as rajadas desciam bruscamente pelas escarpas do morro, tentando varrer o barco do
mapa.
Resolvi esperar o amanhecer. Desliguei o motor e fiquei apenas com a grande no
4º riso. Voltei um pouco para trás de um morro mais alto e o vento tornou a parar. Aí
fiquei à deriva até o amanhecer, apreciando as luzes da cidade.
As estrelas foram desaparecendo uma por uma, ficando apenas as maiores.
Tornei meu café e clareou.
Fui avançando e o vento não deu as caras. Entrei com calmaria total.
O barco da Polícia Marítima me abordou, desejando boas vindas e me guiou até
o ancoradouro.
Eles avisaram pelo rádio às autoridades.
Mas é difícil de acreditar. Finalmente em Cape Town, com estações de ciclone e
tudo.
Lembro-me de que quando saí de Bali pensei: Quando chegará este dia?
Mas o tempo vai passando inevitavelmente e, hoje, cá estamos, após 59 dias de
mar.
22 de março de 1981

Já estou em Cape Town há mais de um mês, esta cidade parece ter visgo. O
tempo passa e a gente vai ficando.
Tudo começou com a atracação no cais do Royal Cape Yacht Club. Ao
aproximar-me, alguém se apressou para ajudar-me, era Henry Iria, um uruguaio que
chegou aqui há cinco anos como turista e ficou.
Começamos a conversar, q tomar café, depois Henry começou a apresentar-me à
boa gente desta terra.
Henry é do tipo boa vida. Deixou de trabalhar em terra, dedica-se atualmente a
transportar barcos de um lugar para outro, ou comandar barcos em regata.
Tinha chegado numa 2ª feira, após 59 dias de mar, mas, na 4ª feira, já estávamos
correndo juntos com Henry no Beatrice.
Na 6ª feira, apenas dois dias depois, nos largamos a bordo do Gazala, um
Peterson, para a regata de Saldana, com um percurso de 120 milhas.
Era um destes dias que o SE soprava de arrepiar. Para mim, iam suspender a
regata. Todas as driças assobiavam em sinal de protesto, mas não houve uma
desistência sequer. Aqui todos estavam acostumados e o vento beirava os 50 nós.
Demos a largada, usando a grande no 2º riso e a genoa um armada como se fosse
um spinaker.
O barco andava que dava medo, mas as costuras cederam. Era o vento sob efeito
dos morros, nas proximidades da cidade.
Logo em seguida, içamos um spinaker, que faz o barco andar ainda mais.
Tentando ganhar, Henry punha o mais de vela que podia. Avançávamos muito
bem, mas, em uma rajada, o spinaker estourou. Içamos outro menor logo sem
demora, mas, naturalmente, já não tínhamos condições de ganhar.
Outros estouraram a grande, a genoa, raro o barco que não perdeu algo.
Brincando com Henry eu dizia: “Agora sei porque tantas estrelas no céu. São pedaços
de spinaker, iluminados no meio da noite”.
Eu que sou um indivíduo eminentemente de cruzeiro, amante da paz e
tranquilidade, senti o sangue ferver durante a regata. A gente vai se aproximando da
loucura.
Regata é algo realmente muito louco e a gente sente crescer em nosso interior o
espírito de competitividade, por uns tempos adormecido, hibernado, mas sem dúvida,
como provam os fatos, nunca ausente.
Daí em diante, os convites choveram. Fomos a Church Haven, um local
encantador entre o mar e as lagunas, lembrando Arembepe.
Corri para estirar as pernas, subi morros, apreciei a natureza, mergulhei entre
algas imensas, e, apesar da roupa de neoprene, fui escarreirado pela água gelada.
Neste local, um grupo de 10 pessoas alugou uma casa de campo, onde passamos 2
dias agradabilíssimos com Brita (Billy), Françoise, Alfredo, Ilsa, Helen, e, sem
dúvida, o encanto e a candura de Bárbara, a sul-africana que balançou a firmeza aqui
do marinheiro.
Ela, com os olhos, e, principalmente, com o sorriso, reduziu-me a escravo desta
nova necessidade. Por isso dizia sempre: Bárbara, se você pudesse não deveria parar
de sorrir. Filha de poloneses, nascida no extremo sul aqui da África, em Cape Town,
conseguiu desenvolver em meu peito os melhores sentimentos de ternura e amizade.
Daí em diante foram os churrascos, os jantares com Dick Johnson, do Ingrid,
andando pelas montanhas com Neoline.
Feitas as primeiras amizades, boas amizades, os convites não paravam e chegou
o momento de começar a rejeitá-los por um motivo muito simples. Impossibilidade
física de atendê-los.
A gente tem que reconhecer que esta gente aqui do extremo sul da África,
isolados do resto do mundo, tem uma carência de comunicação que é expressa em
hospitalidade.
Queixam-se muito, os iatistas principalmente, do esfriamento das relações com o
Brasil e o fim da tão famosa regata Cape Town-Rio, que os trazia à cidade
maravilhosa às vésperas do Carnaval.
Assim sendo fui levado a montanhas e vales, praias e rios, aos grandes centros e
aos subúrbios, às plantações de uva em Stellen-busch, aos bairros negros, e, sem
dúvida, também aos bairros de luxo.
Durante os jantares se conversava sobre tudo, finalmente chegava-se à inevitável
encruzilhada, o “apartheid”.
Muitos o condenam, principalmente os mais instruídos, reconhecem ser um
privilégio desnecessário que lhes custará cada vez mais caro, à medida que o tempo
vai passando. Muitas reformas, sem dúvida, vão sendo feitas, mas, a meu ver,
lentamente.
Outros o defendem, dizendo que a única diferença é que aqui está escrito o que
em outros lugares se pratica, mas não se escreve. Tentam defender algo indefensável.
O negro aqui não tem nem mesmo direito de ter uma casa própria. O governo
lhes constrói as casas, lhes impõe as condições e depois os brancos se queixam de
que eles não as conservam. A falta de liberdade é total.
O negro vive nas suas cidades, longe de tudo, dos grandes centros. Se trabalha
em Cape Town à noite, tem que ter um passe. Alguém pegado sem o passe é preso e
levado à corte, onde, para começar, paga uma multa.
O negro não tem direito a especializar-se em certas tipos de mão de obra,
reservados só para os brancos. Aos negros é permitido cavar valas no chão,
transportar tijolos de carrinho de mão e lavar, sem dúvida, latrina, atividade
terminantemente proibida aos brancos.
Explico que não aceito esta lei de exceção, este privilégio, que só desperta nos
negros o ódio pelos brancos protegidos. Este ódio que se transformará um dia em
sangue, sem nenhuma dúvida.
É um caldeirão fervendo que a polícia, com o seu peso, tenta manter com a
tampa fechada, mas que um dia explodirá sem dúvida. A injustiça trará
inevitavelmente a violência.
As esperanças dos brancos de Cape Town – muito mais liberais do que os de
Pretória ou Joanesburgo, pois a brisa do mar amacia o coração dos homens e afrouxa
os sentimentos tensos e radicais – é explicada da seguinte forma: “A cor aqui não
divide os homens. Os brancos estão no poder, está certo, mas os negros não são uma
massa única e uniforme. São nove as nações negras, que têm também fortes
rivalidades entre si”.
Os Zulus detestam os Xhosas, é comum nas minas as lutas entre os próprios
negros. É justamente esta rivalidade entre os negros que dá aos brancos, com apenas
20% do todo, uma possibilidade de se manter no poder.
Não sei porque proíbem e punem com 6 meses de cadeia o acasalamento entre
brancos e negros que daria o mestiço, o moreno, uma verdadeira almofada, que
abrandaria o choque inter-racial.
Sempre achei que o racismo não é um sentimento forte.
Forte é amor, muito mais forte do que o ódio.
O racismo passa a se manifestar como sentimento odioso, quando se estabelece
uma injustiça social ou econômica, quando uma raça no poder oprime a outra.
Não havendo injustiça, ama-se mais a uns do que a outros, por problemas de
identificação de objetivos ou afinidades afetivas, independentemente da raça.
Só pelo fato de ser um branco, não se é obrigado a amar todos os brancos e as
guerras entre brancos através da história mostram o fato.
Estas discussões passam a ser, geralmente, a sobremesa, após o jantar. P
desagradável, após ser convidado, homenageado, bem tratado, ter que discordar no
fim. Mas como concordar com algo que o coração não pode aceitar?
Se eu fosse um negro na África do Sul, rejeitado, injustiçado, tenho a certeza
que seria muito mais perigoso do que muitos deles, pois, com os conhecimentos do
mundo que tenho, com a minha consciência, lutaria com muito empenho para
derrubar este privilégio.
O pior de tudo é que no meio de tudo isto encontram-se pessoas ótimas. Fiz
tantas amizades, talvez por já estar me aproximando de casa, já concluindo a viagem,
mas em Cape Town foi onde recebi a mais calorosa acolhida de toda a viagem, onde
fiz mais amigos, onde recebi mais amor. Creio que foi amor verdadeiro.
As vezes penso que pelo fato de já estar me aproximando de Salvador, estando
às portas do Brasil, relaxei a vigilância que tinha estabelecido em volta do meu
coração, impedindo qualquer aproximação.
Lembro-me que ainda em Salvador, meses antes da largada para a viagem de
volta ao mundo, quando acontecia simpatizar com uma mulher, ia logo dando o aviso.
“Se você me quiser, será da cintura para baixo, pois o coração e a razão estão
comprometidos com a viagem”.
Foi aqui, em Cape Town, que esta guarda de aço, que tanto me protegeu contra
um possível amolecimento, uma parada, foi finalmente relaxada.
A porta do coração se abriu, ou ficou entreaberta, permitindo que alguém se
aproximasse e por fim penetrasse nesta região por tanto tempo desabitada.
Ainda sabendo que tinha que continuar a viagem, mas a proximidade do fim me
dava uma certeza de que forças não iriam faltar, para desatracar mais esta vez do cais.
Mesmo assim passei 33 dias nesta cidade, a mais longa parada de todo o percurso,
após passar 2 meses no mar sem escala.
Quando anunciei a data da minha partida foram marcadas as festas que não
pararam mais, nem tampouco as visitas a bordo.
Um churrasco me foi oferecido, onde compareceram 26 pessoas. Arrodeado da
amizade de Henry, do amor de Bárbara, de tantos amigos, vivi momentos
inesquecíveis. Um livro sobre Cape Town me foi oferecido após a assinatura de
todos.
Na última noite fiquei a bordo, foi a noite das visitas.
Henry tocava violão, juntamente com Massato, um japonês, navegador solitário
que viera há 2 dias, e um monte de amigos. Dizia que já podia partir, pois já viera um
outro solitário para me substituir.
Começamos tomando chá, depois trouxeram garrafas de whisky e o papo se
prolongou até alta madrugada, ao som da viola e dos carinhos de Bárbara.
Fui dormir já era tarde, resolvi sair no outro dia às 10h. Os amigos vieram me
trazendo presentes, flores, finalmente beijos e abraços.
Henry, num ato simbólico, não me desatracou e sim passou a faca nos cabos,
dizendo que se ficasse mais um pouco ficaria para · sempre.
E foi assim que deixei Cape Town.
11.DE CAPE TOWN AO RIO DE JANEIRO
25 de março de 1981

Passaram-se quatro dias.


Saí bordejando, pois o vento fazia zigue-zague na sota da Table Mountain. Na
noite anterior à minha saída vieram muitos amigos a bordo entre eles Paddy e Diana,
donos do “Kitara”. Eles me falaram de uma frente que vinha próxima, segundo a
meteorologia da televisão sul-africana, mas, após tantas despedidas, seria duro ter que
viver novamente as mesmas emoções. Resolvi partir assim mesmo.
Foi justamente esta frente que veio e passei estes 4 dias avançando pouco, ora de
yankee, ora de tormentim.
Paddy me contou das suas regatas. Sofreu um acidente grave, quase se despede
deste mundo.
Uma onda grande, destas que veem solitária, fora de rumo, pegou o “Kitara”
pelo través e Paddy saiu voando. Um pouco mais e perdia a vida.
O sonho de Paddy é a regata solitária ao redor do mundo, partindo de Newport,
no fim do ano que vem.
Guitarrista de primeira classe deu um concerto no churrasco que me ofereceram
como despedida. Contam que afina o seu barco como se fosse um instrumento de
música, daí a razão do seu sucesso.
Mas esta frente me fez lembrar dos dias passados, quando contornei o Cabo da
Boa Esperança, com bastante sucesso. Sem correr por assim dizer perigo maior.
Henry me contou que em uma regata, anos anteriores, perderam-se naquela região 2
homens. A onda os lavou do convés, o comandante e um tripulante. Quando o resto
da tripulação descobriu o fato entrou em pânico total.
Também assim foram estes 4 dias, cheios de incertezas. A gente estranha esta
vida após passar 33 dias em terra, numa vida maravilhosa, cercado do calor dos
amigos e dos carinhos de Bárbara, uma amizade regada a muito amor.
Em Cape Town, amei como um adolescente.
Agora, aos poucos, o corpo vai voltando aos costumes dos tombos de mar.
Novamente olho o horizonte e algo me aperta o peito. Uma música toca no fundo de
minh’alma, e em certos momentos parece que estou apaixonado, mas é pela minha
vida.
É incrível como o corpo estranha após uma parada mais demorada. Troca-se
calor humano por tombo de mar, frio, chuvas, incertezas, navios que cruzam a nossa
rota, o eterno perigo de cair n’água e ver o barco seguir, e o perigo novo, as baleias,
tão citadas em Cape Town, que segundo consta já afundaram neste trecho inúmeros
barcos.
Tudo isto vem a confirmar que um navegador solitário não pode parar muito.
Tem que levar direto, e foi assim que partindo para uma viagem de 30 meses fiz
22000 milhas em 11 meses apenas. Passei um mês em Cape Town e faltam em torno
de 4000 milhas para a costa brasileira.
Paradas demoradas dão margem a novas perspectivas, criam na imaginação
novos horizontes.
Foi exatamente isto o que aconteceu com Gerard Soreil do Scalawag.
Conheci Gerard no Rio de Janeiro há uns 4 anos atrás, Após explicar os seus
planos de dar a volta ao mundo em solitário, Gerard me levou a bordo do Scalawag.
Estava nos últimos preparativos. Naquela época, o Três Marias estava em construção.
A Marinha tinha lhe ofertado as cartas náuticas, também um escudo. Achei
muita responsabilidade aceitar algo por antecipação, a não ser que se considere que o
brasão fora ofertado pela nobreza das intensões.
Gerard deixou o Rio de Janeiro com destino a Buenos Aires. Passou lá 6 meses,
depois seguiu para Cape Town.
Encontrando a boa hospitalidade do povo do extremo sul da África, foi ficando.
Conheceu uma gente que tinha dinheiro e foi ser capitão de um barco que
pescava diamantes na costa da Namíbia. Ganhava comissão.
Deu sorte e ficou rico, esquecendo sem dúvida a viagem de volta ao mundo.
O banheiro do Royal Cape Yacht Club é coletivo. O banho quente nesta região
de clima frio é coisa que demora, é como a sauna. Dá tempo de banhar-se e fazer
amigos. Conversa-se sobre os assuntos mais diversos; de repente, achei que um deles
tinha sotaque diferente. Sem dúvida, era Gerard Soreil do Scalawag.
Este mundo é pequeno. O único brasileiro que encontrei residindo em Cape
Town era meu conhecido.
Gerard não era o único estrangeiro do banho. Nos primeiros 15 dias, só conheci
uma meia dúzia de sul-africanos. Todos os demais eram de fora. Ainda que morassem
50 anos na África do Sul, devido ao apartheid e a não aceitação do passaporte sul-
africano em boa parte dos países, mantinham a nacionalidade de origem.
Ninguém queria ser sul-africano. A maioria tinha dois passaportes.
O visto de permanência é fácil, pois eles têm o interesse de aumentar, o mais
possível, a população branca para equilibrar a maioria negra no país.
Alguns, em tom de ironia, dizem que o governo aqui facilita a entrada de
brancos e dá uma medalha a quem matar 10 negros. Apesar de isto ser uma piada
muito maliciosa, não deixei de ouvi-la por várias vezes em um só mês que passei por
lá.
Não vi ninguém morrer, mas eles morrem.
Ainda há pouco, os negros rejeitaram o calendário oficial com 4 feriados
nacionais. Segundo eles estes feriados eram dos brancos, pois comemoravam as
façanhas, as vitórias dos brancos, que sempre terminavam sendo uma derrota para os
negros.
Eles aceitariam 4 outros feriados, dias em que morreram tantos negros, em que
seus jornais foram fechados etc…
Contam que, quase todo ano, os negros se revoltam e vêm de suas cidades,
andando aos milhares, armados de paus e pedras.
A polícia e o exército os recebe armados até os dentes, e se conversa pouco. A
ordem é fogo.
A gente não quer descer aos detalhes, não vamos pôr gasolina onde o fogo já
está alto. Caso pudesse, gostaria de ajudá-los a sair do impasse, de todo o coração.
Mas não é em Cape Town que está a força do apartheid.
Cidade bonita, à beira do mar, compete de perto em beleza com o Rio de
Janeiro. Os seus habitantes, amantes da natureza, estão até um tanto esquecidos deste
problema. Também em um grupo de 15, talvez 2 nasceram na África do Sul, na
maioria são estrangeiros.
É no centro, nos campos, nas plantações de frutas, onde a mão de obra barata,
fornecida pelo apartheid, ajuda a competir com os preços internacionais. É nas minas
de ouro, carvão de pedra, diamantes. É nas indústrias de mineração de Joanesburgo e
Pretória, é lá que está o governo, pedra filosofal desta doença. Aqueles homens,
acostumados a olhar para baixo, para o fundo das minas, não conseguiram levantar a
cabeça e ver que a África do Sul é o único país que ainda tem este atraso social. É lá
que estão os empregos associados à cor. Os bons empregos para os brancos. Eles
afirmam que o negro africano nesta região está tão atrasado que não tem, pelo menos
por enquanto, capacidade para ocupar estes bons empregos.
A meu ver, isto não passa de uma escravidão moderna, uma escravidão
disfarçada no século vinte.
Eles esqueceram que no peito de um negro também bate um coração. Este negro
que no Brasil é herói. É quem faz o nosso samba, o nosso carnaval. É quem anima o
nosso futebol. Pelé, um negro, é o nosso maior herói nacional, símbolo de um povo.
Lembro-me bem, até mesmo em qualquer boteco, debaixo de uma árvore, nos
confins da Indonésia, ao dizer que sou brasileiro, a resposta é uma só:

“Futebol, Pelé”’.
Este homem é mais conhecido através do mundo por onde passei que o papa.
O único medo que tenho é que as transformações demorem, e o ódio, que o
apartheid é capaz de desenvolver, resulte em um banho de sangue, envolvendo
inclusive milhares de indivíduos ótimos que estão ali por força do destino.
29 de março de 1981

Os dias vão passando e já estamos a 1000 milhas de Cape Town. Na realidade o


percurso está longe de ser uma linha reta. Inicialmente nos afastamos da costa, até
atingir as 100 milhas para depois seguir viagem. Em seguida vai-se a NW, em busca
dos alísios, e só então para W, em busca do continente sul-americano. O ideal pelos
ventos é subir até a latitude 18ºS e depois descer para a 23ºS, onde está o Rio de
Janeiro. O mais fácil seria ir direto a Salvador, mas vamos ao Rio.
Como fazia frio, passei a maior parte deste tempo no interior do barco e só de
vez em quando dava uma olhadela lá fora.
Comecei animado, passavam tantos navios, um chegou a manobrar para evitar-
nos, ou pelo menos afastar-se mais. Mas aos poucos fui ficando sozinho e fui
chegando para a realidade, fui vendo as coisas.
Analisando o mês que passei em terra, às vezes nem eu mesmo sou capaz de
entender.
A gente se reúne, fala um bocado de bobagens e todo o mundo acha graça.
Parece até tudo combinado. Em terra, em grupo, parece que a gente fica bobo, e a
maior tarefa do ser humano é mesmo descobrir como matar o tempo.
Lembrei-me agora que no meio de gargalhadas, em Cape Town, me perguntaram
o que iria fazer quando concluísse a viagem, como se faltasse o que fazer.
Em completa euforia, encostava o dedo na fronte e fazia PUMMM... Vou dar um
tiro na cabeça. E depois dava outra gargalhada. Estávamos no meio de um churrasco.
Horas me lembro novamente de Cape Town, de Bárbara. Não, o amor foi a única
coisa que eu não tenho dúvida. Foi algo que foi crescendo, crescendo, até nos
dominar completamente. Bárbara não estava completamente livre. Ela estava
tentando viver com um alguém maravilhoso, mas muito pouco recebia em troca.
Quando o nosso olhar se cruzou pela primeira vez vi em Bárbara uma pessoa
carente de algo que eu tinha tanto pra dar e logo nos encontramos.
No início dissimulávamos os nossos sentimentos, mas, aos poucos, fomos
tomando coragem e nos amávamos na presença de todos. Foi um sentimento que foi
crescendo involuntariamente, que se fez presente e pronto. Dane-se o mundo. Dane-
se quem for contra.
Isto ficou tão claro que a outra parte não reagiu, compreendeu e aceitou. O
tempo estava a seu favor.
Depois eu parti.
Todos estes pensamentos aqui no interior da cabine terminam nos sufocando,
nos naufragando em um mar de tristeza, de angústias. Aproveitei estes dias para
costurar uma nova sacola em couro, a outra, após tantos anos, estava caindo aos
pedaços. Ia costurando e pensando.
Há muito tempo que não deixo nada, ou nenhum sentimento perpetuar-se.
Quando está no melhor, lhe cortamos as asas, e posso confessar que estou um pouco
cansado.
Sinto que preciso fazer um pouso. Repousar. O corpo fica um pouco sonolento,
sinto um pouco de frio.
Ocasiões o barco está rendendo pouco, mas uma preguiça emocional me envolve
e tudo vai ficando no que está. Nem sei se tenho pressa. Um dia termina-se chegando
lá.
A verdade é que estou tentando o último percurso com destino ao Brasil.
Lembrei-me do tempo em que a esta hora ia terminando o trabalho e quando chegasse
em casa o prato de sopa quente estava me esperando, a sopa e a ambiência.
Há muito tempo que ninguém me espera, nem, tampouco, espero ninguém. O
livro tornou-se o meu melhor amigo. Ele me ajuda a esquecer das crises, das
amarguras.
Sinto que estou deprimido.
Quando a gente está bem, a gente por si só se basta. Um pássaro solitário
sobrevoando o oceano. Mas quando a crise bate na porta a gente precisa da plateia.
Neste instante parece inútil recitar uma poesia, é como representar uma peça de
teatro sem público.
Nestes dias difíceis a gente perde a noção dos reais valores. A gente tem a
impressão de que somos o que somos, não por nós mesmos, pois de nada precisamos
além da consciência, e sim pelos outros, como uma criança, procuramos ser
bonzinhos para agradar a mãe, o bom aluno para agradar ao mestre. Bom sujeito para
agradar a família, como se não fosse possível ser bom por ser apenas, para si mesmo,
para o seu próprio eu.
É justamente nestes dias, quando você olha para os lados e não vê ninguém, que
você sente aquele vazio.
É sempre no fim das tarefas que tenho menos paciência e parece que no fim da
viagem vou sentir solidão.
Na realidade não sei bem o que estou sentindo. Se é solidão ou nostalgia, com o
fim da viagem que se aproxima. A proximidade do Brasil. O fim do sonho. A
necessidade de encarar a sua realidade, a realidade de seu povo, a impossibilidade de
ficar à parte dos problemas. Cada vez menos consigo viver para mim apenas, só para
engordar. Os problemas sociais estão cada vez mais claros em minha mente e sinto
que já não dá para ficar de fora.
Não sei se é isto o que me preocupa, só sei que não estou bem.
8 de abril de 1981

A crise passou. Aproveitei para redigir a parte final do livro, o apêndice, a parte
técnica por assim dizer, e dar início aos preparativos da chegada.
A crise passou, mas resta sempre um pouco de tristeza.
Sempre ia para algum lugar, agora estou voltando. Na realidade estou indo para
a frente, pois não sou culpado da Terra ser redonda.O fato é que estes dias estava
pensando. Fiz esta viagem muito rápido. Esta é a viagem do Brasil. Falta fazer uma
para mim mesmo.
Sem rota, sem destino, embarcando e desembarcando tripulação. Vivendo as
aventuras não só no meio da natureza, mas também no meio dos homens. Viver ao
mesmo tempo uma série de aventuras. Permitir ao mesmo tempo uma série de
emoções, sem data de chegada nem planos distantes. Viver o dia a dia.
Lembrei-me agora de um velho espanhol que conheci em Trinidad, que se
chamava de “Skipper”. Creio que ele mesmo escolhera o seu apelido, morava em
uma casinha flutuante que construiu, onde fazia estatuetas em gesso para sobreviver.
Ele parecia sonhar ser um marinheiro. Gastou a vida por aí e agora mora sozinho
à beira do mar.
Ele me falou que um dia destes põe umas provisões a bordo, corta as amarras,
deixa a sua casinha flutuante sair à deriva. O destino que se encarregue do rumo.
Ele irá arrebentar-se sobre os primeiros penhascos, pensei, sem propulsão nem
condições de manobra, mas compreendi e calei.
As vezes não importa a realidade, importa o que se sente. Cansado de delegar a
si próprio o destino de seus passos, morando completamente só, insatisfeito com o
mundo, com tudo, quer tentar dar chance ao acaso.
Não quero ir como o “Skipper” em uma casinha flutuante, despreparada para o
mar. Mas, quem sabe, em um barco relativamente seguro, tentar escutar a voz do
acaso e ver o que se apresenta pela frente. Isto teria, sem dúvida, outros sabores. Até
agora o método foi um só. Planejar, estudar as implicações, fazer a programação,
cumprir a programação, se possível o quanto antes, antes do prazo, bater todos os
meus próprios recordes.
Não se deu muita chance às asas do destino, se é que isto não é o meu próprio
destino.
A esta altura, hoje, eu não sei de nada. Não sei o que será da minha vida, mas
talvez seja melhor assim. Qual seria a graça de se jogar com cartas marcadas?
Só posso dizer que esta viagem não matou a minha sede.
Naveguei, é verdade, mas não vivi.
Agora eu quero viver, sem saber o que isto significa.
Talvez parar numa ilha destas e esquecer do mundo, fugir mais uma vez do
rebanho, da vida de gado.
Sinto-me como alguém que estava em missão pelos mares. Embaixador do
Brasil no mundo da vela, no país dos ventos, e que agora estou de volta com a missão
cumprida.
Ainda a pouco, em Cape Town, todo mundo falava da regata de volta ao mundo
em solitário e eu pensei.
Quem sabe agora, chegando de volta ao Brasil, o primeiro navegador solitário
brasileiro a completar uma circunavegação, talvez possa até conseguir um
patrocinador e ir para esta regata que começa em Newport no ano que vem.
Contatar projetistas, construir o barco, correr a regata.
Não, isto seria entregar-me novamente a planos e adiar mais uma vez o início
desta nova fase. Eu quero viver e pronto. Fim.
Mas o que seria viver? Então a gente pensa.
Para mim, o melhor seria chegar, dizer: “Alô Pessoal”.
Publicar o meu livro e partir.
Aí a gente se lembra do Pai com 84 anos, da Mãe, dos filhos que há tanto tempo
não vejo e nem sei o que sentem.
O capim já deve ter tomado conta do quintal, o telhado deve estar cheio de
goteiras, o pouquinho de dinheiro que deixei já deve ter acabado, ainda mais com a
ajuda da inflação. Este pessoal, de idade avançada, já não pode cuidar das coisas.
O melhor é não fazer planos.
Chegando lá, a gente vê e depois a solução aparece, ou melhor, o que aparecer
chamaremos de solução, pois, para ser completamente livre, precisa-se ser
completamente só.
11 de abril de 1981

Estamos a 1000 milhas de Salvador e 1200 milhas do Rio.


Tem horas que nem sei o que vou fazer no Rio, mas vamos lá. Já escrevi para
todo o mundo dizendo que é para o Rio que vou e só depois para Salvador.
O tempo tem estado bom, só que agora, tendo que passar ao sul de Trinidad e
Martim Vaz, vamos sair novamente dos alísios para entrar na faixa de ventos
variáveis.
Passar ao norte de Trinidad garante ventos mais favoráveis, aumentando porém a
distância. Também seria aproximar-se mais de Salvador, o que é um perigo. Portanto,
iremos pelo sul, longe da tentação de dar uma arribada e ir direto pra casa.
A vida a bordo tem sido uma rotina. Apenas umas arrumações para a chegada.
Coisa pouca, tentando acabar de ler os livros que comecei, pois em terra nunca se tem
tempo.
Acompanho o mundo pelo rádio. O presidente dos Estados Unidos, Mr. Reagan,
que tanto falou em armar-se, foi o primeiro a experimentar o gosto do chumbo
quente, ao sofrer um atentado a bala. Mas escapou.
Toda a agressão é lamentável, mas já que houve espero que disto ele tire algum
proveito.
Segundo o dito popular, já que a curra é iminente, o negócio é aproveitar.
Acompanhamos pelo rádio a política do mundo e cada vez mais me convenço do
papel crescente da ONU.
Na ONU pode-se trabalhar pela humanidade, sem levar em conta nacionalidade,
raça ou religião, nada enfim.
Trabalha-se, ou pelo menos tenta-se, visando melhorar o homem na face da
Terra, objetivo com o qual me identifico bastante. Trabalharia satisfeito em uma das
delegações da ONU.
Desde o controle da poluição dos mares, a devastação das florestas, a evolução
do clima. Acompanhamento dos problemas políticos e suas implicações sociais, como
os refugiados de guerra, os problemas de saúde no planeta, o controle da natalidade e
a produção de alimentos.
Enfim, procura-se verificar, medir e talvez até ajudar a solucionar, dentro do
possível, tendo em vista a estrutura atual, os problemas que afetam de perto o ser
humano.
A fase atual é antes de tudo identificar, medir, e chamar a atenção desta gente
que corre tanto, sem saber para onde está indo – divulgar.
Uma vez bem visto, todo mundo consciente, será mais fácil combater as causas
e providenciar as soluções.
Trabalhando na ONU, sem fronteiras, creio que as pessoas perlem “a forma
humana”, ou seja, como diz Castañeda, se despem daqueles sentimentos mesquinhos
que acompanham geralmente o homem e se colocam num plano superior.
Sei que ainda há, mesmo na ONU, muita luta, contra forças reacionárias que não
querem permitir que floresçam, sem poluição, os verdadeiros objetivos, a fraternidade
e o amor universal.
A ONU é a primeira célula, a primeira tentativa “humana” de ultrapassar a
barreira da burrice. Aos poucos a consciência vai se estabelecendo e já em algumas
mentes o termo “humano” é mais pejorativo que o termo “animal”.
O trabalho é árduo e requer tempo, pois, enquanto o próprio homem não mudar,
o fruto do seu trabalho não poderá ser tão diferente assim. Os condicionamentos
levaram épocas inteiras para se impregnarem, e, agora, ainda que aos poucos, se
conscientizando, o homem tem medo de despir-se. Talvez morra de frio.
Se a gente raspar o homem dito civilizado encontrará, logo, ainda à flor da pele,
o homem das cavernas. Aquele mesmo homem que armado de um bastão afugentou e
escravizou as feras e por fim escravizou o próprio homem.
Ainda hoje, enquanto alguns tentam encontrar uma linguagem comum entre os
povos, tem gente procurando armar- se mais e mais, procurando fazer um bastão cada
vez mais comprido, para poder atingir cada vez de mais longe o seu semelhante. Essa
gente procura dourar o bastão, dizendo ser ele o bastão que garantirá a paz, e tentam
vender o remédio milagroso para deus e o mundo.
Agora que estou voltando é hora de refletir.
Voltamos para nos juntar a quem? Onde vamos engrossar a correnteza?
Aos que tentam conquistar a paz pelas armas, esmagando os seus semelhantes,
as oposições, por eles chamados de adversários, ou para os que buscam encontrar
uma linguagem comum entre os povos?
Não vale a pena voltar, antes de se ver com clareza, para quem se está voltando,
antes de ver com clareza o que nos espera.
Muito mal termina uma etapa e já sinto em mim o início de outra, de outra luta.
Isto não pára nunca.
14 de abril de 1981

Sempre sonhei nesta viagem de um dia retornar ao Atlântico.


O Pacífico, o Indico eram oceanos desconhecidos, mas o Atlântico a gente
conhece, é como o quintal de nossa casa, e este dia chegou.
Deixei Cape Town já sem águas do Atlântico, era só subir para pegar a zona
tropical e tudo bem. Nem prestava mais atenção ao barômetro, olhava apenas por
hábito.
Quando a pressão baixou e foi a 748, nem dei bola.
Mas o Atlântico também tem os seus caprichos. Estávamos prontos para
contornar Trinidad pelo sul, mas o vento veio duro pelo NW e depois rondou para
SW e estamos contornando a ilha pelo norte.

Para evitar rasgar a vela grande, já cansada, nas vésperas da chegada lancei mão
do 4º riso e fiquei bordejando. Fui ao sul, o vento rondou, fui ao norte. Agora que o
tempo passou estamos tentando tirar o atraso.
Ouvimos a Rádio Globo do Rio, que só fala em inflação, 121% este ano que
passou. E bom a gente ir se inteirando das preocupações que afligem o nosso povo.
Vou também saciando esta sede de ouvir o nosso idioma, mas tudo agora é chegar.
Esta é a meta. Pisar, depois deste tempo todo fora, em terras brasileiras. Pôr o pé em
terra firme e dizer: Cheguei.
O vento passou a favorável, mas continua forte e o Três Marias avança ladeira
abaixo, em louca disparada.
16 de abril de 1981

Faltam 700 milhas até o Rio de Janeiro.


Lembro-me perfeitamente desde o início desta etapa que não me sinto bem.
Tentava distrair-me lendo livros, tentando analisar o destino dos outros, tentando
envolver-me com os problemas nacionais ouvindo o rádio, tentando preparar-me para
a chegada.
Às vezes até conseguia o meu intento. De repente queria chegar logo,
convencia-me da felicidade que seria chegar, mas depois a crise voltava.
Depois veio a grande crise, depois passou, mas um certo mal estar ficou e passei
os dias pensando, tentando localizar as causas.
Sempre me senti tão bem durante toda a viagem e agora sinto algo
estranho.Depois de muito meditar, finalmente, creio que descobri a causa.
É nada mais nada menos que medo de voltar ao mundo dos homens.
Há 15 anos atrás ouvi o chamado do mar. Foi e
Porto Seguro, quando por lá passei 16 dias mergulhando nos arrecifes de fora.
Deslumbrado com a riqueza da vida marinha, suas cores e suas formas, sua
beleza me entortou o juízo, e foi aí que ouvi o canto do mar me chamando.
Resolvi que iria fazer um barco, ou comprar um, aprender a velejar, e tinha que
me entregar ao mar, mas não só ali; queria conhecer todos os mares.
Muitos anos se passaram, até que consegui cortar as raízes que me atavam à
terra e sair por aí.
Há mais de um ano que ando vagando por aí, sozinho, no mar, enfrentando
rapidamente os homens nos portos. Mas partindo sempre, antes que as raízes possam
se tornar, mais uma vez, profundas, dificultando a partida.
Com medo de deixar crescerem as raízes, fiz a volta ao mundo na metade do
tempo.
À medida que avançava rapidamente me tornava rico, pois as poucas economias
cresciam, à medida que faltavam cada vez menos milhas a percorrer, passando a viver
como um rei deixando de lado aquelas economias que fizera no início da viagem.
Na realidade ainda tenho dinheiro para viver uns 5 meses, isto vivendo bem.
Mas, se comer peixe com arroz, com este mesmo dinheiro posso passar um ano.
Vendendo algumas coisas que tenho a bordo talvez dois, trabalhando um pouco
aqui, um pouco ali, ou indo para as pequenas ilhas onde se pesca e se colhe os frutos
no mato, poderia viver o resto da minha vida.
Mas estou voltando.
O pior é que estou convencido de que não estou voltando por mim e sim pelos
outros, e é esta consciência que provoca o meu mal estar, o meu medo.
medo de voltar para o mundo dos homens e ter que empunhar novamente armas
que não gosto, ainda que as tenha empregado com relativo sucesso anteriormente.
Tenho a consciência exata disto.
Como um pássaro, volto a procurar o furo por onde fugi da gaiola dourada.
Como um animal de rebanho, tentarei pular de volta a cerca que nos tira a
liberdade.
Como um animal de carga, porei novamente a canga no pescoço e ajudarei a
girar a imensa roda do sistema que nos oprime, nos reduz a mera engrenagem, enfim,
nos usa.
Isto tudo pode ser fácil, mas torna-se cada vez mais difícil para quem já
experimentou a verdadeira liberdade, boiando sozinho no meio dos oceanos.
E isto, estou com medo.
Sinto-me mal. Como uma criança, apego-me novamente aos doces, que há muito
desprezara, procurando compensar a perda inevitável.
21 de abril de 1981

E o sol voltou a brilhar. Acabou o mal tempo e o vento enxotou as nuvens.


O calor do sol nos traz novas forças, novas esperanças, animação e alegria.
O barco avança bem e já estamos a 100 milhas da costa brasileira, a 250 milhas
do porto do Rio de Janeiro.
Tudo em mim renasce, vibra, sinto uma euforia. Aumentei o pano e o barco
avança mais ainda. Agora vai começar a contagem regressiva. Se o vento não mudar,
em 2 dias estaremos lá. Será a volta ao Brasil, com a Volta ao Mundo concluída.
E começaram a aparecer os primeiros sinais do continente sul-americano. A água
está um pouco mudada, do azul roxo vai buscando o verde-garrafa. Apareceram
boiando as primeiras algas e tudo nos faz sentir a proximidade de terra.
Escureceu e apareceram por baixo das nuvens no horizonte três clarões, que não
estavam no programa.
Será que são as plataformas de Campos?
Minhas cartas para esta região são desatualizadas, não marcando o lugar
referente às plataformas, e isto simplesmente me tirou o sono.
Resolvi consultar o roteiro da costa, mas não encontrei nada, nem mesmo nas
folhas de correção. A única coisa que sei é que elas estão em lâmina d’água próxima a
150m.
Como os clarões ainda estavam longe, e esta é a minha penúltima noite, a
próxima é que eu não iria dormir mesmo, resolvi pelo menos me deitar, levantando a
cada meia hora.
Não conseguia dormir, e quando ia pegando no sono sonhava com o barco indo
para a praia. O barco já ia varando, bem próximo da areia, a ponto de poder ouvir a
garotada gritando na praia, como se àquela hora da noite a praia não estivesse deserta,
completamente muda.
Mas os clarões foram crescendo e viraram luzes.
As ondas encobrindo a luz davam a impressão nítida de um farol, que finalmente
virou luz fixa.
Só aqui tem 3 plataformas trabalhando, e lá ao longe, pela frente, vai se
ensaiando mais um clarão, fraco por enquanto.
Aproveitei a luz da lua e fiz um ponto pelas estrelas. Ponto sofrido, pois, com as
nuvens, perdia-se muito de nitidez do horizonte, mas mesmo assim deu coerente.
Avançamos, mas o sono ficou para amanhã, durante o dia.
Hoje à noite não se dorme mais, apenas uns cochilos sobre o convés, mas sem
descer ao beliche.
Caso tivesse radiotransmissor, iria levar um papo com o pessoal da sonda. O
rádio operador deve estar a esta hora da madrugada lendo pela décima vez uma
revista amassada, ou um jornal de anteontem, morto de sono, esperando a hora de ser
rendido.
Lembro-me tanto das nossas Plataformas em Concreto Protendido, que
construímos pela Mendes Júnior e que estão instaladas no momento em Ubaranas,
Rio Grande do Norte.
Eram estruturas de perfuração e armazenamento, e quando vazias deslocavam
30000t.
Nosso contrato era entregá-las assentadas no local de trabalho. Com a
necessidade premente de petróleo, um daqueles grandes chefes da Petrobras dera
ordem de levar a plataforma do jeito que estava, e então a gente é que sofria para
completar o serviço.
A plataforma novinha, pintada, era invadida por uma turma com grandes chaves
que dava início à montagem da torre de perfuração, e logo a nova tinta, mais
conhecida como graxa, tomara conta de tudo. Depois era a 1 hora na perfuração.
A gente suava para concluir as poucas coisas que faltavam, pois não se tinha
condição de trabalho.
A turma da Petrobras era gente fina, mas nem com amizade se conseguia as
coisas, eram contingências de ritmo do próprio serviço. Uma vez que eles chegavam,
a gente perdia o controle da plataforma, como uma mãe que perde o filho que casa.
E foi assim que passei uma boa temporada no mar, a bordo das plataformas,
tentando entregá-las à Petrobras.
Enquanto as plataformas furavam petróleo, o check-list continuava aumentando,
já eram coisas que quebravam no decorrer do uso indevido, pois a rapaziada não
estava familiarizada com o novo tipo de plataforma.
Também foram interessantes as viagens que fiz no seu reboque e os mergulhos
que dei para acompanhar o seu assentamento. Muito antes já tinha acompanhado as
investigações geológicas do solo no lugar do assentamento, fazendo sondagens no
interior de um sino, e as fotos submarinas que tirei.
Finalmente lembrei-me da descida em autorrotação, com um helicóptero na
caatinga, que resolveu parar o motor em pleno voo quando íamos para Natal.
Vendo as plataformas, agora, mergulhei em recordações, Mas as três primeiras
luzes já ficaram pra trás, agora temos duas novas e pela frente mais luzes pequenas.
Lembrei-me agora que meu amigo Kaster foi transferido de Salvador para
Campos e está embarcado por aqui. No mar, se trabalha 15 por 15, o que, além de um
adicional de salário, lhe possibilitará dias de folga, quando poderá se empenhar na
construção do seu barco.
Amanheceu, foi possível vê-las em toda a sua plenitude. Já antes de clarear
contava 16 luzes somando os barcos de apoio e tudo, e o radiogônio não conseguia
funcionar de tanta interferência – era só ruído.
O vento rondou e quem estava de vento favorável teve que orçar.
No céu formaram-se umas nuvens esquisitas e foram avançando. A gente podia
ver que elas não se entendiam e em cada nível andavam em uma direção diferente.
Faltavam 55 milhas até Cabo Frio e 120 até o Rio de Janeiro.
22 de abril de 1981

O vento varreu as nuvens grossas e ficou apenas aquele véu, mas não
conseguíamos ir direto a Cabo Frio. fomos bordejando.
Estava tão certo, após todo este tempo, de ver, hoje, terras brasileiras, mas a
certeza o vento levou. Vou é aproveitar para dormir um pouco.
Quando deu duas e meia da tarde, levanto e avisto uns morros.
Terra à vista, Brasil.
São morros nas proximidades de Cabo Frio e que estão há mais de 35 milhas.
O vento é brando. Orçamos, avançando devagar, mas, de qualquer forma,
faltando quase 100 milhas até o porto. Só amanhã se tudo der certo.
23 de abril de 1981

Pela madrugada, lá pelas 4 horas, percebendo que estávamos nos aproximando


muito arriei a genoa e esperei clarear.
Quando amanheceu, tornei a içá-la de novo e avançamos. Vemos uma porção de
morros altos, mas ainda não nos localizamos.
Só o gônio indica a direção aproximada.
Finalmente fiz um ponto pelo sol. Estávamos há 25 milhas da Ilha Rasa.
O vento é brando, pelo través, avançamos lentamente.
Aproveito para mudar a roupa de cama, lavar as coisas da cozinha. Uma
arrumaçãozinha na véspera da nossa volta ao Brasil.
Mais tarde o vento acabou. Arriei a genoa, liguei o motor, mantendo a grade só
por uma questão de método.
No meu peito uma tranquilidade imensa. Nem parece que vim de longe. Sinto-
me como se estivesse voltando de um fim de semana na ilha ou no mar. Como quem
saiu ontem.
O calor é intenso.
Barcos de pesca arrastam as suas redes em frente à Baía de Guanabara. As aves
marinhas se divertem com os seus voos rasantes, e eu admiro a paisagem. O Três
Marias avança em direção à entrada envolta em névoa.
A medida que íamos nos aproximando, foram aparecendo o Pão de Açúcar, o
Cristo Redentor, a Praia de Copacabana, a Ponte Rio-Niterói onde trabalhei etc.
É, não tem engano não. Estamos mesmo é no Rio de Janeiro.
São 2h 15m da tarde do dia 23 de abril de 1981. Estou de volta ao Brasil.
12. O CAMINHO DE CASA
13 de maio de 1981

Levei mais de um dia para ir do Rio a Cabo Frio, quando saí com destino a
Salvador.
Após filmar toda a manhã com a TV Educativa parado no cais em frente à sede
do late Clube do Rio de Janeiro, saí, e eles me acompanharam, para filmar com as
velas em cima.
O Iate Clube colocou à disposição uma lancha com marinheiro, e quando a
filmagem acabou os braços se levantaram e acenaram o adeus, o adeus a esta cidade.
Estava indo de volta ao meu porto de origem, estava indo para casa, para Salvador,
Bahia.
Pela manhã não teve vento, mas pela tarde uma aragem afunilou-se por entre o
Pão de Açúcar e o outro lado da baía, e foi com esta aragem que o pano encheu para a
filmagem, mas, assim que saí barra a fora, o vento acabou. Continuei no motor
procurando afastar-me.
Quando escureceu, desliguei o motor, mas o barco deslizava tão de leve, quase
parado.
Quando amanheceu, a calmaria ainda era total, e a corrente nos puxava para o
sul.
O sol estava quente e pulei n’água para investigar o casco. Ele estava cheio de
algas, cracas. A última vez que ele viu tinta anti-encrustante foi em Bali, quando dei
umas pinceladas de tinia venenosa, num intervalo de maré.
No Rio não quis pintar o barco, pois estava tão perto de Salvador, faltava pouco
para chegar em casa. Com este mergulho aproveitei para limpar a hélice, foi tudo o
que fiz.
Tornei a ligar o motor, pois a data de chegada em Salvador, o encontro com os
amigos, a Marinha e a imprensa já estava marcada.
Seria no dia 23 de maio, às 15 horas, em frente ao cais do 2º Distrito Naval.
Já soube que os barcos iriam sair para receber o Três Marias em frente ao Farol
da Barra. Só não podia me atrasar. Pela primeira vez, em toda a viagem, tive um
prazo exato, um dia marcado, uma hora marcada.
Cheguei no Rio de Janeiro, no dia 23 de abril, numa quinta-feira.
A alegria de ter retornado ao Brasil invadira todo o meu interior, e após arrumar
todo o barco por dentro, arriar as velas e entrar no motor, fui percorrendo o canal de
tráfego entre os barcos fundeados até a sede do Iate Clube do Rio de Janeiro, onde
atraquei a contrabordo de outro veleiro.
Já estava de banho tomado, roupa separada e sacola a tiracolo com tudo
preparado. Assim que o barco atracou, saltei no cais e saí andando.
Tinha muita gente por ali, mas ninguém desconfiava que este barco acabara de
dar a volta ao mundo em solitário e estava vindo da África do Sul.
Fui passando em frente ao restaurante e encontrei logo de cara com Eduardo
Basílio e Paulo Vítor. Dirigi-me à recepção náutica e lá soube que a Marinha estava à
minha procura desde o dia 20, dia previsto para a minha chegada.
Durante a viagem mantive a Marinha informada da minha posição, pois, foi da
Marinha que recebi todas as cartas e publicações náuticas, e, quando em Cape Town,
finalmente informei o dia provável da minha chegada.
Assim sendo, estavam me procurando por todo o lado, já se comunicaram com
os iates clubes de Niterói, Cabo Frio e Angra dos Reis, para ver se estava por lá, mas
foi mesmo o atraso.
Telefonei e falei com o Comandante Teixeira, que me pôs em contato com o
Almirante Luís Carlos Freitas, o mesmo que me recebeu no Rio e me forneceu as
cartas, na véspera da minha partida.
Foi assim que soube que seria recebido oficialmente, mas teria que dar um
tempo, para reunir a imprensa.
Como já estava tarde, ficaria para o outro dia às 14 horas no cais da Diretoria de
Hidrografia e Navegação.
Fiz umas merendas e já ia descansar, mas logo começou a chegar gente e a fazer
perguntas.
Tinha passado 33 dias mudo e de tanto falar logo fiquei rouco.
Fernando Kaster, meu amigo da Petrobras, interceptou a bordo do Pearl Marine,
onde estava embarcado, a conversa via rádio, entre a Marinha e o Iate Clube, e assim
soube da minha chegada vindo estourar no Iate. Foi aquela alegria. Eu que pensara
tanto nele, durante a viagem, e no barco que ele pretendia construir, e que os meus
melhores amigos ou morrem ou são transferidos, vim finalmente encontrá-lo mais
cedo, antes mesmo de voltar a Salvador.
Ele estava embarcando um módulo de 400t, bem ali junto da Ponte Rio-Niterói,
e no outro dia, após a cerimônia da Marinha, fui lá olhar o serviço.
No outro dia, às 14 horas, segundo programado, o Três Marias deslizava
suavemente e se aproximava do cais da DHN. Dois marinheiros especialmente
escalados para atracar o Três Marias, enquanto a banda de Fuzileiros Navais tocava o
Cisne Branco.
Saltei para cumprimentar no cais o Almirante Luís Carlos Freitas e depois o
grupo de oficiais ali formados para receber-me. Cumprimentava um por um. Eles
batiam continência e eu não sabia o que fazer. Era um civil, logo, apertava-lhes as
mãos.
Três canais de televisão, repórteres dos diversos jornais cobriam a solenidade,
todos mobilizados pelo serviço de relações públicas da Marinha, e, após receber um
escudo, vários presentes, recebi um diploma congratulatório, de ter sido o primeiro
navegador solitário a ter completado a volta ao mundo em um veleiro de bandeira
brasileira.
Confesso que não esperava tanto, ainda nem tinha chegado em casa.
Depois os repórteres invadiram o barco e brigavam entre si me assolando de
perguntas. Pedi que tivessem calma, pois responderia a todas.
Depois, a pedido da TV Globo, tive que simular uma nova atracação, pois
chegaram com 2 minutos de atraso, e tinham perdido esta parte, seria para o Jornal
Nacional, que passaria ainda aquela noite para todo o Brasil. Não pude me negar.
Finda a solenidade, voltei ao Iate Clube, onde após ver-me na TV telefonei para
meus pais e minhas filhas. Com elas combinei o reencontro no mesmo cais do 2º
Distrito Naval, de onde parti. Prometi que desta vez não iria chorar. Prometi algo que
não sabia se poderia cumprir, pois, na saída, as lágrimas rolaram, após ter passado 20
anos sem chorar por nada neste mundo.
Dormi aquela noite pensando que na manhã seguinte iria ancorar o barco ao
largo, mas, pela manhã, chegou Eduardo Basílio e comunicou que o barco ficaria no
cais principal, em frente à sede em exposição pública.
Fizeram uma grande placa “Volta ao mundo em solitário” e puseram-a em frente
ao barco. Colocaram dois marinheiros para tomar conta do barco, para evitar que
levassem lembranças do barco.
Foi preciso brigar para dispensar os marinheiros, pois qualquer ação policial
cortaria a poesia.
O barco ficou em exposição permanente por 3 dias, recebi a bordo mais de 500
pessoas e nada desapareceu. Ninguém teve coragem de tirar um só palito do barco, ou
um artesanato que enfeitava o barco que deu a volta ao mundo.
Fiz tanta amizade.
Ganhei presentes, ganhei retratos, poesias, palavras amigas, tive que dar até
mesmo alguns autógrafos. Mostrei mil vezes o álbum de retratos da viagem e
expliquei as coisas.
Pellicano, que fez muitas velas, veio ver o barco e pessoalmente levou-as para a
veleria, onde fez pequenos reparos e recortou as que tinham estirado.
Pellicano analisou a vela grande palmo por palmo e brincando falei: Você nunca
viu uma de suas velas fazer 26000 milhas.
Ele sorriu. A vela grande era única, ela teve que estar em cima todo o tempo,
percorreu todos os oceanos, aguentou a todos as rajadas, suportou os raios solares de
todas as estações.
Finda a visitação pública, coloquei o barco na amarração e tentei viver. Divulgar
era muito importante, mas precisava de uma pausa.
Vieram em seguida as reportagens com mais calma, mais detalhadas, pois já
tinha passado o calor da chegada. Era o Jornal do Brasil, algumas revistas, como Vela
e Motor, etc.
Resolvi aproveitar, já que estava no Rio, e fazer uma pesquisa de mercado.
Segundo contam, temos mais de 2000 engenheiros desempregados nesta cidade.
Lembrei-me das ilhas do Pacífico, onde frutas e peixe, com um pouquinho de arroz,
matam a fome de qualquer ser humano, onde só se trabalha 2 dias na semana e se
vive como num paraíso.
O melhor da vida, a beleza da natureza, é grátis. Qualquer bronca, eu volto pra
lá, para o mundo dos sonhos, já que o mundo dos homens, aqui, só acrescentou
necessidades.
Um outro problema que me saltou aos olhos foi a carência afetiva desta gente
morando em grupo. A solidão coletiva das grandes metrópoles. Sozinho, no mar,
superei este tipo de problema, aprendi a gostar de mim mesmo, de conviver com o
animal que mora dentro de mim e a curtir a mim mesmo. Há muito tempo que a
carência tinha me abandonado, e agora, ao vê-la habitando estes corações, perdidos
na multidão, juro que me assustei.
Percorri também os editores, informando-me sobre a forma de apresentação do
material para a edição do livro.
Revi amigos e fui com Rita de Belmonte e Gustavo ao Planetário da Gávea,
assistir Osmar Macêdo tocando com seus filhos.
Completei o diesel, comprei umas frutas e após filmar por uma manhã inteira
com a TV Educativa parti com destino a Salvador, pois o dia da chegada já estava
marcado. Instantes antes de sair, telefonei para o meu amigo José Serra, o embaixador
da viagem em Salvador, para dizer que desatraco em 10 minutos e que dissesse a
todos que me ia.
Já passaram-se 5 dias, mas pouco se avançou, talvez umas 250 milhas. Começou
com calmaria, mas depois foi vento duro na cara.
Com medo de me atrasar, fui procurando manter o máximo de pano em cima e
vi a hora de estourar a genoa. Eu, que não tinha rasgado um só pano em toda a
viagem, me vi à beira deste evento.
Entre rasgar um pano e frustrar os amigos, que segundo soube vão sair a vela,
para esperar-me em frente ao Banco de Santo Antônio, e também perder a festa que
estão me preparando, dos dois o menor. Por isso fui forçando o mais que pude.
Foi borda n’água, foi tudo, mas „de tanto adernar o barco já não andava, e arriei
a genoa, risei a grande, icei o yankee e fomos avançando. Ainda que devagar.
Durante estes 5 dias, nenhum dia de vento favorável, e por cima de tudo a
corrente contra. O fundo do barco sujo, cheio de cracas e limo, já não permitia um
bom rendimento. Só agora que o vento está rondando é que avançamos um pouco
melhor.
Alguém no Rio me falou: “Cuidado com o Cabo São Tomé, ele tem arrecifes a 8
milhas da costa”. Não sei o que ele pensaria, caso soubesse que, quando atingi a sua
latitude, estava afastado 200 milhas de terra firme. O vento impedia que fosse para o
norte, então fui me posicionando para leste, para quando o vento rondasse, e foi isto
que aconteceu.
20 de maio de 1981
E madrugada, ainda não amanheceu, posso ver nitidamente o clarão de Salvador.
Desde que o vento rondou estávamos fazendo pelo menos 120 milhas
diariamente, agora, se quisesse, poderia estar talvez ainda hoje em Salvador.
Como marcamos o encontro com todos no sábado à tarde, e hoje ainda é quarta-
feira, terei que entrar em Morro de São Paulo, onde aguardarei até a madrugada de
sábado, então faço rumo para Salvador.
A tentação é grande, de levar o barco direto a Ancorar no Porto da Barra e
telefonar para os amigos. Mas vou tentar falar com a turma aqui de Valença. Tem
horas que não acredito que estou aqui e agora que vi o clarão da cidade se espalhando
por baixo das nuvens posso confessar.
Quando saí daqui, no dia 16 de março de 1980, não tinha certeza de que voltaria,
ou se ficaria perdido por lá, o barco dependurado em um daqueles mil arrecifes e eu a
me diluir nas águas do mar.
Sempre pensava. Quantos arrecifes ainda me separam de casa, quantos arrecifes
ainda faltam a evitar, quantos navios ainda vão cruzar a minha rota, quantos
imprevistos podem surgir. Não sabia se poderia contorná-los, um por um, evitá-los,
finalmente chegar.
Eles eram tantos, isto era o que me deixava cansado a ponto de desanimar.
Às vezes vinha a alucinação, me via caindo do barco; como último recurso tinha o
direito de dar um adeusinho ao barco que seguia o seu caminho.
Ainda não cheguei em Salvador, r as já vi o seu clarão, ainda que de bem longe.
Quando amanheceu, vieram umas nuvens e o vento começou a rondar para tudo
o que é lado. Liguei o motor para ajudar.
O vento reduziu mas o mar manteve as suas ondas. Assim sendo, a genoa não
enchia, mas apenas se batia de um lado para o outro – fui forçado a arriá-la.
De repente, as nuvens carregadas, que nem cortinas até o chão, se abriram e vi o
Morro de São Paulo, meu velho conhecido, bem na minha frente.
Quantas saudades.
Fui avançando, passei pelo Morro e lancei o ferro na Gamboa, indo
imediatamente para terra. Foi bom pisar em terras baianas.
Arrumei um barco pequeno para me levar em Valença e ainda naquela noite
telefonei para casa, para as filhas e para Serra, informando que tinha chegado,
confirmando a minha presença, segundo combinado, no sábado, à tarde, em Salvador.
E impressionante a penetração da televisão nos lares brasileiros. O pescador de
bote tinha me visto na TV, duas pessoas na telefônica me reconheceram, até mesmo o
dono de um pequeno supermercado onde troquei os dólares.
Dormi em Valença, mas não encontrei Pedro Paulo, que tinha se mudado para
Salvador. Voltei no outro dia para o Morro; arrumei o barco, andei pelas praias, tornei
banho no rio, conversei com Miliquita, finalmente saí no sábado para o reencontro
com os amigos.
Inicialmente pensei em sair às 6 da manhã, mas depois adiantei e saí às 2 da
madrugada. Assim teria 13 horas para fazer as 35 milhas.
Não foi fácil. A escuridão era total e quando a lua espalhou um pouco de luz por
entre as nuvens, dissipando as trevas, o Três Marias deixava lentamente o Morro de
São Paulo. O farol com a sua luz iluminava os coqueiros e as pedras negras na beira
da praia.
Avançava devagar, o ecossonda ligado, apenas a vela grande em cima e o motor
virando. Apesar de conhecer bem aquelas paragens, todo cuidado era pouco, pois
carregava comigo o que me era de mais precioso, a viagem de volta ao mundo.
O vento deu na cara, foi difícil avançar. O motor permaneceu ligado, ajudando a
vela. Queria andar pra frente de qualquer jeito.
As nuvens taparam tudo, o vento me força a ir para cima da costa. Resolvi virar
de bordo, me afastando mais. Estava num impasse, arriscar indo pra frente ou me
afastar, em busca das águas profundas, indo porém um pouco para SE, o que seria ir
pra trás.
Aos poucos fomos avançando, e, quando menos se esperava, as nuvens deram
uma chance e avistei Salvador. Tinha avançado com boa margem de segurança.
Desliguei o motor, fui devagarzinho. Era muito cedo e aos poucos os prédios da
Pituba foram tomando o seu formato, até que apareceu o Farol da Barra.
Tudo isto me trazia recordações, estava realmente em frente à nossa cidade, a
cidade do Salvador.
Avistava um veleiro que vinha, era o Brisa, com Carlos Alberto e Sinésio. Eles
falaram pelo rádio o informaram à Marinha da minha posição. Depois vieram outros
barcos e mais outros, e ficamos bordejando em frente à cidade aguardando a hora
marcada para entrar.
Falava com um, com outro, a alegria era imensa em rever estes amigos.
Deixei o Três Marias no leme de vento, ele andava sozinho e os barcos nos
acompanhavam. Assim andava pelo convés a cumprimentar os amigos, sem me
preocupar com o barco.
Finalmente apareceu a lancha com as autoridades da Marinha e o Lourinha,
onde iam meu Pai, minhas filhas e outros amigos que não tinham barco.
Os foguetes estouravam no ar, as sirenes tocavam, o Três Marias avançava rumo
ao cais do 2.º Distrito Naval.
Até mesmo eu me emocionava, ao ver como o Três Marias avançava bem no
meio da flotilha. Quando estávamos perto, arriei a genoa, depois a grande, isto em
pleno movimento, finalmente entramos no motor.
Fui ajeitando as coisas, colocando as defensas, preparando os cabos de
amarração, sempre sem parar.
Os barcos da Marinha avançaram e as autoridades saltaram no cais, os veleiros
foram se espalhando pela área de fundeio e o Três Marias, com muita calma, foi se
aproximando.
De longe, via a multidão se aglomerando no cais. Quando cheguei mais perto, os
gritos e aplausos estouraram no meio do povo. Fiquei emocionado. Deixei o leme do
barco que deslizava lentamente e levantei os dois braços para o ar. Neste instante o
foguetório encomendado pela Marinha marcava a volta do Três Marias.
Senti que estava me emocionando. Procurei ter calma, atracar com todo o
cuidado, finalmente esta manobra teria que sair bonita.
A turma gritava meu nome, eu não sabia a quem atender. Os marinheiros
passaram os cabos, ainda ajeitei as defensas sem pressa, com muita calma. Chegando
na borda, antes de saltar, bati a mão na escadaria do cais e gritei:
“Cheguei!”
Passei para a escada e o primeiro a me abraçar foi o Almirante Dilmar de
Vasconcelos Rosa, o mesmo que confiou em meu plano, apresentando-me no Rio,
onde consegui as cartas e publicações. O mesmo que há 11 anos atrás me entregara a
carta de capitão amador, o mesmo que acompanhara através dos anos a minha luta em
busca da concretização deste sonho que não era só meu, mas de milhões de
brasileiros. O segundo abraço foi de meu Pai, que veio andando devagar, com seus 84
anos, enquanto o povo abria caminho para ele passar, um verdadeiro corredor. Ele
conseguiu sobreviver a minha volta.
O terceiro abraço foi em Mariana, a minha filha pequenina. Eu a achei tão
miudinha que caí de joelhos. Nós nos abraçamos e senti que não cumprira a
promessa. A água descia dos meus olhos, aos montes. Depois foi o abraço de
Marúcia.
Os diversos canais de televisão me filmaram desde o mar, os repórteres
enfiavam o microfone em minha boca, eu tive que dizer uma frase que ficou gravada:
“Deixe eu abraçar meu povo.”
Depois eu me abracei com meus amigos, com a multidão.
Não estava chorando sozinho, havia outras pessoas.
Velhos, crianças, gente que nunca tinha visto em minha vida.
À noite foi o coquetel no Iate Clube da Bahia, onde se juntaram ao 2º Distrito
Naval representantes dos diversos clubes náuticos. Fui homenageado e recebi uma
placa gravada:
“Honra ao mérito”
O 2.º Distrito Naval, os Clubes Náuticos de Salvador e seus amigos perpetuam,
nesta homenagem, sua admiração ao Capitão Aleixo Belov pela expressiva conquista
realizada, tornando-se o 1º latista Brasileiro a completar, solitário, uma viagem de
circunavegação.
Salvador, 23/05/81
Enquanto o Almirante discursava, todo mundo sério, Mariana quebra o
protocolo. Vem de lá e se abraça na minha perna. Eu a acompanhei, acariciando a sua
cabeça.
EPÍLOGO

-Oh, rapaz. Você deu a volta ao mundo e agora o que você vai fazer?
-Vou primeiro deixar assentar a poeira, depois a gente resolve.
Sabe, tenho saudades daqueles tempos, que junto com Gutemberg Meira
saíamos caminhando à noite, por estas ruas estreitas, estas ladeiras, com casas
coloniais. Íamos discutindo Platão ou a expansão do Universo.
-E você ainda lê Platão?
-Não, agora eu me interesso pelos problemas brasileiros, os problemas do nosso
povo.
-Espere aí, você falou em uma reportagem, que dar a volta ao mundo em
solitário foi o monte mais alto que encontrou para escalar.
E agora que você esteve lá em cima, diga-me o que foi que você viu?
-Lá de cima, se avistam muitos outros montes, cada qual mais alto.
Vou indo, agora tenho que escrever o meu livro; a gente se vê por aí.
APÊNDICE
1. PLANEJAMENTO DA VIAGEM
2. ESCOLHA DO BARCO
2.1. Formato do casco Quilha longa Quilha curta
2.2. Deslocamento Leve Semi-leve Pesado
2.3. Materiais do casco Madeira tradicional Madeira moldada Fibra de
vidro Fibra de carbono Aço Alumínio Ferro-cimento
2.4. Mastro
2.5. Estaiamento
2.6. Velas
2.7. Driças e escotas
2.8. Guinchos
2.9. Armação
2.10. Âncoras, correntes e cabos de amarração
3. LEME DE VENTO
4. PILOTO AUTOMÁTICO
5. NAVEGAÇÃO EM MAU TEMPO
6. ROUPA
7. MOTOR
8. MANOBRANDO DE RÉ
9. LUZ
10. MATERIAL DE SEGURANÇA
11. PROVISÕES
11.1. Água
11.2. Conservas
11.3. Frutas
11.4. Pesca
12. SAÚDE
13. MATERIAL PARA PREPARO DE EMERGÊNCIA
14. FERRAMENTAS
15. NAVEGAÇÃO
15.1. Cartas e publicações náuticas
15.2. Navegação astronômica
15.3. Navegação com radiogoniômetro
1. PLANEJAMENTO DA VIAGEM

Antes de se dar início a qualquer viagem de veleiro é importante fazer o seu


planejamento, escolhendo as épocas ou estações mais adequadas e os roteiros.
Se nós desejamos ir a algum lugar determinado convém estudar a melhor época,
a melhor estação para fazer melhor proveito da viagem.
Se vamos ao Mar do Caribe, à Martinica, por exemplo, devemos ir lá entre
dezembro e julho, pois entre agosto e novembro temos a época dos ciclones.
Há uns 2 anos atrás passou por Martinica um ciclone que além de arrancar todos
os pés de bananeira, só em um porto, afundou 80 barcos de recreio.
Às épocas dos ciclones, tufões, furacões os nomes mudam de um lugar para
outro, mas que vem a dar praticamente no mesmo, pois são muito bem conhecidas.
A mesma coisa acontece com os roteiros. Podemos escolher um roteiro que nos
permita ventos favoráveis em 80% do tempo. Por exemplo: indo de Cape Town ao
Rio de Janeiro, caso se tome a linha reta, encontraremos uma zona de ventos
variáveis e corrente contra. Indo-se porém inicialmente ao NW, em direção a Santa
Helena e depois buscando o W até Trinidad, daí seguindo direto ao Rio de Janeiro, no
mês de março, como atravessamos, teremos ventos e corrente favoráveis 90% do
percurso.
Tudo isto está indicado nos livros de roteiros (Sailing Directions) e nos Pilot
Gharts que têm geralmente uma folha para cada mês, indicando os ventos, as
correntes, o local da passagem das mais fortes tempestades, percentagens prováveis
de mau tempo ou calmarias etc…
Dados suplementares sobre temperatura e pressão também podem ser
encontrados.
Por isso, ao se pensar em fazer uma viagem, deve-se começar consultando os
Saili g Directio s e principalmente os Pilot
Gharts. Tudo está amarrado no tempo e no espaço.
Se a data da partida já foi fixada, às vezes torna-se necessário alterar o roteiro
para evitar contratempo.
Se o roteiro está pré-determinado, devemos estudar a data mais conveniente para
se fazer ao mar.
No caso do Três Marias, deixei o porto de Salvador no dia 16 de março com
destino ao Pacífico, via Canal do Panamá. A duração da viagem de volta ao mundo
estava prevista para 2 anos ou 30 meses.
Atravessei o Mar do Caribe em abril e maio, uma época ótima, e cheguei em
Tahiti em setembro, também uma boa época. Era tempo de parar por aí, ou, na pior
das hipóteses, ir até a Nova Zelândia, ou Austrália, procurar um porto abrigado para
ciclones, geralmente rios estreitos arrodeados de morros.
Por motivos outros, descritos no livro, resolvi levar direto, o que me daria
chance de chegar de volta ao Brasil em 13 meses. Esta mudança no planejamento me
expôs às más épocas no norte da Austrália e principalmente no Oceano Índico, onde
naveguei na pior época possível.
O contorno do Cabo da Boa Esperança foi na boa época (fevereiro), assim como
o retorno ao Rio de Janeiro em março. Caso tivesse planejado dar esta volta ao
mundo em 1 ano teria concluído que a melhor época para deixar o porto de Salvador
seria talvez o início de dezembro, mas mesmo assim teria alguns problemas, pois é
difícil dar a volta ao mundo em 1 ano pegando apenas boas épocas. Só mesmo com
um barco de regata e parando ainda menos.
2. ESCOLHA DO BARCO
2.1. Formato do casco Quilha longa Quilha curta

Quando o vento aumenta um pouco de intensidade e o barco aderna, o centro de


carena se desloca. Este deslocamento vai atuar no equilíbrio das velas refletindo no
esforço do leme para manter o rumo.
Assim sendo, temos barcos que podem navegar com o leme amarrado, e já
outros que mesmo com o leme de vento precisam de ajustes a toda hora.
Infelizmente, o iatista amador, olhando as linhas de um barco, não pode tirar
nenhuma conclusão. Tem que velejar para sentir e nesta hora a escolha já está feita.
Quanto à quilha, podemos dizer que a quilha longa tem a vantagem de proteger
melhor o leme e permitir encalhar para pintar o fundo, onde as condições de maré o
permitem. No restante a quilha longa só tem desvantagens (veja navegação em mau
tempo).
2. ESCOLHA DO BARCO
2.2. Deslocamento Leve Semi-leve Pesado

Um barco quanto mais leve melhor. Leveza é fator de segurando. (Veja


navegação em mau tempo.) Certas horas, um barco mais pesado parece ser mais
confortável, mais lento nos movimentos, nas reações, mas é apenas certas horas, além
de perder em velocidade. Um barco lento permanece também maior tempo no mar,
expondo-se portanto mais.
O deslocamento de um barco é geralmente em função dos materiais utilizados na
fabricação do casco. As dimensões da mastreação e o estaiamento estão geralmente
ligados ao deslocamento (peso) do barco.
Imagine um cordão amarrado a uma caixa de fósforos e vamos dar um puxão
para romper o cordão. A caixa de fósforos vem e o cordão não parte. Amarremos
agora este mesmo cordão a um paralelepípedo destes que calçam as ruas. Ao puxar, o
cordão parte, pois encontra reação no peso da pedra.
Assim também é o peso do barco. Serve de reação. Quanto maior o peso do
barco, mais forte tem que ser a mastreação e o estaiamento, para não quebrar à
semelhança do cordão.
2. ESCOLHA DO BARCO
2.3. Materiais do casco Madeira tradicional Madeira moldada Fibra de
vidro Fibra de carbono Aço Alumínio Ferro-cimento

a) Madeira tradicional Um ótimo material, especialmente para poetas. Sua


manutenção, aliada ao alto custo, colocaram o barco de madeira fora de mercado.
Todo barco de madeira faz água. Segundo Lobo Britos fazer água não é problema,
desde que se possa tirar mais do que entra.
Barco de madeira faz água por todo o lado. Nas obras vivas, folga do calafeto ou
guzano.
Nas obras mortas( no costado) ressecadas pelo sol, quando o barco aderna.
Pelo convés, por toda a parte. A madeira seca, reduz de volume e lá vai água.
A madeira apodrece, merecendo um cuidado todo especial. Impregnação com
Penetrol adia o problema da podridão, principalmente em compensados, ficando,
porém, sempre aquela desconfiança.
b) Madeira moldada E um ótimo processo, muito leve e resistente, bastante
utilizado em barcos de regatas.
O taboado é fino, sofrendo um processo de secagem que lhe reduz o peso e
aumenta muito a resistência.
Para que a umidade não retorne, ela é embebida em um epóxi finíssimo.
Geralmente são usadas três camadas, coladas também com epóxi e grampeadas hoje
em inox. Por último sofre uma pintura especial por cima de um filó, que lhe completa
a impermeabilização.
c) Fibra de vidro é o material mais fácil de ser aplicado e mais barato, podendo
ser perfeitamente efetuado por amadores.
d) Fibra de carbono Muito mais resistente do que a fibra de vidro, dando
margem a fazer barcos muito mais leves. Principalmente aplicado em barcos de
regata. O custo é elevado.
e) Aço é o barco mais resistente.
Quem quiser ir para o Cape Horn, Antártida, vá com um casco de aço. Dizem os
entendidos que a chance de voltar é maior.
Torna-se um pouco pesado para barcos menores de 12 m.
O problema do casco de aço era a oxidação.
Hoje, com as boas pinturas, este problema está solucionado.
O importante é jatear e dar duas demãos de silicato de zinco.
Depois é só cobrir com pelo menos 4 demãos de tinta para estruturas metálicas,
podendo também ser à base de epóxi.
Uma vez feita a primeira pintura corretamente, sem pressa nem economia, basta
aplicar uma demão de 6 em 6 meses, ou de ano em ano.
Onde sofreu arranhão, tratar com ácido fosfórico (Rust Killer) até dissolver toda
a ferrugem provocando uma fosfatização da superfície. Lava-se com água doce e
após seca dá-se um primer e depois 4 camadas de pintura.
Para prevenir a eletrólise, são utilizados anodos de sacrifício soldados ao casco,
abaixo da linha d’água.
f) Alumínio E um ótimo material. Leve e altamente resistente. Tem o
inconveniente do preço. É no momento 50% mais caro.
Nem todos podem fazer barcos de alumínio.
As indústrias francesas estão muito bem, mas, no início, tiveram problemas de
corrosão por eletrólise. O problema estava na liga.
Um barco de alumínio deve ter a instalação elétrica feita com fio especial, com
três recobrimentos. Instalação mal feita favorece a eletrólise. Se um fio estiver
fazendo terra na estrutura, em poucos meses se perde o barco.
Como estes problemas estão solucionados, torna-se o material ideal, desde que
não feito por amadores e para clientes de caixa alta.
g) Ferro-cimento Voltou à moda na época em que o petróleo subiu de preço,
passando a competir com a fibra de vidro, nos países importadores de óleo bruto.
Hoje completamente fora de moda. De que adianta o casco sair barato, se hoje o
casco é apenas 20% do preço do barco. Caro é o resto.
Um barco em ferro-cimento raramente pode ser assegurado. Nenhuma
companhia de seguro se interessa. Não tem valor comercial, pois é difícil avaliar a
perfeição do trabalho.
Quem tem um barco de ferro-cimento dificilmente consegue vendê-la. O
problema todo consiste na dificuldade de encher com argamassa todos os vazios entre
as 10 ou 12 camadas de tela. Sempre ficam vazios onde a água salgada vai penetrar,
dando início a um processo de oxidação que não terá fim. Outro problema é
conseguir arrumar as telas na espessura do projeto. Geralmente a parede fica mais
grossa, e o barco mais pesado. Daí, para manter a estabilidade, põe-se mais peso na
quilha, e para onde vai a linha d’água?
Torna-se um barco perigoso, principalmente em mau tempo.
Quem tem um barco de ferro-cimento é forçado a amá-lo, pois não consegue
vender.
Tenho que reconhecer que vi barcos, feitos na Nova Zelândia por profissionais,
que após 8 anos estavam perfeitos. Mas nunca por amadores.
Não aconselho a ninguém fazer um barco em ferro- cimento. É, entre outras
coisas, um mau investimento.
2. ESCOLHA DO BARCO
2.4. Mastro

Os mastros hoje são de madeira ou alumínio.


A madeira tem aqueles problemas. O mastro fica mais pesado e mais fraco.
O mastro de alumínio é mais leve, repercutindo menos na estabilidade do barco.
Deve-se, porém, ter o cuidado de colocar um lençol de neoprene, entre o mastro e as
ferragens em inox, para prevenir eletrólise nos locais de encosto.
E conveniente em barcos de cruzeiro instalar a escadinha rebitada ou
aparafusada no mastro. No Oceano Índico tive que subir no mastro duas vezes e
estava sozinho. Neste caso, a escadinha é o único recurso. Convém fazê-la de tal
tamanho que caiba o pé calçado, pois descalço torna-se doloroso.
Bernard Moitessier tornou-se um dos mais famosos navegadores do mundo,
usando no seu Joshua, como mastro, um poste telegráfico, maciço, mas isto por
economia, e não como melhor solução.
2. ESCOLHA DO BARCO
2.5. Estaiamento

O cabo de aço galvanizado, para conter a oxidação, deve ser protegido por uma
mistura de óleo de linhaça, graxa, sebo e cera de abelha, fervida por várias horas
(talvez 5 horas) para perder por evaporação a parte leve, que lhe impede a secagem.
Mesmo assim termina melando as velas e as mãos de quem os segura.
Um tubo plástico por cima soluciona, ao mesmo tempo que complica.
Bom mesmo é o cabo de aço inox. Dizem que cristaliza após os 10 anos. Para
reduzir este problema, não se deve ser muito econômico no diâmetro, principalmente
se o barco é de recreio.
Quanto maior o diâmetro, menor a tensão, menor a cristalização. Aumentando
porém o custo e o peso.
2. ESCOLHA DO BARCO
2.6. Velas

Generalidades: Um só jogo de velas pode ser suficiente para se fazer a volta ao


mundo. No caso do Três Marias, quando saí com este destino, as velas já tinham um
ano de uso e saindo quase todo o fim de semana, correndo o campeonato baiano de
1979. Mesmo assim, as velas aguentaram bem e talvez após pequenos reparos
possam dar até uma segunda volta, se fosse o caso. Mas, para isso, antes de sair, as
devolvi para Pellicano, quem as fabricou, e pedi que acrescentasse uma série de
reforços, considerados necessários para uma viagem de longa duração. As velas se
consomem mais por atrito proveniente do mau uso e pela exposição ao sol.
Estes reforços estão muito bem explicados no livro de Bernard Moitessier “La
longue Route”, onde o autor se baseia na sua experiência após dar uma volta ao
mundo e meia, sem escala, Podemos citar os principais:
a) Usar três costuras.
b) Onde o corte da vela encontra uma costura cobrir com um pedaço de pano
extra, pequeno, em forma trapezoidal. Isto porque é geralmente na costura que a vela
cede, por ser um ponto mais fraco, e raramente no tecido.
c) Onde, após um ano de uso, ficou a marca dos estais ao andar no empoupado,
cobrir com um pedaço de pano o local das costuras para que o atrito nos estais não
gaste as linhas.
d) Reforços com tiras grossas nos olhais dos pontos de riso, ajudando na
segurança do olhai.
e) Forrar a genoa onde roça no balcão pelos 2 lados. Estes reforços foram
fundamentais para a durabilidade das velas, que custam tão caro.
Gostaria de acrescentar que considero conveniente forrar as regiões próximas
aos olhais dos pontos do riso, pois estas regiões, sempre que o barco está risado,
sofrem atritos na retranca, beliscões, etc. Trata-se de um trecho de até uns 20cm, logo
abaixo dos olhais dos risos.
O Jogo de Velas Geralmente o projeto do barco já indica o jogo de velas, mas no
caso do Três Marias, no triângulo da proa, do yankee de 25m‘, descíamos para o
tormentim. Faltava aí uma vela intermediária de 15m‘.
Não a fiz de início por problemas econômicos, mas, ao perceber a falta que
fazia, tentei comprá-la no meio do caminho, mas sem sucesso, pois parava por pouco
tempo. Parei mais em Cape Town, mas a esta altura estava às portas do Brasil.
Os Risos À medida que o vento aumenta, vamos reduzindo a área vélica.
Da genoa 1 para genoa 2, depois para o yankee e finalmente o tormentim.
Na vela grande damos o 1.º riso, 2.º riso, 3.º riso e finalmente arriamos a grande
para içar uma vela de pé solto, que trabalha junto com o tormentim.
No caso do Três Marias, novamente por questões de economia, pois não
encontrei nenhum patrocinador, saí apenas com 3 risos na vela grande e pronto.
Chegando em Noumea, onde o canal balizado por entre os arrecifes se prolonga por
mais de 10 milhas, 15 talvez, fui surpreendido por um vento de 45 nós (informação
que me foi prestada no iate clube local) e não podia deixar de seguir rigorosamente o
canal.
Em mar aberto isto não seria problema, mas ali o barco deitou, a água correu
pelo convés e o barco só queria orçar. Queria risar mais a vela grande e já estava no
3.º riso, que era o último. Tive que arriar o tormentim, pois precisava da grande em
cima e com ajuda pouco eficiente nestas horas do motor cheguei em Noumea.
A primeira coisa que fiz foi encomendar logo um 4.º riso na grande, que dava a
possibilidade de reduzi-la a 6m‘, e só então dormi mais tranqüilo. Na veleria,
descobri que o tecido que usava tinha a metade do peso dos utilizados em Noumea
para barcos do mesmo tamanho. O Brasil não tem ventos fortes.
Tive a oportunidade de usar por várias vezes este 4.º riso, que me dava um
conforto fabuloso, uma tranqüilidade, principalmente quando se tem que orçar com
ventos acima de 40 ou 50 nós, para se sair do apertado.
As vezes, desta manobra depende a saúde do barco e mesmo a nossa vida,
quando o vento nos impele para uma costa próxima, soprando com vontade.
O ideal mesmo seria ter uma vela pequena, à parte, de tecido bem mais grosso,
para fazer par com o tormentim na proa, pois o 4.º riso deforma um pouco a vela,
deixando a marca da passagem do mau tempo gravada, visível quando a vela está
toda desfraudada.
Estas velas de mau tempo, o tormentim e a grande especial, conforme o tamanho
do barco, podem ter, cada uma, área equivalente de 5 a 10% da área vélica total, e são
velas que devem ser estupidamente fortes e que nunca, em hipótese nenhuma, podem
ceder um olhai, ou abrir uma costura, mesmo que o vento atinja talvez 150 nós.
E um problema filosófico, e é destas velas que pode depender a vida dos que
estão a bordo. Pois, teoricamente, o barco certo, com boa tripulação, manobrando
corretamente, pode se sair de qualquer aperto
Quando se perde um barco, sempre há uma causa. Ou o barco é inadequado, ou
as velas cederam, ou a tripulação não soube fazer uso apropriado do que .tinha em
mãos. Deixemos de lado, sem dúvida, o caso dos grandes ciclones, onde a energia
desenvolvida assume proporções imensuráveis, suplantando qualquer dimensão
humana.
Reparos: Deve-se ter sempre a bordo os meios para fazer pequenos reparos e
eventualmente reparos maiores.
As agulhas grandes, triangulares, são desaconselháveis pois, costurando, elas
cortam os fios enfraquecendo muito o tecido. O melhor é ter agulhas médias, semi-
arredondadas. Onde o tecido tem 5 panos se faz o pré-furo com uma agulha
incandescente. É bom ter um bom estaque, pois elas quebram. O fio deve ser
encerado. Antes de fazer qualquer reparo, costumo colar o remendo com cimento de
contacto (cola fórmica) e depois faço a costura. Isto possibilita manter o remendo
bem no lugar desejado, estirado e sem criar rugas.
Após criar o hábito, costurar velas é até uma boa distração, e cada novo remendo
sai melhor.
2. ESCOLHA DO BARCO
2.7. Driças e escotas

Um conjunto de driças e escotas, utilizadas devidamente, é suficiente para dar


uma volta ao mundo, mas convém ter as reposições.
No Três Marias, tenho três driças na proa, mistas, cabo de aço com nylon.
Uma vai por dentro do mastro e tem a costura especial de cabo de aço com o
nylon (pré-estirado). As outras duas são externas, com nylon comum e costura
comum. Em toda a viagem partiu uma driça, mas, como tudo que quebra, teve um
motivo. A genoa estirou, o sapatilho estava entrando pelo moitão adentro no topo do
mastro, forçou e terminou partindo, mas mesmo assim durou 2 anos. A escota da vela
grande está bem gasta, mas está aguentando. A escota da genoa está bem gasta,
principalmente onde roça por baixo da retranca, mas está aguentando.
Usando o tormentim, no lugar da vela de estai, numa noite de muito vento, perdi
a escota de bombordo.
A razão foi logo identificada. O bloco do ponto da escota da vela de estai
deformou com o esforço, deixando de girar. Isto foi suficiente para gastar a escota em
algumas horas de uso. Conclusão: material barato sai caro.
Conseguimos também gastar o cabo do balancim, que, devido ao atrito na borda
da roldana fixa no topo do mastro durante 2 anos, quando a retranca está toda aberta,
terminou partindo. A solução é fácil. O cabo deve ser mais comprido, a cada 2 meses
ou tantas milhas navegadas cortar umas polegadas de cabo, mudando de posição,
assim, o ponto atritado. Pode-se também instalar uma roldana que gire mas que cria
outros inconvenientes.
2. ESCOLHA DO BARCO
2.8. Guinchos

Os guinchos são um maravilha de técnica. Permitem a um só homem manobrar


um barco de qualquer tamanho. Alain Colas, sozinho, chegou a tripular o Club
Mediterranée com 70m de comprimento.
Estive a bordo deste barco na minha passagem por Papeete.
Com a sua morte, estavam transformando o barco, originalmente de regatas,
visando utilizá-la em turismo.
No Três Marias, sempre por razões de economia, um dos guinchos era muito
pequeno, e de uma liga de alumínio. Este guincho, na mesma noite em que perdi a
escota do tormentim, durante a manobra, soltou dos parafusos após partir a base,
golpeando-me no queixo. Passei uns tempos com medo de me aproximar dos
guinchos quando o vento refrescava.
Conclusão: material fraco sai caro.
Para utilizar os guinchos certos, basta entrar nas tabelas fornecidas pelos
fabricantes, para o tamanho do barco e a área vélica.
Hoje, com o desenvolvimento de dispositivos que mordem os cabos, liberando
os guinchos, o número deles diminuiu a bordo, mas aumentou o seu tamanho.
2. ESCOLHA DO BARCO
2.9. Armação

O raciocínio muda muito se o barco é de regatas ou de cruzeiro.


Vamos dedicar-nos apenas aos de cruzeiro.
Geralmente os barcos com um mastro só rendem melhor nas velas. Sempre ao se
ter 2 mastros eles entram em choque em certos rumos, um atrapalhando o outro.
Quando o barco vai crescendo de tamanho, o tamanho das velas também
aumenta, tornando as manobras mais difíceis, requerendo maior número de
tripulantes. 6 para facilitar esta manobra que se divide a área vélica, instalando um 2º
mastro, em detrimento do rendimento. Também o custo aumenta, mais estais, mais
ferragens etc.
Nos trópicos o barco de um mastro, sloop, é ótimo, pois usamos quase sempre
genoa.
À medida que vai se navegando nas altas latitudes, o Cutter tem a vantagem de
repartir esta vela de proa em duas. Quando o vento aumenta, basta arriar a vela de
estai. Quando reduz, iça-se de novo. Querendo-se, nada impede de usar a genoa.
Nas altas latitudes, principalmente durante o mau tempo, as armações de 2
mastros permitem também um equilíbrio mais fácil no leme. Arria-se a vela grande e
trabalha-se com as velas de proa e popa. O seu maior afastamento do centro de carena
(do centro de rotação do barco) oferece às velas um maior braço de alavanca,
tornando bem mais fácil equilibrar o barco folgando ou apertando as escotas.
2. ESCOLHA DO BARCO
2.10. Âncoras, correntes e cabos de amarração

O peso das âncoras depende não só do tamanho do barco, mas também do tipo
de âncora.
A âncora tipo almirantado não se usa em veleiro, pois requer um peso elevado,
além de ter sempre o perigo, caso mude o vento, de dar uma volta no braço, tirando
dela toda a eficiência. Só poderia ser usada para um fundeio provisório por poucas
horas. As melhores são a C.Q.R. e a Danford.
Usava no Três Marias uma âncora C.Q.R. de 14 kg, mas um dia descobri que
dormia mais preocupado no porto do que em alto-mar. Então resolvi comprar uma
C.Q.R. de 45 libras (22 kg) e dormi tranquilo. (O Três Marias tem 36 pés e pesa 8 t
como está agora.) Gorre te Pode-se usar a âncora com apenas cabo de nylon, mas
para isto é preciso que o fundo seja de areia ou lama, e usar pelo menos um
comprimento de 6 vezes a profundidade do local, e não deve ter Swell. Estas
condições são tão raras que é melhor esquecer. Em local pouco protegido, com tombo
de mar, o cabo de nylon fica estirado, dando puxavões que nenhuma âncora consegue
segurar.
Nos atóis do Pacífico, o fundo é puro coral, e a única solução é corrente.
Uso uma corrente galvanizada de 10mm, lançando pelo menos um comprimento
de 4 vezes a fundura, mas nunca menos de 40m. Assim posso deixar o barco sozinho
e ir para a cidade tranquilo. Na maioria das vezes, a âncora nem está funcionando, a
corrente cozinha se encarrega de ancorar o barco.
Me perguntavam para que este exagero e respondia: “Tenho um método
próprio”, e foi assim que me dei bem. Não gosto de ter dúvidas. Às vezes vou à
cidade e lá mudo de planos passando vários dias fora.
Pode-se usar 30m de corrente e o restante em nylon. Também quando a corrente
fica arrastando pelo fundo ou serrando coral sob efeito das ondas, um pedaço de
nylon evita transmitir ruído, deixando-nos dormir mais tranquilos.
Convém ter um mínimo de 3 âncoras a bordo, principalmente se a tripulação não
mergulha. E fundamental se ter uma âncora com cabo de nylon à mão para usar como
auxílio se o barco encalha. Pode ser levada ao destino com o caíque ou amarrada a
um camburão vazio servindo de boia.
3. LEME DE VENTO

Existe um grande número deles no mercado, além dos que são feitos em casa.
Os que melhor conheço são o Áries e o Atoms.
O Aries é o que tenho. Ele é tão bom que faltam palavras para elogiá-lo.
Nunca deu pane, e em toda a viagem, que durou aproximadamente 8 meses no
mar (não conto as paradas em terra), posso dizer com imensa satisfação que somadas
todas as horas que tive que ficar no leme, talvez, nem complete 1 dia.
O Aries é muito bom e um amador não deve tentar copiá-la. O peso de cada peça
é fundamental e vai repercutir no equilíbrio, na eficiência final. Ele é fabricado na
Inglaterra, em Cowes, por uma pequena oficina que vem melhorando-o a cada ano,
estando atualmente à beira da perfeição.
O Atoms é muito bom, talvez até mais sensível, mas tem o inconveniente de ser
fraco. Quem o tem está sempre às voltas com peças de reposição.
Com o leme de vento, durmo tranquilo, acordando de hora em hora ou de duas
em duas horas, para fazer os pequenos ajustes, quando os ventos mudam de direção.
É igualmente eficiente com vento de popa.
4. PILOTO AUTOMÁTICO

Encontram-se no mercado.
Faz o barco seguir um rumo de acordo com a agulha magnética.
Como o vento a toda hora sofre pequenas variações, as escotas não param no
lugar. Não é aconselhável para um navegador solitário. Com a passagem das
depressões, temos ventos fortes que vão sofrendo rotações constantes. Imagine
correndo no empoupado, se o vento vira e o barco não acompanha, pois está
amarrado à agulha magnética. O tripulante não pode dormir senão o barco atravessa
na onda acompanhando as consequências que isto pode trazer.
5. NAVEGAÇÃO EM MAU TEMPO

O mau tempo, conforme as águas em que se está navegando, pode representar


apenas 5 a 10% da viagem. Mas caso não se tome as medidas carretas os resultados
podem ser indesejáveis.
Quando a gente navega, em geral se preocupa com o mau tempo, e,
principalmente, o que fazer caso ele apareça.
Esta preocupação assumiu um lugar de destaque, quando resolvi atravessar o
Oceano Índico Sul, sem escala, na pior época possível. Exatamente na estação dos
ciclones.
Inicialmente estudei detalhadamente o Pilot Gharts. Talvez o tenha consultado
umas 50 vezes durante a travessia, procurando chegar aos mínimos detalhes, tentando
entender nas entrelinhas a lógica dos trajetos escolhidos pelos ciclones nos anos
anteriores, e, então, evitar, o quanto possível, estes trajetos.
Mas esta foi a primeira etapa do estudo.
A segunda etapa constou em planejar o que fazer caso ve ha o mau tempo.
Já tinha uma certa noção, fruto das experiências de anos anteriores, mas resolvi
aprofundar as pesquisas.
Reli os autores que navegaram em águas turbulentas. Reli Uito Dumas, Bernard
Moitessier e finalmente Tabarly, no seu guia prático de manobras. Este último eu li
umas 20 vezes, até ficar bem claro que os três autores estavam de acordo, estavam
falando de modos diferentes mas a respeito do mesmo assunto.
A síntese desta pesquisa, somada à minha própria experiência, é o que eu
tentarei expor a seguir.
As atitudes a tomar caso venha o mau tempo estão ligadas basicamente a dois
dados.

Primeira: Direção do vento


Isto quer dizer se o vento é favorável ou é contra. Caso se esteja longe da costa,
longe de bancos ou arrecifes, o vento contra pode ser transformado em favorável,
mudando-se o rumo. Isto só se faz em último caso, quando as condições estão
severas, que a única preocupação é salvar o barco e a tripulação, esquecendo do
atraso da viagem.

Segunda: Dados do Barco Os principais são os seguintes:


Tamanho/Deslocamento - leve, semi-leve e pesado.
Quilha - longa, semi-longa, curta.
Lastro - bem lastreado, mal lastreado.

Em todos os casos, o maior perigo não está no vento, nem nas ondas e sim nas
quebranças.
O vento pode rasgar um pano, caso não se reduza a área vélica em tempo, ou se
mantenha no ar uma vela de tecido leve. As ondas balançam o barco. Ele sobe e desce
na onda.
Mas quando o vento sopra com violência por um determinado espaço de tempo,
além de criar as ondas, cria as quebranças.
Quebranças ocorrem quando a parte superior da crista da onda assume
velocidade maior que o conjunto, projetando-se para frente com grande dissipação de
energia.
A quebrança atingindo um barco em cheio, no costado, pode deitá-la a ponto de
enfiar o mastro por dentro d’água, ou até mesmo fazê-lo rolar.
Mau Tempo com ventos favoráveis.
Sendo o vento favorável, um barco adequado, leve e rápido, bem lastreado pode
navegar com segurança por assim dizer seja qual for o tempo.
Para isto, é preciso manter bastante pano em cima, a fim de garantir uma boa
velocidade.
A velocidade é fundamental nestes casos, pois correndo rápido somos
alcançados mais devagar pelas ondas, diminuindo o seu impacto, e garantimos ao
leme uma maior eficiência.
Isto funciona melhor com barcos leves e mais velozes, surfando nas ondas.
Não é raro alguém mal informado reduzir demasiadamente o pano com medo de
atravessar nas ondas, e atravessar justamente por isso.
Pois, reduzindo o pano, reduz-se a velocidade e, consequentemente, a eficiência
do leme, podendo portanto atravessar na onda, rolando e enfiando mastro por dentro
d’água, provocando as avarias que isto pode ocasionar.
Existe o mito de que o barco de quilha longa é melhor para correr no
empoupado. A meu ver é apenas um mito.
O barco de quilha longa está mais plantado dentro d’água e portanto, acompanha
mais o movimento d’água. Ao passar uma onda, se o barco atravessa um pouco, o
importante é corrigir antes que a próxima onda encontre o barco mal posicionado. E
neste caso os barcos de quilha longa são mais lentos na correção.
Até mesmo navegando com leme de vento, que são tão bons nos dias de hoje, a
quilha curta continua a favorita.
O primeiro a perceber que a velocidade era fator de segurança foi Vito Dumas,
que, navegando nos 40 bramadores, onde o vento é muito forte, mas sempre
empoupado, nunca arriou a vela grande a não ser para fazer reparos ou dormir (ele
não tinha leme de vento).
Bernard Moitessier, em seu livro “Cap Horn à la Voile”, conta que correndo no
empoupado, temendo atravessar nas ondas, seguiu instruções de um dos seus
conhecidos, arrastando uma série de cabos pela popa (a chamada âncora de tempo).
Com o aumento das ondas e das quebranças, passou a embarcar tantas ondas
pela popa que se viu na hora de naufragar. No meio da tempestade. Ele resolveu reler
Vito Dumas, para ver como é que se fazia.
Feita a consulta, ele passou a faca nos cabos que arrastava pela popa e que
freavam o barco.
O barco deu um pulo para a frente, a velocidade aumentou e o convés enxugou.
As ondas deixam de montar pela popa.
Com a passagem das depressões, o vento vai girando. Assim sendo, temos o
vento de agora e as ondas do momento.
Mas temos também as ondas do vento de 3 a 5 horas atrás.
Correndo o tempo, deixamos o vento 20 a 25º pela popa, podendo ficar por
bombordo ou por boreste. É fundamental deixá-lo do bordo que atenda as ondas do
momento e também as ondas de horas atrás. Caso não se tome este cuidado, deixando
a popa entre as duas ondas, podemos ser surpreendidos por uma quebrança vinda pelo
través, rolando o barco.
Se esta técnica funciona bem. para um barco leve, veloz e bem lastreado, para
um barco pesado, lento ou mal lastreado isto pode ser um desastre. Barcos pesados e
lentos, correndo no empoupado, são barcos cansados, molhados, as ondas montam
pela popa e passeiam por cima do convés. Neste caso, torna-se necessário adotar a
capa.
A capa pode também ser adotada para poupar os equipamentos ou repousar a
tripulação.
Mau tempo com ventos contra
Se, no empoupado, é difícil dizer o limite do vento para continuar a viagem,
orçando, para certos barcos, 30 nós de vento já se torna o máximo.
O registro mais elevado que conheço é descrito por Tabarly, que foi
surpreendido por um ciclone, nas proximidades da Nova Caledônia. Para afastar-se
dos corais andou na orça cerrada, apenas com a trinqueta, quando o vento registrado
era de 100 nós.
Após afastar-se o suficiente, visando poupar equipamento pois já tinha perdido a
vela grande logo no início do mau tempo, ficou na capa seca, aguardando que o
tempo melhorasse.
Em tais casos, o vento e a chuva, devido à velocidade, ferem os olhos, e, como
ele conta, a chuva torrencial criou no ar tanta umidade que a tripulação tinha a
impressão de não poder respirar, afagando-se em condensação.
Salienta também que o vento veio de repente e o mar não tivera tempo de
formar-se, o que favoreceu também, em grande parte, o avanço do barco.
Quando um barco não consegue mais avançar contra o vento e o choque que as
ondas causam na proa, só restam duas soluções: correr o tempo, descrito na primeira
parte, que seria o mais confortável. Mas se o objetivo a alcançar está a barravento,
para não perder o caminho já ganho pode-se ficar na capa.

A capa
A capa tradicional, vela grande no 3º riso, toda cassada e tormentim ou trinqueta
na proa, amurada ao contrário (como se virasse de bordo e esquecesse de passar a
escota) é uma boa solução, quando queremos parar o barco na entrada de um porto
desconhecido para esperar o amanhecer. Mas, com mau tempo, esta posição expõe o
través do barco às rompentes, e só é aconselhável para barcos grandes, cuja deriva
provoca um rebojo suficientemente grande, capaz de desorganizar e barrar as
quebranças antes que estas atinjam o casco.
No caso dos barcos pequenos ou médios, a capa tradicional só pode ser aplicada
para certos tipos de barcos que podem também adotar a capa seca.
Um barco de deslocamento leve, com boa estabilidade de forma e uma quilha
muito curta, é o barco ideal para adotar a capa seca.
Devido ao seu pequeno deslocamento, e consequentemente pequeno volume
imerso, e sua quilha muito curta, oferecendo pouca resistência, este barco vai derivar
de lado, com grande velocidade, amortecendo portanto o possível impacto das
quebranças.
O vento atuando na mastreação vai aderná-lo um pouco, as ondas vão balançá-
lo, mas devido à sua boa estabilidade (bem lastreado) a vida a bardo será mais do que
suportável.
A depender da estabilidade de forma, o barco vai balançar mais ou menos, não
se colocando porém em perigo. Este é um bom barco para sobreviver independendo
de manobras. Basta arriar tudo e ir dormir.
Um barco pesado, de quilha longa, vai suportar muito mal a capa seca.
Bem plantado devido ao seu deslocamento pesado, somando-se o efeito da
quilha longa, este barco vai oferecer resistência a deriva, dando margem a que as
ondas quebrem sobre o seu costado.
Com as cristas das ondas quebrando energicamente sobre a parte superior do
costado, enquanto a quilha longa e profunda permanece plantada em águas menos
móveis, cria-se um momento tentando rolar o barco. O perigo de rolar torna-se mais
iminente se o barco for menos lastreado.
É muito comum barcos feitos em casa por amadores sofrerem uma série de
reforços, aumentando o peso da estrutura, e esquecendo que para cada tonelada de
aumento no peso do casco precisamos de quase outra de aumento na quilha. Isto é
muito comum também em barcos de ferro-cimento, que ficam com a parede mais
espessa.
Tais barcos suportam muito mal a capa seca, sendo obrigados a adotar a capa
corrida.
Para isto, utilizando velas de mau tempo, pequenas, tentam manter a proa com
aproximadamente 60º com o vento.
Não se deve avançar muito devido aos choques das ondas na proa que seriam
insuportáveis, mas deve-se avançar pelo menos o suficiente para que o leme possa ser
capaz de manter o rumo.
Deve-se tomar o cuidado para que o choque das ondas na proa não atravesse o
barco, dando margem a uma segunda onda atingi-lo em cheio pelo través.
6. ROUPA

Roupa impermeável. Em viagens longas é conveniente ter pelo menos um par


para cada tripulante, pois rasga com facilidade. Um homem molhado em clima frio
torna-se pouco útil.
As botas devem ser bem folgadas.
Roupa de frio É fundamental se ter roupas de lã a bordo. Pulôveres, meias de lã,
calças de lã, capuzes, destes que cobrem tudo.
Em Galápagos, em pleno Equador, tremi de frio devido a uma corrente gelada
que atinge a região.
O frio no mar é um frio molhado, e a lã é o material indicado, pois mesmo
úmida continua esquentando. Em Cape Town, todos usam um conjunto de lã
sintética, que parece ser muito bom. Comprei um para a minha próxima viagem.
7. MOTOR

Ter um motor auxiliar é muito importante.


Vito Dumas, após concluir a volta ao mundo pelos “Quarenta Bramadores”,
quase perdeu o barco na costa do Uruguai.
Acabou o vento e o barco deu na praia. Por muita sorte conseguiu salvar o
barco.
Um morar pode tirar muito do aperto.
Durante a volta ao mundo, não cheguei a usar o motor 200 horas. Apenas para
carregar as baterias e as entradas nos portos.
A bordo do Três Marias tenho um Volvo Penta MD 11-C de 23 HP, que nunca
falhou.
Convém levar a bordo peças de reposição tais como filtros, correias, reparos da
bomba d’água, bico injetor, junta de tampão, conjunto de catodos do alternador, água
destilada para bateria, etc.
Quando se tem estas peças a bordo, o motor geralmente não quebra. Ele respeita
a presença das peças de reposição. Elas não são encontradas facilmente,
principalmente nas pequenas ilhas do Pacífico.
8. MANOBRANDO DE RÉ

Vi muita gente se apertando ao ter que manobrar de ré.


Quando temos muito vento e correnteza é realmente difícil, mas, às vezes, falta
conhecimento.
É preciso saber que ao engrenar ré o barco geralmente está parado; e parado o
leme não funciona. Após desenvolver velocidade a coisa muda. Mas às vezes estamos
em um lugar apertado, onde nunca teremos velocidade, e então como fazer? É, muito
simples. Devido ao sentido de rotação da hélice, o barco tem um sentido de manobra
preferencial. E é preciso adotar sempre este sentido para que tudo fique mais fácil.
Para descobrir o sentido preferencial de seu barco basta pará-la totalmente. Engrenar
ré com o leme no meio e ver que o barco vai guinar antes mesmo de se deslocar em
um determinado sentido. E este é o sentido preferencial. Ao girar um pouco, antes
mesmo que ele se desloque para ré, engrena-se para vante só para neutralizar, meio
minuto, e engrena-se ré outra vez, e assim por diante. Procedendo-se desta forma,
pode-se dar a volta completa com o barco sem sair do lugar, quase que independente
do leme. O leme ajuda ao se engrenar para frente, mas sempre em um só sentido e
nunca no outro.
9. LUZ

Além da luz elétrica, é fundamental que tenhamos a bordo a luz a querosene,


velas etc. A luz elétrica a bordo do Três Marias, infelizmente, só tem uma fonte: o
motor.
Evitando gastar óleo diesel e quebrar o motor em si, quase não uso luz a bordo
quando estou no mar. Navego no escuro. Só ligo as luzes de navegação nas entradas
dos portos, ou quando um navio se aproxima. Geralmente não leio à noite. Mas tenho
que reconhecer que isto é um desconforto. O fato é que não me preparei devidamente.
Existem vários processos de gerar a bordo de um barco a vela. O motor é o que uso.
Através do alternador, indo carregar duas grandes baterias que tenho. Uma está ligada
à iluminação e a outra é a emergência, apenas para o arranque do motor.
Quando o reversível é hidráulico, pode-se deixar o eixo girando em ponto morto
sem danificar o reversível, enquanto avançamos a vela. Torna-se necessário, porém,
instalar um conjunto de polias capazes de levar ao alternador o número de rotações
mínimas requeridas pelo alternador. A bordo do “Oxigene”, Jack e Arianne além de
luz tinham o frigorífico funcionando perfeitamente durante toda a viagem. O
“Oxigene” é um barco de 48 pés, de alumínio, e uma boa velocidade ajuda nestes
casos.
Um outro processo é ter um alternador ligado a um cabo de nylon trançado que
arrasta na popa uma hélice. O alternador é especial para carregar baterias com baixa
rotação. O conjunto completo é fabricado na Inglaterra e nos Estados Unidos, mas
não foi possível encontrá-la nos portos em que passei.
Um outro processo muito comum é o minigerador Honda.
Como não tenho motor de popa, não tenho gasolina a bordo (que é sempre um
perigo de incêndio), terminei não comprando também o gerador.
Este gerador, além de carregar baterias, produz corrente alternada capaz de
movimentar furadeira, lixadeira, ferro de soldar etc...
10. MATERIAL DE SEGURANÇA

Cinto de Segurança - Tenho passadas no convés duas linhas de vida (cabo de aço
inoxidável de 5mm revestido com plástico), uma por bombordo e outra por boreste. É
a estas linhas de vida que prendo o cinto de segurança, mais exatamente, o colete de
segurança, e que permite praticamente todos os movimentos durante as manobras.
O cinto de segurança torna-se indispensável para arriar velas, instalar pau de
spinaker nas genoas etc., pois nestes instantes estamos com as mãos ocupadas. Em
mau tempo, estou sempre amarrado, principalmente por que estou sozinho e caindo
n’água, ninguém vai manobrar o barco tentando me resgatar.

Balsa Salva-vida - Por razões econômicas não pude comprar uma. Mas isto tudo
aperta o coração.
São caras e merecem revisões constantes.
Poderia em condições favoráveis tentar usar o caíque inflável como balsa. Mas
ele está sempre vazio e no interior do barco.
Entre Panamá e Bali, deixei um 2º caíque inflável, usado, amarrado sobre o
convés em frente ao mastro. Ao fazer a inspeção em Bali, ele estava com 5 furos.
Quase todos os locais que ficaram dobrados sem movimento por muito tempo
estavam vazando.
O sol tropical atuando sobre o caíque, ainda que coberto, acabou de inutilizá-lo.
E por estas razões que digo. Balsa salva-vida é algo caro e difícil. Adaptações
são pouco úteis, só mesmo para tapear o coração.
É recomendável além da balsa ter sempre pronta uma caixa estanque de
emergência, contendo comida, roupa de lã, chapéu, material de pesca, remédios
principalmente contra desidratação, etc., e um camburão de água potável.
Ao lançar a balsa n’água, caso dê tempo, lança-se também a caixa de
emergência e o camburão de água, que estão sempre prontos, unidos por um cabo, à
semelhança de um cordão umbilical.
É bom tê-los prontos, esperando nunca ter que utilizá-los.

Refletor de Radar - Instalei um no topo do mastro.


11. PROVISÕES
11.1. Água

O consumo normal de água é 2,50 1 por pessoa por dia. Para isto é preciso usar
água doce apenas para cozinhar e beber. Cozinhando arroz, feijão, sopa etc., adiciona-
se um pouco de água salgada, o que além de economizar água doce é bom para
prevenir a desidratação.
A bordo do Três Marias, em pleno mar, nunca tornei um banho doce.
Gastando-se água doce para o banho, um dia talvez se tenha que beber água
salgada. Ao deixar um porto, sabe-se apenas a data I da partida, mas nunca a de
chegada. Pode-se perder o mastro e ficar 3 meses boiando por aí.
Um médico francês, Alain Bombard, atravessou o Atlântico, a bordo de um
caíque inflável, bebendo apenas água do mar e soro de peixe. O segredo, segundo ele,
é beber uma colher de sobremesa de água do mar a cada meia hora. Quantidades
maiores irritam as paredes do estômago, provocando problemas.
O banho com água salgada no início é incômodo, mas logo acostuma.
Tomando o banho, enxuga-se o corpo com uma toalha logo em seguida, e
praticamente todo o sal vai para a toalha.
Quando chove, pode-se recolher água com auxílio de uma lona, podendo-se
também aproveitar para tomar banho.
Tanques - A água potável deve ser distribuída em vários tanques. Tendo apenas
um tanque, corre-se sempre o perigo de ter um vazamento ou a água apodrecer,
principalmente se esta água é recolhida em uma ilha ou local pouco civilizado, onde o
tratamento é precário. Além de tanques, convém ter camburões plásticos adicionais.
A bordo do Três Marias tenho dois tanques em inox de 100 1 e 80 1, além de 5
camburões de 20 1 e 1 de 10 1.
Convém levar também garrafas de água mineral, sucos de frutas, refrigerantes,
etc., que no final de contas representam líquido. De vez em quando, passo uns tempos
treinando, tomando alguns pequenos goles de água do mar. A gente se acostuma, e
não é tão ruim assim. É como tomar aguardente. No início é difícil começar, mas
alguns têm dificuldades em parar.
11. PROVISÕES
11.2. Conservas

É bom ter um grande estaque.


A bordo do Três Marias, quando deixei Salvador, o estoque era para mais de 6
meses, e alguns produtos ainda tenho hoje, após 1 ano.
Deve-se ter provisões pelo menos para a viagem em vista e mais 3 meses,
pensando sempre na possibilidade de perder o mastro e ficar a deriva.
Quem está se preparando pela primeira vez tem que tomar cuidado para planejar
corretamente. Fazer um menu semanal prevendo o consumo diário e depois
multiplicar pelo número de dias.
E muito comum a provisão acabar na metade do tempo previsto.
A título de precaução, gêneros que não estragam como leite em pó, ovomaltine,
leite condensado, arroz, etc. devem ser estacados em grande quantidade.
Antigamente se arrancava os rótulos das latas de conservas, mergulhava-se em
tinta ou verniz. Mas isto era no tempo em que os barcos eram de madeira, faziam
muita água, e não se encontrava a bordo um só lugar enxuto.
Os barcos modernos são enxutos e não requerem estes cuidados. Também, hoje
em dia, com o advento dos meios de transporte, em qualquer lugar se encontra quase
tudo. O problema maior está nos preços e em ter que se comprar a divisa estrangeira
no mercado negro.
As provisões são baratas em: Brasil, Cook Islands (Nova Zelândia), Indonésia,
Cape Town.
É média, no Panamá e Austrália. É cara no Caribe.
É caríssima na Polinésia Francesa (talvez 8 vezes o preço do Brasil),
principalmente em Tahiti. Em Papeete, um sanduíche (hambúrguer) custa 5 dólares.
11. PROVISÕES
11.3. Frutas

O problema das frutas é a conservação. Frutas que se conservam bem são: Maçã,
laranja, limão e coco.
Quase todas se conservam bem por 15 dias, maçã se conserva por 2 meses,
podendo acontecer o mesmo com laranjas e limões.
Para que uma fruta dure, ela não deve ter um só arranhão, nem pode estar
machucada. Elas vão secando, reduzindo de tamanho, murchando, mas continuam
aproveitáveis.
Deve-se comprar para viagem mais longa pelo menos 50% a mais da previsão
de frutas, pois sempre uma boa parte apodrece. É inevitável.
11. PROVISÕES
11.4. Pesca

A pesca oferece proteína fresca por um preço barato. Quem não sabe pescar é
bom aprender. Não é tão difícil. Quando pesco peixes maiores frito a metade com
bastante azeite (o azeite ajuda a conservar) e a outra metade salgo.
Para salgar um peixe, basta retalhá-lo e colocar numa vasilha após pôr sal por
toda a parte. O peixe vai liberar líquido, e logo O tudo se transforma em salmoura.
Ele deve permanecer aí por 2 dias, e depois o penduraremos ao sol para secar. Deve
ser recolhido à noite para evitar sereno.
Enquanto ele vai secando, a gente vai chegando com a faca e tirando a
lasquinha. Quando está seco a metade já foi consumida.
12. SAÚDE

Creio ser desnecessário salientar a importância da saúde, principalmente no mar,


onde não temos assistência médica nem hospital. A coisa fica ainda mais evidente
quando se é navegador solitário.
Vacinas Antes de sair, tornei todas as vacinas possíveis.
Tratamento Dentário
Fiz uma revisão geral, obturando todas as cáries e radiografando blocos antigos.

Remédios - O melhor seria uma orientação médica. Coloquei a bordo todos os


remédios que um dia já consumi, ou que já ouvi falar.
Considero importante uma vasta quantidade de antibióticos, capazes de frear um
processo inflamatório, ou uma crise de apendicite, permitindo chegar ao hospital mais
próximo. A maioria dos navegadores opera o apêndice como precaução.
Tenho a bordo do Três Marias, desde remédio para desidratação, malária ou
enfarte, mesmo sem nunca ter sofrido do coração, pelo menos sofrimento que
remédio desse jeito. As vezes, este remédio vai ser consumido por um colega de outro
barco ou por crianças de um vilarejo à beira do mar em uma ilha do Pacífico.
Alguns barcos trazem a bordo agulha e linha para dar pontos.
Cheguei mesmo a ver, nas Marquisas, Bernard do Geremi que levou uns 10
pontos após sofrer corte na mão. Outros têm morfina a bordo, para caso de fratura de
pernas ou braços. Neste caso limitei-me a levar remédios contra dor, em caixas
grandes (embalagem hospitalar).

Vitaminas - Levei uma grande quantidade apesar de usar muito pouco, apenas
quando, na travessia do Índico, passei 2 meses no mar.

0 Banho - É parte da higiene e faz muito bem à saúde. Cumpre salientar, porém,
que muita gente toma banho de maneira incorreta, passando sabão, detergente, em
grande quantidade, por todo o corpo. O banho deve ser tomado com água,
principalmente no mar, onde estamos expostos ao sol, à chuva e ao vento.
Assessorados pelas propagandas de televisão, ou por ter adquirido um
complexo, de que é sujo, o homem passa o detergente em todo o corpo, tirando
aquela gordura natural, tão necessária para a saúde. Basta passar sabão em certas
regiões do corpo. A gordura natural nos isola do meio ambiente e nos protege do sol,
do vento e da chuva.
A gordura natural impede que o sol nos queime. Nenhum creme artificial é tão
eficiente como a nossa própria gordura, fruto de milênios de evolução. Seguindo as
propagandas de TV, o homem tira a boa gordura e põe a ruim.
A nossa gordura impede que a chuva nos molhe. Nos trópicos, cansei de
aproveitar uma chuva às 2 horas da madrugada para me banhar. Os pingos caem, nos
lavam e escorrem sem no entanto nos resfriar.
A nossa gordura natural nos protege contra o vento frio. O vento passa mas
estamos isolados do ambiente por uma camada que a natureza proporcionou. E a
natureza é sábia.
Tem tanta gente que não pode tomar um chuvisco e já está doente. Quem sabe se
não é esta a razão.
De qualquer forma, se morado em terra, onde trabalhando no escritório com
camisa branca, para poupar o colarinho, você se esmera em esfregar sabão no corpo.
E, de repente, resolve fazer uma viagem marítima de longa duração. Pare de usar
sabão, pelo menos uma semana antes da saída.
Tome banho com água, somente água. Sabão só em algumas partes mais
íntimas. E você vai ver que isto vai lhe ajudar a vencer melhor as novas condições
ambientais.
13. MATERIAL PARA PREPARO DE EMERGÊNCIA

13.1. Tarugos cônicos em madeira mole (tipo cedro). Os diâmetros devem


atender as tomadas d’água, ou saídas, existentes.
13.2. Fibra de vidro, e resina de poliéster.
13.3. Tubolit. Massa epóxi de dois componentes que se aplica debaixo d’água,
aderindo mesmo em superfícies molhadas.
13.4. Compensado Naval - Para caso de quebra de escotilha, etc.
13.5. Clipses, para emenda provisória dos estais no mar.
14. FERRAMENTAS

Não se deve esquecer de levar a bordo uma boa quantidade de ferramentas e


peças de reposição. Na hora do aperto, você vai descobrir o grande mecânico que é.
15. NAVEGAÇÃO
15.1. Cartas e publicações náuticas

O mais aconselhável é, antes de deixar o porto para uma viagem ao redor do


mundo, já ter em mãos todas as cartas e publicações. A medida que os planos forem
mudando, vamos pedindo pelo correio o que falta.
As cartas e publicações náuticas brasileiras são ótimas, mas abrangem apenas as
nossas águas e as Guianas.
As cartas variam de preço. As americanas são as mais baratas. As inglesas
custam quase o dobro, sendo porém mais concentradas, trazendo detalhes no canto,
valendo portanto às vezes por duas ou três cartas americanas.
Em seguida vêm as francesas, australianas e sul-africanas, geralmente apenas
para águas nacionais.
Durante a viagem do Três Marias tive inicialmente problemas em conseguir as
cartas que faltavam.
Em Trinidad Tobago só temos cartas do Mar do Caribe. No Panamá, na cidade
de Balboa (lado do Pacífico), devido ao grande movimento de navios pelo canal,
temos praticamente cartas de todo o mundo, mas ocorre estarem em falta. As cartas
são encontradas em uma loja chamada Isla Morada, muito conhecida, onde temos
também as publicações, sextantes, e outros materiais.
Em Papeete, Tahiti, encontramos apenas cartas francesas, úteis exclusivamente
para a Polinésia Francesa.
Foi em Papeete que descobri um endereço que solucionou o problema.
Trans. Pacific kari e Ltd. 31 Fort. St., Auckla d, 1. P. 0.
Box 3269 – Auckland, NeW Zeland.
A Nova Zelândia é um país organizadíssimo. Você manda uma correspondência
pedindo os preços e eles lhe respondem na hora. Aí você manda o dinheiro e recebe
as cartas pelo correio. Cheguei a pôr o dinheiro no envelope do correio e nunca foi
desviado.
Além de cartas, tem um estoque completo de publicações.
Talvez seja mais fácil, mesmo do Brasil, pedir para este endereço.
As cartas australianas abrangem apenas águas australianas. Daí em diante, só
encontrei cartas e publicações em Cape Town, passagem obrigatória de milhares de
navios.
E sempre bom, caso se esteja nas proximidades do fim do ano, pedir o
Almanaque Náutico do ano seguinte, com bastante antecedência, apesar de ser
possível adaptar o antigo lendo as instruções.
15. NAVEGAÇÃO
15.2. Navegação astronômica

Tenho dezenas de livros de navegação, mas nenhum deles é tão simples e claro
como Gelestial Navegatio for Yachtsme (Seve th Editio 1978) kary BleWitt.
Sem querer me aprofundar no assunto, já que existem tantos livros, descreverei
apenas algumas técnicas que considero interessantes:
Aferição da Navegação
Mesmo quando se navega já há muitos anos, mas de repente se resolve investir
em área cheia de pequenas ilhas, atóis baixos e pouco visíveis, arrodeados de bancos
submersos, é bom aferir o navegador e seus instrumentos.
Um processo que não falha é fazer navegação ancorado no porto (é preciso que
o porto seja pouco abrigado, senão não temos horizonte livre) e ver a diferença que
encontramos. Pode-se também ir à ponta do molhe ou do quebra-mar, de onde
teremos um horizonte livre para fazer a aferição.
Navegando entre atóis
Os atóis são geralmente tão baixos que só são visíveis a 5 milhas durante o dia
(coqueiros mágicos plantados em cima d’água), e a poucos metros durante a noite,
quando já estamos nas proximidades da arrebentação.
Nestes casos (recomendação de Bernard Moitessier) além de aferir o trabalho,
fazendo a navegação ancorado em um porto, convém fazê-la também em noite de lua
cheia com horizonte pouco visível e analisar o resultado que se apresenta.
O horizonte fictício (irreal) nos dará um resultado, uma altura real, geralmente 5
minutos menos que a verdadeira, mas isto varia muito, dependendo da pessoa que
está operando e sua capacidade de visão.
O importante é o navegador do barco em questão saber, após aferir o seu
trabalho, como se servir dos dados que tem nas mãos. Assim poderá obter retas de
posição durante o dia e durante a noite, tornando a navegação mais segura.
Navega do em locais de muita correnteza
O Estreito de Torres é uma região quase encachoeirada, Toda aquela água
passando do Pacífico para o Indico, e vice-versa, com a variação de maré.
Nesta região as correntezas variam muito, podendo atingir em certas partes 5
nós, indo até 8 nós, em locais estratégicos. Elas sofrem também influência dos
ventos, tornando-se portanto previsíveis. (veja Saili g Directio s).
Navegando sozinho, nesta região, onde tive que descrever um caracol,
percorrendo 250 milhas em 2 dias sem ver um só sinal de terra, entre arrecifes que
iam, cada vez mais, estreitando o canal, foi para mim motivo de grande preocupação.
Primeiro tinha que dormir. Segundo, tinha que fazer navegação à noite, pois
durante um intervalo de 10 anos sujeito a uma correnteza de 5 a 8 nós, quem sabe,
todo canal torna-se estreito. Não se pode esperar amanhecer para fazer o ponto,
correndo-se, além disto, o risco de se ter uma manhã com céu encoberto.
Foram dois dias difíceis quando adotei as seguintes providências:
Primeiro: Investi na região com noite de lua.
Além de fazer o ponto pelas estrelas no nascer e pôr do sol, fazia à noite, cada 3
horas, me servindo do horizonte aproximado, iluminado pelo clarão da lua. Isto só foi
possível após aferir os resultados de um tal trabalho a partir de um ponto conhecido,
ancorado em um porto.
Segundo: Fazia durante o dia uma reta de posição pelo sol, exatamente a cada
hora. Este foi o único meio que encontrei para tentar identificar a presença de
correnteza.
O vento variou pouco de intensidade. O percurso a cada hora seria constante, se
não fosse a variação da correnteza.
Aliás, costumo adotar este método toda vez que vindo do mar, me aproximo de
terra.
E foi assim que, em 2 dias, calculei 34 retas de posição. Deu trabalho, mas o
Três Marias atravessou com sucesso o Estreito de Torres, tendo apenas um tripulante
a bordo.
15. NAVEGAÇÃO
15.3. Navegação com radiogoniômetro

Além das estações próprias para radiogônio, podemos nos servir, também, de
qualquer estação de rádio comum, correndo-se porém o risco da antena de
transmissão estar em algum local afastado, fora da cidade.
Assim sendo, navegação por radiogônio geralmente é auxiliar, não se usando
este processo como método único a bordo.
Quando o tempo fecha, e o sol não aparece, este instrumento torna-se de grande
utilidade.
O radiogônio que tenho a bordo é daqueles cuja intensidade do som é acusada
por uma agulha em um quadrante, não dependendo da boa condição auditiva do
operador. Mas, mesmo assim, no início foi difícil obter uma posição precisa, até que
peguei o jeito.
Considero a antena do gônio como um volante de carro velho que tem folga na
direção. Em outras palavras, se fôssemos traçar uma curva, utilizando como dados o
deslocamento da antena e a variação da intensidade do som, esta curva iria subindo,
encontraria um patamar e depois iria descer. Este patamar é o que chamo de folga na
direção. O que nos interessa na realidade é o ponto central.
Para resolver o problema, adoto o seguinte método.
Faço três leituras girando a antena devagar da direita para a esquerda, e outras
três da esquerda para a direita. Analiso os resultados. Se tem algum resultado muito
diferente, este deve ser abandonado, tirando em seguida a média aritmética dos
restantes. Assim procedendo, o resultado obtido terá um mínimo de desvio.
Nunca me sirvo de gônio à noite, pois desconheço as implicações.
GLOSSÁRIO

Arribar - Contrário de orçar, ir com o vento.


Balancim - Cabo que sustenta o peso da retranca.
Barlavento - Lado de onde sopra o vento.
Barra - Entrada de um porto ou um rio. Limite entre as águas abrigadas e o mar
aberto.
Boca - Largura máxima de um barco.
Bombordo - Bordo do lado esquerdo de uma embarcação.
Bordejar - Navegar em ziguezague, tentando avançar contra o vento.
Boreste - Bordo do lado direito de uma embarcação.
Cabo - Corda.
Cockpit - Espaço no convés em volta da cana ou roda de leme.
Capear - Ficar na capa (veja apêndice, navegação em mau tempo).
Craca - Crustáceos que crescem no casco de uma embarcaçào.
Carena/Querena - Parte do casco que fica abaixo da linha d’água.
Driça - Cabo utilizado para içar velas.
Escota - Cabos utilizados para ajustar as velas de acordo com o vento.
Estai - Cabos de aço que mantêm o mastro em pé.
GeNoa - Vela de proa de tamanho grande, para ventos brandos ou médios.
Ketch - Veleiro de dois mastros, quando o segundo mastro é menor e fica à frente da
roda de leme.
Nó - Medida de velocidade, equivalente a uma milha por hora.
Radiogoniômetro - Instrumento eletrônico de navegação que indica a direção da
estação.
Risar - Diminuir a área vélica de um barco quando o vento aumenta.
Sextante - Instrumento que mede a altura dos astros na navegação astronômica.
Sotavento - Lado para onde sopra o vento.
Spinaker - Ou balão, vela de proa utilizada quando o vento é brando e favorável.
Virar de bordo - Manobrar o barco, passando as velas de um bordo para o outro.
Zarpe - Documentos fornecidos pelas autoridades portuárias que permitem deixar o
porto.
FIM

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