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Pois é, como na cantiga, Aleixo pegou uma onda com crista de maravilha e foi
ser dono do mar, andou por todas as águas do mundo, saiu para o norte e de repente
apareceu pelo sul. Nós estávamos no lugar. Na areia. Esperando, torcendo. Seus entes
queridos, as filhinhas, os pais e uma porrada de amigos, nas areias da Bahia dita “A
Mulata Grande”, que de cima da encosta também espiava o horizonte.
No ombro de outra onda arribou, grande alegria, abraços, alguma lagriminha
emocionada, e foguetes, porque na Bahia quando chegam os Orixás, ou Nossa
Senhora chega de andor na rua, chega Aleixo ou Caramuru, é preciso que se soltem
foguetes, muitos foguetes, muitas bolinhas de fumaça no céu.
Hoje, Aleixo e o mar se olham, como quem diz, de homem para homem, mas
isso custou muito, enjoos no começo, paciência e desespero nas calmarias e brigas
para valer nas tempestades, noites insones de orelha em pé esperando vento e também
sol, cores e a beleza puríssima dos azuis.
No mar.
Garybé
01. O SURGIMENTO DA IDEIA
Não tendo barco, nem nada, apenas a ideia, procurei alguém que talvez pudesse
comprá-la.
“Dar a volta ao mu do em solitário, a bordo de um barco à vela de bandeira
brasileira”.
Quem sabe, talvez a Marinha do Brasil. Em nome do mar, do esporte náutico,
com a finalidade de atrair a juventude brasileira para a importância do mar.
Fiz então uma carta ao Ministro da Marinha, solicitando que pusesse um dos
veleiros da Marinha à disposição da viagem.
Meu ex-sogro encarregou-se de entregá-la, ele que trabalhava em Brasília, e que
chegou a alterar alguns detalhes da carta. Como seria ele o estafeta, não pude opor-
me às alterações.
A carta foi a Brasília, mas nunca foi entregue. Um dia respondeu-me que havia
consultado alguém no Ministério, e que o momento para a entrega da carta não era
oportuno. Tinha que esperar um pouco.
Até hoje espero.
O tempo foi passando e cheguei à seguinte conclusão: “Pedinte sem saco, não é
pedinte”. Finalmente onde iria pôr as esmolas. E o saco, no meu caso, seria o barco.
Tinha que arrumar grana para fazer, pelo menos, o barco, depois pediria ajuda
para o resto.
03. A CONSTRUÇÃO DO BARCO
Para dar uma ideia do que tinha na cabeça, às vésperas da partida, reproduzo
aqui trechos de reportagens que considero mais fiéis ao meu pensamento, naquele
instante.
Primeiro ele tentou fazer a viagem uma escuna, depois de ter ajudado em sua
construção durante quatro anos. Não deu certo. E tão o “baiano” Aleixo Belov
decidiu juntar dinheiro e construir seu próprio barco, com o qual está partindo para a
realização de um sonho que acalenta à 14 anos.
Foram dez anos de preparo, durante os quais Aleixo Belov, de 36 anos, leu tudo
sobre navegação, aprendeu a ganhar dinheiro e juntou suas economias para construir
um barco. Agora, ele está de partida para realizar uma volta ao mundo em solitário, a
bordo do Três Marias, num roteiro que parte de Salvador e passa, entre j outros
lugares, por Trinidad, Panamá, Galápagos, Marquisas, Tahiti, Nova Caledônia,
Estreito de Torres, Timor, Bali, Moçambique e Cidade do Cabo.
0 Três Marias é um projeto Robert Bruce de 36 pés, adquirido por Aleixo em
1976. Sua construção levou três anos, pois o barco foi feito no quintal da casa do
iatista, que contou apenas com o auxílio de um carpinteiro. Em abril de 1979 a
embarcação foi lançada ao mar com uma cerimônia de batismo, sendo as duas filhas
de Aleixo, Marúcia (9 anos) e Mariana (6 anos), as madrinhas.
Após o lançamento na água, o iatista foi equipando seu barco, a fim de prepará-
la para a viagem. Realizou alguns testes, em passeios e regatas, nos quais se saiu
muito bem: Três Marias conquistou o 3.º lugar do Campeonato Baiano de vela de
Oceano. A vida de Aleixo Belov – cidadão brasileiro de origem soviética, como se
define – sempre esteve ligada ao mar: é mergulhador profissional, Capitão Amador há
10 anos, professor da cadeira de Portos da Universidade Federal da Bahia e
engenheiro Civil da Construtora Mendes Júnior, onde foi Superintendente de
produção da obra de plataformas da Petrobrás.
– O mar exerce uma atração muito grande sobre mim – diz Belov. – Estou em
permanente contato com ele, mesmo trabalhando. Além disso, sempre fiz esportes
náuticos, numa espécie de preparativo para esta viagem em solitário. Acho que viajar
sozinho é um teste para a gente ver se realmente pode ficar só. Quando fico sozinho
no barco, faço mi ha cabeça. Gosto de ler e escrever durante as viagens. Pretendo,
inclusive, escrever um livro, se conseguir terminar meu roteiro, o que, espero,
acontecerá daqui a dois anos.
A solidão durante meses a fio, as possíveis tormentas em meio ao oceano, nada
parece assustar o velejador como a ideia de não mais rever seu pai, com 83 anos. A
falta de recursos – ele não conseguiu um patrocinador – pode ser considerada um
problema, que Aleixo pretende resolver trabalhando como mergulhador nos portos
onde ancorar, e sobrevivendo sem contar com coisas supérfluas.
-Medo? – pergunta. – Ninguém pode dizer que não tem medo do mar. No
entanto, a atração que exerce é maior do que qualquer outro sentimento, embora em
certas horas ele realmente seja assustador. Meu maior receio fica por conta dos
materiais, porque eles podem não aguentar: esta é a neurose que existe, a dos
materiais. Sabe, se o barco estiver bem preparado e o navegador souber usar a
técnica carreta no momento exato, a segurança para enfrentar o mau tempo é maior. E
as tempestades não são a constante de uma viagem. Em geral, o tempo está bom.
O importante é a gente estar preparado para o que der e vier; se vier a tormenta,
a gente passa por um teste de autocontrole, autodomínio. Isso, desde que o mau
tempo não seja superior à dimensão do próprio homem. Acredito que minha
experiência como mergulhador vá me valer bastante neste sentido: depois de
ultrapassar os 50 metros de profundidade, tive oportunidade de testar meu
autocontrole e pude também aprender a controlar as pulsações cardíacas. Além de
tudo, estou estudando as cartas náuticas dos lugares por onde passarei. Espero evitar
as tormentas, escolhendo as melhores épocas para os diversos pontos do roteiro.
A única religião de Aleixo Belov é o mar. Sua fé se deposita na força do
pensamento e da natureza e na energia mental do ser humano.
-A vida é muito complicada, e ter paz é uma coisa bastante difícil – desabafa. –
Os credos religiosos me parecem uma resposta fácil para quem não busca grandes
coisas. E eu quero construir, quero mergulhar na grande banheira de coral da
Austrália... E saber que estou vivo!
FICHA TÉCNICA
Comprimento - 36 pés (11,30m)
Boca - 3,40m
Pontal - 3,40m
Calado - 1,60m
Deslocamento - 8 toneladas
Motorização 23 HP (Volvo Penta)
Velas Pellicano
Leme de vento Aries
Obs.: Armado em Cuter (duas velas de proa e uma grande).
ALEIXO BELOV: SÓ, PELO MAR, NUMA VIAGEM AO REDOR
DO MUNDO
No dia 16 de março, um homem vai sair só, de Salvador, para uma viagem em
solitário, ao redor do mundo, a bordo de um iate de 11 metros. Quando o barco cruzar
o Farol da Barra em direção a Natal e Trinidad, suas primeiras escalas, Aleixo Belov
um engenheiro de 37 anos estará começando a realizar um plano antigo, vivido desde
1973 e posto em prática com a construção, no quintal da sua casa, do “Três Marias”,
uma embarcação em fibra de vidro, seguindo planta de Robert Bruce, trabalho que
durou três anos.
A ligação de Belov com o mar é antiga, mas tomou muita força quando ele,
mergulhador, conheceu Porto Seguro, isso em 1965: “Levei 16 dias mergulhando até
acabar todo meu equipamento”, conta. “Andando pelos arrecifes lá de fora me surgiu
uma vibração muito intensa, e achei, num estalo, que teria de viajar, e só. Voltei de
Porto Seguro. Nesta época era estudante de engenharia e conheci o Santa Cruz, um
barco que estava sendo reformado para uma longa viagem pelo mundo. Logo me
engajei na tripulação.
Éramos oito. A viagem, que deveria ser longa, durou quatro meses e fomos até
Porto Rico. Fiquei frustrado por não ter condições de seguir viagem com o Santa
Cruz, que acabou sendo vendido lá mesmo, e não voltei para casa. Ao invés disso,
embarquei em Porto Rico, num barco inglês – Ariels – com o qual viajei pelas
Bermudas, Açores e Europa, saltando em Cannes, na França; foi quando recebi um
telegrama dando conta do nascimento da minha primeira filha (agora são duas).
Mesmo assim, ainda corri toda a Europa e URSS, de onde, apesar de brasileiro, sou
originário, voltando depois a Salvador, para seguir a vida como engenheiro.
-A vontade de dar a volta ao mundo era cada vez mais forte – continua Belov – e
apesar de o Santa Cruz não ter afinal realizado todo o roteiro, pude sentir que havia
rompido meu “cordão umbilical” pela convivência mais demorada com a água. Mas,
me aprofundei em meus estudos, de engenharia procurando melhorar meu currículo, e
me voltando para a especialização em áreas portuárias, quando cheguei a ensinar a
cadeira de Portos, na Universidade Federal da Bahia, e por último me especializei em
“Off-Shore”. Chefiei então a produção das três plataformas em concreto construídas
em Aratu para a exploração de petróleo no mar. Hoje, estas plataformas se encontram
no Rio Grande do Norte em operação”.
A construção do barco
Aleixo Belov conta que todos estes anos, enquanto alimentava o seu sonho,
voltou-se para a especialização em atividades marítimas, e procurando ganhar o
suficiente para tornar realidade sua viagem, já que os custos de construção do seu
barco seriam caríssimos. Mas, retornando ao tempo, ele explica porque,
especificamente, s6 em 73 é que lhe ocorreu que viajaria em solitário: “A ideia de
viajar surgiu em 73, quando viajei a bordo do Concorde, um barco à vela de bandeira
francesa, com 42 pés. Éramos apenas dois tripulantes, eu e o Pierre, que era o dono
do veleiro. A viagem que fizemos durou 34 dias, de Salvador a Cape Town sem
escala: passamos 33 dias sem ver terra, um dormindo enquanto o outro trabalhava.
Foi neste período, principalmente, enquanto estava só, manobrando o barco, com
Pierre dormindo, que me ocorreu a possibilidade de viajar só, na minha volta ao
mundo”.
Belov procurava manobrar só o barco, sem acordar o companheiro, testando a
possibilidade de operar sem qualquer ajuda o grande veleiro: “Deste período em
diante não tive mais dúvidas. Iria só”.
Roteiro
Em sua viagem, Belov e o Três Marias sairão de Salvador com destino inicial a
Natal, depois para Trinidad-Galápagos-Panamá-Tahiti-Austrália (Estreito de Torres) –
Bali-Madagascar-Cape Town-Rio-Salvador. Neste roteiro, ele passará por dezenas de
ilhas menores, muitas delas sem vestígio de civilização moderna. O Três Marias,
Belov o construiu todo no quintal da sua casa, em Quintas dos Lázaros, num trabalho
que durou três anos. Ele lamenta que os equipamentos de que dispõe a bordo ainda
não sejam completos, pelas dificuldades financeiras para obtê-los.
Na sua ficha técnica, o Três Marias apresenta um comprimento de 36 pés (11,30
metros); boca 3,40m; calado 1,60m e deslocamento de oito toneladas. Para auxiliar a
propulsão, quando faltar o vento, um motor Volvo Penta de 23 HP. Conta com uma
área vélica de 65 metros quadrados (de Pellicano), e o equipamento mais importante
é o leme de vento que permite a viagem sem que o timoneiro fique preso ao leme,
bastando para isso fugir das rotas dos navios.
Aleixo co versou lo game te com o repórter sobre a viagem. Ele pensa em co
seguir um patrocinador.
A maior dificuldade encontrada por Belov até agora é de ordem econômica: ele
ainda não conseguiu nenhum patrocinador para a viagem. "Eu veria com bons olhos
se aparecesse algum que se dispusesse a financiar mesmo em parte a viagem. Já tenho
um mínimo necessário para seguir, mas a aquisição de alguns outros equipamentos
aumentaria em muito minhas chances de que tudo corra tranquilo. Belov conseguiu
com a Marinha cartas náuticas, roteiros e publicações necessárias para a viagem e
essa foi toda ajuda conseguida até o momento.
Por que navegar em solitário
“Quando passo mais de dez dias no mar começo a ter um sentimento muito
especial. Uma espécie de transcendência, com uma paz interior muito grande.
Começo então a ver com clareza o mundo. Acredito que este sentimento é muito
maior quando estou só... Vivemos nesta civilização num amontoado de gente, e
sequer podemos pensar por que sofremos frequentes interferências,
condicionamentos, motivações de toda espécie.
“Isso termina nos desviando dos nossos objetivos, e há um determinado
momento que nem se sabe por que se está fazendo as coisas, por que se está seguindo
determinado caminho. Quando se passa determinado período no mar, se começa a
enxergar perfeitamente a si próprio... Depois vem uma certeza do que fazer quando
chegar em terra. Ao chegar, a gente é novamente envolvido, e muito pouco do que se
pensou, se faz, na prática”.
“Conhecer o mundo... outros países, outros povos, outros costumes, outras
mentalidades c se situar melhor no planeta. Que pode haver de mais importante?
Importante também divulgar e mostrar ao jovem brasileiro, a importância do mar”.
(Aleixo Belov)
06. SALVADOR A PANAMÁ
19 de março de 1980
Hoje completei três dias de mar. Ainda não pronunciei uma só palavra.
Após marcar a data e hora com dois meses de antecedência, saí, solitário, no dia
16 de março às 10 horas da manhã, após me despedir no cais de meu Pai, de minhas
filhas e meus amigos. De minha Mãe me despedi em casa, pois Ela disse que não
gostaria de chorar no cais.
Estes três dias tiveram várias fases.
Saindo no motor e genoa, fui logo embora, pois estava muito emocionado.
Ao abraçar meu Pai com 83 anos, senti que estava ficando fraco. Mas, quando
minha filha menorzinha, Mariana, me disse: “Painho, ão vá ão”, não pude conter as
lágrimas.
Eu escondia o meu rosto no seu ombro, mas os fotógrafos não me poupavam.
Resolvi sumir no mundo. Saí às pressas, não dei chance aos amigos, nos barcos
menores a me acompanharem. Saí à vela e motor, correndo feito louco, para dar fim
àquele sofrimento.
Para que adiar o inevitável, que era ficar só.
Após afastar-me bastante, parei a máquina. O barco avançava num rumo
qualquer, desde que fosse se afastando da terra.
Às cinco da tarde, resolvi retirar a genoa e içar o yankee, uma vela menor,
preparando-me para a noite. Estava muito enjoado e terminei me arriando sobre o
saco de vela na proa, todo amarrado e vomitando pela borda. Fiquei muito fraco e
desanimado, mas, a muito custo, concluí a manobra e me deitei.
A uma hora da madrugada o barco virou de bordo sozinho, mas como o rumo
estava bom, deixei, voltei a dormir, levantando esporadicamente para dar uma
espiada. Estava me
Sentindo tão mal, que mais me preocupava em ficar bom do enjoo que de outra
coisa. Sabia, porém, que isto era função do tempo, que teria de esperar.
Só fiquei bom após completar dois dias. Então veio uma fome negra e cozinhei
uma sopa caseira.
Quatro batatas, um tablete de caldo de carne, uma cebola, umas colheres de
aveia para engrossar.
Cozinho primeiro as batatas no caldo, a aveia e, quando está quase pronta,
coloco as cebolas cortadas, uma colher de manteiga para dar gosto, e viva o Brasil.
Tornei um litro de sopa, a ponto de ficar cansado.
Daí em diante não parei, e a vida foi ficando boa. Repolho refogado na
manteiga, farofa, frutas, pão de mel, chá com limão, cenouras cruas, tomates, e já tirei
o atraso dos dias que passei enjoado.
O tempo continua bom, mas andei na orça apertada os três primeiros dias. Só
hoje o vento deu chance de folgar um pouco as escotas e o barco mostrou o que tinha.
Este privilégio só teria em Recife, mas, como orcei bastante, me dei este luxo, agora,
de ver o barco correr.
Como estive fraco, andei estes dias apenas com o yankee e a vela grande no 2.º
riso. Não tive coragem de pôr a genoa, ainda mais que teria que retirá-la ao
entardecer.
À noite sempre tem mais vento, além da possibilidade de surpresas, e sozinho,
mesmo amarrado, a gente sempre corre o risco de cometer um erro.
Tentando pôr a segurança em primeiro lugar, me acomodei, e estou até o
momento com área vélica reduzida.
21 de março de 1980
Há quatro dias que estou no mar. Deixei Natal, o último porto brasileiro, no dia
30 de março às 10 horas.
Fernando M. Virgem, e Godói com toda a sua família, mãe, irmã, parentes e
amigos vieram assistir à minha saída e queimaram um monte de fogos.
Fernando e Godói vieram de Salvador. Alguns dias atrás, estivera aqui Tereza,
acompanhada da mãe. Isto tudo é muito bom, a amizade, mas veio adiar apenas o
inevitável. A solidão total. É a esta que espero, ansiosamente. Vamos ver o que vai
pintar.
Os quatro dias foram monótonos. Logo ao sair de Natal e dobrar o cabo
Calcanhar, o vento reduziu e avançamos bem devagar, com vento de popa.
Apesar do vento fraco, não desfiz os risos da vela grande, nem substituí o
yankee pela genoa. Deixei o tempo correr.
Uma gaivota de rabo comprido, provavelmente cansada, tentou sentar no topo
do mastro. Uns peixes pularam do lado do barco e já me levaram a linha que vinha
arrastando. Fora isto, foram dias sem novidades.
Tentava recapitular os cálculos para navegar pelas estrelas, que há cinco anos
não fazia, e estava dando uns foras. Estes cálculos se tornaram importantes nestes
dias, quando a declinação do sol estava coincidindo com a latitude, dificultando o
cálculo da passagem meridiana, e as retas do sol da manhã eram paralelas às da tarde,
impossibilitando o cruzamento tão necessário. Isto é função do lugar e da época do
ano.
Foi assim : ontem me preparei para tomar a altura das estrelas e percebi que iam
se formando a N.E. umas nuvens. O vento era S.E., e estávamos nas proximidades do
equador.
Percebi que o céu ia cobrir e o tempo ia virar. O barômetro estava normal, tudo
bem. Consogui Canopus, e as demais estrelas foram encobertas pelas nuvens que
vinham atiçando, e começou a ventar.
Entrei, guardei o sextante, e determinei a posição interceptando a única estrela
que consegui, com a reta do sol da tarde.
Logo começou a chover. Pus a roupa de tempo e saí. A escuridão era total,
estava ofuscado pela luz do interior. Tinha saído de repente.
Amarrei-me com o cinto de segurança e fui retirar o tangon, sempre
inconveniente ao ser manobrado com muito vento. O vento rondou para N.E.
Soltei a contra escota da grande, e ela ficou meio louca. Fui caçando a escota
devagar para reduzir o tombo. Dei no leme de vento uns 20º e cambei a grande. Uma
vez conseguida a estabilidade, fui à proa, e na sombra da grande retirei o tangon.
Estando sozinho, é comum mudar o rumo para fazer as manobras, na posição
mais favorável, e depois voltar a seguir caminho. Mas foi o bastante.
Finda a manobra, começaram as rajadas de vento forte. O barco andava que era
uma beleza. Apesar da escuridão, já acostumara a vista, sentei-me junto ao leme, para
ver o barco correr.
Pensei logo o que faria caso o vento aumentasse, mas já estava com pouco pano.
Assim, foi quebrada a monotonia ao assistir, como num teatro de arena, a um
confronto de forças da natureza, e o barco, ali, sem ter sido convidado.
A luta durou pouco, logo tudo voltou ao normal, ao equilíbrio. Sentei-me agora
junto ao mastro, recostei-me nele e fui pensando na vida. O mastro é de alumínio e
tem vários furos, assim, quando sopra o vento, entoa uma flauta triste. A melancolia
tomou conta do ambiente, sentia um misto de alegria e tristeza, por ter saído bem e
assistido a um belo espetáculo.
Passou o vento e veio aquela chuva fina. Entrei e fui dormir. Sem uma só luz,
para economizar bateria, o “TRÊS MARIAS” continuava seguindo o seu rumo pelos
mares, em completa escuridão.
8 de abril de 1980
Como não podia deixar de ser, ontem foi domingo e fez um dia lindo. Sol
brilhante e vento fresco mas na dose exata. Tudo estava em tal harmonia que dava
para desconfiar.
Tornei banho no convés, ouvi música, cozinhei um feijão gostoso, mas o
coração já começava a apertar, pois era véspera do dia em que deveria avistar terra.
É muito bom se ver terra depois de 15 dias no mar, mas custa caro. Paga-se em
sono e vigília muitas contas na navegação, tudo feito duas vezes. Gasta-se muita vista
olhando o horizonte.
À. noite do dia 13 para o dia 14 já foi assim. Feitas as contas das milhas que
faltavam, com as folgas para os possíveis erros de navegação, as correntes, a deriva
do barco, a velocidade estimada a olho pois não tenho odômetro, percebi que já tinha
entrado na faixa de emergência, onde a atenção. .passa a ser dobrada.
Depois do último ponto astronômico, fazemos a estimada, quase sem tirar o olho
da bússola, pois qualquer mudança na direção do vento ou na sua intensidade o leme
de vento acompanha, e as ilhas às vezes são pequenas.
Pela previsão avistaria Tobago às 4 horas da madrugada, mas após a meia-noite,
já não pude mais dormir, nem deitar mais. Além da proximidade de terra, as rotas
dos navios se afunilavam entre Trinidad e Tobago, rota quase obrigatória para quem
vem do Atlântico Sul para a Venezuela, Canal do Panamá, México, Sul dos Estados
Unidos. Assim iria entrar no funil junto com toda esta gente, e a possibilidade de
confronto cresceu bastante. Portanto, perdi mesmo a vontade de dormir.
Aqui sou comandante, marinheiro, taifeiro, padre, juiz, prefeito, presidente.
Tudo quem decide sou eu, a bordo deste meu país flutuante, mas nem assim consigo
dormir.
Dando umas cochiladas, sentado junto ao leme, esperava a luz do farol de
Tobago que não aparecia.
Quando vi que ia clarear, e iria perder a chance de ver a luz do farol, resolvi
subir no mastro até meia altura, me segurando com todas as minhas forças, e avistei
um clarão apenas por baixo das nuvens. Estava 30º a bombordo.
Corrigi o rumo e vamos lá. Uma alegria muito grande tomou conta de mim.
Uma animação dentro do peito.
Clareou, mas só fui avistar terra às 8 da manhã, quando se dissipou a névoa, que
por um capricho escondia ilha desejada.
Resolvi pôr, então, a genoa, a maior logo, para tentar chegar em Trinidad com
luz do dia, seria a corrida contra o tempo, mas com poucas esperanças, pois ainda
faltava muito e só fui avistar Trinidad pela tardinha.
Vendo que de nada adiantava correr, pois ainda faltavam 45 milhas até a Boca
do Dragão, passagem estreita para investida noturna, resolvi reduzir o pano. Deixei
apenas a vela grande no 3.º riso e arriei o resto.
Cheguei à Boca de Uevos às 3 da manhã e os navios passavam aos montes.
Deitado no convés, pensava na vida. O vento reduziu, indo quase a zero, e o mar
acalmou. O cansaço era grande, a vontade de entrar no porto era tentadora.
Já tinha passado aqui, 10 anos atrás, a bordo do Santa Cruz. Por isso, liguei a
máquina e resolvi investir o canal, me aproximando bem devagarzinho.
A noite era muito escura, noite de lua nova, só o clarão da cidade iluminava o
céu por detrás dos montes, e dava um reflexo nas águas.
À medida que fui me aproximando, a sombra das montanhas cobriu o clarão e
resolvi voltar. Fiquei boiando ao sabor das correntes sobre um mar espelhado. A vista
acostumou e veio a vontade de tentar de novo.
Avancei devagarzinho. As Bocas do Dragão são várias, são passagens bem
estreitas entre montanhas altas e abruptas, e aquela noite parecia assustadora.
Não tinha vento, mas à medida que me aproximava, peguei umas rajadas fortes,
de vento canalizado que se afunilava por entre os montes e a correnteza fazia o mar
ferver. Tornei vergonha e resolvi voltar.
Que burrice, pensei eu, arriscar, jogar o barco nas pedras. Levei tanto tempo
fazendo, depois sonhando, para arriscar tudo em uma só cartada.
Se alguém me pedisse um conselho, jamais iria sugerir investir em um canal
destes à noite, quando ter uma ilusão ética é muito fácil.
Voltei, aquartelei o pano, regulei o leme de vento na orça, como faz um
iniciante, e o barco ficou apeado, boiava tonto.
Como o sol demorava a nascer, e os olhos ardiam, deitei no convés para
descansar a vista e pensar na vida. Dava os meus cochilos em dos-- homeopáticas.
16 de abril de 1980
O vento refrescou nos últimos dias, com isto, aumentamos o rendimento, via-se
a possibilidade de chegar em Aruba hoje à tarde. Por isso mantive, apesar de tudo, a
genoa que estava em cima desde Trinidad. Também a gente vai tomando coragem.
São aqueles passos que a gente vai dando muito cautelosamente. Com o avanço do
último dia, previu-se a chegada pela manhã.
Preocupado com a proximidade de terra, perdi o sono. Deitava, fechava os olhos
e procurava descansar, mas nada. Cansado de embolar de um lado para outro no
beliche, resolvi me levantar às 2 da manhã e não deitar mais. Também deveria avistar
o farol antes do amanhecer.
O vento continuou refrescando, e tive mesmo que arriar a genoa e substituí-la
pelo yankee, pois estava começando a ficar perigoso.
As 5 da manhã, quando a lua desapareceu por trás do horizonte, avistei o clarão
verde e branco do farol de Aruba. Também mais ao sul, o clarão da Refinaria de São
Nicolas. Desta vez a navegação foi em cima da mosca.
Confirmado o período das oclusões, e não tendo nenhuma dúvida do que se
tratava, fiz rumo para contornar a ilha pelo N.
O barco andava de vento em popa, a toda velocidade, e assim que fui dobrando
o cabo, e o vento passou a través, foi aí que pude ver a sua intensidade. Como não
tinha medidor de vento, só o sentia pelo efeito. O barco adernava muito e as velas
tremulavam. Fui forçado a apelar para o 3.º riso e foi assim que cheguei até o porto.
O vento chegou a ficar tão forte que pensei, por um instante, desistir de Aruba e
seguir em frente. Mas depois voltei a tentar. Arriei a vela de proa e investi o canal no
motor e a vela grande com 3 risos.
O canal estava balizado e tudo bem visível. Vencendo o canal me vi navegando
no interior da laguna, com águas mais tranquilas. Reduzi a marcha e fui identificando
as coisas uma por uma. Logo adiante avistei 3 iates oceânicos, mas tive que voltar ao
Cais do Porto, de onde várias pessoas me faziam um sinal para atracar.
As autoridades vieram, fizeram os papéis e levaram o meu rifle com a munição
para devolver quando fosse deixar a ilha.
Finda a burocracia, voltei ao local onde estavam os outros iates, dos quais dois
eram de bandeira francesa. Logo que fundeei, eles vieram a bordo me dar as boas
vindas e tornamos um chá. À noite fui jantar com Charles e fui me informando das
coisas.
Eles iriam para San Blás e de lá para o Panamá. No jantar fizemos mais amizade
e vimos a possibilidade de atravessar o canal juntos, levando um barco de cada vez e
voltando de trem, pois as autoridades do canal exigem um mínimo de 5 pessoas a
bordo. Um em cada dos 4 cabos, além do timoneiro. O piloto é fornecido pela
companhia do Canal do Panamá.
Assim as coisas já vão ficando mais fáceis, e a amizade traz alegria de viver.
Como estava muito cansado, resolvi me despedir e ir dormir.
1 de maio de 1980
Perguntam-me se me sinto só, mas é tão bom estar sozinho às vezes, sem
interferências. Assumir a si mesmo, curtir as suas próprias ideias, seus próprios
sonhos, longe da influência constante do grupo, longe da vida em rebanho. Curtir o
seu ego, sem censura, consciente e inconsciente, tudo enfim que possa existir dentro
de um ser humano, pouco importa o nome.
Curtir a si mesmo, como parte da natureza, o céu, o vento, o mar. As estrelas, o
balanço, sentir o poder da natureza nas rajadas de vento, conduzir o barco e juntar
com ele o seu destino.
E assim segue a vida, calma e serena, enquanto vou fazendo a cabeça.
Tenho que avançar. Passar logo este Canal do Panamá, me afastar o mais
possível de casa, navegar olhando para a frente e não olhar mais para trás.
Cortar uma a uma as raízes que ainda me restam. Soltar uma a uma as amarras
que ainda me prendem, e flutuar.
Ninguém sabe o que vai me acontecer, nem eu mesmo garanto pela minha
cabeça. O certo é que não vou tentar contê-la, não vou cortar as suas asas, nem apear
os seus pés.
Deixa andar.
6 de maio de 1980
Já estou aqui há 9 dias, e o tempo voa. Pretendo sair amanhã e seguir o meu
destino.
Foi aqui que fiz um maior número de amizades.
Dei aula de navegação e me pagaram um almoço. Cacei submarino, peguei o
meu primeiro peixe, a primeira lagosta.
Pintei o meu primeiro quadro.
Agora quero ir embora, seguir o meu destino. Ir para o Panamá, partir para o
Pacífico. De lá não se tem retorno. Só pelo outro lado.
8 de maio de 1980
Hoje estou novamente tranquilo, mas, lembro-me bem, que há uns 2 dias, de
repente, fui tomado por um sentimento de angústia, insegurança, medo. E foi aí que
me lembrei dos versos que canta Fafá de Belém:
“Me ponha de novo no colo E faça de mim um menino Não deixe que eu morra
de medo Não deixe que eu fique sozinho”.
Lembrei-me de minha Mãe.
Parei de ler e pus a vista no horizonte, olhei em todas as direções e me localizei
no mundo, no que me cercava, e perguntei a mim mesmo.
O que tens Aleixo?
Ainda há pouco, esta era a sua causa, pela qual estavas disposto a dar a vida se
preciso fosse. E que a vida de nada vale, se não tens um ideal, pelo qual estás
disposto a dar esta vida.
Tornei a olhar o horizonte, o mar, as nuvens. Senti o vento no rosto e lembrei-me
da minha infância.
Se hoje estou em movimento, ele, na realidade, não começou aqui.
Foi durante a guerra que começamos a nossa peregrinação, como verdadeiros
ciganos.
Ao deixarmos a União Soviética, exatamente a Ucrânia, ocupada por tropas
alemãs, eu tinha apenas 7 meses de nascido.
Ao partir, minha avó, mãe de minha mãe, deu a ela na hora da despedida, na
hora derradeira, pois nunca mais se viram, uma colher de estimação.
Foi com esta colher que comi toda a minha infância, e posso dizer que até os 26
anos, quando casei e saí de casa.
Agora, ao sair para esta viagem solitária ao redor do mundo, minha mãe, entre
prantos, me ofertou esta colher, que pendurei no barco, como símbolo do nosso
eterno movimento. Este movimento que está impregnado em minha alma, e que não
consegue sair mais.
Parei, sem dúvida, uns tempos para estudar, para me formar, mas logo em
seguida saí no Santa Cruz que daria a volta ao mundo.
Fracassando esta viagem, passei para o Ariels e fui até a Europa. Depois no
Concorde até a África, e finalmente agora, tento de novo dar a volta ao mundo, só
que desta vez em solitário, a bordo do “Três Marias”.
Como um alpinista, me proponho agora subir o mais alto dos montes. Caso
conclua esta viagem que considero o meu destino, o que me restará a fazer na face da
terra?
Por isso, não se tem porque olhar para trás, nem razão de ter medo. Este é o meu
próprio caminho, o caminho do meu próprio destino, o caminho do navegador
solitário.
Aqui ninguém me segura a escada. Aqui estou só.
Aqui ninguém fareja o meu rastro, e o próprio mar se encarrega de apagá-la.
Dias e dias sozinho, a contemplar o horizonte.
Só eu desconfio onde estou. Em terra ninguém sabe o meu paradeiro. Sabem que
estou no mar.
Agora estou próximo do Panamá. Do outro lado, como dizem, está o Oceano
Pacífico. Conhecê-la sempre foi o meu sonho de infância.
12 de maio de 1980
27 de maio de 1980
Deixei a ilha de Toboga às 9 horas, após um adeus aos demais barcos. Eram uns
dez, e todos já tinham se tornado conhecidos após estas 3 semanas no Panamá.
Taboga tornou-se para mim um lugar agradável.
O topo da montanha tem um bom astral. Após escalar o monte, subindo pela
estrada, avistei do outro lado as ilhas distantes, assim como o continente panamenho.
Sobre a encosta, desabitada, milhares de pelicanos faziam seus ninhos nas copas
das árvores, e a floresta, quase virgem, tinha uma beleza selvagem. As flores
tornavam o mato perfumado naturalmente.
Fui conquistado por uma planta agreste, com flores e frutos estranhos. Assim,
adiei de um dia a minha partida para poder pintá-la. Mas a véspera da saída não é um
bom dia, estamos sempre apreensivos e contraídos. Bom é quando nada se tem a
fazer.
No mato, muitas mangueiras e uma plantação de limoeiros abandonados que me
renderam uns frutos.
É curioso como procura desenvolver em mim o instinto encoberto do nativo.
Deixei um emprego de grana alta, em Salvador, para ganhar alguns frutos em Toboga,
e isto, ainda assim, me dá uma grande satisfação.
Saí no motor e icei logo a genoa, mas, assim que dobrei a ilha, o terral
desapareceu e veio um mar liso, um espelho, a calmaria.
Avanço no motor, pois geralmente lá fora tem vento, apesar de já saber, que
daqui a Galápagos, as calmarias são constantes e os ventos variáveis.
Em vez dos alísios, temos o Doldrums, região entre os alísios de N.E. e S.E.,
com pouco vento e muita calmaria.
Finalmente para o motor, apesar de ter me afastado pouco, mas uma leve brisa
faz o barco deslizar vagarosamente. O Pacífico é muito grande e não há diesel que
chegue.
Tudo parece um encanto, estou navegando no Pacífico tentando a sua travessia.
Sempre pensei que um dia, finalmente, chegaria este momento e ele chegou
antes mesmo do esperado. Talvez nem tivesse o devido tempo para analisar o que isto
pode significar. O fato é que iniciei a travessia do Pacífico, o maior dos oceanos.
O vento é fraco a ponto de Aries nem funcionar. O calor é intenso e estou
eternamente encharcado.
É grande o número de troncos de árvore, paus, tonéis, boias e outros que passam
boiando, servindo de descanso para os pássaros, ¿; carona para siris. Navios passam
sem cessar. Esta noite não vai dar para ficar às escuras, teremos que acender as luzes
de navegação.
Acabou de passar boiando uma cobra preta, da barriga amarela, e ainda passou
me olhando.
Que perigo. Se ela sobe pelo leme de vento e vem ao convés, a gente pisa nela à
noite e acabou-se o sonho. Sinto muito, mas não dá pra dar carona.
Ao chegar em Galápagos, fui informado que são serpentes marinhas e que são
venenosas.
O vento continua louco, rodando sem parar. A única solução é sair do Golfo do
Panamá, mas ainda faltam 60 milhas.
Golfinhos passam para todo lado, pulam peixes enormes, agulhões, espadartes.
Agora tenho que avançar de qualquer maneira, pois já passei muito tempo no
Panamá. Tenho que estar na Austrália antes dos ciclones, senão terei que passar 6
meses no Tahiti, pelo menos até março, para então poder prosseguir.
O meu plano é chegar na Austrália em novembro, ou no máximo no início de
dezembro.
Finalmente avançamos bem, ninguém sabe por quanto tempo. Hesitei várias
vezes em ligar o motor, quando o vento esteve ausente, mas felizmente não faltou
paciência.
No horizonte foi surgindo um dourado. É o pôr-do-sol. Pela primeira vez desejo
ansiosamente a chegada da noite.
Antes a noite significava preocupação, dormir, navios na rota, falta de
visibilidade.
Com o calor de hoje, a noite foi aguardada com muito desejo, e com ela a fresca
da noite.
5 de junho de 1980
Acordei com a chuva que se abateu com o clarear do dia. Pulei da cama para
tomar um banho, e logo o vento acalmou indo quase a zero. E novamente a calmaria.
Com o balanço, as velas iam de um lado a outro. Deu vontade de arriar tudo e
ligar o motor, ou, pelo menos, arriar as velas, aliviar o sofrimento do tecido, mas, fui
assim mesmo, ganhando de meia em meia milha.
Voltei a estudar as cartas de vento, e nada se pode fazer. As calmarias estão
previstas nesta região. A única solução é ir descendo para o sul, ir em busca dos
ventos alísios, mas eles ainda estão muito longe.
Só à tarde a brisa foi se firmando, e avançávamos a 3 nós.
Esta noite foi curioso. Avistei um farol que não estava na minha lista, e em um
lugar que não tinha terra. Era só o que faltava. Será que fui arrastado por uma
correnteza? Ele piscava de 3 em 3 segundos. Mas logo descobri, era um barco. A
noite era muito escura e não parava de relampejar. Quando nos aproximamos, era um
veleiro. Via o seu contorno contra o clarão do relâmpago.
Depois vi acender uma segunda luz, também fiz o meu sinal, e, assim nos
comunicamos em completa escuridão. Estávamos solidários, mas nunca nos vimos.
Pela manhã a brisa era tão leve que metia raiva. Desfiz os risos, pela primeira
vez desde que saí do Brasil e icei a vela toda. Agora estamos em águas livres, prestes
a sair do Golfo do Panamá.
Está tudo nublado, mas o mormaço é terrível, e sem vento, fico sempre
encharcado. Busco a todo custo uma sombra no convés. Consumo muita água,
temendo a desidratação, vou bebendo uns goles de água salgada, ou ponho um pouco
no fundo do copo e completo com água potável.
6 de junho de 1980
Hoje completamos 3 meses que deixamos Salvador. Nestes 3 meses que são
10% do tempo máximo previsto, percorremos 4.700 milhas, ou seja,
aproximadamente 15% do percurso total.
Pouco a pouco, vou me habituando com o Oceano Pacífico, e as regras de seu
jogo.
Quando o barômetro baixa, aparecem logo as nuvens, chuva fina, mas nem
sempre quer dizer vento. Isto depende também da região e da época do ano.
Quando vem o vento, ele varre as nuvens do céu. Geralmente tem mais vento
com céu limpo que com céu encoberto.
Também o mar aqui é permanentemente cruzado, com ondas vindo de todas as
direções.
Talvez seja consequência da dimensão do oceano, o maior deles. Estas ondas
viajam, percorrem o vasto oceano, provenientes dos lugares mais distantes, passando
por regiões onde o vento é outro, e o mar que se forma em decorrência disto, nada
tem a ver com o vento local.
Isto tira, sem dúvida, um pouco o conforto da viagem.
Reapareceram aqui os peixes voadores. Nos 3 primeiros dias de calmaria, não os
tinha visto, o que me faz crer que são como os aviões, decolam sempre contra o
vento. Não tendo vento eles ficam n’água, pois têm problemas na sustentação.
Fiquei também observando as aves marinhas, pois elas não voam, velejam.
Estão sempre voltadas contra o vento, no máximo pelo través, e pouco batem as asas,
tirando proveito das correntes de ar.
Durante a calmaria, estas aves parecem cansadas. Elas se deslocam ao bater
incessante das asas.
Ontem avistei um destes pássaros raros, lá no alto. Permanecia imóvel sem bater
as asas. De vez em quando as encolhia e novamente estirava, e plainava, velejava, era
um ás do voo. Era pura elegância.
O vento continua ruim, e orçamos sem parar. Por um instante parece até que
acostumamos, como se isto fosse a própria vida. Fizemos 700 milhas em 12 dias, a
pior média em toda a viagem.
As vezes parece que posso folgar um pouco as escotas, mas logo tudo volta ao
ponto de partida.
Orçar com ondas fortes é um problema. A onda quebra na proa e o seu baque
estanca o barco, jogando a proa a sota-vento, o que proporciona uma deriva
indesejável. Orçar é bem mais fácil com o mar liso, quando rende mais.
A cor do mar aqui é mais escura. Não sei se é o reflexo das nuvens, ou trata-se
de saudosismo. Só sei que gosto mais do Atlântico. Vamos ver o que acontece quando
chegarmos às ilhas bem-aventuradas, as ilhas dos mares do Sul, as ilhas da Polinésia.
Espero que o mar lá seja como nos sonhos.
17 de junho de 1980
E chegou o dia 17, e com ele todo o seu mistério, mistério que acompanha
inevitavelmente todas as vésperas de chegada.
Hoje às 7 da manhã já fiz um ponto. Ninguém sabe quando se terá a
oportunidade de fazer outro.
Às vésperas da chegada faço pontos de hora em hora, para ver o
desenvolvimento, se tudo está correndo bem, se os pontos estão saindo coerentes uns
com os outros.
Quem poderia me dizer se hoje o céu estará encoberto, ou se me permitirá a
navegação? Já basta a entrada em Colon, na chegada do Panamá, sendo que o
problema aqui se agrava, pois as ilhas são pequenas.
De um dia para o outro pode-se fazer um erro superior a 30 milhas na previsão,
principalmente quando a gente dorme à noite, e em cada rajada, o barco foge do rumo
em torno de 20º. Depois ele volta, ou a gente acorda, mas neste último dia, depois de
se determinar a última posição, o rumo será observado com rigor, e levada em conta a
deriva, as correntes fortes por estas bandas e tudo enfim.
Após escolher o lado estrategicamente mais conveniente para abordar a ilha,
ficamos com os sentidos aguçados e a vontade de prever o futuro é muito grande, mas
faltam poderes. Somos mortais comuns, mas não pecamos por tentar.
O dia começou com o recolhimento sobre o convés de um calamar pequeno e
um peixe-voador. Ontem escrevi umas linhas sobre os voadores, e eis um, logo em
seguida, sobre o convés. Provavelmente ouviu o meu canto. E eu, com pouca
sensibilidade, o fritei, o comi, em vez de lhe recitar um poema.
Agora o céu está fechado, mas como aqui tudo muda em poucas horas, temos
tempo de sobra. A paciência, nestas horas, é uma boa companheira, e precisa ser
cultivada para que dure eternamente.
18 de junho de 1980
Deixei hoje pela manhã o Porto de Baquerizo Moreno, na ilha de San Cristobal,
com destino a Fatu Hiva, Marquisas.
Assim que cheguei em Galápagos dei duas voltas na área de fundeio e deixei
cair o ferro.
Enquanto ajeitava as coisas, chegou um barco a motor com as autoridades da
marinha, o capitão do porto substituto e três marinheiros. O capitão voltaria, segundo
informaram, pela noite proveniente de Quito, Equador.
Os marinheiros manobravam mal, e deram logo uma porrada no Três Marias.
Existe uma diferença entre ser marinheiro por vocação e por obrigação.
Entraram a bordo e, muito educadamente, perguntaram a minha procedência, o
meu destino, e por aí foi.
Sabendo das dificuldades, tentei vender o meu peixe.
Falei que navegava solitário, que eu mesmo construíra o barco, e que estava
escrevendo um livro sobre os lugares de passagem, e principalmente sobre os seres
humanos que encontrava, seus hábitos, suas mentalidades, como quem diz, se for
maltratado, isto ficará gravado nos anais da história.
Falei depois do meu último trabalho, sobre as aulas na Universidade, e assim por
diante.
Eles eram tão educados, mas só estavam reconhecendo o terreno. Só no final
perguntaram se tinha permissão para vir a Galápagos, e o zarpe do último porto.
Convidaram-me para fazer uma pequena visita à capitania, mas que só poderia
ficar ali no máximo 3 dias, como a lei previa.
Como não tinha a bandeira de cortesia, me obrigaram a comprar uma feita de
pano barato, e que eles me empurraram a preço de ouro. Logo em seguida paguei
mais $US 6 para o parque nacional, e o zarpe me custaria US$ 40. Começou a
sangria.
O pior é que tinha aterrado na ilha errada, onde não se tem nada para ver.
Devido ao curto período que ficaria na ilha, procurei aproveitar o mais possível.
A cidade é bem pequena, e tem um outro vilarejo, lá no topo da montanha, com umas
50 casas, chamado Progresso. Acabou aí.
Fui olhando rapidamente as lojas, os armazéns, apressando as mercadorias, pois
teria que começar a comprar frutas e legumes. Enquanto travava conhecimento, a
cada pessoa eu perguntava o que deveria fazer para prolongar a minha estada na ilha.
Tinha que haver um jeito.
Foi o próprio preposto da imigração quem falou que uma boa solução seria, para
conhecer as ilhas, embarcar em um destes navios de turismo, o Calicuchima, por
exemplo, que acabara de chegar com 70 estudantes secundários a bordo, e que
voltaria a este mesmo porto dentro de 4 dias, antes de retornar a Guaiaquil. Teria que
falar com o Capitão do Porto que acabara de chegar.
O capitão concordou, mas para isto teria que pagar custódia da capitania, uma
soma de 40 sucres por hora.
Agradeci mas não estava em condições de fazer tal despesa. Então mandou que
viesse mais tarde e tudo se ajeitaria.
Aproveitei para ir a bordo do navio e combinar tudo, mas teria que pagar 400
sucres por 4 dias. Também teria que trazer meu saco de dormir, pois todos os beliches
estavam ocupados, com os 70 estudantes.
Na capitania, acabei acertando por 500 sucres a custódia para 4 dias. Teria que
mudar o barco de lugar, deixando-o em frente ao escritório do capitão do porto.
Lancei a âncora no lugar indicado, com 50m de corrente em 8m de
profundidade, dei máquina à ré até a âncora unhar bem, pois o barco ficaria sozinho,
sem o seu comandante.
Fechei o gás, desliguei a luz, fechei todas as válvulas, fechei todo o barco e
aproveitei as horas que me restavam para visitar a ilha. Dormiria esta noite a bordo
do navio que sairia pela madrugada.
Um ônibus me levou até Progresso, de lá, soltei o pé na estrada, tentando chegar
à cratera de um vulcão, onde se formara um lago.
É interessante como o clima vai mudando à medida que subimos, em busca do
topo do vulcão.
Junto ao mar, só temos rochas vulcânicas, lavas, pedras enormes quebradas
como montes em uma pedreira que acabou de detonar a carga de dinamite. A lava
descendo o morro, sofreu um resfriamento brusco ao encontrar o mar, partindo-se
toda. A única vegetação que cresce nesta região são os cactus, espinhos ou árvores
sem folhas. O clima é extremamente árido. Parece que tudo está morto.
Na realidade, a natureza está hibernada.
Quando cai a chuva, imediatamente as árvores se vestem de folhas, surgem mil
insetos, e uma exuberante vida, toda apressada, se estabelece nesta região. Mas a
festa dura pouco, uma questão de semanas, e logo tudo volta ao que era. A natureza
adormece, hiberna, até a próxima chuva, talvez no ano que vem.
à medida que subimos a montanha, o clima vai mudando e a vegetação torna-se
cada vez mais frequente. A vida vegetal é intensa, o terreno de uma fertilidade
incrível. A rocha vulcânica foi intemperizada com ajuda da umidade permanente
vinda das nuvens. Todo o ambiente é envolto em uma permanente garoa, o ar está no
ponto de orvalho. Andando, os cabelos dos braços se cobriram de pequeninas
gotinhas de água, que estão em todo o ar, tapando o sol e escondendo os topos das
montanhas.
Árvores frondosas crescem por todo o lado. Laranjeiras, limoeiros carregados
deixam apodrecer os frutos no chão pois aqui não temos mercado. Aproveitei para
encher as sacolas. O preço é grátis.
Pequenos passarinhos, tão mansos que quase os pego de mão, estão por toda a
parte e alguns tentam me acompanhar à medida que avanço pelo caminho. A natureza
aqui ainda não está aviltada, e os animais não desenvolveram o instinto de fuga.
Segundo os estudiosos, os sedimentos encontrados no fundo do lago, no interior
da cratera acusam 10.000 anos, a última data em que o vulcão entrou em erupção.
Como ia ficando tarde, fui descendo a montanha. A sacola estava superlotada de
frutas e deixava o corpo relaxado, que como um rio morro a baixo, descia em busca
do mar.
Como ultimamente não vinha calçando sapatos, eles me causaram uns calos
terríveis. Tinha perdido o costume.
Concluído o passeio, dirigi-me para bordo do Calicuchima, para me instalar. A
lei aqui é dura, mas aquele jeitinho brasileiro existe em toda a parte. O navio deixou o
porto às quatro da manhã e amanhecemos em Santa Cruz. O navio ficou ancorado ao
largo, e os botes levavam os turistas à terra, onde iríamos conhecer a Estação Darwin,
encarregada de estudar os animais e aves, procurando defendê-los do homem, e
ajudá-los na luta contra os animais introduzidos que alteraram o equilíbrio ecológico
da região.
Assistimos a uma conferência, onde se falou desde a formação geológica das
ilhas vulcânicas, seu clima, suas aves, seus animais e os Galápagos, as tartarugas
gigantes que moram nos altos vulcões, pesando 100kg às vezes, e que já estavam em
vias de extinção.
Além da Estação Darwin, temos o Parque Nacional e a Instituição de Defesa
Animal. Os três unidos e assessorados pelos cientistas que continuam aí os seus
estudos tentam salvar os espécimes já em vias de extinção.
Segundo consta, foi exatamente nestas ilhas que Darwin encontrou as maiores
provas que o levaram a desenvolver a teoria da evolução dos espécimes.
Logo que cheguei de barco, e só podia ficar 3 dias, fiquei com raiva. (O turista
sem barco pode ficar 3 meses). Mas, logo em seguida, a gente termina entendendo
que o trabalho aqui é sério.
A maior luta é para tentar salvar as Galápagos, que enquanto pequenas são
comidas pelos ratos, ou pelos cães introduzidos, hoje selvagens. A vegetação que lhes
serve de alimento é devastada pelas cabras, porcos e gado, que foram introduzidos na
ilha por piratas ou baleeiros há alguns séculos atrás. Estes animais se reproduziram e
hoje alteram o equilíbrio existente.
Nas grandes ilhas, onde o homem se instalou várias vezes, e depois abandonou,
os animais nativos praticamente desapareceram.
Nas pequenas ilhas, onde não houve colonização, os animais nativos estão
intactos, vivendo em perfeito equilíbrio. É comum se ver em uma área de 10m, lobos
marinhos, iguanas marinhas, iguanas terrestres e um sem número de biqueiros e
outras aves. Todos vivem em paz, sem ferir a cadeia da natureza.
A luta aqui é para tentar ajudar na sobrevivência dos animais nativos.
Caça-se as cabras que acabam com a vegetação, chegando a comer as cascas das
árvores às vezes.
Para isto vieram da Alemanha, caçadores profissionais, introduzindo novas
técnicas de caça e rifles modernos.
Nunca se deve matar o líder do rebanho, senão ele se dissolve.
O cão selvagem é o maior dos inimigos. A sua erradicação é um desafio à
inteligência humana.
Ele não pode ser visto, só se ouve o seu uivado. Com o faro aguçado, não
permite aproximação e já aprendeu a beber água salgada.
O terreno extremamente acidentado e o sem número de cavernas, deixados pela
lava que desceu morro abaixo, lhes servem de abrigo. Também os espinhos, e o
tamanho das ilhas impedem uma movimentação rápida do ser humano, a ponto de
encurralá-los.
A técnica proposta é cevá-los e depois envenená-los.
Os ratos também comem os ovos e roem as carapaças ainda moles dos
galápagos recém-nascidos. Por isso, são levados para o laboratório da Estação
Darwin, onde os galápagos ficam até completar 6 anos, quando atingem um porte de
difícil ataque, são então levados de volta ao local de origem.
Após ouvirmos a conferência, fomos a uma pequena ilha repleta de animais e
plantas nativas. O Parque Nacional marcou com piquetes os caminhos a seguir pelos
turistas, não é permitido sair deles para não pisar nas plantas, insetos ou filhotes de
animais.
Aqui tenta-se preservar ao máximo a natureza. Encontramos aqui um grande
número de lobos marinhos, este animal eternamente alegre e brincalhão. Quando o
vejo, pergunto quem foi que inventou o trabalho. Mas lembro-me logo em seguida,
que foi o trabalho que fez o homem, e o fez ficar diferente do animal comum.
Os lobos são mansos e carinhosos.
As iguanas marinhas são lagartos que atingem no máximo uns 80cm, são
mansas, e, apesar de um aspecto terrível são inofensivas.
Tiramos fotos delas a 0,5m, e depois fomos observar os pássaros.
Biqueiros comuns, biqueiros de patas azuis, gaivotas, etc.
Deixando Plaza, fomos para Baltra, onde fica a Base Naval, e em seguida para
Bucaneer Bay (baía dos piratas), na ilha James ou Santiago. Visitamos uma cratera de
vulcão, de onde se descortina uma paisagem lunar.
É. Muito bonito, mas a aridez parece agressiva ao homem. Fundeamos em um
canal entre Santiago e uma ilhota, onde antigamente ficavam escondidos os navios
piratas, deixando no topo do penhasco os marinheiros de vigília.
Contam que se pegados dormindo, os vigias eram jogados morro abaixo.
Era um lugar bem protegido, onde se juntavam 2 ou 3 piratas, e jogavam cartas
ou dados, apostando os butins que tinham conseguido. Foi sem dúvida uma bela
época, que nós perdemos.
Quando acabava o ouro, jogavam apostando as mulheres bonitas que tinham
raptado.
Os tubarões passeavam em águas rasas, e uns pinguins, que erraram o caminho,
vieram parar sobre umas pedras destas ilhas fantásticas.
Existem outras ilhas, onde as pesquisas são mais intensas, onde o turista não tem
acesso.
No dia seguinte fomos para Floriana, onde encontramos a família Wittmer,
colonos alemães, que estavam ali há 50 anos. Vendiam biscoito e vinho de laranja.
Comprei também o livro escrito por Margaret Wittmer, que o autografou gentilmente,
onde ela descreve os primeiros anos da colonização, a luta que se travou pela posse
da terra, que não foi fácil.
Visitamos também o primeiro Barril de Correio, onde piratas ou baleeiros
colocavam as suas cartas. Outros que vinham, caso as cartas coincidissem com o seu
destino, as levavam para as partes mais diversas do mundo. Assim a carta levava, às
vezes, um ano para chegar ao seu destino, após sobreviver a ventos e tempestades,
ataque de piratas e outros imprevistos. Às vezes a viagem da carta tinha mais a contar
que as próprias linhas que vinham nelas escritas.
No último dia fomos para a ilha Hood, onde além de lobos, iguanas,
encontramos biqueiros, gaivotas e um grande número de albatrozes, que vêm aqui
fazer os seus ninhos.
O acasalamento entre estas aves gigantes é mais conhecido como a dança dos
albatrozes. Quando em pé, batem bico contra bico, dançando e tentando se entender.
Dizem os nativos que o amor entre os lobos marinhos é um mar de afetividade.
Fazem um inteiro preparo que às vezes dura horas e superam as carícias dos
humanos.
Finalmente voltamos à noite para San Cristobal. Já estava ansioso para ver o
Três Marias, fiquei satisfeito ao pisar a bordo, certificar-me de que tudo estava bem.
Na manhã seguinte, o capitão do porto mandou me chamar. Disse que já tinha
abusado bastante, que tinha que ir imediatamente.
Ao tomar conhecimento do fato, o capitão do Calicuchima foi pedir por mim,
assim pude dormir uma noite tranquila e fazer todas as provisões.
Saí bem cedo. Meu plano era passar por entre as ilhas ainda com a luz do dia.
Passei por Floriana, a última ilha ao Sul, às quatro da tarde, e tive dificuldade de tirar
os olhos de terra, quando, ao pôr do sol, ela ia se perdendo dissolvida na bruma
encarnada do crepúsculo.
Sabia que tão cedo não veria terra.
29 de junho de 1980
Passaram-se quatro dias e quatro noites, já fizemos 600 milhas. Desde San
Cristobal estou com a genoa em cima, tentando avançar o máximo.
O clima mudou um pouco, ficou mais quente, as nuvens vêm acompanhadas de
rajadas de vento, como na nossa região. Já é o alísio de S.E. que sopra firme.
Enquanto o barco avança mar adentro, vou lembrando de Galápagos,
principalmente dos estudantes do Calicuchima, jovens de 17 a 19 anos, às vésperas da
universidade.
E sem dúvida uma bela idade, a idade da descoberta, hora de avaliar o que o
mundo nos oferece, hora também de contestar o prato feito que nos espera lá fora.
Eu era o mais velho do grupo, o mais surrado pela vida, o mais vivido, estava ali
sempre cercado pelos estudantes que queriam saber porque escolhi navegar em
solitário, meus pensamentos a respeito do mundo, da humanidade, da política, etc…
Terminei falando bastante sobre a vida em geral. Tentei dizer-lhes o que gostaria
de ter ouvido nos meus 17 anos.
Muito jovens, puros, ingênuos às vezes, sempre ávidos de aprender, eles
prendem-se muito à verdade, à razão, como se elas fossem coisas palpáveis. Sofrem
muito a influência dos ensinamentos que lhes são transmitidos no colégio de jesuítas,
em Quito.
Foi duro ter que dizer-lhes que aos meus 37 anos, descobri que a verdade não
existe, nem tampouco a razão.
Não percam tempo buscando-as, pois o que existe realmente é a verdade e a
razão de cada um. Cada um tem a sua própria verdade e a sua própria razão, e que
esta análise poderia, sem dúvida, ser aplicada, também, às minhas próprias palavras.
O que acabo de lhes dizer, nada mais é do que a minha verdade.
Cada um deve lutar para defender a sua verdade e a sua razão, mas esta luta não
deve ser levada às últimas consequências, pois, dentro de 10 anos, teremos novas
ideias, talvez até nos envergonhemos das atuais, mas ninguém poderá ressuscitar os
mortos, aqueles que em nome dela morreram.
A verdade, meus jovens, é um pouco como a beleza, não é universal.
Perguntaram sobre tanta coisa, queriam saber sobre tóxicos, sobre o Brasil.
Disse que tinha alguns amigos que consumiam uma razoável quantidade de
tóxicos, mas a maior incidência encontrei entre os americanos, talvez por possuírem o
dinheiro para adquiri-los.
Quando a gente é jovem, nos ensinam que quem fuma marijuana é um viciado.
Também já partilhei desta opinião, mas, hoje, considero o problema muito mais
complexo.
Os motivos, na realidade, podem ser os mais diversos.
Os adolescentes fumam para agredir os pais ou a sociedade.
Entre adultos encontrei médicos, engenheiros, gente inclusive bem situada na
sociedade, fumando.
A coisa mudou muito desde que Castañeda escreveu o seu 1.º livro, A Erva do
Diabo, uma quase apologia à droga. O interessante é que nos seus últimos livros ele
contesta seus próprios pensamentos, os quais classifica como próprios de um
iniciante, desnecessários a uma mente evoluída, capaz de utilizar o poder da vontade.
Entre adultos, as pessoas fumam maconha na tentativa de atingirem um poder.
Ver algo mais do que se pode ver a olho nu. Seria como empunhar um binóculo, um
telescópio. São geralmente pessoas que não aceitam o mundo como ele é e querem de
qualquer forma dar um passo à frente, ver além do horizonte.
Eles são de certa forma parecidos com as pessoas que tentam ganhar muito
dinheiro para, através dele, atingir um certo poder. Apesar de haver certa semelhança,
existem nesta comparação, também, muitas diferenças.
Conheci uma pessoa que, viajando de barco com a família, me revelou, após nos
tornarmos muito amigos e conversarmos muito, estar juntando um punhado de
sementes para, em um atol perdido do Pacifico, fazer uma grande plantação.
Ele pretende fumar bastante, na tentativa de dar um passo à frente na percepção,
transcender por assim dizer. Perguntei-lhe se não tinha medo de entrar em órbita e
não conseguir voltar.
Revelou-me que, após fumar o que já fumou, isto torna-se praticamente
impossível. Aliás, isto só acontece com quem está brincando com coisas sérias. E isto
é poder, é coisa muito séria.
Conheço outros que fumam para relaxar, para esquecer, como um relaxante,
adiando assim os problemas do dia a dia, sem no entanto resolvê-los.
Como veem, as razões podem ser as mais diversas possíveis, e torna-se difícil
emitir um juízo de valor.
Ora me lembro dos moradores das ilhas. Lembro-me perfeitamente de seu povo.
Isolado do mundo, vivendo nestas ilhas vulcânicas, o seu interesse pelos visitantes
era muito grande.
Aproveitava o último dia, fazendo as provisões. Após tudo pronto, resolvi andar,
perambulando pelas ruas, pois pisar em terra firme seria impossível nas próximas
semanas. E assim tornei a passar em frente à loja, onde, logo no primeiro dia,
comprara um pulôver de lá.
O dono da loja, reconhecendo-me logo, voltou a conversar sobre o mar, viagens,
etc., mas a moça da loja não me reconheceu.
Ela era uma menina linda, com uma camiseta negra vestida em cima da pele,
seios muito sugestivos.
Começamos a conversar.
Eu sou aquele rapaz louro, do iate, que comprou aqui o pulôver que você foi
buscar no depósito. Aliás, foi você mesma quem escolheu a cor azul-escura, que
combinaria melhor com os meus cabelos. Lembra-se? Paguei em dólares, etc.
Ela não me ter reconhecido, em um lugar onde as novidades são raras, era
estranho. Caso tivesse mais tempo, tentaria matar a charada, mas como já ia embora
na manhã do dia seguinte, desisti.
A ilha era pequena, e o sexo muito reprimido. Aqui todo mundo termina sabendo
de todas as coisas.
O amor vai do namoro ao noivado e talvez ao casamento.
O amor roubado é raro e extremamente difícil.
Ainda há pouco, a rapaziada da ilha me perguntou como era que viajava sem
mulher.
-Bem, aqui, nesta ilha pequena, a coisa torna-se difícil, mas nos iates clubes,
sempre acontece uma identificação, e a gente termina se arranjando.
É, disse um deles, aqui não tem, todas são comprometidas.
Achei que ele não podia afirmar algo, com tanta certeza.
Despedi-me e fui andando.
Lembro-me que saí da loja, e já ia escurecer. Resolvi jantar cedo, para ganhar
tempo. Por isso atravessei a rua, fui para um restaurante, uma casinha isolada que
ficava bem na beira da praia.
A comida ali era boa e barata.
Jantei, e quando já ia terminando de pagar, a moça da loja apareceu, perguntou
por algo que não tinha, saímos juntos.
Cumprimentei-a, apertando as suas mãos macias, senti que ela estava agitada.
Na praça, olhares de pessoas desocupadas acompanhavam os nossos movimentos.
Perguntei-lhe aonde ela ia, então me falou para esperá-la, ali na praia, que logo
voltaria.
Foi grande o meu espanto, logo vi que não tinha me enganado ao levantar
suspeita de não me ter reconhecido.
Sentei-me em um caíque emborcado, que largaram à beira da praia. De lá, via a
loja que fechava as suas portas.
Tinha acabado de escurecer, e acenderam as luzes da cidade.
Ela atravessou a rua correndo, sumiu. Depois veio caminhando pela praia, jogou
um bilhete e disse:
-“Te espero no armazém, pela manhã.”
Concluí, logo, que o patrão provavelmente não estaria lá pela manhã. Era o
único lugar que poderíamos nos ver sem suspeitas, disfarçando-me em cliente.
Tive vontade de correr atrás dela, e explicar que amanhã já não estaria mais
aqui, mas deixei pra lá.
Como eu gostaria de tomá-la nos meus braços. Corresponder-lhe no amor, mas
as leis equatorianas não permitiam que adiasse a minha partida.
Tornei o caíque e fui para bordo, mas fui arrasado. Agora, que já passaram uns
dias, o mar vai lavando da memória as lembranças das ilhas.
30 de junho de 1980
Ultimo dia do mês. Fizemos hoje apenas 135 milhas. O tempo é bom,
intercalado com nuvens trazendo chuviscos e bastante vento. Para manter o ritmo,
mantenho a genoa, a maior delas, em cima desde Galápagos, o que vem me dando
uma média geral de 5 a 6 nós.
Cada nuvem que se aproxima, me deixa em guarda, na expectativa de tirar ou
não a genoa.
Caso se resolva atender o vento, mantendo a cada instante a área vélica ideal,
teríamos que fazer um mínimo de dez manobras por dia.
A noite a coisa piora ainda mais. A preocupação com as rajadas aumenta, mas,
como aqui as distâncias são grandes, não se tem previsão de mau tempo. Vou
aproveitando. O perigo é quebrar algo ou rasgar a vela.
Se o vento aumenta de intensidade reduzo a vela, vou numa boa, mas, até fazê-
la, fico olhando o mastro, os estais, o pano, etc.
Como é bonito ver um barco correr, como é perigoso também. Não sei o que
faço. Enquanto aguardo na indecisão, a nuvem passa e cinco minutos depois já
passou a rajada, e a viagem prossegue, tranquila.
Passei estes dias todos comendo peixe. Frito no alho e sal, e ainda umas cebolas,
depois envolto em farinha do reino. Sempre salgo uma parte e ponho para secar.
Acaba se transformando em bacalhau, de que a gente vai tirando as lasquinhas e
comendo cru.
Hoje, pela manhã, estava distraído no cockpit, quando ouvi um ronco, um
estrondo. Virei-me rapidamente, procurando ver qual era a entidade que se
apresentava, e só vi, há uns 40m, o dorso negro de uma baleia a mergulhar. Sumiu e
só foi aparecer já bem distante. Só vi o seu jato de água e vapor a subir.
Logo em seguida avistei uma tartaruga boiando e um cardume de golfinhos
passou dando saltos.
Deve ser festa no mar. É pena, mas eu não fui convidado.
2 de julho de 1980
Hoje é dois de julho, dia de festa na Bahia, mas aqui só temos água de todos os
lados.
Fui dormir tarde, fiquei ouvindo música e vendo o barco correr. Era um vento de
popa e o barco rolava de um lado para o outro.
Quando fui me deitar, o vento aumentou ainda mais, e com o balanço, deslisava,
escorregando sobre o lençol, apesar de escorar os cotovelos, os joelhos, etc.
Já passava de meia-noite, mas não conseguia pegar no sono, e dava impressão
de que o barco cada vez andava mais.
Numa das vezes que levantei, avistei uma série de gaivotas, aliás raríssimo por
aqui, esvoaçando o barco e dando os seus gritos. Ora estavam na altura das águas, ora
subiam e via o seu contraste contra o véu de nuvens iluminadas pela lua.
Pareciam loucas. Não sabia o que era, algum presságio.
Gostaria de entendê-las.
No horizonte se formavam nuvens mais escuras, fiquei atento para ver se o
tempo iria mudar.
As nuvens passaram, o tempo ficou no mesmo. A genoa continua no alto desde
que saímos.
Um navio passa no horizonte, com um mundo de luz. Deve ser um navio de
passageiros. É o primeiro sinal de vida depois que se perdeu na bruma a ilha de
Floriana.
Como tinha dormido pouco à noite, permaneci deitado após o amanhecer.
Depois levantei-me, fiz o almoço, a sesta, e me lancei na leitura, como faço todos os
dias.
Além da minha viagem de barco, faço uma viagem paralela em outro mundo,
através dos livros, e outras tantas através dos sonhos e pensamentos. Leio geralmente
até antes do pôr do sol.
Assisto todos os dias religiosamente ao pôr do sol. Considero quase uma
necessidade ver o dia transformar-se em noite.
Assim, além da beleza da transformação que já justificaria ver o espetáculo, a
noite se torna amiga e conhecida, pois a vi nascer do dia que termina.
Isto vem se tornando uma praxe e assim a noite não me é estranha, pois conheço
as suas origens, as suas raízes.
Depois vêm surgindo as estrelas e fico a apreciar a metamorfose por horas a fio.
Antes de dormir, ouço o rádio, com as notícias internacionais. Está se tornando
cada vez mais difícil ouvir a Rádio Nacional, a única que chega aqui.
Ouço também Londres, Voice of America, Rádio Moscou, Rádio França
Internacional. É incrível escutar o que dizem, cada um diz uma coisa diferente.
Enquanto aqui no mar estamos em uma completa paz, eles fazem entre si uma
guerra ideológica, se acusam reciprocamente, tentam a todo custo obter o domínio
sobre o mundo. A sede de poder é muito grande, eles são escravos desta sede.
Para finalizar ouço música popular brasileira e vou dormir com o samba na
mente, o samba e as coisas boas da nossa terra.
3 de julho de 1980
Hoje é aniversário da minha filhinha mais velha, Marúcia. Ela completa hoje 10
anos. Nem posso mandar-lhe um telegrama, como fiz no aniversário de Mariana,
quando estava em Colon.
O mar acalmou um pouco, mas está sempre cruzado. O vento reduziu, icei
novamente a vela grande.
Os peixes voadores aqui andam aos cardumes, quando os encontro, saem
voando que nem gafanhotos.
A noite eles caem sobre o convés, eu os frito pela manhã.
Quando amanhece, a primeira coisa que faço é ir recolhê-los.
Faltam 1200 milhas até Fatu Hiva, agora estudo a 2.' possibilidade. Em vez de
voltar via Cape Town, África do Sul, que já conheço, tento pegar o Mar Vermelho, o
Canal de Suez, voltar via Europa. Esta possibilidade é remota, pois o Mar Vermelho é
muito perigoso para um homem só. Muitos arrecifes pelos lados, muito tráfego de
navios pelo centro. Navios vindos nos dois sentidos. Seria muito difícil para dormir, e
deixar o barco ao acaso.
Também o vento é contra em um grande trecho, sujeito a tempestade de areia.
Como ainda temos tanto mar pela frente, daqui pra lá a gente resolve.
11 de julho de 1980
Amanheceu, o vento espantou as nuvens, mas ele não cedeu, continuou duro. De
vez em quando, uma onda se precipitava sobre o convés, e o ponto astronômico,
apesar do sol visível, tornava-se muito difícil por causa do balanço, e do horizonte
indefinido. Em vez da linha do horizonte tínhamos verdadeiras montanhas formadas
pelos vagalhões. Os tombos do mar arriscavam quebrar o sextante, e seus espelhos
funcionavam mal, sempre molhados. Com muito esforço fiz o ponto. Apesar de não
estar chegando, navegador sente uma necessidade constante de saber aonde está,
mesmo se está longe da terra.
Resolvi fazer uma sopa de aspargos. Nestes dias, procura fazer sempre algo que
gosto mais. A receita é fácil.
Uma lata de aspargos, uma de creme de leite, um pouco de aveia para engrossar.
Ferver durante 5 minutos, e pronto.
Faltam 480 milhas. Espero que o mar se ajeite antes da gente chegar. O
barômetro não tem vergonha, continua em alta, nem tomou conhecimento dos fatos.
Ainda estes dias, estava pensando, não vou demorar muito pelas ilhas, pois
tenho que voltar ao Brasil e dar logo esta mensagem aos “jovens brasileiros”, de que
isto aqui é lindo e de que é preciso navegar.
No Brasil, com uma tão vasta extensão da costa marítima, o esporte à vela é
pouco difundido, são pouquíssimos os que o praticam. Daí a razão da minha
mensagem, mas faltava acrescentar, “venham, mas venham com raça”.
Mas não tive outro jeito. Antes que escureça, e a gente fique se batendo no
escuro, o yankee desce, o tormentim sobe. É a primeira vez que o Três Marias veste
esta camisa.
Pareceu tão pequeno, e capaz de suportar ventos muito mais fortes, aliás
felizmente.
É de pano grosso, armado com cabo de aço e uma costura impecável. Ele me foi
ofertado gentilmente por Dick Johnson, comandante do Ingrid, quando passou por
Salvador.
É realmente bom ter um tormentim. Aliás, indispensável.
Com vento de través, avançamos com 2 ou 3 nós, e está dando provavelmente
uma deriva considerável.
Segundo a rádio de Tahiti, nas Marquisas, o vento é sul, com 20 a 30 nós, e mar
agitado. Tudo bem.
Sintonizo a Rádio Nacional, o programa Brasil Saudade, me lembrei de minha
Mãe.
14 de julho de 1980
Durante a madrugada o vento rondou ficando mais brando pela manhã. Mas já
não confio mais nele. Vou aguardar um pouco mais para ver as suas intensões.
As nuvens vão prejudicando a navegação e estamos a apenas 380 milhas das
Marquisas.
Depois de tantas mudanças, quem quiser que preveja o tempo, eu é que não me
arrisco.
Com a instabilidade, estudei tudo de novo, inclusive as alternativas caso ele se
complique. Aos poucos vou me adaptando aos novos parâmetros deste oceano, mas
leva tempo.
O vento melhora um pouco, mas resolvo ficar com pouco pano até recuperar o
sono atrasado, só depois iço a vela grande.
15 de julho de 1980
Tempo bom.
Acordei antes de amanhecer, icei a genoa. Novamente estamos contando as
milhas que faltam. E um vício.
Fiz a manobra e voltei a dormir, aproveitando a fresca da manhã. P, sem dúvida,
a melhor hora para dormir.
Quero ver se chegando às Marquisas tiro uma noite para dormir direito, mas,
talvez nem consiga. Acordar já virou rotina, mas o certo é que preciso de uma
descansada. Um repouso merecido, para quem atravessou sozinho o Oceano Pacífico.
O problema do solitário é que ele está eternamente de quarto, amanhã já
completo quatro meses que deixei Salvador, já tenho hoje 67 dias de mar, sempre de
quarto, sempre pronto, sempre dormindo acordado.
Qualquer ruído estranho, um balanço diferente, qualquer suspeita, a gente
levanta, olha as coisas lá fora, confere o rumo. Mas a gente nunca desliga.
17 de julho de 1980
Passaram-se mais dois dias e completamos 22 dias de mar. Pela manhã, faltavam
75 milhas até Fatu Hiva.
As chances de avistar a ilha, ainda com luz do dia são remotas, principalmente
porque não fazemos rumo direto. De popa não dá no rumo, nem pela aleta. E aquela
brecha que não dá para um nem para o outro.
Agora o céu está encoberto, não se pode fazer a navegação. Aguardemos.
A bombordo temos nuvens meio escuras, mas nada podemos fazer,
principalmente porque estamos com todo o pano, em cima.
A nuvem de bombordo passou, agora temos outra pela popa.
Mar calmo, vento suave. O Três Marias está fazendo 130 milhas diárias.
Céu estrelado, mar azul, dias maravilhosos. Exatamente tudo aquilo que vou
precisar daqui a dois dias, quando deveremos estar às portas do arquipélago dos
Tuamotus.
Os atóis são pequeninas ilhas, que às vezes até já submergiram, deixando em
volta de si um enorme anel de coral, formando uma grande laguna ligada ao mar por
pequenas entradas, por onde toda a água se precipita nas enchentes ou desce em louca
disparada nas vazantes.
A entrada noturna é impraticável, mas, mesmo de dia, o ideal é entrar na estofa,
na parada da maré, quando a correnteza, que varia de 4 a 8 nós, pára por uma meia
hora, para inverter o seu sentido.
Fiz logo um estudo múltiplo, para Manihi e para Rangiroa, para entrar no atol
mais próximo no momento mais adequado.
A hora da parada da maré se dá em função da posição da lua, que no momento é
de quarto minguante.
O Sailing Directions americano diz o seguinte a respeito das marés nesta região.
Gorre te de maré: Na maioria das entradas para as lagunas, nestes atóis, existe
uma forte correnteza de maré que se apresenta e se inverte em intervalos de
aproximadamente 6 horas. A altura da maré é de aproximadamente 2 pés (0,60m).
O tempo, em condições normais, quando a corrente muda de direção, pode ser
estabelecido da seguinte forma: Três ou quatro horas após o nascer da lua, água
parada. Quatro horas após o nascer da lua, começa a corrente para dentro.
Uma hora antes do pôr do sol, a corrente para fora começa.
Três ou quatro horas após o pôr do sol, água parada.
Uma hora antes da passagem da lua pelo meridiano inferior, começa a corrente
para dentro.
Uma hora antes do nascer da lua, água parada por pouco tempo.
Como pode-se ver, não basta chegar lá de dia. Tem que se chegar lá de dia e na
hora certa de entrar.
Aproximar-se das ilhas à noite é muito perigoso, pois só se tornam visíveis a
meia milha, ou menos. Num caso de chuva ou aguaceiro, a pessoa corre sério risco de
não saber para onde ir, a fim de evitar o perigo, e são muitos atóis, uns quase pegados
nos outros.
Se o vento se mantiver, a chegada se dará quando a lua se põe, às 11 horas da
manhã, e 3 horas depois teremos água parada. Quatro horas depois a corrente começa
para dentro.
Entretanto, na enchente a correnteza nas bocas de entrada é menor, pois as ondas
jogam água para dentro, quando a arrebentação consegue passar por cima dos
arrecifes. Na saída a correnteza é maior, pois toda a água tem que passar pelas bocas
estreitas das pequenas falhas no arrecife que forma a laguna.
Aproximar-se dos atóis à noite é muito perigoso, portanto nosso plano é chegar
lá às 2 horas da tarde.
Os atóis são tão baixinhos que vê-los à noite é quase impossível. Teremos que
fazer navegação à noite, pelas estrelas, utilizando o horizonte iluminado pela luz da
lua.
Para utilizar este processo, treinei em Nuku Hiva, enquanto ancorado no porto e
conhecendo perfeitamente a minha posição, apenas para aferir o olho, para saber se
estou conseguindo ver o horizonte iluminado pela lua. Chegou-se à conclusão que,
com os meus olhos, precisa-se sempre adicionar à leitura do sextante 5 minutos e
pronto. Este processo é descrito com perfeição no livro de Bernard Moitessier.
Feito o estudo, de posse de todos os dados, tomo coragem, e o Três Marias
avança rumo a Tuamotus, um arquipélago formado por atóis, que nem cavernas
lunares arrodeadas de água, com muita correntada e pouca visibilidade. A expectativa
é grande.
O tempo está lindo, mas ainda faltam 2 dias para chegar, e prever o futuro em
meteorologia é algo muito difícil.
Aproveito para ouvir o rádio e descansar. A gente tem que estar sempre bem
descansado e tranquilo.
Ontem caiu um peixe na linha, virou peixe-frito, salgando sempre uma parte.
Hoje, por ser o último dia do mês, fiz o resumo.
Total de dias 136 dias no mar 72 dias em terra
64 milhas navegadas 8.390 média diária no mar 116 milhas/dia média global
(terra e mar) 62 humilhas/dia.
A média baixou muito após o trecho Panamá-Galápagos.
Como resultado destes dias todos a bordo, sinto a circulação ficar um pouco
deficiente, por falta de exercícios. Aqui a gente quase não anda. Fica-se mais em pé,
na descida da escotilha, ou sentado.
Lembro-me que ao chegar em Fatu Hiva e dar uma longa caminhada senti
cãibras nas pernas, mas, no outro dia, já estava bom.
1 de agosto de 1980
São quatro da manhã. Andei dando umas cochiladas até as 3 h e então levantei-
me definitivamente.
Tempo bom. A lua bem fininha acaba de nascer, mas a sua luz é mínima.
Navegamos só com a vela grande no 3.º riso. Arriei o yankee às 2 da manhã, para
reduzir ainda mais a carreira. Hoje não temos passe de atol a vencer, mas apenas
passar entre os atóis com a luz do dia.
As cinco da manhã começaram a surgir nuvens e chuviscos. Receei que a
visibilidade pudesse ficar prejudicada, mas logo passou.
Com as primeiras luzes, fiz o ponto pelas estrelas, fui tirar um cochilo após
corrigir o rumo. As nove, quando acordei, o atol já estava bem visível. É uma
dormida sacrificada, com uma preocupação latente. Qualquer descuido, basta não
acordar, está tudo perdido.
Aratua já vai ficando pra trás. Tahiti está a 205 milhas. Ainda temos Kankura
por bombordo, e Makatea por boreste, mas a 30 milhas da rota. Tudo bem. Agora vou
dormir mais um pouco, após ter escutado bastante a rádio de Tahiti.
lìormi até as 3 h da tarde sem escala, e acordei com um dia de verão belíssimo.
Depois da tensão nervosa, devido à passagem entre os atóis, o que quero é
descanso, relax total. Ainda estou com o 3.º riso na grande e o yankee. Não quero
saber de carreira. Hoje vai ser dia de muito som, muito chá.
Amanhã, começaremos uma nova regata, visando a chegada em Papeete.
Rita Lee, com Mania de Você, ocupa o 9.º lugar na parada de sucessos de Tahiti,
São os brasileiros que estão chegando.
7 de agosto de 1980
Esta noite voltei a pensar na vida, assim só fui dormir bem tarde. Apesar de estar
em águas livres, me levantei uma dezena de vezes. Como se pode ver, a
desmobilização não é imediata.
Ao amanhecer fiz o ponto pelas estrelas, sem preparo do céu. Elas já são todas
minhas conhecidas.
O céu sem uma nuvem, o mar manso, uma brisa embala o barco na maior paz do
mundo.
Adoro estes momentos, que são realmente raros em terra.
Há muita gente, muitos problemas.
Em Manihi, a turma do “Pura Vida” me perguntou porque me demorava tão
pouco em terra. Disse que não sabia, mas talvez porque gostasse de navegar.
Sempre projeto parar para descansar. Se planejo ficar uma semana, com 3 ou 4
dias me dá uma vontade de voltar ao mar, assim sempre saio antes do dia previsto.
Faltam 140 milhas até Papeete. Avançamos pouco esta noite, mas descansamos
muito. Arriei o yankee e icei a genoa. Papeete nos espera.
A rádio de Tahiti leva ao ar uma boa programação; de repente, interrompe para
dar notícias.
“No Caribe o ciclone Alen já causou 68 mortes. Ontem a rádio de Havana
colocara em prontidão aquela região; já hoje anuncia as mortes e a evacuação no
Golfo do México do pessoal que trabalha nas plataformas de petróleo off-shore”.
Isto vem reforçar a necessidade de escolher bem as épocas de passagem pelas
diversas regiões do globo terrestre.
Estudar é fácil, mas passar sempre na melhor época requer tempo. Só mesmo
dando a volta ao mundo em 3 ou 4 anos. Parando para esperar as boas épocas, isto,
entre outras coisas, requer recursos, ou parar para trabalhar.
Apesar de fazer um dia belíssimo, no pôr do sol vieram umas nuvens e só
consegui pegar 2 estrelas, e mesmo assim com o horizonte mascarado.
Resultado, retas de posição paralelas, afastadas entre si de 20 milhas.
Qual das duas estaria certa?
Nenhuma, provavelmente. Pouca precisão, isto me levou a uma noite nervosa.
Apesar de ter feito retas de posição pelo sol às 11, 13, 15, 17 e 18 horas, isto só
me deu uma ideia da longitude, acusou uma forte correnteza indo para NW, indo com
o vento. E é justamente na N de Tahiti que existe uma pequena ilha, inclusive sem
nome na minha carta, que passou a ser um obstáculo no nosso rumo.
Dormi acordando de hora em hora, depois de meia em meia hora, até a meia-
noite. E então vi o clarão do farol por baixo das nuvens que se formavam no
horizonte. Com isto corrigi o rumo e o obstáculo está agora fora de perigo.
Como é bom se ter um farol de longo alcance. Vou tomar um chá e descansar.
Com certeza estamos a umas 30 milhas da costa.
O despertador tocou, mas não me lembro de ter ouvido. É geralmente no fim da
manhã que dá mais sono, e deitar é sempre um perigo. Foi uma falha.
Só acordei às sete, e ao pular da cama preocupado a primeira impressão foi de
ter passado do ponto, já estar a W de Morea. Poderia estar em cima das pedras.
Estava tonto. Tinha acabado de acordar.
Tirei os alinhamentos e descobri que estava muito bem. Estava a NE e não a NW
da ilha. Morea apareceu logo com a melhora da luz, mas dormir quando tão perto de
terra não deixou de ser uma falha.
Fui conferir o despertador, a corda estava frouxa. Ele tinha cumprido o seu
papel, mas eu não acordei.
Ao avistar o farol, desliguei a minha preocupação, o meu relógio interno.
Conclusão: acordo melhor sem relógio, às vezes.
Vamos nos aproximando, e a ilha de cinza vai se tornando esverdeada. Com
2500m de altitude, os picos da ilha são imponentes e majestosos.
O vento é brando. Avançamos devagar mas no rumo certo. Devemos estar a
umas 20 milhas do porto.
Aos poucos nos aproximamos, e a alegria é grande. Aproveito para tirar o sal,
arrumar o barco, preparar os cabos de amarração e as defensas.
Estamos através de Venus Point, são 11h 30 m. Acabei de almoçar e o vento
refresca. Creio ser influência das montanhas.
Faltam umas 5 milhas para o “Passe do Papeete”.
Um navio acaba de entrar, 3 barcos pequenos se divertem velejando. A brisa está
ótima, o sol brilhante, aquele dia de verão.
Vamos contornando a ilha e o vento veio de popa. A genoa começou a murchar e
foi para dentro do saco. E tempo de desamarrar a âncora, conferir se a corrente não
está embaraçada. Estamos perto.
Uma escuna destas que servem às ilhas acaba de me passar e entra no “Rade de
Papeete”, entre as boias vermelha e preta, uma certeza a mais.
Solto a contra escota, e deixo a retranca livre para manobrar. Ponho o ecossonda
em funcionamento, vou dando a volta devagarzinho. O motor em ponto morto.
O rumo de entrada é 140 mg. O pano bate, eu casso a escota. Estamos entrando
na pura vela. Finalmente também no motor.
Continuo rumando para bombordo, o vento dá na proa e arrio a vela.
Uma surpresa, dois pequenos rasgões na vela. Como aconteceu isto?
Resolvo passear, dar várias voltas, conhecer todo o lugar antes de fundear, para
escolher, dentro do possível, o melhor lugar.
Finalmente, a âncora toca o fundo. Manobro, vou folgando a corrente e passo
dois cabos de popa no cais.
Ajeito o barco e salto em terra firme. Só me veio uma idéia.
“Já não morro sem ver Tahiti”.
8. DO WAHITI À AUSTRÁLIA
21 de agosto de 1980
Completamos hoje 3 dias de mar. Saímos com o tempo nublado, todo armado,
com a vela grande, no 3º riso, como entramos, e o yankee. Nunca o vento do porto é o
mesmo lá fora, portanto não adianta pressa, deixa ver o que vem por aí.
O tempo estava tão armado que não ouguei aumentar a área vélica; também
estava envolto em contemplação.
O vento foi rondando de S para SE, E, NE e finalmente
N. Avançávamos com média de 5 nós.
Já estamos pela latitude 24ºS e o Pacífico por estas bandas me é totalmente
desconhecido. Por isso avanço com cautela, procurando observá-la.
Nosso destino, Noumea, Nova Caledônia, e que fica a 2000 milhas. Teremos que
descer bastante, lá pela latitude de 25ºS, para passar por fora dos arrecifes do Tonga
Islands, e depois retornar à latitude 21ºS, Nova Caledônia.
Já nos afastamos bastante e a rádio de Rarotonga chega aqui tão rouca que não
se ouve mais nada.
Vida nova, não adianta se olhar pra trás. Pra frente é que se anda
Com esta largada para Nova Caledônia, devido. à aproximação da época dos
ciclones no norte da Austrália, vou deixar de ver Tonga, Somoa, Fiji e outros grupos
de ilhas, mas são as opções. Se paro, tenho que ficar por aqui. Se quero atravessar,
tenho que seguir.
Para um navegador solitário, creio até estar passeando bastante. Conheci outros
que levam direto face às dificuldades nas entradas dos portos e as aproximações de
terra.
Finalmente, tem que se decidir se queremos fazer circunavegação ou
vagabundear por aí. Caso se conclua esta viagem, poderei começar outra mais
devagar.
Depois de perder várias linhas, pois os peixes aqui não respeitam nada, terminei
embarcando uma tuna. Assim, ficou assegurada a proteína fresca a bordo. Um pouco
de pão, frutas e verduras e está pronta a refeição. Peixe 3 vezes ao dia, variando
apenas o acompanhamento.
6 de setembro de 1980
A noite esteve armada e o tempo incerto. O vento reduziu e veio aquela chuva
fina, com neblina, a ponto de se ver quase nada. Nem é possível ver o céu. É como se
estivéssemos debaixo de uma campânula de vidro fosco.
Tudo é mistério. Sozinho no meio do mar, boiando sem vento nem visibilidade.
O que vem aí?
Depois da última calmaria, veio vento de sobra e fui forçado a usar tormentim. E
agora?
Esperemos, enquanto a natureza dorme. Arriemos as velas para evitar o
desgaste.
Já nem sei cantar o mar. Aquelas mulheres de Rarotonga, como fantasmas me
perseguem. Não me saem da cabeça.
Cinco e meia da tarde. O vento apareceu e sumiu várias vezes vindo do NW, e
agora estamos encalmados outra vez. O céu todo nublado, com aquela cor de
chumbo. O barômetro está normal.
Aproveito a calmaria para pintar sobre um couro o tabuleiro de xadrez.
Acordei no meio da noite com o vento assobiando. Ele veio pelo SE e querendo
tirar o atraso.
O yankee, que estava dobrado no convés, foi para dentro do saco e icei o
tormentim. A noite não é de confiança.
Com uma hora de vento, o mar já estava grosso, mas avançamos bem.
São três da madrugada e o vento urra lá fora. O barco avança bem. Chupo uns
queimados e vou enfiar a cabeça no travesseiro, esperando o amanhecer.
7 de setembro de 1980
20 de 0utubro de 1980
Fiz o ponto. Há dois dias que vou me embrenhando num funil cada vez mais
estreito e torto, no formato de um caracol. Há dias que navego próximo a obstáculos
submersos, sem poder
Sequer vê-los, confiando só nas estrelas. Hoje talvez o dia de ver o Bramble Cay
e seu farol, que está a 45 milhas, se é que os números não me abandonaram, não me
traíram.
Tentarei dormir na sota de uma pequena ilha, mas daqui para lá são 75 milhas.
Para ter uma chance, com este vento brando, apelei para a ajuda do motor, pois é o
lugar mais próximo possível de fundear. Caso não chegue lá, terei que passar uma
noite inteira na capa, sujeito a correntadas no meio dos arrecifes.
Estamos fazendo o possível mas os olhos ardem, o cansaço domina, o raciocínio
se torna lento, a gente começa a errar mesmo as contas de somar, tendo que se fazer
tudo duas vezes, antes de se plotar o ponto na carta.
Só uma coisa está impecável: o tempo; e que ninguém nos ouça.
São 11 horas, devemos estar a 18 milhas do farol, mas as retas de posição da
manhã não se cruzam.
Observo qualquer anormalidade ' na superfície do mar, corro para a proa, mas
não vejo nada.
O jeito é aguardar.
A meridiana saiu perfeita. Farol a 13 milhas. Uma hora depois não encontro
nada. De um lado, água, do outro, água, em cima o céu, e acabou. Estou cercado por
estes mistérios, mas nada de farol.
Aproveito que o mar está liso e subo no mastro, fico em pé em cima da cruzeta e
observo o horizonte. Nada.
Comecei a suar.
Lembrei-me de um tripulante que em Rarotonga criticava o seu comandante.
“Ele não sabe nada. Imagine que faz 5 a 6 observações para determinar a sua
posição”.
O que ele diria se soubesse que no desenvolvimento do caracol, nos últimos dois
dias, calculei, entre sol e estrelas, 34 retas de posição e ainda não encontrei o farol.
Hei.
Avistei o farol, é um palitinho, talvez à noite seja mais fácil de ver; mas de dia
estava da mesma cor da bruma.
A navegação estava impecável.
Vamos Três Marias, agora temos que vencer 35 milhas até o ancoradouro, até a
Steafens Island.
O barco andou a vela e motor. As 4h apareceu a ilha e às 7h estava fundeado,
talvez a uma milha de terra, um fundo de 9 metros.
Dei 50m de corrente e inaugurei a nova âncora, pela qual paguei uma fortuna em
Noumea, mas hoje durmo tranquilo. Só a âncora tem 22 quilos, fora a corrente.
Ouvia um samba, enquanto tornava chá e um mingau. O barco balançava um
pouco, pois fundeamos em mar aberto, sem porto, apenas na sota da ilha.
Pensando bem estou na Austrália, no outro lado do mundo.
E o que foi que eu vim fazer aqui sozinho?
21 de 0utubro de 1980
Acordei às quatro da manhã. Que beleza é dormir.
Ajeitei o barco, antes que o sol despontasse no horizonte.
Com a primeira claridade o Três Marias já ganhava caminho.
Aqui a navegação é visual. A cada 5 ou 10 milhas, uma ilha, um arrecife à flor
d’água, um farol.
Aqui o mar é calmo. O swell não penetra devido à barreira exterior, e a
ondulação local é enfraquecida pelo grande número de ilhas e arrecifes.
Pela manhã, a corrente esteve a favor e fizemos 45 milhas. À tarde só 23, e às 5h
já estava fundeado na sota da Sue Island.
A ilha tinha casas bonitas e um arrecife que a cercava. Deu vontade de ir em
terra mas fiquei. Amanhã, se tudo correr bem, estaremos em Thursday Island. Faltam
apenas 55 milhas, o tempo está ótimo.
22 de 0utubro de 1980
Já saímos com atraso; às 6 e meia, fizemos rumo para Hervey Rock,
contornamos e fomos em frente.
Como o fundeio de ontem me permitiu uma análise precisa da maré, à hora de
sua inversão, adiantei no motor, para na maré alta passar por cima de um banco.
Tomar o Flinders Passage, ganhando assim pelo menos 10 milhas.
Tudo correu bem, o balizamento aqui é caprichado, e às 13 horas estava atracado
a contrabordo do Lumen, que dá assistência aos faróis australianos.
As autoridades vieram a bordo e preencheram mais de 20 folhas de papel.
Tornaram as armas e lacraram em um armário todas as conservas de carne ou leite
para evitar trazer doenças para os animais locais.
O comandante do Lumen me convidou para jantar a bordo e ofereceu o navio
para tomar banho quente, ou o que precisasse.
A recepção foi calorosa, e após 15 dias sem pronunciar uma só palavra tirei o
atraso falando sobre o Brasil, sobre a viagem.
Analisando este último trecho, posso dizer que o mais difícil foi encontrar a
primeira ilha, o primeiro farol. Depois bastava prestar atenção se era de pedra ou
estrutura metálica, a sua cor, pois navegávamos apenas durante o dia. A água era tão
limpa, que a 200 m podia-se distinguir com precisão um lugar raso.
Mas, pessoal, o Três Marias acaba de atravessar um dos trechos mais difíceis de
toda a viagem, o Estreito de Torres. Cruzou a Grande Barreira e completou um pouco
mais de meia volta ao mundo.
9. DA AUSTRÁLIA À INDONÉSIA
28 de outubro de 1980
Amanhã completo uma semana por aqui e vou para Weipa, a 150 milhas, onde,
segundo os australianos, está a maior mina de bauxita do mundo. Passei dois dias a
contrabordo do Lumen e ganhei duas caixas de provisões, para não ter que comprar
outras, pois a quarentena trancafiou quase tudo.
Fiz muitas amizades. Colin Stewart e Terry, do departamento de assistência aos
aborígenes, vieram a bordo, depois me convidaram para jantar, para sair de lancha,
para pescar de mergulho nos arrecifes da Grande Barreira. Isto aqui é uma reserva de
aborígenes. São umas mil ilhas, como não se tem trabalho para todos a maioria vive
de ajuda governamental, em casas bonitas, rodeadas de jardins.
A matança dos nativos é uma coisa do passado. Todos contam que depois das
festas a rapaziada saía montada a caçar uns aborígenes como distração. Hoje o
governo cuida deles. A terra aqui é toda do governo. Isto evita que um americano
rico, ou um capitalista qualquer, compre as terras, e eles tenham que mendigar ou
roubar por aí.
São tantas ilhas, ilhas ao sol, de vida fácil, de amor ainda mais fácil, onde os
filhos nascem quase sem ter pais. Conheci muitos aborígenes e, também, gente das
ilhas, um pouco diferente. Os aborígenes são originários do continente, muitos deles
vivendo em tribos nômades, vivendo no deserto, com sua cultura própria. É uma
sociedade onde se respeita o velho, considerado enciclopédia ambulante, pois não
tem linguagem escrita. Eles, com sua cultura, conseguem sobreviver, no deserto, onde
nenhum homem branco se adaptou.
Aqui as atividades principais são a pesca da lagosta e a pesca de pérolas. Eles
pescam as conchas, para introduzir as esferas, para a formação das pérolas
semiartificiais.
Antigamente, quando eram pérolas totalmente naturais, esta atividade era muito
rendosa. Um grande número de mergulhadores japoneses e malaios vinha aqui ganhar
o salário do medo, mergulhando 50 braças, respirando ar comum, estourando
qualquer tabela de segurança.
A maioria morreu. Mas quem resistiu ficou milionário.
O cemitério, só em Thursday Island, tem 450 deles, e 700 em todo o Estreito de
Torres.
Hoje são pescadas as conchas jovens, transportadas para as fazendas marinhas,
onde, após o enxerto, são alimentadas por vários anos, até que a pérola semi-artificial
se forme.
Também barcos de pesca arrastam redes de camarão, durante a noite, quando
eles saem da lama para se alimentar.
A pesca da lagosta, do camarão e das pérolas, associada ao lucro das taxas que
os navios pagam para atravessar o Estreito de Torres, como no Canal do Panamá, são
mais do que suficientes para sustentar os aborígenes desempregados com pensões
altas. A região é autofinanciável, e o governo reinveste boa parte deste dinheiro nas
reservas.
Além de pensões, os aborígenes recebem casa, educação, orientação e
financiamentos nos negócios.
Tive a oportunidade de conhecer e mergulhar com Beny, o único da ilha a
terminar a universidade, que hoje orienta o seu povo no desenvolvimento industrial,
no departamento de assistência aos aborígenes.
O mais impressionante é que o homem aqui é anfíbio. Poucos têm carro, mas
todos têm um caiaque de alumínio com motor possante, capaz de vencer a forte
correnteza. Um pé em terra e outro na água, ninguém usa sapatos, mas uma sandália
de plástico.
Tive bastante contato com pescadores, nos barcos que arrastam camarão.
Geralmente são 4 tripulantes, dois homens e duas mulheres. Uma cozinha, e a outra é
marinheira de convés.
Eu que olhava os calos nas minhas mãos, com muito orgulho, tive que pôr a
viola no saco. Kathleen, lourinha de cabelo enrolado, tinha a mão que era um calo só,
sem perder no entanto a graça, a beleza, e aquele sorriso de mulher.
Aqui as mulheres vivem no mar e são ótimas tripulantes. Lembro-me da mulher
brasileira, na maioria das vezes inútil a bordo, uma verdadeira bunda-mole,
aguardando que alguém lhe abra a porta ou puxe a cadeira. Só na classe pobre é que a
mulher dá duro, acompanha o homem.
Kathleen, no barco de pesca, faz, por mês, o salário de um engenheiro no Brasil
com 2 anos de formado.
Conheci muita gente de Papua Guiné. Homens, mulheres, pescadores de pérolas,
com seus narizes compridos, sua pele escura e a cabeça pequena. Adoram conversar,
gente amiga e muito prestativa.
Contam que por lá ainda ezistem tribos que nunca viram o homem branco,
algumas canibais, como as que comeram o filho de Rockefeller, há poucos anos atrás.
O capitão do porto, um perito tocador de violão, me falou muito da Indonésia,
dos seus piratas, que andando em antigos juncos, hoje bem motorizados, assaltaram
outro dia um petroleiro.
Assaltaram um barco de turismo, mataram todos os homens e levaram as
mulheres para serem vendidas nos mercados de brancas do oriente, fazer parte dos
haréns, dos donos do petróleo, onde ninguém tem acesso, nem mesmo chega perto, e
nunca mais foram encontradas. Também barcos que íam à Indonésia sem permissão,
que tinham a sua tripulação enjaulada e muita corrupção.
Falaram dos ciclones. Houve um ano, creio que em 1974, passou um em
Barwin, norte da Austrália, que arrasou a cidade. Barcos atracados no porto saíram
barra afora e nunca mais foram encontrados. Oitenta por cento das casas foram
destruídas e a força aérea australiana, com ajuda da americana, evacuou a cidade em
3 dias.
Hoje Darwin está reconstruída.
O próprio capitão do porto me falou de um que pegou a bordo de um navio –
teve tanta gente ferida. Os pingos de água arrancaram toda a pintura do navio.
Atrasado na estação, adiantado porém na viagem por ter feito meia volta ao
mundo sozinho, em 7 meses, não sei se enfrento os piratas do norte ou os ciclones do
sul.
Por enquanto estou indo para Weipa, onde vou tentar arrumar um emprego, para
passar a má época, Caso não dê certo, tomo outro rumo.
4 de ovembro de 1980
Passei 4 dias em Weipa. Cidade que vive em torno da Comalco, empresa que
extrai e exporta a bauxita, o único produto da região.
Recomendado pelo Capitão do Porto de Thursday Island, Mr. Matheus, fui
muito bem atendido pelo superintendente-geral, Mr. Karl Stewart, que por sua vez me
encaminhou para o engenheiro sênior, Mr. Laurie Hikks.
Tudo bem, mas ninguém se interessa por um engenheiro que quer trabalhar
apenas 5 meses.
Antes mesmo que me dissessem não, resolvi tentar, atravessar até Bali. Muito
cedo descobri que estava procurando o emprego que não queria encontrar.
Aqui, neste fim de mundo, todos ganham bem. Um engenheiro não dobra o
salário de um carpinteiro. Um indivíduo que cavava buracos no chão, para fazer uma
cerca, ganhava US$ 1800 por mês. A carência de mão de obra aqui é tão grande que
todos ganham para viver, ter carro e tudo.
Quando cheguei em Weipa os transportes estavam em greve, queriam mais
dinheiro. Todos aqui são sindicalizados.
A Austrália, um país de tamanho continental, com apenas 13 milhões de
habitantes, tem um padrão de vida muito elevado. Associados ao capital estrangeiro,
retiram os minérios a todo o vapor, lembrando os filhos que torram a herança.
Aqui tudo se cópia do americano ou do inglês. Os australianos lutaram no
Vietnan ao lado dos americanos, e, quando o partido conservador ganha na Inglaterra,
ganha também na Austrália.
O fato é que vim a Weipa para conhecer um pouco mais da Austrália e tentei
arrumar um emprego, mais como treino para um dia de necessidade.
O norte da Austrália é como para nós a transamazônica. Quase desabitado, só
vai lá quem precisa de grana. A turma trabalha 2 meses com os subempreiteiros,
depois vai a Cairns, pois aqui só tem 50 mulheres solteiras para 500 homens
descomprometidos.
Conversei muito com os pescadores. Todos ou quase todos me aconselhavam
ficar. Quando o rádio desse o alarme, levaria o barco para os riachos, enfiava no meio
do mangue e amarrava para todos os lados. É assim que o pessoal daqui faz.
Conheci Tony, uma menina baixinha, morena linda, que tocava violão e flauta.
Trabalhava de cozinheira a bordo de um barco de pesca. Ela veio a bordo, e a
tentação de embarcar uma peça destas, dar adeus à viagem solitária era muito grande.
É por estas e outras razões que não posso parar, nem mesmo para ganhar
dinheiro, senão dá moleza no corpo e adeus viagem solitária.
Disse a todos que não gostei do lugar. “Lugar sem mulher eu não fico”. Foi a
desculpa.
Meti logo as cartas no correio, dizendo a todos que me ia, pedi o “Clearence” e
parti. P a constante luta interna, uma verdadeira batalha que se trava no meu íntimo.
Desta vez, a parte louca, violenta, que quer voar, ganhou. A minha banda
cuidadosa, medrosa, foi dominada, amordaçada, amarrada, até que o barco deixou o
porto e aqui estou, orçando, provavelmente estarei orçando a maior parte do tempo,
pois o vento já mudou.
A estação de SE já acabou. Ontem um tufão assolou as Filipinas e os pescadores
diziam: “Foi a estação que mudou”.
A época que precede a estação de ciclones tem ventos fracos, de W e NW, e
finalmente vem o mau tempo.
Para ganhar o mais possível, já saí com a genoa maior. O vento é fraco e contra,
mas com mar liso avançamos bem. Que ele continue assim.
Para trás, ficou o Mission River, infestado de crocodilos, o pó da bauxita, os
barcos de pesca e os homens de negócio.
Sigo em frente.
7 de Novembro de 1980
Vento calmo, tempo bom. Netuno e Eolo estão tramando, estão economizando
vento para mandar tudo de uma só vez. É assim o mês de novembro nestas paragens.
Estamos atravessando o Golfo de Carpentaria (300 milhas).
Agora está mais fresco. Mas há dias que o vento quase pára. O convés fica tão
quente que sou obrigado a calçar os pés. No interior da cabine, na sombra, o
termômetro acusa 35ºC.
Deitado no beliche, completamente despido, de braços e pernas abertos, procura
dissipar o calor. O corpo ensopa, em seguida ensopa o lençol, o travesseiro. Bebo
litros e litros de água, e vem na boca o gosto de má digestão, do suco gástrico diluído.
Come-se mas nada é aproveitado.
Pacientemente espero o fim da tarde, e finalmente a noite fresca.
Estou com a vela grande toda desfraldada e com a genoa.
O vento é fraco e já veio de todas as direções. A esta altura a ordem é andar.
Andar o mais que se pode, aproveitando tudo, e sair o quanto antes destas águas.
Por aqui ninguém toma banho no mar. Se nos rios o crocodilo espera de boca
aberta, no mar uma medusa (água viva) transparente é o maior dos perigos. Tocando
o braço lhe deixa paralisado. Tocando o corpo, você pode ir se despedindo dos
amigos, pois acabou de ganhar uma passagem grátis para o outro mundo. Elas
habitam as águas do norte da Austrália e são mais frequentes no verão.
Encontro diariamente, na superfície das águas, serpentes marinhas de diversas cores,
às vezes com 1m de comprimento e tendo uma nadadeira no rabo.
8 de Novembro de 1980
A calmaria se estabeleceu desde ontem à noite. O mar ficou liso que nem
espelho e refletia nitidamente as estrelas. Ao amanhecer, uma neblina impedia
distinguir o céu do mar.
O sol foi se elevando, o calor aumentando mas nada de vento.
Três dourados nadavam em círculo, cortejando o barco, e um monte de
peixinhos de todas as cores acompanhava o seu arrastar preguiçoso.
Com o mar liso, eles vinham até a superfície, ora beliscavam algum sargaço.
Parecia mais um parque de diversões. Davam saltos, cambalhotas e soltavam bolhas
de ar.
Me divertia jogando-lhes tudo quanto era besteira. Eles vinham, examinavam e
voltavam a brincar.
Fiquei pensando. Quem sabe por que saí mundo afora, a vagar pelas águas, e
agora estou aqui boiando, no meio de uma calmaria.
Veio uma aragem, os peixinhos sumiram, e o barco começou a avançar
lentamente.
11 de Novembro de 1980
Calmaria total. Como se isto fosse alguma novidade. Estamos fazendo uma
média diária de 40 milhas e de Weipa até Bali temos nada menos de 1.650 milhas.
Teremos que ir ao norte para evitar uns obstáculos ao sul, depois voltar a descer
e passar ao sul de Timor, por fora de suas águas territoriais. Timor é lugar de conflito
e está com os portos fechados ao estrangeiro.
Aproveitei estes dias para fazer um estudo detalhado das Cartas Piloto.
Esta região, o Mar de Arafura, aparece ora como Pacífico Oeste, sem muitos
dados, ora como Indico Leste, onde uma linha imaginária é traçada, entre o vento SE
e o NW, as monções. Naturalmente entre elas a calmaria, o Doldrums, mais uma vez.
Só em dezembro é que as monções de NW dominam.
Os primeiros ciclones registrados são datados do dia 12 de novembro, em
dezembro eles são frequentes.
Além de ter que orçar e ter a corrente contra, temos calmarias intermináveis. A
rádio australiana acusa ventos de 2 a 5 nós vindos de NW, mas nem estes aparecem e
a calmaria volta a reinar.
Creio que se não houver uma perturbação meteorológica maior, este ventinho
frouxo vai ficar aí até quando chegarem as monções, junto com os ciclones. A esta
velocidade, se as coisas não mudam, só chegaria na Indonésia nos meados de
dezembro, época já de grande perigo; seria expor o barco. Ninguém viaja a vela por
aqui, a esta época do ano.
Lembrei-me de Weipa, que não quis ficar. São tantos os motivos.
Meu Pai deve ter feito, há 3 dias atrás, 84 anos. Gostaria de voltar cedo, uma
maior chance de revê-la. Soube que operou- se de hérnia, que está bem, apesar de
debilitado.
Pelas suas cartas, vejo que acompanha apaixonadamente a minha viagem, é
talvez o maior dos meus fãs, atento às minhas dores e minhas alegrias.
Apesar de num esforço final ter deixado Weipa, me aventurado nesta travessia,
ainda que com o coração constrangido tenho que reconhecer que a travessia está
sendo difícil. Caso tivesse a permissão para a Indonésia, bastaria subir, ir ao norte,
fugir dos ciclones, ir pingando de ilha em ilha. Apesar de ser o vento contra, as
distâncias são pequenas.
Sem a licença, sou forçado a ir direto a Bali, um lugar turístico, onde espero não
ter problemas. Por via das dúvidas, estudei uma arribada para Darwin.
Darwin fica a 350 milhas, e não tenho a carta detalhada. Fiz os estudos
analisando a carta geral, com auxílio de uma lente. Marés com 10m de altura são
responsáveis por uma forte correnteza.
Soube que nesta época do ano a maioria dos barcos, nestas paragens, são
retirados da água. Eles cavam no chão um buraco para a quilha e assentam o barco,
que fica baixinho e cômodo para morar em terra, voltando ao mar na outra estação,
além de ficarem estáveis em caso de ciclone.
O pior é que este esforço agora em direção a Bali, em vez de resolver, apenas
abre a chance de ir direto de Bali a Cape Town e voltar ao Brasil após 13 meses. Isto
é, um grande esforço agora abre caminho apenas para um esforço ainda maior e
ninguém dá a volta ao mundo pegando apenas a boa estação. Ela não coincide. Isto
quer dizer que a próxima travessia seria numa época ainda pior.
De qualquer forma, só tomarei a decisão de ir a Darwin ou não daqui a 300
milhas. Chegando lá ou vou ao sul, para Darwin, ou sigo em frente, para Bali.
17 de Novembro de 1980
Passaram-se mais uns dias, estamos a 170 milhas de Bali. Estes dias foram
acompanhados de chuvas, trovoadas e ventos de açoite. Mantendo a genoa em cima,
procurando andar o mais possível, tive que em um certo instante arriar a genoa dentro
d’água, pois já era tarde para fazê-la corretamente, só depois, a muito custo, tomando
chicotadas de todo jeito, pude trazê-la de volta ao convés. Depois foi a hora de aplicar
o 3º riso na vela grande, mas assim que passou voltou tudo ao normal, icei as velas de
novo.
Estamos agora na latitude 10ºS e já fora da área perigosa. A chegada a Bali está
quase assegurada, precisando sem dúvida tomar os cuidados de sempre.
Mal cessou uma preocupação, uma outra toma logo o seu lugar. Tem horas que
penso ser um eterno preocupado e novamente me rói o peito uma nova indecisão.
Ficar, aproveitar a vida, parar um pouco, descansar. Depois subir, ir a Cingapura,
Tailândia, Ceilão, India, matar a minha sede de conhecer povos, costumes, ou ir
diretamente daqui a Cape Town, África do Sul, e finalmente o Brasil.
Tenho lido bastante literatura russa, no original, isto tem me feito lembrar de
meu Pai, da minha Mãe, e de que nunca voltei à Ucrânia, o lugar onde nasci durante a
guerra, conhecendo apenas a história do meu nascimento. Meu Pai é, sem dúvida, o
laço mais forte que me une ao meu passado, porque ele fala, explica, conta muitas
vezes as coisas. Minha Mãe é calada, foi com ela que aprendi a gostar da solidão. Ela
adora ficar só.
Ir direto a Cape Town, atravessar o Oceano Índico, o mais ousado dos oceanos,
fora de época, em um só fôlego, tentar chegar na Africa do Sul no início do outono,
iria requerer de mim um sacrifício muito grande, além de não matar a minha sede de
conhecer povos, pois só conheci mares. Só parei para reparar, para abastecer e muito
mal para descansar. Pouco vi, pouco vivi, apenas andei, e esta volta prematura selaria
esta sorte.
Se por um lado esta volta rápida é boa, chego, publico o meu livro, dou a
mensagem aos jovens brasileiros. Revejo os meus Pais, os meus Filhos, meus
Amigos, por outro lado é ruim, pois não sei se conseguirei assentar, reiniciar uma
vida nova. Nova família, mais filhos, nova casa, novos ideais. Provavelmente partirei
de novo, pois voltei sem concluir todos os passos do meu sonho.
Tudo isto não sai da minha cabeça. Durmo e acordo com esta indecisão,
enquanto o Três Marias avança devagarzinho.
As vezes me volto para dentro de mim e penso como é fácil a vida.
Levando-a com o mínimo, sem luxo, pensando, admirando as coisas belgas da
natureza, tendo na mente apenas uma preocupação. E preciso chegar, não se pode
naufragar.
Apesar de tudo, sempre mora em meu peito um monte de revoltas.
Hoje sou forte, instruído, menos vulnerável às injustiças.
Lembro-me dos pobres e de que também já fui pequenino.
Lembro-me de quando chegamos, imigrantes, meu Pai, agrônomo, foi trabalhar
numa fazenda, e morávamos no socavão que existia abaixo da casa do patrão.
Meu Pai se desentendeu com a mulher do patrão, Lizete, sobre as técnicas a
empregar, e o contrato foi cancelado. Eles tinham que dar a meu Pai um prazo para
ele sair de casa, mas não.
Quando ele foi à cidade, Lizete chamou uma turma. Lembro-me muito bem,
tinha 11 anos, e os homens pareciam extremamente altos. Tudo nosso, o quase nada
foi parar no passeio, no outro lado da rua. Lembro-me que o armário abriu e a louça
caiu pelo chão quebrando em pedaços, enquanto Lizete dava as ordens.
Naquele tempo, o mundo me pareceu difícil, os homens agressivos. Com 11
anos nada podia fazer a não ser olhar apavorado, mas dentro de mim se formava uma
bandeira:
A luta eterna contra a injustiça, contra o privilégio dos ricos e poderosos.
Hoje, formado, instruído, não tenho maiores dificuldades. Mas nunca esta poeira
assentou na estrada da minha vida, nem o mar conseguiu lavar os tempos difíceis da
minha memória.
19 de dezembro de 1980
Ora o tempo fecha ora faz sol. Não tiro o olho do barômetro, tentando prever
algo.
Estou realmente inquieto e com os olhos semicerrados por causa do vento
observo incessantemente o horizonte.
Esta inquietação, naturalmente, tem um fundamento. Vamos ver o que diz o
Sailling Directions, da U.S. Navy, a respeito do Oceano Índico Sul, nos meses de
janeiro e fevereiro.
Publicação n.º 65, pág. 19 (traduzido ao pé da letra). “Ciclones tropicais têm
sido registrados, mas eles são
Raros de junho a outubro. Aproximadamente 75% de todos os ciclones nesta
região ocorrem em 4 meses: de janeiro a abril. O número de tempestades
experimentadas em vários meses em um registro que vai de 109 a 1917 é dado na
tabela 4.
Tabela 4. Ciclones no 0cean o Índico Sul
Jan - 122
Fev - 128
Mas - 108
Abr - 76
Mai - 29
Jun - 3
Jul - 2
Ago - 0
Set - 1
Out - 8
Nov - 37
Dez - 61
Um total de 575 ciclones em um século. E é esta a razão da minha apreensão.
Tentando dar a volta ao mundo direto, parando apenas para pequenos descansos
e aprovisionamento, não se consegue navegar sempre na boa estação. Já consegui
chegar na Indonésia antes dos ciclones, mas, agora, estou navegando no Oceano
Índico, exatamente na época mais perigosa, como se pode ver na tabela.
Talvez, se tivesse aprontado o barco em dezembro e não em março, mas isto é se
fosse.
A realidade é outra, estou em pleno Indico, na pior época possível.
Que fazer?
Resta fazer uma análise detalhada do local por onde eles passam, pois o Oceano
Indico é grande. Apesar de no mar não existirem fronteiras, cercas de arame farpado,
os ciclones têm seus caminhos prediletos, e a estes tentaremos evitar cruzar, dentro
do possível.
Analisando bem o Pilot Chart, a quem consulto diariamente, e até várias vezes
por dia, tentando ver a chave das coisas, podemos dizer que os ciclones se
concentram na costa W e NW da Austrália, numa faixa de até 1000 milhas da costa, e
outra região próxima de Madagascar, das ilhas Mauritius, Reunion e Rodrigues.
O barco continuava avançando bem, 6 nós em média, com todo o pano em cima.
Nestes 5 dias dei apenas o 1.º riso na vela grande para melhorar o equilíbrio no
leme e desfiz. Foi a única manobra. Apesar disso, não tiro o olho do barômetro, pois
o tempo continua instável. O sol aparece pálido por trás das nuvens, que nem uma
lua, e posso observá-la no sextante, sem ter que recorrer às lentes escuras.
O mar está relativamente calmo. Aproveito para fazer a cabeça. Releio Vito
Dumas, Hiscock, Tabarly, Moitessier, me preparando para o pior.
Continuo preparando também o barco para uma possível deitada, ou até mesmo
capotada. Ponho dobradiças nos compartimentos de conservas, continuo remanejando
os pesos visando melhorar a estabilidade, mas sempre com muita preguiça, uma
preguiça psicológica.
Também o convés ficou liso. Arriei a caixa de mantimentos de emergência e um
camburão de 10 litros de água, que estavam acoplados ao caíque inflável que vinha
mantendo, dobrado, no convés junto ao mastro, substituindo apenas emocionalmente
uma balsa salva-vidas. Assim o convés ficou liso, permitindo uma onda passar por
cima de tudo, sem encontrar maior resistência.
Preparando-me para esta travessia, em Bali, resolvi abrir o embrulho onde
estava por 5 meses, desde Panamá, dobrado o caíque inflável, e veja a surpresa. Ele
estava vazando, nos locais das dobras, em pelo menos 5 lugares. Há muito custo
vendi o caíque em Bali por US$ 150. É melhor não ter este equipamento mentiroso
que jamais seria capaz de salvar a minha vida.
Ia ajeitando o barco e lembrando do Capitão do Porto, em Benoa, Bali, com
quem conversei longamente. Ele se interessou pelo meu caso, quando soube que iria
direto a Cape Town nesta época. Mayan Dira, no tempo de cadete, ' contornara o
extremo sul da África por 3 vezes, mas só uma vez o tempo esteve ruim, nas demais
esteve até mesmo confortável.
Um dos problemas das longas travessias é o desgaste dos materiais, não se tendo
a chance de uma parada para reparos.
Ontem à noite, por exemplo, ouvi um baque no convés. Foi o balancim, o cabo
que sustenta o peso da retranca, que cortou por atrito na polia do topo do mastro e
caiu no convés. Tive que improvisar com uma driça de reserva, pois este cabo se
torna imprescindível, caso se resolva arriar o pano ou dar um riso, para garantir que a
retranca não caia n’água ou tombe sobre a cabine.
Lembrei-me agora que em Bali, em um dia de muito vento, Lui e Joe, do Sany
Goiana, vieram a bordo e içaram um balão que trouxeram, e ficamos voando,
enquanto o barco estava ancorado. Quando o balão enchia, subia de repente, e o
trapézio nos arrancava da água, nos projetando a grande altura, e voltava a cair.
Enquanto uns voavam, para fazer graça a Lorry, minha amiga canadense, eu subia
pelo cabo do balancim, até uma boa altura, e ficava me balançando que nem macaco.
Para provar a minha boa forma, descia de cabeça para baixo, fazendo piruetas.
Isto faz exatamente 15 dias e hoje este cabo que esteve em uso no mesmo lugar
por 2 anos acaba de partir. Por um triz não quebrei o pescoço, ou no mínimo meu
braço ou uma perna. Ia descer de cabeça, bem na entrada da escotilha.
Ao ver este cabo partir sozinho, um calafrio me percorreu o corpo.
Não sei quando o mar ficará calmo, a ponto de me convidar para ir ao topo do
mastro fazer este reparo. Aqui o Swell não pára, e ainda faltam 4000 milhas até o
próximo porto, até Cape Town.
O curioso é que já fiz uma lista do que fazer naquela cidade africana, como se a
minha chegada lá fosse certa.
13 de janeiro de 1981
Acabamos de percorrer 3000 milhas e faltam agora apenas 3000 milhas até Cape
Town.
Acabo de bater vários recordes, pessoais, pois 3000 milhas foi a maior distância
que já fiz sem escala em solitário. Também estou sozinho há 27 dias no mar, o meu
recorde anterior em solitário era de 23 dias.
Nesta 2ª metade da viagem as dificuldades, o clima, a estratégia em geral são
completamente diferentes. A única coisa igual é a distância, as mesmas 3000 milhas,
distância esta que já sei o que significa, pois já fiz por duas vezes. Mas desta vez não
saio do porto, e sim começo um trecho de 3000 milhas, após ter feito outro igual, e
não como antes, quando saía do porto, descansado e abastecido. Na realidade estou
na metade do caminho de um trecho de 6000 milhas sem escala. Além disto, devido à
época, temos aqueles problemas, dificuldades, apreensão latente que tiram de certa
forma um pouco daquela tranquilidade que sinto geralmente em alto mar, longe dos
homens, dos nossos semelhantes que são, sem dúvida, o maior e talvez o quase único
perigo verdadeiro para o próprio homem.
O tempo é bom, pode-se dizer até ótimo, e a genoa já está no ar por quase 15
dias.
Confiança no tempo, zero.
Sempre de guarda, não relaxo por nada, apesar de dormir horas e horas sem
acordar, por estar longe de qualquer ilha, arrecife ou obstáculo. Sei que posso dormir
tranquilo, enquanto o barômetro estiver como agora, em alta.
Conheço, ou pelo menos suponho conhecer, os sintomas do mal que me aflige,
que me preocupa. Enquanto ele estiver longe, aproveito para descansar.
Os preparativos de que me referi anteriormente estão praticamente concluídos.
Tudo lacrado, aparafusado, amarrado. Só falta amarrar a mim mesmo. O barco está
quase pronto para uma possível virada, capotada, o que espero que nunca aconteça,
apesar de tantos outros já terem passado por esta experiência.
Vito Dumas, o Damien, e dezenas de outros já capotaram ou enfiaram os
mastros por dentro d’água. Uns perderam o mastro, outros sofreram apenas uma
avaria geral, ou inundaram o barco de água. Alguns naufragaram. Outros quebraram
costelas, entortaram pescoço, mas a maior parte deles se saiu bem. Depende um
pouco de sorte e muito de técnica.
Portanto, não só preparo o barco, como preparo a mim mesmo, fundamentando-
me nas experiências dos outros colegas, navegadores mais antigos.
O importante é que a moral está lá em cima, a luta continua, e o Três Marias
avança.
Vamos lá gente, o Brasil nos espera.
19 de ja eiro de 1981
Hoje completamos 1 mês no mar. Nós, quer dizer, eu e o Três Marias. Cada vez
mais íntimos, ligados por um destino comum.
Nossa posição: Longitude 65º30’E Latitude 28ºS Faltam aproximadamente 2600
milhas até Cape Town.
Estamos saindo da região dos Alísios e com isto o vento tornou-se mais fraco.
Antes fazíamos 140, 150 milhas diárias. Agora baixamos para 120, 90 e finalmente
75 milhas.
O mar continua calmo, o sol quente, ainda um daqueles dias lembrando o verão.
Enquanto o barco avança devagarzinho aproveito para ler, tomar sol ou dormir.
Quando chove, recolho água de chuva para aumentar o estoque e bebo
diariamente dois goles de água do mar, treinando talvez para quando for necessário.
Com esta falta de movimento, sinto que os músculos estão relaxando, e resolvi
fazer um pouco de exercício, pois estou na maior parte do tempo deitado, lendo, ou
em pé, recostado na escotilha, apreciando este mar que me envolve completamente.
Quase não se tem manobras a fazer, uma vez ou outra.
No mais, folgo ou aperto a escota em 2 polegadas, para evitar o desgaste dela
em um só ponto.
Termina-se comendo mais do que o necessário e a gente sente que está
aumentando o peso. É a gula, o único pecado possível a sós, pois, geralmente, para
pecar é necessário dois.
Podemos dizer que estamos terminando aquela 2ª etapa da travessia do indico e
brevemente entraremos na 3ª etapa, aquela toda cheia de suspense, mas estou calmo e
confiante. Sempre se deu um jeito nas coisas e creio que desta vez não será diferente.
Na hora H a gente vira bicho, trabalha, se desdobra e a coisa tem que ir em
frente. Não adianta apavorar antes da hora, finalmente esta é a meta atual da minha
vida. Não há outra.
"E caminho único, mão única, sem acostamento em retorno”.
Por isso vamos em frente.
20 de ja eiro de 1981
O vento agora é SW, fraco. Mar liso. Orçamos o mais que podemos. Devemos
estar avançando a 1 nó ou 2 pelo menos.
Apesar do mar liso, o Swell informa que em algum lugar distante existe bastante
vento. Este Swell fica ainda mais evidente com o mar liso. Parece uma verdadeira
respiração.
Ora estou sobre a montanha e avisto o vale lá embaixo ora estou embaixo e vejo
o horizonte se elevar. E difícil precisar o desnível, mas é grande.
Já estamos há 23 dias com bom tempo, mas ao sul apareceram umas
nuvenzinhas acinzentadas. Pela prática, já sei que é tempo de esperar algo em vista,
pois não pode continuar assim eternamente. É o próprio equilíbrio da natureza.
As nuvens foram ficando pretas, apesar de estarmos quase encalmados. Resolvi
dar o 2º riso na grande, pois em caso de golpe de surpresa bastaria arriar a genoa.
Algo me dizia de que não deveria facilitar. De qualquer forma já vai escurecer
em poucas horas e não vai dar para dormir tranquilo com todo este pano em cima,
com o céu que está aí fora e, principalmente, depois de uma calmaria.
Começou a soprar e as nuvens negras iam se aproximando.
Arriei logo a genoa, mas o vento parou, deu uma pausa e recomeçou.
Veio a chuva. Aproveitei para recolher água de beber. Não confio no serviço de
tratamento de água de Bali e por isso só tenho bebido água fervida, ainda mais que
aqui, em caso de doença, não se tem onde pedir arrego. Na Indonésia vi muita gente
sofrer de diarreia crônica, apesar de nunca ter sentido nada. Vivendo num país
subdesenvolvida a gente termina ficando imunizado.
Por isso bebo água de chuva, temperada com água do mar, aquela água roxa,
limpíssima por causa dos sais.
Passou a chuva, continua nublado, mas o vento é fraco.
Icei a genoa de novo e avançamos devagar como antes. O barômetro continua
estável, apesar de termos nuvens pesadas pela frente.
O vento acabou completamente, escureceu e por baixo das nuvens negras
apareceu a luz de um navio.
Depois foi a vez da lua. Nasceu vermelha, por trás das nuvens, nem parecia ser a
mesma lua de ontem.
Arriei a genoa. Acredito que vou dormir enquanto o tempo se decide.
O tempo ficou assim até o amanhecer, mas quando clareou o pau comeu. Isto só
para comemorar o meu 33º dia de mar.
A festa durou pouco, apenas umas rajadas fortes, o vento reduziu. Mas o céu
continuou caótico, o mar nervoso e desarrumado.
À tarde o vento voltou duro mas favorável. Favorável é outra coisa, a gente
segue em frente sem problemas.
Depois o mar se arrumou um pouco. Mas, como já ia escurecer novamente, não
aumentei a área vélica, para dormir mais despreocupado.
Constatei, na minha inspeção diária antes do anoitecer, que o contrapino, do
esticador do estai real (do 1º estai na proa), tinha partido. Aproveitei e coloquei outro.
Há muito tempo que andava desconfiado dele.
23 de ja eiro de 1981
Tempo bom, mar calmo, pressão 759mm. O vento rondou para NE, calmo, e
fizemos 90 milhas.
Segundo o Pilot Chart, temos aqui uma correnteza exatamente contra e não há
como evitá-la.
Visando aumentar o seguimento, hoje pela manhã, desfraldei a vela grande,
completamente, e o sol brilha no horizonte. No interior da cabine 29ºC, apesar de já
estarmos bem ao sul.
O casal de peixinhos continuou na proa do barco, não nos abandonaram nem
mesmo naquelas horas das rajadas, há uns dias atrás. Já são os mascotes do barco e
está completamente fora de nossos planos aplicar-lhes qualquer cilada, ou tentar
pescá-los, pois já são nossos amigos e aliados nesta viagem, companheiros.
O mesmo não aconteceu com um dourado acompanhando o barco.
Tinha deixado de pescar, pois estamos em regata. Mas, ao vê-lo seguir o barco, a
poucos metros, não resisti e lancei a linha.
Ele veio correndo para conferir. O vento estava brando e não tínhamos
velocidade suficiente para dissimular bem a isca, pois não era um peixe e sim uma
porção de tiras de plástico coloridas, que amarrei em volta de um anzol.
Para ajudar, puxei aumentando a velocidade e ele mordeu, com a linha na minha
mão. Foi bonita a batalha que se travou logo em seguida, até embarcá-la no convés.
Assim ganhei proteínas para 2 semanas e por um bom preço.
No fim da tarde, consegui ouvir a rádio da ilha de Reunion (francesa), que fica
ao lado de Maeritius, que forneceu a previsão do tempo para amanhã.
Posso dormir tranqüilo, pois o tempo será bom.
25 de janeiro de 1981 (segundo dia)
Ontem lá pelo meio-dia apareceu uma nuvem, num céu tão puro, que veio se
aproximando devagarzinho. Atrás dela veio o vento.
Primeiro pelo SW, depois S e por fim SE. À meia-noite o barco queria voar,
resolvi aparar-lhe as asas, dando o 2.º riso na vela grande.
Constatamos que fizemos hoje 140 milhas. Estamos no ponto crítico.
Continuaremos em um platô de igual perigo durante umas 450 milhas, depois o
perigo irá diminuir, será a descida da ladeira.
Com o nosso avanço, pensei que os mascotes tinham nos abandonados, mas foi
engano. Fizeram as 140 milhas, numa boa. Agora estamos mais íntimos.
Durante a calmaria dos dias anteriores, dei uma nadada, amarrado, é claro. Para
limpar umas coisas que começaram a crescer na paleta do leme de vento, e eles
vieram me saudar, nadando a 2 palmos de distância. Observando-os também nos dias
de pouco vento, com o mar liso, pude descobrir que eles comem os pequenos peixes
voadores, bem pequeninos às vezes, que ao tentar fugir dão aquele pulo no ar, caem
ali mesmo e são apanhados e devorados.
As leis do mar não são fáceis. São peixes prateados devorando peixes prateados,
com escama e tudo.
Aliás, por que o espanto, faz pouco tempo que deixamos de ser canibais.
Algumas tribos ainda o são, ainda praticam esta ceia macabra.
Em Bali me explicaram que alguns ainda enterram os seus mortos nas valas de
irrigação das plantações de arroz, para, por assim dizer, comendo o arroz, receberem
de volta as suas forças.
Mas hoje o tempo é bom. A pressão está alta. Céu 30% encoberto e vento fresco.
O barco avança. O que é que eu quero mais?
Acabei de almoçar e vou dormir, pois à noite passada, após risar a vela, fiquei
boquiaberto olhando o barco andar.
Enquanto isto, o Três Marias vai cortando uma por uma as trilhas percorridas
pelos ciclones em anos anteriores, novamente com todo o pano em cima.
28 de ja eiro de 1981 (quinto dia)
Arriando a ponta até o convés, fiz uma costura rápida com auxílio de 3 elipses,
para utilizá-la apenas em caso de emergência.
Felizmente deu tudo certo. Tinha horas que vinha aquela onda, eu me segurava
com todas as minhas forças para não ser projetado a distância.
Está quebrando muita coisa, é bom chegar logo.
O vento rondou mais uma vez, agora pelo SW, espantando as nuvens, veio um
pôr do sol belíssimo. Orçamos o mais que podemos, correndo atrás do sol, este sol
que não posso mais ver, mas que, agora mesmo, está aquecendo a nossa gente, nas
praias de Salvador.
O vento foi reduzindo, reduzindo e ficamos encalmados até o amanhecer.
Quando clareou uma leve brisa encheu timidamente as velas do Três Marias, e ele
tomou o seu rumo.
29 de janeiro de 1981 (sexto dia)
Fizemos 90 milhas.
Tempo instável, o barômetro desceu para 754.
De hora em hora vem uma nuvem com chuva e um pouco de vento. Como temos
pressa de sair daqui, vou deixando tudo em cima e após 10 minutos tudo volta ao
normal.
Já estamos na latitude 32ºS, estamos descendo cada vez mais, esta região é de
ventos variáveis, ou seja, está tudo de acordo com a previsão.
Acabo de verificar, estamos a 900 milhas de Durban e 1600 de Cape Town.
As 3h da tarde, ligo o motor para carregar as baterias, mas cai o vento com
rajadas, nuvens carregadas de chuva e água passando por cima do convés. Obrigado a
fechar tudo, desligo o motor que estava aquecendo o interior.
Agora passa a soprar com toda a força. A vela grande no 2º riso fica sozinha no
ar. Deixa passar, estabilizar, para ver o que iço na proa.
Passaram as nuvens mas ficou um resto de vento.
Esperar o mau tempo é como esperar uma visita indesejada, mas que virá com
certeza, só não se sabe quando.
Ouço passos. É a visita, não é?
No mínimo rindo, será que é? Ainda não.
Finalmente chega-se a um ponto que a espera se torna mais dolorosa talvez do
que a própria visita.
Mas ainda não foi desta vez. Somente o estado de alerta. Continuamos com o
yankee e a vela grande no 2º riso, para relaxar. Nada de regata por hoje, para
descansar, relaxar o estado latente de tensão.
Este é o resultado destes programas fora de época, talvez o cansaço também,
pois são 41 dias de mar e bastante ansiedade.
Mas logo o vento frouxou e, como jurei não içar mais a genoa, icei a trinqueta,
que somada ao yankee dá praticamente no mesmo. Sem dúvida é mais fácil manejar 2
velas pequenas do que uma grande.
O importante é que enquanto converso com o meu livro o Três Marias não pára,
segue em frente.
31 de janeiro de 1981 (oitavo dia)
Está soprando um SE duro, mas favorável. Fizemos 120 milhas nas últimas 24
horas. Barômetro 759, em alta.
O trecho mais perigoso de maior incidência de ciclones já passou. De agora em
diante, este perigo vai diminuindo cada vez mais, à medida que avançamos.
Foi depois do almoço que o vento foi aumentando de intensidade, com pressão
alta e tudo.
Fui deixando, mas me vi obrigado a dar o 2.º riso na grande e fui dormir.
Não conseguia dormir, pois o vento aumentou e o barco estava cada vez mais
nervoso e o mar agitado.
Tive que arriar a grande, apesar de lembrar de Tabarly, que fala em seu livro,
Guia Prático de Manobra, que com ventos favoráveis, de 50 a 70 nós, tem deixado
todo o pano, ou quase todo o pano, em cima. Basta que seja favorável.
Foi baseado na teoria dele que fui deixando o pano, mas ainda sou aprendiz de
feiticeiro. Também de tem uma dúzia de homens a bordo, velas da melhor qualidade,
tecido muito grosso. O seu barco não é mais barco, é um avião que voa baixo.
Sozinho, arriei a grande sem dificuldade, mas na hora de arriar o pau de spinaker
foi um deus nos acuda. A vela enrolou no estai, o balancim do tangon com a driça e
assim por diante. Acredito que estou desaprendendo, mas felizmente não rasgamos o
pano e finalmente me vi apenas com o tormentim de 7m.
Entrei para fazer o mingau, pois ia escurecer. O vento urrava lá fora e o mar
estava virado no cão.
De vez em quando, a onda enchia o cockpit de água, mas eu sabia porque tinha
reduzido demais o pano e estava faltando velocidade. Com isto o leme se torna menos
eficiente e o barco tende a atravessar na onda.
Depois de tomar o mingau, deitei-me mas não consegui dormir. Com o balanço,
deslizava sobre o lençol, de um lado para o outro do beliche. Escorava um joelho
aqui, um cotovelo ali, mas não adiantava. Ele era largo, confortável com bom tempo.
Mas, em mau tempo, o ideal é um lugar apertado, onde a pessoa possa cair e ficar
dormindo imprensado, quase imóvel.
São duas da manhã, acordei para olhar o ambiente lá fora e tomar um chá.
Acordei porque dormi um pouco; a única prova disto é que sonhei.
Aliás, tenho sonhado muito, apesar de não gostar de registrar os meus sonhos
em meu livro.
Quando o tempo está bom, sonhos de amor, com a natureza. Quando faz mau
tempo, os sonhos são sempre de luta, não dá outra coisa.
No sonho de hoje eu era um cavaleiro errante, de armadura e espada, que ao me
encontrar com outro, de igual espécie, a gente se saudava e partíamos para a luta.
Há muito tempo que já tinha optado por este caminho e a minha presença ali era
um testemunho de que vencera inúmeras batalhas.
Lembro-me bem, andava sobre um solo extremamente árido, um deserto, era a
própria superfície lunar.
Parei, o meu cavalo revolvia as pedras com sua pata. Aquela altura, não esperava
encontrar ninguém por ali, quando, de repente, apareceu um ponto que se movia no
horizonte, veio crescendo, crescendo, e já podia vê-la perfeitamente.
Tratava-se de um cavaleiro.
O seu cavalo, andando com elegância, passava por cima de rochas e buracos
deste solo árido, sem o menor tropeço.
Ele pára, faz a saudação de costume e eu o saúdo também.
E a saudação antes da luta.
Ele tem a armadura cinza como todos nós e a cor do seu escudo era verde e
laranja (as cores da Petrobras).
E ele ajeita a armadura sobre a cabeça, e, neste momento, as mechas de seus
cabelos longos sobram ao vento, e eu o reconheço, Digo Kaster. Ele reconhece a
minha voz e diz Aleixo.
P grande a alegria. O encontro de dois amigos em terras tão distantes.
Ele, como eu, saíra pelo mundo, andando em busca de luta.
Para saudar .o nosso reencontro, demos dois topes com as nossas armas e
partimos juntos pelo mundo.
Acordei.
Fui tomar chá, depois ouvir música, estava sem sono.
3 de fevereiro de 1981 (décimo primeiro dia)
Amanheceu. O mesmo vento, só o mar um pouco mais grosso. Fui tomar café e
ouvir mais música, mas veio algo que superou o som do toca-fita.
Uma onda enorme rompeu na popa e espirrava água, por todas as fendas, por
entre as tábuas do escotilhão. Eu que me orgulhava de ter um barco enxuto tive que
aceitar a nova realidade. O sol empenara as tábuas e teria que dar uma ajeitada nas
suas bordas.
A razão disto era mais uma vez a reduzida área vélica e a consequente pouca
velocidade. Do yankee de 25m reduzi para o tormentim de 7m. Faltava uma vela
intermediária, uma que não comprei por falta de recursos. Lembro-me de quando
encomendei as velas, fiquei sem dinheiro até para o sorvete.
A pressão baixou para 756. O tempo nublou um pouco e um grande albatroz,
com toda a serenidade, deu umas voltas em torno do barco e seguiu adiante.
O vento cedeu um pouco, mas deixei tudo como estava.
Amanhã será outro dia. Fizemos hoje, apesar de tudo, 130 milhas e acaba aqui a
nossa regata contra os ciclones, entrando agora em uma área completamente
diferente.
4 de fevereiro de 1981
Chove lá fora.
nossa posição, menos de 400 milhas da Costa Africana.
Ouço a rádio de Moçambique, falando em português, ou em dialeto local. O
Brasil é que silencia. Não consigo ouvir o Brasil.
Agora me preparo para contornar o extremo sul da África, o Cabo da Boa
Esperança. Temos que enfrentar.
5 de fevereiro de 1981
Fechado numa caixinha que balança sem parar. Com cotovelos e joelhos
doloridos de tanto se escorar no interior da cabine. Sem poder abrir nada, pois a água
passa em alta velocidade lá fora, diversos sentimentos vão habitando o meu coração.
Ora sinto-me feliz. Extremamente feliz. Ouço música e vou pensando na vida. E
sinto que sou livre. Não é só por causa do barco, mas sinto-me realmente livre, com
mil opções pela frente. Vou pensando e recapitulando as minhas possibilidades
imaginárias. Sonho alto.
Depois me canso de pensar.
O vento refresca e o barco todo estremesse. De repente, me vendo aqui
engaiolado, sinto-me pequenino, sozinho, perdido neste mar imenso, com todas estas
ondas a querer dar na gente.
Fico deprimido.
Ponho o impermeável e saio. Lá fora o ar fresco, água para todo o lado, me
seguro com todas as forças nos estais e vejo com que bravura o barco se defende das
ondas e segue em frente. De repente sinto-me um super-homem montado neste cavalo
mágico.
Fico um tempo assim a contemplar a natureza.
Os dedos ficam doloridos, sinto frio. Desço para a cabine e vou preparar o
jantar, pois sinto fome.
7 de fevereiro de 1981
A calmaria acabou e estabeleceu-se um vento pelo NE, que com genoa e grande
no 3.º riso, permitiu um avanço de 130 milhas.
Depois, à noite, tive que mudar de rumo. Não queria rumar direto para cima de
terra, ainda que o ponto astronômico acusasse 100 milhas de East London.
Rumei para o sul.
A pressão foi baixando, estamos nas proximidades do extremo sul da África. A
rádio Capital anuncia para mais tarde vento de sul, ventos frios, já estamos beirando a
latitude de 35ºS.
Ontem à noite, avistei um navio, um só por enquanto, mas sei que aqui passam
muitos. É a rota para quem vem do Índico para o Atlântico e vice-versa. Aqui terei
que usar luz de navegação, nem que tenha que virar mais o motor e carregar as
baterias.
Ao completar o tanque, com óleo do camburão, descobri que gastei 18 litros de
diesel em 50 dias. Ainda me restam 200 litros. Por isso não vou me arriscar no
escuro, ainda mais que agora estamos nos aproximando, e sinto, ainda que remota,
uma chance de concluir esta volta ao mundo tão sonhada.
Agora passei a ter medo. Como alguém que anda geralmente despreocupado, em
alta madrugada, mas, ao carregar no bolso uma preciosidade, passou a ter medo de
ser assaltado. E o que carrego é 85% da volta ao mundo. Creio ser isto o que está se
passando comigo, enquanto me aproximo do Cabo da Boa Esperança.
10 de fevereiro de 1981
Hoje é sexta-feira 13, 13 de fevereiro. Não sou supersticioso, mas deixa passar a
meia hora que falta pois são 11h 30m da noite e <is aves marinhas não param de voar.
A gasolina para elas deve estar barata.
Nestes dois dias deu de tudo. Tormentim ao pôr do sol, calmaria ao amanhecer,
mas finalmente hoje deu um vento firme, um SE favorável e o barco avança que faz
gosto.
O vento começou de manhã, o mar estava liso, mas, pela tarde, a navegação já
estava impossível devido aos vagalhões que mascaravam o horizonte. O Caldeirão do
Cabo da Boa Esperança estava fervendo.
De teimoso tornei duas visadas, o resultado foi que ficaram a 50 milhas
afastadas uma da outra. Desisti, coloquei o sextante na caixa. Isto aconteceu
extamente quando estávamos beirando o banco Agulhas, na latitude pouco inferior a
36ºS.
Procurava tirar proveito da corrente Agulhas, em uma faixa onde ela é favorável,
espremida entre a contracorrente e a corrente geral, que passa mais ao sul e é contra.
Segundo os livros, quando sopra vento contracorrente, levanta-se aí, neste
trecho, um mar de meter medo, razão por que o Cabo da Boa Esperança foi, também,
batizado de Cabo das Tormentas.
Estamos, hoje, com vento a favor, mas ainda faltam 250 milhas até Cape Town,
é cedo para festejar.
Aproveitei para tirar umas fotos do mar, mas, nos melhores momentos, tive
mesmo que me segurar, quando a retranca com o balanço mergulhava nas ondas. Tive
que encolher um pouco esta retranca, reduzindo o rendimento da vela grande, já no 3º
riso, apesar da genoa em cima.
O fotógrafo não afina com o marinheiro. O fotógrafo quer ver o circo pegar
fogo, para tirar boas fotos, o marinheiro quer ver o mar acalmar, para ficar mais
tranquilo. Descansar o coração. Por isso tiro poucas fotos do mau tempo. Agora o mar
está revolto, mas está favorável, o que é muito importante para atravessar esta região
pouco hospitaleira.
Lembro-me que, quando, no barco dos outros, o caldo engrossava, eu era o
primeiro a pegar a câmara e passava a fotografar as ondas quebrando contra o casco.
Lembro-me do Concorde indo em 1973 para Cape Town. Pegamos um mau
tempo, o barco se torcia todo. As conservas armazenadas no armário debaixo dos
beliches arrancaram todos os compensados. O trabalho não estava bem-feito e a fibra
não aderiu bem.
Apesar do barco ser de fibra, o convés era de madeira, e, quando o barco se
torcia, caíam pedaços de madeira no piso, eram lascas de madeira do entalhe das latas
com as longarinas.
É. este o inconveniente do barco misto, os dois materiais não trabalham
igualmente, têm elasticidade diferente.
Lembro-me que Pierre estava ficando louco, o barco só faltava voar. Com
apenas um tormentim de 5m fazíamos 150 milhas diariamente.
Enquanto ele se preocupava, eu tirava as fotos do mau tempo, só parei quando o
filme terminou. Pierre não tirou uma só foto. Ele se preocupava com o barco.
Naquele tempo ele era o marinheiro e eu era o fotógrafo.
Mas deu meia-noite, já são 14 de fevereiro. Por isso posso tomar um gole de chá
e descansar, manter a forma.
14 de fevereiro de 1981
Já estou em Cape Town há mais de um mês, esta cidade parece ter visgo. O
tempo passa e a gente vai ficando.
Tudo começou com a atracação no cais do Royal Cape Yacht Club. Ao
aproximar-me, alguém se apressou para ajudar-me, era Henry Iria, um uruguaio que
chegou aqui há cinco anos como turista e ficou.
Começamos a conversar, q tomar café, depois Henry começou a apresentar-me à
boa gente desta terra.
Henry é do tipo boa vida. Deixou de trabalhar em terra, dedica-se atualmente a
transportar barcos de um lugar para outro, ou comandar barcos em regata.
Tinha chegado numa 2ª feira, após 59 dias de mar, mas, na 4ª feira, já estávamos
correndo juntos com Henry no Beatrice.
Na 6ª feira, apenas dois dias depois, nos largamos a bordo do Gazala, um
Peterson, para a regata de Saldana, com um percurso de 120 milhas.
Era um destes dias que o SE soprava de arrepiar. Para mim, iam suspender a
regata. Todas as driças assobiavam em sinal de protesto, mas não houve uma
desistência sequer. Aqui todos estavam acostumados e o vento beirava os 50 nós.
Demos a largada, usando a grande no 2º riso e a genoa um armada como se fosse
um spinaker.
O barco andava que dava medo, mas as costuras cederam. Era o vento sob efeito
dos morros, nas proximidades da cidade.
Logo em seguida, içamos um spinaker, que faz o barco andar ainda mais.
Tentando ganhar, Henry punha o mais de vela que podia. Avançávamos muito
bem, mas, em uma rajada, o spinaker estourou. Içamos outro menor logo sem
demora, mas, naturalmente, já não tínhamos condições de ganhar.
Outros estouraram a grande, a genoa, raro o barco que não perdeu algo.
Brincando com Henry eu dizia: “Agora sei porque tantas estrelas no céu. São pedaços
de spinaker, iluminados no meio da noite”.
Eu que sou um indivíduo eminentemente de cruzeiro, amante da paz e
tranquilidade, senti o sangue ferver durante a regata. A gente vai se aproximando da
loucura.
Regata é algo realmente muito louco e a gente sente crescer em nosso interior o
espírito de competitividade, por uns tempos adormecido, hibernado, mas sem dúvida,
como provam os fatos, nunca ausente.
Daí em diante, os convites choveram. Fomos a Church Haven, um local
encantador entre o mar e as lagunas, lembrando Arembepe.
Corri para estirar as pernas, subi morros, apreciei a natureza, mergulhei entre
algas imensas, e, apesar da roupa de neoprene, fui escarreirado pela água gelada.
Neste local, um grupo de 10 pessoas alugou uma casa de campo, onde passamos 2
dias agradabilíssimos com Brita (Billy), Françoise, Alfredo, Ilsa, Helen, e, sem
dúvida, o encanto e a candura de Bárbara, a sul-africana que balançou a firmeza aqui
do marinheiro.
Ela, com os olhos, e, principalmente, com o sorriso, reduziu-me a escravo desta
nova necessidade. Por isso dizia sempre: Bárbara, se você pudesse não deveria parar
de sorrir. Filha de poloneses, nascida no extremo sul aqui da África, em Cape Town,
conseguiu desenvolver em meu peito os melhores sentimentos de ternura e amizade.
Daí em diante foram os churrascos, os jantares com Dick Johnson, do Ingrid,
andando pelas montanhas com Neoline.
Feitas as primeiras amizades, boas amizades, os convites não paravam e chegou
o momento de começar a rejeitá-los por um motivo muito simples. Impossibilidade
física de atendê-los.
A gente tem que reconhecer que esta gente aqui do extremo sul da África,
isolados do resto do mundo, tem uma carência de comunicação que é expressa em
hospitalidade.
Queixam-se muito, os iatistas principalmente, do esfriamento das relações com o
Brasil e o fim da tão famosa regata Cape Town-Rio, que os trazia à cidade
maravilhosa às vésperas do Carnaval.
Assim sendo fui levado a montanhas e vales, praias e rios, aos grandes centros e
aos subúrbios, às plantações de uva em Stellen-busch, aos bairros negros, e, sem
dúvida, também aos bairros de luxo.
Durante os jantares se conversava sobre tudo, finalmente chegava-se à inevitável
encruzilhada, o “apartheid”.
Muitos o condenam, principalmente os mais instruídos, reconhecem ser um
privilégio desnecessário que lhes custará cada vez mais caro, à medida que o tempo
vai passando. Muitas reformas, sem dúvida, vão sendo feitas, mas, a meu ver,
lentamente.
Outros o defendem, dizendo que a única diferença é que aqui está escrito o que
em outros lugares se pratica, mas não se escreve. Tentam defender algo indefensável.
O negro aqui não tem nem mesmo direito de ter uma casa própria. O governo
lhes constrói as casas, lhes impõe as condições e depois os brancos se queixam de
que eles não as conservam. A falta de liberdade é total.
O negro vive nas suas cidades, longe de tudo, dos grandes centros. Se trabalha
em Cape Town à noite, tem que ter um passe. Alguém pegado sem o passe é preso e
levado à corte, onde, para começar, paga uma multa.
O negro não tem direito a especializar-se em certas tipos de mão de obra,
reservados só para os brancos. Aos negros é permitido cavar valas no chão,
transportar tijolos de carrinho de mão e lavar, sem dúvida, latrina, atividade
terminantemente proibida aos brancos.
Explico que não aceito esta lei de exceção, este privilégio, que só desperta nos
negros o ódio pelos brancos protegidos. Este ódio que se transformará um dia em
sangue, sem nenhuma dúvida.
É um caldeirão fervendo que a polícia, com o seu peso, tenta manter com a
tampa fechada, mas que um dia explodirá sem dúvida. A injustiça trará
inevitavelmente a violência.
As esperanças dos brancos de Cape Town – muito mais liberais do que os de
Pretória ou Joanesburgo, pois a brisa do mar amacia o coração dos homens e afrouxa
os sentimentos tensos e radicais – é explicada da seguinte forma: “A cor aqui não
divide os homens. Os brancos estão no poder, está certo, mas os negros não são uma
massa única e uniforme. São nove as nações negras, que têm também fortes
rivalidades entre si”.
Os Zulus detestam os Xhosas, é comum nas minas as lutas entre os próprios
negros. É justamente esta rivalidade entre os negros que dá aos brancos, com apenas
20% do todo, uma possibilidade de se manter no poder.
Não sei porque proíbem e punem com 6 meses de cadeia o acasalamento entre
brancos e negros que daria o mestiço, o moreno, uma verdadeira almofada, que
abrandaria o choque inter-racial.
Sempre achei que o racismo não é um sentimento forte.
Forte é amor, muito mais forte do que o ódio.
O racismo passa a se manifestar como sentimento odioso, quando se estabelece
uma injustiça social ou econômica, quando uma raça no poder oprime a outra.
Não havendo injustiça, ama-se mais a uns do que a outros, por problemas de
identificação de objetivos ou afinidades afetivas, independentemente da raça.
Só pelo fato de ser um branco, não se é obrigado a amar todos os brancos e as
guerras entre brancos através da história mostram o fato.
Estas discussões passam a ser, geralmente, a sobremesa, após o jantar. P
desagradável, após ser convidado, homenageado, bem tratado, ter que discordar no
fim. Mas como concordar com algo que o coração não pode aceitar?
Se eu fosse um negro na África do Sul, rejeitado, injustiçado, tenho a certeza
que seria muito mais perigoso do que muitos deles, pois, com os conhecimentos do
mundo que tenho, com a minha consciência, lutaria com muito empenho para
derrubar este privilégio.
O pior de tudo é que no meio de tudo isto encontram-se pessoas ótimas. Fiz
tantas amizades, talvez por já estar me aproximando de casa, já concluindo a viagem,
mas em Cape Town foi onde recebi a mais calorosa acolhida de toda a viagem, onde
fiz mais amigos, onde recebi mais amor. Creio que foi amor verdadeiro.
As vezes penso que pelo fato de já estar me aproximando de Salvador, estando
às portas do Brasil, relaxei a vigilância que tinha estabelecido em volta do meu
coração, impedindo qualquer aproximação.
Lembro-me que ainda em Salvador, meses antes da largada para a viagem de
volta ao mundo, quando acontecia simpatizar com uma mulher, ia logo dando o aviso.
“Se você me quiser, será da cintura para baixo, pois o coração e a razão estão
comprometidos com a viagem”.
Foi aqui, em Cape Town, que esta guarda de aço, que tanto me protegeu contra
um possível amolecimento, uma parada, foi finalmente relaxada.
A porta do coração se abriu, ou ficou entreaberta, permitindo que alguém se
aproximasse e por fim penetrasse nesta região por tanto tempo desabitada.
Ainda sabendo que tinha que continuar a viagem, mas a proximidade do fim me
dava uma certeza de que forças não iriam faltar, para desatracar mais esta vez do cais.
Mesmo assim passei 33 dias nesta cidade, a mais longa parada de todo o percurso,
após passar 2 meses no mar sem escala.
Quando anunciei a data da minha partida foram marcadas as festas que não
pararam mais, nem tampouco as visitas a bordo.
Um churrasco me foi oferecido, onde compareceram 26 pessoas. Arrodeado da
amizade de Henry, do amor de Bárbara, de tantos amigos, vivi momentos
inesquecíveis. Um livro sobre Cape Town me foi oferecido após a assinatura de
todos.
Na última noite fiquei a bordo, foi a noite das visitas.
Henry tocava violão, juntamente com Massato, um japonês, navegador solitário
que viera há 2 dias, e um monte de amigos. Dizia que já podia partir, pois já viera um
outro solitário para me substituir.
Começamos tomando chá, depois trouxeram garrafas de whisky e o papo se
prolongou até alta madrugada, ao som da viola e dos carinhos de Bárbara.
Fui dormir já era tarde, resolvi sair no outro dia às 10h. Os amigos vieram me
trazendo presentes, flores, finalmente beijos e abraços.
Henry, num ato simbólico, não me desatracou e sim passou a faca nos cabos,
dizendo que se ficasse mais um pouco ficaria para · sempre.
E foi assim que deixei Cape Town.
11.DE CAPE TOWN AO RIO DE JANEIRO
25 de março de 1981
“Futebol, Pelé”’.
Este homem é mais conhecido através do mundo por onde passei que o papa.
O único medo que tenho é que as transformações demorem, e o ódio, que o
apartheid é capaz de desenvolver, resulte em um banho de sangue, envolvendo
inclusive milhares de indivíduos ótimos que estão ali por força do destino.
29 de março de 1981
A crise passou. Aproveitei para redigir a parte final do livro, o apêndice, a parte
técnica por assim dizer, e dar início aos preparativos da chegada.
A crise passou, mas resta sempre um pouco de tristeza.
Sempre ia para algum lugar, agora estou voltando. Na realidade estou indo para
a frente, pois não sou culpado da Terra ser redonda.O fato é que estes dias estava
pensando. Fiz esta viagem muito rápido. Esta é a viagem do Brasil. Falta fazer uma
para mim mesmo.
Sem rota, sem destino, embarcando e desembarcando tripulação. Vivendo as
aventuras não só no meio da natureza, mas também no meio dos homens. Viver ao
mesmo tempo uma série de aventuras. Permitir ao mesmo tempo uma série de
emoções, sem data de chegada nem planos distantes. Viver o dia a dia.
Lembrei-me agora de um velho espanhol que conheci em Trinidad, que se
chamava de “Skipper”. Creio que ele mesmo escolhera o seu apelido, morava em
uma casinha flutuante que construiu, onde fazia estatuetas em gesso para sobreviver.
Ele parecia sonhar ser um marinheiro. Gastou a vida por aí e agora mora sozinho
à beira do mar.
Ele me falou que um dia destes põe umas provisões a bordo, corta as amarras,
deixa a sua casinha flutuante sair à deriva. O destino que se encarregue do rumo.
Ele irá arrebentar-se sobre os primeiros penhascos, pensei, sem propulsão nem
condições de manobra, mas compreendi e calei.
As vezes não importa a realidade, importa o que se sente. Cansado de delegar a
si próprio o destino de seus passos, morando completamente só, insatisfeito com o
mundo, com tudo, quer tentar dar chance ao acaso.
Não quero ir como o “Skipper” em uma casinha flutuante, despreparada para o
mar. Mas, quem sabe, em um barco relativamente seguro, tentar escutar a voz do
acaso e ver o que se apresenta pela frente. Isto teria, sem dúvida, outros sabores. Até
agora o método foi um só. Planejar, estudar as implicações, fazer a programação,
cumprir a programação, se possível o quanto antes, antes do prazo, bater todos os
meus próprios recordes.
Não se deu muita chance às asas do destino, se é que isto não é o meu próprio
destino.
A esta altura, hoje, eu não sei de nada. Não sei o que será da minha vida, mas
talvez seja melhor assim. Qual seria a graça de se jogar com cartas marcadas?
Só posso dizer que esta viagem não matou a minha sede.
Naveguei, é verdade, mas não vivi.
Agora eu quero viver, sem saber o que isto significa.
Talvez parar numa ilha destas e esquecer do mundo, fugir mais uma vez do
rebanho, da vida de gado.
Sinto-me como alguém que estava em missão pelos mares. Embaixador do
Brasil no mundo da vela, no país dos ventos, e que agora estou de volta com a missão
cumprida.
Ainda a pouco, em Cape Town, todo mundo falava da regata de volta ao mundo
em solitário e eu pensei.
Quem sabe agora, chegando de volta ao Brasil, o primeiro navegador solitário
brasileiro a completar uma circunavegação, talvez possa até conseguir um
patrocinador e ir para esta regata que começa em Newport no ano que vem.
Contatar projetistas, construir o barco, correr a regata.
Não, isto seria entregar-me novamente a planos e adiar mais uma vez o início
desta nova fase. Eu quero viver e pronto. Fim.
Mas o que seria viver? Então a gente pensa.
Para mim, o melhor seria chegar, dizer: “Alô Pessoal”.
Publicar o meu livro e partir.
Aí a gente se lembra do Pai com 84 anos, da Mãe, dos filhos que há tanto tempo
não vejo e nem sei o que sentem.
O capim já deve ter tomado conta do quintal, o telhado deve estar cheio de
goteiras, o pouquinho de dinheiro que deixei já deve ter acabado, ainda mais com a
ajuda da inflação. Este pessoal, de idade avançada, já não pode cuidar das coisas.
O melhor é não fazer planos.
Chegando lá, a gente vê e depois a solução aparece, ou melhor, o que aparecer
chamaremos de solução, pois, para ser completamente livre, precisa-se ser
completamente só.
11 de abril de 1981
Para evitar rasgar a vela grande, já cansada, nas vésperas da chegada lancei mão
do 4º riso e fiquei bordejando. Fui ao sul, o vento rondou, fui ao norte. Agora que o
tempo passou estamos tentando tirar o atraso.
Ouvimos a Rádio Globo do Rio, que só fala em inflação, 121% este ano que
passou. E bom a gente ir se inteirando das preocupações que afligem o nosso povo.
Vou também saciando esta sede de ouvir o nosso idioma, mas tudo agora é chegar.
Esta é a meta. Pisar, depois deste tempo todo fora, em terras brasileiras. Pôr o pé em
terra firme e dizer: Cheguei.
O vento passou a favorável, mas continua forte e o Três Marias avança ladeira
abaixo, em louca disparada.
16 de abril de 1981
O vento varreu as nuvens grossas e ficou apenas aquele véu, mas não
conseguíamos ir direto a Cabo Frio. fomos bordejando.
Estava tão certo, após todo este tempo, de ver, hoje, terras brasileiras, mas a
certeza o vento levou. Vou é aproveitar para dormir um pouco.
Quando deu duas e meia da tarde, levanto e avisto uns morros.
Terra à vista, Brasil.
São morros nas proximidades de Cabo Frio e que estão há mais de 35 milhas.
O vento é brando. Orçamos, avançando devagar, mas, de qualquer forma,
faltando quase 100 milhas até o porto. Só amanhã se tudo der certo.
23 de abril de 1981
Levei mais de um dia para ir do Rio a Cabo Frio, quando saí com destino a
Salvador.
Após filmar toda a manhã com a TV Educativa parado no cais em frente à sede
do late Clube do Rio de Janeiro, saí, e eles me acompanharam, para filmar com as
velas em cima.
O Iate Clube colocou à disposição uma lancha com marinheiro, e quando a
filmagem acabou os braços se levantaram e acenaram o adeus, o adeus a esta cidade.
Estava indo de volta ao meu porto de origem, estava indo para casa, para Salvador,
Bahia.
Pela manhã não teve vento, mas pela tarde uma aragem afunilou-se por entre o
Pão de Açúcar e o outro lado da baía, e foi com esta aragem que o pano encheu para a
filmagem, mas, assim que saí barra a fora, o vento acabou. Continuei no motor
procurando afastar-me.
Quando escureceu, desliguei o motor, mas o barco deslizava tão de leve, quase
parado.
Quando amanheceu, a calmaria ainda era total, e a corrente nos puxava para o
sul.
O sol estava quente e pulei n’água para investigar o casco. Ele estava cheio de
algas, cracas. A última vez que ele viu tinta anti-encrustante foi em Bali, quando dei
umas pinceladas de tinia venenosa, num intervalo de maré.
No Rio não quis pintar o barco, pois estava tão perto de Salvador, faltava pouco
para chegar em casa. Com este mergulho aproveitei para limpar a hélice, foi tudo o
que fiz.
Tornei a ligar o motor, pois a data de chegada em Salvador, o encontro com os
amigos, a Marinha e a imprensa já estava marcada.
Seria no dia 23 de maio, às 15 horas, em frente ao cais do 2º Distrito Naval.
Já soube que os barcos iriam sair para receber o Três Marias em frente ao Farol
da Barra. Só não podia me atrasar. Pela primeira vez, em toda a viagem, tive um
prazo exato, um dia marcado, uma hora marcada.
Cheguei no Rio de Janeiro, no dia 23 de abril, numa quinta-feira.
A alegria de ter retornado ao Brasil invadira todo o meu interior, e após arrumar
todo o barco por dentro, arriar as velas e entrar no motor, fui percorrendo o canal de
tráfego entre os barcos fundeados até a sede do Iate Clube do Rio de Janeiro, onde
atraquei a contrabordo de outro veleiro.
Já estava de banho tomado, roupa separada e sacola a tiracolo com tudo
preparado. Assim que o barco atracou, saltei no cais e saí andando.
Tinha muita gente por ali, mas ninguém desconfiava que este barco acabara de
dar a volta ao mundo em solitário e estava vindo da África do Sul.
Fui passando em frente ao restaurante e encontrei logo de cara com Eduardo
Basílio e Paulo Vítor. Dirigi-me à recepção náutica e lá soube que a Marinha estava à
minha procura desde o dia 20, dia previsto para a minha chegada.
Durante a viagem mantive a Marinha informada da minha posição, pois, foi da
Marinha que recebi todas as cartas e publicações náuticas, e, quando em Cape Town,
finalmente informei o dia provável da minha chegada.
Assim sendo, estavam me procurando por todo o lado, já se comunicaram com
os iates clubes de Niterói, Cabo Frio e Angra dos Reis, para ver se estava por lá, mas
foi mesmo o atraso.
Telefonei e falei com o Comandante Teixeira, que me pôs em contato com o
Almirante Luís Carlos Freitas, o mesmo que me recebeu no Rio e me forneceu as
cartas, na véspera da minha partida.
Foi assim que soube que seria recebido oficialmente, mas teria que dar um
tempo, para reunir a imprensa.
Como já estava tarde, ficaria para o outro dia às 14 horas no cais da Diretoria de
Hidrografia e Navegação.
Fiz umas merendas e já ia descansar, mas logo começou a chegar gente e a fazer
perguntas.
Tinha passado 33 dias mudo e de tanto falar logo fiquei rouco.
Fernando Kaster, meu amigo da Petrobras, interceptou a bordo do Pearl Marine,
onde estava embarcado, a conversa via rádio, entre a Marinha e o Iate Clube, e assim
soube da minha chegada vindo estourar no Iate. Foi aquela alegria. Eu que pensara
tanto nele, durante a viagem, e no barco que ele pretendia construir, e que os meus
melhores amigos ou morrem ou são transferidos, vim finalmente encontrá-lo mais
cedo, antes mesmo de voltar a Salvador.
Ele estava embarcando um módulo de 400t, bem ali junto da Ponte Rio-Niterói,
e no outro dia, após a cerimônia da Marinha, fui lá olhar o serviço.
No outro dia, às 14 horas, segundo programado, o Três Marias deslizava
suavemente e se aproximava do cais da DHN. Dois marinheiros especialmente
escalados para atracar o Três Marias, enquanto a banda de Fuzileiros Navais tocava o
Cisne Branco.
Saltei para cumprimentar no cais o Almirante Luís Carlos Freitas e depois o
grupo de oficiais ali formados para receber-me. Cumprimentava um por um. Eles
batiam continência e eu não sabia o que fazer. Era um civil, logo, apertava-lhes as
mãos.
Três canais de televisão, repórteres dos diversos jornais cobriam a solenidade,
todos mobilizados pelo serviço de relações públicas da Marinha, e, após receber um
escudo, vários presentes, recebi um diploma congratulatório, de ter sido o primeiro
navegador solitário a ter completado a volta ao mundo em um veleiro de bandeira
brasileira.
Confesso que não esperava tanto, ainda nem tinha chegado em casa.
Depois os repórteres invadiram o barco e brigavam entre si me assolando de
perguntas. Pedi que tivessem calma, pois responderia a todas.
Depois, a pedido da TV Globo, tive que simular uma nova atracação, pois
chegaram com 2 minutos de atraso, e tinham perdido esta parte, seria para o Jornal
Nacional, que passaria ainda aquela noite para todo o Brasil. Não pude me negar.
Finda a solenidade, voltei ao Iate Clube, onde após ver-me na TV telefonei para
meus pais e minhas filhas. Com elas combinei o reencontro no mesmo cais do 2º
Distrito Naval, de onde parti. Prometi que desta vez não iria chorar. Prometi algo que
não sabia se poderia cumprir, pois, na saída, as lágrimas rolaram, após ter passado 20
anos sem chorar por nada neste mundo.
Dormi aquela noite pensando que na manhã seguinte iria ancorar o barco ao
largo, mas, pela manhã, chegou Eduardo Basílio e comunicou que o barco ficaria no
cais principal, em frente à sede em exposição pública.
Fizeram uma grande placa “Volta ao mundo em solitário” e puseram-a em frente
ao barco. Colocaram dois marinheiros para tomar conta do barco, para evitar que
levassem lembranças do barco.
Foi preciso brigar para dispensar os marinheiros, pois qualquer ação policial
cortaria a poesia.
O barco ficou em exposição permanente por 3 dias, recebi a bordo mais de 500
pessoas e nada desapareceu. Ninguém teve coragem de tirar um só palito do barco, ou
um artesanato que enfeitava o barco que deu a volta ao mundo.
Fiz tanta amizade.
Ganhei presentes, ganhei retratos, poesias, palavras amigas, tive que dar até
mesmo alguns autógrafos. Mostrei mil vezes o álbum de retratos da viagem e
expliquei as coisas.
Pellicano, que fez muitas velas, veio ver o barco e pessoalmente levou-as para a
veleria, onde fez pequenos reparos e recortou as que tinham estirado.
Pellicano analisou a vela grande palmo por palmo e brincando falei: Você nunca
viu uma de suas velas fazer 26000 milhas.
Ele sorriu. A vela grande era única, ela teve que estar em cima todo o tempo,
percorreu todos os oceanos, aguentou a todos as rajadas, suportou os raios solares de
todas as estações.
Finda a visitação pública, coloquei o barco na amarração e tentei viver. Divulgar
era muito importante, mas precisava de uma pausa.
Vieram em seguida as reportagens com mais calma, mais detalhadas, pois já
tinha passado o calor da chegada. Era o Jornal do Brasil, algumas revistas, como Vela
e Motor, etc.
Resolvi aproveitar, já que estava no Rio, e fazer uma pesquisa de mercado.
Segundo contam, temos mais de 2000 engenheiros desempregados nesta cidade.
Lembrei-me das ilhas do Pacífico, onde frutas e peixe, com um pouquinho de arroz,
matam a fome de qualquer ser humano, onde só se trabalha 2 dias na semana e se
vive como num paraíso.
O melhor da vida, a beleza da natureza, é grátis. Qualquer bronca, eu volto pra
lá, para o mundo dos sonhos, já que o mundo dos homens, aqui, só acrescentou
necessidades.
Um outro problema que me saltou aos olhos foi a carência afetiva desta gente
morando em grupo. A solidão coletiva das grandes metrópoles. Sozinho, no mar,
superei este tipo de problema, aprendi a gostar de mim mesmo, de conviver com o
animal que mora dentro de mim e a curtir a mim mesmo. Há muito tempo que a
carência tinha me abandonado, e agora, ao vê-la habitando estes corações, perdidos
na multidão, juro que me assustei.
Percorri também os editores, informando-me sobre a forma de apresentação do
material para a edição do livro.
Revi amigos e fui com Rita de Belmonte e Gustavo ao Planetário da Gávea,
assistir Osmar Macêdo tocando com seus filhos.
Completei o diesel, comprei umas frutas e após filmar por uma manhã inteira
com a TV Educativa parti com destino a Salvador, pois o dia da chegada já estava
marcado. Instantes antes de sair, telefonei para o meu amigo José Serra, o embaixador
da viagem em Salvador, para dizer que desatraco em 10 minutos e que dissesse a
todos que me ia.
Já passaram-se 5 dias, mas pouco se avançou, talvez umas 250 milhas. Começou
com calmaria, mas depois foi vento duro na cara.
Com medo de me atrasar, fui procurando manter o máximo de pano em cima e
vi a hora de estourar a genoa. Eu, que não tinha rasgado um só pano em toda a
viagem, me vi à beira deste evento.
Entre rasgar um pano e frustrar os amigos, que segundo soube vão sair a vela,
para esperar-me em frente ao Banco de Santo Antônio, e também perder a festa que
estão me preparando, dos dois o menor. Por isso fui forçando o mais que pude.
Foi borda n’água, foi tudo, mas „de tanto adernar o barco já não andava, e arriei
a genoa, risei a grande, icei o yankee e fomos avançando. Ainda que devagar.
Durante estes 5 dias, nenhum dia de vento favorável, e por cima de tudo a
corrente contra. O fundo do barco sujo, cheio de cracas e limo, já não permitia um
bom rendimento. Só agora que o vento está rondando é que avançamos um pouco
melhor.
Alguém no Rio me falou: “Cuidado com o Cabo São Tomé, ele tem arrecifes a 8
milhas da costa”. Não sei o que ele pensaria, caso soubesse que, quando atingi a sua
latitude, estava afastado 200 milhas de terra firme. O vento impedia que fosse para o
norte, então fui me posicionando para leste, para quando o vento rondasse, e foi isto
que aconteceu.
20 de maio de 1981
E madrugada, ainda não amanheceu, posso ver nitidamente o clarão de Salvador.
Desde que o vento rondou estávamos fazendo pelo menos 120 milhas
diariamente, agora, se quisesse, poderia estar talvez ainda hoje em Salvador.
Como marcamos o encontro com todos no sábado à tarde, e hoje ainda é quarta-
feira, terei que entrar em Morro de São Paulo, onde aguardarei até a madrugada de
sábado, então faço rumo para Salvador.
A tentação é grande, de levar o barco direto a Ancorar no Porto da Barra e
telefonar para os amigos. Mas vou tentar falar com a turma aqui de Valença. Tem
horas que não acredito que estou aqui e agora que vi o clarão da cidade se espalhando
por baixo das nuvens posso confessar.
Quando saí daqui, no dia 16 de março de 1980, não tinha certeza de que voltaria,
ou se ficaria perdido por lá, o barco dependurado em um daqueles mil arrecifes e eu a
me diluir nas águas do mar.
Sempre pensava. Quantos arrecifes ainda me separam de casa, quantos arrecifes
ainda faltam a evitar, quantos navios ainda vão cruzar a minha rota, quantos
imprevistos podem surgir. Não sabia se poderia contorná-los, um por um, evitá-los,
finalmente chegar.
Eles eram tantos, isto era o que me deixava cansado a ponto de desanimar.
Às vezes vinha a alucinação, me via caindo do barco; como último recurso tinha o
direito de dar um adeusinho ao barco que seguia o seu caminho.
Ainda não cheguei em Salvador, r as já vi o seu clarão, ainda que de bem longe.
Quando amanheceu, vieram umas nuvens e o vento começou a rondar para tudo
o que é lado. Liguei o motor para ajudar.
O vento reduziu mas o mar manteve as suas ondas. Assim sendo, a genoa não
enchia, mas apenas se batia de um lado para o outro – fui forçado a arriá-la.
De repente, as nuvens carregadas, que nem cortinas até o chão, se abriram e vi o
Morro de São Paulo, meu velho conhecido, bem na minha frente.
Quantas saudades.
Fui avançando, passei pelo Morro e lancei o ferro na Gamboa, indo
imediatamente para terra. Foi bom pisar em terras baianas.
Arrumei um barco pequeno para me levar em Valença e ainda naquela noite
telefonei para casa, para as filhas e para Serra, informando que tinha chegado,
confirmando a minha presença, segundo combinado, no sábado, à tarde, em Salvador.
E impressionante a penetração da televisão nos lares brasileiros. O pescador de
bote tinha me visto na TV, duas pessoas na telefônica me reconheceram, até mesmo o
dono de um pequeno supermercado onde troquei os dólares.
Dormi em Valença, mas não encontrei Pedro Paulo, que tinha se mudado para
Salvador. Voltei no outro dia para o Morro; arrumei o barco, andei pelas praias, tornei
banho no rio, conversei com Miliquita, finalmente saí no sábado para o reencontro
com os amigos.
Inicialmente pensei em sair às 6 da manhã, mas depois adiantei e saí às 2 da
madrugada. Assim teria 13 horas para fazer as 35 milhas.
Não foi fácil. A escuridão era total e quando a lua espalhou um pouco de luz por
entre as nuvens, dissipando as trevas, o Três Marias deixava lentamente o Morro de
São Paulo. O farol com a sua luz iluminava os coqueiros e as pedras negras na beira
da praia.
Avançava devagar, o ecossonda ligado, apenas a vela grande em cima e o motor
virando. Apesar de conhecer bem aquelas paragens, todo cuidado era pouco, pois
carregava comigo o que me era de mais precioso, a viagem de volta ao mundo.
O vento deu na cara, foi difícil avançar. O motor permaneceu ligado, ajudando a
vela. Queria andar pra frente de qualquer jeito.
As nuvens taparam tudo, o vento me força a ir para cima da costa. Resolvi virar
de bordo, me afastando mais. Estava num impasse, arriscar indo pra frente ou me
afastar, em busca das águas profundas, indo porém um pouco para SE, o que seria ir
pra trás.
Aos poucos fomos avançando, e, quando menos se esperava, as nuvens deram
uma chance e avistei Salvador. Tinha avançado com boa margem de segurança.
Desliguei o motor, fui devagarzinho. Era muito cedo e aos poucos os prédios da
Pituba foram tomando o seu formato, até que apareceu o Farol da Barra.
Tudo isto me trazia recordações, estava realmente em frente à nossa cidade, a
cidade do Salvador.
Avistava um veleiro que vinha, era o Brisa, com Carlos Alberto e Sinésio. Eles
falaram pelo rádio o informaram à Marinha da minha posição. Depois vieram outros
barcos e mais outros, e ficamos bordejando em frente à cidade aguardando a hora
marcada para entrar.
Falava com um, com outro, a alegria era imensa em rever estes amigos.
Deixei o Três Marias no leme de vento, ele andava sozinho e os barcos nos
acompanhavam. Assim andava pelo convés a cumprimentar os amigos, sem me
preocupar com o barco.
Finalmente apareceu a lancha com as autoridades da Marinha e o Lourinha,
onde iam meu Pai, minhas filhas e outros amigos que não tinham barco.
Os foguetes estouravam no ar, as sirenes tocavam, o Três Marias avançava rumo
ao cais do 2.º Distrito Naval.
Até mesmo eu me emocionava, ao ver como o Três Marias avançava bem no
meio da flotilha. Quando estávamos perto, arriei a genoa, depois a grande, isto em
pleno movimento, finalmente entramos no motor.
Fui ajeitando as coisas, colocando as defensas, preparando os cabos de
amarração, sempre sem parar.
Os barcos da Marinha avançaram e as autoridades saltaram no cais, os veleiros
foram se espalhando pela área de fundeio e o Três Marias, com muita calma, foi se
aproximando.
De longe, via a multidão se aglomerando no cais. Quando cheguei mais perto, os
gritos e aplausos estouraram no meio do povo. Fiquei emocionado. Deixei o leme do
barco que deslizava lentamente e levantei os dois braços para o ar. Neste instante o
foguetório encomendado pela Marinha marcava a volta do Três Marias.
Senti que estava me emocionando. Procurei ter calma, atracar com todo o
cuidado, finalmente esta manobra teria que sair bonita.
A turma gritava meu nome, eu não sabia a quem atender. Os marinheiros
passaram os cabos, ainda ajeitei as defensas sem pressa, com muita calma. Chegando
na borda, antes de saltar, bati a mão na escadaria do cais e gritei:
“Cheguei!”
Passei para a escada e o primeiro a me abraçar foi o Almirante Dilmar de
Vasconcelos Rosa, o mesmo que confiou em meu plano, apresentando-me no Rio,
onde consegui as cartas e publicações. O mesmo que há 11 anos atrás me entregara a
carta de capitão amador, o mesmo que acompanhara através dos anos a minha luta em
busca da concretização deste sonho que não era só meu, mas de milhões de
brasileiros. O segundo abraço foi de meu Pai, que veio andando devagar, com seus 84
anos, enquanto o povo abria caminho para ele passar, um verdadeiro corredor. Ele
conseguiu sobreviver a minha volta.
O terceiro abraço foi em Mariana, a minha filha pequenina. Eu a achei tão
miudinha que caí de joelhos. Nós nos abraçamos e senti que não cumprira a
promessa. A água descia dos meus olhos, aos montes. Depois foi o abraço de
Marúcia.
Os diversos canais de televisão me filmaram desde o mar, os repórteres
enfiavam o microfone em minha boca, eu tive que dizer uma frase que ficou gravada:
“Deixe eu abraçar meu povo.”
Depois eu me abracei com meus amigos, com a multidão.
Não estava chorando sozinho, havia outras pessoas.
Velhos, crianças, gente que nunca tinha visto em minha vida.
À noite foi o coquetel no Iate Clube da Bahia, onde se juntaram ao 2º Distrito
Naval representantes dos diversos clubes náuticos. Fui homenageado e recebi uma
placa gravada:
“Honra ao mérito”
O 2.º Distrito Naval, os Clubes Náuticos de Salvador e seus amigos perpetuam,
nesta homenagem, sua admiração ao Capitão Aleixo Belov pela expressiva conquista
realizada, tornando-se o 1º latista Brasileiro a completar, solitário, uma viagem de
circunavegação.
Salvador, 23/05/81
Enquanto o Almirante discursava, todo mundo sério, Mariana quebra o
protocolo. Vem de lá e se abraça na minha perna. Eu a acompanhei, acariciando a sua
cabeça.
EPÍLOGO
-Oh, rapaz. Você deu a volta ao mundo e agora o que você vai fazer?
-Vou primeiro deixar assentar a poeira, depois a gente resolve.
Sabe, tenho saudades daqueles tempos, que junto com Gutemberg Meira
saíamos caminhando à noite, por estas ruas estreitas, estas ladeiras, com casas
coloniais. Íamos discutindo Platão ou a expansão do Universo.
-E você ainda lê Platão?
-Não, agora eu me interesso pelos problemas brasileiros, os problemas do nosso
povo.
-Espere aí, você falou em uma reportagem, que dar a volta ao mundo em
solitário foi o monte mais alto que encontrou para escalar.
E agora que você esteve lá em cima, diga-me o que foi que você viu?
-Lá de cima, se avistam muitos outros montes, cada qual mais alto.
Vou indo, agora tenho que escrever o meu livro; a gente se vê por aí.
APÊNDICE
1. PLANEJAMENTO DA VIAGEM
2. ESCOLHA DO BARCO
2.1. Formato do casco Quilha longa Quilha curta
2.2. Deslocamento Leve Semi-leve Pesado
2.3. Materiais do casco Madeira tradicional Madeira moldada Fibra de
vidro Fibra de carbono Aço Alumínio Ferro-cimento
2.4. Mastro
2.5. Estaiamento
2.6. Velas
2.7. Driças e escotas
2.8. Guinchos
2.9. Armação
2.10. Âncoras, correntes e cabos de amarração
3. LEME DE VENTO
4. PILOTO AUTOMÁTICO
5. NAVEGAÇÃO EM MAU TEMPO
6. ROUPA
7. MOTOR
8. MANOBRANDO DE RÉ
9. LUZ
10. MATERIAL DE SEGURANÇA
11. PROVISÕES
11.1. Água
11.2. Conservas
11.3. Frutas
11.4. Pesca
12. SAÚDE
13. MATERIAL PARA PREPARO DE EMERGÊNCIA
14. FERRAMENTAS
15. NAVEGAÇÃO
15.1. Cartas e publicações náuticas
15.2. Navegação astronômica
15.3. Navegação com radiogoniômetro
1. PLANEJAMENTO DA VIAGEM
O cabo de aço galvanizado, para conter a oxidação, deve ser protegido por uma
mistura de óleo de linhaça, graxa, sebo e cera de abelha, fervida por várias horas
(talvez 5 horas) para perder por evaporação a parte leve, que lhe impede a secagem.
Mesmo assim termina melando as velas e as mãos de quem os segura.
Um tubo plástico por cima soluciona, ao mesmo tempo que complica.
Bom mesmo é o cabo de aço inox. Dizem que cristaliza após os 10 anos. Para
reduzir este problema, não se deve ser muito econômico no diâmetro, principalmente
se o barco é de recreio.
Quanto maior o diâmetro, menor a tensão, menor a cristalização. Aumentando
porém o custo e o peso.
2. ESCOLHA DO BARCO
2.6. Velas
O peso das âncoras depende não só do tamanho do barco, mas também do tipo
de âncora.
A âncora tipo almirantado não se usa em veleiro, pois requer um peso elevado,
além de ter sempre o perigo, caso mude o vento, de dar uma volta no braço, tirando
dela toda a eficiência. Só poderia ser usada para um fundeio provisório por poucas
horas. As melhores são a C.Q.R. e a Danford.
Usava no Três Marias uma âncora C.Q.R. de 14 kg, mas um dia descobri que
dormia mais preocupado no porto do que em alto-mar. Então resolvi comprar uma
C.Q.R. de 45 libras (22 kg) e dormi tranquilo. (O Três Marias tem 36 pés e pesa 8 t
como está agora.) Gorre te Pode-se usar a âncora com apenas cabo de nylon, mas
para isto é preciso que o fundo seja de areia ou lama, e usar pelo menos um
comprimento de 6 vezes a profundidade do local, e não deve ter Swell. Estas
condições são tão raras que é melhor esquecer. Em local pouco protegido, com tombo
de mar, o cabo de nylon fica estirado, dando puxavões que nenhuma âncora consegue
segurar.
Nos atóis do Pacífico, o fundo é puro coral, e a única solução é corrente.
Uso uma corrente galvanizada de 10mm, lançando pelo menos um comprimento
de 4 vezes a fundura, mas nunca menos de 40m. Assim posso deixar o barco sozinho
e ir para a cidade tranquilo. Na maioria das vezes, a âncora nem está funcionando, a
corrente cozinha se encarrega de ancorar o barco.
Me perguntavam para que este exagero e respondia: “Tenho um método
próprio”, e foi assim que me dei bem. Não gosto de ter dúvidas. Às vezes vou à
cidade e lá mudo de planos passando vários dias fora.
Pode-se usar 30m de corrente e o restante em nylon. Também quando a corrente
fica arrastando pelo fundo ou serrando coral sob efeito das ondas, um pedaço de
nylon evita transmitir ruído, deixando-nos dormir mais tranquilos.
Convém ter um mínimo de 3 âncoras a bordo, principalmente se a tripulação não
mergulha. E fundamental se ter uma âncora com cabo de nylon à mão para usar como
auxílio se o barco encalha. Pode ser levada ao destino com o caíque ou amarrada a
um camburão vazio servindo de boia.
3. LEME DE VENTO
Existe um grande número deles no mercado, além dos que são feitos em casa.
Os que melhor conheço são o Áries e o Atoms.
O Aries é o que tenho. Ele é tão bom que faltam palavras para elogiá-lo.
Nunca deu pane, e em toda a viagem, que durou aproximadamente 8 meses no
mar (não conto as paradas em terra), posso dizer com imensa satisfação que somadas
todas as horas que tive que ficar no leme, talvez, nem complete 1 dia.
O Aries é muito bom e um amador não deve tentar copiá-la. O peso de cada peça
é fundamental e vai repercutir no equilíbrio, na eficiência final. Ele é fabricado na
Inglaterra, em Cowes, por uma pequena oficina que vem melhorando-o a cada ano,
estando atualmente à beira da perfeição.
O Atoms é muito bom, talvez até mais sensível, mas tem o inconveniente de ser
fraco. Quem o tem está sempre às voltas com peças de reposição.
Com o leme de vento, durmo tranquilo, acordando de hora em hora ou de duas
em duas horas, para fazer os pequenos ajustes, quando os ventos mudam de direção.
É igualmente eficiente com vento de popa.
4. PILOTO AUTOMÁTICO
Encontram-se no mercado.
Faz o barco seguir um rumo de acordo com a agulha magnética.
Como o vento a toda hora sofre pequenas variações, as escotas não param no
lugar. Não é aconselhável para um navegador solitário. Com a passagem das
depressões, temos ventos fortes que vão sofrendo rotações constantes. Imagine
correndo no empoupado, se o vento vira e o barco não acompanha, pois está
amarrado à agulha magnética. O tripulante não pode dormir senão o barco atravessa
na onda acompanhando as consequências que isto pode trazer.
5. NAVEGAÇÃO EM MAU TEMPO
Em todos os casos, o maior perigo não está no vento, nem nas ondas e sim nas
quebranças.
O vento pode rasgar um pano, caso não se reduza a área vélica em tempo, ou se
mantenha no ar uma vela de tecido leve. As ondas balançam o barco. Ele sobe e desce
na onda.
Mas quando o vento sopra com violência por um determinado espaço de tempo,
além de criar as ondas, cria as quebranças.
Quebranças ocorrem quando a parte superior da crista da onda assume
velocidade maior que o conjunto, projetando-se para frente com grande dissipação de
energia.
A quebrança atingindo um barco em cheio, no costado, pode deitá-la a ponto de
enfiar o mastro por dentro d’água, ou até mesmo fazê-lo rolar.
Mau Tempo com ventos favoráveis.
Sendo o vento favorável, um barco adequado, leve e rápido, bem lastreado pode
navegar com segurança por assim dizer seja qual for o tempo.
Para isto, é preciso manter bastante pano em cima, a fim de garantir uma boa
velocidade.
A velocidade é fundamental nestes casos, pois correndo rápido somos
alcançados mais devagar pelas ondas, diminuindo o seu impacto, e garantimos ao
leme uma maior eficiência.
Isto funciona melhor com barcos leves e mais velozes, surfando nas ondas.
Não é raro alguém mal informado reduzir demasiadamente o pano com medo de
atravessar nas ondas, e atravessar justamente por isso.
Pois, reduzindo o pano, reduz-se a velocidade e, consequentemente, a eficiência
do leme, podendo portanto atravessar na onda, rolando e enfiando mastro por dentro
d’água, provocando as avarias que isto pode ocasionar.
Existe o mito de que o barco de quilha longa é melhor para correr no
empoupado. A meu ver é apenas um mito.
O barco de quilha longa está mais plantado dentro d’água e portanto, acompanha
mais o movimento d’água. Ao passar uma onda, se o barco atravessa um pouco, o
importante é corrigir antes que a próxima onda encontre o barco mal posicionado. E
neste caso os barcos de quilha longa são mais lentos na correção.
Até mesmo navegando com leme de vento, que são tão bons nos dias de hoje, a
quilha curta continua a favorita.
O primeiro a perceber que a velocidade era fator de segurança foi Vito Dumas,
que, navegando nos 40 bramadores, onde o vento é muito forte, mas sempre
empoupado, nunca arriou a vela grande a não ser para fazer reparos ou dormir (ele
não tinha leme de vento).
Bernard Moitessier, em seu livro “Cap Horn à la Voile”, conta que correndo no
empoupado, temendo atravessar nas ondas, seguiu instruções de um dos seus
conhecidos, arrastando uma série de cabos pela popa (a chamada âncora de tempo).
Com o aumento das ondas e das quebranças, passou a embarcar tantas ondas
pela popa que se viu na hora de naufragar. No meio da tempestade. Ele resolveu reler
Vito Dumas, para ver como é que se fazia.
Feita a consulta, ele passou a faca nos cabos que arrastava pela popa e que
freavam o barco.
O barco deu um pulo para a frente, a velocidade aumentou e o convés enxugou.
As ondas deixam de montar pela popa.
Com a passagem das depressões, o vento vai girando. Assim sendo, temos o
vento de agora e as ondas do momento.
Mas temos também as ondas do vento de 3 a 5 horas atrás.
Correndo o tempo, deixamos o vento 20 a 25º pela popa, podendo ficar por
bombordo ou por boreste. É fundamental deixá-lo do bordo que atenda as ondas do
momento e também as ondas de horas atrás. Caso não se tome este cuidado, deixando
a popa entre as duas ondas, podemos ser surpreendidos por uma quebrança vinda pelo
través, rolando o barco.
Se esta técnica funciona bem. para um barco leve, veloz e bem lastreado, para
um barco pesado, lento ou mal lastreado isto pode ser um desastre. Barcos pesados e
lentos, correndo no empoupado, são barcos cansados, molhados, as ondas montam
pela popa e passeiam por cima do convés. Neste caso, torna-se necessário adotar a
capa.
A capa pode também ser adotada para poupar os equipamentos ou repousar a
tripulação.
Mau tempo com ventos contra
Se, no empoupado, é difícil dizer o limite do vento para continuar a viagem,
orçando, para certos barcos, 30 nós de vento já se torna o máximo.
O registro mais elevado que conheço é descrito por Tabarly, que foi
surpreendido por um ciclone, nas proximidades da Nova Caledônia. Para afastar-se
dos corais andou na orça cerrada, apenas com a trinqueta, quando o vento registrado
era de 100 nós.
Após afastar-se o suficiente, visando poupar equipamento pois já tinha perdido a
vela grande logo no início do mau tempo, ficou na capa seca, aguardando que o
tempo melhorasse.
Em tais casos, o vento e a chuva, devido à velocidade, ferem os olhos, e, como
ele conta, a chuva torrencial criou no ar tanta umidade que a tripulação tinha a
impressão de não poder respirar, afagando-se em condensação.
Salienta também que o vento veio de repente e o mar não tivera tempo de
formar-se, o que favoreceu também, em grande parte, o avanço do barco.
Quando um barco não consegue mais avançar contra o vento e o choque que as
ondas causam na proa, só restam duas soluções: correr o tempo, descrito na primeira
parte, que seria o mais confortável. Mas se o objetivo a alcançar está a barravento,
para não perder o caminho já ganho pode-se ficar na capa.
A capa
A capa tradicional, vela grande no 3º riso, toda cassada e tormentim ou trinqueta
na proa, amurada ao contrário (como se virasse de bordo e esquecesse de passar a
escota) é uma boa solução, quando queremos parar o barco na entrada de um porto
desconhecido para esperar o amanhecer. Mas, com mau tempo, esta posição expõe o
través do barco às rompentes, e só é aconselhável para barcos grandes, cuja deriva
provoca um rebojo suficientemente grande, capaz de desorganizar e barrar as
quebranças antes que estas atinjam o casco.
No caso dos barcos pequenos ou médios, a capa tradicional só pode ser aplicada
para certos tipos de barcos que podem também adotar a capa seca.
Um barco de deslocamento leve, com boa estabilidade de forma e uma quilha
muito curta, é o barco ideal para adotar a capa seca.
Devido ao seu pequeno deslocamento, e consequentemente pequeno volume
imerso, e sua quilha muito curta, oferecendo pouca resistência, este barco vai derivar
de lado, com grande velocidade, amortecendo portanto o possível impacto das
quebranças.
O vento atuando na mastreação vai aderná-lo um pouco, as ondas vão balançá-
lo, mas devido à sua boa estabilidade (bem lastreado) a vida a bardo será mais do que
suportável.
A depender da estabilidade de forma, o barco vai balançar mais ou menos, não
se colocando porém em perigo. Este é um bom barco para sobreviver independendo
de manobras. Basta arriar tudo e ir dormir.
Um barco pesado, de quilha longa, vai suportar muito mal a capa seca.
Bem plantado devido ao seu deslocamento pesado, somando-se o efeito da
quilha longa, este barco vai oferecer resistência a deriva, dando margem a que as
ondas quebrem sobre o seu costado.
Com as cristas das ondas quebrando energicamente sobre a parte superior do
costado, enquanto a quilha longa e profunda permanece plantada em águas menos
móveis, cria-se um momento tentando rolar o barco. O perigo de rolar torna-se mais
iminente se o barco for menos lastreado.
É muito comum barcos feitos em casa por amadores sofrerem uma série de
reforços, aumentando o peso da estrutura, e esquecendo que para cada tonelada de
aumento no peso do casco precisamos de quase outra de aumento na quilha. Isto é
muito comum também em barcos de ferro-cimento, que ficam com a parede mais
espessa.
Tais barcos suportam muito mal a capa seca, sendo obrigados a adotar a capa
corrida.
Para isto, utilizando velas de mau tempo, pequenas, tentam manter a proa com
aproximadamente 60º com o vento.
Não se deve avançar muito devido aos choques das ondas na proa que seriam
insuportáveis, mas deve-se avançar pelo menos o suficiente para que o leme possa ser
capaz de manter o rumo.
Deve-se tomar o cuidado para que o choque das ondas na proa não atravesse o
barco, dando margem a uma segunda onda atingi-lo em cheio pelo través.
6. ROUPA
Cinto de Segurança - Tenho passadas no convés duas linhas de vida (cabo de aço
inoxidável de 5mm revestido com plástico), uma por bombordo e outra por boreste. É
a estas linhas de vida que prendo o cinto de segurança, mais exatamente, o colete de
segurança, e que permite praticamente todos os movimentos durante as manobras.
O cinto de segurança torna-se indispensável para arriar velas, instalar pau de
spinaker nas genoas etc., pois nestes instantes estamos com as mãos ocupadas. Em
mau tempo, estou sempre amarrado, principalmente por que estou sozinho e caindo
n’água, ninguém vai manobrar o barco tentando me resgatar.
Balsa Salva-vida - Por razões econômicas não pude comprar uma. Mas isto tudo
aperta o coração.
São caras e merecem revisões constantes.
Poderia em condições favoráveis tentar usar o caíque inflável como balsa. Mas
ele está sempre vazio e no interior do barco.
Entre Panamá e Bali, deixei um 2º caíque inflável, usado, amarrado sobre o
convés em frente ao mastro. Ao fazer a inspeção em Bali, ele estava com 5 furos.
Quase todos os locais que ficaram dobrados sem movimento por muito tempo
estavam vazando.
O sol tropical atuando sobre o caíque, ainda que coberto, acabou de inutilizá-lo.
E por estas razões que digo. Balsa salva-vida é algo caro e difícil. Adaptações
são pouco úteis, só mesmo para tapear o coração.
É recomendável além da balsa ter sempre pronta uma caixa estanque de
emergência, contendo comida, roupa de lã, chapéu, material de pesca, remédios
principalmente contra desidratação, etc., e um camburão de água potável.
Ao lançar a balsa n’água, caso dê tempo, lança-se também a caixa de
emergência e o camburão de água, que estão sempre prontos, unidos por um cabo, à
semelhança de um cordão umbilical.
É bom tê-los prontos, esperando nunca ter que utilizá-los.
O consumo normal de água é 2,50 1 por pessoa por dia. Para isto é preciso usar
água doce apenas para cozinhar e beber. Cozinhando arroz, feijão, sopa etc., adiciona-
se um pouco de água salgada, o que além de economizar água doce é bom para
prevenir a desidratação.
A bordo do Três Marias, em pleno mar, nunca tornei um banho doce.
Gastando-se água doce para o banho, um dia talvez se tenha que beber água
salgada. Ao deixar um porto, sabe-se apenas a data I da partida, mas nunca a de
chegada. Pode-se perder o mastro e ficar 3 meses boiando por aí.
Um médico francês, Alain Bombard, atravessou o Atlântico, a bordo de um
caíque inflável, bebendo apenas água do mar e soro de peixe. O segredo, segundo ele,
é beber uma colher de sobremesa de água do mar a cada meia hora. Quantidades
maiores irritam as paredes do estômago, provocando problemas.
O banho com água salgada no início é incômodo, mas logo acostuma.
Tomando o banho, enxuga-se o corpo com uma toalha logo em seguida, e
praticamente todo o sal vai para a toalha.
Quando chove, pode-se recolher água com auxílio de uma lona, podendo-se
também aproveitar para tomar banho.
Tanques - A água potável deve ser distribuída em vários tanques. Tendo apenas
um tanque, corre-se sempre o perigo de ter um vazamento ou a água apodrecer,
principalmente se esta água é recolhida em uma ilha ou local pouco civilizado, onde o
tratamento é precário. Além de tanques, convém ter camburões plásticos adicionais.
A bordo do Três Marias tenho dois tanques em inox de 100 1 e 80 1, além de 5
camburões de 20 1 e 1 de 10 1.
Convém levar também garrafas de água mineral, sucos de frutas, refrigerantes,
etc., que no final de contas representam líquido. De vez em quando, passo uns tempos
treinando, tomando alguns pequenos goles de água do mar. A gente se acostuma, e
não é tão ruim assim. É como tomar aguardente. No início é difícil começar, mas
alguns têm dificuldades em parar.
11. PROVISÕES
11.2. Conservas
O problema das frutas é a conservação. Frutas que se conservam bem são: Maçã,
laranja, limão e coco.
Quase todas se conservam bem por 15 dias, maçã se conserva por 2 meses,
podendo acontecer o mesmo com laranjas e limões.
Para que uma fruta dure, ela não deve ter um só arranhão, nem pode estar
machucada. Elas vão secando, reduzindo de tamanho, murchando, mas continuam
aproveitáveis.
Deve-se comprar para viagem mais longa pelo menos 50% a mais da previsão
de frutas, pois sempre uma boa parte apodrece. É inevitável.
11. PROVISÕES
11.4. Pesca
A pesca oferece proteína fresca por um preço barato. Quem não sabe pescar é
bom aprender. Não é tão difícil. Quando pesco peixes maiores frito a metade com
bastante azeite (o azeite ajuda a conservar) e a outra metade salgo.
Para salgar um peixe, basta retalhá-lo e colocar numa vasilha após pôr sal por
toda a parte. O peixe vai liberar líquido, e logo O tudo se transforma em salmoura.
Ele deve permanecer aí por 2 dias, e depois o penduraremos ao sol para secar. Deve
ser recolhido à noite para evitar sereno.
Enquanto ele vai secando, a gente vai chegando com a faca e tirando a
lasquinha. Quando está seco a metade já foi consumida.
12. SAÚDE
Vitaminas - Levei uma grande quantidade apesar de usar muito pouco, apenas
quando, na travessia do Índico, passei 2 meses no mar.
0 Banho - É parte da higiene e faz muito bem à saúde. Cumpre salientar, porém,
que muita gente toma banho de maneira incorreta, passando sabão, detergente, em
grande quantidade, por todo o corpo. O banho deve ser tomado com água,
principalmente no mar, onde estamos expostos ao sol, à chuva e ao vento.
Assessorados pelas propagandas de televisão, ou por ter adquirido um
complexo, de que é sujo, o homem passa o detergente em todo o corpo, tirando
aquela gordura natural, tão necessária para a saúde. Basta passar sabão em certas
regiões do corpo. A gordura natural nos isola do meio ambiente e nos protege do sol,
do vento e da chuva.
A gordura natural impede que o sol nos queime. Nenhum creme artificial é tão
eficiente como a nossa própria gordura, fruto de milênios de evolução. Seguindo as
propagandas de TV, o homem tira a boa gordura e põe a ruim.
A nossa gordura impede que a chuva nos molhe. Nos trópicos, cansei de
aproveitar uma chuva às 2 horas da madrugada para me banhar. Os pingos caem, nos
lavam e escorrem sem no entanto nos resfriar.
A nossa gordura natural nos protege contra o vento frio. O vento passa mas
estamos isolados do ambiente por uma camada que a natureza proporcionou. E a
natureza é sábia.
Tem tanta gente que não pode tomar um chuvisco e já está doente. Quem sabe se
não é esta a razão.
De qualquer forma, se morado em terra, onde trabalhando no escritório com
camisa branca, para poupar o colarinho, você se esmera em esfregar sabão no corpo.
E, de repente, resolve fazer uma viagem marítima de longa duração. Pare de usar
sabão, pelo menos uma semana antes da saída.
Tome banho com água, somente água. Sabão só em algumas partes mais
íntimas. E você vai ver que isto vai lhe ajudar a vencer melhor as novas condições
ambientais.
13. MATERIAL PARA PREPARO DE EMERGÊNCIA
Tenho dezenas de livros de navegação, mas nenhum deles é tão simples e claro
como Gelestial Navegatio for Yachtsme (Seve th Editio 1978) kary BleWitt.
Sem querer me aprofundar no assunto, já que existem tantos livros, descreverei
apenas algumas técnicas que considero interessantes:
Aferição da Navegação
Mesmo quando se navega já há muitos anos, mas de repente se resolve investir
em área cheia de pequenas ilhas, atóis baixos e pouco visíveis, arrodeados de bancos
submersos, é bom aferir o navegador e seus instrumentos.
Um processo que não falha é fazer navegação ancorado no porto (é preciso que
o porto seja pouco abrigado, senão não temos horizonte livre) e ver a diferença que
encontramos. Pode-se também ir à ponta do molhe ou do quebra-mar, de onde
teremos um horizonte livre para fazer a aferição.
Navegando entre atóis
Os atóis são geralmente tão baixos que só são visíveis a 5 milhas durante o dia
(coqueiros mágicos plantados em cima d’água), e a poucos metros durante a noite,
quando já estamos nas proximidades da arrebentação.
Nestes casos (recomendação de Bernard Moitessier) além de aferir o trabalho,
fazendo a navegação ancorado em um porto, convém fazê-la também em noite de lua
cheia com horizonte pouco visível e analisar o resultado que se apresenta.
O horizonte fictício (irreal) nos dará um resultado, uma altura real, geralmente 5
minutos menos que a verdadeira, mas isto varia muito, dependendo da pessoa que
está operando e sua capacidade de visão.
O importante é o navegador do barco em questão saber, após aferir o seu
trabalho, como se servir dos dados que tem nas mãos. Assim poderá obter retas de
posição durante o dia e durante a noite, tornando a navegação mais segura.
Navega do em locais de muita correnteza
O Estreito de Torres é uma região quase encachoeirada, Toda aquela água
passando do Pacífico para o Indico, e vice-versa, com a variação de maré.
Nesta região as correntezas variam muito, podendo atingir em certas partes 5
nós, indo até 8 nós, em locais estratégicos. Elas sofrem também influência dos
ventos, tornando-se portanto previsíveis. (veja Saili g Directio s).
Navegando sozinho, nesta região, onde tive que descrever um caracol,
percorrendo 250 milhas em 2 dias sem ver um só sinal de terra, entre arrecifes que
iam, cada vez mais, estreitando o canal, foi para mim motivo de grande preocupação.
Primeiro tinha que dormir. Segundo, tinha que fazer navegação à noite, pois
durante um intervalo de 10 anos sujeito a uma correnteza de 5 a 8 nós, quem sabe,
todo canal torna-se estreito. Não se pode esperar amanhecer para fazer o ponto,
correndo-se, além disto, o risco de se ter uma manhã com céu encoberto.
Foram dois dias difíceis quando adotei as seguintes providências:
Primeiro: Investi na região com noite de lua.
Além de fazer o ponto pelas estrelas no nascer e pôr do sol, fazia à noite, cada 3
horas, me servindo do horizonte aproximado, iluminado pelo clarão da lua. Isto só foi
possível após aferir os resultados de um tal trabalho a partir de um ponto conhecido,
ancorado em um porto.
Segundo: Fazia durante o dia uma reta de posição pelo sol, exatamente a cada
hora. Este foi o único meio que encontrei para tentar identificar a presença de
correnteza.
O vento variou pouco de intensidade. O percurso a cada hora seria constante, se
não fosse a variação da correnteza.
Aliás, costumo adotar este método toda vez que vindo do mar, me aproximo de
terra.
E foi assim que, em 2 dias, calculei 34 retas de posição. Deu trabalho, mas o
Três Marias atravessou com sucesso o Estreito de Torres, tendo apenas um tripulante
a bordo.
15. NAVEGAÇÃO
15.3. Navegação com radiogoniômetro
Além das estações próprias para radiogônio, podemos nos servir, também, de
qualquer estação de rádio comum, correndo-se porém o risco da antena de
transmissão estar em algum local afastado, fora da cidade.
Assim sendo, navegação por radiogônio geralmente é auxiliar, não se usando
este processo como método único a bordo.
Quando o tempo fecha, e o sol não aparece, este instrumento torna-se de grande
utilidade.
O radiogônio que tenho a bordo é daqueles cuja intensidade do som é acusada
por uma agulha em um quadrante, não dependendo da boa condição auditiva do
operador. Mas, mesmo assim, no início foi difícil obter uma posição precisa, até que
peguei o jeito.
Considero a antena do gônio como um volante de carro velho que tem folga na
direção. Em outras palavras, se fôssemos traçar uma curva, utilizando como dados o
deslocamento da antena e a variação da intensidade do som, esta curva iria subindo,
encontraria um patamar e depois iria descer. Este patamar é o que chamo de folga na
direção. O que nos interessa na realidade é o ponto central.
Para resolver o problema, adoto o seguinte método.
Faço três leituras girando a antena devagar da direita para a esquerda, e outras
três da esquerda para a direita. Analiso os resultados. Se tem algum resultado muito
diferente, este deve ser abandonado, tirando em seguida a média aritmética dos
restantes. Assim procedendo, o resultado obtido terá um mínimo de desvio.
Nunca me sirvo de gônio à noite, pois desconheço as implicações.
GLOSSÁRIO