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Kenneth Grahame

sac@clubinholiterario.com
www.clubinholiterario.com

O VENTO NOS SALGUEIROS


Editor: Kenneth Grahame
Camila Hochmüller Abadie

Assistente editorial: 1a edição – Março de 2022


Juliana R. de Oliveira

Tradução: Os direitos desta edição pertencem à


João Winckler EDITORA CLUBINHO LITERÁRIO

Revisão:
Gleice Queiroz ISBN: 978-65-87853-23-9

Capa:
Irina Ibanez Reichow de Fleury Reservados todos os direitos desta obra.
Editoração: Proibida toda e qualquer reprodução desta edição
Eduardo C. de Oliveira por qualquer meio ou forma, seja ela eletrônica ou
mecânica, fotocópia, gravação ou qualquer outro
Ilustração: meio de repro-dução, sem permissão expressa do
Arthur Rackham editor.
“Pois, como em um só
corpo temos muitos membros
e cada um dos nossos
membros tem diferente
função, assim nós, embora
sejamos muitos, formamos
um só corpo em Cristo, e
cada um de nós é membro
um do outro.”

ROMANOS 12, 4 e 5
SUMÁRIO

1 A M ARGEM DO R IO 7

2 A ESTRADA ABERTA 25

3 A F LORESTA S ELVAGEM 39

4 S R . T EXUGO 53

5 D OCE LAR 69

6 S R . S APO 87

7 O FLAUTISTA NOS PORTÕES DO ALVORECER 101

8 AS AVENTURAS DO S APO 115

9 V IAJANTES 131

10 AS NOVAS AVENTURAS DO S APO 149

11 “C OM OS TEMPORAIS DE

VERÃO VIERAM SUAS LÁGRIMAS ” 167

12 O RETORNODE U LISSES 185


1

A MARGEM
DO RIO

O
Toupeira trabalhou duro a manhã toda, fazendo
faxina em sua casinha. Primeiro com uma
vassoura, depois com espanadores; em seguida,
em cima de escadas e cadeiras, com uma escova e um
balde de cal. Trabalhou tanto que ao final tinha poeira
em seus olhos e em sua garganta, respingos de cal em seu
manto preto, dores nas costas e extremo cansaço em seus braços.
A primavera se aproximava pelo ar e pela terra, penetrando até
mesmo a escura e humilde casinha com seu espírito de inquietação
e desejo de novas aventuras. Não foi surpresa, então, que ele de
repente jogasse sua escova ao chão e dissesse:
— Que tédio. Ah, quer saber? A faxina fica para depois!
Então saiu de casa em disparada, sem nem pôr seu casaco.
Algo lá em cima o chamava imperiosamente, e ele entrou pelo
pequeno e íngreme túnel que fazia as vezes do caminho de casca-
lho que se estende em frente às casas dos animais que moram mais

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O V E N TO NOS S A LG U E I R O S

perto do Sol e do ar. Então começou a cavar, escavar, esburacar, e


de novo a esburacar, escavar e cavar, fazendo enorme esforço com
as patinhas e murmurando para si mesmo: “Para cima! Para cima!”;
até que: pop! — seu focinho saltou para o ar livre, sob o sol, e ele
se viu rolando pela grama quentinha de um grande campo aberto.
— Isso é muito bom! — disse a si mesmo. — É melhor do que
fazer faxina!
O sol batia forte em sua pelugem, e leves brisas acariciavam
sua face. Depois da reclusão da toca em que permaneceu por tanto
tempo, os cantos dos alegres pássaros soaram quase como gritos aos
seus ouvidos embotados. Pulando com as quatro patas de uma vez,
alegre por viver e deleitado pela primavera, seguiu seu caminho
através dos campos até chegar à cerca-viva do outro lado.
— Alto lá! — disse um velho coelho na passagem entre as sebes.
— Meio xelim1 pelo privilégio de transitar por esta estrada particular!
O coelho foi atropelado num instante pelo impaciente e desde-
nhoso Toupeira, que trotava junto à sebe esbarrando em outros coe-
lhos que saltavam de suas tocas para ver o que estava acontecendo.
— Molho de cebola! Molho de cebola!2 — disse ele em zom-
baria, e foi embora antes que os coelhos pudessem pensar numa
resposta boa o bastante. Então resmungaram uns para os outros:
“Como você é tonto! Por que não disse a ele que…”; “Bom, e por
que você não disse que…"; "Você poderia ter pensado em dizer que…”;
e assim por diante. Mas, claro, já era tarde demais.
Tudo parecia bom demais para ser verdade. Perambulou pelos
campos de um lado para o outro, ao longo das sebes, através dos
bosques, encontrando em toda parte pássaros construindo seus ni-

1. M.q. shilling, antiga unidade monetária britânica. Meio xelim equivale a six-
pence. (NT)
2. Muito se discute sobre o sentido dessa fala do Toupeira. Sabe-se que, entre os
séculos XIX e XX, no Reino Unido (época e local de vida do autor), era comum
o consumo de coelhos servidos com molho de cebola. Ainda, o molho de cebola
era um alimento muito associado a camponeses pobres e simples, ou “caipiras”.
A resposta provocativa do Toupeira aos coelhos é provavelmente referência a
algo desse tipo. (NT)

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O V E N TO NOS S A LG U E I R O S

nhos, folhas crescendo, flores desabrochando — tudo estava alegre,


em progresso, em movimento. E, em vez de sentir um peso na cons-
ciência a atormentá-lo, de ouvir uma voz interior a sussurrar “Faxi-
na! Faxina!”, sentiu apenas como era bom ser o único folguista em
meio a tantos trabalhadores ocupados. No fim das contas, talvez a
melhor parte de um dia de folga seja não o descanso em si, mas ver
todos os companheiros dando duro no trabalho.
Pensava que sua felicidade era completa, até que, ao vagar sem
rumo por aí, viu-se de repente à beira de um rio em plena cheia.
Nunca antes vira um rio — esse animal liso, sinuoso e encorpado
que, em suas alegres perseguições, agarrava as coisas ao redor num
gorgolejo e as deixava pelo caminho com risadas, para então lançar-
-se novamente aos companheiros libertados e agarrá-los mais uma
vez em suas águas.
Era um enorme tremular e chacoalhar — e luzes, e brilhos
e lampejos, e redemoinhos e farfalhares, e bolhas e tagarelice. O
Toupeira estava enfeitiçado, em transe, fascinado. Pela beira do
rio, trotava como uma criança rodeando um adulto que a houves-
se encantado com histórias deslumbrantes. Quando finalmente se
cansou, sentou-se na margem, enquanto o rio seguia tagarelando
para ele. Era uma balbuciante procissão das melhores histórias do
mundo, enviadas do coração da terra para serem por fim contadas
ao insaciável oceano.
Quando sentou-se na grama e olhou para o outro lado, cha-
mou-lhe a atenção uma toca escura na margem oposta, logo aci-
ma do nível da água, e sonhadoramente passou a imaginar como
aquela seria uma casa confortável para um animal com poucas
exigências e afeiçoado por uma bela residência ribeirinha, acima
do nível das enchentes e distante do barulho e da poeira. Enquan-
to a observava, algo pequeno e reluzente pareceu brilhar, desapa-
recer, e brilhar de novo dentro dela, como uma estrelinha. Mas,
naquela situação, dificilmente poderia ser uma estrelinha; e era
algo brilhante e pequeno demais para ser um vagalume. Então o
brilhante objeto piscou para o Toupeira, revelando-se um olho;

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A MARGEM DO RIO

e um pequeno rosto começou a surgir em volta dele, como uma


moldura em torno de um quadro.
Um pequeno rosto marrom, com bigodes. Um rosto sério e
redondo, com o mesmo brilho nos olhos que lhe tinha chamado a
atenção. Pequenas e elegantes orelhas, cabelo espesso e sedoso. Era
o Rato d’Água! Então os dois animais se puseram de pé e observa-
ram um ao outro cautelosamente.
— Olá, Toupeira! — disse o Rato d’Água.
— Olá, Rato! — disse o Toupeira.
— Você gostaria de vir até aqui? — perguntou o Rato pron-
tamente.
— Ora, não é necessário, posso conversar daqui mesmo — dis-
se o rabugento Toupeira, ainda novo no ambiente, nada sabendo
sobre a vida no rio ou sobre seus modos.
O Rato não disse nada, apenas abaixou-se, desatou uma corda
e a esticou; em seguida, pisou cuidadosamente num pequeno barco
que o Toupeira ainda não tinha visto. Era pintado de azul por fora
e de branco por dentro, e tinha o espaço exato para dois animais. O
Toupeira encantou-se à primeira vista, ainda que não soubesse exa-
tamente para que servia aquilo. Com um remo, o Rato atravessou
o rio, e atracou o barco na outra margem. Então acenou com a pata
dianteira enquanto o Toupeira descia cuidadosamente.
— Apoie-se ali! — disse ele. — Agora, pule para dentro! — e
o Toupeira, para sua surpresa e êxtase, logo estava sentado na popa
de um barco.
— Está sendo um dia maravilhoso — disse ele, enquanto o
Rato empurrava o barco e pegava seus remos novamente. — Sabe,
nunca antes em minha vida estive num barco.
— O quê?! — exclamou o Rato, boquiaberto. — Nunca este-
ve num… Você nunca… Bem, o que você tem feito, então?
— É tão bom assim? — perguntou timidamente o Toupeira,
embora pudesse constatá-lo enquanto recostava-se em seu assento e
examinava as almofadas, os remos, as forquetas e todos os fascinantes
acessórios, e sentia o barco balançando suavemente sobre as águas.

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O V E N TO NOS S A LG U E I R O S

— Bom? É a melhor coisa que existe — disse solenemente o


Rato d’Água, que então se inclinou para frente para o seu golpe
final. — Acredite em mim, meu jovem amigo, não há coisa alguma,
absolutamente nada, que valha tanto a pena quanto simplesmen-
te viajar com barcos. Apenas viajar... — continuou, divagando —
Com barcos… Viajar...
— Olhe para a frente, Rato! — gritou de repente o Toupeira.
Era tarde demais. O barco atingiu a margem a todo vapor. O
sonhador e alegre remador estava deitado de costas no fundo do
barco, com os calcanhares para cima.
— Com barcos… Viajar... — continuou serenamente o Rato,
levantando-se com uma gostosa gargalhada. — Dentro ou fora de-
les, não importa. Nada realmente importa, este é o charme da coisa.
Se você vai para longe, ou se não vai; se você chega ao seu destino,
ou se chega a outro lugar, ou se jamais chega a lugar algum… Você
está sempre ocupado, e nunca faz algo em particular. E se fizer, ha-
verá sempre algo novo a ser feito; e você pode fazê-lo, se quiser, mas
seria melhor que não o fizesse. Veja! Se você não tiver algum outro
plano para esta manhã, podemos descer o rio juntos e ter um longo
dia de navegação. O que acha?
O Toupeira agitou os dedos dos pés de pura felicidade, encheu
o peito com um suspiro de total satisfação, e recostou-se com ale-
gria nas macias almofadas.
— Que dia estou tendo! — disse ele. — É para já, vamos lá!
— Então espere um minutinho — disse o Rato.
Em seguida, atracou o barco ao ancoradouro, subiu até a toca,
e logo depois reapareceu cambaleando sob uma grande cesta de
vime entrelaçada, com a merenda para a viagem.
— Empurre isso para baixo de seus pés — disse ele para o Tou-
peira, enquanto a colocava para dentro do barco.
Então desamarrou a corda e voltou aos remos.
— O que há dentro dela? — perguntou o Toupeira, contor-
cendo-se de curiosidade.

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O V E N TO NOS S A LG U E I R O S

— Frango... — respondeu o Rato brevemente. — Língua-pre-


sunto-carne-pepinos-em-conserva-pão-francês-patê-água-tônica-
-limonada-água…
— Oh, pare, pare! — exclamou o Toupeira, em êxtase. — É
muita coisa!
— Você acha mesmo? — perguntou o Rato. — É apenas o que
sempre levo nessas pequenas excursões, e os outros animais estão
sempre me dizendo que sou mesquinho e que ofereço muito pouco!
O Toupeira não ouviu uma palavra do que disse o Rato. Ab-
sorto na nova vida que estava conhecendo, intoxicado pelo brilho,
pelas ondas, cheiros e sons, e pela luz do Sol, deixou uma pata arras-
tando na água e ali teve longos sonhos acordados. O Rato d’Água,
como bom companheiro que era, não quis atrapalhar o amigo e
apenas seguiu remando com firmeza.
— Gostei muito de suas roupas, meu amigo — comentou ele
depois de mais de meia hora. — Pretendo comprar um smoking de
veludo preto algum dia, assim que puder arcar com o preço.
— Peço perdão — disse o Toupeira, recompondo-se com es-
forço. — Você deve me achar muito rude, mas isso tudo é tão novo
para mim. Então… Isso é… Um rio!
— O Rio — corrigiu o Rato.
— E você realmente vive pelo rio? Que vida alegre!
— Pelo rio, com o rio, sobre o rio e dentro do rio — disse o
Rato. — Ele é um irmão e uma irmã para mim, e tias, e compa-
nhia, e comida, e água, e (naturalmente) um local para me lavar. É
o meu mundo, e eu não quero nenhum outro. O que ele não tem,
não vale a pena ter, e o que ele não sabe, não vale a pena saber.
Senhor! Os momentos que tivemos juntos! Seja no inverno ou
no verão, na primavera ou no outono, ele sempre tem suas di-
versões e suas belezas. Quando as cheias começam, em fevereiro,
meu porão e minhas despensas ficam totalmente inundados, e a
água marrom corre pela frente da janela do meu quarto principal;
mas quando a água toda desce, deixa montes de lama com cheiro
de bolo de ameixa; e juncos e ervas obstruem os canais, de modo

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A MARGEM DO RIO

que posso andar pela maior parte do leito sem molhar os pés, en-
contrando comida fresca e coisas que pessoas descuidadas deixam
cair de seus barcos.
— Mas isso não é um pouco chato às vezes? — aventurou-se
o Toupeira a perguntar. — Só você e o rio, e ninguém mais para
conversar?
— Ninguém mais para… Bem, não devo ser duro com você —
disse o Rato, com paciência. — Você é novo aqui, e obviamente não
sabe. A margem está tão cheia hoje em dia que muitas pessoas estão
se mudando definitivamente. Não é mais como antigamente. Lon-
tras, martim-pescadores, mergulhões-pequenos, galinhas-d’água,
todos estão aqui o dia todo, querendo sempre que você faça alguma
coisa, como se os outros não tivessem seus próprios afazeres!
— O que é aquilo? — perguntou o Toupeira, apontando com
a pata para a floresta ao fundo que, de um dos lados do rio, emoldu-
rava os campos alagados com sua madeira escura.
— Aquilo? É apenas a Floresta Selvagem — disse brevemente
o Rato. — Nós, da margem do rio, não vamos muito para lá.
— As pessoas de lá não são muito… Muito boas? — pergun-
tou o Toupeira, um pouco nervoso.
— Bem… — respondeu o Rato. — Deixe-me ver. Os esquilos
são legais. Quanto aos coelhos, alguns deles, mas entre os coelhos
há de tudo. E ainda há o Texugo, é claro. Ele vive bem no meio da
floresta; não viveria em nenhum outro lugar, nem que fosse pago
para isso. Bom e velho Texugo! Ninguém mexe com ele. E é melhor
mesmo que não mexam — ressaltou por fim.
— Por quê? Quem mexeria com ele? — perguntou o Toupeira.
— Bem, claro, há outros… — prosseguiu o Rato, meio hesi-
tante. — Doninhas, e furões, e raposas, e assim por diante. Eles são
legais, de certa forma. Eu sou muito amigo deles; faz tempo desde
o dia em que nos conhecemos, e tudo o mais; mas eles estouram
às vezes, não há como negar, e aí… Bem, não se pode confiar neles,
essa é a verdade.

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O V E N TO NOS S A LG U E I R O S

O Toupeira sabia muito bem que vai contra a etiqueta animal


insistir em possíveis problemas futuros, ou mesmo aludir a eles, en-
tão deixou o assunto de lado.
— E para além da Floresta Selvagem? — perguntou. — Onde
tudo é azul e opaco, e podemos ver o que parecem ser colinas; ou
estou errado? E algo como fumaça de cidades; ou são nuvens em
movimento?
— Além da Floresta Selvagem está o Mundo Selvagem — dis-
se o Rato. — E isso é algo que não tem importância, nem para você
nem para mim. Eu nunca estive lá, e nunca irei; nem você, se tiver
bom senso. Nunca fale disso de novo, por favor. Pois bem! Enfim
chegamos ao remanso, onde vamos almoçar.
Saindo do curso d’água principal, eles então entraram no que
à primeira vista parecia um pequeno lago cercado de terra. O ma-
tagal verdejante caía pelas margens, e sinuosas raízes marrons bri-
lhavam abaixo da superfície das águas tranquilas, enquanto à frente
deles um ressalto prateado e a espumante queda de uma represa, em
conjunto com a incansável roda d’água de um moinho cinzento,
preenchiam o ar com um suave e sufocante murmúrio, entre sons
agudos e baixinhos que tilintavam alegremente. Era tudo tão boni-
to que o Toupeira pôde apenas erguer as patas da frente e suspirar:
— Oh, meu Deus! Que maravilha!
O Rato remou ao longo da margem, atracou o barco, ajudou o
ainda desajeitado Toupeira a descer em segurança e sacudiu a cesta
do almoço. O Toupeira implorou pelo favor de desempacotar tudo
sozinho, e o Rato ficou muito feliz em conceder-lhe tal satisfação
— e por poder então se esticar pela grama para descansar, enquanto
seu animado amigo chacoalhava e estendia a toalha de mesa, retira-
va o embrulho de cada um daqueles misteriosos pacotes e arranja-
va as guloseimas em ordem para o almoço, ainda suspirando “Oh,
meu Deus!, oh, meu Deus!” a cada nova revelação. Quando tudo
estava pronto, o Rato disse:
— Agora, ao ataque, meu amigo!

16
A MARGEM DO RIO

E o Toupeira ficou muito feliz em obedecer, pois havia co-


meçado sua faxina muito cedo da manhã, como se costuma fazer,
e não parou desde então para comer ou beber; e passou por tanta
coisa desde aquela hora distante que já parecia ter sido há muitos
dias.
— O que você está olhando? — perguntou pouco depois o
Rato, quando a fome dos dois já tinha sido mais ou menos saciada,
e os olhos do Toupeira já conseguiam se desviar um pouquinho da
toalha de mesa.
— Estou olhando — disse o Toupeira — para uma camada de
bolhas que viajam pela superfície da água. É uma coisa que eu acho
engraçada.
— Bolhas? Hahaha! — disse o Rato, e chilreou alegremente,
de modo acolhedor.
Um largo e reluzente focinho apareceu acima do nível da água
junto à margem, e o Lontra arrastou-se para fora e sacudiu a água
de seu manto.
— Mas que sujeitinhos gananciosos! — disse ele, indo em di-
reção à comida. — Por que você não me convidou, Ratinho?
— Este foi um encontro improvisado — explicou o Rato. —
A propósito, apresento-lhe meu amigo, o Sr. Toupeira.
— Prazer em conhecê-lo — disse o Lontra, e os dois animais
tornaram-se amigos imediatamente. — Que bagunça está este
rio, por toda parte — continuou o Lontra. — Parece que hoje
todo mundo resolveu passear aqui. Vim ao remanso para ver se
conseguia um momento de paz, e então dei de cara com vocês!
Quero dizer… Peço desculpas, eu não quis dizer bem isso, vocês
sabem.
Ouviu-se então um farfalhar logo atrás deles, vindo de uma
cerca-viva carregada de grossas folhas, e uma cabeça listrada entre
dois altos ombros apareceu através delas para bisbilhotar.
— Venha até aqui, velho Texugo! — gritou o Rato.
O Texugo trotou um ou dois passos, então grunhiu: “Hm! Te-
mos visita!”; e aí virou as costas e desapareceu de vista.

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A MARGEM DO RIO

— Este é o amigo que temos! — observou o Rato, desaponta-


do. — Simplesmente odeia conviver com os outros! Agora não o
veremos mais por hoje. Bem, diga-nos, quem veio hoje para o rio?
— O Sapo, para começar — disse o Lontra. — Em seu novo
barco de corrida. Roupa nova, tudo novo!
Os dois olharam um para o outro e caíram na risada.
— No início, queria apenas navegar — disse o Rato. — Então,
cansou e começou a apostar corrida. Nada o agradava mais do que
apostar corrida o dia todo, todos os dias; e causou uma bela encren-
ca. No ano passado, apareceu com a casa flutuante, e todos tivemos
de acompanhá-lo dentro dela e fingir que gostamos. Passaria o res-
to da vida na casa flutuante, dizia ele. É sempre a mesma coisa, com
qualquer atividade que faça; logo cansa e começa algo novo.
— É um bom sujeito — afirmou o Lontra, pensativo. — Mas
instável, especialmente no que diz respeito a barcos!
De onde estavam sentados, podiam vislumbrar a corrente
principal do rio atravessando a ilha que os separava dela; e logo em
seguida apareceu um barco de corrida. O remador era uma figura
baixinha e gorducha, que respingava muita água e cambaleava de-
mais, mas fazia o melhor que era capaz. O Rato pôs-se de pé e o
chamou, mas o Sapo — que era o remador — sacudiu a cabeça e
concentrou-se em seu trabalho.
— Ele cairá do barco em um minuto se continuar remando
assim — disse o Rato, sentando-se de novo.
— É claro que sim — disse o Lontra, rindo. — Eu já lhe con-
tei aquela história sobre o Sapo e o guardião de eclusas? Foi as-
sim. O Sapo…
Uma errante efemérida desviou repentinamente contra a cor-
rente, à maneira embriagada das jovens efeméridas a descobrir o
mundo. Com pequeno redemoinho e um “clup”, a efemérida ha-
via sumido. E o Lontra também. O Toupeira baixou o olhar; a voz
ainda estava em seus ouvidos, mas a relva em que o Lontra havia se
esparramado estava claramente vazia. Não havia lontra à vista, mas
de novo havia bolhas na superfície do rio.

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O V E N TO NOS S A LG U E I R O S

O Rato cantarolou uma melodia, e o Toupeira lembrou-se de


que a etiqueta animal proibia qualquer comentário sobre o repenti-
no desaparecimento de um amigo, ocorrido a qualquer momento,
por qualquer razão ou sem razão alguma.
— Bem — disse o Rato —, acredito que devamos ir. Eu guar-
do as coisas na cesta, ou você guarda?
Pelo modo como fez a pergunta, não parecia muito ansioso
pela resposta.
— Por favor, deixe-me guardar — disse o Toupeira.
Então, claro, o Rato consentiu. Guardar as coisas na cesta não
foi uma atividade tão prazerosa quanto tirar as guloseimas de den-
tro dela. Nunca é. Mas o Toupeira estava decidido a aproveitar cada
momento. Embora tenha encontrado um prato na grama depois de
já ter arranjado a cesta cuidadosamente, e, já com o trabalho todo
refeito, o Rato tenha apontado para um garfo esquecido que qual-
quer um teria visto, e... — espere! —, o pote de mostarda, em que
estava sentado sem saber — ainda assim, o serviço foi finalizado
sem grandes alterações de humor.
O sol da tarde estava baixando, e o Rato remava suavemente
para casa murmurando poesias para si mesmo, perdido em seus pen-
samentos, sem prestar muita atenção ao Toupeira. Mas o Toupeira
estava cheio de comida na barriga, e de satisfação, e de orgulho, e
sentindo-se já em casa dentro de um barco (assim ele pensava). Co-
meçou a ficar um pouco inquieto, até que a certa altura disse:
— Rato! Por favor, eu quero remar um pouco!
O Rato balançou a cabeça com um sorriso:
— Ainda não, meu amigo — disse ele —, espere até ter algu-
mas aulas. Não é tão fácil quanto parece.
O Toupeira ficou quieto por um minuto ou dois, mas logo
começou a sentir mais e mais inveja do Rato, que remava com tan-
ta força e facilidade, e seu orgulho passou a sussurrar-lhe que ele
poderia fazer tudo igualzinho. Então saltou e tomou os remos tão
repentinamente que o Rato, que seguia recitando poesias com o
olhar fixo na água, foi pego de surpresa e caiu de pernas para o ar

20
A MARGEM DO RIO

pela segunda vez, enquanto o triunfante Toupeira tomava o seu lu-


gar e agarrava os remos com total confiança em si mesmo.
— Pare com isso, seu pateta! — gritou o Rato, do fundo do
barco. — Você não sabe remar! Nós vamos afundar!
O Toupeira jogou os remos para trás rapidamente para então
empurrá-los com força na água, mas errou completamente o alvo
e caiu também de pernas para o ar, indo parar em cima do pobre
Rato, caído no chão. Apavorado, agarrou-se à borda do barco. No
instante seguinte: splash! — o barco virou, e ele se debatia na água
para não se afogar.
E como a água estava fria! E como ela era molhada! E como ela
cantava em seus ouvidos enquanto ele afundava, afundava, afun-
dava… E como o sol era brilhante e acolhedor quando ele chegava
à superfície, tossindo e cuspindo! E como era negro o desespero
quando afundava de novo! Então uma pata o agarrou firmemente
pelo cangote. Era o Rato; e ele estava claramente dando risada. O
Toupeira pôde sentir as gargalhadas passando pelo braço, pela pata,
até chegar em seu pescoço.
O Rato agarrou um remo e o colocou debaixo do braço do
Toupeira, depois o outro remo debaixo do outro braço e, nadando
atrás, conduziu o indefeso animal até a margem; então o arrastou
para cima e o deixou sentado na grama; era uma encharcada e mo-
lenga bolota de cansaço e desânimo. Esfregando e torcendo um
pouco da água de seu pelo, o Rato disse:
— Agora, meu amigo, corra de um lado para outro no ca-
minho à beira do rio o mais rápido que puder, até que você esteja
quente e seco de novo, enquanto eu mergulho para pegar a cesta
do almoço.
Então o abatido Toupeira, molhado por fora e envergonhado
por dentro, trotou para lá e para cá até que estivesse razoavelmente
seco, enquanto o Rato saltou de novo na água, recuperou o barco,
endireitou-o, fez as amarras e puxou sua propriedade flutuante aos
poucos para a margem. Por fim, mergulhou para pegar a cesta e a
levou, com esforço, para a terra firme.

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O V E N TO NOS S A LG U E I R O S

Quando tudo estava pronto para se retomar a viagem, o Tou-


peira, hesitante e abatido, sentou-se em seu lugar à popa e, assim
que o barco partiu, disse em voz baixinha, com emoção:
— Rato, meu generoso amigo! Sinto muito por minha condu-
ta disparatada e ingrata. Meu coração quase para só de pensar que
eu poderia ter perdido esta bela cesta do almoço… De fato, tenho
sido um completo idiota, eu sei disso. Você poderia relevar tudo
isso, me perdoar, e fazer as coisas voltarem a ser como eram antes?
— Está tudo bem — respondeu alegremente o Rato. — O que
é molhar-se um pouco, para um rato d’água? Passo mais tempo na
água do que fora dela, e isso na maior parte dos dias. Não pense
mais nisso. E veja! Seria muito bom que você viesse comigo e pas-
sasse um tempo em minha casa. É muito simples e rudimentar; não
é como a casa do Sapo, que você ainda não conhece; ainda assim,
posso deixá-lo confortável. E vou ensiná-lo a remar e a nadar, e logo
você será tão habilidoso na água quanto qualquer um de nós.
O Toupeira ficou tão comovido pelo seu modo gentil de falar
que ficou até sem voz para responder, e precisou enxugar uma ou
duas lágrimas com o dorso da pata; mas, com o Rato desviando o
olhar por gentileza, seu gênio logo reviveu, e ele foi capaz até mes-
mo de dar respostas ríspidas a um casal de galinhas-d’água que co-
mentavam, entre risadinhas, sua aparência enlameada.
Quando chegaram à toca, o Rato acendeu uma bela fogueira
na sala e instalou o Toupeira numa poltrona em frente a ela. Em-
prestou-lhe chinelos e um roupão, e contou-lhe histórias sobre o
rio até a hora do jantar. Eram, aliás, histórias arrepiantes para um
animal da terra como o Toupeira. Histórias sobre açudes, enchen-
tes repentinas, perigosos lúcios saltando pela água e barcos a vapor
lançando garrafas ao rio — pelo menos as garrafas foram certamen-
te lançadas, e foram lançadas dos barcos a vapor, então provavel-
mente quem as lançou foram os próprios barcos. E histórias sobre
garças, e o quão singulares elas são com quem conversa com elas;
e sobre aventuras em canais, e pescarias noturnas com o Lontra, e
excursões para longe de casa com o Texugo.

22
A MARGEM DO RIO

O jantar foi uma refeição das mais animadas; mas momentos


depois um sono terrível se abateu sobre o Toupeira, que precisou
ser escoltado pelo atencioso hospedeiro ao melhor quarto da casa,
no andar de cima, onde logo deitou sua cabeça no travesseiro, cheio
de paz e contentamento, sabendo que seu novo amigo, o rio, batia
no parapeito da janela. Este dia foi apenas o primeiro de muitos ou-
tros parecidos para o recém-liberto Toupeira. Foram dias cada vez
mais longos e proveitosos, à medida que o verão avançava. Apren-
deu a nadar e a remar, e conheceu as alegrias que a água corrente
proporciona; e, com os ouvidos entre os juncos, captava, de vez em
quando, algo do que o vento sussurrava constantemente entre eles.

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