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– LITERATURA BRASILEIRA –
A PROSA NO BRASIL:
DO ROMANTISMO AO PRÉ-MODERNISMO
(PRIMEIRA PARTE)
MATERIAL SUPLEMENTAR
a) “Três tradutores no Brasil do século XIX”
b) "A fresta para o infinito: escrita, arqueologia urbana e mídia ótica"
c) “A metrópole em obras: literatura e fotografia na figuração da imagem da
cidade moderna no periodismo da belle époque tropical”
CRÔNICA BRASILEIRA
(1854-1910):
DE FRANCISCO OTAVIANO A JOÃO DO RIO
Folhetim “A SEMANA”
2 de abril de 1854
FRANCISCO OTAVIANO
Quem não se lembra das taminas no largo da Carioca que faziam perder-se o
dia inteiro de um escravo na conquista perigosa de um a dois barris d´água? Quem
não se lembra do preço exorbitante a que chegaram esses barris para aquelas
pessoas que não possuíam escravos?
Hoje temos água em todos os cantos das ruas e com tanta fartura que
dispensa os cuidados da polícia municipal e corre à vontade de qualquer vadio que
se diverte abrindo as torneiras.
Os capoeiras, esse terror das ave-marias, desapareceram.
O entrudo, o selvagem, o brutal, o desengraçado entrudo, o entrudo dos
limões e dos baldes d´água aferrou-se na cadeia para deixar passar o carro das
máscaras.
Querer é poder. Mas para que assim seja é preciso que se saiba querer.
Quem nos havia de dizer, por exemplo, ainda há pouco tempo, que se poderia
andar à noite nas nossas ruas sem receio de tropeçar, a menos que se não seja cego?
Aqui e ali, em grandes distâncias, havia um lampião municipal ou policial,
esfumaçado e sujo, com uma luz baça, e outras vezes moribunda, à espera de que um
negro sonolento e azeitado viesse espevitar a torcida ou deitar-lhe mais azeite. Hoje
há lampiões claros e limpos, com intervalos de poucos passos; há uma luz vivíssima
e constante, há o gás em vez do azeite.
Toda a cidade correu à rua do ouvidor para apreciar a nova iluminação.
Encolhidas e tristes, as últimas torcidas dos lampiões de azeite, viam passar as ondas
desta população inconstante que adora as novidades e se esquece dos serviços
antigos. Ninguém fazia caso daquelas relíquias do tempo passado, ninguém tinha
olhos e elogios senão para os lampiões à gás!
Estes últimos, abusando da situação, não deixavam que seus predecessores
se ocultassem e assim os expunham à zombaria dos passeadores. Então, não
podendo por mais tempo conter a sua mágoa, o Nestor dos lampiões de azeite, que
se encostava à esquina da rua da Vala, tais palavras soltou do íntimo peito:
“Povo ingrato! Povo volúvel! Povo ignorante da simetria! Assim abandonais
por uns grosseiros e monstruosos lampiões os vossos antigos aliados das
patuscadas, das brejeirices, dos namoros, que em vez de vos denunciarem aos olhos
curiosos e à polícia rondante, pelo contrário vos abrigavam com uma sombra
protetora? Iremos, sim, povo ingrato! Mas a cólera de nossas torcidas e a indignação
dos nossos revérberos cairá sobre vossa cidade! Quando procurares um esconderijo
obscuro para vos ocultardes do permanente que vos persegue; quando quiserdes
esperar uma bela menina sem que vos observem; haveis então de vos lembrar dos
pobres desterrados que vos protegiam!”
Um clarão mais vivo do seu próximo rival extinguiu os últimos gemidos do
avô dos lampiões de azeite, cuja torcida, queimada e seca, se desfez em cinza.
Sic transit gloria mundi!
No pequeno intervalo de um mês, o Sr. Irineu terá alcançado duas grandes
vitórias da rotina e da impossibilidade. A 23 de março deu-nos a iluminação a gás; a
23 ou 24 de abril nos dará o transporte a vapor em trilhos de ferro. Nesse dia correrá
a locomotiva por toda a extensão da estrada de Mauá, e poderão os animais da raça
bovina, muar e cavalar retirar-se para o interior das roças.
Voltando à iluminação à gás, diz-se que há ideia de se manter o uso antigo de
não se acenderem os bicos nas noites de luar. A economia é de patente! Pode muito
bem salvar o Estado! Teremos a repetição do que sucedia quase sempre. A folhinha
marcava luar; não se acendiam os lampiões; mas as nuvens ou as chuvas, intrigadas
com a folhinha, faziam-lhe a pirraça de esconderem a lua; e a cidade ficava em treva
por bem dos cofres públicos.
Seção “Ao correr da pena”
Correio Mercantil
24 de setembro de 1854
JOSÉ DE ALENCAR
Uma das plantas europeias que dificilmente se tem aclimatado entre nós é o
folhetinista. Se é defeito de suas propriedades orgânicas, ou da incompatibilidade
do clima, não o sei eu. Enuncio apenas a verdade. Entretanto, eu disse – dificilmente
– o que supõe algum caso de aclimatação séria. O que não estiver contido nesta
exceção, vê já o leitor que nasceu enfezado, e mesquinho de formas.
O folhetinista é originário da França, onde nasceu, e onde vive a seu gosto,
como em cama no inverno. De lá espalhou-se pelo mundo, ou pelo menos por onde
maiores proporções tomava o grande veículo do espirito moderno; falo do jornal.
Espalhado pelo mundo, o folhetinista tratou de acomodar a economia vital de sua
organização às conveniências das atmosferas locais. Se o tem conseguido por toda a
parte, não é meu fim estuda-lo; cinjo-me ao nosso círculo apenas. Mas comecemos
por definir a nova entidade literária.
O folhetim, disse eu em outra parte, e debaixo de outro pseudônimo, o
folhetim nasceu do jornal, o folhetinista por consequência do jornalista. Esta íntima
afinidade é que desenha as saliências fisionômicas na moderna criação. O
folhetinista é a fusão admirável do útil e do fútil, o parto curioso e singular do sério
consorciado com o frívolo. Estes dous elementos, arredados como polos,
heterogêneos como água e fogo, casam-se perfeitamente na organização do novo
animal.
Efeito estranho é este, assim produzido pela afinidade assinalada entre o
jornalista e o folhetinista. Daquele cai sobre este a luz séria e vigorosa, a reflexão
calma, a observação profunda. Pelo que toca ao devaneio, à leviandade, está tudo
encarnado no folhetinista mesmo; o capital próprio.
O folhetinista, na sociedade, ocupa o lugar do colibri na esfera vegetal; salta,
esvoaça, brinca, tremula, paira e espaneja-se sobre todos os caules suculentos, sobre
todas as seivas vigorosas. Todo o mundo lhe pertence; até mesmo a política. Assim
aquinhoado pode dizer-se que não há entidade mais feliz neste mundo, exceções
feitas. Tem a sociedade diante de sua pena, o público para lê-lo, os ociosos para
admirá-lo, e a bas-bleus para aplaudi-lo. Todos o amam, todos o admiram, por que
todos têm interesse de estar de bem com esse arauto amável que levanta nas lojas
do jornal, a sua aclamação de hebdomadaria.
Entretanto, apesar dessa atenção pública, apesar de todas as vantagens de
sua posição, nem todos os dias são tecidos de ouro para os folhetinistas. Há-os
negros, com fios de bronze; à testa deles está o dia... Adivinhem? O dia de escrever!
Não parece? Pois é verdade puríssima. Passam-se séculos nas horas que o
folhetinista gasta à mesa a construir a sua obra. Não é nada, é o cálculo e o dever que
vem pedir da abstração e da liberdade um folhetim! Ora, quando há matéria e o
espirito está disposto, a cousa passa-se bem. Mas quando, à falta de assunto se une
aquela morbidez moral, que se pode definir por um amor ao far niente, então é um
suplício...
Folhetim “A Semana”
Gazeta de Notícias, 22 de novembro de 1896
MACHADO DE ASSIS
ASSIS, Machado de. Obra Completa, vol. III. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994, p. 741-
744.
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Edições do Senado Federal – Vol. 42
Brasília – 2005
Sumário
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
O Passeio Público
F I
18 Chile.
19 Evaristo da Veiga.
20 Onde estão hoje a Polícia Marítima e o Museu Histórico. No local deste existiu o
antigo Arsenal de Guerra.
88 Joaquim Manuel de Macedo
– Então...
– Então é que eu juro por minha alma que os vice-reis tam-
bém têm coração, e que V. Exa gosta muito da menina Susana.
Luís de Vasconcelos bateu no ombro de Valentim e dis-
se-lhe:
– Os vice-reis também têm coração. Mas às vezes não se per-
doa a eles o que se desculpa em um artista. Vamos. Acabemos a noite
como a começamos: seja uma noite de imprudência, e ao mesmo tempo
de segredo.
Estavam perto da lagoa, quando pararam, ouvindo a voz doce
e melancólica de Susana, que cantava uma balada, da qual repetirei uma
estrofe, porque tem a cor e a simplicidade daquela época.
Em S. Bento deu um’hora,
No Colégio deram duas;
Vede que horas são estas
Que eu por ti ando nas ruas!
– Ah! meu bem! não venhas cá,
Não venhas, prenda querida,
Vede que eu sou impedida,
Tenho impedimento forte.
levou-nos para fora, e tirando dos ombros uma túnica cor de angélica que
trazia, estendeu-a sobre a lagoa do Boqueirão, que, de súbito, se transfor-
mou em um lindíssimo jardim. Depois, o gênio... a sombra foi-se esvain-
do... esvaindo, até desaparecer de todo; e felizes, contentes, nós corremos
como duas crianças travessas pelo jardim. Depois, ah! Vicente! Depois, eu
desatei a chorar, porque nesse imenso jardim procurei debalde e não en-
contrei este coqueiro, a cuja sombra, um dia, pela primeira vez, de joelhos
aos pés de minha avó, tu lhe disseste o que eu já sabia... que me amavas.
O sonho parou aí, porque... eu acordei, chorando.
O que sentiu Luís de Vasconcelos, ouvindo a narração daque-
le sonho, ninguém pôde saber. Apenas mestre Valentim supôs que o
vice-rei por mais de uma vez enxugara as lágrimas.
– Estás ouvindo, Vicente? – disse a velha comovida e soluçando.
– Estou – respondeu o mancebo. E juro que acredito tanto na
inocência e na pureza de Susana como na salvação da minha alma. Mas
um sonho é uma ilusão que nada pode na vida, e a realidade que receio
me espanta e me atormenta.
– Confia em mim, meu primo.
– E se amanhã, ou em breves dias, o vice-rei, abusando do
seu poder e da sua influência, ousasse perturbar a paz, a serenidade do
teu coração e tentasse...
A moça não o deixou acabar. Ergueu-se e falou. E à medida que
falava, a velha, que também se erguera, veio se chegando para o coqueiro.
Susana respondia a Vicente:
– Eu diria ao vice-rei sem hesitar nem tremer: senhor, sou
pura e feliz; tenho um noivo a quem amo, um noivo que minha avó
abençoa, tenho um amor que um padre que era meu tio e tio do meu
amado abençoou no momento de morrer. É um amor sagrado diante de
Deus, como a minha pureza é uma flor do céu. Esta pureza e este amor
não hão de ceder ao capricho de um vice-rei. Contava com a vossa ge-
nerosidade, faltou-me ela; agora conto com a minha virtude, conto com
Deus, contarei, enfim, com a morte.
– E eu lhe diria – exclamou a velha, cujos cabelos soltos alve-
javam ao clarão da lua: Sr. vice-rei, tive uma filha bela como Susana; há
vinte anos um fidalgo rico e poderoso apaixonou-se por ela, e não po-
Um passeio pela cidade do Rio de Janeiro 95
21 Flora Fluminensis ou Flora do Rio de Janeiro. Obra editada pela Tipografia Nacional
em 1825, com onze volumes atlas.
Um passeio pela cidade do Rio de Janeiro 97
II
23 “Errei gravemente nesta informação. Xavier dos Pássaros foi um artista muito di-
ferente de Xavier das Conchas, e é certo que foram ambos contemporâneos e
que serviram e floresceram no tempo do vice-rei Luís de Vasconcelos. O primei-
ro distinguiu-se na Casa dos Pássaros (edifício onde depois se estabeleceu o Real
Erário e se conserva hoje o Tesouro Nacional), casa que o vice-rei mandou cons-
truir para estabelecer nela um museu de história natural, e onde o artista primava
no trabalho de encher e preparar pássaros. O segundo, Xavier das Conchas, ilus-
trou-se no Passeio Público do Rio de Janeiro. Assim, pois, errei, confundindo
este com o Xavier dos Pássaros.
O Xavier das Conchas era militar e cultivava a arte em que se mostrou tão notá-
vel unicamente por gosto e amor.
Corrigindo deste modo o erro que cometi, vou ter ainda o prazer de apresentar
aos meus leitores uma breve notícia do berço pátrio, da família e da vida do nos-
so Xavier das Conchas.
Francisco dos Santos Xavier, muito mais conhecido por Xavier das Conchas, fi-
lho legítimo de Veríssimo dos Santos e de D. Inácia de Arão, nasceu na cidade do
Rio de Janeiro no ano de 1739 e foi batizado na freguesia de N. S. da Candelária.
Destinando-se à carreira militar, assentou praça de soldado na mesma cidade do Rio
de Janeiro a 12 de setembro de 1752, e foi logo depois destacado para a ilha de Santa
Catarina, onde se conservou em serviço ativo trinta e dois anos, quatro meses e vinte
dias, subindo sucessivamente aos postos de cabo de esquadra, condestável, almoxari-
fe das fortalezas e ajudante de auxiliares. Durante esse tempo, desempenhou diversas
comissões difíceis e importantes, e entre outras, a de examinar se era possível estabe-
lecer navegação entre a serra e a costa do mar, rompendo-se as lagoas para fazer co-
municar a vila da Laguna com o rio Tramandaí. Executando esta comissão, Francisco
dos Santos Xavier caminhou a pé cerca de cinqüenta léguas por pântanos, desertos,
rios e lugares quase intransitáveis, conseguindo apresentar, em 17 de fevereiro de
1765, um roteiro em que deu informações detalhadas de todo o terreno.
100 Joaquim Manuel de Macedo
24 “As palavras que aí vão grifadas lêem-se no ofício do vice-rei Luís de Vasconce-
los e Sousa para ser entregue ao seu sucessor. V. Revista do Instituto Histórico, tomo
4.°, 1ª série, pág. 25.” — Nota do autor.
Um passeio pela cidade do Rio de Janeiro
10
nessas notícias tradicionais. Se 3elas, porém, não são exatas, atestam em
todo o caso a opressão do povo e o despotismo do governo.
O certo é que o vice-rei Luís de Vasconcelos e Sousa operou
o milagre que tomara a peito realizar. Fez aparecer dinheiro e trabalha-
dores, e tanto ativou as obras que no fim de quatro anos viu abrir-se o
Passeio Público ao bom povo da cidade do Rio de Janeiro.
Admira realmente que em tão pouco tempo se executassem
tantos trabalhos cuja dificuldade e importância ainda hoje podemos
apreciar. Atualmente, quatro anos seriam apenas suficientes para a reso-
lução da obra, a encomenda, apresentação e aprovação dos planos e dos
orçamentos. Porque o primeiro ano empregaria o governo a considerar
e reconsiderar a matéria. O segundo ano seria dedicado à escolha dos
engenheiros e ao exame e estudo dos riscos e dos relatórios que eles
apresentassem. Durante o terceiro ano, o ministro respectivo dormiria
sobre o caso e, no quarto, enfim, depois de três meses de consultas, de
cinco de hesitações, de mais três de dúvidas inesperadas, chegaria o últi-
mo mês, no qual o ministro mandaria dar começo aos trabalhos, ficando
um dia inteiro a admirar o esforço inaudito de sua patriótica atividade!
Dizem que todas essas delongas administrativas que entorpe-
cem o desenvolvimento material do país, no império do Brasil, provêm
das condições do sistema representativo. Não admito semelhante expli-
cação. Penso também que no governo absoluto é mais fácil a pronta
execução de qualquer projeto, porque o impulso parte de uma só vonta-
de, e de uma vontade que não receia oposição, e que pode cortar arbi-
trária e imediatamente todos os obstáculos; e que pelo contrário, no go-
verno representativo estudam-se as conveniências públicas, pesam-se os
recursos do Estado, consulta-se finalmente a nação, ouvindo-se os seus
representantes, para levar-se a efeito depois a idéia que se deseja realizar.
Se não é assim, é pelo menos assim que deve ser. Mas, entre a demora
imposta pela necessidade de se refletir e de se consultar os poderes
competentes e a procrastinação soporizada que a preguiça e o desmaze-
lo determinam há uma distância imensa, que se escapa aos olhos daque-
les que nasceram com a proveitosa sina de passar a vida inteira dando
apoiados a tudo quanto dizem os bons e os maus, e os péssimos minis-
tros de Estado.
104 Joaquim Manuel de Macedo
26 Ao que consta, o menino que hoje existe na entrada do jardim em frente à praça
Paris não é o primitivo. Trata-se de uma reprodução em chumbo, metal de que se
fabricara o antigo.
108 Joaquim Manuel de Macedo
III
do terraço, e cuja chave ainda tinha em seu poder. Correu para a cascata
e soltou um grito de prazer, vendo de pé, firme e sem a menor quebra e
dano, o seu delicado coqueiro.
Foi tão grande o seu prazer que partiu logo em direitura à
casa de Xavier, e bateu-lhe à porta com quanta força pôde.
Xavier dormia, já a sono solto. Acordou, porém, sobressalta-
do, levantou-se, e abrindo uma janela, perguntou de mau humor o que
dele queriam a tais 10 horas.
– Sou eu, Xavier – disse-lhe Valentim.
– Oh! Mestre. Que aconteceu?
– Uma felicidade: venho dizer-te que o meu coqueiro está salvo.
– Maldito seja o teu coqueiro, que te fez cortar-me o mais
belo sono que tenho dormido em minha vida! – exclamou Xavier, tran-
cando a janela.
Valentim voltou para casa, rindo-se às gargalhadas da peça
que acabava de pregar a Xavier.
Do que se passou no dia da abertura do Passeio Público do
Rio de Janeiro nada mais posso adiantar. Contentem-se, pois, os curio-
sos com a notícia da tempestade e do susto de mestre Valentim, que são
fatos positivos, embora de pouca importância.
O Passeio Público teve indubitavelmente a sua época de bri-
lhantismo e de encanto no vice-reinado de Luís de Vasconcelos e Sousa.
Mas, logo depois, sobreveio-lhe um longo período de lamentável des-
prezo, durante o governo do vice-rei conde de Resende, e em seguida
experimentou, ora insuficientes cuidados, ora um tristíssimo abandono,
até que finalmente agora vai reaparecer mais belo que nunca, segundo o
apregoa a fama, graças a uma reforma inteligente, artística e digna da ca-
pital do império.
Luís de Vasconcelos amava tanto a sua obra como um pai
ama a sua filha, e soube despender sempre com ela extremosos cuida-
dos. Não se limitou a enriquecer o jardim com ornamentos interiores.
Engraçou-o ainda pelo exterior, fazendo abrir e alinhar bonitas ruas por
onde se pudesse ir ter a ele. Foi assim que dispôs a rua que, correndo
pela frente do Passeio, tomou do Passeio o nome, sendo apenas de la-
mentar que em suas proporções tão estreita ficasse. E além da rua do
Um passeio pela cidade do Rio de Janeiro
11
Passeio, a outra que cai perpendicularmente
3 sobre esta no ponto em que
se mostra o portão, e que então se chamou rua das Belas Noites em vez
de rua das Marrecas, que é como hoje se chama. Abertas as ruas, o
vice-rei promoveu nelas a construção de casas, determinou e adiantou
algumas edificações, que aliás não pôde concluir, como tinha em mente
e, enfim, não perdeu ocasião de excitar alegria e festas no seio do seu
pequeno paraíso.
O povo procedia neste caso muito de acordo com o vice-rei.
Bem entendido, neste caso, de acordo espontâneo e muito de coração.
Porque em todos os outros casos não tinha remédio senão mostrar-se
também de acordo com ele, quer quisesse quer não, visto que não era
admissível que um vice-rei alguma vez deixasse de ter toda a razão em
tudo e por tudo. E pouco admira que naqueles tempos todos aplaudis-
sem o juízo infalível do poderoso delegado do rei absoluto, quando ain-
da hoje são muitos os que piamente acreditam que a infalibilidade não
está nos homens, está no poleiro, na influência do poder e, até, às vezes,
simplesmente no feitiço do tesouro público.
O povo tomou amor ao seu belo jardim desde o primeiro dia.
Ainda há velhos a quem lembram as festas brilhantes que ali
se fizeram em 1786, em aplauso do casamento do príncipe que 22 anos
depois veio assentar o trono da monarquia portuguesa na cidade do Rio
de Janeiro. Iluminações, músicas e danças aparatosas foram então execu-
tadas, durante algumas noites, no Passeio Público, e não faltaram poetas
que nessa ocasião se fizessem ouvir inspirados no meio de enchentes de
flores... flores vegetais e humanas.
Além dessa, algumas outras festas públicas tiveram lugar no
Passeio, do ano de 1786 em diante, e a prova ficou no grande número
de lampiões que para aquele fim se guardavam nas duas casas que se le-
vantaram dentro do jardim, como já ficou dito.
Mas essas noites oficiais, embora deslumbrassem a população
e lhe dessem fervorosa alegria, eram naturalmente de curta duração, da-
vam ao Passeio Público apenas uma vida artificial e um encanto que não
podia ser perene.
Ora, o que mais nos importa conhecer é a vida normal, a ani-
mação de todos os dias e de todas as noites que tinha aquele jardim, no
tempo a que me refiro.
114 Joaquim Manuel de Macedo
Quereis, pois, fazer idéia do que era para o povo do Rio de Ja-
neiro o Passeio Público naquela época, e ainda em outras posteriores, a
despeito do desmazelo dos governos? Perguntai qual foi a origem da de-
nominação de Belas Noites, dada à rua que depois muito prosaicamente
chamaram das Marrecas.
Aquele nome Rua das Belas Noites queria dizer que o Passeio
Público fizera o povo do Rio de Janeiro gostar pouco da lua nova e abor-
recer a minguante.
Por quê? Eis aqui todo o segredo desse desamor e desse
aborrecimento por aquelas duas fases da lua.
Nas noites de brilhante luar, dirigiam-se alegremente para o
Passeio Público numerosas famílias, galantes ranchos de moças, e por
conseqüência, cobiçosos ranchos de mancebos; e todos, depois de pas-
sear pelas frescas ruas e pelo ameno e elegante terraço, iam, divididos
em círculos de amigos, sentar-se às mesas de pedra, e debaixo dos tetos
de jasmins odoríferos ouviam modinhas apaixonadas, e lundus travessos,
cantados ao som da viola e da guitarra, rematando sempre esses diverti-
mentos com excelentes ceias dadas ali mesmo.
Toda essa multidão contente e festiva tomava de preferência,
para chegar ao Passeio Público, a rua que ficava e fica fronteira ao por-
tão do jardim. A lua crescente ou plena brilhava no céu. Os grupos doce-
mente ruidosos de moças sucediam-se uns aos outros ao longo daquela
tão curta como afortunada rua. Os cantos soavam. Sentia-se o prazer
geral no concurso de todos para os mesmos inocentes gozos. Oh! que
nome quereis que fosse dado a essa rua? Que outro nome mais bem ca-
bido do que o “das Belas Noites”?
E como essas famílias, aquelas moças e aqueles mancebos
deixariam de desamar a lua nova, e aborrecer a minguante, que eram as fa-
ses da lua menos propícias às suas suspiradas reuniões no jardim?
Conversai com os nossos velhos, e ouvi-los-eis falar das suas
agradáveis noites e das afamadas ceias do Passeio Público com mais en-
tusiasmo do que vós outros falais do vosso Cassino, do vosso Clube Flu-
minense, dos vossos jantares do Jardim Botânico, das vossas festas de
hoje, enfim, tão descoradas e tão fatigantes à força de serem tão cerimo-
niais e tão calculadas.
Um passeio pela cidade do Rio de Janeiro
11
E, notai bem, quinze dias,
5 ou antes, quinze noites pelo menos
em cada mês, havia no Passeio Público festa do povo, alegria do povo,
reunião de famílias, cantigas de moças e de mancebos, conversações ani-
madas de velhos e velhas, versos lidos ou improvisados por poetas ou
simples cultivadores do Parnaso, amores puros nascidos ao som de sua-
ves cantos, confiança e contentamento de todos, ruído, aplausos, risadas,
movimento e nunca uma desordem, e jamais um desaguisado, e ainda
menos um arrependimento e remorsos. O véu da noite ali não favorecia
o vício, somente facilitava os santos gozos da virtude.
E, entretanto, não apareciam lá para manter a ordem nem
subdelegados, nem inspetores de quarteirão, nem permanentes, nem pe-
destres. Até aí não tinha ainda florescido na cidade do Rio de Janeiro o
célebre Vidigal, que foi o tutu do seu tempo.28 Passava-se perfeitamente
sem as providências da polícia. Não havia desordeiros, porque subsistiam
os antigos costumes do povo, e, apesar do governo absoluto, o povo ti-
nha moralidade.
A satisfação naquelas noites era geral, e as noites faziam tal-
vez esquecer os dias. Os gozos puros eram de todos e para todos; creio
mesmo que as freiras da Ajuda passariam horas inteiras às grades das ja-
nelas do seu convento, estendendo os olhos ávidos para apreciar com
eles, e de longe embora, os inocentes prazeres da terra que eram nega-
dos a elas, pobrezinhas, a pretexto de que poderiam arredar os seus pen-
samentos do Céu.
Ainda bem que nesse tempo os frades do Carmo não mora-
vam ainda a poucos passos do Passeio Público, como depois tiveram de
ir morar. Aliás, duvido que resistissem com paciência àquele martírio de
Tântalo de que puderam triunfar as freiras da Ajuda. Porque, enfim, os
frades não são freiras, e às vezes têm suas fraquezas e cedem à tentação
do Diabo, que em regra geral é mais feliz, tentando os homens do que
as mulheres.
Foi uma verdadeira pena que esse contentamento do povo da
cidade do Rio de Janeiro não se fizesse sentir sempre o mesmo, inalterá-
vel, até o fim do Governo Luís de Vasconcelos. Infelizmente, porém, a
28 “Célebre oficial de polícia cuja atividade, zelo e muitas vezes despótica sem ceri-
mônia, deixaram uma fama que dura até hoje.” – Nota do autor.
116 Joaquim Manuel de Macedo
governo de então boa parte da glória que por esses trabalhos e por esse
nobre empenho coube a Rangel de Vasconcelos.
Mas, quando um governo realiza uma obra dessas, descansou
no sétimo dia, depois de ter nos seis anteriores criado o universo: o go-
verno pode bem descansar no fim de longos meses de trabalho.
E o governo não só descansou como também dormiu a sono
solto a respeito do Passeio Público. Dormiu... dormiu... e dormiu.
Até que acordou, em 1860.
IV
acabei-o além dos horizontes que nos separam do futuro, fazendo uma
ligeiríssima história do jardim público que ainda havemos de ter.
Passeei por um jardim que ainda não existe!
Transpus os limites que marquei aos meus passeios: abusei da
paciência dos bons amigos que me acompanharam neles.
Foi um erro, confesso. Estou arrependido, e imponho-me o
castigo de perder o trabalho que tive.
Façam de conta que hoje não houve passeio.
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Coleção A frânio Peixoto
~ Cinematógrafo
(Crônicas Cariocas)
INTRODUÇÃO
Uma fita, outra fita, mais outra... Não nos agrada a primeira? Passe-
mos à segunda. Não nos serve a segunda? Para diante então! Há fitas
cômicas, há fitas sérias, há melancólicas, picarescas, fúnebres, alegres –
algumas preparadas por atores notáveis para dar a reprodução ideali-
zada de qualquer fato, outras tomadas nervosamente pelo operador, à
passagem do fato. Umas curtas, outras longas. Podes deixar em meio
uma delas sem receio e procurar a diversão mais além. Talvez encon-
tres gente conhecida que não te fala, o que é um bem. Talvez vejas des-
conhecidos que não te falam mas riem conforme os tomou a máquina,
perpetuando esse sintoma de alegria. Com pouco tens a agregação de
vários fatos, a história do ano, a vida da cidade numa sessão de cine-
matógrafo, documento excelente com a excelente qualidade a mais de
não obrigar a pensar, senão quando o cavalheiro teima mesmo em
querer ter ideias.
Dizem que a sua melhor qualidade essa é. Quem sabe? O pano,
uma sala escura, uma projeção, o operador tocando a manivela e aí te-
mos ruas, miseráveis, políticos, atrizes, loucuras, pagodes, agonias, di-
vórcios, fomes, festas, triunfos, derrotas, um bando de gente, a cidade
inteira, uma torrente humana – que apenas deixa indicados os gestos e
passa leve sem deixar marca, passa sem se deixar penetrar...
– Interessante aquela fita, dizes. E dois minutos depois não te lem-
bras mais.
4 ~ João do Rio
O VELHO MERCADO
gente da praça sempre foi valente? Quantos limitaram as festas aos co-
retos da Lapa, com ornamentações, leilões de prendas e outros brincos
primitivos? Quantos tiveram aqueles quatro portões como os portões
de uma cidadela que não se sentia?...
Com essas tristes reflexões deixei o novo Mercado pela velha e
amada Praça. Havia, como eu, muito cavalheiro discreto a armazenar
na retina pela última vez a topografia do Mercado. E o mercado era
desolador. O quadrilátero onde paravam as carroças de verdura estava
deserto. A parte central, onde havia bancas de peixe, frutas, casas de
cebolas e de louças também deserta e junto ao chafariz seco um solda-
do de ar triste. Pelas ruas estreitas, uma ou outra casa ainda aberta a
carregar os utensílios para o novo edifício, onde ninguém dorme e às
dez horas fecha. No mais, portas batidas, portões de grade mostrando
a ruína vasta das paredes e o anseio interminável de mudança. Paramos
enfim na rampa. Alguns homens conversavam em mangas de camisa.
Para eles era impossível deixar de aproveitar a rampa. Mas a doca es-
tava quase vazia. Só, amarrada a um dos grossos e gastos argolões de
ferro, uma falua balouçava. Era a última. Dali a minutos ela partiria,
deixando abandonada a velha bonacheirona antiga, cuja história já ti-
nha da legenda. Era a derradeira. A atmosfera estava carregada. E além
da falua tão cansada e triste, arabescando o horizonte de treva, um
bando de corvos em círculos concêntricos alastrava um pedaço do céu.
~ Cinematógrafo 159
Material Suplementar
Três tradutores de poesia no Brasil do século XIX
Resumo: O objetivo do presente artigo é um estudo de corte historiográfico sobre três tradutores de poesia
brasileiros atuantes no século XIX: Odorico Mendes, João Cardoso de Menezes e Sousa e Francisco Otaviano.
Os três, além de poetas, também foram ativos tradutores e acabaram por partilhar de mesma fortuna crítica,
que os fixou em uma posição microscópica, a despeito da circulação de suas obras tradutórias. Nos três casos,
a tradução de poesia encampa um projeto romântico de atuação no campo estético, pelo qual se revelam
informações sobre a vida literária e, por conseguinte, a vida social brasileira do período, em seus hábitos de
leitura e no processo de formação do tradutor de poesia no Brasil oitocentista.
Palavras-chave: Tradução; poesia; literatura brasileira
th
Abstract: This article presents a study focused on three poetry translators very active in Brazil along the 19
century: Odorico Mendes, João Cardoso de Menezes e Sousa and Francisco Otaviano. All of them were not only
translators, but also poets – even if despite their translatory efforts they display such a microscopical position
in historiographical terms. Their works as translators encapsulate a whole romantic program of acting on the
th
aesthetical field and also unveil important aspects of Brazilian literary and social life back in the 19 century,
particularly on its habits of reading and on the process of breeding up the role of poetry translator in Brazil.
Keywords: Translation; poetry; Brazilian literature
poema de Victor Hugo e ainda poemas das literaturas espanhola (Lope de Vega) e italiana
(Dante, Rolli).
Curiosamente, a edição de Ecos d´além-mar preparada por A. H. Leal se encerra com
um apêndice no qual se leem traduções de Victor Hugo realizadas por Trajano Galvão de
Carvalho. Hoje soterrado pela poeira do tempo, esse tradutor foi um dos primeiros a
tematizar, nas letras românticas brasileiras do oitocentos, a figura do africano escravizado –
como se percebe nos poemas “Nuranjan”, “A crioula” e “O calhambola” –, sendo possível
incluir seu nome no rol dos pioneiros da poesia de dicção abolicionista. No alentado estudo
conduzido por Mucio Teixeira sobre a poesia de Victor Hugo traduzida por poetas brasileiros,
encontramos um exemplar de Trajano Galvão, que também ostenta em sua lavra traduções
para poemas de Alfred de Vigny.
Outros importantes tradutores vindos do Maranhão foram Joaquim Serra, Gentil
Homem de Almeida Braga e Manoel Benício Fontenelle.
Joaquim Serra foi uma figura bastante ativa no cenário intelectual do Segundo
Reinado. Deixou, no entanto, pequena obra literária, sobre a qual registam-se poucos
estudos, entre os quais merece menção o que lhe dedica Vagner Camilo, em número recente
da revista Teresa. Em seus livros de poesia verificam-se desde poemas obedientes à estética
romântica com ênfase na cor local (como a série “Sertanejas”) até “um escabroso poema
herói-cômico intitulado Os Garanhões” (Machado 2010: 188), abusadamente dedicado ao
Conde d´Eu e à Princesa Isabel. Abolicionista, foi homem de jornal, onde atuou durante
décadas, fundando e dirigindo periódicos, entre os quais o Semanário Maranhense, onde
Sousândrade publicou fragmentos de seu Guesa Errante. Serra participou da composição do
mítico A casca da caneleira (steeple-chase), romance escrito grupalmente por Antônio
Marques Rodrigues, Gentil Homem de Almeida Braga, Raimundo Filgueiras, Trajano Galvão
de Carvalho, Francisco Sotero dos Reis, A. H. Leal, Francisco Dias Carneiro, F. G. Sabbas da
Costa, Caetano C. Cantanhede e Sousândrade. Um de seus livros de poesia, Quadros, é
constituído por poemas autorais aos quais se misturam traduções. Publicou, em 1865,
Mosaicos, volume completamente dedicado às traduções. Nele encontramos as traduções
habituais do romantismo (Victor Hugo, Byron e Lamartine) em companhia de poemas de
autores latino-americanos, porquanto fosse grande seu interesse pelas literaturas do sul do
continente. As cartas que José de Alencar escreveu endereçadas a Serra seriam reunidas
numa série de artigos intitulada “O Nosso Cancioneiro”, de suma importância para se
compreender as concepções alencarianas da língua e do estilo.
Gentil Homem de Almeida Braga era muito estimado por Sílvio Romero, que o
considerava exímio tradutor. Traduziu Byron e também participou de A casca da caneleira.
Já publicara anteriormente o livro Três liras em conjunto com Trajano Galvão e Marques
Rodrigues, ao qual se seguiriam, ainda na poesia, Clara Verbena e Sonidos. Quatro poemas
seus são reunidos no Parnaso maranhense, entre os quais “O salgueiro de Santa Helena”,
tradução de poema de Joseph Méry que marcou a linhagem napoleônica da poesia
romântica brasileira (presente desde o berço, diga-se, já em Gonçalves de Magalhães). Como
Serra e Braga, além de poeta Manoel Benício Fontenelle foi também ativo tradutor de
poesia, trazendo para o português considerável quantidade de poemas de autores europeus
vinculados ao romantismo, sobretudo Victor Hugo, além de Byron, Musset e Marceline
Desbordes-Valmore.
A tradição dessa Escola do Maranhão seguiria com Raimundo Correia. Além dos seis
poemas escolhidos para o volume Hugonianas de Mucio Teixeira, de Victor Hugo traduziu
também o longo “Epopeia do leão”, cuja versão se encontra em Aleluias, e peças menores,
como “O amor”, em Primeiros sonhos. Correia reuniu parte de suas traduções em Versos e
versões (1887), onde encontram-se poemas não apenas dos românticos (Byron, Victor Hugo,
Alphonse Karr, Heine), como também dos parnasianos (Théophile Gautier, Coppée, Heredia,
Leconte de Lisle) e dos decadentistas (Rollinat, Richepin).
Mas, dentre os tradutores maranhenses, nenhum supera em legenda o nome de
Odorico Mendes.
Nascido em São Luís e falecido em Londres – onde viveu quase duas décadas –, foi
poeta (comparece já no Parnaso Brasileiro, de Pereira da Silva, com dois poemas longos,
entre os quais uma versão de seu mais conhecido “Hino à tarde”, uma série de odes e um
soneto), deputado, publicista e membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, mas
acabou conhecido pela posteridade por suas traduções da Ilíada, da Odisseia e da Eneida.
-as antes como paráfrase, definida como a situação em que o tradutor “apropria-se das
ideias” (Leal 1873: 90) do original (concebidas como um lugar composto pelo campo
semântico e por aquilo que na época se chamava motivação, a que poderíamos chamar de
intencionalidade, seguindo o vocabulário da teoria da literatura consolidado no século XX) e
apresenta um poema em padrão métrico e/ou estilo que não os do original. As segundas,
seriam coordenadas por notável rigor, sobretudo na escolha por uma perseguição verso a
verso com o original, valorizando, portanto, a concisão, qualidade anteriormente explicada.
É certo que o Pantheon é obra resultante de uma estratégia de elogio mútuo, e,
como tal, empenha-se por imortalizar o autor e ligá-lo indissociavelmente a um contexto
local, fixando-o “no espaço simbólico do panteão maranhense caracterizado como Athenas
Brasileira, cujos elementos de ritualização, reuniu princípios de idealização clássica da
civilização ocidental, acrescido dos exageros do romantismo nacional” (Borralho 2009: 5). No
entanto, afigura-se, desde sempre, como “o resultado de um perfil dessa elite corroborando
para a construção de uma cultura oficial brasileira no plano local” (Ibidem). Ademais, a figura
do tradutor-arqueólogo – sinalizada por Henriques Leal e confirmada por Joaquim Manuel
de Macedo, para quem Odorico, com suas traduções, “elevou-se a avantajado arqueólogo”
(apud Leal 1873: 85) – é precisa para se aplicar a Odorico Mendes.
O erudito maranhense Francisco Sotero dos Reis – primo da escritora Maria Firmina
dos Reis e ele próprio tradutor de Racine – elogia a formação de Odorico: “versadíssimo em
todo o gênero de literatura antiga e moderna, profundo no conhecimento das línguas, de
erudição inesgotável, e o poeta pela ventura mais sabedor de nosso idioma” (Reis 1868:
297). Vê-se aí traçado o perfil do tradutor ideal que o período ansiava, com fôlego e
performance nos campos literário, linguístico, filológico e poético, capacitado a exercer uma
espécie de arqueologia poética.
Quando Sotero dos Reis escreveu seu Curso, as traduções de Homero ainda estavam
inéditas, embora já falecido Mendes, sendo suas páginas sobre o conterrâneo prova de que
procurou concorrer decisivamente para a sobrevivência de seu nome. É nesse diapasão que
Sotero dos Reis destaca a fidelidade das traduções de Odorico Mendes, fidelidade que, para
si, deve ser considerada como sinônima à concisão – é preciso lembrar que os tradutores do
período não raramente aumentavam o número de versos em suas versões, sem falar em
toda a sorte de liberdades que eram tomadas em relação ao original – isso no plano
exclusivo da crítica textual, sem sequer entrarmos no mérito das transposições semânticas
ou imagéticas. Como explica sobre a tradução da Eneida o autor do Curso, “os versos
portugueses em que é feita igualam quase em número aos hexâmetros latinos: o que é um
verdadeiro milagre de concisão, porque os segundos são, como se sabe, maiores que os
primeiros” (idem: 302). Reconhece, ainda, a capacidade de Mendes transpor a imagética e
os efeitos fônicos do texto original: “são as suas mesmas figuras, as suas mesmas imagens, a
sua mesma poesia onomatopaica, até com as mesmas pausas nos versos” (idem: 303). No
entanto, não há uma palavra (de elogio ou repúdio) às invenções verbais pelas quais as
traduções de Odorico Mendes se fariam conhecidas posteriormente – com exceção do
hábito da elipse, que, segundo Sotero dos Reis, fazia com que Mendes “alatinasse o
português” (idem: 307). Chega até mesmo a escolher dois fragmentos para comentar que
estão totalmente normalizados quanto ao léxico, sem destacar qualquer ocorrência
aberrante.
Está ainda Sotero dos Reis atento ao fato de que, embora indissociavelmente ligado à
transmissão do classicismo no Brasil, enquanto poeta Odorico Mendes também se
expressava em dicção romântica, uma vez que detecta “ressaibos românticos” (idem: 298)
em sua lírica. Em abono disso, refere-se a Gonçalves Dias, que, segundo Sotero dos Reis,
sobre Odorico Mendes “dizia que metrificava como um rei em poesia” (idem: 301).
É certo que sua tradução para a Eneida gerou polêmica na época. Um dos primeiros a
discutir questões ligadas ao trabalho tradutório de Odorico foi seu conterrâneo, Frederico
José Correia, que, em Livro de Crítica, propõe reparos à Eneida Brasileira, chamando para o
deslinde da questão dois latinistas respeitados como autoridades, a saber: José Feliciano de
Castilho e António de Castro Lopes. Numa edição de 1880, a Revista Brasileira publicava um
estudo sobre a polêmica, intitulado “Interpretações de um verso da Eneida”, em que se
reproduziram os dois pareceres. Inicialmente o de Castilho, que, embora discorde do que
chama de miragens (apud Correia 1880: 134) na tradução do maranhense, não deixa de
reconhecê-lo como “espírito de ordem superior e cultor dos dois idiomas” (Ibidem). O
parecer de Castilho tornar-se-ia importante para quem rastreia os partidos tradutórios do
século XIX, pois, ao longo do mesmo, o erudito português traça os problemas teóricos
Dos tempos de vida acadêmica vinha-lhe não apenas o apreço pelos bestialógicos
poéticos, cultivados, ademais, por outros românticos brasileiros, como Bernardo Guimarães
e José Bonifácio, o Moço. Cardoso de Menezes foi também um dos primeiros byronianos,
como fazem prova as inúmeras epígrafes do poeta inglês presentes já em A harpa gemedora
e as traduções pelas quais ficaria conhecido.
Próximo a Pedro II, com quem partilhava intimidade em assuntos de poesia e
tradução, pelas mãos do monarca recebeu a comenda da Imperial Ordem da Rosa e foi
tornado Barão de Paranapiacaba, em 1883, por seus serviços às letras. Vale lembrar que a
vocação para fâmulo já se revelara desde o primeiro livro, já que A harpa gemedora contém
uma saudação e um recitativo dedicados a Pedro II, monótona poesia encomiástica a
atravancar o volume. Desse convívio nasceu a parceria para tradução de Prometeu
acorrentado, de Sófocles, onde inicialmente Pedro II fez uma tradução literal do original em
grego, a partir da qual João Cardoso de Menezes empreendeu o que preferia chamar de
trasladação poética.
Tradutor de fôlego, empreendeu a passagem ao português de incontáveis autores
(incluindo os clássicos), material reunido no segundo volume de Poesias e Prosas Seletas,
comentando-as e elucidando procedimentos adotados. Gostava de traduzir poemas longos,
como mostram suas versões de Oscar d´Alva, Childe-Harold e O Corsário. É um tradutor cuja
obra é sempre referida como conscienciosa, porquanto de seu gesto tradutório raramente
executado sob quais condições e com quais objetivos, de forma que vez por outra
encontramos a defesa de seu partido enquanto tradutor, especialmente no que diz respeito
à versão homeométrica. Além de comporem um conjunto heteróclito dos mais
interessantes, no qual as fronteiras entre os diferentes gêneros situados entre a criação e a
crítica são voluntariamente desguarnecidas, ao longo dos apontamentos de Cardoso de
Menezes vão surgindo registros importantes da vida social do período, pois, tendo
frequentado a Faculdade de Direito e depois aberto a casa na Corte para reuniões literárias,
testemunhou os mais diversos modismos em matéria de poesia, oferecendo informações
sobre hábitos de leitura e outras práticas sociais ligadas à literatura, bem como dados sobre
o processo de formação intelectual do tradutor de poesia naquele contexto histórico e
cultural.
espírito, de sentimentos e de raciocínio, raros e fortes, tais que o aparelharam para a luta,
que o fizeram artista e político, mestre da pena elegante e vibrante” (Assis 1889: 1).
Antonio Candido não nega a existência de interesse em sua poesia, ressaltando as
qualidades técnicas de seus versos, tanto no plano melopaico como no imagético,
“revelando sensibilidade, gosto, elegância e equilíbrio. Qualidades nem sempre dos grandes
criadores, mas florão maior do intelectual, do burguês culto e refinado, como ele foi de
maneira exemplar” (Candido 2009: 422). Atribui-lhe, ainda, possível posição pioneira no uso
regular do alexandrino entre nossos românticos, concluindo com o veredito: “um bom
poeta, um homem culto e fino, que merece maior atenção do que lhe vem sendo concedida”
(idem: 424).
Ainda no século XIX sua obra como tradutor teve boa recepção crítica, como prova a
nota bibliográfica que Guilherme Bellegarde, em 1881, na Revista Brasileira, dedicou ao
lançamento de volume preparado por Amorim Carvalho com as traduções de Francisco
Otaviano. Trata-se de um ensaio que merece atenção, pois, além de elencar diferentes
concepções sobre tradução vigentes ao longo do oitocentos e de traçar uma linhagem de
tradutores na língua portuguesa (em um arco que vai de Bocage à Escola do Maranhão),
propõe como paradigma de tradução o gesto intermédio entre a fidelidade e a beleza.
Em seu estudo sobre os tradutores de Byron, Onédia Barboza ressalta a elegância dos
versos de Francisco Otaviano, mas é obrigada a advertir que era um tradutor
“escandalosamente infiel” (Barboza 1974: 130) – e, de fato, considerados os paradigmas
epocais do que consistia a fidelidade ao original, amparada na concepção do tradutor-servo,
Otaviano não se poupa em liberdades para com os originais a que se lança por verter. Assim,
correspondência entre padrões métricos não era algo almejado nas traduções de Otaviano,
o que já poderia causar, de pronto, assimetrias no tom e no ritmo dos poemas. Também
alterações com a ordem e o número das estrofes eram constantemente praticadas em suas
versões de Byron. A atitude perante o texto-tutor nunca é de reverência: como ressalta
Barboza, “os originais sofrem enxertos e mutilações” (idem: 145).
Embora seja associado à escola byroniana (logo trataremos de suas traduções do
poeta inglês), Francisco Otaviano deixou outras traduções importantes do ponto
historiográfico, como sua versão dos Cantos de Selma – que começou a fazer em 1843, mas
só publicou quase trinta anos depois, “numa tiragem de apenas sete exemplares” (Lopes
1997: 247) –, ou ainda poemas de Shelley e Alexandre Dumas. Trata-se, contudo, de um
tradutor que poderia ser considerado bastante infiel, capaz de tomar quaisquer liberdades
com o texto a ser traduzido, inserindo ou suprimindo versos, e, sobretudo, carregando nos
tons explicitamente românticos na dicção e na imagética do texto traduzido – como já
ressaltou Onédia Barboza.
Mas as coisas não são tão simples: por mais discutíveis que fossem os métodos de
Otaviano, são inegáveis os achados poéticos obtidos – ainda que tais achados nem sempre
estivessem no texto original, situam-se bem acima da média da poesia do autor. O ponto
talvez mais interessante no estudo de Candido é a afirmação de que, em se tratando da
poesia em Francisco Otaviano, “o seu melhor conjunto de poemas talvez sejam as
traduções” (Candido 2009: 424). De fato, a atividade de Otaviano como tradutor parece
sobrepujar, sem deixar muitas dúvidas, sua atuação como poeta. Como reforça Antonio
Candido, ao traduzir, Francisco Otaviano “é sempre poeta excelente” (idem: 424). A
tradução, aqui, se converte em um objeto estético dotado de relativa autonomia. A virtude
desse processo é que, se já não temos mais Byron (ou qualquer autor romântico cuja obra
funcionasse como texto-tutor), também já não encontramos mais Francisco Otaviano – e sim
uma espécie de ideal poeta romântico brasileiro, cuja dicção e imagética é obtida mediante
procedimentos de supressão ou exacerbação de estilemas. Independentemente das
liberdades tomadas em relação ao original (sejam elas de padrão métrico, número de versos,
esquema rímico, escolhas lexicais, imagética etc), as traduções de Francisco Otaviano se
esforçam por colocar em circulação textos-tutores do romantismo, que, à ausência de
manifestações autóctones que cobrissem essa raia no terreno de batalha do campo literário,
dessa maneira eram postos em circulação. Não é por acaso que, ao analisar sua tradução
para um trecho do Childe-Harold, Onédia Barboza ressalta como “Otaviano transforma
Byron num autêntico representante do Romantismo brasileiro” (Barboza 1974: 137). Aqui a
tradução compensa o hiato existente nas posições do campo literário onde a tradução se
fará circular. E é nesse ponto, talvez, onde resida sua colaboração mais dinâmica para a
prática tradutória, concebida essencialmente como atividade criativa – ainda que sob pena
A concepção da prática tradutória como afim à criação esteve vigente ainda depois do
momento romântico. É para onde parece sinalizar um artigo assinado por “Ignotus”,
publicado em A Semana, em 1885, sob o título “Traduções literais e fora da letra”. Nela, o
autor analisa as traduções disponíveis de Longfellow e acaba por propor a defesa do que
chama “versão parafrástica”, em detrimento da “versão literal”. Segundo Ignotus, a tradução
literal não consegue atingir a impressão estética causada pela obra original, dada sua falta
de interesse pelos valores artísticos, uma vez que “a tarefa de enfileirar palavras
portuguesas equivalentes às palavras do original pode, quando muito, constituir um esforço
filológico” (Ignotus 1885: 4). Assim, para o ensaísta de identidade não inteiramente
soterrada sob o pseudônimo (pois trata-se do também tradutor Joaquim Serra), “a tradução
literal é esforço linguístico, mas não é uma preocupação de artista” (Ignotus 1885: 4).
Para aplicar os conceitos e a terminologia de Ignotus ao caso em tela, é possível dizer
que suas traduções de Otaviano por vezes se situam fora da letra, mas não fora da poesia.
Como escreveu Antonio Candido sobre sua poesia, Francisco Otaviano obtinha maior
rendimento poético quando trabalhava a partir do verso alheio, em “situações poéticas onde
o impulso criador era dado por outros, cabendo-lhe por em jogo qualidades que possuía em
alto grau: gosto, ouvido, plasticidade” (Candido 2009: 424). A tradução se converte em
objeto estético dotado de relativa autonomia, onde o criador não trabalha com materiais de
primeira mão, e sim com textos pré-existentes processados plasticamente pelo tradutor,
num gesto estetizador que não se distingue, em essência, do trabalho processual envolvido
no ato criador.
É assim que aquilo que à primeira vista pode parecer mero descaso às normas
filológicas elementares que presidem o estabelecimento de texto para edição e a própria
tradução (ou seja: as incontáveis liberdades tomadas pelos românticos em relação ao texto a
ser traduzido, desde a fragmentação do mesmo até a supressão de informações autorais), a
partir de outro mirante pode também revelar uma concepção da tradução como atividade
precipuamente criativa, e não necessariamente uma operação exclusivamente filológica ou
linguística, propugnando uma equalização entre rigor e liberdade. Desse modo, como já
sinalizamos antes (ao tratarmos da exacerbação de estilemas românticos em suas
traduções), em muitos momentos Francisco Otaviano não parece estar empenhado em
propor o gesto tradutório como ato de conduzir o leitor a um texto – e sim conduzir o leitor
a um complexo cultural denominado romantismo (a envolver não apenas a literatura e a
arte, mas também a filosofia, a história e a política), cujo equivalente dinâmico em solo
brasileiro ele próprio se encontrava empenhado em construir. Sob esse ponto de
observação, a máxima liberdade pleiteada em suas traduções estaria conforme a um certo
ethos romântico, preconizado especialmente por Victor Hugo, quando o poeta francês
afirma a necessidade de consecução do dúplice fim de “a liberdade na arte, a liberdade na
sociedade” (apud Ferreira 1871: 18).
É desnecessário lembrar que a produção e a circulação de textos traduzidos é elemento
absolutamente fundamental para a formação e a consolidação de um sistema literário –
como era o caso do nosso, ao longo do século XIX. Colabora, ainda, para a definição de um
perfil de poeta e intelectual envolvido em diferentes atividades que compõem o campo
literário, em sintonia com o perfil do poeta-ensaísta que se cristalizava na Europa desde,
pelo menos, a Escola de Jena, chegando à síntese emblemática em Baudelaire. Para além
dos aspectos puramente estéticos envolvidos na produção do discurso poético, a prática
tradutória colaborou para dinamizar a vida cultural do país, abrindo possibilidades de
atuação tanto criativa como crítica, que pareciam insuspeitas durante o período colonial.
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Organização:
Carmem Negreiros
Fátima Oliveira
Jean Pierre Chauvin
Rosa Gens
ABRALIC
Associação Brasileira de Literatura Comparada
Rio de janeiro
2018
Série E-book | ABRALIC
12
Marcus Rogério Salgado Belle Époque: efeitos e significações
∗
Professor adjunto de Literatura Brasileira – Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
13
Série E-book | ABRALIC
para o cartão postal, já que a cartofilia, uma das grandes manias da belle
époque, foi um importante meio de divulgação da imagem impressa.
De qualquer forma, a instalação de uma sala permanente de cinema na
Capital Federal pouco tempo após a primeira exibição pública e paga do
invento dos Lumière em Paris e a rodagem dos primeiros filmes nacionais já
em 1897 e 1898 são fatos que demandam, no mínimo, uma arqueologia das
formas visuais em circulação na sociedade brasileira do século XIX. A partir
dos gestos simultâneos de decomposição e síntese implicados no olhar
arqueológico, pode-se entender como a relativa popularização da fotografia
a partir da década de 1860 (cf Süssekind, 1987, p. 31) se encontra vinculada
em cadeia causal de impacto com a formação de receptores de imagens
produzidas pelo cinematógrafo. De igual forma, o status que a fotografia
atinge a partir de 1860 foi resultado de um lento processo de produção e
circulação de imagens produzidas pelo que Friedrich Kittler chama de
‚mídias óticas‛ (cf: Kittler, 2016), bem como da formação de um público
receptor – ambos ligados diretamente, por sua vez, a processos
socioeconômicos em curso (urbanização, industrialização etc).
O fato é que, muito antes do cinema e da popularização da fotografia,
já no começo do século XIX encontramos dispositivos óticos que, além de se
converterem em espetáculos na vida social da Corte, ainda serviram como
práticas preparatórias para os novos modos de ver e perceber o mundo
engendrados pelas imagens técnicas características da modernidade, mesmo
em seus estágios avançados.
Retrocedendo a pesquisa até inícios do século XIX, surpreende o fato
de que não apenas com teatro, operetas e tavernas divertiam-se os habitantes
da Corte. A Gazeta do Rio de Janeiro de 27 de maio de 1818 anunciava – na
seç o de ‚Avisos‛, entre ofertas de rapé, barris de sardinha e a
movimentação dos navios no porto – a chegada, no dernier bateau, de um
espetáculo com dispositivos mecânicos que prometia abalar o tédio:
José Joaquim Lopes faz ciente ao público ter chegado proximamente de terras
estrangeiras com uma peça de grande gosto, na qual apresenta várias figuras: esta
peça tem relógio de sala e um realejo, com uma grande máquina de figuras, as quais
manobram debaixo de compasso de música, e cada uma em suas ocupações, umas
trabalhando em seus ofícios, e outras contradançando, outras passeando em boa
15
Série E-book | ABRALIC
Uma caixa óptica de madeira, folha de ferro, cobre ou cartão, de forma cúbica,
esférica ou cilíndrica, que projeta sobre uma tela branca (tecido, parede caiada, ou
mesmo couro branco, no século XVIII), numa sala escurecida, imagens pintadas sobre
uma placa de vidro. Diabruras, cenas grotescas, eróticas, escatológicas, religiosas,
históricas, científicas, políticas, satíricas: todos os assuntos foram abordados. A
imagem é ‚fixa‛ ou ‚animada‛, pois a placa comporta um sistema mec}nico que
permite dar movimento ao assunto representado. (Mannoni, 2003, p. 58)
Os espectadores nunca viam o projetor, que estava escondido atrás da tela. Quando
as luzes no auditório baixavam, um fantasma aparecia na tela, primeiramente bem
pequeno; ele crescia rapidamente e parecia mover-se na direção da plateia (podia ser
16
Marcus Rogério Salgado Belle Époque: efeitos e significações
17
Série E-book | ABRALIC
segredo que não possa ou mesmo não deva ser violado –, tais dispositivos
óticos engendram um gesto de ressonâncias ontológicas, realizado em dois
tempos, em que, no primeiro deles, o véu é levantado e que, no segundo, é
logo baixado, mantendo na penumbra a ordem oculta do mundo. Como se
percebe, esses dispositivos inscrevem o corte e a continuidade entre
imaginário e real.
Havia, ainda, os dioramas – em que se apresentavam pinturas para
uma plateia posicionada em um anfiteatro rotatório, com o adjutório de
luzes, emulando efeitos de tridimensionalidade e de movimento, vez que as
imagens pareciam transformar-se sob determinadas condições de
iluminação ou com o movimento do palco rotatório – e a grande sensação
dos cosmoramas.
Esses dispositivos apostavam para valer na força do artifício sobre o
olhar. O mais primitivo de todos, talvez, a lanterna mágica, anunciava em si
a possibilidade de uma experiência suprassensorial, pela qual se encenava o
acesso | ‚ilus o transcendental‛ (Andriopoulos, 2014, p. 46) mediante mídia
ótica – o que se acentua com as fantasmagorias e invenções como o
fantascópio. Assim, a partir de uma tática de estetização do real norteada
pelo ilusionismo e pela tensão dinâmica entre natureza e artifício, um
dispositivo como o diorama, ‚apresentado como um exemplo de ciência
ótica de ponta, produzia um ´efeito de natureza´ situado entre a tela pintada,
o sistema de iluminaç o e o olho do espectador‛ (Tresch, 2012, p. 140). Por
conta disso, ‚o diorama e o daguerreotipo eram vistos simultaneamente
como espetáculos mágicos e como inscrições realistas do mundo externo‛
(Tresch, 2012, p. 140). A aproximação no imaginário entre magia e técnica se
revela codificada até mesmo em um anúncio do britânico The Spectator
datado de 1834 em que se adverte da exibição do famoso diorama em
Regent´s Park com imagens de criptas, abadias arruinadas e cemitérios:
imediatamente abaixo dele, encontramos outro anúncio, a informar a
publicação de Lives of necromancers – livro que, diga-se, chegou a ser
resenhado por Edgar Allan Poe.
É claro que vai um longo caminho entre a ‚consciencialização da
ilus o‛ (Medeiros, 2010, p. 78) que marca a experiência dos primeiros
dispositivos óticos de entretenimento e a concepção da fotografia como
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Marcus Rogério Salgado Belle Époque: efeitos e significações
Eu gostaria de ter de volta os dioramas com sua magia imensa e grosseira a me impor
uma ilusão útil. Prefiro olhar alguns cenários de teatro, nos quais encontro, tratados
habilmente em trágica concisão, os meus mais caros sonhos. Estas coisas, porquanto
absolutamente falsas, estão por isso mesmo infinitamente mais próximas da verdade;
nossos pintores paisagistas, ao contrário, são em sua grande maioria mentirosos,
justamente porque descuidaram de mentir. (apud Benjamin, 1996, p. 142-143).
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Série E-book | ABRALIC
A noite era formosa; a lua em fase plena mergulhava a cidade em um oceano de luz
pálida, mas clara, suave, encantadora e romanesca. Muitas vezes voltava-me para
contemplar essa já grande Babel, esse labirinto de ruas que formam a opulenta capital
do Brasil, e me embebia por minutos no grandioso panorama da bela Sebastianópolis
iluminada por milhares de flamas de gás, que simulavam enfeitiçá-la em noite de
festa. (Macedo, 1997, p. 172).
seca no princípio da rua, e no fim Notre Dame de Paris, a fada misteriosa de três
entradas e saídas e com labirintos, tentações e magias no vasto seio – preparai-vos
todos para a festa deslumbrante do centenário da rua do Ouvidor! (Macedo, 1988, p.
40).
Se não teve a felicidade de ver esta serena aparição no baile, tome o meu conselho. Vá
a casa do Reis, na rua do Hospício n.º 72. É a melhor loja de instrumentos de óptica e
de física que há nesta cidade: aí encontrará um sortimento magnífico de binóculos, de
telescópios e lunetas. Escolha a melhor jumelle eliptique que ele tiver, vá esta noite
beneficiar os italianos ouvindo música italiana, e lá examine o céu do Teatro Lírico,
que talvez tenha ocasião de ver a estrela de que lhe falei. Não fite muito o óculo; uma
estrela é tudo o que há mais puro e de mais casto neste mundo. (Alencar, 2004, p. 41-
42).
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Marcus Rogério Salgado Belle Époque: efeitos e significações
Eis o quadro original que Ricardo viu de relance. O vulto da moça, esclarecido por
um raio do sol coado entre a folhagem, se estampava no fundo azul, com vigor de
colorido e animação de tons admiráveis. Através da névoa sutil que há pouco
envolvia seu espírito, o desenhista podia supor um instante que via uma paisagem de
Delacroix através da ilusão diáfana de um diorama. (Alencar, 1959, p. 712).
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Marcus Rogério Salgado Belle Époque: efeitos e significações
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Marcus Rogério Salgado Belle Époque: efeitos e significações
buraco uma lente‛ (Ferreira, 1996, p. 449). Como frisa Max Milner, pode-se
atribuir grande parte do efeito causado por esses espetáculos óticos à
‚passagem de um espaço urbano a um espaço totalmente distinto‛ (Milner,
1990, p. 21). É como se esses equipamentos óticos permitissem o
desvelamento daquilo que os surrealistas chamariam, a partir do segundo
quartel do século XX, de ‚mais-realidade‛. N o é por acaso que em um dos
números da revista Minotaure encontramos uma imagem de um raio elétrico
obtida por método de fotografia científica diretamente associada à escrita
automática, o que Breton repetiria em uma collage intitulada ‚A escrita
autom{tica‛, na qual se vê um microscópio do qual parecem jorrar animais,
à maneira de uma cornucópia de imagens (cf: Poivert, 2006, p. 74). Ainda no
século XIX, o pensamento científico já associava diretamente percepção
visual e conduta psicológica, sendo certo que mesmo Freud ‚acreditou no
acesso a um ´a-mais de real´ por meio dos aperfeiçoamentos da ótica‛ (Huot,
1991, p. 30). Para Hervé Huot, em seu estudo sobre a importância do olho e
do olhar no pensamento e na pr{tica clínica do psicanalista, ‚devemos, ali{s,
constatar que de ponta a e ponta de sua obra, desde Die Traumdeutung,
Freud mão cessa de tomar como modelos de uercomparação para o aparelho
psíquico instrumentos óticos, microscópio, telescópio ou aparelho
fotogr{fico‛ (Huot, 1991, p. 32).
Vale lembrar, ainda, que os dioramas estão diretamente vinculados à
fotografia. Como ressalta Celeste Olalquiaga, no capítulo de seu estudo
sobre modernidade e artifício em que trata dos panoramas e dos dioramas,
‚inventados em finais do século XVIII, eles foram refinados por Daguerre,
um dos inventores da fotografia, que mostrou seu ´Diorama´ em Paris, onde
foi considerado uma ´salle de miracle´, uma espécie de c}mara maravilhosa‛
(Olalquiaga, 1998, p. 23). A Walter Benjamin não passou despercebido o fato
de que ‚no mesmo ano em que Daguerre inventou a fotografia, seu diorama
foi destruído pelo fogo: 1839‛ (Benjamin, 2009, p. 573). Há que se atentar, no
entanto, para o fato de que, no tocante às relações engendradas entre as
mídias óticas características da cultura visual oitocentista, ‚essas formas de
representação [dioramas, cosmoramas etc] estavam, até certo ponto, em
competição, eram influenciadas e influenciavam a fotografia, mas tinham
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REFERÊNCIAS
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. (2004). Ao correr da pena. São Paulo: Martins Fontes.
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HUOT, Hervé. (1991). Do sujeito à imagem: uma história do olho em Freud. São
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PENA, Luís Carlos Martins. (1839a). ‚Minhas aventuras numa viagem aos
ônibus‛. In: Correio das Modas – Jornal Crítico e Litterario das Modas, Bailes,
Theatros etc. Sábado, 26 de janeiro. Ano 1. Número 4. Vol. 1, p. 30.
. (1839b). ‚Uma viagem na barca de vapor‛. In: Correio das Modas –
Jornal Crítico e Litterario das Modas, Bailes, Theatros etc. Sábado, 26 de janeiro.
Ano 1. Número 15. Vol. 1, p. 126.
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RESUMO: O objetivo do presente artigo é oferecer um estudo sobre o modo como a fotografia (mais
especificamente, o cartão postal) desempenhou papel preponderante na construção da imagem da
Capital Federal como metrópole moderna entre os cronistas da chamada belle époque tropical. Para
tanto, são focalizados os números da revista Kosmos publicados entre 1904 e 1905, por ocasião da
inauguração da Avenida Central, marco simbólico do projeto de reurbanização encetado pelos pode-
res públicos naquele momento histórico.
PALAVRAS-CHAVE: Literatura e fotografia; Cartofilia; Belle Époque tropical.
ingresso da Capital Federal na modernidade. Das obras do período, aquela que mais
impacto causaria à vida social – e, por extensão, à literatura – seria a construção da
Avenida Central, rematado símbolo desse ingresso em uma nova fase histórica, com
as amplas ressonâncias culturais nele implicadas, a ponto de ser possível afirmar que
“nada expressa melhor a belle époque carioca do que a nova Avenida Central” (Nee-
dell 1993: 58). Segundo o mesmo autor, “a Avenida Central tornou palpável a fantasia
de Civilização compartilhada pelos cariocas de elite da belle époque” (Needell 1993:
68).
O Rio de Janeiro tornar-se-ia, a partir dessa nova perspectiva urbanística, uma es-
pécie de cartão postal do Brasil. Foram construídos ou reformados mirantes que pos-
sibilitassem a apreciação de vistas da cidade. A abertura da Avenida Beira-Mar e da
Avenida Atlântica descortinou a paisagem da baía durante os fluxos rumo ao sul da
cidade. Dessas duas avenidas que desfraldam vistas de cartão-postal, a primeira “foi
considerada por muito tempo a mais bela via-corso do mundo” (Machado 2008: 99),
enquanto a segunda “se tornou em pouco tempo um dos mais belos e disputados
recantos da cidade, tendo importância singular no turismo moderno no Rio de Ja-
neiro” (Machado 2008: 100). Desenvolveu-se, nesse processo, uma relação modelar,
que, como toda imagem especular, conduziria ao narcisismo que caracteriza, ainda
hoje, a experiência urbana nas plagas cariocas – narcisismo rapidamente detectado e
bastante explorado pela estética televisiva, com suas tomadas completamente este-
reotipadas de pontos turísticos.
A construção da cidade moderna envolveu, por sua vez, a construção de uma ima-
gem de metrópole, para a qual literatura e fotografia concorreram de forma decisiva.
É uma época de prestígio para a cartofilia (mania dos cartões postais), que se reflete
tanto na tendência do fotojornalismo daquele momento em priorizar fotografias de
vistas da cidade em transformação nas páginas de periódicos, quanto no trabalho de
cronistas ocupados com o registro desse processo pelo qual duas paisagens sociais (a
do Rio Antigo, com vestígios coloniais e a presença solene dos produtos arquitetôni-
cos do Segundo Reinado, e a do Rio Moderno, sob a égide de um Hausmann tropical)
se sobrepunham, no arco que cobre a desmontagem de construções arquitetônicas
sobreviventes das fases mais antigas da cidade e a construção da Avenida Central,
marco do novo paradigma urbanístico.
Como escreveu Bilac em uma crônica de 1904, “o cartão postal é o melhor veículo
de propaganda e reclame de que podem dispor os homens, as empresas, a indústria,
o comércio e as nações”. Segundo Daltozo, “40% dos postais que circulam no mundo
trazem fotos de cidades” (Daltozo 2006: 37). Sendo, portanto, um tema privilegiado
na cartofilia universal, a imagem das cidades grassou de igual forma entre nós, com
particular ênfase na belle époque, quando passa a ocorrer a encenação da própria re-
modelagem urbanística da cidade, com o jornalismo e a literatura colaborando nesse
sentido.
1. A cidade cartão-postal
A importância dos cartões-postais para a vida cultural da belle époque ainda não foi
devidamente dimensionada. Como ressalta Annateresa Fabris, desde o último quar-
tel do século XIX o cartão-postal funcionou como “um poderoso aliado na difusão da
imagem fotográfica em seu momento de massificação” (Fabris 1991: 33). Segundo a
mesma autora, a difusão massiva da imagem fotográfica pelo cartão-postal “multi-
plica ao infinito a possibilidade de posse simbólica de todos os aspectos do universo
para um público ávido de novidades” (Fabris 1991: 33). Essa posse simbólica engen-
drada pela imagem é reforçada por Susan Sontag, quando considera as imagens fo-
tográficas como pedaços do mundo, “miniaturas da realidade que qualquer um pode
fazer ou adquirir” (Sontag 2004: 15). Assim, os cartões-postais obedeciam à lógica
da interiorização que presidia “a emergência do fetichismo da mercadoria” (Needell
1993: 190) e levavam paisagens distintas e distantes para o interior dos lares que con-
sumiam esse tipo de produto gráfico.
Os efeitos da viagem imaginária (trazendo para o âmbito da esfera privada outros
espaços) e da posse simbólica de paisagens e monumentos arquitetônicos geografi-
camente distantes implicados no cartão postal não tardariam por se fazer manifes-
tos:
Se a belle époque está diretamente ligada ao 1900, como ressalta A. Billy, não dei-
xa de ser curioso o fato de que, em 1899, por meio da Lei 640, o Governo “autorizou
a produção de bilhetes-postais pela indústria gráfica particular” (Daltozo 2006: 19); é
certo que, “alguns anos antes, no entanto, já circulavam postais brasileiros feitos em
editoras particulares, mas impressos no exterior” (Daltozo 2006: 19).
De acordo com a pesquisa realizada por Daltozo sobre a cartofilia, “no ano de
1909, quando a população brasileira girava ao redor de vinte milhões de habitantes,
circulou pelo Correio a impressionante soma de quinze milhões de cartões postais”
(Daltozo 2006: 19). O cartão-postal foi decisivo para “a comercialização de fotogra-
fias de temáticas urbanas iniciada já a partir dos anos 1860 do século XIX” (Lima 1993:
101). A partir de 1900, Marc Ferrez – cuja fotografia era profundamente enraizada
na cenografia urbana (com suas paisagens, profissões etc) – coloca em circulação
postais com seus registros fotográficos do Rio de Janeiro e, a partir de 1902, A. Ribei-
ro lança no mercado gráfico opulenta quantidade de postais tematizando a Capital
Federal. Desde 1904 operava no Rio de Janeiro a Sociedade Cartófila Internacional
Emmanuel Hermann, fundada por, entre outros, Augusto Malta, famoso pela foto-
grafia de vistas urbanas, constituindo-se cronista visual da cidade, na linhagem de
Ferrez, Georges Leuzinger, Juan Gutierrez, Alberto de Sampaio etc. Segundo informa
Veronica Velloso, a sociedade dispunha de uma publicação própria e contava entre
seus membros os poetas Olavo Bilac e Guimarães Passos e editores de cartões pos-
tais, “marcando a aproximação entre os atos de produção e recepção da imagem”
(Velloso 2000: 131).
Os implementos na indústria gráfica verificados entre nós a partir do início do sé-
culo XX não se restringiram ao segmento dos cartões postais. Revistas e jornais tam-
bém foram afetados por essas transformações que marcam a emergência de “outras
formas de difusão impressa da imagem” (Sotilo 2014: 2), capazes de atender à de-
manda por aquilo que Annateresa Fabris chama de “novo consumo icônico” (Fabris
1991: 12), cuja origem remontava às tentativas desde o século anterior no sentido de
instaurar a produção industrial de imagens capaz que seria “ampliada para a propa-
ganda política e para a publicidade comercial” (Fabris 1991: 12).
É nesse contexto que surgiu Kosmos, uma das pioneiras revistas ilustradas no Bra-
sil. Publicada mensalmente entre janeiro de 1904 e abril de 1909, totalizando sessenta
e quatro números, nela escreveram os principais nomes da literatura brasileira do
período: Olavo Bilac (cronista regular e eventual contista, já que em Kosmos publi-
cou “Mãe Maria”), João do Rio (colaborou na crítica de teatro e com textos como
“Música de amor”, “A tatuagem no Rio”, “O natal dos africanos” e “A musa urbana”,
sem falar em sua famosa tradução da Salomé de Oscar Wilde, publicada na revista
em 1905), Gonzaga Duque (assinava crítica de arte e publicou alguma prosa de fic-
ção), José Veríssimo (crítica literária), Alberto de Oliveira (parnasiano que na revista
publicou poemas como “Taça de coral” e “O ninho”), Medeiros e Albuquerque (que
aí despejou parte de sua produção como contista – vide “Vidas estragadas”), Arthur
Azevedo (crítica de teatro), Coelho Netto, Emílio de Menezes etc. Mas a revista cha-
mava atenção sobretudo pela qualidade gráfica, desde os materiais (papel couché
e uso de cores) até a diagramação, passando, obviamente, pela fotografia. Como
ressalta Antonio Dimas, em seu celebrado estudo sobre o periódico, “deslumbrada
com as possibilidades expressivas da fotografia e com a impressão em cores, a reda-
ção esforçava-se no sentido de tudo ilustrar, o que, muitas vezes, relegava o texto
escrito a um plano inteiramente secundário” (Dimas 1983: 5). Nessa disputa com a
fotografia, a literatura por vezes acabaria por mimetizar a linguagem emergente, tra-
çando e revelando imagens verdadeiramente fotográficas, seguindo, nesse sentido,
a fascinação da época com o cartão postal. Desse modo, muitos textos que aparecem
em Kosmos funcionam como registros verbais de forte apelo imagético a paisagens
e aspectos arquitetônicos ou urbanísticos. A reforma de Pereira Passos implicava “a
construção do cenário de cartão-postal, que dava à Cidade do Rio de Janeiro um sta-
tus de cidade cosmopolita” (Machado 2008: 135). Se a cartofilia privilegiava as ima-
gens urbanas, a Capital Federal – em processo de reurbanização – tornava-se o tema
favorito especialmente dos cronistas, sempre ocupados com a pauta do dia.
Em sua crônica para o primeiro número da revista, Olavo Bilac reforça as intenções
da nova publicação:
que tem inveja dos veranistas de Petrópolis, e não vem gozar o divino encanto
deste lugar, tão cheio do consolo e do repouso que a Natureza sempre dá a
quem sabe compreendê-la e amá-la!”. (Bilac 2004b: 4)
Para o cronista, as ruínas são um motivo estético que carrega em si a força da ação
afirmativa, pois a potência destrutiva pressupõe a reconstrução, percorrendo o traje-
to que vai da sombra à luz: em uma ponta do horizonte, o arcaico, o colonial, aquilo
que se quer recalcar, logo tornado obsceno – no que isso implica tanto em um pres-
ságio da morte iminente como a resistência à dominação do corpo em suas condutas
externas e internas; na outra, o moderno, o cosmopolita, a República, aquilo que se
quer fazer crer (no sentido mesmo econômico do termo crédito, já que estava em
jogo a construção de uma imagem da República para consumo externo e captação de
investimentos financeiros), aquilo que se quer trazer ao proscênio. Nessa oscilação
pendular entre o que deve ser enterrado na sombra (o passado) e o que deve vir à
luz (o futuro) é que o cronista flagra a cidade em um momento e em uma pose privi-
legiados (o presente): despida pelas picaretas sob o comando das mãos operárias, a
cidade revela “à plena luz do dia, a sua miséria e a sua nudez” (Carvalho 1904: 2).
Entrecortado por fotografias que apresentam as obras em curso, a crônica tornar-
se-ia redundante em relação às imagens não fora a viragem que nela se verifica com a
descrição da passagem de um trem elétrico a carregar os destroços do passado para
o mar. Quem entra em cena, finalmente, é a palavra de ordem progressista e, não
mais ocupado com a efemeridade do presente, o cronista tenta forjar uma imagem
de futuro, endossando e ratificando os grandes mitos da época – como a ordem, o
progresso, a função pedagógica da arte etc:
população, hão de modificar os seus hábitos, influir sobre o seu caráter, ativar
a sua iniciativa, despertar-lhe o gosto do belo, o culto do ideal, o amor que
se traduz por atos, não o amor platônico e retórico, da terra natal. Esse é o
primeiro e mais útil resultado do empreendimento que homens enérgicos e de
ampla visão das cousas tomaram a peito. (Carvalho 1904: 5)
Mais adiante, depois de preconizar o que julga o inegável potencial do Brasil para
ingressar na modernidade – que trata por “nova era” (Carvalho 1904: 6) – dado o
“majestoso edifício da tua nacionalidade” (Carvalho 1904: 6), resolve o cronista arris-
car-se a um exercício de futurologia, trazendo ao leitor do presente um souvenir de
sua viagem imaginária para o porvir. Nessa imagem de futuro que apresenta o cronis-
ta, a Capital Federal aparece astrologicamente fadada à beleza e à majestade, maior
que as grandes e míticas cidades da Antiguidade – mal desconfiando, contudo, como
os exageros retóricos do presente podem transformar-se em humor involuntário no
futuro, reforçado pela recorrência monótona das anamorfoses e enumerações:
E tu, Cidade bem amada, coroa desse monumento, como te vejo surgir
radiante e bela dentre as névoas douradas de um horizonte longínquo no meio
de projeções de luz cambiante, num clarão resplandecente de auréola! Ante
os meus olhos deslumbrados passam como numa visão de Isaías, pirâmides do
Egito, templos de Tebas, palácios de Persépolis, Parthenons, Coliseus, a mole
portentosa dessa lendária Babel – o templo das sete esferas do mundo – e,
sob a cúpula desse firmamento em que a constelação simbólica do Cruzeiro
preside aos teus destinos e traça o teu horóscopo, o gigante que, desde séculos
imemoriais, repousa sobre os cabeços das tuas montanhas, ergue-se, majestoso
e forte, e te aponta à contemplação extática do Universo! (Carvalho 1904: 6-7)
que operação metonímica, pela qual a cabeça urbana do país se sobrepõe às demais
partes do corpo social, a fim de ocultar sobretudo os membros inferiores desse cor-
po – afinal, se por trás do projeto de reurbanização da Capital Federal, se insinuavam
os ideais higienistas de “regeneração da cidade, e por extensão do pais” (Sevcenko
1999: 30), não resta a menor dúvida que, contraditoriamente, “essa redenção era
válida somente para as grandes cidades” (Sevcenko 1999: 32), mantendo recalcadas
as estruturas rurais erguidas com a economia escravocrata que não se encaixavam
com a imagem oficial de Brasil desenhada – para consumo interno e externo – pelos
poderes públicos.
Agora, sim; vens para a luz, para o ar livre, para a civilização. O teu prefeito
deseja-te faceira e limpa, toda perfumada pelo aroma das tuas mangueiras, pelo
cheiro dos teus bogaris; enfeitada com os teus palacetes novos. Serás a morena
tentadora das serranias do sul, moça e mulher, nova pela idade e pela graça,
veripotente e boa, pródiga e meiga. Assim te rejubilas pelo desaparecimento
dessa feiíssima Sete de Setembro, que por ser defeituosa, encurralada, sombria
e triste muito se parece com o fato histórico cuja data comemora. (Duque 1905:
44)
A edição de junho de 1905 noticia, além das obras na região portuária (sobre as
quais são apresentados detalhes técnicos), a inauguração do primeiro edifício da
Avenida Central, do qual é reproduzida uma fotografia de sua fachada. Mais um pas-
so dado em direção ao encontro entre futuro e presente tão propalado pelos cronis-
tas.
Finalmente, em novembro de 1905, a Avenida Central (símbolo máximo do projeto
de reurbanização da Capital Federal) foi entregue ao tráfego, o que não passou des-
percebido aos cronistas de Kosmos.
A começar por Bilac, que saudou entusiasticamente a satisfatória materialização
do sonho de encontro entre presente e futuro que havia dominado a pauta da revista
desde seu primeiro número:
por Ferreira e Rosa. Nela, repete-se o jogo antipódico entre sombra e luz, saudan-
do a construção da artéria como um verdadeiro milagre, não fora a presença das
informações técnicas a lembrar que aquele era o resultado de um projeto muito bem
estudado, uma obra exemplar da engenharia e do urbanismo modernos, a vitória da
“emergente cultura racional e industrial” (Needell 1993: 176). Como bem frisou Je-
ffrey Needell, a Avenida Central “também sugeria o potencial mágico conferido pelos
cariocas à Civilização” (1993: 68).
O artigo é fartamente ilustrado e mostra como, de fato, em alguns casos a lingua-
gem verbal encontrava-se subordinada à expressão visual nas páginas de Kosmos.
Enquanto o texto repete truísmos e endossa as codificações ideológicas vigentes, as
fotografias da inauguração mostram, por sua vez, os resultados concretos daquele
encontro entre presente e futuro ansiado pelos cronistas do período.
Nessas duas últimas crônicas estudadas problematizam-se, de sobremaneira, as
relações entre imagem e palavra. O texto insiste em confirmar que a Avenida Central
não era mais um sonho, afirmando e reafirmando sua existência empírica, como se
obrigado a apontar ininterruptamente a veracidade das imagens – o que, no caso es-
pecífico da fotografia, implica, por sua vez, no reconhecimento dos vínculos deslizan-
tes entre imagem e realidade sensorialmente verificável. Nesse processo, a crônica se
apropria de um modo de funcionamento que é característico da fotografia, operando
como testemunho, no sentido que Susan Sontag confere ao termo: “Fotos fornecem
um testemunho. Algo de que ouvimos falar mas de que duvidamos parece compro-
vado quando nos mostram uma foto” (Sontag 2004: 16). E o texto – ao usurpar da
fotografia essa função testemunhal degrada-se como redundância – é o alarme a to-
car continuamente com a afirmação de que as imagens, ali ao lado, são verdade: não
é sonho, não é miragem, ainda que seja uma cidade cenográfica, uma cidade para ser
fotografada.
O que estava em jogo nos textos e nas imagens de Kosmos é a articulação ideo-
lógica entre aquilo que se vê (o presente) e aquilo que não é visível (o futuro). Tal
articulação só revelou-se possível porque, desde meados do século anterior, em de-
corrência das gradativas transformações na paisagem da Corte, consolidava-se no
âmbito da vida comunal uma nova forma de ver, que incluía a proposição de um novo
olhar sobre a cidade e o viver em urbe. Como ressalta Myriam Ávila, “com suas la-
terais abertas, o bonde permitia ver e ser visto, instalando no espaço urbano uma
dupla perspectiva escópica” (Ávila 2008: 30). Dentro do bonde, a realidade passava
a ser percebida como uma série de “cenas separadas em fotogramas pelas barras
verticais” (Ávila 2008: 30). Com a República e a reurbanização da Capital Federal,
essa percepção fotogrâmica da realidade acentua-se e acelera, chegando, enfim, aos
fotogramas em movimento. A culminância desse programa, sem dúvida, é o prefácio
de João do Rio ao volume Cinematógrafo, publicado em 1909, na qual sintetiza: “a
crônica evoluiu para a cinematografia” (Barreto 1909: x), cunhando, nesta mesma
oportunidade, a conhecida expressão “cinematógrafo de letras” (Barreto 1909: x).
De qualquer forma, o conceito de cinematógrafo das letras, como o queria João
do Rio, não teria sido possível sem os desenvolvimentos verificados nos campos da
Obras citadas
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Metropolis at work: literature and photography building up the image of modern city through
tropical belle époque´s periodism.
ABSTRACT: This article aims at offering a study on the way photography (specifically postcards) played
an important role in the building up of the image of Rio de Janeiro as a modern metropolis as perceived
in the tropical belle époque´s periodism. In order to achieve such aim, issues of Kosmos magazine pub-
lished between 1904 and 1905, when the new main avenue was inaugurated, being a symbolical re-
mark of the whole project of urbanization designed by the ruling class in that historical moment.
KEYWORDS: Literature and Photography; Deltiology; Tropical Belle Époque.