Você está na página 1de 201

FICÇÃO I

– LITERATURA BRASILEIRA –

A PROSA NO BRASIL:
DO ROMANTISMO AO PRÉ-MODERNISMO
(PRIMEIRA PARTE)

Departamento de Letras Vernáculas


Setor de Literatura Brasileira
1º semestre 2022
Prof. Dr. Marcus Rogério Tavares Sampaio Salgado
CRÔNICA BRASILEIRA 1854 – 1910
1. FRANCISCO OTAVIANO – Sem título; “A Semana”, 02/04/1854
2. JOSÉ DE ALENCAR – Sem título; Correio Mercantil, 24/09/1854
3. JOSÉ DE ALENCAR – Sem título; Correio Mercantil, 14/01/1855
4. JOAQUIM MANUEL DE MACEDO – “O Passeio Público”
5. MACHADO DE ASSIS – Sem título; O Espelho, 30/10/1859
6. MACHADO DE ASSIS – Sem título; Gazeta de Notícias, 16/10/1892
7. OLAVO BILAC – “Fotojornalismo”; Gazeta de Notícias, 13/01/1901
8. OLAVO BILAC – “O bonde”; Gazeta de Notícias, 11/10/1903
9. JOÃO DO RIO – “Pequenas profissões”; “Tabuletas”; “Visões d´Ópio”;
“Cordões” – A alma encantadora das ruas (1906)
10. JOÃO DO RIO – “Era do automóvel” – Vida vertiginosa (1909)
11. JOÃO DO RIO – “Introdução”; “O velho Mercado” – Cinematógrafo (1910)

MATERIAL SUPLEMENTAR
a) “Três tradutores no Brasil do século XIX”
b) "A fresta para o infinito: escrita, arqueologia urbana e mídia ótica"
c) “A metrópole em obras: literatura e fotografia na figuração da imagem da
cidade moderna no periodismo da belle époque tropical”
CRÔNICA BRASILEIRA
(1854-1910):
DE FRANCISCO OTAVIANO A JOÃO DO RIO
Folhetim “A SEMANA”
2 de abril de 1854
FRANCISCO OTAVIANO

Quem não se lembra das taminas no largo da Carioca que faziam perder-se o
dia inteiro de um escravo na conquista perigosa de um a dois barris d´água? Quem
não se lembra do preço exorbitante a que chegaram esses barris para aquelas
pessoas que não possuíam escravos?
Hoje temos água em todos os cantos das ruas e com tanta fartura que
dispensa os cuidados da polícia municipal e corre à vontade de qualquer vadio que
se diverte abrindo as torneiras.
Os capoeiras, esse terror das ave-marias, desapareceram.
O entrudo, o selvagem, o brutal, o desengraçado entrudo, o entrudo dos
limões e dos baldes d´água aferrou-se na cadeia para deixar passar o carro das
máscaras.
Querer é poder. Mas para que assim seja é preciso que se saiba querer.
Quem nos havia de dizer, por exemplo, ainda há pouco tempo, que se poderia
andar à noite nas nossas ruas sem receio de tropeçar, a menos que se não seja cego?
Aqui e ali, em grandes distâncias, havia um lampião municipal ou policial,
esfumaçado e sujo, com uma luz baça, e outras vezes moribunda, à espera de que um
negro sonolento e azeitado viesse espevitar a torcida ou deitar-lhe mais azeite. Hoje
há lampiões claros e limpos, com intervalos de poucos passos; há uma luz vivíssima
e constante, há o gás em vez do azeite.
Toda a cidade correu à rua do ouvidor para apreciar a nova iluminação.
Encolhidas e tristes, as últimas torcidas dos lampiões de azeite, viam passar as ondas
desta população inconstante que adora as novidades e se esquece dos serviços
antigos. Ninguém fazia caso daquelas relíquias do tempo passado, ninguém tinha
olhos e elogios senão para os lampiões à gás!
Estes últimos, abusando da situação, não deixavam que seus predecessores
se ocultassem e assim os expunham à zombaria dos passeadores. Então, não
podendo por mais tempo conter a sua mágoa, o Nestor dos lampiões de azeite, que
se encostava à esquina da rua da Vala, tais palavras soltou do íntimo peito:
“Povo ingrato! Povo volúvel! Povo ignorante da simetria! Assim abandonais
por uns grosseiros e monstruosos lampiões os vossos antigos aliados das
patuscadas, das brejeirices, dos namoros, que em vez de vos denunciarem aos olhos
curiosos e à polícia rondante, pelo contrário vos abrigavam com uma sombra
protetora? Iremos, sim, povo ingrato! Mas a cólera de nossas torcidas e a indignação
dos nossos revérberos cairá sobre vossa cidade! Quando procurares um esconderijo
obscuro para vos ocultardes do permanente que vos persegue; quando quiserdes
esperar uma bela menina sem que vos observem; haveis então de vos lembrar dos
pobres desterrados que vos protegiam!”
Um clarão mais vivo do seu próximo rival extinguiu os últimos gemidos do
avô dos lampiões de azeite, cuja torcida, queimada e seca, se desfez em cinza.
Sic transit gloria mundi!
No pequeno intervalo de um mês, o Sr. Irineu terá alcançado duas grandes
vitórias da rotina e da impossibilidade. A 23 de março deu-nos a iluminação a gás; a
23 ou 24 de abril nos dará o transporte a vapor em trilhos de ferro. Nesse dia correrá
a locomotiva por toda a extensão da estrada de Mauá, e poderão os animais da raça
bovina, muar e cavalar retirar-se para o interior das roças.
Voltando à iluminação à gás, diz-se que há ideia de se manter o uso antigo de
não se acenderem os bicos nas noites de luar. A economia é de patente! Pode muito
bem salvar o Estado! Teremos a repetição do que sucedia quase sempre. A folhinha
marcava luar; não se acendiam os lampiões; mas as nuvens ou as chuvas, intrigadas
com a folhinha, faziam-lhe a pirraça de esconderem a lua; e a cidade ficava em treva
por bem dos cofres públicos.
Seção “Ao correr da pena”
Correio Mercantil
24 de setembro de 1854
JOSÉ DE ALENCAR

Domingo passado o caminho de São Cristóvão rivalizava com os


aristocráticos passeios da Glória, do Botafogo e São Clemente, no luxo e na
concorrência, na animação e até na poeira. O Jockey Club anunciara a sua primeira
corrida; e, apesar dos bilhetes amarelos, dos erros tipográficos e do silêncio dos
jornais, a sociedade elegante se esforçou em responder à amabilidade do convite.
Fazia uma bela manhã: - céu azul, sol brilhante, viração fresca, ar puro e
sereno. O dia estava soberbo. Ao longe o campo corria entre a sombra das árvores e
o verde dos montes; e as brisas da terra vinham impregnadas da deliciosa fragrância
das relvas e das folhas, que predispõe o espírito para as emoções plácidas e serenas.
Desde sete horas da manhã começaram a passar as elegantes carruagens, e
os grupos dos gentlemen riders, cavaleiros por gosto ou por economia. Após o cupê
aristocrático tirado pela brilhante parelha de cavalos do Cabo, vinha a trote curto o
cabriolé da praça puxado pelos dois burrinhos clássicos, os quais, apesar do nome,
davam nesta ocasião a mais alta prova de sabedoria, mostrando que compreendiam
toda a força daquele provérbio inventado por algum romano preguiçoso: Festina
lente.
Tudo isso lutando de entusiasmo e ligeireza, turbilhonando entre nuvens de
pó, animando-se com a excitação da carreira, formava uma confusão magnífica; e
passava no meio dos estalos dos chicotes, dos gritos dos cocheiros, do rodar das
carruagens, e do rir e vozear dos cavaleiros, como uma espécie de sabat de
feiticeiras, a começar no campo de Sant’Anna e a perder-se por baixo da sombra de
meia dúzia de árvores do Prado e das tábuas sujas e carcomidas de uma barraca que
por capricho chamam pavilhão, e que de velha já se está rindo das misérias do
mundo.
Às 10 horas abriu-se a raia (turf), e começou a corrida com a irregularidade
do costume. Os parelheiros pouco adestrados, sem o ensino conveniente, não
partiram ao sinal e ao mesmo tempo, e disto resultou que muitas vezes o prêmio da
vitória não coube ao jóquei que montava o melhor corredor, e sim àquele que tinha
a felicidade de ser o primeiro a lançar-se na raia. A última corrida, que durou um
minuto e dezenove segundos, teria sido brilhante se dois dos cavalos não se tivessem
lembrado de imitar as pombinhas de Vênus, que dizem, voavam presas por um laço
de amor.
A diretoria, que envidou todos os seus esforços para tornar agradáveis as
novas corridas, deve tomar as providências necessárias a fim de fazer cessar estes
inconvenientes, formulando com o auxílio dos entendidos um regulamento severo
do turf. Convém substituir o sinal da partida por outro mais forte e mais preciso, e
só admitir à inscrição cavalos parelheiros já habituados à raia.
Seria também para desejar que se tratasse de melhorar a quadra (sport) com
as inovações necessárias para comodidade dos espectadores; e que desse alguma
atenção à parte cômica do divertimento. Instituindo-se corridas de burrinhos e de
pequiras. Nós ganhávamos com isto uma boa meia hora de rir franco e alegre, e estou
certo que por esta maneira o gosto dos passatempos hípicos se iria popularizando.
A uma hora da tarde estava tudo acabado, e os sócios e convidados disseram
adeus às verdes colinas do Engenho Novo, e voltaram à cidade para descansar e
satisfazer a necessidade tão trivial e comum de jantar, insuportável costume, que,
apesar de todas as revoluções do globo e todas as vicissitudes da moda, dura desde
princípio do mundo. À tarde, aqueles que tiveram a honra de um convite foram a
Saúde assistir à inauguração do Instituto dos Cegos na casa que serviu de residência
do primeiro Barão do rio-Bonito.
Há muito tempo que se esperava a realização desta bela instituição
humanitária, destinada a dar às pobres criaturas privadas da luz dos olhos a luz do
espírito e da inteligência. Devemos esperar do zelo das pessoas a quem foi confiada
a sua administração que em pouco conseguiremos resultados tão profícuos como
têm obtido a França e os Estados Unidos.
A inauguração fez-se em presença de SS.MM. e de um luzido e numeroso
concurso de senhoras e de pessoas de distinção, que aí se achavam animados pelo
mesmo sentimento, e como para realçarem aquele ato humanitário com a tríplice
auréola da majestade, da virtude e da ilustração.
Depois de tudo isto, uma bela noite sem lua, fresca e estrelada; algumas
partidas no Catete, um passeio agradável ao relento, ou o doce serão da família em
redor da mesa do chá; e por fim cada um se recolheu a repassar lentamente na
memória os prazeres do dia, e a lembrar-se de um sorriso que lhe deram ou de uns
olhos que não viu.
Entretanto a mim não me sucedeu o mesmo. Tinha-me divertido, é verdade;
mas aquele domingo cheio, que estreava a semana de uma maneira tão brilhante,
fazia-me pressentir uma tal fecundidade de acontecimentos, que me inquietava
seriamente. Já via surgir de repente uma série interminável de bailes e saraus, um
catálogo enorme de revoluções e uma cópia de notícias capaz de produzir dois
suplementos de qualquer jornal no mesmo dia. E eu, metido no meio de tudo isto,
com uma pena, uma pouca de tinta e uma folha de papel, essa tripeça do gênero
feminino, com a qual trabalham alguns escritores modernos, à moda do sapateiro
remendão dos tempos de outrora.
É uma felicidade que não me tenha ainda dado ao trabalho de saber quem foi
o inventor deste monstro de Horácio, deste novo Proteu, que chamam – folhetim;
senão aproveitaria alguns momentos em que estivesse de candeias às avessas, e
escrever-lhe-ia uma biografia, que, com as anotações de certos críticos que eu
conheço, havia de fazer o tal sujeito ter um inferno no purgatório onde
necessariamente deve estar o inventor de tão desastrada ideia.
Obrigar um homem a percorrer todos os acontecimentos, a passar do gracejo
ao assunto sério, do riso e do prazer as páginas douradas do seu álbum, com toda a
finura e graça e a mesma nonchalance com que uma senhora volta as páginas
douradas do seu álbum, com toda a finura e delicadeza com que uma mocinha
loureira dá sota e basto a três dúzias de adoradores! Fazerem do escritor uma
espécie de colibri a esvoaçar em ziguezague, e a sugar, como o mel das flores, a graça,
o sal e o espírito que deve necessariamente descobrir no fato o mais comezinho!
Ainda isto não é tudo. Depois que o mísero folhetinista por força de vontade
conseguiu atingir a este último esforço da volubilidade, quando à custa de magia e
de encanto fez que a pena se lembrasse dos tempos em que voava, deixa finalmente
o pensamento lançar-se sobre o papel, livre como o espaço. Cuida que é uma
borboleta que quebrou a crisálida para ostentar o brilho fascinador de suas cores;
mas engana-se: [e apenas uma formiga que criou asas para perder-se.
De um lado um crítico, aliás de boa-fé, é de opinião que o folhetinista inventou
em vez de contar, o que por conseguinte excedeu os limites da crônica. Outro afirma
que plagiou, e prova imediatamente que tal autor, se não disse a mesma coisa, teve
intenção de dizer, porque, enfim nihil sub novum. Se se trata de coisa séria, a amável
leitora amarrota o jornal, e atira-o de lado com um momozinho displicente a que é
impossível resistir.
Quando se fala de bailes, de uma mocinha bonita, de uns olhos brejeiros, o
velho tira os óculos de maçado e diz entre dentes: ”Ah! o sujeitinho está namorando
à minha custa! Não fala contra as reformas! Hei de suspender a assinatura”.
O namorado acha que o folhetim não presta porque não descreveu certo
toilette, o caixeiro porque não defendeu o fechamento das lojas ao domingo, as
velhas porque não falou na decadência das novenas, as moças porque não disse
claramente qual era a mais bonita, o negociante porque não tratou das cotações da
praça, e finalmente o literato porque o homem não achou a mesma ideia brilhante
que ele ruminava no seu alto bestunto.
Nada, isto não tem jeito! É preciso acabar de uma vez com semelhante
confusão, e estabelecer a ordem nestas coisas. Quando queremos jantar, vamos ao
Hotel da Europa; se desejamos passar a noite, escolhemos entre o baile e o teatro.
Compramos luvas no Wallerstein, perfumarias no Desmarais, e mandamos fazer
roupa no Dagnan. O poeta glosa o mote, que lhe dão, o músico fantasia sobre um
tema favorito, o escritor adota um título para seu livro ou o seu artigo. Somente o
folhetim é que há de sair fora da regra geral, e ser uma espécie de panaceia, um
tratado de omni scibili et possibili, um dicionário espanhol que contenha todas as
coisas e algumas coisinhas mais? Enquanto o Instituto de França e a Academia de
Lisboa não concordarem numa exata definição do folhetim, tenho para mim que a
coisa é impossível.
Façam ideia, estando ainda dominado por estas impressões da véspera, como
não fiquei desapontado no dia seguinte, quando me fui esbarrar com a nova da
chegada do paquete de Southampton, o qual parece que mesmo de propósito trouxe
quanta notícia nova e velha havia lá pela Europa.
Seção “Ao Correr da Pena”
Correio Mercantil, 1855
JOSÉ DE ALENCAR

As sociedades em comandita, eis a questão do dia. O abecedário inteiro tem


saído a campo; e cada letra é um novo campeão que desce à liça do combate.
Todas as armas têm sido tomadas. A lógica, o estudo profundo do objeto, a
dialética de uma argumentação vigorosa, ressaltam nos primeiros artigos,
publicados no Jornal do Comércio e assinados por duas iniciais, que, como todos
sabem, denunciam uma das nossas capacidades, um dos espíritos mais bem
organizados em matéria de jurisprudência.
Abrangendo a questão num ponto de vista largo e profundo, aqueles artigos
desenvolveram a questão comanditária desde a sua verdadeira base até as últimas
consequências do decreto de 13 de dezembro de 1850.
Há poucos dias um dos advogados mais distintos do nosso foro nos dizia, a
respeito destes artigos, que poderiam ter sido escritos por ele: Não é um artigo de
jornal, é um tratado.
No Correio Mercantil a questão tomou outra face; mas foi habilmente tratada.
A pena que defendeu o ano passado o projeto de reforma judiciária, que se discutia
na câmara, veio de novo à imprensa para sustentar o decreto do governo, com os
conhecimentos, com o estilo claro e fluente de que já havia dado provas.
Infelizmente, porém a questão não se manteve na altura a que a tinham
elevado os dois ilustres membros da magistratura e da classe dos advogados.
Insinuações pessoais, alusões injustas e deslocadas, vieram tomar o lugar de
argumentos, e responder àquilo que o direito, a justiça e os princípios de razão
haviam estabelecido no desenvolvimento da questão.
Por ora a discussão tem sido unicamente entre as consoantes; as vogais
conservam-se neutras, e esperam talvez o resultado da luta para emitirem, com
verdadeiro conhecimento de causa, uma opinião conscienciosa.
Se os espíritos graves se preocupam com esta questão interessante, com as
últimas notícias do Oriente, e com o resultado provável da nossa Guerra do Paraguai,
os outros pensam no carnaval, que o seu cortejo de folias e extravagâncias.
O carnaval...! Enquanto ele está longe, enquanto ele não vem transtornar o
juízo com os seus momos grotescos e suas voluptuosas bacantes, aproveitemos a
ocasião, e falemos sério a seu respeito.
Creio que são inteiramente infundados alguns receios que há de vermos
reviver ainda este ano o jogo grosseiro e indecente de entrudo, que por muito tempo
fez as delícias de certa gente. Além das boas disposições do público desta corte,
devemos contar que a polícia desenvolverá toda a vigilância e atividade.
Depois que o Sr. Desembargador Siqueira, entre tantos outros benefícios que
nos fez, conseguiu extinguir esse antigo costume português, a polícia carrega com
uma responsabilidade muito maior do que nos anos anteriores. Outrora era um uso
arraigado com o tempo, e por conseguinte difícil de extirpar; hoje seria um abuso,
que só a negligência poderia deixar que se renovasse.
Muitas coisas se preparam ente ano para os três dias de carnaval. Uma
sociedade criada o ano passado, e que conta já perto de oitenta sócios, todos pessoas
de boa companhia, deve fazer no domingo a sua grande promenade pelas ruas da
cidade.
A riqueza e luxo dos trajes, uma banda de música, as flores, o aspecto original
desses grupos alegres, hão de tornar interessante esse passeio dos máscaras, o
primeiro que se realizará nesta corte com toda a ordem e regularidade.
Quando se concluir a obra da Rua do Cano, poderemos então imitar, ainda
mesmo de longe, as belas tardes do Corso em Roma.
Entretanto a sociedade teve já este ano uma boa lembrança. Na tarde de
segunda-feira, em vez do passeio pelas ruas da cidade, os máscaras se reunirão no
Passeio Público, e ai passarão a tarde, como se passa uma tarde de carnaval na Itália,
distribuindo flores, confete, e intrigando os conhecidos e amigos.
Naturalmente, logo que a autoridade competente souber disto, ordenará que
a banda de música que costuma tocar ao domingo guarde-se para a segunda, e que
em vez de uma, sejam duas ou três.
Confesso que esta ideia me sorri. Uma espécie de baile mascarado, às últimas
horas do dia, à fresca da tarde, num belo e vasto terraço, com todo o desafogo, deve
ser encantador.
O que resta é que as nossas patrícias, todas mimosas e aristocráticas como
são, não se deixam levar de velhos prejuízos, e continuem a temer a simples vista de
uma máscara como de uma coisa perigosa.
Todos os membros da sociedade são pessoas delicadas e do mais fino trato;
e por conseguinte podem ter certeza que quaisquer palavras, qualquer galantaria,
não serão capazes de ofender nem sequer uma suscetibilidade.
Assim, pois, cessem estes escrúpulos. Quando vos oferecem com tanta
amabilidade uma bela ocasião de gozar de algumas horas de prazer, não está bem
da vossa parte uma recusa e um completo desdém. Ao contrário, mostrai que lhe
dais algum apreço, porque isto nos animará a fazer uma outra coisa que ainda está
em muito segredo, mas que eu vos conto em confidenza, com a condição de que ficará
entre nós unicamente.
Lembram-se alguns amigos, a conversar a respeito do carnaval, que era
possível dar-se um baile de máscaras no qual vós pudésseis tomar parte, e não ser
simples espectadores, como nos teatros.
Querem ver que já estais a fazer algum muxoxo de desdém, e a pensar que
todos os anos se fala nisto e que nunca se chega a efetuar. Paciência! Tanto se há de
falar que um dia a coisa se há de realizar. Mais vale tarde do que nunca.
Entretanto suponde que a diretoria do Cassino toma a peito esta idéia, e que
com os mesmos sócios do Cassino, e com algumas outras pessoas aprovadas por ela,
forma uma nova sociedade filial para dar todos os anos um baile mascarado,
começando por este carnaval.
Feito isto, ainda duvidareis do bom êxito da nossa lembrança? Estou certo
que não. Vós conheceis os diretores do Cassino, e vos lembrais dos bailes magníficos
que nos tem dado o seu amável presidente. Assim, pois, a dificuldade está em
convence-lo. Pedi-lhe; e não se me dá de apostar que é coisa feita.
Como já deveis estar aborrecida da prosa chã e rasteira deste artigo, dou-vos
uns lindos versinhos que li num álbum um destes dias. Se os quereis achar ainda
mais bonitos do que eles realmente são, suponde que vos foram dedicados.
Folhetim “Aquarelas”
O Espelho, 30 de outubro de 1859.
MACHADO DE ASSIS

Uma das plantas europeias que dificilmente se tem aclimatado entre nós é o
folhetinista. Se é defeito de suas propriedades orgânicas, ou da incompatibilidade
do clima, não o sei eu. Enuncio apenas a verdade. Entretanto, eu disse – dificilmente
– o que supõe algum caso de aclimatação séria. O que não estiver contido nesta
exceção, vê já o leitor que nasceu enfezado, e mesquinho de formas.
O folhetinista é originário da França, onde nasceu, e onde vive a seu gosto,
como em cama no inverno. De lá espalhou-se pelo mundo, ou pelo menos por onde
maiores proporções tomava o grande veículo do espirito moderno; falo do jornal.
Espalhado pelo mundo, o folhetinista tratou de acomodar a economia vital de sua
organização às conveniências das atmosferas locais. Se o tem conseguido por toda a
parte, não é meu fim estuda-lo; cinjo-me ao nosso círculo apenas. Mas comecemos
por definir a nova entidade literária.
O folhetim, disse eu em outra parte, e debaixo de outro pseudônimo, o
folhetim nasceu do jornal, o folhetinista por consequência do jornalista. Esta íntima
afinidade é que desenha as saliências fisionômicas na moderna criação. O
folhetinista é a fusão admirável do útil e do fútil, o parto curioso e singular do sério
consorciado com o frívolo. Estes dous elementos, arredados como polos,
heterogêneos como água e fogo, casam-se perfeitamente na organização do novo
animal.
Efeito estranho é este, assim produzido pela afinidade assinalada entre o
jornalista e o folhetinista. Daquele cai sobre este a luz séria e vigorosa, a reflexão
calma, a observação profunda. Pelo que toca ao devaneio, à leviandade, está tudo
encarnado no folhetinista mesmo; o capital próprio.
O folhetinista, na sociedade, ocupa o lugar do colibri na esfera vegetal; salta,
esvoaça, brinca, tremula, paira e espaneja-se sobre todos os caules suculentos, sobre
todas as seivas vigorosas. Todo o mundo lhe pertence; até mesmo a política. Assim
aquinhoado pode dizer-se que não há entidade mais feliz neste mundo, exceções
feitas. Tem a sociedade diante de sua pena, o público para lê-lo, os ociosos para
admirá-lo, e a bas-bleus para aplaudi-lo. Todos o amam, todos o admiram, por que
todos têm interesse de estar de bem com esse arauto amável que levanta nas lojas
do jornal, a sua aclamação de hebdomadaria.
Entretanto, apesar dessa atenção pública, apesar de todas as vantagens de
sua posição, nem todos os dias são tecidos de ouro para os folhetinistas. Há-os
negros, com fios de bronze; à testa deles está o dia... Adivinhem? O dia de escrever!
Não parece? Pois é verdade puríssima. Passam-se séculos nas horas que o
folhetinista gasta à mesa a construir a sua obra. Não é nada, é o cálculo e o dever que
vem pedir da abstração e da liberdade um folhetim! Ora, quando há matéria e o
espirito está disposto, a cousa passa-se bem. Mas quando, à falta de assunto se une
aquela morbidez moral, que se pode definir por um amor ao far niente, então é um
suplício...
Folhetim “A Semana”
Gazeta de Notícias, 22 de novembro de 1896
MACHADO DE ASSIS

A natureza tem segredos grandes e inopináveis. Não me refiro especialmente


ao de anteontem, no Cassino Fluminense, onde algumas senhoras e homens de
sociedade nos deram ópera, comédia e pantomima, com tal propriedade, graça e
talento, que encantaram o salão repleto. Não é a primeira vez que a comissão do
Coração de Jesus ajunta ali a flor da cidade. Aos esforços das senhoras que a
compõem correspondem os convidados, — e desta vez apesar do tempo, que era
execrável, — e aos convidados, em cujo número se contava agora o Sr. vice-
presidente da República, corresponderam os que se incumbiram de dizer, cantar ou
gesticular alguma cousa. Outros contarão por menor e por nomes o que fizeram os
improvisados artistas. A mim nem me cabe esta nota de passagem, em verdade
menos viva que a do meu espírito; mas, pois que saiu, aí fica.
Não: o inopinável e grande da natureza a que quero me referir, é outro. Um
dos maiores sabe-se que é o suicídio, que nos parece absurdo, quando a vida é a
necessidade comum; mas, considerando que é a mesma vida que leva o homem a
eliminá-la, — propter vitam — tudo afinal se explica na pessoa que pega em si, e dá
um talho, bebe uma droga ou se deita de alto a baixo na rua ou no mar. As crianças
pareciam isentas dessa vertigem; mas há ainda poucas semanas deram os jornais
notícia de uma criaturinha de doze anos que acabou com a existência, — uns dizem
que por pancadas recebidas, outros que por nada.
Tivemos agora um caso mais particular: um fazendeiro rio-grandense deu um
tiro na cabeça e desapareceu do número dos vivos. O telegrama nota que era homem
de idade, — o que exclui qualquer paixão amorosa, conquanto as cãs não sejam
inimigas das moças; podem ser invejosas, mas inveja não é inimizade. E há vários
modos de amar as moças, — o modo conjuntivo e o modo extático; ora, o segundo é
de todas as fases deste mundo. Além de idoso, o suicida era rico, isto é, aquele bem
que a sabedoria filosófica reputa o segundo da terra , ele o possuía em grau bastante
para não padecer nos últimos dias da vida, ou antes para vivê-los à farta, entre os
confortos do corpo e da boca. Não tinha moléstia alguma; nenhuma paixão política
o atormentava. Qual a causa então do suicídio?
A causa foi a convicção que esse homem tinha de ser pobre. O telegrama
chama-lhe mania, eu digo convicção. Qualquer, porém, que seja o nome, a verdade é
que o fazendeiro rio-grandense, largamente proprietário, acreditava ser pobre, e daí
o terror natural que traz a pobreza a uma pessoa que trabalhou por ser rica, viu
chegar o dinheiro, crescer, multiplicar-se, e por fim começou a vê-lo desaparecer aos
poucos, a mais e mais depressa, e totalmente. Note-se bem que não foi a ambição de
possuir mais dinheiro que o levou à morte, — razão de si misteriosa, mas menos que
a outra; foi a convicção de não ter nada.
Não abaneis a cabeça. A vossa incredulidade vem de que a fazenda do homem,
os seus cavalos, as suas bolivianas, as suas letras e apólices valiam realmente o que
querem que valham; mas não fostes vós que vos mataste, foi ele e nada disso era
vosso, mas do suicida. As causas têm o valor do aspecto, e o aspecto depende da
retina. Ora, a retina daquele homem achou que os bens tão invejados de outros eram
cousa nenhuma, e prevendo o pão alheio, a cama da rua, o travesseiro de pedra ou
de lado, preferiu ir buscar a outros climas melhor vida ou nenhuma, segundo a fé
que tivesse.
O avesso deste caso é bem conhecido naquele cidadão de Atenas que não
tinha nem possuía uma dracma, um pobre-diabo convencido de que todos os navios
que entravam no Pireu eram dele; não precisou mais para ser feliz. Ia ao porto,
mirava os navios e não podia conter o júbilo que traz uma riqueza tão
extraordinária. Todos os navios! Todos os navios eram seus! Não se lhe escureciam
os olhos e todavia mal podia suportar a vista de tantas propriedades. Nenhum navio
estranho; nenhum que se pudesse dizer de algum rico negociante ateniense. Esse
opulento de barcos e ilusões comia de empréstimo ou de favor; mas não tinha tempo
para distinguir entre o que lhe dava uma esmola e o seu criado. Daí veio que chegou
ao fim da vida e morreu naturalmente e orgulhosamente.
Os dous casos, por avessos que pareçam um ao outro, são o mesmo e único.
A ilusão matou um, a ilusão conservou o outro; no fundo, há só a convicção que
ordena os atos. Assim é que um pobretão, crendo ser rico, não padece miséria
alguma, e um opulento, crendo ser pobre, dá cabo da vida para fugir à mendicidade.
Tudo é reflexo da consciência.
Não mofeis de mim, se achais aí um ar de sermão ou filosofia. O meu fim não
é só contar os atos ou comentá-los; onde houver uma lição útil é meu gosto e dever
tirá-la e divulgá-la como um presente aos leitores: é o que faço aqui. A lição que eu
tirar pode ter a existência do cavalo do pampa ou a do navio do Pireu: toda a questão
é que valha por uma realidade, aos olhos do fazendeiro do sul e do cidadão de
Atenas.
A lição é que não peçais nunca dinheiro grosso aos deuses, senão com a
cláusula expressa de saber que é dinheiro grosso. Sem ela, os bens são menos que as
flores de um dia. Tudo vale pela consciência. Nós não temos outra prova do mundo
que nos cerca senão a que resulta do reflexo dele em nós: é a filosofia verdadeira.
Todo Rothschild and Sons, nossos credores, valeriam menos que os nossos criados,
se não possuíssem a certeza luminosa de que são muito ricos. Vanderbilt seria nada;
Jay Gould um triste cocheiro de tílburi sem possuir sequer o carro nem o cavalo, a
não ser a convicção dos seus bens.
Passai das riquezas materiais às intelectuais: é a mesma cousa. Se o mestre-
escola da tua rua imaginar que não sabe vernáculo nem latim, em vão lhe provarás
que ele escreve como Vieira ou Cícero, ele perderá as noites e os sonos em cima dos
livros, comerá as unhas em vez de pão, encanecerá ou encalvecerá, e morrerá sem
crer que mal distingue o verbo do advérbio. Ao contrário, se o teu copeiro acreditar
que escreveu os Lusíadas, lerá com orgulho (se souber ler) as estâncias do poeta;
repeti-las-á de cor, interrogará a teu rosto, os teus gestos, as tuas meias palavras,
ficará por horas diante dos mostradores mirando os exemplares do poema exposto.
Só meterá em processo os editores se não supuser que ele é o próprio Camões: tendo
essa persuasão, não fará mais que ler aquele nome tão bem visto de todos, abençoá-
lo em si mesmo; ouvi-lo aos outros, acordado e dormindo.
Que diferença achais entre o mestre-escola e seu copeiro? Consciência pura.
Os frívolos, os crentes de que a verdade é o que todos aceitam, dirão que é mania de
ambos, como o telegrama mandou dizer do fazendeiro do Sul como os antigos diriam
do cidadão de Atenas. A verdade, porém, é o que deveis saber, uma impressão
interior. O povo, que diz as cousas por modo simples e expressivo, inventou aquele
adágio: Quem o feio ama, bonito lhe parece. Logo, qual é a verdade estética? É a que
ele vê, não a que lhe demonstrais. A conclusão é que o que parece desmentir a
natureza da parte de um homem que se elimina por supor que empobreceu, não é
mais que a sua própria confirmação. Já não possuía nada o suicida. A contabilidade
interior usa regras às vezes diversas da exterior, diversas e contrárias. 20 com 20
podem somar 40, mas também podem somar 5 ou 3, e até 1, por mais absurdo que
este total pareça; a alma é que é tudo, amigo meu, e não é Bezout que faz a verdade
das verdades. Assim, e pela última vez, repito que vos não limiteis a pedir bens
simples, mas também a consciência deles. Se eles não puderem vir, venha ao menos
a consciência. Antes um navio no Pireu que cem cavalos no pampa.

ASSIS, Machado de. Obra Completa, vol. III. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994, p. 741-
744.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Edições do Senado Federal – Vol. 42

UM PASSEIO PELA CIDADE


DO RIO DE JANEIRO
Edição revista e anotada por
Gastão Penalva e prefaciada por
Astrojildo Pereira

Joaquim Manuel de Macedo

Brasília – 2005
Sumário

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

O Passeio Público

F I

AZEI de conta que vos achais agora comigo no aprazível terraço


do Passeio Público do Rio de Janeiro.16
O dia foi calmoso. Em compensação, porém, a tarde é bela e
fresca. O sol derrama sobre a terra seus últimos raios. Anuncia-se a hora
do crepúsculo. A viração festeja docemente as verdes folhas das árvores
que sussurram com um leve ruído.
Imaginai tudo isto. Embalar-vos-eis com uma ficção que já
tem sido e será mil vezes uma verdade.
Sentemo-nos nestes bancos de mármore e de azulejos. Volte-
mos as costas para o mar. O espetáculo dessa natureza opulenta, grandio-
sa, sublime, absorve-nos-ia em uma contemplação insaciável. Cerremos
por algum tempo os olhos à majestade das obras de Deus. A hora do
crepúsculo é suave, melancólica e propícia aos sonhos do futuro e às re-
cordações do passado.
Deixemos o futuro a Deus no Céu e aos poetas na Terra.

16 V. O Brasil Pitoresco, de Charles Ribeyroles, edição da Livraria Martins, de S. Paulo,


1941.
82 Joaquim Manuel de Macedo

Lembremos antes o passado, e, ligados pelo mesmo pensa-


mento, vamos buscar no último quartel do século décimo oitavo o prin-
cípio da história deste jardim público.
Suponhamos ainda e finalmente que por unanimidade de vo-
tos me escolhestes para vosso orador: foi uma eleição inteiramente livre,
sem cabala, sem fósforos, sem intervenção da polícia, sem duplicatas, sem
anulações de votos fatais, um verdadeiro milagre constitucional. Tenho
consciência da pureza do meu mandato.
Falo em nome de todos vós.
O célebre Luís de Vasconcelos e Sousa, que no dia 5 de abril
de 1779 substituíra o marquês de Lavradio no governo do Brasil, via
com a mais profunda mágoa começar o seu vice-reinado debaixo de
maus auspícios.
Moço ainda e, portanto, sem aquele prestígio de uma longa
experiência que se assinala nas rugas da fronte e nos cabelos grisalhos,
que aliás nem sempre são companheiros da sabedoria e da prudência,
viera suceder a um administrador provecto, hábil e feliz, que deixava o
seu nome recomendado à memória do povo pelos serviços que prestara
à agricultura, pela proteção que dera às letras nascentes no Rio de Janei-
ro, e pelos cuidados com que se empenhara em prover às despesas, à
polícia e ao desenvolvimento e asseio da cidade capital da grande colô-
nia portuguesa da América.
A lembrança do marquês de Lavradio fazia já não pouco difí-
cil a posição do novo vice-rei, e ainda como para torná-la mais embara-
çada, sobrevieram logo dois lamentáveis sucessos, uma calamidade e um
flagelo inesperados, que encheram de desgosto a população.
Alguns meses apenas tinham passado depois da chegada de
Luís de Vasconcelos ao Rio de Janeiro, quando, em conseqüência de
chuvas aturadas e violentas, romperam-se os aquedutos das fontes pú-
blicas, deixando os habitantes da cidade em luta com a carestia d’água,
que somente de longe se podia trazer.
Então o pretinho que passava pela rua gritando – Ii! – fazia
pagar por um preço relativamente fabuloso o pote d’água que levava à
cabeça, e isso era um tormento para os pobres e um motivo de lamenta-
ções para os ricos. Se não compreendeis bem a significação desse grito
Um passeio pela cidade do Rio de Janeiro 83

dos vendedores d’água, que ainda se ouvia no Rio de Janeiro em uma


época muito recente, eu vo-lo explico. Logo depois da fundação da cida-
de de S. Sebastião, eram os índios ou gentios que vendiam água aos co-
lonos e a anunciavam na sua língua, bradando: – Ig! Ig! – palavra que foi
corrompida mais tarde pelos africanos escravos.
Mas, ainda pior do que a ruína dos aquedutos, aconteceu ime-
diatamente que se desenvolvesse uma terrível epidemia que espalhou o
terror e o luto no seio da bela Sebastianópolis. Era uma febre de caráter
maligno, acompanhada de afecções cerebrais e da medula, e que, quan-
do não terminava com a morte dos doentes, deixava a estes um legado
cruel de paralisias e de deformidade.
Chamou-se então a essa epidemia – zamperini ou zamparina,
como dizia o povo, que foi quem assim a denominou.17
Permiti que eu interrompa por alguns momentos a minha
narração, para dizer duas palavras a respeito de certas denominações po-
pulares dadas a algumas epidemias.
Como as moléstias epidêmicas atacam a muitos indivíduos ao
mesmo tempo, o povo, que não entende a tecnologia médica e vê na-
quele fato alguma coisa que se parece com a moda, dá ao mal reinante o
nome que está mais em moda.
Assim, em 1779, chamou à epidemia que ceifava a população,
zemperini, porque então se penteavam os cabelos e se usavam diversos
objetos e vestidos à Zamperini, que foi aquela célebre cantora veneziana
que chegou a Lisboa em 1770, levada pelo notário apostólico da nuncia-
tura, e a quem no teatro da rua dos Condes iam todos aplaudir, notavel-
mente o padre Macedo, que lhe dirigiu sonetos e odes como qualquer
outro pecador inspirado o faria.
Assim, também chamou-se em 1847, polka, e em 1851, shot-
tisch, nomes de duas danças muito em voga nesse tempo, a duas epide-
mias que apareceram.
No princípio do nosso século, se não estou em erro, desen-
volveu-se na cidade do Rio de Janeiro uma catarral tão violenta que os

17 Essa moléstia figura indevidamente no quadro clínico daquelas que vitimaram o


artista mineiro Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho. V. Gastão Penalva, O
Aleijadinho da Vila Rica.
84 Joaquim Manuel de Macedo

afetados à força de tossir acabavam por corcovar-se; a essa moléstia, po-


rém, não deu o povo um nome da moda, e chamou-a muito apropriada-
mente carcunda.
Talvez me acusem de prolixo e divagador por entrar em expli-
cações que não têm relação alguma com a história do Passeio Público. É
uma injustiça: convém guardar as lembranças que vou registrando, e que
podem para o futuro prevenir confusões possíveis. Por exemplo, não se
poderia dar o caso de se confundirem as carcundas catarrais com os car-
cundas políticos, denominações que foram ambas empregadas neste sé-
culo? Pelo menos, os absolutistas devem me agradecer o empenho com
que esclareci um fato que livra a qualquer deles de ser confundido com
uma catarral, e que era muito possível que acontecesse.
Fique, pois, bem determinado e sabido: a nossa população
nunca até hoje se lembrou de fazer uma alusão política, quando trata de
alcunhar alguma epidemia e, entretanto, se o fizesse, não era novidade
no mundo, porque em França já o povo deu o nome de um ministro an-
tipático a uma moléstia epidêmica que reinou em Paris. Não digo que
andasse bem procedendo assim, não; mas é impossível deixar de reco-
nhecer que às vezes aparecem ministros e ministérios que são tão funes-
tos ao país como a peste mais flageladora e mortífera.
Prossigo sem mais demora a narração que interrompi.
A cidade do Rio de Janeiro estava, pois, em uma situação du-
plamente dolorosa. Mas, se alguém então desanimou não foi por certo
Luís de Vasconcelos, que deu prontas e enérgicas providências para o
abastecimento d’água, assim como tomou medidas higiênicas para com-
bater a zamperini, mandou socorrer os enfermos pobres, e ainda teve
tempo e força para ordenar o começo dessa série de obras importantes
que perpetuaram o seu nome.
Luís de Vasconcelos reunia a grandes qualidades de admi-
nistrador maneiras tão afáveis, tanta cortesia e bondade, que soube
depressa conquistar as simpatias do povo. Em breve estas simpatias
se transformaram na mais bem fundada estima e consideração; por-
que o ativo e infatigável vice-rei empreendeu grandes trabalhos em
proveito da cidade, e para levá-los ao cabo soube cercar-se de todos
os homens esclarecidos e capazes de coadjuvá-lo que encontrou no
Rio de Janeiro.
Um passeio pela cidade do Rio de Janeiro 85

Um dos seus prediletos era o mestre Valentim.


Observar-me-eis que eu não disse ainda quem era o mestre
Valentim. Tendes razão.
Valentim da Fonseca e Silva era filho de um fidalgo português
e de uma rapariga do Brasil, e teve o seu berço ou no Rio de Janeiro ou
mais provavelmente na província de Minas Gerais, onde seu pai era con-
tratador de diamantes. Foi levado por ele para Portugal, donde voltou
órfão e ainda jovem, repelido pelos parentes, e trazendo por herança
única o vício minhoto que sempre conservou na fala. Aprendeu no Rio
de Janeiro a arte torêutica, e foi um arquiteto e um entalhador de pri-
meira ordem. As igrejas do Carmo e da Cruz, a capela-mor da de S.
Francisco de Paula e o chafariz do largo do Paço documentam o seu
merecimento ainda hoje.
Devemos agradecer aos parentes do pai de Valentim o ímpeto
de vaidade com que empurraram para o Brasil aquele pobre menino,
que entre nós se fez um grande homem e que honrou a pátria com seu
imenso talento.
O mestre Valentim queixava-se de que Luís de Vasconcelos,
que se dizia tão seu amigo e que tantos tributos pedia à sua capacidade
artística, desse-lhe sempre mais elogios do que dinheiro; parece, porém,
que não havia muito fundamento nas queixas do artista, a quem jamais
sobrava o ouro, porque, amando muito o belo sexo e tendo especial pre-
dileção por estrangeiras, pagava uma fingida e interesseira gratidão por
preço tanto mais elevado quanto era maior a impressão que causava o
seu rosto feio e exterior pouco simpático.
Mas Luís de Vasconcelos tinha em grande estima o mestre
Valentim; aprazia-se com as suas originalidades e com a sua franqueza
de artista e confiava muito na sua probidade e inteligência, fazendo-se
até às vezes acompanhar por ele, quando saía a examinar o andamento
das obras que estava mandando executar.
Corria ainda o ano de 1779, e em um dia, ao cair da tarde, o
vice-rei, que da janela do palácio vira o mestre Valentim dirigindo os úl-
timos trabalhos do chafariz que do meio da praça fora removido nesse
ano para junto do mar, ordenou que o fossem chamar, e, apenas o viu
aparecer, convidou-o a segui-lo em um passeio pela cidade.
Planta do primitivo Passeio Público
Um passeio pela cidade do Rio de Janeiro 87

Montaram ambos a cavalo, e Luís de Vasconcelos, tomando a


dianteira, depois de demorar-se um pouco observando a obra do cais
que se principiara a construir em frente do palácio, partiu para o morro
de Santa Teresa, onde se renovavam os aquedutos. Encaminhou-se pelas
ruas de S. José e da Ajuda,18 ladeou o convento das freiras, preferindo à
rua dos Barbonos19 o seguir pelo largo da Ajuda,20 e pela margem de
uma feia lagoa que dali se estendia até ao fim da atual rua do Passeio.
O mestre Valentim sorrira-se maliciosamente vendo o vice-rei
tomar aquela direção. É verdade que o boqueirão da Ajuda, cujo seio se
compreendia no espaço que vai desde a ponta do Calabouço20 até ao
monte de Nossa Senhora da Glória, oferecia uma vista magnífica; mas a
lagoa que ali se encontrava era repugnante: formada pelas águas da chu-
va que ficavam estagnadas, mostrava-se de feio aspecto, às vezes exalava
um cheiro desagradável e, na opinião de muitos, passava por ser um
foco de peste. Chamavam-na lagoa do Boqueirão.
Por que fizera caminho por aquele sítio o vice-rei? Por que se
sorrira maliciosamente mestre Valentim? Eles lá o sabiam.
O lugar era desestimado; a povoação da cidade interrompia-se
naquele ponto, onde apenas se viam três ou quatro humildes casinhas, e
entre essas uma quase à beira da lagoa, e que, diante da porta e a dez
passos, tinha uma bela palmeira e junto desta uma cerrada moita de ar-
bustos. Mas nem a palmeira, nem a moita de arbustos teriam feito notar
a pobre casinha, se à sua janela não aparecesse muitas vezes o mais lindo
rosto de moça morena que porventura havia na cidade.
Quando o vice-rei passou, a moça correu à rótula para vê-lo,
e o mestre Valentim sorriu-lhe pela segunda vez.
Chegaram enfim os cavaleiros e subiram o morro de Santa
Teresa. Examinaram as obras e conversaram tão longamente a respeito
dos aquedutos que começava a escurecer, quando desceram. Mas Luís
de Vasconcelos, não querendo ainda voltar a palácio, rodeou o outeiro
das Mangueiras, que então existia, ocupando o lugar da rua que teve de-

18 Chile.
19 Evaristo da Veiga.
20 Onde estão hoje a Polícia Marítima e o Museu Histórico. No local deste existiu o
antigo Arsenal de Guerra.
88 Joaquim Manuel de Macedo

pois o mesmo nome, e partiu a galope em direitura ao Botafogo, pro-


longando tanto o seu passeio que eram nove horas da noite, quando de
volta passava diante da romanesca ermida de Nossa Senhora da Glória.
A lua estava brilhante, a viração soprava docemente, a cidade
parecia ir tranqüilamente adormecendo.
– Mestre – disse o vice-rei – acabaremos a pé o nosso passeio.
Valentim sorriu-lhe pela terceira vez e apeou-se.
Os criados tomaram conta dos cavalos e partiram adiante.
O vice-rei e o artista ficaram sós e foram seguindo. Ao chega-
rem de novo junto do monte das Mangueiras, que era um espigão do
morro de Santa Teresa, Luís de Vasconcelos parou e disse:
– Temos montes demais na cidade, mestre. Eis aqui um outei-
ro que podia bem desaparecer, sendo substituído por uma rua que facili-
taria a comunicação do bairro que deixamos com a rua dos Barbonos e
com aquela a que o marquês, meu feliz antecessor, legou o seu nome.
– Sr. vice-rei – observou o artista – a cidade tem montes de-
mais, como V. Exa diz; creio, porém, que ela ainda precisa mais de ater-
ros do que de arrasamentos.
– E por que não faremos aterros à custa do outeiro que arra-
sarmos?
O artista não respondeu, porque sorria pela quarta vez ao ver
que Luís de Vasconcelos tomava pelo mesmo caminho por onde viera.
– Má direção vamos seguindo, Sr. vice-rei – disse ele; terá V.
a
Ex de passar pela margem da lagoa do Boqueirão, que a esta hora, di-
zem, derrama em torno miasmas pestíferos, e a zamperini ainda não ces-
sou de todo. Talvez fosse melhor ir buscar a rua do Lavradio.
– Onde mora o espanhol D. Pascoal, que toca guitarra exce-
lentemente, acompanhando as suaves cantigas de sua filha Pepita, cujos
brilhantes olhos pretos e formosa cabeça fazem o encanto de certo ar-
tista meu amigo. Não é assim, mestre?
– É por certo assim, visto que V. Exa o diz. Mas quer me pa-
recer que a menina Susana, que mora na casinha da lagoa do Boqueirão,
é ainda mais bonita e tem voz mais suave do que a Pepita.
O vice-rei voltou-se para trás, encarou Valentim e perguntou:
Um passeio pela cidade do Rio de Janeiro 89

– Então...
– Então é que eu juro por minha alma que os vice-reis tam-
bém têm coração, e que V. Exa gosta muito da menina Susana.
Luís de Vasconcelos bateu no ombro de Valentim e dis-
se-lhe:
– Os vice-reis também têm coração. Mas às vezes não se per-
doa a eles o que se desculpa em um artista. Vamos. Acabemos a noite
como a começamos: seja uma noite de imprudência, e ao mesmo tempo
de segredo.
Estavam perto da lagoa, quando pararam, ouvindo a voz doce
e melancólica de Susana, que cantava uma balada, da qual repetirei uma
estrofe, porque tem a cor e a simplicidade daquela época.
Em S. Bento deu um’hora,
No Colégio deram duas;
Vede que horas são estas
Que eu por ti ando nas ruas!
– Ah! meu bem! não venhas cá,
Não venhas, prenda querida,
Vede que eu sou impedida,
Tenho impedimento forte.

– Quem ama não teme a morte,


Quem teme, não sabe amar;
A cada passo que dá
Pisa logo no perigo.
Vive sempre a suspirar
Anda sem sossego ter:
Assim mesmo, desta sorte,
A noite te venho ver!

Não modifiquei em uma única palavra a poesia deste canto;


reproduzo-a com todo o seu merecimento especial e com todos os seus
defeitos, até mesmo de gramática; sinto não poder também dar uma
idéia da música, que, aliás, ouvi por vezes em minha infância, e que en-
tão me pareceu cheia de doçura e de melancolia.
90 Joaquim Manuel de Macedo

E o pior é que o gosto e a originalidade desses cantos, cuja


música tinha um caráter que a fazia distinguir da música característica de
todas as outras nações, têm-se ido perdendo pouco a pouco, sacrificada
ao canto italiano, cuja imitação é, desde alguns anos, o pensamento do-
minante dos nossos compositores. As modinhas e os lundus brasileiros
quase que já não existem senão na memória dos antigos; foram banidos
dos salões elegantes e com todos os costumes primitivos, à semelhança
das aves que, espantadas dos bosques vizinhos do litoral pelo ruído da
conquista dos homens, fogem para as sombrias florestas do interior. Lá
se acham proscritas, e felizmente ainda conservadas com a sua patriótica
pureza no seio dos vales e no trono das montanhas, onde a população
agrícola as asila em seus lares, vive com eles, alimentando a flama das re-
cordações passadas que o estrangeirismo apagou nas cidades.
Para a música característica brasileira isso é uma verdadeira
calamidade, e a Ópera Nacional, recentemente criada, se quiser ser nacio-
nal, deve opor-se à continuação de tão grave erro, excitando os nossos
novos e talentosos compositores a escreverem naquele gosto que, bem
aproveitado pela arte, pode produzir obras originais e de incontestável
merecimento.
Mas... é conveniente não deixar o vice-rei tanto tempo esque-
cido na rua.
Luís de Vasconcelos, que tinha parado por alguns instantes a
ouvir as primeiras notas do canto de Susana, disse logo depois a Va-
lentim:
– Mestre, é verdade: amo aquela mulher. Agora, porém, não
há aqui nem vice-rei nem artista; devemos supor que há somente dois
curiosos um pouco apaixonados, um pouco imprudentes, mas em todo
o caso honestos. Vamos ouvir de mais perto o canto de Susana; há ali
uma moita de arbustos que nos será propícia. Veremos e ouviremos sem
ser vistos.
– Já falou alguma vez àquela menina, Sr. vice-rei?
– Nunca.
Mestre Valentim seguiu Luís de Vasconcelos, que, cauteloso,
penetrou na moita de arbustos e foi colocar-se tão perto da palmeira
que se achou quase ao lado de Susana.
Um passeio pela cidade do Rio de Janeiro 91

Porque Susana estava lá, sentada na relva junto ao tronco do


coqueiro e inundada pelo clarão da lua que fazia realçar a sua formosura.
Era uma moça que não tinha ainda vinte anos. Cabelos negros, ondeados
e tão longos que lhe cairiam aos pés. Olhos grandes, pretos e cheios de
fogo celeste. Tez morena e fina, lindíssimo e voluptuoso colo. Braços
magníficos. Mimosa e delicada na cintura. Pequenas mãos, e quase tão
pequenas como os pés.
Era verdadeiramente encantadora e perigosa.
Acabara de cantar, e descansava a guitarra a um lado, vendo
chegar um mancebo que para ela corria.
– Susana!
– Vicente!
– Quem chegou aí? – perguntou uma velha que estava senta-
da à porta da humilde casinha.
– É o primo Vicente, minha avó.
– Vejam lá! – disse a avó.
O mancebo correu a beijar a mão da velha, e voltou logo a
sentar-se aos pés da moça.
– Estava cuidadosa – disse a moça. Hoje te demoraste muito.
– Tardei muito, Susana. Mas a culpa teve o bom padre-mestre
frei Veloso, que levou mais tempo do que costuma a dar-me a sua lição
de botânica. Que excelente homem é aquele sábio franciscano! Professa
a pobreza de sua ordem; mas a ninguém conheço mais rico de sabedoria
e de virtudes. Como sabe animar os moços! Chegou hoje a dizer-me que
espera ver-me em breve sentado entre os membros da Academia Cientí-
fica do Rio de Janeiro, que foi, há sete anos, fundada sob os auspícios
do vice-rei marquês de Lavradio.
– Também, não sei para que servem tantas instruções em gente
pobre! – disse a velha da porta onde estava sentada. Eu nunca soube ler
nem escrever e, contudo, tive sempre muito juízo, e tu, Susana, tu, a quem
teu tio, o meu infeliz filho, o defunto padre João Peres, ensinou tanta coi-
sa, nem por isso deixas de ter a cabeça cheia de lantejoulas.
– Ah! minha avó – respondeu a moça sorrindo – é porque o
tio padre nunca pôde conseguir fazer-me aprender o seu latim, como
desejava: foi só o que me faltou para ficar ajuizada.
92 Joaquim Manuel de Macedo

– E o teu emprego, Vicente? – perguntou a velha.


– Minha avó, canso de esperar e nada consigo. Procurei obter
um que vagara na alfândega e o deram ao filho de um desembargador. Ou-
tros dois que requeri, um no hospital militar e o segundo nas obras que se
estão executando na cidade, foram dados a quem deles menos precisava.
– Isso é mau, Vicente. É mau, porque eu tenho já noventa
anos e não posso ir muito adiante; e, morta eu, quem protegerá Susana,
moça e solteira, como está? Vicente, é preciso cuidar em ter um empre-
go e em casar com tua prima.
Vicente beijou a mão de Susana que entre as suas apertava, e
Valentim sentiu que o vice-rei estremecera e sufocara um gemido.
– Minha avó – disse Vicente – eu irei amanhã pedir a frei Ve-
loso para tomar-me debaixo da sua proteção.
– Em teu lugar, primo – acudiu Susana – em vez de ir ter com
frei Veloso, eu me dirigiria pessoalmente ao vice-rei.
– Ao vice-rei! – balbuciou o mancebo.
– Sim. Então, que mal havia nisso?
Vicente começava a turvar-se. Susana ou não deu por isso, ou
quis provocar o namorado.
– O vice-rei Luís de Vasconcelos é bom e compassivo.
– Achas?
– Todos o dizem.
– E tu, Susana?
– Também me parece.
– Por quê?...
– Porque no seu rosto lê-se a generosidadeea grandeza d’alma.
Mestre Valentim sorria. O vice-rei escutava comovido. Vicen-
te, agitado, começava a esquecer a presença de sua avó.
– Tens continuado a ver o vice-rei, Susana?
– Ainda hoje.
– E ele a ti?
– Como eu a ele.
– E o vice-rei olhou para ti?
Um passeio pela cidade do Rio de Janeiro 93

– Por que não?


– Susana! Susana! É horrível! Mas devo dizê-lo... eu vou per-
der-te. O vice-rei ama-te!
Luís de Vasconcelos fez um movimento de cólera e despeito,
ao mesmo tempo que a velha e a moça exclamaram:
– Vicente!
– Juro que disse a verdade – continuou o mancebo, tremendo.
Não é de hoje que o sei, e hoje, como em outros muitos dias, impelido
pelo meu ciúme, acompanhei de longe o vice-rei e vi a atenção e o enlevo
com que ele te devorava com os olhos: Susana! Susana! Não há luta possí-
vel entre Luís de Vasconcelos e Vicente Peres. O vice-rei te ama. Tudo
está perdido para nós ambos, porque eu terei de ser esmagado, e tu...
Susana cortou-lhe a frase, cerrando-lhe os lábios com a sua
mão delicada e leve.
– Não sejas mau, Vicente. Tu calunias o vice-rei, supondo-o
um sedutor, e me injurias também, julgando-me capaz de sacrificar-te a
ele. É verdade: o Sr. Luís de Vasconcelos passa muitas vezes por este sí-
tio, olha-me com atenção e acha-me talvez bonita; mas, graças a Deus,
não pensa, nem pensará em fazer-me infeliz.
– Tu o defendes?
– Certamente. Não sei por que, mas eu o estimo. Seu rosto
me inspira confiança. Há nele uma expressão de honestidade e nobreza
que não engana.
– Oh! isto é demais!
– Tu te exasperas, primo! Quanto mais quando souberes que
eu sonhei esta noite com o vice-rei...
– Susana!
– Sonhei. Por que hei de mentir ou esconder um sonho ino-
cente? Foi um sonho deleitoso, um sonho de moça. Sonhei que um gênio
benigno me aparecia risonho e afetuoso. Era um gênio, mas tinha o rosto
do vice-rei. Não tinha voz, falava-me porém com os olhos. Era apenas
uma sombra, mas não me assustava, nem eu lhe fugia. A um movimento
de sua mão branca e transparente tu apareceste, e ele nos ligou com um
laço de flores. Minha avó, que ali estava, chorando, abençoava ao gênio e
a nós. Não sentíamos mais nem pobreza nem receios do futuro. O gênio
94 Joaquim Manuel de Macedo

levou-nos para fora, e tirando dos ombros uma túnica cor de angélica que
trazia, estendeu-a sobre a lagoa do Boqueirão, que, de súbito, se transfor-
mou em um lindíssimo jardim. Depois, o gênio... a sombra foi-se esvain-
do... esvaindo, até desaparecer de todo; e felizes, contentes, nós corremos
como duas crianças travessas pelo jardim. Depois, ah! Vicente! Depois, eu
desatei a chorar, porque nesse imenso jardim procurei debalde e não en-
contrei este coqueiro, a cuja sombra, um dia, pela primeira vez, de joelhos
aos pés de minha avó, tu lhe disseste o que eu já sabia... que me amavas.
O sonho parou aí, porque... eu acordei, chorando.
O que sentiu Luís de Vasconcelos, ouvindo a narração daque-
le sonho, ninguém pôde saber. Apenas mestre Valentim supôs que o
vice-rei por mais de uma vez enxugara as lágrimas.
– Estás ouvindo, Vicente? – disse a velha comovida e soluçando.
– Estou – respondeu o mancebo. E juro que acredito tanto na
inocência e na pureza de Susana como na salvação da minha alma. Mas
um sonho é uma ilusão que nada pode na vida, e a realidade que receio
me espanta e me atormenta.
– Confia em mim, meu primo.
– E se amanhã, ou em breves dias, o vice-rei, abusando do
seu poder e da sua influência, ousasse perturbar a paz, a serenidade do
teu coração e tentasse...
A moça não o deixou acabar. Ergueu-se e falou. E à medida que
falava, a velha, que também se erguera, veio se chegando para o coqueiro.
Susana respondia a Vicente:
– Eu diria ao vice-rei sem hesitar nem tremer: senhor, sou
pura e feliz; tenho um noivo a quem amo, um noivo que minha avó
abençoa, tenho um amor que um padre que era meu tio e tio do meu
amado abençoou no momento de morrer. É um amor sagrado diante de
Deus, como a minha pureza é uma flor do céu. Esta pureza e este amor
não hão de ceder ao capricho de um vice-rei. Contava com a vossa ge-
nerosidade, faltou-me ela; agora conto com a minha virtude, conto com
Deus, contarei, enfim, com a morte.
– E eu lhe diria – exclamou a velha, cujos cabelos soltos alve-
javam ao clarão da lua: Sr. vice-rei, tive uma filha bela como Susana; há
vinte anos um fidalgo rico e poderoso apaixonou-se por ela, e não po-
Um passeio pela cidade do Rio de Janeiro 95

dendo desposar a filha de uma pobre mulher sem nome, seduziu-a: ao


capricho do sedutor seguiu o seu desprezo pela vítima, e a miséria e o
opróbrio desta..., desse crime proveio uma filha, é Suzana, que custou a
vida a sua mãe. Eis uma velha história que se parece com a que quereis
principiar. Não entreis, pois, em minha casa, porque nela já há de sobra
vergonha, desonra, desgraça e morte. Não entreis, porque tereis de tre-
mer diante da maldição de uma velha que tem chorado vinte anos!
– Minha avó, sossegue! – exclamou Vicente.
– Mau! – disse Susana. Tu fizeste hoje chorar nossa boa avó, e
foste injusto com o vice-rei, que é nobre e generoso.
– Perdoai-me ambas! – balbuciou o mancebo.
– Sim... sim – disse a velha. Mas por hoje basta. Amanhã, Vi-
cente, falarás a frei Veloso, e, empregado ou não, casar-te-ás com Susana
antes do fim do ano.
Vicente beijou a mão de sua avó com ardor e comoção. Susana
correu adiante e entrou para casa sem despedir-se do noivo, que, momen-
tos depois, partiu apressado em direitura à rua da Ajuda, onde morava.
Luís de Vasconcelos e mestre Valentim saíram da moita de ar-
bustos e caminharam em silêncio. O artista não ousava dirigir uma única
palavra ao vice-rei.
Ao chegarem à entrada do palácio, Luís de Vasconcelos vol-
tou-se e disse:
– Amanhã ao meio-dia temos que conversar, mestre Valentim.
O resto da noite foi de meditação e talvez de luta para o
vice-rei, que não dormiu e levantou-se cedo no dia seguinte. Os olhos
um pouco injetados e grandes olheiras roxas anunciavam em Luís de
Vasconcelos longas horas de vigília e de sofrimento; seu rosto, porém,
mostrava-se animado e sereno.
Às 10 horas da manhã sentou-se o vice-rei na sua cadeira da
sala das audiências, onde recebeu logo depois um engenheiro e diversos
empregados.
Às onze horas entrou na sala Vicente Peres, que o vice-rei
mandara chamar! O mancebo vinha pálido e trêmulo.
– Sr. Vicente Peres – disse o vice-rei. – Frei José Mariano da
Conceição Veloso precisa de uma pessoa inteligente e instruída que co-
96 Joaquim Manuel de Macedo

adjuve o seu secretário frei Solano para facilitar-lhe os trabalhos da Flora


Fluminense,21 de que se está ocupando. O senhor é entendido em botâni-
ca e discípulo do ilustre franciscano. Vá dizer-lhe que eu o nomeei seu
subsecretário e que lhe mandarei pagar o seu ordenado.
Vicente Peres ficou surpreendido. O vice-rei continuou:
– E porque este serviço dentro de alguns anos achar-se-á ter-
minado, e não é justo que o senhor fique desempregado, pode dentro de
três dias vir receber a sua nomeação para o emprego que lhe destino na
Alfândega do Rio de Janeiro.
– Senhor! – exclamou o mancebo, curvando-se.
– Nada de agradecimentos – tornou Luís de Vasconcelos. –
Eu sei que o senhor é um moço morigerado e que com ardor se dá ao
estudo. Estimo-o por isso. Se quiser, porém, dar-me um sinal de grati-
dão, escolha-me para uma das testemunhas do seu casamento, que em
breve deve ter lugar.
Vicente Peres saiu confundido e ao mesmo tempo louco de
prazer.
Ao meio-dia chegou mestre Valentim.
– Mestre – disse-lhe o vice-rei, sorrindo. Já temos onde apro-
veitar a terra do desmoronamento do monte das Mangueiras. É na lagoa
do Boqueirão, que vamos transformar em um jardim público. Dei a um
engenheiro as ordens para tratar imediatamente de fazer esgotar essa la-
goa. O jardim fica por sua conta, mestre. Note, porém, que eu me em-
penho em que nos ornamentos do nosso jardim seja reproduzido um
certo coqueiro que indispensavelmente teremos de derribar.
– É um sonho que se realiza, sr. vice-rei.
– Silêncio, mestre Valentim! Não há sonho, nem gênio, nem
loucura da noite passada. Haverá somente um Passeio Público, que a cida-
de do Rio de Janeiro vai ganhar.
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
Esta historieta, tradição ou coisa que o valha, que aliás daria
origem um pouco romanesca ao nosso Passeio Público, só poderia ter trans-

21 Flora Fluminensis ou Flora do Rio de Janeiro. Obra editada pela Tipografia Nacional
em 1825, com onze volumes atlas.
Um passeio pela cidade do Rio de Janeiro 97

pirado por uma indiscrição de mestre Valentim, ou porque Susana hou-


vesse adivinhado o segredo do gênio do seu sonho de moça. Em qual-
quer dos casos, acaba, porém, de um modo que não desmente, antes faz
honra ao caráter generoso de Luís de Vasconcelos. Se ainda assim não
quiserem aceitar a tradição por lhe faltar seguro fundamento, roguem-me
pragas ou critiquem-me à vontade, que nem por isso deixarei de passear.

II

No meu último passeio abundei muito em louvores ao vice-rei


Luís de Vasconcelos e Sousa, e não me dói a consciência por ter assim
procedido. Tenho, para abonar o meu juízo, não somente o testemunho
valioso de antigos escritores, como o das grandes obras que ele fez
construir na cidade do Rio de Janeiro, e que duram ainda, perpetuando a
memória daquele ativo administrador.
A Câmara Municipal da capital do Brasil pensou também como
eu penso, e a prova disso aprecia-se perfeitamente na sala das suas sessões,
onde se acha o retrato de Luís de Vasconcelos, fazendo companhia aos de
Estácio de Sá e do conde de Bobadela, únicos dos administradores que go-
vernaram o Rio de Janeiro no tempo colonial e mereceram essa honra.
Entretanto, preciso é dizê-lo, aquele vice-rei não fazia sentir
menos ao povo que o poder de que se achava armado era absoluto e vio-
lento. Ressentia-se talvez o seu caráter do sistema de governo que então
pesava duramente sobre a população, e às vezes esquecia Luís de
Vasconcelos a sua bondade natural, as suas disposições generosas, es-
quecia-se do seu próprio coração, enfim, para mostrar que empunhava
a bengala de vice-rei, e em momentos de capricho ou de mau humor,
punha o arbítrio e a violência no lugar da justiça.
Ora, se Luís de Vasconcelos, o vice-rei querido, louvado e
abençoado, fazia dessas, podemos bem imaginar o que fariam os outros!
E chorem lá por aquele santo sistema do mando e quero.
Aqui vai um exemplo do que podia o capricho e a violência
de um vice-rei.
Um dos montes da cidade do Rio de Janeiro tem uma ladeira
que ainda hoje conserva o nome de um homem que viveu no tempo de
Luís de Vasconcelos. Por que não apontarei claramente o lugar, uma vez
98 Joaquim Manuel de Macedo

que o fato não importou uma desonra para a vítima? O monte é o da


Conceição; a ladeiraéa de João Homem.
Um dia, nas horas de mais ardente calma descia o vice-rei do
monte da Conceição por aquela ladeira, quando encontrou a João Homem,
que era levado em uma cadeirinha para o alto do monte. Os dois escravos
condutores da cadeirinha suavam em bicas, porque João Homem era gordo
e pesado, e o calor era intenso.
Luís de Vasconcelos, que vinha de mau humor, irritou-se,
vendo os escravos arquejando de fadiga: mandou-os parar, fez sair da ca-
deirinha a João Homem, ordenou-lhe que tomasse o lugar de um dos ne-
gros, obrigou a este a ir sentar-se dentro da cadeirinha, e lá foi o senhor,
ajudando a carregar o escravo pela ladeira acima.22
– É para ensiná-lo a ser mais humano – disse o vice-rei. E de-
pois prosseguiu em seu caminho muito contente de si.
Talvez que hoje alguns possam rir-se do tormento por que
passou João Homem; afirmo, porém, que naquele tempo, nem o povo
riu-se e nem João Homem queixou-se.
Mas a que vem isto para a história do Passeio Público? Tendes ra-
zão. Foi um incidente que não tem aplicação ao caso. Eu, porém, me em-
penhava em impedir que se confundisse o juízo que fiz das qualidades
pessoais e dos serviços do vice-rei Luís de Vasconcelos, com o juízo que
faço daquele bárbaro sistema de governo, que abria espaço a tantos vexa-
mes, tantas violências e tanta opressão que envileciam o povo.
Vereis, porém, em breve, que ainda mesmo na história das obras
do Passeio Público, não faltou uma amostra do poder arbitrário do vice-rei.
O mestre Valentim da Fonseca e Silva mal acabou de receber
as ordens de Luís de Vasconcelos, correu a trancar-se em casa, e pôs-se
a meditar no plano das novas obras de que se achava encarregado; e
com tanta felicidade e inspiração, que poucos dias depois apresentou ao

22 “Este fato, aliás referido com outras circunstâncias, é tambem atribuído ao


vice-rei conde de Resende. Entretanto, das informações que pude obter, e que
com o maior cuidado estudei e comparei, fui obrigado a concluir que Luís de Vas-
concelos, e não o conde de Resende, deve carregar com a responsabilidade dessa
violência.” Nota do autor.
Um passeio pela cidade do Rio de Janeiro 99

vice-rei o risco e os modelos de toda a parte arquitetônica do projetado


jardim, que foram imediatamente aprovados.
– Agora mãos à obra, mestre! – disse o vice-rei.
– Mas, senhor – observou Valentim – perdoe-me o que vou
dizer, que não tenho em mente a menor hesitação no cumprimento das
ordens que recebo. Vejo, porém, que vossa excelência tem empreendido
tantos e tão grandes trabalhos que não sei onde haverá recursos para
executá-los todos. Vossa excelência faz milagres. Mas o dinheiro não
abunda, e faltam-nos absolutamente os trabalhadores necessários.
– Farei aparecer dinheiro e gente. Fica isso a meu cuidado.
Vá, mestre, multiplique-se e saiba que é minha vontade ver pronto esse
jardim antes que eu seja substituído no governo do Brasil.
Não havia que replicar: o mestre Valentim saiu do palácio e foi
logo procurar o seu amigo Xavier dos Pássaros ou Xavier das Conchas.23

23 “Errei gravemente nesta informação. Xavier dos Pássaros foi um artista muito di-
ferente de Xavier das Conchas, e é certo que foram ambos contemporâneos e
que serviram e floresceram no tempo do vice-rei Luís de Vasconcelos. O primei-
ro distinguiu-se na Casa dos Pássaros (edifício onde depois se estabeleceu o Real
Erário e se conserva hoje o Tesouro Nacional), casa que o vice-rei mandou cons-
truir para estabelecer nela um museu de história natural, e onde o artista primava
no trabalho de encher e preparar pássaros. O segundo, Xavier das Conchas, ilus-
trou-se no Passeio Público do Rio de Janeiro. Assim, pois, errei, confundindo
este com o Xavier dos Pássaros.
O Xavier das Conchas era militar e cultivava a arte em que se mostrou tão notá-
vel unicamente por gosto e amor.
Corrigindo deste modo o erro que cometi, vou ter ainda o prazer de apresentar
aos meus leitores uma breve notícia do berço pátrio, da família e da vida do nos-
so Xavier das Conchas.
Francisco dos Santos Xavier, muito mais conhecido por Xavier das Conchas, fi-
lho legítimo de Veríssimo dos Santos e de D. Inácia de Arão, nasceu na cidade do
Rio de Janeiro no ano de 1739 e foi batizado na freguesia de N. S. da Candelária.
Destinando-se à carreira militar, assentou praça de soldado na mesma cidade do Rio
de Janeiro a 12 de setembro de 1752, e foi logo depois destacado para a ilha de Santa
Catarina, onde se conservou em serviço ativo trinta e dois anos, quatro meses e vinte
dias, subindo sucessivamente aos postos de cabo de esquadra, condestável, almoxari-
fe das fortalezas e ajudante de auxiliares. Durante esse tempo, desempenhou diversas
comissões difíceis e importantes, e entre outras, a de examinar se era possível estabe-
lecer navegação entre a serra e a costa do mar, rompendo-se as lagoas para fazer co-
municar a vila da Laguna com o rio Tramandaí. Executando esta comissão, Francisco
dos Santos Xavier caminhou a pé cerca de cinqüenta léguas por pântanos, desertos,
rios e lugares quase intransitáveis, conseguindo apresentar, em 17 de fevereiro de
1765, um roteiro em que deu informações detalhadas de todo o terreno.
100 Joaquim Manuel de Macedo

Perguntais-me quem era esse homem que tinha não menos de


duas alcunhas e que por ambas era conhecido?
Infelizmente não me é possível dar-vos a respeito dele infor-
mações completas e minuciosas. Sei apenas que, depois de Valentim, era
Xavier o artista mais engenhoso e delicado do Rio de Janeiro. Nem me é

Sendo sargento, comandou, por espaço de nove anos, a fortaleza de N. S. da


Conceição da Barra do Sul, em Santa Catarina, e fez à sua custa nessa fortaleza
um armazém e dois quartéis. Foi promovido em 27 de junho de 1776 a ajudante
do terço de infanteria e cavalaria de Santa Catarina e teve de andar pelas freguesias,
disciplinando os soldados.
Tendo obtido três meses de licença, veio Xavier muito a propósito ao Rio de Ja-
neiro, porque o vice-rei Luís de Vasconcelos, conhecendo o seu grande préstimo,
o encarregou, por portaria de 18 de outubro de 1787, de notáveis trabalhos na
obra do Passeio Público que então fazia executar, e mandou que se lhe pagassem
os seus soldos, enquanto ele se demorasse na cidade do Rio de Janeiro ocupado
naquele serviço.
Sabe-se como foram e como são hábeis em delicados trabalhos de conchas, penas
e escamas os catarinenses. Sem dúvida, Francisco dos Santos Xavier aprendeu
essa arte mimosa durante os longos anos em que esteve em Santa Catarina; e tão
famoso se tornou em tais trabalhos, que mereceu ser conhecido por Xavier das
Conchas. Como se houve o artista nas obras de que foi encarregado no Passeio
Público já ficou dito na descrição que deixei no lugar competente.
Xavier, por portaria do mesmo vice-rei Luís de Vasconcelos, datada de 17 de ou-
tubro de 1787, confirmada por patente dada pela Rainha D. Maria I, a 13 de feve-
reiro de 1789, foi promovido a capitão de infanteria, governador da fortaleza da
Conceição do Rio de Janeiro e encarregado da inspeção da real fábrica de armas
da mesma fortaleza; e sendo, a 15 de julho de 1790, por portaria do vice-rei con-
de de Resende reformado no posto de capitão com meio soldo dessa patente,
continuou todavia no comando da fortaleza, onde foi encarregado de algumas
importantes comissões, como, por exemplo, do fornecimento dos petrechos béli-
cos para as naus e fragatas da esquadra real, e coube-lhe também a guarda dos
presos da Inconfidência e de outros.
Por portaria do vice-rei datada de 16 de outubro de 1801, foi promovido a tenen-
te-coronel com o soldo de sargento-mor, continuando a comandar a fortaleza da
Conceição, e sendo-lhe contado aquele soldo desde 18 de março de 1801, por
carta régia de 18 de maio de 1802.
Francisco dos Santos Xavier casara e enviuvara em Santa Catarina, e daí trouxera
para o Rio de Janeiro dois filhos, frutos da sua legítima união. Nesta cidade pas-
sou a segundas núpcias a 15 de janeiro de 1790, e foi sua mulher D. Rosa Francis-
ca de Vasconcelos Vahia, filha do mestre-de-campo Bartolomeu José Vahia, e
irmã daquele que foi depois, no império do Brasil, conde de Sarapuí.
Sendo tenente-coronel, e ainda governador da fortaleza da Conceição, faleceu
Xaviera5 de julho de 1804.
Xavier dos Pássaros chamava-se Francisco Xavier Cardoso Caldeira. Faleceu
pouco depois da chegada da família real. Ganhava no seu ofício, um conto de réis
por ano.” – Nota do Autor.
Um passeio pela cidade do Rio de Janeiro
10
dado dizer-vos qual das províncias
1 do Brasil pode ufanar-se de ter sido
seu berço pátrio. Certo é, porém, que Xavier das Conchas era brasileiro.
O motivo das suas duas alcunhas é que não ficou nem podia
ficar esquecido, porque nunca houve alcunhas que assentassem mais e
que melhores testemunhos de sua significação deixassem.
Xavier tornara-se famoso pelos trabalhos delicadíssimos de
penas de pássaros, e ainda pelos de conchas que executava. Em uma ou
outra das casas mais antigas do Rio de Janeiro conservam ainda pessoas
de bom gosto algumas das obras primorosas desse homem notável.
Foi a esse artista que o mestre Valentim se dirigiu.
– Xavier – disse-lhe Valentim – não te venho dizer que nos
vai chover dinheiro. Obra, porém, vamos ter de sobra. O vice-rei quer
transformar a lagoa do Boqueirão em um jardim público; eis aqui o pla-
no e o risco dos trabalhos de que estou encarregado. Estás vendo nas
extremidades desta varanda dois pavilhões? Faço-te presente deles.
– Para quê?
– Para orná-los, está visto, para que havia de ser?
– Entendo: queres em um o Xavier das Conchas, e no outro e
Xavier dos Pássaros, não é?
– Adivinhaste. Faremos tudo muito brasileiro... muito brasileiro...
– Oh lá! tu o apaixonado das estrangeiras...
– Em amor não há patriotismo, Xavier. Vênus nasceu no mar
para não nascer em terra alguma. Mas vamos ao que importa. Posso
contar contigo?
– Que dúvida?
– Era o que eu queria. Vai ao mato caçar passarinhos, vai à
praia apanhar conchas, e adeus.
Os engenheiros tratavam de dessecar e de aterrar a lagoa do
Boqueirão. O outeiro das Mangueiras ia pouco a pouco sendo arrasado.
Os artistas estavam justos, e já trabalhavam.
Pela sua parte, Luís de Vasconcelos cumpria a sua palavra, fa-
zendo aparecer dinheiro e trabalhadores.
Eis aqui como ele operou esse milagre:
102 Joaquim Manuel de Macedo

As rendas da câmara municipal eram pequenas, e, como o dis-


se o próprio vice-rei, poucas são as rendas da fazenda real. Mas a cidade
abundava de vadios. Que fez Luís de Vasconcelos? Lembrando-se que,
pela carta régia de 8 de julho de 1769, se mandara construir no Rio de
Janeiro uma casa de correção, que sendo utilíssima ficou em esquecimento, ao mesmo
tempo que não deixava de ser bem projetada para se reprimir o vício, promover o tra-
balho e tirar da ociosidade uma espécie de lucro e de ganho em utilidade daqueles
mesmos que os desprezaram, por isso sendo impossível fazer-se esta regulação sem ha-
ver um edifício próprio que admitisse as seguranças que lhe são precisas, seguiu o
meio-termo de mandar para a ilha das Cobras todos esses vadios que se encontravam
em algum comisso, fazendo-os trabalhar nos seus ofícios, e passando o rendimento e
produtos das obras que se vendiam para um cofre.24
Além desse dinheiro recolhiam-se também no mesmo cofre
as quantias que pelos açoites dos escravos pagavam os senhores no cala-
bouço. E assim ia o vice-rei ajuntando boas somas, que aplicava às di-
versas obras públicas, e especialmente às do Passeio Público.
O povo, portanto, era quem fazia à sua custa o jardim que de-
via mostrar-se no lugar dantes ocupado pela lagoa do Boqueirão.
O dinheiro estava por esse modo arranjado. Os trabalhadores
foram recrutados em grande parte pelo mesmo sistema.
Luís de Vasconcelos era de opinião, e ele o escreveu, que a ci-
dade do Rio de Janeiro estava cheia de vadios, o que fazia dos vadios
que tinham ofício e que não trabalhavam, já ficou dito: dava-lhes um
asilo forçado na ilha das Cobras e os obrigava a exercer suas profissões
em proveito das obras públicas.
Aos vadios que não tinham ofício mandou ele servir de traba-
lhadores no Passeio Público. Eram trabalhadores baratíssimos, pois que
não recebiam por salário senão o pão que os devia alimentar. O seu ser-
viço era prestado como uma punição imposta à ociosidade.
Dizem as tradições do tempo que a prepotência pusera então
de mistura com os verdadeiros vadios muitos homens laboriosos, arte-
sãos, caixeiros e empregados no comércio. Pode ser que haja exageração

24 “As palavras que aí vão grifadas lêem-se no ofício do vice-rei Luís de Vasconce-
los e Sousa para ser entregue ao seu sucessor. V. Revista do Instituto Histórico, tomo
4.°, 1ª série, pág. 25.” — Nota do autor.
Um passeio pela cidade do Rio de Janeiro
10
nessas notícias tradicionais. Se 3elas, porém, não são exatas, atestam em
todo o caso a opressão do povo e o despotismo do governo.
O certo é que o vice-rei Luís de Vasconcelos e Sousa operou
o milagre que tomara a peito realizar. Fez aparecer dinheiro e trabalha-
dores, e tanto ativou as obras que no fim de quatro anos viu abrir-se o
Passeio Público ao bom povo da cidade do Rio de Janeiro.
Admira realmente que em tão pouco tempo se executassem
tantos trabalhos cuja dificuldade e importância ainda hoje podemos
apreciar. Atualmente, quatro anos seriam apenas suficientes para a reso-
lução da obra, a encomenda, apresentação e aprovação dos planos e dos
orçamentos. Porque o primeiro ano empregaria o governo a considerar
e reconsiderar a matéria. O segundo ano seria dedicado à escolha dos
engenheiros e ao exame e estudo dos riscos e dos relatórios que eles
apresentassem. Durante o terceiro ano, o ministro respectivo dormiria
sobre o caso e, no quarto, enfim, depois de três meses de consultas, de
cinco de hesitações, de mais três de dúvidas inesperadas, chegaria o últi-
mo mês, no qual o ministro mandaria dar começo aos trabalhos, ficando
um dia inteiro a admirar o esforço inaudito de sua patriótica atividade!
Dizem que todas essas delongas administrativas que entorpe-
cem o desenvolvimento material do país, no império do Brasil, provêm
das condições do sistema representativo. Não admito semelhante expli-
cação. Penso também que no governo absoluto é mais fácil a pronta
execução de qualquer projeto, porque o impulso parte de uma só vonta-
de, e de uma vontade que não receia oposição, e que pode cortar arbi-
trária e imediatamente todos os obstáculos; e que pelo contrário, no go-
verno representativo estudam-se as conveniências públicas, pesam-se os
recursos do Estado, consulta-se finalmente a nação, ouvindo-se os seus
representantes, para levar-se a efeito depois a idéia que se deseja realizar.
Se não é assim, é pelo menos assim que deve ser. Mas, entre a demora
imposta pela necessidade de se refletir e de se consultar os poderes
competentes e a procrastinação soporizada que a preguiça e o desmaze-
lo determinam há uma distância imensa, que se escapa aos olhos daque-
les que nasceram com a proveitosa sina de passar a vida inteira dando
apoiados a tudo quanto dizem os bons e os maus, e os péssimos minis-
tros de Estado.
104 Joaquim Manuel de Macedo

Os administradores preguiçosos e desmazelados descul-


pam-se com o sistema, como se desculpam em outros casos com o que
nunca se deveriam desculpar, porque, mimosos como a sensitiva, preferem o
descrédito do sistema representativo e dos mais nobres princípios a le-
varem um beliscão, que, aliás, é indispensável para arrancá-los do sono
que dormem, sono de arganazes no inverno.
Mas onde vou eu a discorrer sobre espinhos, quando me está
chamando a aprazível mansão das flores? Nada mais de incidentes nem
de divagações. Começo já a descrição do Passeio Público do Rio de Ja-
neiro, tal qual ele se mostrou no ano de 1783.
O Passeio Público, no espaço que compreendia, representava
um hexágono de lados irregulares. Tinha, porém, de frente, na rua do
seu mesmo nome, cerca de oitenta e seis braças, e de fundo, do portão
da entrada até o gradil do terraço, dando sobre o mar setenta e quatro
braças e sete palmos. Ficava-lhe a um lado, que era o da mão direita de
quem entrava pelo portão, o largo da Lapa, e ao outro o largo da Ajuda,
e, como apenas ficou indicado, corria-lhe pela frente a rua do Passeio,
que ligava aqueles dois largos, e no fundo terminava acima do mar por
um elegante terraço cuja base recebia às vezes os beijos, às vezes os em-
bates violentos das ondas, ou namoradas ou embravecidas.
Pelos três lados que olhavam para a terra, o Passeio Público
era fechado por um alto muro, interrompido em intervalos regulares por
janelas com grades de ferro, e mais notável pela sua robustez do que
pela graça, que, aliás, devia ter.
No meio da face que concorreu para formar a rua do Passeio,
rasgava-se o muro, dando lugar ao portão da entrada que era todo de
ferro e firmado em dois pilares de pedra lavrada. Sobre o portão osten-
tavam-se as armas reais portuguesas, olhando para a rua, e no reverso
delas via-se um medalhão de bronze dourado com as efígies da Rainha
D. Maria I e de seu esposo o Rei D. Pedro III, e ainda a epígrafe seguin-
te: “Maria I et Pedro III, Brasili regibus, 1783.25
Do que fica exposto conclui-se que, embora tenham já passa-
do perto de oitenta anos depois da abertura ou inauguração do nosso

25 Esse portão monumental está hoje conservado no interior do jardim.


Um passeio pela cidade do Rio de Janeiro
10
Passeio Público, nenhuma modificação
5 tem este sofrido nem em suas
dimensões, nem em suas disposições exteriores.
Penetrarei agora no seio do jardim.
Uma rua principal nascia à entrada do Passeio e ia morrer en-
tre duas pirâmides e diante de uma pequena cascata, de que logo falarei,
deixando bem no centro do jardim e no meio do seu correr um limitado
terreiro quase circular com quatro bancos de pedra, separados por ela e
por mais duas ruas laterais que vinham abrir-se no mesmo terreiro.
Diversas outras ruas largas e bem construídas concorriam com
aquelas para dividir-se o passeio em maciços de forma regular, cercados
por gradaria de taboca e ostentando o tesouro de mimosos e floridos ar-
bustos e a vegetação tropical, representada por árvores que haviam de ser
corpulentas e frondosas, e que teriam de oferecer sombra e frescor ainda
nas horas canhosas do dia.
Ao tocar a rua principal o ponto que a terminava, um largo
espaçoso se fazia ver, e aí duas mesas de pedra abrigavam-se debaixo de
um teto de jasmins, e adiante delas, e um pouco mais para o centro,
mostravam-se dois pequenos lagos artificiais, do meio de cada um dos
quais erguia-se uma pirâmide de cantaria, que de cada face da sua base
deixava correr uma pena d’água com doce murmúrio. Paralelos às mar-
gens dos lados havia bancos de pedras.
Uma das pirâmides tinha a inscrição: “À Saudade do Rio”. A
outra: “Ao amor do Público”. Quem sentiu a saudade e quem se lem-
brou do amor do público, a que foram consagradas as duas pirâmides, não
me é dado dizer.
Alguns passos além das pirâmides e fronteiro à rua principal,
levanta-se um outeiro artificial, vulgarmente chamado cascata, e que era
ali o mais belo triunfo de mestre Valentim.
O outeiro fora todo formado de pedras sobrepostas como ao
acaso, mas com admirável efeito, rebentando dentre elas ervas e arbus-
tos apropriados. Algumas aves graciosas feitas de bronze pousavam so-
bre as pedras e soltavam dos bicos água cristalina, que se precipitava
mais murmurante que ruidosa. Quase na base do outeiro, dois jacarés
também de bronze, parecendo recrear-se entrelaçados fora do seu ni-
nho, mostravam-se soberbos, lançando pelas bocas abertas cópia d’água
106 Joaquim Manuel de Macedo

claríssima, que ia com a que deitavam as aves ajuntar-se em um tanque


semicircular que rodeava a cascata, e onde se reproduziam as imagens
dos jacarés. Sobre o cume do outeiro, enfim, elevava-se um magnífico
coqueiro de ferro, pintado ao natural, e tendo mais de vinte palmos de
altura.
Antes de passar adiante, permitam-me que me vingue da ari-
dez da minha descrição, conversando um pouco.
As duas pirâmides dos pequenos lagos artificiais bem poderiam
ter-se queixado ao vice-rei Luís de Vasconcelos, por não lhes haverem
dado mais alguns palmos de altura. As árvores que junto delas hoje se
mostram orgulhosas as abafam e amesquinham, e acabarão talvez um
dia por cobri-las com a sua copa.
Em compensação, o outeiro é uma grande obra de arte que
não deixará jamais esquecer o nome de mestre Valentim.
Também o artista tomou a peito executar essa obra com ver-
dadeiro primor. Foi Valentim que, depois de modelar aquele grupo de
jacarés, vendo que falhara a primeira fundição, quis em pessoa dirigir a
segunda, que deu o resultado feliz, louvado por quantos entendedores e
mestre o estudam.
O coqueiro de ferro também foi obra do mesmo mestre, que
muito nela se esmerou para agradar ao vice-rei. Se a tradição não mente,
aquele coqueiro teve uma origem misteriosa, e serviu para abrandar o
pranto da bela Susana, que em sonhos chorara a perda da palmeira que-
rida, a cuja sombra trocara juramentos de amor com Vicente Peres. Mas
o grande coqueiro pouco tempo resistiu ao furor das tempestades. O
vento impetuoso quebrou-lhe os ramos, e tão estragado deixou-o que,
no princípio do século atual, o vice-rei Conde dos Arcos o mandou ar-
rancar e substituir por um busto de Diana em mármore.
Apesar de ser de ferro, a árvore de amor cedeu ao vento!
A moralidade da história não pode ser muito lisonjeira para os
namorados.
E infelizmente não foi somente a palmeira que teve de desa-
parecer do formoso outeiro: as aves de bronze que pousavam sobre as
pedras da cascata sofreram o mesmo destino. Como acabaram elas? Não
me é possível dizê-lo ao certo. Mas, se em todo o caso, exigis uma expli-
Um passeio pela cidade do Rio de Janeiro
10
cação, inventarei a que me parece 7 mais verossímil, e que mais serve para
absolver de uma indesculpável incúria algum dos governos passados.
É ao conde dos Arcos que devemos lançar a culpa da perda
daquelas aves graciosas. Para que mandou esse, que foi o último dos
vice-reis do Brasil, colocar sobre o outeiro a intrépida Diana? Diana,
como todos sabem, é caçadora, e, portanto, caçou as aves.
Se não vos serve esta explicação, também não vos darei outra.
Já conversamos: vou continuar, a descrição.
Do jardim podia-se subir para o terraço por quatro escadas de
pedra, duas centrais e contíguas à cascata, e as outras duas nos pontos
extremos.
O terraço era espaçoso e cheio de elegância. Mas as obras de
arte que o enriqueciam quase que se sentiam abater ante a magnificência
da natureza, que daquele lugar se admira.
Entretanto, aquelas obras não careciam de merecimento.
Logo, ao chegar-se ao alto das escadas centrais, encontrava-se
por detrás do outeiro um menino que parecia querer voar e que segura-
va um cágado que vomitava água em um barril de granito lendo-se o
dístico: Sou útil inda brincando, em uma faixa trazida pelo menino.26
O terraço era avarandado e lajeado de mármore. Uma grossa
parede o defendia dos ímpetos arrojados do mar. Um parapeito o cerca-
va todo, tendo vários alegretes com flores que entremeavam diferentes
bancos de pedra comum, e ornados com vasos de mármore.
Nas extremidades do terraço levantavam-se dois pavilhões
quadrangulares, ambos iguais e semelhantes nas proporções e forma ex-
terior, e distinguindo-se apenas pelas estátuas que os coroavam; pois que
o pavilhão do lado direito era dominado pela estátua de Apolo, que vi-
brava a lira, e o do lado esquerdo pela de Mercúrio com o caduceu. As
arestas de um e outro eram guarnecidas por simples pilastras ornadas
superiormente por vasos de mármore, dos quais nasciam ananases de
ferro. As cobertas eram piramidais e de uma simplicidade agradável.

26 Ao que consta, o menino que hoje existe na entrada do jardim em frente à praça
Paris não é o primitivo. Trata-se de uma reprodução em chumbo, metal de que se
fabricara o antigo.
108 Joaquim Manuel de Macedo

Iguais e semelhantes no exterior, como disse, os dois pavi-


lhões diferiam completamente nos seus ornamentos do interior.
O teto do pavilhão da direita dividia-se em cinco grandes
quadros, dos quais o culminante era quadrado e os quatro laterais trape-
zóides, e todos eles enfeitados de arabescos, palmas e flores, sobre fun-
do branco, tudo tão perfeitamente acabado que produzia uma suave ilu-
são, avultando o seu merecimento por serem as palmas, flores e arabes-
cos formados de penas de diversas cores.
As sobreportas, do mesmo modo, se mostravam ornadas de
baixos-relevos de pássaros do Brasil, formados das próprias penas deles.
A meia altura das paredes, enfim, apreciavam-se lindos quadros elíticos
feitos a pincel, representando diferentes fábricas e oficinas do país.
No pavilhão da esquerda notava-se idêntica disposição nos
ornamentos. Estes, porém, eram de outra natureza. Nos cinco grandes
quadros de teto as conchas substituíram as penas, e o fundo em vez de
ser branco, tomava a cor azul. Nas sobreportas viam-se baixos-relevos
de peixes dos nossos mares, feitos com as suas próprias peles e escamas.
Os quadros elíticos representavam as maiores armadas que tinham até
então entrado na baía do Rio de Janeiro, o incêndio de embarcações, e
finalmente formosas vistas de sítios romanescos do litoral e do interior.
Todos estes encantos de arte gozavam-se também de noite,
ao clarão de oito lampiões trabalhados com esmero e colocados na
extensão do terraço.
Em duas pequenas casas construídas dentro do jardim guar-
davam-se muitos outros lampiões, que serviam nas iluminações das
grandes festas públicas; mas, depois da chegada da família real ao Brasil,
todos eles foram dali tirados para se aplicarem à iluminação do palácio e
do largo do Paço.
Eis o que foi o Passeio Público do Rio de Janeiro na sua épo-
ca primitiva no tempo do seu fundador, o vice-rei Luís Vasconcelos e
Sousa. O que em seguida ele passou a ser tratarei de referir no próximo
passeio.
Enquanto, porém, nos vamos recolhendo para casa, ouvi-me
ainda duas palavras pronunciadas em tributo de gratidão à memória dos
Um passeio pela cidade do Rio de Janeiro
10
dois artistas que mais concorreram9 para o nosso até hoje único jardim
público da cidade do Rio de Janeiro.
Convém ligar os nomes de Valentim e de Xavier às produções
que ao talento de cada um deles devemos, e depois de o ter feito, atirarei
no meio de vós uma consideração um pouco séria e filosófica, que acei-
tareis ou rejeitareis conforme for de vossa vontade.
O menino alado que segurava o quadro e as estátutas dos pa-
vilhões eram de mestre Valentim, a quem se atribuem também os qua-
dros elíticos, especialmente do pavilhão esquerdo, que passavam por pri-
morosos.27 Todo o trabalho de penas, conchas e escamas pertencia ao
Xavier dos Pássaros ou das Conchas e encantavam pela sua delicadeza e
perfeição, chegando os baixos-relevos a parecerem antes obras da natu-
reza do que da arte.
Valentim e Xavier tinham-se compreendido e ligado pelo
mesmo pensamento, e haviam executado as suas dificílimas tarefas em
tudo e por tudo muito brasileiramente, como propusera aquele mestre.
Este fato, que hoje não teria uma grande importância, era naquela época
a manifestação de um sentimento nobre e generoso, que, por assim di-
zer, pressagiava a independência do Brasil.
A poesia e as artes começavam a quebrar o jugo colonial, e
inspiradas pelo patriotismo, lançavam no espírito público os germes da
nossa futura regeneração política. José Basílio da Gama, no Uruguai, ti-
nha já enriquecido a poesia com a originalidade, as imagens, as descri-
ções e a cor da pátria; José de Santa Rita Durão ostentava-se mais brasi-
leiro ainda no seu Caramuru, que ele escrevia pouco mais ou menos nos
mesmos anos em que se executava a obra do Passeio Público do Rio de
Janeiro; dirigidos pelo mesmo sentir, inflamados pelo mesmo amor,
mestre Valentim e o Xavier das Conchas escreviam também os seus

27 “Descrevendo os dois primitivos pavilhões do Passeio Público do Rio de Janeiro,


disse eu que os quadros elípticos passavam por ter sido obra de mestre Valentim.
Não é exato. Mestre Valentim não foi pintor. Infelizmente não sei ao certo quem
foi o artista a quem se deveram aqueles belos trabalhos, de que não há mais notí-
cia alguma.” – Nota do autor.
Esses quadros, e mais outros de igual formato que existiram no Passeio, atribuem-se
ao pintor José Leandro e lembram, pelo modo por que são enquadrados, as telas
desse mesmo artista que se encontram na igreja do Parto.
110 Joaquim Manuel de Macedo

poemas especiais e cheios de patrióticas idéias, na cascata e nos pavi-


lhões do Passeio Público.
Os idealistas, ainda sem o pensar talvez, preparavam a revolu-
ção que, prematura e imprudentemente, quiseram realizar os poetas e
patriotas de Minas Gerais em 1789, e depois foi consumada pelos heróis
do Rio de Janeiro e do Ipiranga.
Quem não enxergar nos poemas do Uruguai, do Caramuru e
depois, no da Assunção de Frei S. Carlos e nas obras de Valentim, de Xa-
vier das Conchas e de outros artistas a independência do Brasil, que no
fim de alguns lustros passou dos cantos dos poetas e dos quadros e tra-
balhos da arte para os clubs dos políticos, não enxerga a luz da verdade e
a origem real dos fatos

III

O primeiro dia em que se abriu o Passeio Público aos habi-


tantes da cidade de S. Sebastião do Rio de Janeiro foi, como era natural,
de júbilo e de festa para a população, e de justa ufania para o vice-rei e
para os artistas a quem era devida aquela abençoada obra. Contraria-me
não pouco a falta de informações fidedignas a respeito das festas que ti-
veram lugar então; porque não hesitaria em descrevê-las, se para o fazer
me achasse habilitado.
Nem sei mesmo em que dia e em que mês do ano de 1783 foi
passado esse aprazível fato. Mas bem podia ter sido o mês de agosto, e
no dia de S. Bartolomeu, porque, pelo correr da noite, rebentou uma
tremenda ventania, que pôs o mar em fúria e a terra em susto.
Mestre Valentim, depois de receber os cumprimentos do
vice-rei e de fartar-se com o seu amigo Xavier das Conchas de ouvir, no
Passeio Público, elogios às suas obras, recolhera-se à casa, levando con-
sigo o irmão-artista, o bom Xavier, para regalar-se com ele, fazendo
honra a uma excelente ceia que mandara preparar.
Os dois amigos tinham-se apenas sentado à mesa e, depois do
primeiro prato, enchido os copos de rubro e odorífero vinho, quando as
janelas da casa bateram com estrondo ao impulso do vento desenfreado,
que começou a rugir como um tigre embravecido.
Um passeio pela cidade do Rio de Janeiro
11
Mestre Valentim estremeceu
1 e tornou-se pálido.
– Que é lá isso? – perguntou Xavier.
– É a tempestade – murmurou Valentim.
– Que nos importa agora a tempestade! Tens medo de ver
cair sobre nós esta casa, derribada pela violência dos tufões? Ah! Reparo
agora que ela não é de pedra e cal; mas está, sem dúvida, feita com boas
madeiras do Brasil e as nossas boas madeiras valem pedra e ferro.
– E que tenho eu com a fortaleza desta casa? Que mal me vai
em que ela seja ou não derribada pelo vento?
– Essa é boa! Então não havia mal em ficarmos ambos esma-
gados? Que diabo é, pois, que te preocupa?
– O meu coqueiro, Xavier! O meu coqueiro! Esta ventania vai
atirá-lo da cascata abaixo. É uma tempestade como nunca vi.
Xavier desatou a rir.
– Sim. Ri, ri e bebe vinho. Os pavilhões estão fechados, e o
vento nem depenará os teus pássaros, nem escamará os teus peixes. Não
é assim, egoísta?
Xavier ria-se cada vez mais, e comia e bebia sem lhe importar
a tempestade.
– Mas quem disto tem culpa é o Sr. Luís de Vasconcelos! –
exclamou Valentim. Quis por força um coqueiro enorme sobre a casca-
ta, um coqueiro artificial que lhe lembrasse uma palmeira que ele bem
podia maldizer, e eis aí o resultado.
– Mestre – disse Xavier – come e bebe, e deixa o vento. Por
mais que te exasperes e grites, não o farás cessar. Ceiemos, e amanhã
iremos ver como passou à noite o coqueiro.
Valentim deixou-se finalmente convencer, e acabou por zom-
bar dos seus próprios temores. Ceou, pois, conversou, riu-se e gracejou
até depois da meia-noite, que foi quando Xavier lhe disse adeus e reti-
rou-se.
A tempestade tinha completamente serenado. A noite mostra-
va-se clara e fresca. A lua brilhava no céu.
Mestre Valentim não se pôde conter. Saiu de casa, penetrou
no Passeio Público por uma portinha que havia ao lado esquerdo, perto
112 Joaquim Manuel de Macedo

do terraço, e cuja chave ainda tinha em seu poder. Correu para a cascata
e soltou um grito de prazer, vendo de pé, firme e sem a menor quebra e
dano, o seu delicado coqueiro.
Foi tão grande o seu prazer que partiu logo em direitura à
casa de Xavier, e bateu-lhe à porta com quanta força pôde.
Xavier dormia, já a sono solto. Acordou, porém, sobressalta-
do, levantou-se, e abrindo uma janela, perguntou de mau humor o que
dele queriam a tais 10 horas.
– Sou eu, Xavier – disse-lhe Valentim.
– Oh! Mestre. Que aconteceu?
– Uma felicidade: venho dizer-te que o meu coqueiro está salvo.
– Maldito seja o teu coqueiro, que te fez cortar-me o mais
belo sono que tenho dormido em minha vida! – exclamou Xavier, tran-
cando a janela.
Valentim voltou para casa, rindo-se às gargalhadas da peça
que acabava de pregar a Xavier.
Do que se passou no dia da abertura do Passeio Público do
Rio de Janeiro nada mais posso adiantar. Contentem-se, pois, os curio-
sos com a notícia da tempestade e do susto de mestre Valentim, que são
fatos positivos, embora de pouca importância.
O Passeio Público teve indubitavelmente a sua época de bri-
lhantismo e de encanto no vice-reinado de Luís de Vasconcelos e Sousa.
Mas, logo depois, sobreveio-lhe um longo período de lamentável des-
prezo, durante o governo do vice-rei conde de Resende, e em seguida
experimentou, ora insuficientes cuidados, ora um tristíssimo abandono,
até que finalmente agora vai reaparecer mais belo que nunca, segundo o
apregoa a fama, graças a uma reforma inteligente, artística e digna da ca-
pital do império.
Luís de Vasconcelos amava tanto a sua obra como um pai
ama a sua filha, e soube despender sempre com ela extremosos cuida-
dos. Não se limitou a enriquecer o jardim com ornamentos interiores.
Engraçou-o ainda pelo exterior, fazendo abrir e alinhar bonitas ruas por
onde se pudesse ir ter a ele. Foi assim que dispôs a rua que, correndo
pela frente do Passeio, tomou do Passeio o nome, sendo apenas de la-
mentar que em suas proporções tão estreita ficasse. E além da rua do
Um passeio pela cidade do Rio de Janeiro
11
Passeio, a outra que cai perpendicularmente
3 sobre esta no ponto em que
se mostra o portão, e que então se chamou rua das Belas Noites em vez
de rua das Marrecas, que é como hoje se chama. Abertas as ruas, o
vice-rei promoveu nelas a construção de casas, determinou e adiantou
algumas edificações, que aliás não pôde concluir, como tinha em mente
e, enfim, não perdeu ocasião de excitar alegria e festas no seio do seu
pequeno paraíso.
O povo procedia neste caso muito de acordo com o vice-rei.
Bem entendido, neste caso, de acordo espontâneo e muito de coração.
Porque em todos os outros casos não tinha remédio senão mostrar-se
também de acordo com ele, quer quisesse quer não, visto que não era
admissível que um vice-rei alguma vez deixasse de ter toda a razão em
tudo e por tudo. E pouco admira que naqueles tempos todos aplaudis-
sem o juízo infalível do poderoso delegado do rei absoluto, quando ain-
da hoje são muitos os que piamente acreditam que a infalibilidade não
está nos homens, está no poleiro, na influência do poder e, até, às vezes,
simplesmente no feitiço do tesouro público.
O povo tomou amor ao seu belo jardim desde o primeiro dia.
Ainda há velhos a quem lembram as festas brilhantes que ali
se fizeram em 1786, em aplauso do casamento do príncipe que 22 anos
depois veio assentar o trono da monarquia portuguesa na cidade do Rio
de Janeiro. Iluminações, músicas e danças aparatosas foram então execu-
tadas, durante algumas noites, no Passeio Público, e não faltaram poetas
que nessa ocasião se fizessem ouvir inspirados no meio de enchentes de
flores... flores vegetais e humanas.
Além dessa, algumas outras festas públicas tiveram lugar no
Passeio, do ano de 1786 em diante, e a prova ficou no grande número
de lampiões que para aquele fim se guardavam nas duas casas que se le-
vantaram dentro do jardim, como já ficou dito.
Mas essas noites oficiais, embora deslumbrassem a população
e lhe dessem fervorosa alegria, eram naturalmente de curta duração, da-
vam ao Passeio Público apenas uma vida artificial e um encanto que não
podia ser perene.
Ora, o que mais nos importa conhecer é a vida normal, a ani-
mação de todos os dias e de todas as noites que tinha aquele jardim, no
tempo a que me refiro.
114 Joaquim Manuel de Macedo

Quereis, pois, fazer idéia do que era para o povo do Rio de Ja-
neiro o Passeio Público naquela época, e ainda em outras posteriores, a
despeito do desmazelo dos governos? Perguntai qual foi a origem da de-
nominação de Belas Noites, dada à rua que depois muito prosaicamente
chamaram das Marrecas.
Aquele nome Rua das Belas Noites queria dizer que o Passeio
Público fizera o povo do Rio de Janeiro gostar pouco da lua nova e abor-
recer a minguante.
Por quê? Eis aqui todo o segredo desse desamor e desse
aborrecimento por aquelas duas fases da lua.
Nas noites de brilhante luar, dirigiam-se alegremente para o
Passeio Público numerosas famílias, galantes ranchos de moças, e por
conseqüência, cobiçosos ranchos de mancebos; e todos, depois de pas-
sear pelas frescas ruas e pelo ameno e elegante terraço, iam, divididos
em círculos de amigos, sentar-se às mesas de pedra, e debaixo dos tetos
de jasmins odoríferos ouviam modinhas apaixonadas, e lundus travessos,
cantados ao som da viola e da guitarra, rematando sempre esses diverti-
mentos com excelentes ceias dadas ali mesmo.
Toda essa multidão contente e festiva tomava de preferência,
para chegar ao Passeio Público, a rua que ficava e fica fronteira ao por-
tão do jardim. A lua crescente ou plena brilhava no céu. Os grupos doce-
mente ruidosos de moças sucediam-se uns aos outros ao longo daquela
tão curta como afortunada rua. Os cantos soavam. Sentia-se o prazer
geral no concurso de todos para os mesmos inocentes gozos. Oh! que
nome quereis que fosse dado a essa rua? Que outro nome mais bem ca-
bido do que o “das Belas Noites”?
E como essas famílias, aquelas moças e aqueles mancebos
deixariam de desamar a lua nova, e aborrecer a minguante, que eram as fa-
ses da lua menos propícias às suas suspiradas reuniões no jardim?
Conversai com os nossos velhos, e ouvi-los-eis falar das suas
agradáveis noites e das afamadas ceias do Passeio Público com mais en-
tusiasmo do que vós outros falais do vosso Cassino, do vosso Clube Flu-
minense, dos vossos jantares do Jardim Botânico, das vossas festas de
hoje, enfim, tão descoradas e tão fatigantes à força de serem tão cerimo-
niais e tão calculadas.
Um passeio pela cidade do Rio de Janeiro
11
E, notai bem, quinze dias,
5 ou antes, quinze noites pelo menos
em cada mês, havia no Passeio Público festa do povo, alegria do povo,
reunião de famílias, cantigas de moças e de mancebos, conversações ani-
madas de velhos e velhas, versos lidos ou improvisados por poetas ou
simples cultivadores do Parnaso, amores puros nascidos ao som de sua-
ves cantos, confiança e contentamento de todos, ruído, aplausos, risadas,
movimento e nunca uma desordem, e jamais um desaguisado, e ainda
menos um arrependimento e remorsos. O véu da noite ali não favorecia
o vício, somente facilitava os santos gozos da virtude.
E, entretanto, não apareciam lá para manter a ordem nem
subdelegados, nem inspetores de quarteirão, nem permanentes, nem pe-
destres. Até aí não tinha ainda florescido na cidade do Rio de Janeiro o
célebre Vidigal, que foi o tutu do seu tempo.28 Passava-se perfeitamente
sem as providências da polícia. Não havia desordeiros, porque subsistiam
os antigos costumes do povo, e, apesar do governo absoluto, o povo ti-
nha moralidade.
A satisfação naquelas noites era geral, e as noites faziam tal-
vez esquecer os dias. Os gozos puros eram de todos e para todos; creio
mesmo que as freiras da Ajuda passariam horas inteiras às grades das ja-
nelas do seu convento, estendendo os olhos ávidos para apreciar com
eles, e de longe embora, os inocentes prazeres da terra que eram nega-
dos a elas, pobrezinhas, a pretexto de que poderiam arredar os seus pen-
samentos do Céu.
Ainda bem que nesse tempo os frades do Carmo não mora-
vam ainda a poucos passos do Passeio Público, como depois tiveram de
ir morar. Aliás, duvido que resistissem com paciência àquele martírio de
Tântalo de que puderam triunfar as freiras da Ajuda. Porque, enfim, os
frades não são freiras, e às vezes têm suas fraquezas e cedem à tentação
do Diabo, que em regra geral é mais feliz, tentando os homens do que
as mulheres.
Foi uma verdadeira pena que esse contentamento do povo da
cidade do Rio de Janeiro não se fizesse sentir sempre o mesmo, inalterá-
vel, até o fim do Governo Luís de Vasconcelos. Infelizmente, porém, a

28 “Célebre oficial de polícia cuja atividade, zelo e muitas vezes despótica sem ceri-
mônia, deixaram uma fama que dura até hoje.” – Nota do autor.
116 Joaquim Manuel de Macedo

conjuração de Tiradentes em Minas Gerais, denunciada em março de


1789 ao visconde de Barbacena, veio dar motivo a toldarem-se e enegre-
cerem-se os últimos tempos do vice-reinado daquele notável administra-
dor do Brasil.
Luís de Vasconcelos mostrou na perseguição dos conjurados
a mesma energia e fervoroso empenho de que dera provas em todos os
outros atos de sua administração. Multiplicou os segredos, não abriu um
só instante o coração à piedade, turvou o seu espírito com a suspeita, e
procurando todos os vestígios e todas as possíveis ramificações da cons-
piração de Minas, encheu a cidade do Rio de Janeiro de receios aterra-
dores.
A mão pesada do absolutismo ergueu-se terrível e vingativa.
Tremeram a um tempo inocentes e culpados. O povo não se lembrou
mais de folgar e de rir, e as flores do Passeio Público logo começaram a
murchar.
E ainda mais que o sucessor de Luís de Vasconcelos e Sousa
mostrou sempre ser mais um vice-rei de espinhos do que um vice-rei de
flores.
D. José Luís de Castro, conde de Resende, era um homem
desconfiado, melancólico, violento e caprichoso, e, portanto muito natu-
ralmente, deu pancadas de cego com a sua bengala de vice-rei.
Estreou no seu vice-reinado recebendo o sinistro festejo de
uma iluminação de mau agouro; porque, apenas alguns dias depois de
ter tomado posse do Governo do Brasil, ardeu toda a casa em que a câ-
mara municipal celebrava as suas sessões, e que era na mesma praça do
palácio em frente a este, no correr das casas dos Teles, ficando exata-
mente na esquina da atual rua do Mercado. O fogo que consumiu a casa
devorou também o arquivo municipal, escapando somente os livros e
papéis que por casualidade se achavam em poder do Escrivão da Câma-
ra e do Juiz de Fora.
O povo, que já andava triste, viu naquele incêndio um pressá-
gio funesto, e o conde de Resende pareceu tomar a peito verificar o
presságio.
O novo vice-rei foi uma verdadeira praga que caiu sobre a ci-
dade do Rio de Janeiro. Além dos males que fez, destruiu ou amesqui-
Um passeio pela cidade do Rio de Janeiro
11
nhou os benefícios que achou feitos.
7 Dissolveu a academia científica cri-
ada sob os auspícios do marquês de Lavradio e perseguiu duramente os
seus membros. Desprezou completamente o Passeio Público, fundado
por D. Luís de Vasconcelos, condenou-o a um abandono que o foi
arruinando pouco a pouco, e julgou-se, talvez por estes e muitos outros
fatos semelhantes, um administrador modelo.
E o pior é que têm aparecido bastantes cópias desse modelo
fatal!
O Passeio Público do Rio de Janeiro entrara, portanto, defini-
tivamente, em uma época de decadência.
D. Fernando José de Portugal, depois marquês de Aguiar, su-
cessor do conde de Resende, nenhuma providência tomou a favor do
infeliz jardim público, e nem ao menos socorreu o coqueiro de mestre
Valentim, que se ia desgalhando e quebrando, e fazendo convencer a to-
dos que os governos desmazelados são mais funestos do que os mais
desabridos furacões e as mais furiosas tempestades.
A D. Fernando José de Portugal sucedeu no vice-reinado do
Brasil, D. Marcos de Noronha de Brito, conde dos Arcos, a quem tam-
bém o Passeio Público não ficou devendo grande coisa. Este vice-rei li-
mitou-se a substituir por um busto de Diana em mármore o famoso co-
queiro, que assim perdeu o domínio da cascata.
A chegada da família real portuguesa ao Rio de Janeiro, em
1808, não mudou a fortuna adversa do Passeio Público. Antes, deu lugar
a que se concebesse a idéia de se lhe opor um rival, e de feito, manda-
ram-se encetar os trabalhos necessários para ser transformada em um
jardim público uma parte do campo então chamado de Santana. O pen-
samento era louvável e utilíssimo, sem dúvida; mas os cuidados que por
algum tempo mereceu o novo passeio em projeto não deviam fazer olvi-
dar o passeio antigo já pronto e estimado do povo.
Não quero, porém, deixar de fazer completa justiça ao gover-
no dessa época: se ele não cuidou suficientemente, se não fez renova-
rem-se as tardes amenas e as belas noites do Passeio Público, ao menos
não desprezou este estabelecimento, como os últimos vice-reis o tinham
desprezado.
Dois fatos servem para demonstrar a minha proposição.
118 Joaquim Manuel de Macedo

Encontrava-se naquele tempo o ilustre carmelita Frei Leandro


do Sacramento, que era um fluminense notável por sua ilustração e um
naturalista muito distinto, dando lições de botânica no Passeio Público,
em um edifício oitavado muito elegante (diz o Padre Luís Gonçalves dos San-
tos), que para esse fim ali se construiu do lado do largo da Lapa.
Se o edifício oitavado é um dos que ainda se acham no Passeio,
protesto contra a idéia da elegância. Fosse, porém, qual fosse, aplaudo a
criação daquela aula de botânica, onde o nosso Frei Leandro contava a
história do reino vegetal à sombra das árvores e no meio das flores.
Foi uma aula de botânica que deu alguns excelentes discípu-
los, que depois vieram a ser mestres. O Brasil perdeu, ainda há poucos
anos, um deles no Dr. Joaquim José da Silva.
Em 1817, reconheceu-se que o terraço do Passeio Público se
achava tão arruinado pela violência dos embates das ondas, que não era
mais possível adiar a sua reconstrução. Tornara-se indispensável pagar a
incúria dos últimos governos com uma despesa avultada.
Meteram-se mãos à obra.
O terraço teve de passar por uma reforma geral e completa, e
conseqüentemente foram sacrificados os pavilhões quadrangulares, e
com eles as Estátuas de Apolo e de Mercúrio de Mestre Valentim e os
delicados trabalhos de conchas, penas e escamas do Mestre Xavier.
É verdade que, segundo escreveu o Padre Luís Gonçalves dos
Santos nas suas Memórias do Brasil, “espera-se que os novos mirantes que se
haviam de levantar tivessem os mesmos ornatos que os antigos”. Mas, também, é
verdade que essa lisonjeira esperança não se realizou, e até perderam-se
os vestígios das Estátuas de Valentim e dos pássaros e dos peixes do Xa-
vier das Conchas.
A reforma tinha sido, por certo, determinada com a melhor
intenção. Como se vê, porém, acabou do modo o mais triste, com a
profanação da arte.
No terraço ficou somente intato o menino que segurava o cágado.
Talvez merecesse então piedade por ser criança. Mas, coitadinho! Cou-
be-lhe mais tarde uma sorte igualmente lamentável.
Tais foram os dois fatos que marcaram no Passeio Público do
Rio de Janeiro aquela época, que, aliás foi de tanto progresso para o
Um passeio pela cidade do Rio de Janeiro
11
Brasil: uma aula de botânica que9 pouco tempo durou, e que ainda assim
produziu excelentes frutos, e uma reforma que se pareceu muito com
aquelas emendas que saem piores do que sonetos.
Decididamente, desandava a roda da fortuna para o Passeio
Público; porque nem lhe valeram a declaração da independência do Bra-
sil e o grau de capital do novo império assumido pela cidade do Rio de
Janeiro.
As belas noites estavam de todo esquecidas. A rua que aquele
nome tivera já desde alguns anos se chamava das Marrecas, em honra da
fonte onde a água corria dos bicos de cinco marrecas de bronze. Essa
fonte, porém, nem mesmo era uma novidade, porque a data da sua
construção coincide com a do Passeio Público. A mudança do nome da
rua teve, pois, outro motivo, que não foi senão o arrefecimento do amor
pelo Passeio Público, em conseqüência do abandono em que este caiu
desde o tempo do conde de Resende.
Os três últimos vice-reis do Brasil tinham conseguido vingar a
lua nova e a lua minguante do desamor e do aborrecimento com que o
povo as ultrajava. Seus nomes devem ser, portanto, lembrados com justa
gratidão, no mundo da lua.
Entretanto, os anos foram correndo, e o Passeio Público não
se regenerava.
O reinado do primeiro imperador não foi de sensível proveito
para esse estabelecimento de recreio público.
A menoridade do Sr. D. Pedro II ainda menos. Creio que a
única obra que então se fez no Passeio foi a substituição do gradil de ta-
quaras que cercava os maciços por grades de ferro mandadas colocar
pelo ministro Bernardo Pereira de Vasconcelos, se não me engana a me-
mória. Se outras obras se executaram, foram tais que não valem a pena
lembrar-se.
Ah! Não. Ainda há uma grande obra e um grande anúncio
oficial que não devem ficar esquecidos.
A obra consistiu em mandarem-se arrancar as armas de D.
Luís de Vasconcelos e Sousa, que no Passeio Público recordavam e per-
petuavam a lembrança do seu fundador.
120 Joaquim Manuel de Macedo

Que idéia sublime! Mas, para tornar esquecido esse relevante


serviço prestado por aquele vice-rei, era melhor mandar destruir o Pas-
seio todo. E nem assim! Porque a história da pátria subsistirá, e não há
poder humano que a destrua.
O anúncio oficial foi talvez ainda mais curioso.
Tinha soado a hora fatal para o menino útil inda brincando.
Um dia deu-se por falta do menino, e debalde o procuraram.
O pequeno não se escondera para fazer travessura à vontade,
como criança que era: não batera as asas nem fugira, apesar de o ter fei-
to alado Mestre Valentim.
Nada disso: o pobre menino, com o seu cágado e a sua faixa,
tinha sido vítima de um roubo.
E que fez em tal caso o governo? Anunciou que “quem quisesse
fazer outro igual e mais barato se apresentasse na administração das obras públicas”.
O anúncio era inspirado pelo mais santo amor da economia.
Mas, nem o próprio governo sabia o preço por que pagara Luís de Vas-
concelos aquele menino que acabavam de roubar. Entretanto, a questão
era da maior transcendência financeira, e cumpre que aquele anúncio fi-
que registrado nos anais da história.
E lá se foi o pobre menino!
Além do ladrão, ainda alguém mais ganhou com esse fato es-
candaloso: foi Andrew Grant, que, na sua História do Brasil, confundiu
com um passarinho o cágado que o menino segurava. Depois do roubo de
que falo, podia muito bem Andrew Grant sustentar que o cágado, que
vira e estudara, tinha asas como um pato e voava como uma andorinha.
A declaração da maioridade do Sr. D. Pedro II veio abrir uma
época nova para o Brasil. Então o Passeio Público mereceu durante al-
gum tempo mais desvelada atenção.
Em 1841, o Coronel Antônio João Rangel de Vasconcelos,
sendo inspetor das obras públicas do município da corte, não pode tole-
rar com a paciência, de que outros deram exemplo, o quadro lastimável
do Passeio Público, e determinou melhorá-lo.
Faltavam os recursos para grandes trabalhos. Mas Rangel de
Vasconcelos tinha um coração patriota e o patriotismo tem o dom de
vencer todos os embaraços, quando se trata de servir ao país.
Um passeio pela cidade do Rio de Janeiro
12
Entendendo-se com o1 ministro do Império, o dedicado ins-
petor das obras públicas empreendeu obras na verdade dispendiosas, e
com sobras de outras verbas do serviço público, pôde realizar notáveis
melhoramentos.
O terraço foi convenientemente melhorado e mostrou-se
guarnecido por uma bela cortina entremeada de assentos paramentados
de mármore e azulejos, e interrompida simetricamente por excelentes
grades de ferro. Diversos ornatos aumentaram-lhe ainda a elegância.
Os antigos pavilhões quadrangulares, já destruídos em 1817,
foram substituídos por dois torreões octogonais. Mas, neste ponto, foi
enorme a diferença que se notou entre a obra do século passado e a que
se efetuou em 1841. Em seu interior, os torreões são pintados a óleo,
fingindo mármore, e nos tetos de ambos aparecem as armas nacionais,
e... eis tudo.
Ah! Mestre Valentim! Ah! Xavier das Conchas!
Rangel de Vasconcelos, tendo de renovar a varanda do Passeio
Público, quis render uma simples homenagem aos antigos pavilhões, le-
vantando os dois torreões, porque lhe faltaram os meios pecuniários
para dar aos pavilhões do Xavier das Conchas sucessores dignos deles.
Creio que, se nisto andou errado o patriotismo, ainda pior se
houve no governo em 1817, e que melhor fora que este tivesse conser-
vado intactas, e ainda mesmo com todas as suas rugas de velhice, aque-
las obras do Xavier das Conchas.
Rangel de Vasconcelos restaurou no Passeio Público as armas
de D. Luís de Vasconcelos que tinham sido arrancadas, fez aparecer
igualmente a efígie de D. Pedro III e D. Maria II, conseguiu fazer volta-
rem a seus competentes lugares a Diana, o Júpiter, o Mercúrio e o Apolo,
que dantes figuravam no Passeio e, enfim, apresentou no antigo posto
um novo menino útil com o inseparável cágado, e com sua faixa e a sua
divisa.
Se este menino é igual ao antigo e saiu mais barato, não sei.
Ao engenheiro Rangel de Vasconcelos deve, pois, a cidade do
Rio de Janeiro, além de outros, esse importante serviço. Como, no en-
tanto, ele não teria melhorado o Passeio Público, se o governo não lhe
permitisse fazê-lo e não lhe desse ordens para isso, pertence também ao
122 Joaquim Manuel de Macedo

governo de então boa parte da glória que por esses trabalhos e por esse
nobre empenho coube a Rangel de Vasconcelos.
Mas, quando um governo realiza uma obra dessas, descansou
no sétimo dia, depois de ter nos seis anteriores criado o universo: o go-
verno pode bem descansar no fim de longos meses de trabalho.
E o governo não só descansou como também dormiu a sono
solto a respeito do Passeio Público. Dormiu... dormiu... e dormiu.
Até que acordou, em 1860.

IV

A administração pública do Brasil tem desde muito provado


com a lógica irresistível dos fatos um erro gravíssimo em que se acham
incursos todos os gramáticos e lexicógrafos. Porque estes senhores pre-
tendem que amanhã quer dizer no dia seguinte, no dia imediato, e ela em opo-
sição foi e vai constantemente demonstrando que amanhã significa um
período indeterminado, que se pode estender por muitos anos, e mesmo
algumas vezes até às calendas gregas.
Querem alguns que as honras de tão importante descoberta
não pertencem à administração pública, e somente à sonolenta preguiça,
que foi quem fez o belo achado em uma hora deleitosa em que dormia
nos braços do desmazelo. Mas, ainda protestam outros, dizendo que fo-
ram os devedores insolúveis que ensinaram essa lição sublime, que tanto
desespera os credores.
Como quer que seja, a significação administrativa que acabei de
fazer notar tem infelizmente o defeito de arruinar muitas coisas já fei-
tas, de deixar em meio outras que se deviam acabar, e de esquecer ainda
outras que era necessário que se fizessem.
O Passeio Público do Rio de Janeiro é um exemplo tristíssi-
mo desse defeito da significação administrativa dada à palavra amanhã.
Tendo caído em completa deslembrança, o Passeio Público
pedia compaixão com a voz suave das brisas que murmuravam com as
folhas de suas árvores, bradava socorro com a voz irritada das ondas
que rebentavam nas pedras defensivas do seu terraço, e a administração
pública respondia sempre amanhã! amanhã! – o que significa um período
Um passeio pela cidade do Rio de Janeiro
12
indeterminado que se pode estender
3 por muitos anos, e mesmo algumas
vezes até às calendas gregas.
Está visto que sendo assim, não havia razão de queixa. Não
era a administração pública que se descuidava, era o amanhã que não
chegava.
Mas em resultado, o descaimento e a ruína do Passeio Público
do Rio de Janeiro chegaram a tais proporções nos últimos anos, que a
todos surpreendia ver o abandono em que se deixava o único lugar de
refrigério público da capital do império.
Esse lamentável e repreensível abandono foi perfeitamente
pintado em um ligeiro epigrama que ouvi a um amigo meu que, tendo
partido para a Europa em 1852, chegara de volta ao Brasil em 1860.
Passeávamos juntos, eu e o meu amigo, naquele jardim públi-
co, alguns dias depois da sua chegada ao Rio de Janeiro.
– Que me dizes do nosso Passeio? – perguntei-lhe.
O meu amigo sorriu e respondeu-me:
– Na véspera da minha viagem para a Europa vim aqui, e vi à
entrada do Passeio um gato morto. Estive no velho mundo oito anos, vol-
tei, e hoje encontrei ainda o mesmo gato morto no portão do Passeio.
Com efeito, não podia ser maior o desleixo.
Um dia de chuva era de sobra para ficarem encharcadas mui-
tas ruas do Passeio.
Os maciços estavam cobertos de capim e de ervas ruins, e as
árvores de parasitas.
As grades dos jardins achavam-se despedaçadas.
Árvores preciosas e delicadas amesquinhavam-se e iam mor-
rendo abafadas por outras que pouco ou nenhum merecimento tinham.
Dois pequenos tanques octogonais com pilastrinhas de már-
more servindo de repuxos, que havia nos primeiros maciços da rua prin-
cipal, e que não sei em que época foram feitos, estavam, um quase de
todo, e o outro completamente aterrados, destruídos e ambos tão es-
condidos por debaixo de uma vegetação daninha que ninguém deles
dava fé.
124 Joaquim Manuel de Macedo

Os dois outros também pequenos tanques, de cujo seio nas-


cem as pirâmides, mostravam-se cobertos de verde limo e ofereciam um
aspecto repugnante.
As belas grades de ferro do terraço, carcomidas pela ferru-
gem, davam testemunho da incúria da administração pública, que para
não gastar com elas alguns mil-réis por ano, deixava assim perder muitas
centenas de mil-réis.
A moralidade pública gemia ressentida no interior do jardim.
Perto da pirâmide – Ao Amor do Público – arranjara-se uma
casinha de tábuas e coberta de zinco, onde se vendiam café e sorvetes;
tudo, porém, com uma tal negligência, com exterioridades tão repulsi-
vas, que o café e os sorvetes, em vez de excitar o desejo, provocavam o
enjôo.
E fora do jardim, aos pés e aos lados do terraço, de dia e de
noite, o ar se empestava com exalações pútridas provenientes dos despe-
jos que se faziam.
É triste dizê-lo: tudo isso, porém, é absolutamente a verdade.
E o único desses sinistros sinais de abandono que se podia
apontar como antigo era o abuso inqualificável dos despejos feitos na praia
vizinha do Passeio Público.
Um notável viajante já tinha, em época muito anterior, toma-
do nota dessa triste prova de desmazelo municipal.
M. Abel du Petit Thouars, que saíra de França em dezembro
de 1837 na fragata Vênus, para fazer uma viagem à roda do mundo, che-
gara ao Rio de Janeiro, e visitando o nosso Passeio Público, escrevera
em sua carteira pouco mais ou menos o seguinte:
“O lugar seria delicioso, se na praia contígua não se fizessem
despejos imundos, o que aliás se observa em todas as praias da cida-
de.”29
A Vênus do viajante francês fugiu, de certo, espantada das vi-
zinhanças do nosso Passeio Público. Mas, a nossa câmara municipal,

29 V. Du Petit-Thouars no Rio de Janeiro, Revista Marítima Brasileira de novembro-de-


zembro de 1841 e março-abril de 1941.
Um passeio pela cidade do Rio de Janeiro
12
nem com o espanto da deusa dos 5 amores procurou destruir o abuso re-
pugnante que afeava a mansão das flores.
Em 1859, a imprensa da capital clamou contra o desprezo em
que se achava o Passeio Público, e repetidas vezes procurou despertar a
administração, fazendo-se destarte eco das queixas do povo, como lhe
ordenava o dever do seu ministério.
Em janeiro de 1860, enfim, uma boa e simpática visita arqui-
ducal veio talvez dar motivo a que o governo voltasse os olhos para
aquele estabelecimento público.
S. M. o Imperador honrava, ainda naquela época, com a sua
presença algumas das províncias ao norte do Rio de Janeiro, quando
aportou a esta cidade o arquiduque Maximiliano d’Áustria.
Os fluminenses receberam com alegria o príncipe ilustrado
que já uma outra vez saudara a bela Niterói, visitara curioso o interior do
nosso país, estudara sem prevenções os nossos costumes, e escrevendo
em uma obra recomendável as suas observações, de nós se ocupara
sempre sem azedume, quase sempre com justeza, e algumas vezes com
sinais de estima.
Sem teatros, sem galerias de belas-artes, sem parques, sem
monumentos, sem riquezas artísticas que ocupem por momentos a aten-
ção dos estrangeiros ilustres que chegam à nossa capital, nós os flumi-
nenses apelamos para os tesouros da nossa grandiosa natureza, e enver-
gonhados da miséria das obras dos homens, voltamo-nos para o recurso
que nos oferece a majestade das obras de Deus, e procuramos dirigir os
passos dos nossos hóspedes para os arrabaldes da cidade, onde se en-
contram ainda objetos dignos de admiração no pouco que nos resta do
muito com que a Providência Divina nos dotou.
E assim, nós os fluminenses batíamos palmas de contenta-
mento, quando víamos o príncipe Maximiliano dirigir-se ao alto do Cor-
covado, à Gávea e à Tijuca, e subir ainda o pitoresco morro de Santa
Teresa.
Chegou, porém, um dia em que o príncipe deixou o caminho
das alturas, penetrou no seio da cidade, dirigiu-se pela rua das Marrecas,
e entrando no Passeio Público, foi subir ao terraço, donde poderia apre-
ciar ainda uma vez a magnificência da nossa baía. Mas, ah! Mal tinha o
Planta do Passeio Público, de acordo com o projeto Fialho, de 1860
Um passeio pela cidade do Rio de Janeiro 127

arquiduque avançado quatro passes no recinto da elegante varanda, e já


com ambas as mãos levava o lenço ao nariz!...
O nosso vexame foi tão grande que um brado geral soou, e o
governo não teve remédio senão acordar e olhar para o Passeio Público.
O lenço levado ao nariz pelo príncipe Maximiliano
d’Áustria serviu de motivo a novos clamores da imprensa, e concor-
reu no seu tanto para que se determinasse a regeneração do nosso
jardim público.
O Sr. Conselheiro Ângelo Muniz da Silva Ferraz,30 que fica-
ra na corte encarregado da pasta do Ministério do Império, compreen-
deu que não se podia adiar por mais tempo a satisfação dos desejos do
povo, e convidando para uma entrevista o Sr. Francisco José Fialho,
conseguiu que este cidadão se encarregasse da obra da reforma do
nosso Passeio.
A escolha do Sr. Fialho foi certamente bem aconselhada.
Além de todos os outros dotes que recomendam este nosso patrício,
tem ele dado provas de um gosto apurado e de muito amor pelas be-
las-artes. Em relação ao mister de que se tratava, era já de todos ou pelo
menos de muitos, conhecida a importância e merecimento artístico das
obras do parque ou grande jardim paisagístico, que ele está fazendo exe-
cutar em sua propriedade da rua de Monte Alegre, sob o risco e a dire-
ção do hábil jardineiro francês o Sr. A. Glaziou, parque ou jardim desti-
nado ao recreio público, como são os Mabille, Chateau des fleurs de Paris e
outros das grandes cidades da Europa.
Não tenho conhecimento do contrato feito pelo governo
com o Sr. Fialho; anima-me, porém, a confiança de que este nosso com-
patriota desempenhará cabalmente a tarefa de que se encarregou, e de
que nos dará, com o valioso concurso do excelente jardineiro o Sr. Gla-
ziou, um belo Passeio Público.
Quero dar algumas idéias do que se projeta fazer, e se está
com atividade realizando.

30 Barão de Uruguaiana. Fez parte da comitiva de D. Pedro II que assistiu à tomada


de Uruguaiana.
128 Joaquim Manuel de Macedo

A planta apresentada ao governo, e por este aprovada, repre-


senta um jardim no gênero inglês, hoje admitido em todo o mundo
como o mais natural, o mais livre, e que produz mais agradáveis e com-
pletas ilusões.
O antigo sistema de alamedas em linha reta e de maciços re-
gulares e uniformes é completamente abandonado.
O cordel e o compasso não são consultados. O olhar do ar-
tista e a ciência da botânica são os grandes instrumentos deste traba-
lho. Esse olhar que nivela o terreno, destruindo-lhe as ondulações, que
cria nele claros-escuros, divaga muitas vezes por muito longe dos limi-
tes fixados ao lugar da sua obra; anda procurando perspectivas louçãs
e encantadoras; cobiça os panoramas longínquos, apodera-se deles,
liga-os pela arte ao jardim que deste modo parece muito maior, ilimita-
do mesmo.
O jardineiro-paisagista é rival do paisagista-pintor. Este faz re-
presentar em sua tela de algumas polegadas o aspecto de um terreno
imenso, vastas planícies entrecortadas de rios, alcantilados montes, vales
sombrios, e tudo enfim quanto a natureza criou. Aquele corta, levanta,
cava o terreno entregue à sua perícia, planta e semeia onde convém co-
brir o solo, ou onde é conveniente esconder o triste aspecto dos sítios;
copia em sua obra e obra as obras da criação, aproveita ou improvisa
rios e lagos, montes, outeiros, grutas e bosques; mas em sua cópia tudo
é palpável, tudo tem a sua vida especial, tudo brilha com as próprias fin-
tas da natureza.
Não pensem que estou poetizando: repetida a lição de um
mestre na matéria, e em breve teremos um exemplo deleitoso dessas
idéias na reforma no Passeio Público.
Os três pensamentos que devem apresentar-se dominando
esta obra são a escolha de árvores e plantas formosas e raras; o cuidado
de reunir no limitado recinto do jardim diversos encantos da natureza
reproduzidos embora em ponto pequeno; e enfim, a observância esme-
rada das leis da perspectiva na disposição das árvores, de modo que en-
tre elas os olhos do observador vão espraiar-se ao longo e gozar ainda
muito além dos limites do Passeio os panoramas admiráveis de sítios pi-
torescos que aformoseiam a cidade do Rio de Janeiro.
Um passeio pela cidade do Rio de Janeiro 129

Logo à entrada do jardim, em frente ao portão, se estenderá


um grande tabuleiro de relva semeado de árvores e ornado de um pe-
queno tanque com um repuxo.
Ruas em linhas curvas e de extensões variadas se desenvolve-
rão por todos os lados, e maciços multiplicados, diversos no tamanho e
na forma, darão o encanto da variedade, ostentando ainda grande rique-
za de árvores ora em grupos, ora isoladas.
Ao lado esquerdo ver-se-á sobre um outeiro um quiosque ou
pavilhão rústico, destinado às bandas de música.
Ainda do mesmo lado se mostrará um rochedo artificial, do
alto do qual se precipitará uma torrente d’água que alimentará um rio
tortuoso, que irá formar ao lado direito do jardim um lago com suas
ilhotas habitadas por cisnes.
Não muito longe do rochedo da queda d’água, se lançará
sobre o rio uma ponte rústica, e em frente do outeirinho dos jacarés
de mestre Valentim, uma outra ponte; essa, porém, de mais custoso
trabalho e no estilo Renascença, ou de ferro, e em todo o caso, impo-
nente.
Ao lado direito erguer-se-á um pavilhão imperial.
Algumas estátuas, um lugar de repouso ornado de um rico
vaso de Medicis e de plantas estimadas; uma abóbada vegetal, uma gôn-
dola veneziana no lago, bancas de repouso, tabuleiros de relva, e muitas
outras obras virão recomendar a reforma do nosso Passeio Público.
Muito me alegra ter ainda de acrescentar que o tanque e o ou-
teirinho dos jacarés será conservado tal qual existe. Apenas se arranca-
ram dentre as pedras algumas plantas ruins que ali vegetam inconveni-
entemente. Não sei se foi o governo ou o Sr. Fialho que teve essa boa
idéia e que nos livrou de testemunhar um crime de lesa-arte; sei, porém,
que M. Glaziou, o inteligente e hábil jardineiro, tece os maiores louvores
àquele bem acabado trabalho do nosso Valentim, e especialmente admi-
ra o primoroso grupo dos jacarés.
Os tanques das duas pirâmides terão de ser melhorados; estas,
porém, ficarão intactas e continuarão a mostrar-se como dantes, consa-
gradas Ao amor do público e À saudade do Rio.
130 Joaquim Manuel de Macedo

As obras da reforma do Passeio Público vão sendo executadas:


com diligência e boa vontade, e nas escavações feitas para se reparar o
leito do rio notou-se que, depois de algumas camadas de areia e de bar-
ro, se encontra uma terra cujo aspecto e natureza indicam bem clara-
mente que é o fundo da antiga lagoa do Boqueirão.
Em seu começo os trabalhos de que se incumbiu o Sr. Fialho
provocaram reparos da parte de algumas pessoas que viram com um pe-
sar bem explicável serem derribadas não poucas das antigas árvores do
Passeio Público.
Concebe-se por certo que devia causar uma impressão desa-
gradável o sacrifício de árvores a cuja sombra se descansou tantas vezes
em horas de ardente calma. Compreende-se ainda mais aquela impres-
são dolorosa, quando nos lembramos do nosso clima e de que vivemos
em uma cidade nua de árvores e de jardins públicos.
Mas um exame refletido e a observação do que se está fazen-
do no Passeio Público, devem dissipar os reparos e essa impressão des-
favorável.
Primeiramente, desde que foi aprovada a planta do novo jar-
dim e que se entrou na execução deste, tornou-se inevitável sacrificar al-
guma coisa do que existia, ao sistema que se ia empregar, e parecera a
todos, sem dúvida, preferível antes a perda de um certo número de ár-
vores, aliás de pouco valor, à mutilação do plano do jardim e o abando-
no dos preceitos da perspectiva, que de tão essencial importância se
mostram em obras dessa ordem.
Além disso, cumpre notar que as melhores árvores que se
mostravam no Passeio Público foram respeitadas. De muitas apenas se
cortaram os ramos que amesquinhavam outras mais delicadas e precio-
sas, que à sua sombra não podiam medrar. Algumas ainda nem mereciam
a posição que ocupavam no nosso jardim.
As árvores do Passeio Público cresciam e desenvolviam-se li-
vres de todos os cuidados da arte. Era uma reunião de vegetais-criados
sem educação, sem amor e sem direção e escolha regular. Alguns ou
muitos dos mais possantes atropelavam e asfixiavam outros quase sem-
pre mais estimáveis. Encontram-se plantas e árvores raras, enfermas e
quase mortas, e que hoje se mostram já animadas e cheias de vida.
Um passeio pela cidade do Rio de Janeiro 131

Observe-se especialmente uma palmeira muito preciosa que,


achando-se de um lado abafada por algumas árvores corpulentas e por
uma folhagem densa e cerrada, se revoltou contra essa prepotência ve-
getal e, procurando a luz, que era para ela a vida, dobrou-se toda para o
outro lado, perdeu a posição perpendicular em que naturalmente devia
mostrar-se e, por amor do sol, apresenta-se hoje inclinada como a torre
de Pisa.
Não tenho em mente nem poderia fazer uma descrição com-
pleta do novo jardim que se nos prepara. Quis apenas dar uma idéia da
obra em que se está trabalhando, e contento-me com o que acabo de di-
zer sobre este ponto.
Mas, além dessa grande reforma no interior do jardim, cons-
ta-me ainda que o Governo vai mandar substituir o triste e pesado muro
do Passeio por grades de ferro, que lhe darão muito mais graça, e que
então a rua do Passeio, que tem atualmente 45 palmos de largura, rouba-
rá ao jardim mais 27 palmos e ficará pelo lado deste flanqueada de árvo-
res que estão em muito bom estado.
Não se deve lastimar essa porção de terreno de que tem de
ficar privado o Passeio, pois que com ela se aformoseará a rua que
pela frente lhe corre. Mas por que não há de o Governo pagar ao jar-
dim o espaço que vai dele tirar, quando isso tão fácil e tão convenien-
te parece?
Do canto mais saliente do muro do Passeio até à igreja dos
carmelitas há 25 braças e dois palmos, cujo fundo até ao cais orçará tal-
vez por 50 braças. A reunião desse terreno ao nosso jardim público
pouco dinheiro deveria custar ao Governo e ao Passeio, que, de tão pe-
queno e acanhado, daria mais algumas proporções.
É indisputável que seria um grande erro deixar incompleta a
reforma do Passeio Público por uma consideração de falsa economia de
alguns contos de réis.
Não é somente esse aumento de terreno que deve ser deter-
minado pelo Governo. Há ainda outras despesas que não se podem dis-
pensar.
Por que, por exemplo, hão de ficar no seio do jardim aqueles
dois pavilhões octogonais que não têm nem a elegância nem as condi-
132 Joaquim Manuel de Macedo

ções artísticas necessárias para que se possam achar de harmonia com


os trabalhos que vão ser executados? Não é justo substituí-los por ou-
tros que melhor se recomendem?
Assevera-se que não se tocará no terraço do Passeio. Mas,
neste caso, substituirá aquela grade de ferro enferrujada e arruinada. Era
uma grade excelente e a deixaram perder-se por incúria. Agora, porém,
está tão estragada que necessariamente deve ser substituída.
E aqueles torreões octogonais das extremidades da varanda
ficarão sempre representando um contraste com os dois antigos e qua-
drangulares em que se extremou o Xavier das Conchas? Pois não há aí
algum artista que nos venha provar que se pode fazer alguma coisa na-
quele gênero arquitetônico, e coisa que feche a boca aos velhos e não os
deixe tirar da comparação do seu com o nosso tempo uma conseqüên-
cia que nos obrigue a abaixar os olhos?
As reformas que se fazem por metade, as reformas incomple-
tas foram sempre mancas e defeituosas. É o caso daqueles janotas cari-
catos que se apresentam de casaca nova, calça em estréia e botins rotos
e chapéu velho e amolgado.
Não perca o Governo o ensejo que se oferece para regenerar
completamente o nosso Passeio Público. Desaproveitada, desprezada
esta ocasião, quando se apresentará outra?
E o tempo urge. O Sr. F. J. Fialho declarou que a sua tarefa se
cumprirá a tempo de ser de novo aberto o Passeio Público no dia 2 de
dezembro do corrente ano. A administração pública tem obras a execu-
tar ali por sua conta, e se, como deve, tomar a peito ainda outros traba-
lhos, quais os que acabei de propor, ou há de quanto antes meter mãos à
obra ou deixará trancado o portão do Passeio no dia 2 de dezembro, e o
Sr. Fialho sem poder cumprir a sua palavra por culpa alheia.
Se o Governo se esquecesse, nesse caso, da significação ad-
ministrativa dada a amanhã, a população da capital ficar-lhe-ia agrade-
cida.
Mas...
Observo agora, e infelizmente bem tarde, que tendo começa-
do este passeio em recordações de anos passados, embora próximos,
Sumário

Um passeio pela cidade do Rio de Janeiro 133

acabei-o além dos horizontes que nos separam do futuro, fazendo uma
ligeiríssima história do jardim público que ainda havemos de ter.
Passeei por um jardim que ainda não existe!
Transpus os limites que marquei aos meus passeios: abusei da
paciência dos bons amigos que me acompanharam neles.
Foi um erro, confesso. Estou arrependido, e imponho-me o
castigo de perder o trabalho que tive.
Façam de conta que hoje não houve passeio.

Próxima página
Coleção A frânio Peixoto

~ Cinematógrafo
(Crônicas Cariocas)

Rio d e Janeiro 2009


~ Cinematógrafo 3

INTRODUÇÃO

Uma fita, outra fita, mais outra... Não nos agrada a primeira? Passe-
mos à segunda. Não nos serve a segunda? Para diante então! Há fitas
cômicas, há fitas sérias, há melancólicas, picarescas, fúnebres, alegres –
algumas preparadas por atores notáveis para dar a reprodução ideali-
zada de qualquer fato, outras tomadas nervosamente pelo operador, à
passagem do fato. Umas curtas, outras longas. Podes deixar em meio
uma delas sem receio e procurar a diversão mais além. Talvez encon-
tres gente conhecida que não te fala, o que é um bem. Talvez vejas des-
conhecidos que não te falam mas riem conforme os tomou a máquina,
perpetuando esse sintoma de alegria. Com pouco tens a agregação de
vários fatos, a história do ano, a vida da cidade numa sessão de cine-
matógrafo, documento excelente com a excelente qualidade a mais de
não obrigar a pensar, senão quando o cavalheiro teima mesmo em
querer ter ideias.
Dizem que a sua melhor qualidade essa é. Quem sabe? O pano,
uma sala escura, uma projeção, o operador tocando a manivela e aí te-
mos ruas, miseráveis, políticos, atrizes, loucuras, pagodes, agonias, di-
vórcios, fomes, festas, triunfos, derrotas, um bando de gente, a cidade
inteira, uma torrente humana – que apenas deixa indicados os gestos e
passa leve sem deixar marca, passa sem se deixar penetrar...
– Interessante aquela fita, dizes. E dois minutos depois não te lem-
bras mais.
4 ~ João do Rio

– Viste a fita passada?


– Não, aproveitei-a para beijar a mão daquela senhora que não co-
nheço.
E pronto. Não há mal nenhum no caso. Isto é, no beijo talvez possa
haver porque o beijo tem uma grande importância relativa. Em não
ver a fita é que não. A história fez-se, o fato subsiste, o operador gozou
em compô-lo e talvez outros tivessem reparado. E como nem o Desti-
no, autor dos principais quadros da vida não tem pretensão, como o
operador também não se imagina um ser excepcional, e os que lá estão
a assistir ao perpassar das fitas não se julgam na obrigação de julgar ver
coisas importantes para dar a sua opinião definitiva – dessa despreten-
são geral nasce o grande panorama da vida, fixado pela ilusão, que é a
única verdade resistente no mundo subsolar.
Alguns estetas de atrasada percepção desdenham do cinematógra-
fo. Esses estetas são quase sempre velhos críticos anquilosados cuja
vida se passou a notar defeitos nos que sabem agir e viver. Nenhum
desses homens, graves cidadãos, compreende a superioridade do alivi-
ante progresso d’arte. O cinematógrafo é bem moderno e bem d’ago-
ra. Essa é a sua primeira qualidade. Todos os gêneros de arte per-
dem-se no tempo distante. Todas as ciências têm raízes fundas na ne-
gridão clássica das eras. Não há princípios de boa filosofia que os árias
não tivessem fixado, feição d’arte que o oriente antigo não já tivesse
criado e instrumento de utilidade dos mais modernos que não tivesse
sido descoberto pela China, muitíssimos anos antes de Cristo. A Chi-
na é realmente enervadora nestes assuntos. O cinematógrafo ao con-
trário. É doutro dia, é extramoderno, sendo como é resultado de uma
resultante de um resultado científico moderno.
Ao demais, se a vida é um cinematógrafo colossal, cada homem
tem no crânio um cinematógrafo de que o operador é a imaginação.
~ Cinematógrafo 5

Basta fechar os olhos e as fitas correm no cortical com uma velocidade


inacreditável. Tudo quanto o ser humano realizou não passa de uma
reprodução ampliada da sua própria máquina e das necessidades ins-
tintivas dessa máquina. O cinematógrafo é uma delas.
Ora como os fatos sucedendo-se não se parecem e que ninguém
pode exatamente repetir com a mesma emoção e o mesmo estado
d’alma um ato da existência, o cinematógrafo fica modesta e gloriosa-
mente como o arrolador da vida atual, como a grande história visual
do mundo. Um rolo de cem metros na caixa de um cinematografista
vale cem mil vezes mais que um volume de história – mesmo porque
não tem comentários filosóficos. E isso, porque no fundo o cinemató-
grafo é uma série de novelas e de impressões pessoais do operador à
procura do “bom momento”, é a nota do seu temperamento a esco-
lher o assunto já feito, e a procurar as posições para tomar a fita.
Daí a multidão abandonar tudo pelo cinematógrafo, porque além
dessas qualidades, com ele não se cansa e não se fatiga. Daí, já assusta-
dos, romancistas e dramaturgos a escrever cenários para os cinemató-
grafos. Daí não haver pequena de rampa que não queira ser reproduzida
pelo aparelho. É uma feição científica da arte – arte que o é quando o
querem, arte que declina dessa honra quando meia dúzia de prevenidos
protesta, mas a única que reproduz o polimorfismo integral da vida, e
que não melindra ninguém por não passar de reflexos.
A crônica evoluiu para a cinematografia. Era reflexão e comentário,
o reverso desse sinistro animal de gênero indefinido a que chamam: o
artigo de fundo. Passou a desenho e a caricatura. Ultimamente era fo-
tografia retocada mas sem vida. Com o delírio apressado de todos nós,
é agora cinematográfica – um cinematógrafo de letras, o romance da
vida do operador no labirinto dos fatos, da vida alheia e da fantasia –
mas romance em que o operador é personagem secundário arrastado
6 ~ João do Rio

na torrente dos acontecimentos. Esta é a sua feição, o desdobramento


das fitas, que explicam tudo sem reflexões, e como o século está cansa-
do de pensar, e como a frase verdadeiramente exata da humanidade na
fartura dos casos é o clássico: – já vi! o operador escreve despreocupa-
do, pouco lhe importando que vejam a fita, que a compreendam ou
não, ou que tornem a vê-la.
Segue-se daí que nem a fita se revê, nem a página parecida com a
vida se torna a ler. Supremo consolo! Desagradou ou encantou. Não
houve tempo de reler para notar defeitos – mesmo porque não há
tempo para nada. A grande ideia dos que mudam o aparelho da repro-
dução da vida seria que os espectadores esquecessem o que já disseram
na fita passada para sentir a novidade da próxima. Assim poderiam
contradizer-se sem escândalo – o que é um gozo intelectual superfino,
e parecer sempre novo – o que, apesar de acendrados reclamos, não o
consegue ser agora nem mesmo o velho e decadente Destino...
~ Cinematógrafo 153

O VELHO MERCADO

Acabou de mudar-se ontem a Praça do Mercado. Naquele abafado


e sombrio dia de ontem era um correr de carregadores, carroças e car-
rinhos de mão pelos squares rentes ao Pharoux levando as mercadorias
da velha Praça abandonada para a nova instalação catita do Largo do
Moura, e, ao passo que aí uma vida ainda desnorteada estridulava e en-
chia de ruído o silêncio do sinistro largo, na alegre e bonancheirona
Praça ia uma desolação de abandono, com as casas fechadas e o ar-
rastar de utensílios para o meio das ruas sujas. A mudança! Nada
mais inquietante do que a mudança – porque leva a gente amarrada
essa esperança, essa tortura vaga que é a saudade. Aquela mudança era,
entretanto, maior do que todas, era uma operação da cirurgia urbana,
era para modificar inteiramente o Rio de outrora, a mobilização do
próprio estômago da cidade para outro local. Que nos resta mais do ve-
lho Rio antigo, tão curioso e tão característico? Uma cidade moder-
na é como todas as cidades modernas. O progresso, a higiene, o con-
fortável nivelam almas, gostos, costumes, a civilização é a igualdade
num certo poste, que de comum acordo se julga admirável, e, assim
como as damas ocidentais usam os mesmos chapéus, os mesmos te-
cidos, o mesmo andar, assim como dois homens bem vestidos hão de
fatalmente ter o mesmo feitio da gola do casaco e do chapéu, todas
as cidades modernas têm avenidas largas, squares, mercados e palácios
de ferro, vidro e cerâmica. As cidades que não são civilizadas são exó-
154 ~ João do Rio

ticas, mas quão mais agradáveis. Não há avenidas, há outras coisas e


quem vinha ao Rio gozava o interesse de uma cidade diferente das ou-
tras e tão curiosa no seu feitio, como é Toledo na sua maneira, como é
o Porto, como o são algumas cidades da Itália, onde ainda não entrou
o progresso, que estende logo um cais, destrói 20 ruas e solta sobre as
ruínas um automóvel.
O Rio, cidade nova – a única talvez no mundo – cheia de tradições,
foi-se delas despojando com indiferença. De súbito, da noite para o
dia, compreendeu que era preciso ser tal qual Buenos Aires, que é o es-
forço despedaçante de ser Paris, e ruíram casas e estalaram igrejas, e
desapareceram ruas e até ao mar se pôs barreiras. Desse descombro
surgiu a urbs conforme a civilização, como ao carioca bem carioca, sur-
gia da cabeça aos pés o reflexo cinematográfico do homem das outras
cidades. Foi como nas mágicas, quando há mutação para a apoteose.
Vamos tomar café? Oh! filho, não é civilizado! Vamos antes ao chá! E
tal qual o homem, a cidade desdobrou avenidas, adaptou nomes es-
trangeiros, comeu à francesa, viveu à francesa.
Só a Praça do Mercado ainda resistia. A Praça! Essa velha bona-
cheirona que era o Ventre do Rio, levara a escolher o seu local muitos
séculos. Em mil seiscentos e sessenta e tantos, a Rua da Quitanda, era
da Quitanda Velha, porque lá se instalara a Praça. Pouco depois a Rua
da Alfândega era da Quitanda do Marisco, porque lá a Praça tentara o
mercado. E nos tempos do Brasil colônia, a Praça, já se aproximando
do seu lugar, ficava por trás da Câmara e incomodava nos seus palá-
cios os vice-reis, porque desprendia muito mau cheiro.
Só em 1836 é que ela se abeirou do cais Pharoux e lá fixou as pri-
meiras estacas das primitivas cabanas. Não há um século ainda.
Alguns dos homens que a viram assim começar ainda vivem. Mas esses
70 anos bastaram para fazê-la um símbolo, na sua força, na sua origi-
~ Cinematógrafo 155

nalidade, no espírito de coesão e na vida própria dos seus habitantes.


O local fora durante muito tempo motivo de discussão de proprieda-
de, mas a gente de lá sempre viveu como numa praça sua, no forte do
estômago, organizando festas, batendo-se contra a polícia, incendian-
do-se, continuando.
Quem não sentiu a influência da Praça, quem não palpou aquela
pletora de vida? Na Praça havia a abundância, a riqueza, a miséria e a
vagabundagem. Ao lado de rapazolas que mourejavam desde pela ma-
drugada entre montanhas de vegetais e ruínas sangrentas de carne, ras-
tejando por entre as fortunas feitas às braçadas no desencaixotar das
cebolas e dos alhos, viviam e morriam com fome garotos esquálidos,
vagabundos estranhos, toda a vasa do crime, do horror da prostitui-
ção, bem idêntica à vasa cheia de detritos da velha doca e da rampa.
Noite e dia aquela gente, que tinha um calão próprio e vivia separada
da cidade, labutava, e era uma sensação esquisita sentir-lhe os vários
aspectos...
Oh! os aspectos da Praça! Seria preciso pertencer a todas as clas-
ses sociais para apreendê-los e enfeixá-los. Às primeiras horas da no-
ite, quando ainda há no céu alguma luz deixada pelo sol, as casas de
pasto com a crua iluminação do gás, os botequins baratos, as casas
de louças, as barracas de frutas e de aves, as bancas de peixe, os açou-
gues, a praça dos legumes cheia de montanhas vegetais – passavam
por uma crise de nervos. Eram os donos das faluas, eram carregado-
res, catraieiros, garotos, gente de hotéis, homens das bancas de peixe,
suando, gesticulando, gritando. Na rampa desciam por pranchas ti-
pos hercúleos carregando caixões, os caixões passavam para outras
cabeças e havia, ininterrupta, uma corrente viva de trabalho exausti-
vo, enquanto pelas bodegas comiam outros em mangas de camisa,
mas calmos e já prósperos, ou de camisa de meia, suando e saudáveis,
156 ~ João do Rio

entre o farisaísmo dos ciganos à cata de coisas grátis e o bando de


malandros parasitas, desde o garoto do recado ao mendigo falso.
Depois tudo era sombra, escuridão, obscuridade complacente e
uma atmosfera feita de relentos de cozinha, do cheiro das aves, da ma-
resia da vasa, dos animais, das couves em montanhas, toda uma or-
questração impalpável de cheiros afrodisíacos, espalhando uma vaga,
indizível luxúria. Homens que nunca sentiram o mal de viver, nem o
mal, moral da dúvida, nem a dor física, dormiam quase nus nos parale-
lepípedos, sobre as soleiras das portas, e não havia canto escuso em
que não se encontrasse uma criatura a roncar – ou gente de labuta, ou
gente parasita. Na sombra, indecisamente sombras delineavam-se e na
atmosfera pesada de tantos cheiros um rumor sutil, feito de mil rumo-
res de suspiros, de roncos, de pios, de grunhidos, excitava ainda mais.
À meia-noite, porém, começavam a chegar os vendedores, as carro-
ças de verduras das hortas distantes e as faluas pesadas do outro lado
da baía.
Os proprietários, os compradores caminhavam sempre com um
pauzinho na mão, à guisa de bengala; os outros, carroceiros, deixavam
a carroça e recostavam a dormir mais um pouco. E o trabalho começa-
va da descarga da quitanda, ligava-se das faluas para a rampa outra
corrente humana, na alegria dos homens. – Eh, José, eu já carreguei
três! – A apostar como eu levo mais! – Duvido! E em cada uma, en-
quanto o chefe dirigia a colocação por ordem, os cestos de tomates
com os cestos de tomates, os molhos de salsas com os molhos de sal-
sas, sempre havia o “espirituoso” encarregado de dizer graça, ou o pe-
queno vagabundo que às vezes trabalha mais que os outros para matar
o tempo.
Ia a madrugada em fora, e à luz das estrelas ou sob a chuva a cena se
repetia. A um certo momento, os vendedores de peixe e de ostras
~ Cinematógrafo 157

aquartelavam com as latas enferrujadas e os cestos, acendendo cotos


de velas a iluminar em derredor. Defronte sempre abria uma casa de
pasto. Era a hora em que bordejavam bêbedos, à espera de bote, as
blusas vermelhas dos fuzileiros navais, era a hora em que apareciam os
seresteiros para tomar vinho branco e comer ostras, era a hora em que,
à saída dos bailes carnavalescos, paravam tipoias transbordantes de
mulheres alegres e de rapazes divertidos para o fim da orgia.
– Vamos comer ostras ao mercado?
Quem não teve esta pergunta lamentável uma vez na sua vida?
Quando, porém, os retardatários davam por si, já no céu se fizera a
transfusão da luz e era a aurora que abria sobre o mar e sobre as coisas
como uma grande casa, a renovação da vida. E tudo parecia acordar,
fervilhar, brilhar: aves, animais, escamas de peixes, latas, pratos, ho-
mens, pássaros, numa grita infrene, que tinha da Arca de Noé e de
uma aluvião de leilões. Apagando os mendigos, apagando os garotos,
apagando o sono misterioso, entrava a grande massa dos comprado-
res, saíam as levas dos vendedores ambulantes, todos na grande agita-
ção que dá a compra da vida, enquanto homens saudáveis brandiam
machados em cepos sangrentos, montes de verdura desapareciam em
cabazes, peixes rolavam, cães ladravam, aves cacarejavam e, dourando
tudo, alindando tudo, o sol cobria a ruína sórdida das barracas, envol-
via as faluas e a sujeira da doca, arrastava pelo mar a rede de lhama de
ouro da sua luz.
E era assim até ao meio-dia em que sempre havia tempo para uma
palestra e um descanso em todos os múltiplos ramos dessa babel do
estômago.
Quantas vidas se passaram ali, sem outro desejo, naquela apoteose
da abundância que fechava o apetite e devia dar saúde? Quantas lutas,
quantas intriguinhas, quantas discussões, quantos combates, porque a
158 ~ João do Rio

gente da praça sempre foi valente? Quantos limitaram as festas aos co-
retos da Lapa, com ornamentações, leilões de prendas e outros brincos
primitivos? Quantos tiveram aqueles quatro portões como os portões
de uma cidadela que não se sentia?...
Com essas tristes reflexões deixei o novo Mercado pela velha e
amada Praça. Havia, como eu, muito cavalheiro discreto a armazenar
na retina pela última vez a topografia do Mercado. E o mercado era
desolador. O quadrilátero onde paravam as carroças de verdura estava
deserto. A parte central, onde havia bancas de peixe, frutas, casas de
cebolas e de louças também deserta e junto ao chafariz seco um solda-
do de ar triste. Pelas ruas estreitas, uma ou outra casa ainda aberta a
carregar os utensílios para o novo edifício, onde ninguém dorme e às
dez horas fecha. No mais, portas batidas, portões de grade mostrando
a ruína vasta das paredes e o anseio interminável de mudança. Paramos
enfim na rampa. Alguns homens conversavam em mangas de camisa.
Para eles era impossível deixar de aproveitar a rampa. Mas a doca es-
tava quase vazia. Só, amarrada a um dos grossos e gastos argolões de
ferro, uma falua balouçava. Era a última. Dali a minutos ela partiria,
deixando abandonada a velha bonacheirona antiga, cuja história já ti-
nha da legenda. Era a derradeira. A atmosfera estava carregada. E além
da falua tão cansada e triste, arabescando o horizonte de treva, um
bando de corvos em círculos concêntricos alastrava um pedaço do céu.
~ Cinematógrafo 159
Material Suplementar
Três tradutores de poesia no Brasil do século XIX

Três tradutores de poesia no Brasil do século XIX

Marcus Rogério Salgado


Universidade Federal do Rio de Janeiro

Resumo: O objetivo do presente artigo é um estudo de corte historiográfico sobre três tradutores de poesia
brasileiros atuantes no século XIX: Odorico Mendes, João Cardoso de Menezes e Sousa e Francisco Otaviano.
Os três, além de poetas, também foram ativos tradutores e acabaram por partilhar de mesma fortuna crítica,
que os fixou em uma posição microscópica, a despeito da circulação de suas obras tradutórias. Nos três casos,
a tradução de poesia encampa um projeto romântico de atuação no campo estético, pelo qual se revelam
informações sobre a vida literária e, por conseguinte, a vida social brasileira do período, em seus hábitos de
leitura e no processo de formação do tradutor de poesia no Brasil oitocentista.
Palavras-chave: Tradução; poesia; literatura brasileira

th
Abstract: This article presents a study focused on three poetry translators very active in Brazil along the 19
century: Odorico Mendes, João Cardoso de Menezes e Sousa and Francisco Otaviano. All of them were not only
translators, but also poets – even if despite their translatory efforts they display such a microscopical position
in historiographical terms. Their works as translators encapsulate a whole romantic program of acting on the
th
aesthetical field and also unveil important aspects of Brazilian literary and social life back in the 19 century,
particularly on its habits of reading and on the process of breeding up the role of poetry translator in Brazil.
Keywords: Translation; poetry; Brazilian literature

, 9, 06/2017: 217-242 – ISSN 2182-8954 | http://dx.doi.org/10.21747/21828954/ely9a14 217


Três tradutores de poesia no Brasil do século XIX

1. O legendário Odorico Mendes e a Escola do Maranhão


No século XIX, o Maranhão produziu uma linhagem de tradutores de poesia
marcados pela laboriosidade estética, cuja importância histórica não se pode ignorar quando
o assunto é a tradução poética naquele século.
A começar por Gonçalves Dias, que deixou alguns resultados de sua atividade
tradutória, dos quais mais se destaca, sem dúvida, a peça Noiva de Messina, de Schiller.
Segundo Antônio Henriques Leal, autor do Pantheon maranhense e organizador das Obras
póstumas do poeta conterrâneo, “esta tradução, começada no Ceará, continuada aqui [São
Luiz], e nas viagens pelo Amazonas, e terminada nas águas do Mediterrâneo, era a filha
mimosa do poeta” (Leal 1873: 9). Por sua correspondência ativa ficamos sabendo que o
poeta brasileiro trabalhou na tradução também em sua estadia na Alemanha no final da
década de 1850. Ao que tudo indica, a passagem por aquele país reforçou em Dias seu afã
de traduzir, como se depreende do fragmento de uma carta endereçada ao Barão de
Capanema, onde dá notícia de que, no outro lado do Atlântico, “traduzo uma meia dúzia de
poesias alemãs, de mistura com outras de outras línguas” (Dias 1964: 264). Edições
posteriores dessa tradução foram reforçadas por notas preparadas por ninguém menos que
Manuel Bandeira.
Essa não foi a única tradução realizada por Gonçalves Dias. Além de um breve poema
de Heine, o poeta também propôs sua versão em língua portuguesa para uma canção que
surge numa passagem do romance Bug-Jargal, de Victor Hugo, publicada em 1846 no
periódico maranhense O Archivo – onde também encontramos trabalhos de outros
tradutores locais, como Antônio Frederico Collin. Curiosamente, a ideia de trazer para a
forma poética um trecho do romance de Hugo seria seguida por Castro Alves, que também
perpetrou seu “Canto de Bug-Jargal”.
Além disso, pouco antes de falecer Gonçalves Dias ocupava-se com a organização de
Ecos d´além-mar, um projeto em vários volumes reunindo poesia estrangeira traduzida para
o português por autores brasileiros – como as traduções de Odorico Mendes e de Pinheiro
Guimarães. Além de A noiva de Messina, ali acham-se as traduções de Gonçalves Dias para
os pré-românticos e românticos alemães (Herder, Uhland), quatro poemas de Heine, um

, 9, 06/2017: 217-242 – ISSN 2182-8954 | http://dx.doi.org/10.21747/21828954/ely9a14 218


Marcus Rogério Salgado

poema de Victor Hugo e ainda poemas das literaturas espanhola (Lope de Vega) e italiana
(Dante, Rolli).
Curiosamente, a edição de Ecos d´além-mar preparada por A. H. Leal se encerra com
um apêndice no qual se leem traduções de Victor Hugo realizadas por Trajano Galvão de
Carvalho. Hoje soterrado pela poeira do tempo, esse tradutor foi um dos primeiros a
tematizar, nas letras românticas brasileiras do oitocentos, a figura do africano escravizado –
como se percebe nos poemas “Nuranjan”, “A crioula” e “O calhambola” –, sendo possível
incluir seu nome no rol dos pioneiros da poesia de dicção abolicionista. No alentado estudo
conduzido por Mucio Teixeira sobre a poesia de Victor Hugo traduzida por poetas brasileiros,
encontramos um exemplar de Trajano Galvão, que também ostenta em sua lavra traduções
para poemas de Alfred de Vigny.
Outros importantes tradutores vindos do Maranhão foram Joaquim Serra, Gentil
Homem de Almeida Braga e Manoel Benício Fontenelle.
Joaquim Serra foi uma figura bastante ativa no cenário intelectual do Segundo
Reinado. Deixou, no entanto, pequena obra literária, sobre a qual registam-se poucos
estudos, entre os quais merece menção o que lhe dedica Vagner Camilo, em número recente
da revista Teresa. Em seus livros de poesia verificam-se desde poemas obedientes à estética
romântica com ênfase na cor local (como a série “Sertanejas”) até “um escabroso poema
herói-cômico intitulado Os Garanhões” (Machado 2010: 188), abusadamente dedicado ao
Conde d´Eu e à Princesa Isabel. Abolicionista, foi homem de jornal, onde atuou durante
décadas, fundando e dirigindo periódicos, entre os quais o Semanário Maranhense, onde
Sousândrade publicou fragmentos de seu Guesa Errante. Serra participou da composição do
mítico A casca da caneleira (steeple-chase), romance escrito grupalmente por Antônio
Marques Rodrigues, Gentil Homem de Almeida Braga, Raimundo Filgueiras, Trajano Galvão
de Carvalho, Francisco Sotero dos Reis, A. H. Leal, Francisco Dias Carneiro, F. G. Sabbas da
Costa, Caetano C. Cantanhede e Sousândrade. Um de seus livros de poesia, Quadros, é
constituído por poemas autorais aos quais se misturam traduções. Publicou, em 1865,
Mosaicos, volume completamente dedicado às traduções. Nele encontramos as traduções
habituais do romantismo (Victor Hugo, Byron e Lamartine) em companhia de poemas de
autores latino-americanos, porquanto fosse grande seu interesse pelas literaturas do sul do

, 9, 06/2017: 217-242 – ISSN 2182-8954 | http://dx.doi.org/10.21747/21828954/ely9a14 219


Três tradutores de poesia no Brasil do século XIX

continente. As cartas que José de Alencar escreveu endereçadas a Serra seriam reunidas
numa série de artigos intitulada “O Nosso Cancioneiro”, de suma importância para se
compreender as concepções alencarianas da língua e do estilo.
Gentil Homem de Almeida Braga era muito estimado por Sílvio Romero, que o
considerava exímio tradutor. Traduziu Byron e também participou de A casca da caneleira.
Já publicara anteriormente o livro Três liras em conjunto com Trajano Galvão e Marques
Rodrigues, ao qual se seguiriam, ainda na poesia, Clara Verbena e Sonidos. Quatro poemas
seus são reunidos no Parnaso maranhense, entre os quais “O salgueiro de Santa Helena”,
tradução de poema de Joseph Méry que marcou a linhagem napoleônica da poesia
romântica brasileira (presente desde o berço, diga-se, já em Gonçalves de Magalhães). Como
Serra e Braga, além de poeta Manoel Benício Fontenelle foi também ativo tradutor de
poesia, trazendo para o português considerável quantidade de poemas de autores europeus
vinculados ao romantismo, sobretudo Victor Hugo, além de Byron, Musset e Marceline
Desbordes-Valmore.
A tradição dessa Escola do Maranhão seguiria com Raimundo Correia. Além dos seis
poemas escolhidos para o volume Hugonianas de Mucio Teixeira, de Victor Hugo traduziu
também o longo “Epopeia do leão”, cuja versão se encontra em Aleluias, e peças menores,
como “O amor”, em Primeiros sonhos. Correia reuniu parte de suas traduções em Versos e
versões (1887), onde encontram-se poemas não apenas dos românticos (Byron, Victor Hugo,
Alphonse Karr, Heine), como também dos parnasianos (Théophile Gautier, Coppée, Heredia,
Leconte de Lisle) e dos decadentistas (Rollinat, Richepin).
Mas, dentre os tradutores maranhenses, nenhum supera em legenda o nome de
Odorico Mendes.
Nascido em São Luís e falecido em Londres – onde viveu quase duas décadas –, foi
poeta (comparece já no Parnaso Brasileiro, de Pereira da Silva, com dois poemas longos,
entre os quais uma versão de seu mais conhecido “Hino à tarde”, uma série de odes e um
soneto), deputado, publicista e membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, mas
acabou conhecido pela posteridade por suas traduções da Ilíada, da Odisseia e da Eneida.

, 9, 06/2017: 217-242 – ISSN 2182-8954 | http://dx.doi.org/10.21747/21828954/ely9a14 221


Marcus Rogério Salgado

Seus confrades, conterrâneos e contemporâneos Antônio Henriques Leal e Francisco


Sotero dos Reis (tradutor de Racine) a ele se referem de forma encomiástica no Pantheon
Maranhense e no Curso de literatura portuguesa e brasileira, respectivamente.
Odorico Mendes é a personalidade que abre o Pantheon Maranhense – e não por
acaso: A. H. Leal o considerava “entre nós o iniciador do bom gosto literário e do esmerado
cultivo da vernaculidade e das letras clássicas” (Leal 1873: 3). A maior parte do texto de Leal
dá conta de aspectos biográficos de Mendes, ressaltando e exaltando, quase sempre, seu
envolvimento político com questões de primeira hora. No meio das informações relativas a
sua participação nos quadros políticos dos governos de Pedro I e Pedro II, bem como da
Regência, ficamos sabendo que Odorico, “no intervalo da primeira sessão de legislatura de
1826 a 1829, foi para São Paulo com Costa Carvalho, e aí estabeleceram, às expensas deste,
a primeira tipografia que houve na província” (idem: 24), onde, em virtude das dificuldades
de se conseguir mão de obra qualificada, o próprio Odorico se improvisou de ajudante de
tipógrafo.
Ainda no Pantheon maranhense, a obra de Odorico como poeta é elogiada,
sobretudo “Hino à tarde”. Hoje pouco referida, à época sua obra contava, de fato, com o
aludido poema como uma espécie de pedra de toque das letras locais. Veja-se que na revista
Ensaios litterarios, publicação acadêmica ligada à recepção e circulação do movimento
romântico em São Paulo, publicar-se-ia um artigo assinado por “Silva Guimarães”, em que a
obra poética de Odorico Mendes é objeto de um esforço sério de compreensão crítica e o
“Hino à tarde” considerado como “um dos mais encantadores pedaços que tem produzido a
musa brasileira” (Guimarães 1849: 12). Do mesmo poema, Henriques Leal ressalta “a
melancólica imagem da pátria ausente” (Leal 1873: 44) – tópica muito cara aos românticos,
como se sabe, mas cantada pelo maranhense de forma “cândida e plácida” (Ibidem), sem
excessos ou desordem na expressão. Esse ecletismo (em que os temas românticos são
processados por uma forma expressional de corte neoclássico em sua contenção) é
reforçado por um relato de Araújo Porto-Alegre colacionado à biografia de Odorico
desenhada por Leal, no qual o autor de Colombo expõe as preferências literárias do
maranhense, que iam dos clássicos aos românticos, uma vez que, de par com Homero,

, 9, 06/2017: 217-242 – ISSN 2182-8954 | http://dx.doi.org/10.21747/21828954/ely9a14 220


Três tradutores de poesia no Brasil do século XIX

“amava sobretudo Madame de Stael, Bernardin de Saint-Pierre, Chateaubriand e Lamartine”


(idem: 72).
No final da década de 1840, retirou-se, por fim, à Europa, morando primeiramente na
França e depois na Itália, vindo a falecer em Londres, nos preparativos para o retorno do
exílio. Na França, encontrou um grupo de intelectuais e diplomatas brasileiros expatriados,
entre os quais Caetano Lopes de Moura (médico e tradutor), Joaquim Caetano da Silva
(professor e diplomata), Paulo Barbosa (mordomo de Pedro I) e Menezes de Drummond
(diplomata). Foi dos prelos franceses de Rignoux que veio à luz a primeira edição de sua
tradução da Eneida e, pouco depois, da tipografia de Ranquet seu Virgílio brasileiro. Na Itália
traduziu a Ilíada e deu início à tradução da Odisseia, que concluiu em Paris.
Ao tradutor, Leal elogia o rigor manifesto na opção pela edição bilíngue dos textos e
nas copiosas notas explicativas apenas ao corpo da tradução, nas quais se enxergava a olho
nu “os conhecimentos do nosso poeta em filologia, arqueologia e literatura” (idem: 51).
Depois, reúne uma série de opiniões sobre as traduções de Odorico, quase todas ressaltando
a fidelidade das mesmas ao número de versos do original, qualidade muito valorizada, sendo
conhecida à época por concisão – ou seja: a capacidade do tradutor em não extrapolar o
número de versos em sua tradução, o que era particularmente difícil ao traduzir-se idiomas
como o grego, o latim ou mesmo o inglês. Os neologismos, pelos quais sua obra tradutória
seria depois rechaçada por Silvio Romero e Antonio Candido, em sua época eram
considerados objeto de defesa, pois, de acordo com o parecer do classicista português
António Cardoso Borges de Figueiredo reproduzido por Leal, equivoca-se quem pede ao
tradutor maranhense que seja mais sóbrio nesse quesito, já que “só nos Lusíadas, Camões
introduzira duzentas palavras latinas, e que depois dele em todas as eras quase todos os
bons poetas as foram inovando” (apud Leal 1873: 81). Para Borges de Figueiredo, os
neologismos cumpriam uma função estrutural no trabalho mimético intentado por Odorico,
por verdadeira necessidade, sendo que “só por aquela arte podia guardar a precisão, que
tão justamente ama, e copiar a justeza das ideias e força dos pensamentos de seu protótipo”
(Ibidem). A. H. Leal chega mesmo a desenhar, em traços muito rápidos, os dois partidos
tradutórios possíveis no entendimento da época, sintetizados pelas posições distintas que se
pressupõem nas traduções do Visconde de Castilho e nas de Odorico. Às primeiras, entende-

, 9, 06/2017: 217-242 – ISSN 2182-8954 | http://dx.doi.org/10.21747/21828954/ely9a14 222


Marcus Rogério Salgado

-as antes como paráfrase, definida como a situação em que o tradutor “apropria-se das
ideias” (Leal 1873: 90) do original (concebidas como um lugar composto pelo campo
semântico e por aquilo que na época se chamava motivação, a que poderíamos chamar de
intencionalidade, seguindo o vocabulário da teoria da literatura consolidado no século XX) e
apresenta um poema em padrão métrico e/ou estilo que não os do original. As segundas,
seriam coordenadas por notável rigor, sobretudo na escolha por uma perseguição verso a
verso com o original, valorizando, portanto, a concisão, qualidade anteriormente explicada.
É certo que o Pantheon é obra resultante de uma estratégia de elogio mútuo, e,
como tal, empenha-se por imortalizar o autor e ligá-lo indissociavelmente a um contexto
local, fixando-o “no espaço simbólico do panteão maranhense caracterizado como Athenas
Brasileira, cujos elementos de ritualização, reuniu princípios de idealização clássica da
civilização ocidental, acrescido dos exageros do romantismo nacional” (Borralho 2009: 5). No
entanto, afigura-se, desde sempre, como “o resultado de um perfil dessa elite corroborando
para a construção de uma cultura oficial brasileira no plano local” (Ibidem). Ademais, a figura
do tradutor-arqueólogo – sinalizada por Henriques Leal e confirmada por Joaquim Manuel
de Macedo, para quem Odorico, com suas traduções, “elevou-se a avantajado arqueólogo”
(apud Leal 1873: 85) – é precisa para se aplicar a Odorico Mendes.
O erudito maranhense Francisco Sotero dos Reis – primo da escritora Maria Firmina
dos Reis e ele próprio tradutor de Racine – elogia a formação de Odorico: “versadíssimo em
todo o gênero de literatura antiga e moderna, profundo no conhecimento das línguas, de
erudição inesgotável, e o poeta pela ventura mais sabedor de nosso idioma” (Reis 1868:
297). Vê-se aí traçado o perfil do tradutor ideal que o período ansiava, com fôlego e
performance nos campos literário, linguístico, filológico e poético, capacitado a exercer uma
espécie de arqueologia poética.
Quando Sotero dos Reis escreveu seu Curso, as traduções de Homero ainda estavam
inéditas, embora já falecido Mendes, sendo suas páginas sobre o conterrâneo prova de que
procurou concorrer decisivamente para a sobrevivência de seu nome. É nesse diapasão que
Sotero dos Reis destaca a fidelidade das traduções de Odorico Mendes, fidelidade que, para
si, deve ser considerada como sinônima à concisão – é preciso lembrar que os tradutores do
período não raramente aumentavam o número de versos em suas versões, sem falar em

, 9, 06/2017: 217-242 – ISSN 2182-8954 | http://dx.doi.org/10.21747/21828954/ely9a14 223


Três tradutores de poesia no Brasil do século XIX

toda a sorte de liberdades que eram tomadas em relação ao original – isso no plano
exclusivo da crítica textual, sem sequer entrarmos no mérito das transposições semânticas
ou imagéticas. Como explica sobre a tradução da Eneida o autor do Curso, “os versos
portugueses em que é feita igualam quase em número aos hexâmetros latinos: o que é um
verdadeiro milagre de concisão, porque os segundos são, como se sabe, maiores que os
primeiros” (idem: 302). Reconhece, ainda, a capacidade de Mendes transpor a imagética e
os efeitos fônicos do texto original: “são as suas mesmas figuras, as suas mesmas imagens, a
sua mesma poesia onomatopaica, até com as mesmas pausas nos versos” (idem: 303). No
entanto, não há uma palavra (de elogio ou repúdio) às invenções verbais pelas quais as
traduções de Odorico Mendes se fariam conhecidas posteriormente – com exceção do
hábito da elipse, que, segundo Sotero dos Reis, fazia com que Mendes “alatinasse o
português” (idem: 307). Chega até mesmo a escolher dois fragmentos para comentar que
estão totalmente normalizados quanto ao léxico, sem destacar qualquer ocorrência
aberrante.
Está ainda Sotero dos Reis atento ao fato de que, embora indissociavelmente ligado à
transmissão do classicismo no Brasil, enquanto poeta Odorico Mendes também se
expressava em dicção romântica, uma vez que detecta “ressaibos românticos” (idem: 298)
em sua lírica. Em abono disso, refere-se a Gonçalves Dias, que, segundo Sotero dos Reis,
sobre Odorico Mendes “dizia que metrificava como um rei em poesia” (idem: 301).
É certo que sua tradução para a Eneida gerou polêmica na época. Um dos primeiros a
discutir questões ligadas ao trabalho tradutório de Odorico foi seu conterrâneo, Frederico
José Correia, que, em Livro de Crítica, propõe reparos à Eneida Brasileira, chamando para o
deslinde da questão dois latinistas respeitados como autoridades, a saber: José Feliciano de
Castilho e António de Castro Lopes. Numa edição de 1880, a Revista Brasileira publicava um
estudo sobre a polêmica, intitulado “Interpretações de um verso da Eneida”, em que se
reproduziram os dois pareceres. Inicialmente o de Castilho, que, embora discorde do que
chama de miragens (apud Correia 1880: 134) na tradução do maranhense, não deixa de
reconhecê-lo como “espírito de ordem superior e cultor dos dois idiomas” (Ibidem). O
parecer de Castilho tornar-se-ia importante para quem rastreia os partidos tradutórios do
século XIX, pois, ao longo do mesmo, o erudito português traça os problemas teóricos

, 9, 06/2017: 217-242 – ISSN 2182-8954 | http://dx.doi.org/10.21747/21828954/ely9a14 224


Marcus Rogério Salgado

implicados na tradução de obras do latim para as línguas modernas. O parecer de Castro


Lopes segue na mesma direção, reconhecendo as qualidades de erudição apresentadas por
Odorico Mendes, mas ataca de forma veemente os pressupostos teóricos que norteiam a
tradução do maranhense, acusando-o de “querer a todo transe meter a Sé na Misericórdia,
tentando o impossível de dar todo o pensamento de um verso latino em um verso
endecassílabo português” (idem: 153). Além da atenção dispensada pelos dois eruditos, a
polêmica demonstra como suas traduções, independentemente da avaliação final a elas
destinada, eram recepcionadas com seriedade e geravam algum impacto nos meios
literários em que o trabalho tradutório era objeto de estudo e de gratulação.
Na História da literatura brasileira, José Veríssimo o estuda, juntamente com João
Francisco Lisboa e Sotero dos Reis, precedidos por Gonçalves Dias, num capítulo dedicado ao
que chama de grupo maranhense. Antes de mais nada, Veríssimo nos adverte estarmos
diante daquele que talvez tenha sido “o mais acabado humanista que já tivemos” (Veríssimo
1969: 173), por conta de sua densa erudição filológica, linguística e literária. Ressalta em
Odorico Mendes a existência de “estro poético original, se bem que escasso” (Ibidem),
destacando-lhe exclusivamente o poema “Hino à Tarde” (1844), cuja importância residiria no
fato de que “mesclam-se nesta composição o clássico e o romântico, uma inspiração ainda
arcádica e europeia e sentimentos brasileiros e estilo moderno” (idem: 174). Para Veríssimo,
o “Hino à Tarde” era “um dos melhores produtos poéticos do tempo” (Ibidem, pois, parece-
-lhe, “porventura prenuncia Gonçalves Dias pelo tom sentimental do seu lirismo mais
subjetivo que o de Magalhães” (Ibidem). Poeta original, portanto, mas de um poema só. Os
elogios são mais profusos para o Odorico tradutor, de quem destaca as soluções carregadas
“em beleza e vigor de expressão” (idem: 173) – os quais, como dito antes, seriam qualidades
escassas no Odorico poeta.
Não recebeu o mesmo tratamento por parte de Sílvio Romero, que desqualificou
suas traduções como supostamente vazadas em português macarrônico. Romero finalizou a
questão para si, ao definir a obra tradutória de Odorico, parodiando o poeta-tradutor:
“multimamante, olhicerúlea, albinitente” (apud Candido 2009: 212).
Haroldo Paranhos, na História do Romantismo brasileiro, reconhece que em Odorico
as traduções “não são simples paráfrases” (Paranhos 1937: 443) e enaltece no trabalho do

, 9, 06/2017: 217-242 – ISSN 2182-8954 | http://dx.doi.org/10.21747/21828954/ely9a14 225


Três tradutores de poesia no Brasil do século XIX

maranhense a combinação rara de conhecimento de literatura, erudição sólida e domínio do


aparato filológico, elementos que, em sua opinião, “permitiram-lhe fazer uma obra que,
embora não seja isenta de imperfeições, foi a melhor que se fez em nossas letras no gênero
ingrato das traduções” (Paranhos 1937: 443).
Na Formação da literatura brasileira, Antonio Candido dedica algumas entradas a
Odorico Mendes. Estuda a criação conspícua de neologismos com a concepção prévia de que
trata-se de procedimento estético de mau gosto, portanto condenável. Em fim de contas,
para Candido as traduções de Homero e Virgílio são “um ápice de tolice” (Candido 2009:
394) e não passam de “pedantismo arqueológico” (idem: 271), quando não mecanismo de
compensação característico de um certo escapismo ideológico.
Mas Odorico Mendes só saiu mesmo do purgatório com a revisão crítica proposta por
Haroldo de Campos, a ele se referindo nos mais altos termos em “Da Tradução como Criação
e como Crítica”, datado de 1962. Haroldo voltou a Odorico Mendes em 1967, quando
publicou “A palavra vermelha de Hölderlin”, onde aproxima as traduções do maranhense às
transposições sofoclianas do poeta alemão, igualmente depreciadas como produtos
burlescos. Elogiou, sempre, o enfoque de Mendes à tradução, manifestado até mesmo nas
notas teóricas que esparramou ao longo de seus trabalhos. Na apresentação que preparou
para a reedição da Odisseia, não vacila em situar Mendes como patriarca da transcriação, já
que para Haroldo interessavam de sobremaneira as operações linguísticas (nos planos lexical
e sintático) esteticamente ousadas envolvidas em seu método de tradução – operações
essas que Mendes se abstinha de agenciar quando da fatura de sua própria poesia, como se
depreende da leitura de um poema com léxico completamente normalizado como o “Hino à
Tarde”, publicado na Minerva Brasiliense em 1844.
Muitas de suas soluções são inventos verbais de uma sensibilidade que Haroldo de
Campos percebe como simultaneamente maneirista e experimental, a colidir com a fatura
clássica dos textos traduzidos no estilo “macarrônico” – termo ao qual, ademais, Haroldo
inverte os sinais, considerando-o sinônimo de invenção verbal multilíngue, na qual
incorreriam escritores de Folengo a Sanguinetti, passando por Joyce e Gadda. Os exemplos
são fartos ao longo das traduções de Odorico: dedirrósea, criniazul, pulcricroma etc.

, 9, 06/2017: 217-242 – ISSN 2182-8954 | http://dx.doi.org/10.21747/21828954/ely9a14 226


Marcus Rogério Salgado

Embora dinamicamente hipertrofiado em suas criações tradutórias, o fetiche por


criações verbais beirando o monstruoso não é exclusivo de Odorico Mendes. Antonio
Candido já mostrou como José Bonifácio se utilizara profusamente da criação de vocábulos
compostos para “transpor ao português os versos densos e sintéticos do grego” (Candido
2009: 212), gerando, em sua tradução de Píndaro, uma multidão de neologismos como:
boquirubra, olhiamorosa, docirisonha, docifalante, bracirósea etc. Encontramo-los também,
aqui e ali, em outros tradutores, como, em uma tradução de L. A. Burgain para Delvaigne,
alvispumoso. A bem da verdade, na própria poesia dos românticos esse procedimento se
fazia presente, ainda que bem mais discreto e ocasional, em casos como espectro
aurifulgente (no poema “Os fantasmas”, de José Bonifácio, o Moço) ou asas auribrancas
(Gonçalves Dias, “O amor”).

2. O tradutor aristocrático: a palavra outra no salão do barão


Se Odorico Mendes – por conta da revisão promovida sobretudo por Haroldo de
Campos – é quem consegue sobreviver ao século quando o assunto é a tradução de poesia
no Brasil oitocentista, os dois tradutores que, contudo, parecem sintetizar, como um par
dinâmico, a atitude romântica perante o gesto tradutório são Francisco Otaviano e João
Cardoso de Menezes e Sousa. Silvio Romero os trata sequenciados em sua História da
literatura brasileira. Antonio Candido os reúne no mesmo espaço da Formação em que trata
dos românticos ditos menores. A condição de par dialético foi percebida por Onédia
Barboza, que, ao longo da obra em que lida com a tradução de Byron no Brasil oitocentista,
ressalta como, embora sejam ambos poetas-tradutores, cada um opera por procedimento
diametralmente oposto ao do outro.
Tratemos primeiramente de João Cardoso de Menezes e Sousa. Podemos considerá-
lo um poeta-tradutor, pois, ainda que hoje esquecido, é autor que se insere na linhagem
romântica da década de 1840, como o situa Candido, ressaltando sua importância por
“haver, nos meados do decênio de 1840, poetado com certo discernimento do que era
então moderno” (Candido 2009: 424). Mais do que isso, Candido vê em sua obra como
poeta – norteada por uma concepção poética que o situa “à vanguarda de homens como
Magalhães, Porto-Alegre, Norberto” (ibidem) – o anúncio dos “rumos imediatos do

, 9, 06/2017: 217-242 – ISSN 2182-8954 | http://dx.doi.org/10.21747/21828954/ely9a14 227


Três tradutores de poesia no Brasil do século XIX

Romantismo: melancolia, isolamento, cenas históricas, Indianismo” (ibidem), bem como


entroncamento com a estética mórbida da segunda geração – o que fica claro no prefácio a
A harpa gemedora (1849) e particularmente no poema “Octavio e Branca”, em que o tema
do vampirismo é tratado. Péricles Eugênio da Silva Ramos ratifica o entroncamento,
afirmando tratar-se sua obra de “um elo na formação dos poetas românticos da segunda
geração” (Ramos 1945: 5).
Nascido em Santos, mudou-se para a Corte a fim de advogar. Ubiratan Machado nos
informa que sua casa no Campo da Aclamação era ponto de encontro de figuras da literatura
e da política (Machado 2010: 173). Como prova de que frequentava os meios, eis a crônica
mundana da Gazeta de Notícias de 22 de março de 1879 a informar que, em uma das
palestras familiares de Sua Majestade no salão do externato do colégio que leva seu nome,
com a presença dos nossos literatos de maior nota, foi lida, pelo próprio tradutor, uma
tradução de Byron realizada por Cardoso de Menezes.
Como poeta, pode ser apontado como um dos pioneiros realizadores da estética
indianista, por conta de seu “Cântico do tupi”, datado de 1844, que começa com uma
evocação a Tupã e segue com bananeiras, jambeiros, cajueiros e periquitos, de par com a
sobreposição de camada lexical tomada de empréstimo ao tupi, gerando, ao término do
poema, uma breve explicação sobre os termos indígenas utilizados, entre os quais se
reconhece grande parte das obsessões lexicais do indianismo, como pajés, maracás, jatis e
cauins.
A cor local também o obcecou naquele que se tornou seu poema mais conhecido à
época do romantismo, “Serra de Paranapiacaba”, que, como ironicamente apontaria Silvio
Romero, acabaria por ser “fonte inspiradora do seu baronato” (Romero 2001: 713).
Caldeando em sua poesia modismos e tendências do romantismo, faz o autor com que nela
encontremos ocasionalmente um tom ingênuo e sentimental, o que ocorre em poemas
como “Uma lágrima ao passado ou Saudades da infância”, datado de 1847.
Em sua estação pela Faculdade de Direito, esteve ativo na boêmia literária dos
acadêmicos praticantes da poesia non-sense, cultuada no ambiente das arcadas durante a
década de 1840. É de sua autoria um dos exemplares mais estrambóticos dessa poesia que o

, 9, 06/2017: 217-242 – ISSN 2182-8954 | http://dx.doi.org/10.21747/21828954/ely9a14 228


Marcus Rogério Salgado

próprio Cardoso de Menezes, ao rememorar os tempos de estudante, chamava de


“pantagruélica” (apud Nogueira 1908: 19), de que reproduzimos apenas os quartetos:

Era no inverno. Os grilos da Turquia,


Sarapintados qual um burro frito,
Pintavam com estólido palito
A casa do Amaral e Companhia.

Amassando um pedaço de harmonia,


Cantava o Kirie um lânguido cabrito,
E fumando, raivoso, enorme pito,
Pilatos encostou-se à gelosia. (idem: 21)

Dos tempos de vida acadêmica vinha-lhe não apenas o apreço pelos bestialógicos
poéticos, cultivados, ademais, por outros românticos brasileiros, como Bernardo Guimarães
e José Bonifácio, o Moço. Cardoso de Menezes foi também um dos primeiros byronianos,
como fazem prova as inúmeras epígrafes do poeta inglês presentes já em A harpa gemedora
e as traduções pelas quais ficaria conhecido.
Próximo a Pedro II, com quem partilhava intimidade em assuntos de poesia e
tradução, pelas mãos do monarca recebeu a comenda da Imperial Ordem da Rosa e foi
tornado Barão de Paranapiacaba, em 1883, por seus serviços às letras. Vale lembrar que a
vocação para fâmulo já se revelara desde o primeiro livro, já que A harpa gemedora contém
uma saudação e um recitativo dedicados a Pedro II, monótona poesia encomiástica a
atravancar o volume. Desse convívio nasceu a parceria para tradução de Prometeu
acorrentado, de Sófocles, onde inicialmente Pedro II fez uma tradução literal do original em
grego, a partir da qual João Cardoso de Menezes empreendeu o que preferia chamar de
trasladação poética.
Tradutor de fôlego, empreendeu a passagem ao português de incontáveis autores
(incluindo os clássicos), material reunido no segundo volume de Poesias e Prosas Seletas,
comentando-as e elucidando procedimentos adotados. Gostava de traduzir poemas longos,
como mostram suas versões de Oscar d´Alva, Childe-Harold e O Corsário. É um tradutor cuja
obra é sempre referida como conscienciosa, porquanto de seu gesto tradutório raramente

, 9, 06/2017: 217-242 – ISSN 2182-8954 | http://dx.doi.org/10.21747/21828954/ely9a14 229


Três tradutores de poesia no Brasil do século XIX

resultem objetos assimétricos em relação ao original, pelo menos no que se relaciona ao


número de versos ou estrofes, o que se constituía o fundamento da concepção por ele
defendida de versão homeométrica. Ou seja: a versão deveria necessariamente conter o
mesmo número de versos do original, procurando, assim, mimetizar a forma em seus
aspectos básicos e mesmo exteriores, com consequências sobretudo sintáticas; além disso,
deslocava-se particular ênfase, se não apego, à reconstrução dos planos semânticos mais
imediatos.
No prefácio de seu primeiro livro de poesia, A harpa gemedora, confessa que “no
entusiasmo e fúria de produção, que se apossam daqueles que começam a poetizar, arrojei-
me a tradutor” (Menezes 1847: 8). Concebe, portanto, continuidade entre a criação poética
e o gesto tradutório. Em sua opinião, o que complicava a tarefa era ter escolhido traduzir
gênios, que é como considerava Byron e Lamartine: “árdua e pesada é por certo a tarefa de
tradutor de gênios, e só a outros gênios deveria competir, porque só deles é o compreender
reciprocamente as belezas e sublimidades de suas produções em toda a plenitude” (idem:
10). Por aqui, vislumbra-se como uma das pedras angulares no programa romântico (a
exaltação do gênio) estende sua força até os domínios da tradução, tendo em vista a
demanda de Cardoso de Menezes pela coincidência de gênios como condição para o êxito
do gesto tradutório. Em artigo publicado décadas depois (1878), na prestigiosa revista O
Novo Mundo (não assinado, mas provavelmente escrito pelo próprio editor, José Carlos
Rodrigues), o poeta-tradutor Cardoso de Menezes é apresentado em comunhão íntima com
os autores traduzidos, atendendo, assim, à necessidade da existência das mesmas paixões
na alma tanto do autor a ser traduzido como do tradutor; em consonância com a teoria do
gênio em vigência no programa estético romântico, sobre a fronte do tradutor haveria que
pousar o selo ardente do poeta. Portanto, a confissão da dificuldade de se traduzir gênios é,
obviamente, uma estratégia retórica para entabular a afirmativa de um programa tradutório
no qual tanto a coincidência no gênio como a fidelidade textual seriam vindicados.
Para Cardoso de Menezes, os esforços na tradução deveriam concentrar-se em
“trasladar os pensamentos para a língua materna com a maior propriedade e aproximação”
(ibidem), o que, para si, implicava “uma tradução feita em máxima parte verso por verso”
(ibidem) – portanto, sem permitir-se supressões ou acréscimos no número de versos, tendo

, 9, 06/2017: 217-242 – ISSN 2182-8954 | http://dx.doi.org/10.21747/21828954/ely9a14 231


Marcus Rogério Salgado

em mente sempre a consecução de um objeto estético simétrico ao original, privilegiando,


por um lado, a correspondência semântica entre o texto-fonte e sua réplica e, por outro, os
aspectos formais tocantes aos padrões metrificatórios. Percebe, contudo, que a relação
entre original e tradução deve ser de simetria (ou harmonia, como parece por vezes preferir)
e não de imitação, como adverte ao referir-se à necessidade de “harmonizar a tradução com
o original, a fim de que não dê antes visos de uma imitação” (ibidem).
Embora Cardoso de Menezes tenha publicado esporadicamente suas traduções em
periódicos da segunda metade do século XIX (como a Revista Litteraria e Recreativa), só em
1911 reuniu suas traduções no segundo volume de Poesias e prosas seletas,
impressionando, como dito anteriormente, pela predileção por poemas de fôlego
(preferivelmente poemas narrativos), pela diversidade de autores e textos traduzidos
(clássicos e românticos, ingleses, franceses e alemães, poemas sacros em latim etc) e pela
perseverança na atuação como tradutor, que sobreviveu ao Byronismo e pode lançar-se a
traduções de Gresset e de Goethe (de quem traduz “Consolação das lágrimas”, poema de
ethos compatível com o do próprio romantismo). O interesse pela literatura alemã levou-o a
traduções de alguns autores pré-românticos ou de textos com afins ao ideário romântico,
como poemas de Herder, Klopstock, Wieland, Schiller etc. Também voltou-se para os
clássicos: além do Prometeu acorrentado, traduziu As nuvens (Aristófanes), A marmita
(Plauto), Safo de Lesbos, Catulo, Virgílio, Horácio, Ovídio, Propércio e Tibulo, sendo,
portanto, outro caso de tradutor romântico fascinado pela possibilidade de reconstituição
da poesia da antiguidade pelo olhar e pelo ethos românticos. Suas traduções, contudo, não
apresentam o mesmo grau de invenção verbal ostentado em Odorico Mendes, sendo
discutível, neste sentido, a existência de uma dimensão criticamente modernizadora em
suas traduções – que, ademais, estenderam-se rumo à primeira década do século XX, soando
em alguma medida anacrônicas já na época em que foram reunidas para publicação em
volume.
Se o Barão de Paranapiacaba usufruiu de posição estável no campo literário brasileiro
da segunda metade do século XIX – mais especificamente no âmbito do Segundo Reinado –,
a posteridade seria ambivalente em relação a sua obra como tradutor.

, 9, 06/2017: 217-242 – ISSN 2182-8954 | http://dx.doi.org/10.21747/21828954/ely9a14 230


Três tradutores de poesia no Brasil do século XIX

O erudito mineiro Hélio Lopes, ao passar em revista os esforços tradutórios no Brasil


oitocentista, refere-se à tradução de Cardoso de Menezes para o poema “Lenore”, de
Buerger, reconhecendo nela “grande fidelidade ao modelo, embora o siga ou imite diríamos
de oitiva, e consegue êxito satisfatório em sua versificada narrativa, principalmente variando
o ritmo e a estrofação; separa com clareza as diversas partes da ação e evita a monotonia”
(Lopes 1997: 272), ainda que, de forma geral, “ele se comporta dentro dos padrões da
linguagem do tempo” (idem: 273), destacando-se, em fim de contas, tanto pela mediania
como pela oficialidade.
Já Onédia Célia de Carvalho Barboza, no estudo dedicado às traduções de Byron no Brasil,
detém-se em dois poemas, “Oscar d´Alva” e “O Giaur”. Apesar do tom grandiloquente que
marca sua dicção poética como tradutor (decorrente, em alguma medida, da oficialidade de
que gozava seu trabalho literário), nas traduções de Cardoso de Menezes reconhece Barboza
um esforço por não desfigurar a forma em seu invólucro exterior, uma vez que “não omite
estrofes ou parágrafos, não acrescenta outros de sua própria lavra, não altera a ordem dos
mesmos; traduz estrofe por estrofe, quase verso por verso” (Barboza 1975: 145). No
entanto, questiona a insistência com que Cardoso transpõe esquemas métricos originais
(como os tetrâmetros jâmbicos em Byron) para a solução fácil dos “infalíveis decassílabos
soltos” (Barboza 1975: 147). Vale lembrar que, de qualquer forma, a escolha de Cardoso era
consciente, pois o mesmo considerava os decassílabos livres como “nervo da nossa poesia”
(Menezes 1911: 217). Tal escolha reflete, por sua vez, o partido tradutório ao qual está
vinculado, pelo qual o gesto tradutório ideal seria atingido mediante o equilíbrio entre
fidelidade de pensamento e liberdade de expressão:

A metrificação em decassílabos sem rima é insulsa ao paladar hodierno. Já é considerado velharia o


verso branco, em que Bocage burilou a Saudade materna, Garrett a Sapho, Herculano a Tempestade,
Castilho os Crimes do Bardo e Gonçalves Dias os Timbiras, produções que passaram o limiar do século
XIX e continuam a ser constante objeto de admiração. O verdadeiro gosto não pode condenar o
decassílabo solto, que deixa livre a inspiração, conservando ao pensamento a energia nativa. E quão
formoso ele brotaria do estro dos poetas de hoje! (Menezes 1911: 217).

No volume das Poesias e prosas seletas dedicado às traduções, entremeia-as com


notas, ensaios, comentários, memórias, anedotas e até mesmo cartas que situam o trabalho

, 9, 06/2017: 217-242 – ISSN 2182-8954 | http://dx.doi.org/10.21747/21828954/ely9a14 232


Marcus Rogério Salgado

executado sob quais condições e com quais objetivos, de forma que vez por outra
encontramos a defesa de seu partido enquanto tradutor, especialmente no que diz respeito
à versão homeométrica. Além de comporem um conjunto heteróclito dos mais
interessantes, no qual as fronteiras entre os diferentes gêneros situados entre a criação e a
crítica são voluntariamente desguarnecidas, ao longo dos apontamentos de Cardoso de
Menezes vão surgindo registros importantes da vida social do período, pois, tendo
frequentado a Faculdade de Direito e depois aberto a casa na Corte para reuniões literárias,
testemunhou os mais diversos modismos em matéria de poesia, oferecendo informações
sobre hábitos de leitura e outras práticas sociais ligadas à literatura, bem como dados sobre
o processo de formação intelectual do tradutor de poesia naquele contexto histórico e
cultural.

3. O tradutor de salão ou a bela infiel


Como ocorre com sua contraparte, o Barão de Paranapiacaba, também Francisco
Otaviano é hoje um nome praticamente esquecido, relegado às notas de rodapé, e, quando
lembrado, assim o é sempre pelos versos de “Ilusões da Vida”. Foi, contudo, um dos
precursores da crônica-folhetim e como poeta gozou de alguma notoriedade durante os
anos vividos na Faculdade de Direito, embora não tenha sequer reunido em volume sua
produção poética, absorvido que foi pela política. No Segundo Reinado, manteve salão
literário “em suas diversas residências, sucessivamente nas ruas de São Cristóvão, Evaristo
da Veiga e, por fim, Cosme Velho” (Machado 2010: 171-172). Segundo a mesma fonte, “não
havia escritor que não fosse, pelo menos uma vez, a essas reuniões” (idem: 172), incluindo
na lista de frequentadores escritores (como José de Alencar, Machado de Assis e Macedo) e
outros tradutores (Franklin Dória, Pinheiro Guimarães, João Cardoso de Menezes). Brito
Broca nos recorda como “pelas mãos dele, José de Alencar consegue iniciar-se na vida
jornalística e literária, passando a fazer os folhetins do Correio Mercantil, gênero que dava
uma grande notoriedade para um escritor na época. E amparo semelhante recebeu
Machado de Assis” (Broca 1979: 84). De fato, Machado fez-lhe o necrológio, elogiando em
Francisco Otaviano o que chama de “um complexo de qualidades superiores de alma e de

, 9, 06/2017: 217-242 – ISSN 2182-8954 | http://dx.doi.org/10.21747/21828954/ely9a14 233


Três tradutores de poesia no Brasil do século XIX

espírito, de sentimentos e de raciocínio, raros e fortes, tais que o aparelharam para a luta,
que o fizeram artista e político, mestre da pena elegante e vibrante” (Assis 1889: 1).
Antonio Candido não nega a existência de interesse em sua poesia, ressaltando as
qualidades técnicas de seus versos, tanto no plano melopaico como no imagético,
“revelando sensibilidade, gosto, elegância e equilíbrio. Qualidades nem sempre dos grandes
criadores, mas florão maior do intelectual, do burguês culto e refinado, como ele foi de
maneira exemplar” (Candido 2009: 422). Atribui-lhe, ainda, possível posição pioneira no uso
regular do alexandrino entre nossos românticos, concluindo com o veredito: “um bom
poeta, um homem culto e fino, que merece maior atenção do que lhe vem sendo concedida”
(idem: 424).
Ainda no século XIX sua obra como tradutor teve boa recepção crítica, como prova a
nota bibliográfica que Guilherme Bellegarde, em 1881, na Revista Brasileira, dedicou ao
lançamento de volume preparado por Amorim Carvalho com as traduções de Francisco
Otaviano. Trata-se de um ensaio que merece atenção, pois, além de elencar diferentes
concepções sobre tradução vigentes ao longo do oitocentos e de traçar uma linhagem de
tradutores na língua portuguesa (em um arco que vai de Bocage à Escola do Maranhão),
propõe como paradigma de tradução o gesto intermédio entre a fidelidade e a beleza.
Em seu estudo sobre os tradutores de Byron, Onédia Barboza ressalta a elegância dos
versos de Francisco Otaviano, mas é obrigada a advertir que era um tradutor
“escandalosamente infiel” (Barboza 1974: 130) – e, de fato, considerados os paradigmas
epocais do que consistia a fidelidade ao original, amparada na concepção do tradutor-servo,
Otaviano não se poupa em liberdades para com os originais a que se lança por verter. Assim,
correspondência entre padrões métricos não era algo almejado nas traduções de Otaviano,
o que já poderia causar, de pronto, assimetrias no tom e no ritmo dos poemas. Também
alterações com a ordem e o número das estrofes eram constantemente praticadas em suas
versões de Byron. A atitude perante o texto-tutor nunca é de reverência: como ressalta
Barboza, “os originais sofrem enxertos e mutilações” (idem: 145).
Embora seja associado à escola byroniana (logo trataremos de suas traduções do
poeta inglês), Francisco Otaviano deixou outras traduções importantes do ponto
historiográfico, como sua versão dos Cantos de Selma – que começou a fazer em 1843, mas

, 9, 06/2017: 217-242 – ISSN 2182-8954 | http://dx.doi.org/10.21747/21828954/ely9a14 234


Marcus Rogério Salgado

só publicou quase trinta anos depois, “numa tiragem de apenas sete exemplares” (Lopes
1997: 247) –, ou ainda poemas de Shelley e Alexandre Dumas. Trata-se, contudo, de um
tradutor que poderia ser considerado bastante infiel, capaz de tomar quaisquer liberdades
com o texto a ser traduzido, inserindo ou suprimindo versos, e, sobretudo, carregando nos
tons explicitamente românticos na dicção e na imagética do texto traduzido – como já
ressaltou Onédia Barboza.
Mas as coisas não são tão simples: por mais discutíveis que fossem os métodos de
Otaviano, são inegáveis os achados poéticos obtidos – ainda que tais achados nem sempre
estivessem no texto original, situam-se bem acima da média da poesia do autor. O ponto
talvez mais interessante no estudo de Candido é a afirmação de que, em se tratando da
poesia em Francisco Otaviano, “o seu melhor conjunto de poemas talvez sejam as
traduções” (Candido 2009: 424). De fato, a atividade de Otaviano como tradutor parece
sobrepujar, sem deixar muitas dúvidas, sua atuação como poeta. Como reforça Antonio
Candido, ao traduzir, Francisco Otaviano “é sempre poeta excelente” (idem: 424). A
tradução, aqui, se converte em um objeto estético dotado de relativa autonomia. A virtude
desse processo é que, se já não temos mais Byron (ou qualquer autor romântico cuja obra
funcionasse como texto-tutor), também já não encontramos mais Francisco Otaviano – e sim
uma espécie de ideal poeta romântico brasileiro, cuja dicção e imagética é obtida mediante
procedimentos de supressão ou exacerbação de estilemas. Independentemente das
liberdades tomadas em relação ao original (sejam elas de padrão métrico, número de versos,
esquema rímico, escolhas lexicais, imagética etc), as traduções de Francisco Otaviano se
esforçam por colocar em circulação textos-tutores do romantismo, que, à ausência de
manifestações autóctones que cobrissem essa raia no terreno de batalha do campo literário,
dessa maneira eram postos em circulação. Não é por acaso que, ao analisar sua tradução
para um trecho do Childe-Harold, Onédia Barboza ressalta como “Otaviano transforma
Byron num autêntico representante do Romantismo brasileiro” (Barboza 1974: 137). Aqui a
tradução compensa o hiato existente nas posições do campo literário onde a tradução se
fará circular. E é nesse ponto, talvez, onde resida sua colaboração mais dinâmica para a
prática tradutória, concebida essencialmente como atividade criativa – ainda que sob pena

, 9, 06/2017: 217-242 – ISSN 2182-8954 | http://dx.doi.org/10.21747/21828954/ely9a14 235


Três tradutores de poesia no Brasil do século XIX

de ancorarmos tal juízo em pressupostos críticos vigentes na poética da modernidade tardia


e romper-se, em alguma medida, a unidade do registro historiográfico até aqui apresentado.
Para Onédia Barboza, é verdade que o poema “O crepúsculo da tarde” é uma tradução infiel
(dada a máxima liberdade com que dispõe de fragmentos do Don Juan arranjados de forma
a gerar um poema com vida autônoma), mas uma “belle infidèle” (idem: 140), nada menos
que “um belo poema” (idem: 140). Não são poucas as passagens em que Barboza ressalta “o
valor poético que se revela em estrofes de grande efeito” (idem: 141), onde se notam “a
excelência e a expressividade” (idem: 140) da arte do verso – em dose maior, diga-se, que a
encontrada na poesia autoral de Otaviano. Portanto, considerados não pelo âmbito
filológico, e sim pelo âmbito estético, e nele a partir de uma autonomia ontológica entre
original e tradução, os poemas resultantes do gesto tradutório eram mais interessantes
enquanto arte verbal do que os poemas autorais de Otaviano, ostentando, ainda, a referida
existência autônoma em relação à qualquer instância de originalidade, seja ela a obra do
poeta-autor ou a obra do poeta-tradutor. Segundo Barboza, o processo de Otaviano envolve
“metade tradução, metade adaptação livre” (idem: 144) – portanto, metade trabalho
linguístico e intelectivo, metade trabalho poético e criativo.
Para enriquecer o debate, seria válida aqui a definição por Victor Hugo dada à tarefa
do tradutor – ao refletir sobre as ligações entre a tradução e seu tempo, curiosamente
tratando dos resultados do trabalho de seu filho como tradutor de Shakespeare –, segundo a
qual caberia a ele a tarefa talvez impossível de “condensar em uma tradução toda a
irradiação desse grande núcleo, fazer convergir esse esplendor para nossa literatura ao lado
dos esplendores de nossos poetas originais” (Hugo 1864: 24). Não é por acaso que, em uma
de suas reflexões sobre o ato de traduzir, Victor Hugo tenha estabelecido uma analogia
entre a tradução e o espelho – ambos, sem dúvida, lidam com duplos e projeções. Além
disso, a tradução e a notação historiográfica de sua prática colaboram para a configuração
de uma imagem em definição mais precisa do campo literário brasileiro ao longo do século
XIX. Afinal, como frisou o mesmo Hugo em William Shakespeare, o objetivo da tradução
(como, de resto, para si o era o da publicação, da distribuição e da própria criação) é gerar
“um vasto domínio público literário” (Hugo 1864: 398). Portanto, também com a tradução a
palavra escrita reivindica a atualização de seu potencial utópico de alcance multiplicado.

, 9, 06/2017: 217-242 – ISSN 2182-8954 | http://dx.doi.org/10.21747/21828954/ely9a14 236


Marcus Rogério Salgado

A concepção da prática tradutória como afim à criação esteve vigente ainda depois do
momento romântico. É para onde parece sinalizar um artigo assinado por “Ignotus”,
publicado em A Semana, em 1885, sob o título “Traduções literais e fora da letra”. Nela, o
autor analisa as traduções disponíveis de Longfellow e acaba por propor a defesa do que
chama “versão parafrástica”, em detrimento da “versão literal”. Segundo Ignotus, a tradução
literal não consegue atingir a impressão estética causada pela obra original, dada sua falta
de interesse pelos valores artísticos, uma vez que “a tarefa de enfileirar palavras
portuguesas equivalentes às palavras do original pode, quando muito, constituir um esforço
filológico” (Ignotus 1885: 4). Assim, para o ensaísta de identidade não inteiramente
soterrada sob o pseudônimo (pois trata-se do também tradutor Joaquim Serra), “a tradução
literal é esforço linguístico, mas não é uma preocupação de artista” (Ignotus 1885: 4).
Para aplicar os conceitos e a terminologia de Ignotus ao caso em tela, é possível dizer
que suas traduções de Otaviano por vezes se situam fora da letra, mas não fora da poesia.
Como escreveu Antonio Candido sobre sua poesia, Francisco Otaviano obtinha maior
rendimento poético quando trabalhava a partir do verso alheio, em “situações poéticas onde
o impulso criador era dado por outros, cabendo-lhe por em jogo qualidades que possuía em
alto grau: gosto, ouvido, plasticidade” (Candido 2009: 424). A tradução se converte em
objeto estético dotado de relativa autonomia, onde o criador não trabalha com materiais de
primeira mão, e sim com textos pré-existentes processados plasticamente pelo tradutor,
num gesto estetizador que não se distingue, em essência, do trabalho processual envolvido
no ato criador.
É assim que aquilo que à primeira vista pode parecer mero descaso às normas
filológicas elementares que presidem o estabelecimento de texto para edição e a própria
tradução (ou seja: as incontáveis liberdades tomadas pelos românticos em relação ao texto a
ser traduzido, desde a fragmentação do mesmo até a supressão de informações autorais), a
partir de outro mirante pode também revelar uma concepção da tradução como atividade
precipuamente criativa, e não necessariamente uma operação exclusivamente filológica ou
linguística, propugnando uma equalização entre rigor e liberdade. Desse modo, como já
sinalizamos antes (ao tratarmos da exacerbação de estilemas românticos em suas
traduções), em muitos momentos Francisco Otaviano não parece estar empenhado em

, 9, 06/2017: 217-242 – ISSN 2182-8954 | http://dx.doi.org/10.21747/21828954/ely9a14 237


Três tradutores de poesia no Brasil do século XIX

propor o gesto tradutório como ato de conduzir o leitor a um texto – e sim conduzir o leitor
a um complexo cultural denominado romantismo (a envolver não apenas a literatura e a
arte, mas também a filosofia, a história e a política), cujo equivalente dinâmico em solo
brasileiro ele próprio se encontrava empenhado em construir. Sob esse ponto de
observação, a máxima liberdade pleiteada em suas traduções estaria conforme a um certo
ethos romântico, preconizado especialmente por Victor Hugo, quando o poeta francês
afirma a necessidade de consecução do dúplice fim de “a liberdade na arte, a liberdade na
sociedade” (apud Ferreira 1871: 18).
É desnecessário lembrar que a produção e a circulação de textos traduzidos é elemento
absolutamente fundamental para a formação e a consolidação de um sistema literário –
como era o caso do nosso, ao longo do século XIX. Colabora, ainda, para a definição de um
perfil de poeta e intelectual envolvido em diferentes atividades que compõem o campo
literário, em sintonia com o perfil do poeta-ensaísta que se cristalizava na Europa desde,
pelo menos, a Escola de Jena, chegando à síntese emblemática em Baudelaire. Para além
dos aspectos puramente estéticos envolvidos na produção do discurso poético, a prática
tradutória colaborou para dinamizar a vida cultural do país, abrindo possibilidades de
atuação tanto criativa como crítica, que pareciam insuspeitas durante o período colonial.

, 9, 06/2017: 217-242 – ISSN 2182-8954 | http://dx.doi.org/10.21747/21828954/ely9a14 238


Marcus Rogério Salgado

Bibliografia

Assis, Machado de (1889), “A morte de Francisco Otaviano”, Gazeta de Notícias, Rio de


Janeiro, 29 de maio, p. 1.

Barboza, Onédia Célia de Carvalho (1974), Byron no Brasil: traduções, São Paulo, Ática.

Borralho, José Henrique de Paula (2009), “Um Pantheon Equinocial: a construção biográfica
de maranhenses e a formação do império brasileiro”. Anais do ANPUH – XXV Simpósio
Nacional de História. Fortaleza, <http://anpuh.org/anais/wp-
content/uploads/mp/pdf/ANPUH.S25.0160.pdf> (último acesso em 17/03/2015).

Braga, Gentil Homem de Almeida (1872), Clara Verbena. São Luís, Typ. d´O Paíz.

Braga, Gentil Homem de Almeida et alii (org.) (1861), Parnaso Maranhense, São Luís, Typ. do
Progresso.

Braga, Gentil Homem de Almeida/ Trajano Galvão/ A. Marques Rodrigues (1862), Três liras,
Rio de Janeiro, Laemmert & Cia.

Broca, Brito (1979), Românticos, pré-românticos, ultra-românticos: vida literária e


romantismo brasileiro, São Paulo, Polis, Brasília, INL.

Campos, Haroldo de (1977), A arte no horizonte do provável, São Paulo, Perspectiva.

Candido, Antonio (2009), Formação da literatura brasileira, Rio de Janeiro, Ouro sobre Azul.

Correia, Frederico José (1880), “Interpretação de um verso da Eneida”, Revista Brasileira,


Primeiro Ano, Tomo IV.

-- (2015), Um livro de crítica, São Luiz: Pitomba, 2015.

Correia, Raimundo (1879), Primeiros sonhos, São Paulo, Typographia da Tribuna Liberal.

-- (1887), Versos e versões, Rio de Janeiro, Typographia de Moreira Maximino & C.

Dias, Gonçalves (1867), Ecos d´além-mar, São Luiz, Bellarmino de Matos.

-- (1964), “Correspondência ativa de Antônio Gonçalves Dias”, Anais da Biblioteca Nacional,


Volume 84, Rio de Janeiro, Biblioteca Nacional.

, 9, 06/2017: 217-242 – ISSN 2182-8954 | http://dx.doi.org/10.21747/21828954/ely9a14 239


Três tradutores de poesia no Brasil do século XIX

Ferreira, José Maria de Andrade (1871), Literatura, música e belas artes, Lisboa, Rolland &
Semion, Tomo I.

Fontenelle, Manoel Benício (1855), Recreios poéticos, Rio de Janeiro, Typographia Rua do
Cano.

Galvão, Trajano (1898), Sertanejas, Rio de Janeiro, Imprensa Americana.

Grinalda de flores poéticas. [Seleção de produções modernas dos melhores poetas


brasileiros e portugueses – entre as quais traduções de poesias escolhidas do inglês, alemão,
francês e italiano, com os originais ao lado] (1854), Rio de Janeiro, Eduardo & Henrique
Laemmert.

Hugo, Victor (1864), William Shakespeare, Paris, A. Lacroix, Verboeckhoven et C.

Ignotus (1885), “Traduções literais e fora da letra”, A Semana, Ano 1, número 11, Rio de
Janeiro, 14 de março, 4.

Leal, Antônio Henriques (1873), Pantheon Maranhense – Tomo I, Lisboa, Imprensa Nacional.

Lima, Israel Souza (2005), Biobibliografia dos Patronos: Gonçalves Dias, Rio de Janeiro,
Academia Brasileira de Letras.

Lopes, Hélio (1997), Letras de Minas e outros ensaios, São Paulo, EDUSP.

Machado, Ubiratan (2010), A vida literária no Brasil durante do Romantismo, Rio de Janeiro,
Tinta Negra.

Mendes, Odorico (1992), Odisséia, São Paulo, Edusp, Ars Poetica.

Menezes e Sousa Junior, João Cardoso de (1847), A harpa gemedora, São Paulo, Typographia
de Silva Sobral.

-- (1911), Poesias e prosas seletas: traduções, Rio de Janeiro, Typographa Leuzinger.

-- (1946), Poesias escolhidas, São Paulo, Conselho Estadual de Cultura.

Mosaico Poético. Coleção de escolhidas poesias dos melhores poetas nacionais e


estrangeiros. 2ª série. (s/d), Recife, G. Laporte & C.

, 9, 06/2017: 217-242 – ISSN 2182-8954 | http://dx.doi.org/10.21747/21828954/ely9a14 241


Marcus Rogério Salgado

Nogueira, José Luiz Almeida (1908), A Academia de São Paulo. Tradições e reminiscências:
Terceira série, São Paulo, Typographia Vanorden.

Paes, José Paulo (1990), Tradução: a ponte necessária, São Paulo, Ática.

Paranhos, Haroldo (1937), História do romantismo no Brasil, São Paulo, Cultura Brasileira.

Pereira da Silva, J. M. (1843), Parnaso Brasileiro, Rio de Janeiro, Eduardo e Henrique


Laemmert, 2 tomos.

Pinheiro, Xavier (1926), Francisco Otaviano: carioca ilustre nas letras, no jornalismo, na
política, na tribuna e na diplomacia, Rio de Janeiro, Revista de Língua Portuguesa.

Ramos, Péricles Eugênio da Silva (1945), “Introdução”. In: Poesias Escolhidas de João
Cardoso de Meneses e Sousa (Barão de Paranapiacaba). São Paulo, Conselho Estadual de
Cultura, 1945.

Reis, Francisco Sotero dos (1868), Curso de literatura portuguesa e brasileira, São Luiz,
Typographia de B. de Mattos.

Romero, Silvio (1899), Parnaso Sergipano, Aracaju, Typographia de ´O Estado de Sergipe´.

-- (2001), História da literatura brasileira, Rio de Janeiro, Imago.

Rosa, Francisco Otaviano de Almeida (1881), Traduções e Poesias, Rio de Janeiro, Typ. & Lith.
Moreira, Maximino & C.

Serra, Joaquim (1865), Mosaico, Paraíba: Typographia de José Rodrigues da Costa.

-- (1872), Quadros, Rio de Janeiro, B. L. Garnier.

Veríssimo, José (1969), História da Literatura Brasileira, Rio de Janeiro, José Olympio.

, 9, 06/2017: 217-242 – ISSN 2182-8954 | http://dx.doi.org/10.21747/21828954/ely9a14 240


Três tradutores de poesia no Brasil do século XIX

Marcus Rogério Salgado Doutor em Ciência da Literatura (UFRJ) e mestre em Letras


Vernáculas (UFRJ). Tem atuado como professor de Teoria da Literatura e Literatura Brasileira
em instituições de ensino superior no Brasil (UFF; UnB) e no exterior (Universidade de
Santiago de Compostela). Traduziu para o português obras de Jean Lorrain (A vingança do
mascarado), Pierre Mabille (Os deuses falam pelos govis) e Ted Hughes (“A última carta”).
Verteu para o inglês poemas de Cruz e Sousa e Sosígenes Costa, presentes na antologia
Black, brown and beige: writings from Africa and the Diaspora, publicada pela University of
Texas em 2009. Atualmente é professor adjunto de Literatura Brasileira na UFRJ.

, 9, 06/2017: 217-242 – ISSN 2182-8954 | http://dx.doi.org/10.21747/21828954/ely9a14 241


Marcus Rogério Salgado

Belle Époque: efeitos e significações

Organização:
Carmem Negreiros
Fátima Oliveira
Jean Pierre Chauvin
Rosa Gens

ABRALIC
Associação Brasileira de Literatura Comparada

Rio de janeiro
2018
Série E-book | ABRALIC

Modernidade estética, técnica e


urbana

12
Marcus Rogério Salgado Belle Époque: efeitos e significações

A FRESTA PARA O INFINITO:


ESCRITA, ARQUEOLOGIA URBANA E MÍDIA ÓTICA

Marcus Rogério Salgado ∗

RESUMO: Com o objetivo de entender o processo de configuração da


modernidade estética no Brasil, tentamos avaliar o impacto das mídias óticas
em circulação a partir do século XIX sobre os modos de percepção da
realidade e as artes miméticas. Com a modernidade, são postos em cena
novos modos de ver e de experimentar a vida, sobretudo em estufa citadina.
Por meio de um exercício de arqueologia urbana, são resgatados das páginas
de periódicos e de obras literárias os dispositivos e espetáculos óticos que,
precedendo à fotografia e ao cinematógrafo, tiveram notável ressonância
sobre o imaginário social.
PALAVRAS-CHAVE: Modernidade estética; mídia ótica; literatura e
visualidade.

ABSTRACT: The aim of the article is to present a comprehensive view on


how optical media circulating in the XIXth century had a serious impact on
the process of constituting aesthetical modernity in Brazil, particularly on
the emerging new ways of seeing and experiencing city life. With this
purpose, optical devices and spectacles as shown in periodicals and literary
works are rescued out of oblivion so that it turns out to be possible a wider
evaluation of their existence (which precedes photography and
cinematography) and resonance on the social imaginary.
KEYWORDS: Aesthetical modernity; optical media; literature and visuality.

1. O horizonte técnico: em busca de novos modos de ver


Professor adjunto de Literatura Brasileira – Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

13
Série E-book | ABRALIC

Um dos aspectos fundamentais para se entender o processo de


configuração da modernidade estética no Brasil diz respeito à visão e à
percepção modernas, em suas relações com a produção, a circulação, a
demanda e o consumo de imagens. Para compreender os novos modos de
ver e de perceber emergentes com a modernidade é necessário reconstituir a
entrada em cena e o impacto de dispositivos técnicos e demais fatores da
ordem científica que, em alguma medida, possam estar ligados às
transformações na vida social – que, por sua vez, foram mimetizadas em
escrita ou simplesmente exerceram papel determinante na configuração
estética do cronótopo em estudo.
Seguindo os quadrantes teóricos propostos por Flora Süssekind em
Cinematógrafo das letras, tomamos por pressuposto a vinculação direta entre
escrita e inovações técnicas: ‚o contato com esse horizonte técnico afeta a
forma liter{ria‛ (Süssekind, 1987, p. 29). E, de fato, ao longo do processo de
configuração da modernidade estética entre nós, o horizonte técnico acabou
por efetivamente revelar-se ‚interlocutor para a produção literária do
período‛ (Süssekind, 1987, p. 29), seja pela absorç o de técnicas e estratégias
de estetização do real ou pela tematização dessas inovações no interior das
obras.
O cinema e a fotografia são sempre mencionados em referência a
dispositivos técnicos de alto impacto sobre a arte verbal. Mas a verdade é
que, de igual forma, uma série de outras inovações no campo da técnica que
os precederam ou foram contemporâneas colaboraram para a deflagração de
processos de alteração da percepção, em especial na paisagem urbana, em
inícios do oitocentos. Nesse sentido, embora não esteja diretamente ligado à
tecnologia ótica, um dos primeiros dispositivos técnicos a transformar
radicalmente a percepção e o modo de ver a vida na cidade foi o bonde – ao
qual se sucederam o trem e o automóvel. O bonde possibilitou que o
movimento dinâmico da vida passasse a ser percebido como uma série de
fotogramas. Como ressalta Miriam [vila, ‚com suas laterais abertas, o
bonde permitia ver e ser visto, instalando no espaço urbano uma dupla
perspectiva escópica. Estar parado e ver a vida passar como um filme, com
as cenas separadas em fotogramas pelas barras verticais era prerrogativa
tanto do passageiro quanto do pedestre‛ ([vila, 2008, p. 30). O mesmo vale
14
Marcus Rogério Salgado Belle Époque: efeitos e significações

para o cartão postal, já que a cartofilia, uma das grandes manias da belle
époque, foi um importante meio de divulgação da imagem impressa.
De qualquer forma, a instalação de uma sala permanente de cinema na
Capital Federal pouco tempo após a primeira exibição pública e paga do
invento dos Lumière em Paris e a rodagem dos primeiros filmes nacionais já
em 1897 e 1898 são fatos que demandam, no mínimo, uma arqueologia das
formas visuais em circulação na sociedade brasileira do século XIX. A partir
dos gestos simultâneos de decomposição e síntese implicados no olhar
arqueológico, pode-se entender como a relativa popularização da fotografia
a partir da década de 1860 (cf Süssekind, 1987, p. 31) se encontra vinculada
em cadeia causal de impacto com a formação de receptores de imagens
produzidas pelo cinematógrafo. De igual forma, o status que a fotografia
atinge a partir de 1860 foi resultado de um lento processo de produção e
circulação de imagens produzidas pelo que Friedrich Kittler chama de
‚mídias óticas‛ (cf: Kittler, 2016), bem como da formação de um público
receptor – ambos ligados diretamente, por sua vez, a processos
socioeconômicos em curso (urbanização, industrialização etc).
O fato é que, muito antes do cinema e da popularização da fotografia,
já no começo do século XIX encontramos dispositivos óticos que, além de se
converterem em espetáculos na vida social da Corte, ainda serviram como
práticas preparatórias para os novos modos de ver e perceber o mundo
engendrados pelas imagens técnicas características da modernidade, mesmo
em seus estágios avançados.
Retrocedendo a pesquisa até inícios do século XIX, surpreende o fato
de que não apenas com teatro, operetas e tavernas divertiam-se os habitantes
da Corte. A Gazeta do Rio de Janeiro de 27 de maio de 1818 anunciava – na
seç o de ‚Avisos‛, entre ofertas de rapé, barris de sardinha e a
movimentação dos navios no porto – a chegada, no dernier bateau, de um
espetáculo com dispositivos mecânicos que prometia abalar o tédio:

José Joaquim Lopes faz ciente ao público ter chegado proximamente de terras
estrangeiras com uma peça de grande gosto, na qual apresenta várias figuras: esta
peça tem relógio de sala e um realejo, com uma grande máquina de figuras, as quais
manobram debaixo de compasso de música, e cada uma em suas ocupações, umas
trabalhando em seus ofícios, e outras contradançando, outras passeando em boa

15
Série E-book | ABRALIC

harmonia de música, e um esquadrão de cavalaria. Os senhores que a quiserem ver


ou ser espectadores deste bom divertimento dirijam-se ao princípio da ladeira de João
Homem, à esquerda, por cima da casa de pasto, sendo a sua entrada por cada pessoa
240 réis; e também obriga-se o seu dono a ir às casas particulares. (Anônimo, 1818, p.
4)

Com a engenhoca anunciada na Gazeta, em processualidade


necromântica, é invocada uma temporalidade perdida, na travessia entre
mundos mortos: do outro lado do Atlântico é a época da arquitetura das
passagens e dos chamados ‚espet{culos ou diversões óticas‛ (Milner, 1990,
p. 20), com os dioramas, cosmoramas, panoramas e outros espetáculos
baseados em efeitos óticos. Como ressalta Margarida Medeiros, ‚os
autômatos e androides são a figura principal da animação do século XVIII,
ao passo que o século XIX verá, a partir de 1800, desenvolverem-se
essencialmente as m{quinas óticas‛ (Medeiros, 2010, p. 76). A fetichização
secular dos dispositivos chega a tal ponto que ‚brinquedos óticos, dioramas
e fantasmagorias serão os sistemas maquínicos preferenciais do
oitocentismo‛ (Medeiros, 2010, p. 76).
A Gazeta do Rio de Janeiro de 1815 anuncia o leil o de ‚uma lanterna
m{gica e fantasmagórica‛ (Anônimo, 1815, p. 4), junto a um lote de livros,
estampas e um telescópio. Em circulação na Europa desde o século anterior,
a lanterna mágica pode ser assim descrita:

Uma caixa óptica de madeira, folha de ferro, cobre ou cartão, de forma cúbica,
esférica ou cilíndrica, que projeta sobre uma tela branca (tecido, parede caiada, ou
mesmo couro branco, no século XVIII), numa sala escurecida, imagens pintadas sobre
uma placa de vidro. Diabruras, cenas grotescas, eróticas, escatológicas, religiosas,
históricas, científicas, políticas, satíricas: todos os assuntos foram abordados. A
imagem é ‚fixa‛ ou ‚animada‛, pois a placa comporta um sistema mec}nico que
permite dar movimento ao assunto representado. (Mannoni, 2003, p. 58)

As lanternas mágicas passaram por verdadeiras mutações morfológicas


e, mediante modificações no tubo ótico, deram origem à chamada
phantasmagoria, um novo tipo de jogo de luzes que funcionava assim:

Os espectadores nunca viam o projetor, que estava escondido atrás da tela. Quando
as luzes no auditório baixavam, um fantasma aparecia na tela, primeiramente bem
pequeno; ele crescia rapidamente e parecia mover-se na direção da plateia (podia ser

16
Marcus Rogério Salgado Belle Époque: efeitos e significações

o contrário, também: o fantasma recuava, diminuindo de tamanho). (Mannoni, 1996,


p. 390)

Os resultados eram impactantes, pois ‚as vistas iluminadas eram


animadas e móveis, pareciam erguer-se na direção dos espectadores
aterrorizados, nem um pouco acostumados com tais assaltos pictoriais‛
(Mannoni, 1996, p. 390). Em uma velha edição de 1802 de l´Observateur des
spectacles, espremida entre o teatro de variedades, vaudeville e teatro
mecânico, é possível encontrar a chamada para uma das mitológicas sessões
da fantasmagoria de Robertson, anunciando para aquela noite a aparição de
fantasmas, ilusões, ventriloquia e truques óticos. As fantasmagorias se
aproveitavam do imaginário romântico, com seus fantasmas, duplos e
projeções. Nesse tipo de espetáculo encontramos codificada a retórica do
visível e do invisível que mobilizou ciência e arte ao longo do século XIX.
Louis Sebastian Mercier, em seu Néologie ou vocabulaire des mots nouveaux
(1801), consignava o quanto segue em relaç o a esse espet{culo ótico: ‚Estes
fantasmas criados à vontade e moventes, essas falsas aparências divertem ao
vulgo e fazem sonhar ao filósofo. O que é o espectro do espelho, o que há no
espelho? Existe, n o existe?‛ (Mercier, 1801, p. 259).
A ideia do duplo se expande em sua máxima potencialidade e
encontramo-la não apenas tematizada em obras do período (de Hoffmann a
Edgar Allan Poe) como também amalgamada aos princípios filosóficos e
psicológicos implicados na fotografia – que vem à superfície mesmo no
plano da linguagem, em termos como negativo, revelação, cópia etc e
sobretudo pela possibilidade de multiplicação de imagens a partir de um
mesmo original. Ainda que o duplo e a cópia sejam problemas diferentes,
em ambos a perfeição no ato multiplicador é obtida pela impossibilidade de
se afirmar qual seja o original – the real thing, como diria Henry James ou um
de seus personagens. De certo modo é possível afirmar que as
fantasmagorias pertencem à mesma categoria estética da fotografia
fantástica: contemplar o invisível pelo buraco da fechadura. E, de igual
forma, irmanam-se às fantasias da ciência oitocentista de uma ‚verificaç o
experimental do espiritual‛ (Milner, 1990, p. 160). Muito mais que uma
curiosidade científica – cujo olhar parece sinalizar para a inexistência de

17
Série E-book | ABRALIC

segredo que não possa ou mesmo não deva ser violado –, tais dispositivos
óticos engendram um gesto de ressonâncias ontológicas, realizado em dois
tempos, em que, no primeiro deles, o véu é levantado e que, no segundo, é
logo baixado, mantendo na penumbra a ordem oculta do mundo. Como se
percebe, esses dispositivos inscrevem o corte e a continuidade entre
imaginário e real.
Havia, ainda, os dioramas – em que se apresentavam pinturas para
uma plateia posicionada em um anfiteatro rotatório, com o adjutório de
luzes, emulando efeitos de tridimensionalidade e de movimento, vez que as
imagens pareciam transformar-se sob determinadas condições de
iluminação ou com o movimento do palco rotatório – e a grande sensação
dos cosmoramas.
Esses dispositivos apostavam para valer na força do artifício sobre o
olhar. O mais primitivo de todos, talvez, a lanterna mágica, anunciava em si
a possibilidade de uma experiência suprassensorial, pela qual se encenava o
acesso | ‚ilus o transcendental‛ (Andriopoulos, 2014, p. 46) mediante mídia
ótica – o que se acentua com as fantasmagorias e invenções como o
fantascópio. Assim, a partir de uma tática de estetização do real norteada
pelo ilusionismo e pela tensão dinâmica entre natureza e artifício, um
dispositivo como o diorama, ‚apresentado como um exemplo de ciência
ótica de ponta, produzia um ´efeito de natureza´ situado entre a tela pintada,
o sistema de iluminaç o e o olho do espectador‛ (Tresch, 2012, p. 140). Por
conta disso, ‚o diorama e o daguerreotipo eram vistos simultaneamente
como espetáculos mágicos e como inscrições realistas do mundo externo‛
(Tresch, 2012, p. 140). A aproximação no imaginário entre magia e técnica se
revela codificada até mesmo em um anúncio do britânico The Spectator
datado de 1834 em que se adverte da exibição do famoso diorama em
Regent´s Park com imagens de criptas, abadias arruinadas e cemitérios:
imediatamente abaixo dele, encontramos outro anúncio, a informar a
publicação de Lives of necromancers – livro que, diga-se, chegou a ser
resenhado por Edgar Allan Poe.
É claro que vai um longo caminho entre a ‚consciencialização da
ilus o‛ (Medeiros, 2010, p. 78) que marca a experiência dos primeiros
dispositivos óticos de entretenimento e a concepção da fotografia como
18
Marcus Rogério Salgado Belle Époque: efeitos e significações

‚dispositivo de verdade‛ (Medeiros, 2010, p. 78). De todo o modo, ao


‚ressaltarem o vínculo entre as tecnologias de representação realista e as
ilusões e ambiguidades metafísicas induzidas pelo espet{culo fant{stico‛
(Tresch, 2012, p. 140), tais inovações engendraram viragens epistemológicas
e deflagraram novos modos de percepção do espaço, do movimento e da
vida.
Baudelaire estava atento a essa viragem. É o que se depreende dessa
passagem transcrita por Walter Benjamin ao tratar do flâneur, em que o poeta
capta a ambivalência dos dioramas e trata-os como uma forma de ilusão útil:

Eu gostaria de ter de volta os dioramas com sua magia imensa e grosseira a me impor
uma ilusão útil. Prefiro olhar alguns cenários de teatro, nos quais encontro, tratados
habilmente em trágica concisão, os meus mais caros sonhos. Estas coisas, porquanto
absolutamente falsas, estão por isso mesmo infinitamente mais próximas da verdade;
nossos pintores paisagistas, ao contrário, são em sua grande maioria mentirosos,
justamente porque descuidaram de mentir. (apud Benjamin, 1996, p. 142-143).

Sua visão ambivalente sobre os dispositivos óticos apareceria


novamente no ensaio ‚No Sal o de 1859‛, ao tratar com desprezo o uso do
estereoscópio para finalidades de erotização massificada. Em um mundo de
peepholes, a visão se subordina aos apetites por obscenidade e transforma-se
em uma fresta pré-programada para um infinito de papel-cartão, tornando
visíveis a olho nu os efeitos das ‚técnicas imagin{rias da dominaç o por
meio de imagens e figuras‛ (Kittler, 2016, p. 93) implicados no uso dos
dispositivos.
Antes de Baudelaire, já Edgar Allan Poe escrevera sobre o
daguerreotipo, referindo-se, nessa mesma oportunidade, à câmera obscura e à
câmera lucida; microscópios, telescópios, caleidoscópios, lentes e espelhos
igualmente o interessavam.
A fascinação ambígua dos espetáculos óticos na vida urbana foi
observada por Balzac: em uma passagem de O Pai Goriot, romance de Balzac
que trata justamente da conquista da cidade por Eugène de Rastignac,
encontramos referência à mania dos dispositivos óticos entre os parisienses.
A demanda por tais espetáculos era tão grande que logo surgiram variações
e subvariações: uma edição de 1802 de l´Observateur de les spectacles informa a

19
Série E-book | ABRALIC

existência de um certo ‚Panstereorama‛, respons{vel pela exibiç o de uma


espécie de representação plástica de Londres, só que em relevo. Registra-se,
a rigor, uma profus o de ‚ramas‛: diorama, myriorama, panorama,
estereorama etc. O prestígio desses espetáculos era tão grande e
diversificado que causou uma verdadeira inundação de termos no vernáculo
formados a partir do sufixo ‚rama‛. Daí a irrupç o em uma cena do
romance de neologismos criados com o sufixo, como ‚sauderama‛ (Balzac,
2002, p. 70), ‚friorama‛ (Balzac, 2002, p.71) e ‚soparama‛ (Balzac, 2002, p.
71). Como o narrador admite, esses termos são resultado direto da ‚recente
invenção do Diorama, que levava a ilusão ótica a um grau mais alto que os
Panoramas‛ (Balzac, 2002, p. 70).
Também E. T. A. Hoffmann se ocupou profusamente de artefatos
ligados ao campo da ótica (binóculos, telescópios e espelhos em ‚O homem
da areia‛), quando n o tematizou a experiência de alteraç o artificial da
capacidade visual (em A princesa Brambilla e Mestre Pulga, bem como nos
contos ‚A casa deserta‛ e, novamente, ‚O homem da areia‛). Como ressalta
Milner, ‚o instrumento de ótica é para Hoffmann não só a metáfora
ambivalente da obra de arte como, para muitos de seus contemporâneos,
aquilo que efetua, no próprio relato, o encontro de dois universos ou de duas
identidades de um mesmo personagem, e o que postula a pergunta de sua
incompatibilidade ou de sua síntese ideal‛ (Milner, 1990, p. 35). Duplos,
cópias, projeções fantasmáticas, percepção caleidoscópica, distorções
especulares: entre a ciência e a magia, entre a técnica e arte já se movia,
assim, a escrita no século XIX, sob o forte impacto do industrialismo e de
uma nova atitude cultural diante da tecnologia.

2. Mídia ótica & the real thing

É difícil mencionar os óculos de Coppolla e não se lembrar de A luneta


mágica (1869), de Joaquim Manuel de Macedo – ainda que em sua receita de
composição participem outras tantas doses dos óculos do Doutor Pangloss.
A trama ingênua desse romance que atingiu grande sucesso durante o
Segundo Reinado é toda assentada sobre as possibilidades de percepção do
mundo propiciadas por um dispositivo ótico que dá nome à obra. Nele
20
Marcus Rogério Salgado Belle Époque: efeitos e significações

encontramos Reis, ‚o graduador de vidros miraculosos‛, baseado em


personagem da vida civil da época (cf: Sarmiento, 2010). Seu estabelecimento
– situado emblematicamente na Rua do Hospício – é apresentado por um
dos personagens como ‚um representante do espírito do século‛, pois ali se
comercializam bússolas, balanças de precisão, telescópios e microscópios.
Embora sua fama seja de ‚um realizador de impossíveis principalmente em
matéria de instrumentos óticos‛, Reis n o consegue encontrar lentes que
minimizem a miopia do protagonista. Considerando-se incapaz de resolver
com sua ciência o problema, Reis sugere a intervenção de um terceiro,
identificado apenas por sua procedência (é armênio), que, chegado no
último paquete, oferece uma luneta mágica. Além de não ser insensível à
deambulação pelo espaço urbano em busca de matéria arqueológica (de que
fazem prova Um passeio pela cidade do Rio de Janeiro e Memórias da rua do
Ouvidor), Macedo ainda se mostrava, em momentos mais inspirados de sua
prosa sempre apressada, atento a detalhes feéricos da paisagem urbana,
como nessa cena de A luneta mágica, exercício rápido de traçado de vista
panorâmica da cidade, na alternância entre a luz natural e a luz artificial:

A noite era formosa; a lua em fase plena mergulhava a cidade em um oceano de luz
pálida, mas clara, suave, encantadora e romanesca. Muitas vezes voltava-me para
contemplar essa já grande Babel, esse labirinto de ruas que formam a opulenta capital
do Brasil, e me embebia por minutos no grandioso panorama da bela Sebastianópolis
iluminada por milhares de flamas de gás, que simulavam enfeitiçá-la em noite de
festa. (Macedo, 1997, p. 172).

Em outro texto, ao admoestar a chegada do centenário da Rua do


Ouvidor, Macedo passa a evocar as profissões e atividades encontradas
nesta rua que era o centro nevrálgico da Corte, incluindo aí a imprensa, que
é vista a partir de uma metáfora de inspiração ótica:

Preparai-vos, ó modistas, floristas, fotografistas, dentistas, quinquilharistas,


confeitarias, charutarias, livrarias, perfumarias, sapatarias, rouparias, alfaiates, hotéis,
espelheiros, ourivesarias, fábricas de instrumentos óticos, acústicos, cirúrgicos,
elétricos e as de luvas, e as de postiços, e de fundas, e de indústria, comércio e artes, e
as de lamparinas, luminárias, faróis, e os focos de luz e de civilização, e vulcões de
ideias que são as gazetas diárias, e os armazéns de secos e molhados representantes
legítimos da filosofia materialista, e a democracia, popularíssima e abençoada carne-
21
Série E-book | ABRALIC

seca no princípio da rua, e no fim Notre Dame de Paris, a fada misteriosa de três
entradas e saídas e com labirintos, tentações e magias no vasto seio – preparai-vos
todos para a festa deslumbrante do centenário da rua do Ouvidor! (Macedo, 1988, p.
40).

Antes de Macedo, a loja de Reis já era referida por Alencar em duas


crônicas incluídas em Ao correr da pena, uma datada de 1º de outubro e a
outra de 6 de maio. Na primeira, Alencar refere-se ao encontro com uma
formosa dama no Baile do Cassino. O cronista recomenda os produtos da
loja de Reis para melhor se apreciar as estrelas no Teatro Lírico nos seguintes
termos:

Se não teve a felicidade de ver esta serena aparição no baile, tome o meu conselho. Vá
a casa do Reis, na rua do Hospício n.º 72. É a melhor loja de instrumentos de óptica e
de física que há nesta cidade: aí encontrará um sortimento magnífico de binóculos, de
telescópios e lunetas. Escolha a melhor jumelle eliptique que ele tiver, vá esta noite
beneficiar os italianos ouvindo música italiana, e lá examine o céu do Teatro Lírico,
que talvez tenha ocasião de ver a estrela de que lhe falei. Não fite muito o óculo; uma
estrela é tudo o que há mais puro e de mais casto neste mundo. (Alencar, 2004, p. 41-
42).

No mesmo texto, Alencar define, de forma jocosa mas precisa, o


cronista em suas relações com a paisagem e a vida urbanas mediadas pela
ciência: ‚o olhar erige-se em daguerreotipeiro e diverte-se em tirar retratos
d´après nature. E o tato vai estudar praticamente o magnetismo, para
descobrir as causas misteriosas dos estremecimentos que produz a pressão
doce e tépida de uma m ozinha delicada‛ (Alencar, 2004, p.36).
Na segunda, o cronista dirige-se à loja de Reis e – entre telescópios,
óculos chegados da Europa e ‚muitos outros instrumentos para medir as
distâncias, tomar as alturas das montanhas, estudar as variações da
atmosfera, muita coisa enfim que os nossos avós teriam de certo classificado
como bruxaria‛ (Alencar, 2004, p. 307) – acaba por levar uma luneta que gera
alterações extremas na percepção da realidade de quem a porta:

Visões fantásticas surgiram de repente começavam a dançar um sabbat vertiginoso no


meu cérebro escandecido. Via cenas do Roberto do Diabo, de Macbeth, do Paraíso
Perdido e da Divina Comédia, mais bem pintadas do que as de Bragaldi, de Dante, de
Milton, e de todos os pintores e poetas do mundo. (Alencar, 2004, p. 310).

22
Marcus Rogério Salgado Belle Époque: efeitos e significações

Numa passagem de Sonhos d´Ouro, José de Alencar mostra como a


literatura já absorvia o impacto sobre a percepção gerado pelos dispositivos
e espetáculos óticos. Ricardo percebe o corpo da amazona disposto contra o
pano de fundo da paisagem natural como se o mesmo fora estilizado por um
diorama:

Eis o quadro original que Ricardo viu de relance. O vulto da moça, esclarecido por
um raio do sol coado entre a folhagem, se estampava no fundo azul, com vigor de
colorido e animação de tons admiráveis. Através da névoa sutil que há pouco
envolvia seu espírito, o desenhista podia supor um instante que via uma paisagem de
Delacroix através da ilusão diáfana de um diorama. (Alencar, 1959, p. 712).

A ação de Sonhos d´Ouro transcorre nos domínios das altas classes


urbanas. Como ressalta Carmem Lúcia Negreiros de Figueiredo, ‚nesse
ambiente, a estereoscopia, o diorama e a fotografia são como formas mágicas
que estabelecem um novo paradigma de relações abstratas entre indivíduos
e coisas e impõem essas relações como reais‛ (Figueiredo, 2008, p. 2). Além
disso, nesse romance já encontramos a absorção pela literatura do impacto
gerados pelas mídias óticas sobre as formas de perceber o mundo, sobretudo
no ambiente urbano, sendo possível detectar aí ‚a palavra liter{ria que alude
aos inventos óticos e incorporando a força da imagem na sucessão,
justaposição, movimento e cortes de cenas que exploram a cor, o desenho,
sombras e luzes, o deslocamento, o detalhamento exaustivo e a sugestão
vaga, a fixaç o de cen{rios e personagens‛ (Figueiredo, 2008, p. 2).
Se Charles Dickens considerava Londres uma lanterna mágica (sem a
qual sua escrita logo se ressentia), a Livraria B. L. Garnier anunciava em seu
catálogo um volume intitulado Episódios da história pátria, cuja organização
dos conteúdos é apresentada como an{loga a de um diorama, ‚que,
variando sem cessar de vistas, recreia a imaginaç o e fortalece o espírito‛
(apud: Garnier, 1868, p. 9). Antes, entre 1844 e 1845, circulou a revista A
Lanterna Mágica, dirigida por Araújo Porto-Alegre e Torres-Homem,
importante órgão do romantismo brasileiro, cujo nome de batismo reflete, em
alguma medida, o prestígio das metáforas óticas como formas representativas
da percepção da força dinâmica da vida em seus aspectos

23
Série E-book | ABRALIC

plásticos, multifacetados e em contínua mutação. Nesse sentido, importa


lembrar a frequência com que a política foi equiparada aos dispositivos
óticos: à maneira desses dispositivos, haveria em ambos um assombroso
potencial mágico e fantasmagórico. Ou, como lemos no Carapuceiro, ‚os
governos sucedem-se, como as vistas dos cosmoramas‛ (Gama, 1839, p. 3).
Os dispositivos óticos convertem-se em tropos e matéria de símiles e
analogias.
Para além da ficção brejeira de Macedo e da vida modorrenta flagrada
nos periódicos da Corte, o fato é que no Brasil do século XIX já se encontra
uma demanda por aparelhos e espetáculos óticos de diversão: os anúncios
nos jornais da época perfazem uma imagem bastante nítida de sua
circulação em estabelecimentos óticos, entre lentes, microscópios e
telescópios (cf: Silva, 2006). No Jornal do Commercio de 31 de janeiro 1834, o
médico espanhol José Félix Muniz – também proprietário de um gabinete de
espetáculos óticos – definiu o interesse da época pelos espetáculos óticos, em
que se misturam ciência, arte, entretenimento e educação, proveito e prazer:

Poucas ciências físicas apresentam maior utilidade e divertimento ao homem do que


a Ótica. Por ela, apresentando este aos olhos os objetos debaixo de um diferente
ângulo visual, e abrangendo um maior número de raios da luz refletida pelos
mesmos, achou o meio de engrandece-los à sua vista, e aproximá-los a si; abrindo
deste modo à sua contemplação a conquista de um novo mundo científico, cuja
existência lhe era desconhecida. A distância e a pequenez dos objetos não contrariam
mais como dantes as investigações de sua curiosidade, e as empresas de seu ardor de
saber, e de melhorar a sua sorte; e pelos aparelhos e mais instrumentos que a Ótica
lhe fornece, ele viu diante de si um espetáculo que não só enriqueceu a ciência e a arte
com muitas vantagens, como também granjeou a seus sentidos e a sua imaginação as
ilusões mais belas e deleitosas, de maneira que essa ciência foi para ele uma fonte de
proveito e de prazer. Entre as ilusões divertidas que a Ótica fornece com o jogo de
seus fenômenos, é certamente mui grande e mui agradável a do quadro quase natural
que ela apresenta de cidades, passagens e localidades, mui vastas e remotas que a
pintura mal pode retratar em pequeno ponto. Em todos os tempos e em os países
mais cultos, este espetáculo sempre interessou as pessoas de gosto e amantes do belo.
(Muniz, 1834, p. 3)

Uma busca pelos periódicos das primeiras décadas do século XIX


prova a estima por tais espetáculos que nutria a sociedade da época. O Jornal
do Commercio de 14 de junho de 1830 anunciava a exibição (ou, como se dizia

24
Marcus Rogério Salgado Belle Époque: efeitos e significações

à época, patenteava ao público) de um diorama na rua Direita,


representando a passagem sob o Tâmisa, em Londres, a 400 réis a entrada. O
Diário do Rio de Janeiro de outubro 1835 informava que no Diorama da Rua
do Ouvidor, n. 212, se daria a representação de, entre outras cenas novas, a
famosa Batalha de Almoster. Pouco abaixo, na mesma edição, lê-se que no
Cosmorama da Rua da Vala, n. 130, amanhã domingo, se apresentará a
grande batalha do exército de Napoleão com o exército austríaco. Chama
atenção a preferência por imagens de guerra: levando-se em conta que a
fotografia ainda não atingira seu momento de massificação, as imagens de
conflitos bélicos circulantes no século XIX ainda estavam mormente
figuradas no campo plástico da pintura. No caso brasileiro, há que se
lembrar do italiano De Martino, pintor oficial da Guerra do Paraguai, e
também de certa tradição de pintura monumental que tem na Batalha do
Avaí, de Pedro Américo, e no Conflito naval do Riachuelo, de Victor Meirelles,
sua síntese. Cumpre lembrar que estudos mais recentes têm sinalizado para
o interesse e mesmo a utilização de dispositivos óticos por parte dos pintores
do período, como se depreende do estudo de Vladimir Machado sobre o
tema (cf: Machado, 2008). Antes disso, contudo, já os espetáculos óticos
atendiam à demanda por imagens de guerra, com a exibição de cenas de
grandes batalhas.
Na década de 1830, o Rio ‚se encheu de cosmoramas, em permanente e
rumorosa rivalidade‛ (Ferreira, 1994, p. 448). Na ediç o do Jornal do
Commercio de junho de 1835 é possível encontrar um anúncio informando
que, dentro de seis dias, ocorrerá, no Teatro São Francisco de Paula, a
exibição de vistas animadas de cidades estrangeiras, incluindo a francesa
Grenoble, com anunciado efeito de luar; o mesmo anúncio observa que nos
intervalos se executarão peças sinfônicas. Espremido entre um anúncio de
venda de um casal de escravos e um de procura por capatazes, na mesma
ediç o foi impresso um ‚Aviso ao Público‛, no qual s o criticados os
diversos cosmoramas, panoramas, lanternas mágicas e outras marmotas da
cidade, para, enfim, elogiar o diorama da Rua do Ouvidor, número 212, no
qual eram apresentadas vistas do Rio de Janeiro, Paris, Londres etc, a 160
réis a entrada. Esse não foi o único gabinete de espetáculos óticos que a Rua
do Ouvidor, então centro nevrálgico da vida social da Corte, abrigou. No
25
Série E-book | ABRALIC

número 181 funcionava outro, no qual se apresentava uma vista da Fonte de


Santa Sofia. Em 1834, o Diário do Rio de Janeiro anunciava, na seção de
‚Notícias particulares‛, a venda do cosmorama de Félix Muniz (que,
inicialmente locado na rua da Cadeia, migrara para a rua do Ouvidor, em
sala com capacidade e número de vistas ampliados):

O proprietário do Cosmorama da Rua do Ouvidor n. 175, canto da dos Latoeiros,


tendo de regressar a Espanha de onde é natural, e de onde emigrou em 1825, por ser
constante em seus princípios, pondo-se ao abrigo das leis deste País eminente
hospitaleiro, respeito a haver cessado os motivos de sua imigração, com as mudanças
atualmente ocorridas naquele ministério, e as bem fundadas esperanças de uma total
reforma na política daquele governo, para deste modo reunir-se à sua prezada
família, e reintegrar-se na posse de seu emprego, que abandonou depois de vinte
anos de constantes serviços, oferece à venda o seu estabelecimento de Cosmorama
completo, tal qual existe atualmente; as pessoas que o pretenderem, poderão tratar na
mesma casa. (Anônimo, 1834, p. 3)

A presença dos cosmoramas na rua do Ouvidor foi tematizada em um


poema humorístico publicado em 1837 em A mulher do Simplício ou A
Fluminense Exaltada, periódico de curta duração publicado por Paula Brito:

Como brilhante se acha estes dias


A Rua do Ouvidor! Confeitarias
Armadas todas de festões mimosos,
Que agradam tanto aos olhos curiosos,
Oferecendo estão cenas muito belas
Aos velhos, velhas, moços e donzelas,
Que aproveitando a noite, e a clara lua,
Tem enchido, em farranchos, toda a rua.
No princípio se avista um Cosmorama
Em que um mau realejo a todos chama
Para verem (deixando-se na entrada
Meia pataca boa, que maçada!)
Lutar no horror terrífico de Marte
O Grande Napoleão, o Bonaparte (...)
O Vesúvio se avista incendiado
Que mais de vezes cem já se há mostrado.
Aqui veem-se mil tropas se batendo,
Ali Fieschi, Morey, Pepin morrendo
Com o seu companheiro por tentarem
Ao seu atual Rei assassinarem;
Vê-se outras muitas coisas, e painéis,

26
Marcus Rogério Salgado Belle Époque: efeitos e significações

Que nem ao menos valem trinta réis,


E pior sendo tudo acompanhado
Do realejo em tom desafinado.
(Anônimo, 1837, p. 9-10)

O prestígio dos espetáculos óticos não se limitou à Corte, chegando às


províncias. Um anúncio do Recopilador Liberal de 1835 informa que o
Cosmorama da Rua de Bragança, em Porto Alegre, ‚acaba de botar em vista
a Cidade do Porto‛ (apud Dornelles, 2004, p. 44), ressaltando n o apenas o
pitoresco da exibiç o, como também o fato de que ‚a dimens o desta vista éa
mesma que a do Rio de Janeiro‛ (apud Dornelles, 2004, p. 44). Como
informa Aline Trusz, ‚entre 1841 e 1873, ao menos, exibidores itinerantes de
caixas e vistas óticas expuseram as suas imagens em Porto Alegre de forma
independente, empregando aparelhos que rebatizaram como cosmoramas e
cicloramas‛ (Trusz, 2008, p. 33). O Diário de Pernambuco de 1839 participava
ao público a chegada do Cosmorama de Monsieur Desbarat, também
referido como teatro ótico pitoresco, com entradas a mil réis, sendo possível
contratar sessões privadas do espetáculo. No mesmo ano, em Salvador era
possível contemplar vistas de Jerusalém, Malta, Porto, Madrid etc ou cenas
de batalhas militares em um cosmorama com entradas a 160 réis. Em São
Paulo, a Rua da Imperatriz (futura rua XV de Novembro) acomodava um
diorama de 500 réis. Tais espetáculos, como dito, não se concentravam nas
capitais das províncias, pois, como se deduz de um anúncio no Recopilador
Campista de 1837, em Campos dos Goytacazes era possível atender às
sessões de Cosmorama com seis cenas representadas e a 320 réis por pessoa.
Como se verifica, havia, de fato, uma oferta significativa de
entretenimentos que se propunham a apresentar ao espectador imagens
capazes de, por meio de efeitos óticos, colocar em xeque a percepção visual.
Os panoramas tinham funcionamento simples, mas de grande impacto:
‚desfraldando diante do espectador uma tela circular na qual a perspectiva é
exatamente respeitada, trata-se de criar nele a ilusão completa da realidade e
dar-lhe, assim, a impressão de contemplar uma paisagem ou de presenciar
uma batalha naval‛ (Milner, 1990, p. 20). As lanternas m{gicas e
cosmoramas eram mais simples ainda: essencialmente ‚um tabique, e nesse
tabique uma fileira de buracos à altura dos olhos da curiosidade; em cada
27
Série E-book | ABRALIC

buraco uma lente‛ (Ferreira, 1996, p. 449). Como frisa Max Milner, pode-se
atribuir grande parte do efeito causado por esses espetáculos óticos à
‚passagem de um espaço urbano a um espaço totalmente distinto‛ (Milner,
1990, p. 21). É como se esses equipamentos óticos permitissem o
desvelamento daquilo que os surrealistas chamariam, a partir do segundo
quartel do século XX, de ‚mais-realidade‛. N o é por acaso que em um dos
números da revista Minotaure encontramos uma imagem de um raio elétrico
obtida por método de fotografia científica diretamente associada à escrita
automática, o que Breton repetiria em uma collage intitulada ‚A escrita
autom{tica‛, na qual se vê um microscópio do qual parecem jorrar animais,
à maneira de uma cornucópia de imagens (cf: Poivert, 2006, p. 74). Ainda no
século XIX, o pensamento científico já associava diretamente percepção
visual e conduta psicológica, sendo certo que mesmo Freud ‚acreditou no
acesso a um ´a-mais de real´ por meio dos aperfeiçoamentos da ótica‛ (Huot,
1991, p. 30). Para Hervé Huot, em seu estudo sobre a importância do olho e
do olhar no pensamento e na pr{tica clínica do psicanalista, ‚devemos, ali{s,
constatar que de ponta a e ponta de sua obra, desde Die Traumdeutung,
Freud mão cessa de tomar como modelos de uercomparação para o aparelho
psíquico instrumentos óticos, microscópio, telescópio ou aparelho
fotogr{fico‛ (Huot, 1991, p. 32).
Vale lembrar, ainda, que os dioramas estão diretamente vinculados à
fotografia. Como ressalta Celeste Olalquiaga, no capítulo de seu estudo
sobre modernidade e artifício em que trata dos panoramas e dos dioramas,
‚inventados em finais do século XVIII, eles foram refinados por Daguerre,
um dos inventores da fotografia, que mostrou seu ´Diorama´ em Paris, onde
foi considerado uma ´salle de miracle´, uma espécie de c}mara maravilhosa‛
(Olalquiaga, 1998, p. 23). A Walter Benjamin não passou despercebido o fato
de que ‚no mesmo ano em que Daguerre inventou a fotografia, seu diorama
foi destruído pelo fogo: 1839‛ (Benjamin, 2009, p. 573). Há que se atentar, no
entanto, para o fato de que, no tocante às relações engendradas entre as
mídias óticas características da cultura visual oitocentista, ‚essas formas de
representação [dioramas, cosmoramas etc] estavam, até certo ponto, em
competição, eram influenciadas e influenciavam a fotografia, mas tinham

28
Marcus Rogério Salgado Belle Époque: efeitos e significações

uma distinta relaç o com as artes pl{sticas e o entretenimento popular‛


(Wilson, 2004, p. 31).
Nas Passagens, Benjamin não deixa de apontar a relação direta entre
esses dispositivos óticos e o cinema. O diorama é definido da seguinte
forma: ‚trata-se aqui de uma espécie de precursor lúdico da projeção
acelerada no cinema, uma aceleração espirituosa, dançante, um tanto
maliciosa do decurso do tempo‛ (Benjamin, 2009, p. 571). J{ em relaç o aos
panoramas, Benjamin cita Marcel Poëte, para quem ‚a voga dos panoramas,
entre os quais assinalamos o de Boulogne, correspondia então a dos
cinematógrafos de hoje‛ (Benjamin, 2009, p. 572).
Além disso, não se pode esquecer que Vue de Paris depuis les Tuileries, o
notório panorama exibido em Paris em 1800, ‚foi obra do americano Robert
Fulton, que três anos depois viria a construir o primeiro barco a vapor,
dando início a um ciclo de transformação nos transportes que teria grandes
consequências sobre o modo de percepç o e representaç o da realidade‛
(Müller, 2007, p. 133). Para John Tresch, ‚o panorama era de interesse para
os cientistas pois ele estimulava e ao mesmo tempo tornava observáveis os
mecanismos da percepç o‛ (Tresch, 2012, p. 136).

3. A escrita na estufa urbana: entre percepção e técnica

Assim, para entendermos a imagem-miragem de uma cidade moderna


e cosmopolita em circulação nas primeiras décadas do século XX, surge a
necessidade de se avaliar a força e os efeitos impressos pelas novas técnicas
sobre a percepção ao longo do processo de configuração da modernidade
estética. Como ressalta Nelson Brissac Peixoto, foi nos dioramas, nos
panoramas, nas Exposições Universais e na arquitetura das passagens que
começou a se delinear ‚uma paisagística do urbano‛ (Peixoto, 1996, p. 36).
Por meio dos dispositivos óticos, ‚a cidade ganha as dimensões de uma
paisagem, como também ela o seria, mais sutilmente, para o fl}neur‛
(Peixoto, 2003, p. 111). E, com essa paisagística do urbano, emerge uma poética
do urbano em contexto moderno, que parece codificada nas obras de autores
como Baudelaire – em particular a seç o ‚Quadros parisienses‛ de As flores
do mal – mas cujos antecedentes, a bem da verdade, ‚s o as colet}neas
29
Série E-book | ABRALIC

folhetinescas e séries de esboços da metade do século‛ (Benjamin, 2009, p.


573). Nesses folhetins e em obras como Os mistérios de Paris encontraríamos
j{ ‚uma vasta literatura cujo car{ter estilístico oferece um equivalente
perfeito aos dioramas, panoramas etc‛ (Benjamin, 2009, p. 573).
Ao trazermos o problema para o âmbito brasileiro, resta explícita a
contribuição da linhagem pioneira de prosa urbana entre nós para a
configuração da modernidade estética. Já em suas primeiras manifestações,
fica clara a preocupação em fazer ver a cidade. Assim, em 1837, o periódico
Gabinete de Leitura publicou três textos que tematizavam a vida na urbe, dois
deles focalizando os deslocamentos pela cidade – a saber: ‚Uma visita‛,
‚Vamos | feira‛ e ‚Um baile‛. Pouco depois, em 1839, o Correio das Modas
publica ‚Minhas aventuras numa viagem nos ônibus‛ e ‚Uma viagem na
barca de vapor‛, ressaltando que, dentro dos modos de deslocamento
previstos para o espaço urbano, o transporte coletivo ‚nivela as condições e
estabelece completa igualdade entre todas as pessoas‛ (Pena, 1839a, p. 30). O
percurso da viagem de ônibus começa em Laranjeiras, passa pelo Largo do
Machado e pela rua do Catete, até chegar, enfim, ao Largo do Rocio (atual
Praça Tiradentes). Para realizar a viagem pela barca a vapor, é necessário
primeiro chegar à estação e, para tanto, percorrer as ruas labirínticas do Rio
antigo – e com ele vai se reconstituindo diante da imaginação esse cenário
desintegrado na poeira do tempo, persistindo, apenas e quando muito, a
toponímia: ‚enfio pela rua da Cadeia como um foguete; atravesso a rua da
Misericórdia; passo pela rua do Teatro de São Januário; e acho-me na Praia
de D. Manuel‛ (Pena, 1839b, p. 126). Chegando | estaç o, ficamos sabendo
que a barca a vapor não é o único meio de transporte possível para a
travessia da Baía, sendo disponível, também, uma espécie de precursor do
transporte alternativo, que eram as faluas:

– Senhor vai para S. Domingos?


1. – Pataca e meia, eu passa Senhô p´ra Praia Grande.
2. – Não quero ir de falua – respondo já de bengala no ombro, vendo vir novo
reforço. Em poucos instantes vejo-me cercado sem poder dar um passo.
3. – Falua, Senhor? – A minha é mió. – Entra na minha, falta só uma pessoa;
dois
vinténs! – Senhô! Senhô! A barca ainda tarda! – Senhor está com pressa, vem...
(Pena, 1839b, p. 126)

30
Marcus Rogério Salgado Belle Époque: efeitos e significações

Na prosa apressada, para consumo imediato, da crônica-folhetim


persiste o esforço por assimilar à narrativa elementos da paisagem urbana,
fazendo ver a cidade. É nesse painel da primeira metade do século XIX que
podem ser procurados os antecedentes da referida linhagem de literatura
urbana, na qual certamente há de figurar O filho do pescador – cotada entre as
primeiras obras a que se poderia chamar de romance brasileiro, disputando
essa primazia com narrativas longas do século anterior e do seu e ostentando
como subtítulo: ‚romance brasileiro – original‛ –, escrito por Teixeira e
Sousa e publicado em 1843. Apesar dos lances rocambolescos que compõem
a narrativa ambientada na Corte, despontam, aqui e ali, informações que
visibilizam a vida urbana da época e que, somadas, traçam ‚um quadro de
costumes do Rio de Janeiro da primeira metade do século XIX‛ (Tinhor o,
2000, p. 58). Ambientado no Rio de finais do século anterior, do segundo
romance de Teixeira e Sousa, Tardes de um pintor (1847), Antonio Candido
elogiaria ‚a descriç o do bas-fond carioca, com seus valentões estipendiados,
seus ciganos, seus falsos mendigos, bodegueiros, moleques, num primeiro
esboço do que faria Manuel Antônio de Almeida‛ (Candido, 2009, p. 452).
Na raiz da linhagem de escrita urbana encontra-se o dramaturgo e
folhetinista Martins Pena. Nas duas ‚viagens‛ de 1839 acima mencionadas,
Martins Pena focaliza a vida urbana não em seus elementos paisagísticos,
trazendo à cena ainda os tipos humanos e as situações tipicamente citadinas.
A barca a vapor retorna na peça As casadas solteiras, mas agora partindo de
Paquetá. Em Um sertanejo na corte, Martins Pena propõe uma literatura
dramática que, além de citadina, chega mesmo a tematizar a experiência na
grande cidade. O diletante registra a trilha sonora de meados do século XIX,
com seus lundus, modinhas e operetas a circularem pelas ruas, salões e
teatros da Corte. Os ambientes urbanos e a evocação de práticas sociais de
ambientação citadina marcam O caixeiro da taverna (com a evocação ao
entrudo e às vicissitudes do comércio), ao passo que a discreta expansão
industrial do Brasil Imperial é satirizada nas engenhocas delirantes de Os
dous ou o maquinista inglês. Vale lembrar que, havendo desde 1828 medidas
fiscais para incentivar a produção nacional de bens seriados, o pano de
fundo de uma peça como Os dous ou o maquinista inglês é tanto o do malogro
31
Série E-book | ABRALIC

dos esforços individuais para o desenvolvimento industrial como o da


entrada em cena de investidores-especuladores estrangeiros, cuja presença
sinaliza para uma ambientação urbana e cosmopolita – mas de um
cosmopolitismo movido pela equação econômica, desde sempre.
O mesmo vale para a mistura de crônica, flânerie e costumbrismo
urbano de Joaquim Manuel de Macedo, a que aludimos anteriormente. Nas
Memórias da rua do Ouvidor e em Um passeio pela cidade do Rio de Janeiro,
Joaquim Manuel de Macedo propõe uma espécie de cronista-cicerone, que,
além de instigar deslocamentos pelo corpo da cidade (no espaço), também se
lança a uma prospecção arqueológica da experiência urbana (no tempo). Em
um estudo muito importante para a reavaliação da obra de Macedo,
publicado na Revista Acadêmica em 1940, Prudente de Moraes Neto (sob o
habitual pseudônimo Pedro Dantas) gaba, na obra macediana, o ‚cronista
meticuloso e fidedigno da nossa vida social nos meados do século passado‛
(Dantas, 1940, p. 16). Muito atento às lendas urbanas e às fontes orais da
história, em seus passeios arqueológicos pelo Rio de Janeiro o cronista-
cicerone se socorre de depoimentos de pessoas contemporâneas aos fatos
que apresenta, criando uma urdidura densa entre lenda e realidade, entre
reconstituição histórica e criação coletiva. Nas Memórias, segue um roteiro
cronológico pelo qual apresenta a biografia de uma rua – que, vale reparar,
nasce como um ‚desvio‛ – a partir de tradições orais, anedotas, fatos
curiosos e costumes urbanos, conseguindo, em seus melhores momentos
(como nos capítulos dez e doze), flagrar as dinâmicas da vida social
brasileira ao longo do tempo. Em Um passeio, descartada a necessidade de
cumprir um sequenciamento cronológico, o texto se compõe justamente a
partir de um verdadeiro deambulatório, ao qual o leitor é convidado a seguir
j{ nas p{ginas iniciais: ‚Excluamos do nosso passeio toda a ideia de ordem
ou sistema‛, concluindo com o convite sempre acintoso onde quer que se
insinuem as forças de controle social: ‚Passeemos | vontade: a polícia o
permite e as posturas da ilustríssima Câmara o não proíbem. Estamos no
nosso direito: passeemos‛ (Macedo, 2004, p. 25). Como salienta Pechman, ‚a
cidade é irredutível em Macedo‛ (Pechman, 2002, p. 191). Por conta disso, A.
Candido n o hesita em atribuir a Macedo o papel de ‚haver lançado a
ficç o brasileira na senda dos estudos de costumes urbanos‛ (Candido, 2009,
32
p. Marcus Rogério Salgado

33
Belle Époque: efeitos e significações

461), revelando-se, com o tempo, o que chama de ‚valor document{rio‛


(Candido, 2009, p. 461) de seus romances, vez que, embora limitados em
termos de carpintaria e fatura, registram as práticas sociais de sua época:

Os saraus, as visitas, as partidas, as conversas, os domingos na chácara, os passeios de


barca; as modas, as alusões à política; a técnica do namoro, de que procura elaborar
verdadeira fenomenologia; a vida comercial e o seu reflexo nas relações domésticas e
amorosas – eis uma série de temas essenciais para compreender a época, e que
encontramos bem lançados em sua obra, de que constituem talvez o principal atrativo
para o leitor de hoje. (Candido, 2009, p. 461)

Para Flora Süssekind, há um importante gesto de inversão implicado


na escolha de Macedo, enquanto romântico, pela estufa urbana, em
detrimento do elogio da natureza tropical prescrito por Denis décadas antes:
‚Agora, em vez de matas densas, imensas, fala-se de algum jardim público;
em vez de uma sucessão de cachoeiras, descrevem-se confeitarias e
conventos, com porta de entrada, muros e limites bastante visíveis‛
(Süssekind, 1990, p. 231) – conseguindo, de alguma forma, driblar a
estereotipificaç o ‚pl{stico-literária de um Brasil-paisagem natural‛
(Süssekind, 1990, p. 29) e desviar-se dos ‚sistemas específicos de
classificaç o e representaç o da paisagem e da nacionalidade‛ (Süssekind,
1990, p. 54) vigentes durante o romantismo.
A partir da constatação de Benjamin do estabelecimento de vasos
comunicantes entre literatura e dispositivos óticos, se vínculos íntimos se
tramam entre escrita e técnica, de igual forma as conexões entre dioramas,
panoramas etc e a fotografia e o cinema mostram que, para entender o
processo de obtenção de um certo registro estilístico urbano (tanto no campo
artístico no da técnica), é necessária uma arqueologia da mídia ótica em seu
instante de penetração no imaginário das grandes cidades – colaborando,
como vimos em relação à Capital Federal, para a figuração de uma imagem-
miragem.
Em fim de contas, a presença de tais antecedentes mostra como a
configuração da modernidade estética no Brasil não foi obtida mediante
salto único e mortal na década de 1920, constituindo-se, antes, um longo
processo de construção, cujos marcos iniciais podem ser remontados ao

34
Série E-book | ABRALIC

século XIX. Se é certo que o último quartel do oitocentos testemunhou a


‚imagem fotogr{fica em seu momento de massificaç o‛ (Fabris 1991: 33), é
igualmente certo que o surgimento popularidade comprovam a emergência
de uma espécie de iconografia industrial capaz de atender à referida
demanda. De par com as novidades técnicas – como os dioramas e
panoramas, a fotografia e o cinema, para ficarmos no campo ótico –, revistas
e jornais também foram afetadas pelas transformações técnicas no campo da
reprodutibilidade da imagem. Dados os vasos comunicantes estabelecidos
diretamente entre periodismo e literatura e os efeitos das inovações no
horizonte técnico percebidas desde o século XIX, para entender o processo
de configuração da modernidade estética (sobretudo em seus aspectos
perceptuais) o exercício de uma espécie de arqueologia do olhar em espaço
urbano se revela precioso, justamente porque necessário, colaborando para
se aferir em que grau e extensão a escrita (jornalística e literária) das
primeiras décadas do século XX absorveu, em suas estruturas mais
profundas (tanto as estilísticas quanto as ligadas às instâncias de
organização do pensamento), as alterações de percepção engendradas pelos
dispositivos óticos que prenunciaram a fotografia e o cinematógrafo.

REFERÊNCIAS

ALENCAR, José de. (1959). Obra completa – Vol. 1. Rio de Janeiro: Aguilar.
. (2004). Ao correr da pena. São Paulo: Martins Fontes.

ANDRIOPOULOS, Stefan. (2014). Aparições espectrais. Rio de Janeiro:


Contraponto: Museu de Arte do Rio.

Catálogo da Livraria de B. L. Garnier – número 23. (1868). Rio de Janeiro: B. L.


Garnier.

ANÔNIMO. (1815). Gazeta do Rio de Janeiro. Número 73. 13 de setembro, p. 4.

. (1818). Gazeta do Rio de Janeiro. Número 42. 27 de maio, p. 4.

34
Marcus Rogério Salgado Belle Époque: efeitos e significações

. (1834). Diário do Rio de Janeiro. Número 2. 2 de abril, p. 3.

. (1837). A mulher do Simplício ou A Fluminense Exaltada. Número


55. 5 de março, p. 9-10.

ÁVILA, Myriam. (2008). O retrato na rua: memórias e modernidade na cidade


planejada. Belo Horizonte: Editora da UFMG.BALZAC, Honoré de. (2002). O
Pai Goriot. São Paulo: Estação Liberdade.

BENJAMIN, Walter. (2009). Passagens. Belo Horizonte: UFMG; São Paulo:


Imprensa Oficial do Estado de São Paulo.

CANDIDO, Antonio. (2009). Formação da literatura brasileira: momentos


decisivos, 1750-1880. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul.

DANTAS, Pedro *Prudente de Moraes, Neto+. (1940). ‚O romance


brasileiro‛. In: Revista Acadêmica. Rio de Janeiro, Fevereiro.

DORNELLES, Beatriz. (2004). Porto Alegre em destaque: história e cultura. Porto


Alegre: Editora da PUC-RS.

FABRIS, Annateresa. (1991). Fotografia: usos e funções no século XIX. São


Paulo: EdUSP.

FERREIRA, Orlando da Costa. (1994). Imagem e letra. São Paulo: EdUSP.

FIGUEIREDO, Carmem Lúcia Negreiros de. (2008). ‚Ecos de pitoresco com


ar de fotografia: a paisagem e a cidade‛. In: Anais on-line do XI Congresso
Internacional da ABRALIC. Disponível
<http://www.abralic.org.br/eventos/cong2008/AnaisOnline/simposios/pdf/03
9/CARMEM_FIGUEIREDO.pdf>. Acessado em 10/11/2017.

GAMA, Lopes. (1839). ‚O Bairrismo‛. In: O Carapuceiro. N. 20, 30 de maio, p.


3.

HUOT, Hervé. (1991). Do sujeito à imagem: uma história do olho em Freud. São
Paulo: Escuta.

KITLER, Friedrich. (2016). Mídias ópticas. Rio de Janeiro: Contraponto.


35
Série E-book | ABRALIC

MACEDO, Joaquim Manuel de. (1988). Memórias da rua do Ouvidor. Brasília:


UnB.
. (1997). A luneta mágica. São Paulo: Iluminuras.

. (2004). Um passeio pela cidade do Rio de Janeiro. Volume I. Rio de


Janeiro: Fundação Biblioteca Nacional; São Paulo: Planeta.

MACHADO, Vladimir. (2008). ‚Projeções luminosas e os métodos


fotográficos dos panoramas na pintura da Batalha do Avaí (1875-1876)‛. In:
Revista 19&20. Rio de Janeiro, v. III, n. 1, janeiro. Disponível em:
<http://www.dezenovevinte.net/obras/obras_pa_avahy.htm>. Acesso em
06/09/2017.

MANNONI, Laurent. (1996). ‚The Phantasmagoria‛. In: Film History.


Indiana University Press. Vol. 8, No. 4, International Trends in Film Studies.
. (2003). A grande arte da luz e da sombra: arqueologia do cinema, São
Paulo: Editora SENAC: UNESP.

MEDEIROS, Margarida. (2010). Fotografia e verdade: uma história de fantasmas.


Lisboa: Assírio & Alvim.

MERCIER, Louis Sébastien. (1801). Néologie ou vocabulaire des mots nouveaux.


Paris: Chez Moussard.

MILNER, Max. (1990). La fantasmagoria. Ciudad de México: Fondo de


Cultura Económico.

MÜLLER, Adalberto. (2007). ‚A lucarna do infinito: Baudelaire e a


fotografia‛. In: Alea. Volume 9, número 1, janeiro-junho, pp. 131-140.

MUNIZ, José Félix. (1834). ‚Cosmorama. Ou Ilus o Ótica divertida de vistas


de Cidades e paragens em ponto grande quase ao natural‛. In: Jornal do
Commercio. Ano VIII, n. 24. 31 de janeiro, p. 3.

OLALQUIAGA, Celeste. (1998). The Artificial Kingdom. New York: Pantheon.

PECHMAN, Robert M. (2002). Cidades estritamente vigiadas. Rio de Janeiro:


Casa da Palavra.
36
Marcus Rogério Salgado Belle Époque: efeitos e significações

PEIXOTO, Nelson Brissac. (2004). Paisagens urbanas. São Paulo: Senac.

PENA, Luís Carlos Martins. (1839a). ‚Minhas aventuras numa viagem aos
ônibus‛. In: Correio das Modas – Jornal Crítico e Litterario das Modas, Bailes,
Theatros etc. Sábado, 26 de janeiro. Ano 1. Número 4. Vol. 1, p. 30.
. (1839b). ‚Uma viagem na barca de vapor‛. In: Correio das Modas –
Jornal Crítico e Litterario das Modas, Bailes, Theatros etc. Sábado, 26 de janeiro.
Ano 1. Número 15. Vol. 1, p. 126.

POIVERT, Michel. (2006). L´Image au service de la Révolution. Paris: Le Point


du Jour.

SARMIENTO, Guilherme. (2010). ‚Lunetas m{gicas: traduções óticas em


Macedo e Alencar‛. In: A cor das letras. Volume 11, número 1. Feira de
Santana, pp. 113-126.

SILVA, Maria Cristina Miranda da. (2006). ‚A presença dos aparelhos e


dispositivos óticos no Rio de Janeiro do século XIX‛. Tese de doutoramento
em Comunicação em Semiótica. Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo.

SUSSEKIND, Flora. (1987). Cinematógrafo das letras. São Paulo: Companhia


das Letras.
. (1990). O Brasil não é longe daqui: o narrador, a viagem. São Paulo:
Companhia das Letras.

TINHORÃO, José Ramos. (2000). A música popular no romance brasileiro. Vol. I:


Séculos XVIII e XIX. São Paulo: Editora 34.

TRESCH, John. (2012). The Romantic Machine. Chicago: The University of


Chicago Press.

TRUSZ, Aline. (2008). ‚Entre lanternas m{gicas e cinematógrafos‛. Tese de


doutoramento apresentada junto ao Programa de Pós-graduação em
História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).

37
Série E-book | ABRALIC

WILSON, Michael. (2004). ‚Visual culture: a useful category of historical


analysis?‛. In: The Nineteenth Century Visual Culture Reader. New York:
Routledge.

38
Marcus Rogério Salgado

A METRÓPOLE EM OBRAS: LITERATURA E FOTOGRAFIA


NA FIGURAÇÃO DA IMAGEM DA CIDADE MODERNA
NO PERIODISMO DA BELLE ÉPOQUE TROPICAL

Marcus Rogério Tavares Sampaio Salgado1 (UFRJ)

RESUMO: O objetivo do presente artigo é oferecer um estudo sobre o modo como a fotografia (mais
especificamente, o cartão postal) desempenhou papel preponderante na construção da imagem da
Capital Federal como metrópole moderna entre os cronistas da chamada belle époque tropical. Para
tanto, são focalizados os números da revista Kosmos publicados entre 1904 e 1905, por ocasião da
inauguração da Avenida Central, marco simbólico do projeto de reurbanização encetado pelos pode-
res públicos naquele momento histórico.
PALAVRAS-CHAVE: Literatura e fotografia; Cartofilia; Belle Époque tropical.

A belle époque no Brasil corresponde ao período que se estende entre a consoli-


dação da Primeira República e a explosão da Primeira Guerra Mundial. É o que André
Billy chamou de “época 1900” (Billy 1951: 471), expressão utilizada para se referir à
belle époque no âmbito francês, sob cujo fascínio desenhou-se a orientação estética
de sua versão tropical, já que, segundo a mentalidade vigente no período, “civilização
e progresso eram em geral vistos de uma perspectiva francesa” (Needell 1993: 66).
Um dos pontos fundamentais para a construção da imagem de uma espécie de
nova França Antártica foi o plano de reurbanização da Capital Federal. Organizado
pelo engenheiro Pereira Passos, o projeto objetivava transformar o Rio de Janeiro em
uma cidade moderna, sob a inspiração do que fizera na França, no século anterior, o
Barão Haussmann. O projeto de Pereira Passos era constituído por uma série de me-
lhoramentos provocadores de transformações radicais na configuração da cidade,
entre os quais destacavam-se as obras na região portuária, a dragagem do canal do
Mangue e a abertura de uma avenida na região central. Com a ativação dessas obras,
39
estava prevista uma alteração sensível na paisagem urbana, de forma a viabilizar o
1 http://lattes.cnpq.br/1820387030952541 - marcussalgado@gmail.com

Terra roxa e outras terras – Revista de Estudos Literários


Volume 32 (dez. 2016) – 1-123 – ISSN 1678-2054
http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/terraroxa
Marcus Rogério Tavares Sampaio Salgado (UFRJ) 68
A metrópole em obras: literatura e fotografia na figuração da imagem da cidade...

ingresso da Capital Federal na modernidade. Das obras do período, aquela que mais
impacto causaria à vida social – e, por extensão, à literatura – seria a construção da
Avenida Central, rematado símbolo desse ingresso em uma nova fase histórica, com
as amplas ressonâncias culturais nele implicadas, a ponto de ser possível afirmar que
“nada expressa melhor a belle époque carioca do que a nova Avenida Central” (Nee-
dell 1993: 58). Segundo o mesmo autor, “a Avenida Central tornou palpável a fantasia
de Civilização compartilhada pelos cariocas de elite da belle époque” (Needell 1993:
68).
O Rio de Janeiro tornar-se-ia, a partir dessa nova perspectiva urbanística, uma es-
pécie de cartão postal do Brasil. Foram construídos ou reformados mirantes que pos-
sibilitassem a apreciação de vistas da cidade. A abertura da Avenida Beira-Mar e da
Avenida Atlântica descortinou a paisagem da baía durante os fluxos rumo ao sul da
cidade. Dessas duas avenidas que desfraldam vistas de cartão-postal, a primeira “foi
considerada por muito tempo a mais bela via-corso do mundo” (Machado 2008: 99),
enquanto a segunda “se tornou em pouco tempo um dos mais belos e disputados
recantos da cidade, tendo importância singular no turismo moderno no Rio de Ja-
neiro” (Machado 2008: 100). Desenvolveu-se, nesse processo, uma relação modelar,
que, como toda imagem especular, conduziria ao narcisismo que caracteriza, ainda
hoje, a experiência urbana nas plagas cariocas – narcisismo rapidamente detectado e
bastante explorado pela estética televisiva, com suas tomadas completamente este-
reotipadas de pontos turísticos.
A construção da cidade moderna envolveu, por sua vez, a construção de uma ima-
gem de metrópole, para a qual literatura e fotografia concorreram de forma decisiva.
É uma época de prestígio para a cartofilia (mania dos cartões postais), que se reflete
tanto na tendência do fotojornalismo daquele momento em priorizar fotografias de
vistas da cidade em transformação nas páginas de periódicos, quanto no trabalho de
cronistas ocupados com o registro desse processo pelo qual duas paisagens sociais (a
do Rio Antigo, com vestígios coloniais e a presença solene dos produtos arquitetôni-
cos do Segundo Reinado, e a do Rio Moderno, sob a égide de um Hausmann tropical)
se sobrepunham, no arco que cobre a desmontagem de construções arquitetônicas
sobreviventes das fases mais antigas da cidade e a construção da Avenida Central,
marco do novo paradigma urbanístico.
Como escreveu Bilac em uma crônica de 1904, “o cartão postal é o melhor veículo
de propaganda e reclame de que podem dispor os homens, as empresas, a indústria,
o comércio e as nações”. Segundo Daltozo, “40% dos postais que circulam no mundo
trazem fotos de cidades” (Daltozo 2006: 37). Sendo, portanto, um tema privilegiado
na cartofilia universal, a imagem das cidades grassou de igual forma entre nós, com
particular ênfase na belle époque, quando passa a ocorrer a encenação da própria re-
modelagem urbanística da cidade, com o jornalismo e a literatura colaborando nesse
sentido.

Terra roxa e outras terras – Revista de Estudos Literários


Volume 32 (dez. 2016) – 1-123 – ISSN 1678-2054
http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/terraroxa/
[67-81]
Marcus Rogério Tavares Sampaio Salgado (UFRJ) 69
A metrópole em obras: literatura e fotografia na figuração da imagem da cidade...

1. A cidade cartão-postal

A importância dos cartões-postais para a vida cultural da belle époque ainda não foi
devidamente dimensionada. Como ressalta Annateresa Fabris, desde o último quar-
tel do século XIX o cartão-postal funcionou como “um poderoso aliado na difusão da
imagem fotográfica em seu momento de massificação” (Fabris 1991: 33). Segundo a
mesma autora, a difusão massiva da imagem fotográfica pelo cartão-postal “multi-
plica ao infinito a possibilidade de posse simbólica de todos os aspectos do universo
para um público ávido de novidades” (Fabris 1991: 33). Essa posse simbólica engen-
drada pela imagem é reforçada por Susan Sontag, quando considera as imagens fo-
tográficas como pedaços do mundo, “miniaturas da realidade que qualquer um pode
fazer ou adquirir” (Sontag 2004: 15). Assim, os cartões-postais obedeciam à lógica
da interiorização que presidia “a emergência do fetichismo da mercadoria” (Needell
1993: 190) e levavam paisagens distintas e distantes para o interior dos lares que con-
sumiam esse tipo de produto gráfico.
Os efeitos da viagem imaginária (trazendo para o âmbito da esfera privada outros
espaços) e da posse simbólica de paisagens e monumentos arquitetônicos geografi-
camente distantes implicados no cartão postal não tardariam por se fazer manifes-
tos:

A viagem imaginária e a posse simbólica são as conquistas mais evidentes de


uma nova concepção do espaço e do tempo, que abole as fronteiras geográficas,
acentua similitudes e dessimilitudes entre os homens, pulveriza a linearidade
temporal burguesa numa constelação de tempos particulares e sobrepostos.
(Fabris 1991: 35)

Se a belle époque está diretamente ligada ao 1900, como ressalta A. Billy, não dei-
xa de ser curioso o fato de que, em 1899, por meio da Lei 640, o Governo “autorizou
a produção de bilhetes-postais pela indústria gráfica particular” (Daltozo 2006: 19); é
certo que, “alguns anos antes, no entanto, já circulavam postais brasileiros feitos em
editoras particulares, mas impressos no exterior” (Daltozo 2006: 19).
De acordo com a pesquisa realizada por Daltozo sobre a cartofilia, “no ano de
1909, quando a população brasileira girava ao redor de vinte milhões de habitantes,
circulou pelo Correio a impressionante soma de quinze milhões de cartões postais”
(Daltozo 2006: 19). O cartão-postal foi decisivo para “a comercialização de fotogra-
fias de temáticas urbanas iniciada já a partir dos anos 1860 do século XIX” (Lima 1993:
101). A partir de 1900, Marc Ferrez – cuja fotografia era profundamente enraizada
na cenografia urbana (com suas paisagens, profissões etc) – coloca em circulação
postais com seus registros fotográficos do Rio de Janeiro e, a partir de 1902, A. Ribei-
ro lança no mercado gráfico opulenta quantidade de postais tematizando a Capital
Federal. Desde 1904 operava no Rio de Janeiro a Sociedade Cartófila Internacional
Emmanuel Hermann, fundada por, entre outros, Augusto Malta, famoso pela foto-
grafia de vistas urbanas, constituindo-se cronista visual da cidade, na linhagem de

Terra roxa e outras terras – Revista de Estudos Literários


Volume 32 (dez. 2016) – 1-123 – ISSN 1678-2054
http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/terraroxa/
[67-81]
Marcus Rogério Tavares Sampaio Salgado (UFRJ) 70
A metrópole em obras: literatura e fotografia na figuração da imagem da cidade...

Ferrez, Georges Leuzinger, Juan Gutierrez, Alberto de Sampaio etc. Segundo informa
Veronica Velloso, a sociedade dispunha de uma publicação própria e contava entre
seus membros os poetas Olavo Bilac e Guimarães Passos e editores de cartões pos-
tais, “marcando a aproximação entre os atos de produção e recepção da imagem”
(Velloso 2000: 131).
Os implementos na indústria gráfica verificados entre nós a partir do início do sé-
culo XX não se restringiram ao segmento dos cartões postais. Revistas e jornais tam-
bém foram afetados por essas transformações que marcam a emergência de “outras
formas de difusão impressa da imagem” (Sotilo 2014: 2), capazes de atender à de-
manda por aquilo que Annateresa Fabris chama de “novo consumo icônico” (Fabris
1991: 12), cuja origem remontava às tentativas desde o século anterior no sentido de
instaurar a produção industrial de imagens capaz que seria “ampliada para a propa-
ganda política e para a publicidade comercial” (Fabris 1991: 12).
É nesse contexto que surgiu Kosmos, uma das pioneiras revistas ilustradas no Bra-
sil. Publicada mensalmente entre janeiro de 1904 e abril de 1909, totalizando sessenta
e quatro números, nela escreveram os principais nomes da literatura brasileira do
período: Olavo Bilac (cronista regular e eventual contista, já que em Kosmos publi-
cou “Mãe Maria”), João do Rio (colaborou na crítica de teatro e com textos como
“Música de amor”, “A tatuagem no Rio”, “O natal dos africanos” e “A musa urbana”,
sem falar em sua famosa tradução da Salomé de Oscar Wilde, publicada na revista
em 1905), Gonzaga Duque (assinava crítica de arte e publicou alguma prosa de fic-
ção), José Veríssimo (crítica literária), Alberto de Oliveira (parnasiano que na revista
publicou poemas como “Taça de coral” e “O ninho”), Medeiros e Albuquerque (que
aí despejou parte de sua produção como contista – vide “Vidas estragadas”), Arthur
Azevedo (crítica de teatro), Coelho Netto, Emílio de Menezes etc. Mas a revista cha-
mava atenção sobretudo pela qualidade gráfica, desde os materiais (papel couché
e uso de cores) até a diagramação, passando, obviamente, pela fotografia. Como
ressalta Antonio Dimas, em seu celebrado estudo sobre o periódico, “deslumbrada
com as possibilidades expressivas da fotografia e com a impressão em cores, a reda-
ção esforçava-se no sentido de tudo ilustrar, o que, muitas vezes, relegava o texto
escrito a um plano inteiramente secundário” (Dimas 1983: 5). Nessa disputa com a
fotografia, a literatura por vezes acabaria por mimetizar a linguagem emergente, tra-
çando e revelando imagens verdadeiramente fotográficas, seguindo, nesse sentido,
a fascinação da época com o cartão postal. Desse modo, muitos textos que aparecem
em Kosmos funcionam como registros verbais de forte apelo imagético a paisagens
e aspectos arquitetônicos ou urbanísticos. A reforma de Pereira Passos implicava “a
construção do cenário de cartão-postal, que dava à Cidade do Rio de Janeiro um sta-
tus de cidade cosmopolita” (Machado 2008: 135). Se a cartofilia privilegiava as ima-
gens urbanas, a Capital Federal – em processo de reurbanização – tornava-se o tema
favorito especialmente dos cronistas, sempre ocupados com a pauta do dia.
Em sua crônica para o primeiro número da revista, Olavo Bilac reforça as intenções
da nova publicação:

Terra roxa e outras terras – Revista de Estudos Literários


Volume 32 (dez. 2016) – 1-123 – ISSN 1678-2054
http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/terraroxa/
[67-81]
Marcus Rogério Tavares Sampaio Salgado (UFRJ) 71
A metrópole em obras: literatura e fotografia na figuração da imagem da cidade...

A fotografia, o desenho, a arte da gravura e todas as belas conquistas da


imprensa moderna, serão aqui postas a serviço do programa de Kosmos: e estas
páginas serão uma placa sensível em que se irão fixando todas as imagens,
todos os aspectos, todas as mudanças da nossa vida, nesta era de regeneração
e reabilitação material e moral. (Bilac 1904a: 8)

E assim, no primeiro número de Kosmos, juntamente com fotografias de canhões


e estátuas e retratos de celebridades políticas, jurídicas, diplomáticas, teatrais e li-
terárias, encontramos uma série de postais das Cataratas do Iguaçu. Timbrada no
mesmo diapasão que o editorial do primeiro número – no qual Kosmos prometia for-
necer “um artístico álbum das nossas belezas naturais” (Behring 1904: 6), objetivo
irmanado, diga-se, ao dos cartões-postais, com sua ênfase em paisagens –, a série
de fotografias das Cataratas do Iguaçu reforça a ideia de magnitude das riquezas
encontradas em terra brasilis (obedecendo, por sua vez, ao diapasão da política de
propaganda do Brasil no exterior característica do período) e expressa-a por meio de
uma retórica do sublime, já que a potência de cataratas, desertos e do mar tem, des-
de sempre, intrigado e desafiado a imaginação nesta direção. Essa paisagem natural
sulista reapareceria no número 3 do segundo ano da revista, com direito a mais uma
série de cartões-postais dos exuberantes saltos d´água.
No segundo número, o material iconográfico é dominado por paisagens e habitan-
tes (indígenas e seringueiros) do Acre. Isso não impede a presença de alguns cartões-
postais da Capital Federal: um retratando as Paineiras, outro com uma vista marítima
de Copacabana e um terceiro o Passeio Público – sem falar na série de fotos da re-
gião portuária. Mas, em matéria de cartão-postal, o destaque do segundo número
da revista é mesmo a crônica assinada por Bilac. Nela, explicita-se como a crônica
mostrava-se permeável à fotografia e à cartofilia, a ponto de apresentar uma série de
descrições panorâmicas de paisagens.
Bilac começa exaltando Petrópolis, oferecendo ao leitor uma vista da cidade ser-
rana, “posta no alto da Serra dos Órgãos, como uma rainha sobre um trono, coroada
de rosas vermelhas e de camélias alvas, cortejada pela gente feliz e elegante” (Bilac
1904b: 4). A seguir, temos um longo elogio ainda das paisagens montanhosas, só que
das Paineiras:

No dia de S. Sebastião, deixando cá embaixo a poeira das ruas, o ardor


do sol e a tristeza do dia feriado, abalei para o alto das Paineiras. À hora da
partida do trem, reconheci com espanto que ia subir sozinho. Não havia outro
passageiro. O chefe do trem ainda demorou a partida, esperando que algum
retardatário aparecesse, e ficou durante oito ou dez minutos, com o relógio na
mão, espiando a passagem dos bondes do Cosme Velho que subiam e desciam.
Mas ninguém apareceu: a locomotiva apitou, e começou a galgar, arquejante,
a lombada verde da serra. Lá em cima, no planalto das Paineiras, reinava um
silêncio claustral. Almocei sozinho, diante do incomparável espetáculo da baía,
cuja água, sob a chuva de fogo da soalheira, parecia polvilhar-se de ouro. E, de
mim para mim, vendo tudo aquilo deserto, eu dizia: “Singular gente, a nossa,

Terra roxa e outras terras – Revista de Estudos Literários


Volume 32 (dez. 2016) – 1-123 – ISSN 1678-2054
http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/terraroxa/
[67-81]
Marcus Rogério Tavares Sampaio Salgado (UFRJ) 72
A metrópole em obras: literatura e fotografia na figuração da imagem da cidade...

que tem inveja dos veranistas de Petrópolis, e não vem gozar o divino encanto
deste lugar, tão cheio do consolo e do repouso que a Natureza sempre dá a
quem sabe compreendê-la e amá-la!”. (Bilac 2004b: 4)

Nessa descrição da subida às Paineiras, não faltam o elemento pitoresco (a subida


solitária pelo trem) e a exaltação da magnificência da natureza (no verde da serra e
na vista espetacular da baía), bem como o esforço por atrair a atenção do morador
do Rio de Janeiro para os cartões-postais que a cidade oferece, para além da bidimen-
sionalidade da imagem impressa.
O terceiro número de Kosmos inicia o louvor às obras da Avenida Central, saudan-
do a cacofonia das picaretas responsáveis pela suposta regeneração da antiga cidade
colonial, a ser transmutada em moderna e cosmopolita capital da República. No nú-
mero seguinte, o elogio estende-se ao concurso de fachadas, que, para Bilac, era ga-
rantia do êxito estético da abertura da Avenida Central. Nessa crônica, se não chega
a traçar uma imagem do futuro urbanístico da cidade, pelo menos define tudo o que,
em sua opinião, deveria ser extirpado da paisagem urbana em prol da modernização:
“os chalés, as platibandas com compoteiras, as casas com alcovas, os sotãozinhos em
cocuruto, os telhados em bico, as vidraças de guilhotina, as escadinhas empinadas,
os beliquetes escuros, os quintais imundos, os porões baixos” (Bilac 1904c: 5). Para
Bilac, a paisagem urbana a ser configurada pela Avenida Central implicava “prédios
bem construídos, elegantes ou suntuosos” (Bilac 1904c: 5).
No nono número de Kosmos reaparece os louvores à reurbanização. Em uma longa
crônica, o hoje esquecido Mariz e Carvalho registra tanto o trabalho de demolição
como as expectativas gerais no sentido de figuração de uma imagem de futuro para
a Capital Federal:

Esboroa-se a casaria velha da cidade; o martelo, a trolha, a alavanca, bloco a


bloco, pedra a pedra, atiram ao solo úmido e lamacento cumeeiras, cimalhas,
cornijas, paredes, e dos alicerces centenários, como de alvéolos carcomidos,
arrancam-se as grandes lajes enegrecidas e gastas pela ação do tempo.
Escancara-se às vistas profanas o interior dos lares desertos, e, envolta na
poeira que sobrepaira aos escombros e que o vento dispersa, parece evolar-
se para o céu a alma das cousas passadas, de que se extinguem os últimos
vestígios. Erguem-se, como se fossem caveiras, as fachadas nuas, derrocados
os corpos de edifícios a que pertenciam, e através das janelas sem portas –
órbitas sem olhos – descortina-se o amontoamento informe de caibros, tijolos,
barro e pedras toscas, arcabouço desfeito, esqueleto desarticulado da velha
urbes, que o alvião revolve, e sobre que passa, indiferente e apressada, a turba
de operários arquejando suarentos. (Carvalho 1904: 3)

Fica bastante explícito na passagem supra como a motivação da crônica é o re-


gistro do presente. Esse propósito a irmanava com a fotografia. O que o cronista
oferece ao leitor é uma série de fotogramas da desmontagem de um modelo urba-
nístico condenado ao desaparecimento, e, como ocorria com a fotografia da época,

Terra roxa e outras terras – Revista de Estudos Literários


Volume 32 (dez. 2016) – 1-123 – ISSN 1678-2054
http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/terraroxa/
[67-81]
Marcus Rogério Tavares Sampaio Salgado (UFRJ) 73
A metrópole em obras: literatura e fotografia na figuração da imagem da cidade...

a organização estética da informação nessas cenas descritivas é conforme ao que se


veio a chamar de pictorialismo, pelo qual a reprodução verista dos objetos é substi-
tuição pela estetização dos mesmos. Como se não bastasse a defesa do pictorialis-
mo em matéria de fotografia desenvolvida em um artigo (“A arte”) no número de
novembro de 1904 assinado por Eunápio Deiró – no qual o autor ostenta posições
muito próximas às defendidas pelo crítico de arte anglo-americano Charles H. Caffin
no famoso ensaio “A fotografia como uma das belas artes” (Fontcuberta 2007: 89),
afirmando o processo de estetização do real envolvido na fotografia –, corroboram
o que se disse sobre a abordagem pictorialista prevalente na crônica as anamorfoses
e as enunciações caóticas. Ambas implicam tanto um tratamento plástico-visual da
linguagem verbal como uma estratégia retórica de organização discursiva a partir de
imagens seriadas, como essa:

O artista invisível e misterioso que preside à construção efêmera das ruínas


faz de um sótão um minarete, de um telhado pontiagudo o lanternim de um
monumento funerário, e, no desregramento da sua imaginação delirante de
fantasma, escava aqui uma cripta sombria, ergue acolá frontarias de igrejas,
baluartes, arcadas, cúpulas, pórticos, mausoléus, tudo isso aéreo, oscilante,
sem base, ameaçando subverter-se ao mais fraco impulso. (Carvalho 1904: 2)

Para o cronista, as ruínas são um motivo estético que carrega em si a força da ação
afirmativa, pois a potência destrutiva pressupõe a reconstrução, percorrendo o traje-
to que vai da sombra à luz: em uma ponta do horizonte, o arcaico, o colonial, aquilo
que se quer recalcar, logo tornado obsceno – no que isso implica tanto em um pres-
ságio da morte iminente como a resistência à dominação do corpo em suas condutas
externas e internas; na outra, o moderno, o cosmopolita, a República, aquilo que se
quer fazer crer (no sentido mesmo econômico do termo crédito, já que estava em
jogo a construção de uma imagem da República para consumo externo e captação de
investimentos financeiros), aquilo que se quer trazer ao proscênio. Nessa oscilação
pendular entre o que deve ser enterrado na sombra (o passado) e o que deve vir à
luz (o futuro) é que o cronista flagra a cidade em um momento e em uma pose privi-
legiados (o presente): despida pelas picaretas sob o comando das mãos operárias, a
cidade revela “à plena luz do dia, a sua miséria e a sua nudez” (Carvalho 1904: 2).
Entrecortado por fotografias que apresentam as obras em curso, a crônica tornar-
se-ia redundante em relação às imagens não fora a viragem que nela se verifica com a
descrição da passagem de um trem elétrico a carregar os destroços do passado para
o mar. Quem entra em cena, finalmente, é a palavra de ordem progressista e, não
mais ocupado com a efemeridade do presente, o cronista tenta forjar uma imagem
de futuro, endossando e ratificando os grandes mitos da época – como a ordem, o
progresso, a função pedagógica da arte etc:

As ruas amplas e extensas, as largas praças ajardinadas, os altos e formosos


edifícios, as múltiplas diversões de simples prazer ou de gozo intelectual que
acompanham necessariamente essas transformações do meio em que vive a

Terra roxa e outras terras – Revista de Estudos Literários


Volume 32 (dez. 2016) – 1-123 – ISSN 1678-2054
http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/terraroxa/
[67-81]
Marcus Rogério Tavares Sampaio Salgado (UFRJ) 74
A metrópole em obras: literatura e fotografia na figuração da imagem da cidade...

população, hão de modificar os seus hábitos, influir sobre o seu caráter, ativar
a sua iniciativa, despertar-lhe o gosto do belo, o culto do ideal, o amor que
se traduz por atos, não o amor platônico e retórico, da terra natal. Esse é o
primeiro e mais útil resultado do empreendimento que homens enérgicos e de
ampla visão das cousas tomaram a peito. (Carvalho 1904: 5)

Mais adiante, depois de preconizar o que julga o inegável potencial do Brasil para
ingressar na modernidade – que trata por “nova era” (Carvalho 1904: 6) – dado o
“majestoso edifício da tua nacionalidade” (Carvalho 1904: 6), resolve o cronista arris-
car-se a um exercício de futurologia, trazendo ao leitor do presente um souvenir de
sua viagem imaginária para o porvir. Nessa imagem de futuro que apresenta o cronis-
ta, a Capital Federal aparece astrologicamente fadada à beleza e à majestade, maior
que as grandes e míticas cidades da Antiguidade – mal desconfiando, contudo, como
os exageros retóricos do presente podem transformar-se em humor involuntário no
futuro, reforçado pela recorrência monótona das anamorfoses e enumerações:

E tu, Cidade bem amada, coroa desse monumento, como te vejo surgir
radiante e bela dentre as névoas douradas de um horizonte longínquo no meio
de projeções de luz cambiante, num clarão resplandecente de auréola! Ante
os meus olhos deslumbrados passam como numa visão de Isaías, pirâmides do
Egito, templos de Tebas, palácios de Persépolis, Parthenons, Coliseus, a mole
portentosa dessa lendária Babel – o templo das sete esferas do mundo – e,
sob a cúpula desse firmamento em que a constelação simbólica do Cruzeiro
preside aos teus destinos e traça o teu horóscopo, o gigante que, desde séculos
imemoriais, repousa sobre os cabeços das tuas montanhas, ergue-se, majestoso
e forte, e te aponta à contemplação extática do Universo! (Carvalho 1904: 6-7)

Ao presentear o leitor com esses cartões-postais do futuro e fazer o apanágio do


empreendimento em que também estão em jogo interesses de poderosos, resta níti-
do como as páginas da revista ilustrada estão saturadas de codificações ideológicas:

Como que convertido em órgão de sustentação e de apoio da empreitada


governamental, Kosmos cumpria, paralelamente, umafunção de justificativae de
endosso, espalhando pelo país uma imagem que interessava ao poder público,
empenhado em fazer do Rio um cartão de visitas. Nada mais conveniente à
política externa de Rio Branco que, além de Kosmos, contava também com
Renascença. (Dimas 1983: 132)

Portanto, como ressalta Antonio Dimas, é necessário permanecer atento às imbri-


cações existentes entre a transformação da Capital Federal em cartão postal repre-
sentativo do Brasil: há, aqui, uma estratégia ideológica. O que está em jogo é mais do

Terra roxa e outras terras – Revista de Estudos Literários


Volume 32 (dez. 2016) – 1-123 – ISSN 1678-2054
http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/terraroxa/
[67-81]
Marcus Rogério Tavares Sampaio Salgado (UFRJ) 75
A metrópole em obras: literatura e fotografia na figuração da imagem da cidade...

que operação metonímica, pela qual a cabeça urbana do país se sobrepõe às demais
partes do corpo social, a fim de ocultar sobretudo os membros inferiores desse cor-
po – afinal, se por trás do projeto de reurbanização da Capital Federal, se insinuavam
os ideais higienistas de “regeneração da cidade, e por extensão do pais” (Sevcenko
1999: 30), não resta a menor dúvida que, contraditoriamente, “essa redenção era
válida somente para as grandes cidades” (Sevcenko 1999: 32), mantendo recalcadas
as estruturas rurais erguidas com a economia escravocrata que não se encaixavam
com a imagem oficial de Brasil desenhada – para consumo interno e externo – pelos
poderes públicos.

2. A captura do instante ou o encontro entre presente e futuro

Bilac manifesta novamente profusos elogios ao projeto de Pereira Passos em crô-


nica de fevereiro de 1905, retomando as palavras escritas no primeiro número de
Kosmos, um ano antes, e reforçando o vínculo existente entre a revista e as transfor-
mações na vida urbana:

Já houve, na Avenida Central, a festa do levantamento de cinco ou seis


cumeeiras de novos prédios. Ao longo da imensa artéria, rasgada no coração
da cidade, vão pouco a pouco apontando, saindo do solo, crescendo, subindo,
pompeando à luz, os palácios formosos. Aquilo que apenas parecia um sonho
absurdo de megalomania, pouco a pouco se transforma numa radiante
realidade... Acabo de reler o que aquise escreveu, noprimeironúmero da Kosmos,
há pouco mais de um ano. Dizia o cronista que a Kosmos acompanharia, de passo
em passo, a transformação da cidade, assinalando todos os seus progressos,
seguindo com interesse o seu lento evoluir para a regeneração higiênica. Esse
propósito não pôde ser de todo cumprido, porque o progresso foi muito mais
rápido e muito mais completo do que era lícito esperar. Quando apareceu o
primeiro número da Kosmos, as obras do porto e as da avenida ainda eram um
simples projeto: não havia um só prédio demolido, e muita gente acreditava que
tudo ficaria em sonho, e que nem em vinte anos tomaria corpo um só dos planos
do governo. Mas, em um ano, a coragem e a inteligência operaram milagres. A
avenida está cheia de prédios; e, felizmente, não se justificou o único receio,
que ainda me afligia: os prédios novos, ao contrário do que era para temer,
não são casarões formidáveis e terríveis, sem gosto e sem arte, mas palácios
modernos, capazes de honrar qualquer cidade civilizada. A Kosmos, que nasceu
com a nova era da vida urbana, e que, por isso, queria ser um espelho fiel, onde
de traço em traço se viesse refletir a história dessa era, já não pode cumprir o
seu programa: em cada mês, a cidade progride um ano, e seria preciso, para
que aquele programa fosse respeitado, que as páginas da revista fossem da
primeira à última dedicadas exclusivamente ao registro desse progresso. Antes
assim... (Bilac 1905a: 4)

Terra roxa e outras terras – Revista de Estudos Literários


Volume 32 (dez. 2016) – 1-123 – ISSN 1678-2054
http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/terraroxa/
[67-81]
Marcus Rogério Tavares Sampaio Salgado (UFRJ) 76
A metrópole em obras: literatura e fotografia na figuração da imagem da cidade...

A passagem acima transcrita da crônica de 1905 é modelar, tanto pelo esforço


característico do gênero em registrar o instante como pela sinalização otimista para
a entrada em cena do futuro, porquanto parte das expectativas manifestadas pelo
cronista um ano antes já se materializam e os resultados do projeto de reurbaniza-
ção parecem, cumpre repetir, “capazes de honrar qualquer cidade civilizada” (Bilac
1905a: 4). Tal como, no momento presente, sobrepõem-se aos escombros da cidade
de ontem as primeiras manifestações da urbe de amanhã, para o cronista o futuro
também parecia caminhar rumo a sua consumação como realidade, como agora.
Ainda que longo, revela-se instrutivo esse trecho de Bilac, pois mostra como a
crônica da belle époque estava empenhada em um artificioso programa estético de
valorização do instante. Essa valorização só se tornou possível por meio da imagem
fotográfica, pois, “de fato, a noção moderna de instante está intimamente relacio-
nada com a constituição da fotografia, e o que a fotografia veio a ser se encontra
profundamente vinculado aos conceitos modernos de instante e instantâneo” (Sanz
2011: 53). Tornada instantânea somente na segunda metade do século XIX (pois, em
função de limitações técnicas, anteriormente o tempo de exposição para captura de
imagens do mundo sensível era longo), é possível afirmar que “a fotografia deu visi-
bilidade à unidade instante – como o olho jamais poderia dar – e o instante, por sua
vez, outorgou à fotografia legitimidade e relevância, seja como imagem da ciência, da
arte ou da memória” (Sanz 2011: 53). Desse modo, “fotografia e instante moderno se
permearam num processo de elaboração recíproca, em contígua construção” (Sanz
2011: 53). Em resposta às transformações epistemológicas e estéticas implicadas nes-
se processo, passam a proliferar no periodismo os instantâneos e as kodaks. Já em
finais do século XIX, Raul Pompeia propunha as séries Microscópicos e Canções sem
metro, nas quais, plasticamente pautadas pela estética impressionista, encontramos
uma ênfase fotográfica sobre “o instantâneo e o único” (Coutinho 1959: 240). Gonza-
ga Duque foi outro escritor atento às possibilidades de aproximação entre escrita e
fotografia: além de cunhar o neologismo kodakizar, utilizava com frequência o termo
instantâneo no âmbito da crítica de arte, como ocorre ao tratar, na revista Kosmos, de
quadros de Rodolpho Amoedo. Pouco depois, Pedro Kilkerry chama de “Kodaks” as
crônicas em que registra a movimentação dos cafés, dos cinemas e das ruas na cida-
de de Salvador. Tudo isso mais de uma década antes de o poeta suíço Blaise Cendrars
(que, por conta de sua obra e da visita ao Brasil em 1924, seria fundamental para o
desenvolvimento do modernismo entre nós) intitular de Kodak um de seus livros.
Vale lembrar que, como já propugnava Bergson, “o instante é sempre artificial,
secundário, resultado de uma operação de abstração que espacializa o tempo” (Lis-
sovsky 2014: 74). Assim, no projeto estético dos cronistas da belle époque residiria,
neste ponto, se não uma contradição pelo menos uma posição problemática, pois,
apesar de movido por um gesto de abstração, esse esforço de captura é pautado pela
concepção – menos engenhosa e mais ingênua, diga-se – de que o instante fotográfi-
co conseguiria capturar e registrar o fluxo temporal.
No mesmo número de fevereiro de 1905, são publicadas duas fotografias que me-
recem destaque. A primeira, apresenta uma das mais impressionantes vistas da Ca-

Terra roxa e outras terras – Revista de Estudos Literários


Volume 32 (dez. 2016) – 1-123 – ISSN 1678-2054
http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/terraroxa/
[67-81]
Marcus Rogério Tavares Sampaio Salgado (UFRJ) 77
A metrópole em obras: literatura e fotografia na figuração da imagem da cidade...

pital Federal, a entrada da Baía de Botafogo, celebrizada e repetida à exaustão pela


mídia televisiva. A segunda é um retrato de Pereira Passos, sob o qual lê-se texto
encomiástico, no qual se reforça a identificação da obra do prefeito com o futuro, já
que “o Presente é incapaz de fazer-lhe justiça unânime. Só o Futuro encherá o rega-
ço de flores para bordar no firmamento da História o seu nome imorredouro” (Rosa
1905: 32). E é sob esse diapasão que a relação dinâmica entre presente e futuro é mais
uma vez reforçada: “A população transita, a Cidade permanece. As gerações passam,
a urbes é eterna. Que superioridade não representa quem se desliga da contingência
mortal para fazer obra que o Futuro gozará!” (Rosa 1905: 32). Atente-se para os ter-
mos grafados com a primeira letra capitalizada: Presente, Futuro e Cidade.
A aproximação entre futuro e presente é endossada por Gonzaga Duque em
crônica ainda no mesmo número de fevereiro de 1905, na qual trata da demolição de
parte da rua Sete de Setembro, oportunidade para se retomar, também, a oposição
entre sombra (arcaico; Colônia e Império) e luz (modernidade; República), referindo-
se o cronista à cidade-mulher nos seguintes termos:

Agora, sim; vens para a luz, para o ar livre, para a civilização. O teu prefeito
deseja-te faceira e limpa, toda perfumada pelo aroma das tuas mangueiras, pelo
cheiro dos teus bogaris; enfeitada com os teus palacetes novos. Serás a morena
tentadora das serranias do sul, moça e mulher, nova pela idade e pela graça,
veripotente e boa, pródiga e meiga. Assim te rejubilas pelo desaparecimento
dessa feiíssima Sete de Setembro, que por ser defeituosa, encurralada, sombria
e triste muito se parece com o fato histórico cuja data comemora. (Duque 1905:
44)

A edição de junho de 1905 noticia, além das obras na região portuária (sobre as
quais são apresentados detalhes técnicos), a inauguração do primeiro edifício da
Avenida Central, do qual é reproduzida uma fotografia de sua fachada. Mais um pas-
so dado em direção ao encontro entre futuro e presente tão propalado pelos cronis-
tas.
Finalmente, em novembro de 1905, a Avenida Central (símbolo máximo do projeto
de reurbanização da Capital Federal) foi entregue ao tráfego, o que não passou des-
percebido aos cronistas de Kosmos.
A começar por Bilac, que saudou entusiasticamente a satisfatória materialização
do sonho de encontro entre presente e futuro que havia dominado a pauta da revista
desde seu primeiro número:

Inaugurou-se a Avenida Central: e do Rio de Janeiro, deslumbrado e


glorificado por tal acontecimento, é lícito dizer o que disse Gonçalves Dias
do pai de I Juca Pirama: “Este momento só vale apagar-lhe./Os tão compridos
transes, as angústias,/ Que o frio coração lhe atormentaram...”. Inaugurou-se
a Avenida! Parece um sonho... Onde estás tu metido, Carrancismo ignóbil, que
por tanto tempo nos oprimiste e desonraste? Em que furna lôbrega, em que

Terra roxa e outras terras – Revista de Estudos Literários


Volume 32 (dez. 2016) – 1-123 – ISSN 1678-2054
http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/terraroxa/
[67-81]
Marcus Rogério Tavares Sampaio Salgado (UFRJ) 78
A metrópole em obras: literatura e fotografia na figuração da imagem da cidade...

socavão escuro te foste esconder envergonhado? Em vão te procurei, nestes


últimos dias e nestas últimas noites de Novembro, pela radiante extensão da
Avenida formosa: não vi, em parte alguma, o teu olhar sinistro em que a má
vontade reluz perpétua, a tua boca franzida num eterno sorriso de sarcasmo, a
tua fronte envergada numa perene contenção de birra e malevolência... Andas,
com certeza, homiziado nos becos sujos, em que se mantém ainda a tradição
do mau gosto e da imundície: afugentou-se a luz da Avenida, horrorizou-te a
alegria do povo, fulminou-te o despeito! (Bilac 1905b: 4)

Outro cronista a celebrar a inauguração da Avenida foi Gil, que habitualmente


substituía Bilac quando este se encontrava, por alguma razão, ausente ou impossibili-
tado de entregar seu texto mensal. Em sua crônica, além do elogio à exitosa iniciativa
de reurbanização da Capital Federal, fornece um cartão-postal da nova artéria, que
não hesita em associar a uma espécie de renascença urbana, onde a beleza natural
encontra-se com a potência da inteligência humana, tal como futuro e presente ti-
nham seu encontro anunciado e ensejado:

Ressurgimos. Quem, ao claro sol da tarde ou à reverberação dos grandes


focos elétricos, percorre com o olhar a formosa perspectiva da Avenida, a linha
das construções magníficas onde a agulha dos lanternins e a curva das cúpulas
se recortam no ar leve, a ampla faixa da rua que se prolonga, para um e outro
lado, até onde mar e céu se diluem no mesmo matiz, e na qual a adolescência
virente dos ibirapuitãs se envaidece sobre os canteiros relvados e a prata velha
dos combustores artísticos rutila, não pensa em invejar as terras e os homens
que invejava em outro tempo. A multidão que tumultua no pavimento polido
em que os carros de passeio silenciosamente desfilam, a que se cruza nas ruas
largas que cortam a avenida, é realmente a população nova e forte de uma
forte e nova cidade; e o observador pensará com ela que só não tínhamos o
que têm os invejados de outrora porque nos faltava o querer e que eles não
terão nunca o que temos porque não lho deu a Natureza, esta doce, opulenta
e dadivosa Natureza, que já tem sido o remoque da nossa peraltice literária e
que, no entanto, nos acobertou quando só tínhamos andrajos e nos dá agora o
último toque de beleza às galas que ostentamos... (Gil 1905: 41)

Como se depreende da passagem acima transcrita, além de servir como cartão-


postal para consumo externo – símbolo de urbanidade, civilidade e cosmopolitismo
que se tentava induzir a ser visto como a própria representação do Brasil republica-
no –, entre as codificações ideológicas implicadas na construção da Avenida Central
também se encontrava a configuração de uma nova auto-imagem, cuja emergência
vinculava-se diretamente ao recalque do passado. A crônica de Gil é acompanhada
por três espetaculares cartões-postais da grande artéria, que mostram a notável fo-
togenia que a Capital Federal adquirira ao longo desse ciclo transformativo.
A inauguração da Avenida Central – ocorrida, de forma emblemática, aos 15 de
novembro de 1905 – foi coberta por outra matéria ainda no mesmo número, assinada

Terra roxa e outras terras – Revista de Estudos Literários


Volume 32 (dez. 2016) – 1-123 – ISSN 1678-2054
http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/terraroxa/
[67-81]
Marcus Rogério Tavares Sampaio Salgado (UFRJ) 79
A metrópole em obras: literatura e fotografia na figuração da imagem da cidade...

por Ferreira e Rosa. Nela, repete-se o jogo antipódico entre sombra e luz, saudan-
do a construção da artéria como um verdadeiro milagre, não fora a presença das
informações técnicas a lembrar que aquele era o resultado de um projeto muito bem
estudado, uma obra exemplar da engenharia e do urbanismo modernos, a vitória da
“emergente cultura racional e industrial” (Needell 1993: 176). Como bem frisou Je-
ffrey Needell, a Avenida Central “também sugeria o potencial mágico conferido pelos
cariocas à Civilização” (1993: 68).
O artigo é fartamente ilustrado e mostra como, de fato, em alguns casos a lingua-
gem verbal encontrava-se subordinada à expressão visual nas páginas de Kosmos.
Enquanto o texto repete truísmos e endossa as codificações ideológicas vigentes, as
fotografias da inauguração mostram, por sua vez, os resultados concretos daquele
encontro entre presente e futuro ansiado pelos cronistas do período.
Nessas duas últimas crônicas estudadas problematizam-se, de sobremaneira, as
relações entre imagem e palavra. O texto insiste em confirmar que a Avenida Central
não era mais um sonho, afirmando e reafirmando sua existência empírica, como se
obrigado a apontar ininterruptamente a veracidade das imagens – o que, no caso es-
pecífico da fotografia, implica, por sua vez, no reconhecimento dos vínculos deslizan-
tes entre imagem e realidade sensorialmente verificável. Nesse processo, a crônica se
apropria de um modo de funcionamento que é característico da fotografia, operando
como testemunho, no sentido que Susan Sontag confere ao termo: “Fotos fornecem
um testemunho. Algo de que ouvimos falar mas de que duvidamos parece compro-
vado quando nos mostram uma foto” (Sontag 2004: 16). E o texto – ao usurpar da
fotografia essa função testemunhal degrada-se como redundância – é o alarme a to-
car continuamente com a afirmação de que as imagens, ali ao lado, são verdade: não
é sonho, não é miragem, ainda que seja uma cidade cenográfica, uma cidade para ser
fotografada.
O que estava em jogo nos textos e nas imagens de Kosmos é a articulação ideo-
lógica entre aquilo que se vê (o presente) e aquilo que não é visível (o futuro). Tal
articulação só revelou-se possível porque, desde meados do século anterior, em de-
corrência das gradativas transformações na paisagem da Corte, consolidava-se no
âmbito da vida comunal uma nova forma de ver, que incluía a proposição de um novo
olhar sobre a cidade e o viver em urbe. Como ressalta Myriam Ávila, “com suas la-
terais abertas, o bonde permitia ver e ser visto, instalando no espaço urbano uma
dupla perspectiva escópica” (Ávila 2008: 30). Dentro do bonde, a realidade passava
a ser percebida como uma série de “cenas separadas em fotogramas pelas barras
verticais” (Ávila 2008: 30). Com a República e a reurbanização da Capital Federal,
essa percepção fotogrâmica da realidade acentua-se e acelera, chegando, enfim, aos
fotogramas em movimento. A culminância desse programa, sem dúvida, é o prefácio
de João do Rio ao volume Cinematógrafo, publicado em 1909, na qual sintetiza: “a
crônica evoluiu para a cinematografia” (Barreto 1909: x), cunhando, nesta mesma
oportunidade, a conhecida expressão “cinematógrafo de letras” (Barreto 1909: x).
De qualquer forma, o conceito de cinematógrafo das letras, como o queria João
do Rio, não teria sido possível sem os desenvolvimentos verificados nos campos da

Terra roxa e outras terras – Revista de Estudos Literários


Volume 32 (dez. 2016) – 1-123 – ISSN 1678-2054
http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/terraroxa/
[67-81]
Marcus Rogério Tavares Sampaio Salgado (UFRJ) 80
A metrópole em obras: literatura e fotografia na figuração da imagem da cidade...

produção e da reprodução de imagens fotográficas, já que o fotograma é a unidade


do movimento cinematográfico. Além disso, o interesse e a demanda de consumo
suscitados desde o século XIX pela imagem fotográfica fazem com que as relações
entre cartofilia e crônica sinalizem para procedimentos pioneiros na modernidade es-
tética brasileira pelos quais a produção textual tenta mimetizar o funcionamento de
artefatos técnicos. Antes do modernismo vanguardista, já os cronistas da belle épo-
que perceberam como os procedimentos estéticos engendrados no campo da produ-
ção de imagens técnicas poderiam ser, de alguma forma, incorporados pela escrita,
sendo possível afirmar sua precedência no tocante ao “interesse dos artistas moder-
nos pelas imagens provenientes do universo da comunicação de massa” (Fabris 2011:
14). Em fim de contas, é a partir dos processos estéticos, culturais e ideológicos impli-
cados nessa obsessão dupla pelo registro do instante e pela captura do movimento
que o conceito se espraia para outros domínios estéticos, como o pictorialismo, a
cartofilia e a crônica – as duas últimas particularmente ligadas à experiência urbana e
representando, no modo como estão entrelaçadas no periodismo da belle époque.

Obras citadas

ÁVILA, Myriam. O retrato na rua: memórias e modernidade na cidade planejada. Belo


Horizonte: Editora da UFMG, 2008.
BARRETO, Paulo [João do Rio]. Cinematógrafo. Porto: Chardron, 1909.
BEHRING, Mario. “Editorial”. Kosmos (Rio de Janeiro), ano 1, n. 1, jan. de 1904.
BILAC, Olavo. “Chronica”. Kosmos (Rio de Janeiro), ano 1, n. 1, jan. de 19042.
——. “Chronica”. Kosmos (Rio de Janeiro), ano 1, n. 2, fev. de 1904b.
——. “Chronica”. Kosmos (Rio de Janeiro), ano 1, n. 4, abr. de 1904c.
——. “Chronica”. Kosmos (Rio de Janeiro), ano 2, n. 2, fev. de 1905a.
——. “Chronica”. Kosmos (Rio de Janeiro), ano 2, n. 11, nov. de 1905b.
BILLY, André. L´époque 1900. Paris: Tallandier, 1951.
CARVALHO, J. C. Mariz. “Pulcherrima rerum”. Kosmos (Rio de Janeiro), ano 1, n. 9,
set. de 1904.
COUTINHO, Afrânio. Introdução à literatura brasileira. Rio de Janeiro: São José, 1959.
DALTOZO, José Carlos. Cartão-postal, Arte e Magia. Presidente Prudente: Gráfica Ci-
polla, 2006. Disponível em <http://www.afsc.org.br/livros/CP_arteemagia.pdf>. Aces-
so em 14 maio 2016.
DIMAS, Antonio. Tempos eufóricos. São Paulo: Ática, 1983.
DUQUE, Gonzaga. “À queda dos muros”. osmos (Rio de Janeiro), ano 2, n. 2, fev. de
1905.

Terra roxa e outras terras – Revista de Estudos Literários


Volume 32 (dez. 2016) – 1-123 – ISSN 1678-2054
http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/terraroxa/
[67-81]
Marcus Rogério Tavares Sampaio Salgado (UFRJ) 81
A metrópole em obras: literatura e fotografia na figuração da imagem da cidade...

FABRIS, Annateresa. Fotografia: usos e funções no século XIX. São Paulo: EdUSP, 1991.
——. O desafio do olhar. São Paulo: Martins Fontes, 2011.
FONTCUBERTA, Joan (org.). Estética fotográfica. Barcelona: Gustavo Gili, 2007.
GIL (pseud.). “A grande artéria”. Kosmos (Rio de Janeiro), ano 2, n. 11, nov. de 1905.
LIMA, Solange Ferraz de. “Espaços projetados”. Acervo: Revista do Arquivo Nacional
(Rio de Janeiro), vol. 6, n. 1-2, jan.-dez., p. 99-110, 1993.
LISSOVSKY, Maurício. Máquina de esperar. Rio de Janeiro: Mauad, 2014.
MACHADO, Marcello de Barros Tomé. A modernidade no Rio de Janeiro: construção de
um cenário para o turismo. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal das Culturas, 2008.
NEEDELL, Jeffrey. Belle époque tropical: sociedade e cultura de elite no Rio de Janeiro
na virada do século. Trad. Celso Nogueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
ROSA, Ferreira. “Dr. Francisco Pereira Passos”. Kosmos (Rio de Janeiro), ano 2, n. 2,
fev. de 1905.
SANZ, Claudia. “Quando o tempo fugiu do instantâneo”. Scriptum (Campinas), n. 32,
2011. Disponível em <http://www.studium.iar.unicamp.br/32/Studium_32.pdf>. Aces-
so em 19 de maio de 2017.
SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão. São Paulo: Brasiliense, 1999.
SONTAG, Susan. Sobre fotografia. Trad. Rubens Figueiredo. São Paulo: Companhia
das Letras, 2004.
SOTILO, Caroline Paschoal. “O cartão-postal e a fotografia: reprodução e consumo”.
In: Atas do IV Congresso Internacional em Comunicação e Consumo. São Paulo: Progra-
ma de Pós-Graduação em Comunicação da Escola Superior de Propaganda e Marke-
ting, 2014. Disponível em <http://www.espm.br/download/Anais_Comunicon_2014/
gts/gt_sete/GT07_SOTILO.pdf>. Acesso em 13 maio 2015.
VELLOSO, Verônica Pimenta. “Cartões-postais: a família como consumidora-recep-
tora (1905-1912)”. Anais do Museu Histórico Nacional. Vol. 32. Rio de Janeiro: Museu
Histórico Nacional, 2000.

Metropolis at work: literature and photography building up the image of modern city through
tropical belle époque´s periodism.

ABSTRACT: This article aims at offering a study on the way photography (specifically postcards) played
an important role in the building up of the image of Rio de Janeiro as a modern metropolis as perceived
in the tropical belle époque´s periodism. In order to achieve such aim, issues of Kosmos magazine pub-
lished between 1904 and 1905, when the new main avenue was inaugurated, being a symbolical re-
mark of the whole project of urbanization designed by the ruling class in that historical moment.
KEYWORDS: Literature and Photography; Deltiology; Tropical Belle Époque.

Recebido em 27 de junho de 2016; aprovado em 20 de dezembro de 2016.

Terra roxa e outras terras – Revista de Estudos Literários


Volume 32 (dez. 2016) – 1-123 – ISSN 1678-2054
http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/terraroxa/
[67-81]

Você também pode gostar