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2001

O primeiro Halloween que passamos juntas, tínhamos 10 anos.

Havíamos nos conhecido naquele ano letivo quando Anna se


mudou com a sua família para a casa no fim da rua. Ela era um
pouco tímida, mas logo na primeira semana de aula, Lucas Morelli
roubou o estojo de canetas coloridas dela para desenhar obsceni-
dades no caderno, e eu, que estava acostumada a lidar com Lucas,
bati nele para recuperar o estojo.

Eu não tinha certeza, mas desconfiava que ele gostava de apa-


nhar das meninas, porque sempre exibia com orgulho as marcas
vermelhas pelo corpo depois de uma de nós dar uma boa espal-
mada nas suas costas ou braços. Enfim, isso não era relevante. O
que era relevante eram as canetas coloridas de Anna, que eu havia
recuperado. Tinha até uma com cheiro de pipoca. Eu nunca tinha
visto uma caneta com cheiro de pipoca antes. Mas gostei.

Anna me agradeceu e foi assim que nos tornamos amigas.

Naquele ano, decidimos fazer fantasias combinando: ela de


Velma e eu de Daphne.

Os pais de Anna eram um pouco superprotetores, porque ela


era filha única, mas a minha mãe prometeu a eles que meu irmão
iria nos acompanhar nos doces ou travessuras pela vizinhança.

JP já tinha 14 anos, mas apesar disso, até que ele era bem legal
com a gente e não deixava ninguém roubar os nossos doces.

Ele estava fantasiado de Ash, embora não se parecesse em


nada com o Ash. Se bem, que eu não me parecia em nada com a
Daphne também. Só talvez na cor do cabelo.

Acho que Anna era a mais parecida com a sua fantasia. Pelo
menos ela usava óculos iguais aos da Velma e tinha o cabelo no
mesmo comprimento. Bom, talvez a pele fosse diferente, já que
a mãe dela era branca e o pai negro, e Anna era uma mistura
dos dois, mas fora isso, ela era mesmo parecida com a Velma.
Principalmente na personalidade.

— Você quer ir lá pra casa? — perguntei à Anna depois de


recolhermos os doces na última casa em que passamos.

— Sua mãe não se importa, será?

— É claro que não — respondi. — A mamãe disse que ia ao


cinema com um amigo, não foi, JP?

— Foi — meu irmão respondeu.

— Legal!

Como nos conhecíamos havia apenas um mês e meio, desde


que começaram as aulas, era a primeira vez que Anna ia na minha
casa.

JP foi direto para o seu quarto jogar videogame.

— Eu posso avisar a minha mãe que estou aqui?


— É claro — disse, passando o telefone que estava na mesa
da sala para ela.

Ela discou o número e esperou apenas alguns segundos.

— Alô? Mamãe? Sou eu. Eu vou ficar aqui na casa da Alex um


pouco, está bem? …Uhum! Eu prometo. Beijos. Te amo.

— Você quer conhecer o meu quarto? — perguntei quando


ela terminou a ligação.

— Claro!

E foi assim que Anna entrou no meu quarto pela primeira vez.

Não era um quarto muito grande, mas era confortável o sufi-


ciente. Anna elogiou os meus desenhos no mural e ficou analisando
as fotos.

Eu me joguei na cama com meu balde de doce e a convenci a


fazer o mesmo. Jogamos todos os doces sobre o lençol e dividi-
mos tudo igualmente para cada uma.

Eu queria que ela dormisse na minha casa, mas os seus pais


não deixaram.

Quando ela foi embora, fiquei pensando que finalmente havia


feito uma amiga de verdade.

2002

Eu tinha perdido uma aposta.

Uma aposta muito besta, tenho que admitir.


Apostei que o time de futebol feminino da escola iria perder a
final para a escola rival — que eram as atuais campeãs e haviam
ganhado quatro anos consecutivos!!! — e Anna apostou que iriam
ganhar.

E elas ganharam.

E agora eu estava fantasiada de Stitch enquanto Anna, que


estava de Lilo, ria da minha cara.

— Você tá fofinha, Alex! — ela disse, mas não conseguia


parar de rir.

— Ha ha ha — exclamei de maneira sarcástica. — Eu não


quero sair na rua assim!

Nós tínhamos 11 anos e já não era mais aceitável usar fantasias


tão infantis como aquela. Todo mundo ia rir de mim. Eu ia passar
o resto do ano ouvindo piadinhas na sala de aula.

Anna parou de rir e lançou um sorriso gentil.

— Você tá super fofinha — ela repetiu. — Além do mais, você


vai ficar quentinha a noite toda e eu vou congelar com esse vestido.

— Aí eu te esquento — falei e pulei sobre ela com a minha


fantasia de pelúcia. Anna caiu na gargalhada e eu continuei fa-
zendo cócegas nela.

Quando saímos para o doces ou travessuras, eu já estava mais


conformada. Anna me prometeu que não deixaria ninguém rir da
minha cara e, embora eu soubesse que ela não poderia impedir as
piadinhas, estava contente de ela ao menos tentar.

JP não estava mais tão solicito quanto no ano anterior e recla-


mou o caminho todo de ter que nos acompanhar. Eu sabia que
ele queria se encontrar com a namorada dele.
Mas pelo menos eu e Anna pudemos ficar sozinhas a maior
parte do tempo, sem ele nos controlando.

Àquela noite, os pais de Anna deixaram ela ficar lá em casa.


Passamos a noite toda comendo mais doces do que aguentávamos e
conversando sobre tudo: nossas vidas antes de a gente se conhecer,
os nossos colegas de classe, os filmes e bandas que gostávamos…
sobre absolutamente tudo!

2003

O álbum Let Go da Avril Lavigne tocava no último volume no


meu quarto enquanto eu e Anna nos fantasiávamos.

— Alex, o que você achou daquela menina nova? — Anna me


perguntou enquanto colocava uma peruca branca para parecer a
Tempestade de X-Men: Evolution.

— Sei lá — disse, enquanto arrumava a faixa no meu cabelo


igual à Jean Grey. — Normal, eu acho. Como é mesmo o nome
dela?

— Tina.

— Por que você pergunta?

— Sei lá, achei ela legal!

— Uhum…

Não que Anna — ou mesmo eu — não pudesse ter outras


amigas. Era só que… sei lá, não tinha gostado muito do jeito que
ela estava falando dessa Tina.
Pelo menos a menina nova logo foi esquecida e saímos para
caçar os doces. O vento de outono estava forte naquela noite e
acabamos nos sentando sob uma das árvores do parque perto das
nossas casas.

— Se eu pudesse ter qualquer poder, eu ia querer ter teletrans-


porte! — Anna falou animada.

— Hm, eu ia querer parar o tempo.

— Pra quê?

— Pra poder dormir mais de manhã e não perder a aula.

Anna soltou uma risada.

— Nunca conheci ninguém mais dorminhoca que você.

— Ah, é que acordar cedo é tão chato.

— Você sempre acorda cedo quando eu durmo na sua casa.

— Isso porque você tá lá, senão eu dormiria muito mais.

— Mas você pode dormir o quanto quiser, eu não me importo


de acordar antes. Eu posso ficar lendo, sei lá.

— Eu acordo cedo pra aproveitar o dia com você, sua tonta!

— Ah! — ela exclamou meio sem jeito.

— Mas se eu pudesse parar o tempo, eu poderia dormir e apro-


veitar o dia com você. Seria perfeito!

Anna revirou os olhos mas me puxou para um abraço.

Eu gostava quando ela me abraçava.


2004

— Você não acha, hm, muito colado? — Anna me perguntou


enquanto vestia a fantasia de Alex das Três Espiãs Demais.

— Eu também vou usar — argumentei.

Eu iria me fantasiar de Sam, embora eu me chamasse Alex.

Já tínhamos 13 anos e o nosso corpo já não era tão de criança


assim e, às vezes, Anna se sentia desconfortável com isso.

Eu ainda era bem magricela, mas também percebia as


modificações.

— Tá bom — ela respondeu, mas parecia desconfortável.

— Você tá gata — eu disse. — Relaxa.

Ela apenas sorriu para mim através do espelho e quase no


mesmo instante a campainha tocou.

Me esforcei para não revirar os olhos ou soltar uma bufada,


mas não sei se fui bem-sucedida. Por um momento, havia esque-
cido que a Tina viria também.

Não sei exatamente em que momento essa garota se meteu no


nosso meio e nem como eu cheguei ao ponto de convidar ela para
a minha casa. Mas eu detestava cada minuto em que ela estava
na minha frente.

Desci a escada para abrir a porta e me deparei com Tina, vestida


de Clover e tanta maquiagem que por um segundo não reconheci
a cara sonsa dela.
— Oi, Alex — ela disse, com a voz anasalada de sempre.

— E aí, a gente tá lá em cima, a Anna ainda está se arrumando.

— Legal a sua casa.

— Hm? Ah, obrigada. Eh, o quarto é lá em cima, vem.

— Uau, que gata que você está! — Tina disse assim que entrou
no quarto e viu Anna.

— Obrigada — Anna respondeu meio encabulada. — Você


também. Aliás, vocês duas — Ela se virou para mim e abriu um
sorriso.

Não sabia se ela falava por pena ou educação, mas senti algo
estranho no meu estômago.

— A sua mãe não está em casa? — Tina perguntou.

— Não, ela saiu com o namorado novo dela, meu irmão


também saiu.

— Estamos com a casa só pra gente?

— Acho que sim.

— E você sabe se sua mãe tem um armário de bebidas?

— O quê? — Anna perguntou alarmada. Anna era a pessoa


mais certinha que eu já havia conhecido e eu gostava disso nela.

— Não que eu saiba.

Eu sabia muito bem que ela tinha e também sabia onde estavam
as bebidas, mas eu não ia deixar essa destrambelhada estragar a
nossa noite.
— Hm… que sem graça — Tina disse.

Anna apenas me lançou um olhar preocupado e eu dei de


ombros.

***

Aquele estava sendo, sem dúvidas, o pior Halloween dos últi-


mos… mil anos, talvez!

Tina não largou Anna nem por um segundo e sempre que podia
dava trela para os meninos mais velhos. Eu via que Anna estava
tão desconfortável quanto eu, mas não sabia como fugir de Tina,
já que cada passo que Anna dava, Tina puxava a menina de volta
pelo braço.

Uma maníaca, se você me perguntar.

— Tem uma festa depois, lá na casa do Mike — um garoto de


uns 15 anos falou para Tina.

— Legal, a gente vai! — Tina respondeu.

— Não vai, não — Anna interveio rapidamente.

Eu apenas revirei os olhos, porque nada que eu falasse seria ao


menos escutado, que dirá considerado.

— Ah, Anna, deixa de ser cdf. Vai ser legal — Tina falou, se
inclinando de uma maneira estranha e íntima sobre Anna.

Senti uma sensação ruim no meu estômago.

Tina brincava com o cabelo de Anna e cochichava coisas no


seu ouvido e eu nunca me senti tanto como uma carta fora do
baralho como naquela noite. Parecia que a intrusa era eu e não
essa insuportável.
— Não sei, Tina…

— Você que sabe, mas vai ser bem legal, e a gente pode, sei
lá, se divertir.

Se divertir? Que grande piada! Nunca vi Anna se divertindo


menos do que naquele momento.

— Por que você não vai sozinha? — eu falei, pela primeira vez
em vários minutos.

Anna se virou para mim com algo de esperança no olhar, mas


também tive a impressão de que ela havia esquecido que eu estava
com elas.

Tina apenas franziu as sobrancelhas, que mais pareciam de


uma mulher de meia idade com três divórcios nas costas do que
de uma menina de 13 anos.

— Bom, se vocês quiserem o endereço é esse — o garoto falou


e entregou um panfleto para Tina.

— Se você fosse minha amiga mesmo, você iria — Tina falou


para Anna.

Era incrível como ela nunca falava comigo ou se referia a mim.

— Talvez a gente possa ver como é — Anna disse por pura


culpa. — Você vem, né, Alex? — ela perguntou diretamente para
mim.

Como eu odiava essa Tina!

— Vou.

É claro que eu ia, não ia deixar a Anna sozinha com essa pira-
nha. Eu gostava dessa palavra para descrever Tina. Era assim que
a minha mãe chamava as mulheres que ela não gostava, e parecia
apropriado para essa sem noção também.

Anna me lançou um sorriso de agradecimento, mas não conse-


gui retribuir. Tudo que eu queria era que essa noite acabasse logo.

A festa tinha o mesmo cheiro do quarto do meu irmão. E isso,


definitivamente, não era uma coisa boa.

Pra todo lado, tinha gente bebendo, se beijando ou fumando. Eu


tenho certeza de que deveriam estar usando algum tipo de droga
também, mas preferi não olhar muito para ninguém.

Em menos de trinta minutos, Tina já estava bêbada e conversan-


do com um cara que deveria estar no ensino médio… no mínimo.

Eu estava sentada em uma mesa de ping pong que tinha alguns


copos organizados em um triangulo para alguma brincadeira idiota
que aconteceria dentro de alguns minutos.

— Você acha que ela vai ficar chateada se a gente for embora?
— Anna me perguntou.

Anna era a minha melhor amiga e eu amava ela mais que qual-
quer outra pessoa, mas hoje ela estava me irritando.

— Não sei por que você se importa.

— Porque ela é minha amiga.

— Você não se importou nem por um segundo se eu estava


chateada!

— E você está? — ela perguntou com os olhos arregalados.

— É claro que estou, Anna! Essa festa é um saco, essa garota


é uma insuportável e você é uma sonsa quando tá perto dela!
Anna parecia um pouco magoada, mas não o suficiente para
que eu me sentisse culpada.

— E por que você veio?

— Porque você pediu. E porque eu não confio nessa daí!

O cara do ensino médio estava com uma mão na parede ao


lado da cabeça de Tina, seu corpo estava completamente inclinado
sobre o dela e ele falava sem nunca tirar os olhos da sua boca.

Eu podia ter 13 anos, mas não era idiota, eu sabia exatamente


como isso iria terminar.

— Vem — Anna disse. — Vamos embora.

Olhei para ela para tentar entender o motivo, mas ela tinha um
sorriso. Pela primeira vez desde que essa noite começou, consegui
retribuir genuinamente.

Dali caminhamos juntas até a minha casa, que ficava a umas


cinco quadras da tal festa.

— Desculpa ter agido assim — ela disse, olhando para o chão.

— E por que você agiu assim?

Ela deu de ombros.

— Eu não sei… ela é popular e queria ser nossa amiga…

— Sua amiga — corrigi. — Ela queria ser sua amiga, eu era


apenas o preço que ela tinha que pagar.

Anna olhou confusa, como se ela realmente não houvesse per-


cebido. Deus abençoe esse coração ingênuo, mas puxa vida!
— Me desculpa — ela disse, olhando nos meus olhos.

— Eu não me importo de você ter amigas além de mim, Anna


— eu disse, porque não queria que ela achasse que me devia
alguma coisa. — Mas aquela garota é problema, e você aceitava
fazer coisas que você não faria normalmente.

— Eu sei. Me desculpa!

— Tá tudo bem, contanto que eu nunca mais tenha que falar


com a Tina e ouvir ela falando “Anna” com aquela voz esganiçada
que mais parece uma ovelha com dor de barriga.

Anna soltou uma gargalhada e, pela primeira vez em horas,


senti que estávamos bem. Quando chegamos na minha casa, fize-
mos maratona de filmes de Halloween e nos entupimos de pipoca
e doces. Anna pegou no sono no meu ombro e fiquei com dó de
acordá-la.

Dormimos no sofá, com ela abraçada em mim.

2005

Eu e Anna planejamos a nossa fantasia com seis meses de an-


tecedência. Fizemos todos os detalhes. Ela seria a Shego e eu a
Kim Possible. Estava tudo certo.

Mas, infelizmente, a vó de Anna faleceu dois dias antes do


Halloween, e ela e a família tiveram que ir para a sua cidade natal
para o enterro.

— Você não vai sair hoje, querida? — minha mãe perguntou.

— Não, vou ficar em casa e não vou abrir a porta pra ninguém.
Melhor colocar uma placa dizendo que não temos doces!

— Você tá assim só porque a Anna não está aqui, né?

Apenas ergui os ombros.

— Bom, pelo menos come alguma coisa. Eu vou sair com o


Jason, e o JP disse que não volta pra casa hoje.

— Tá.

Melhor assim, podia ficar com a casa toda pra mim.

Eu estava no fim de Abracadabra quando o telefone ao lado


do sofá tocou. Até pensei em ignorar, mas algo me fez atender
mesmo assim.

— Alex? — Anna disse no outro lado da linha.

— Oi! — Não pude esconder o meu sorriso. — Como estão


as coisas aí?

— Meu pai tá arrasado, mas a gente meio que já estava espe-


rando. Ela estava bem doente.

— Eu sinto muito.

— Eu queria estar aí com você! — ela disse.

— Nem me fala, é um pecado não podermos usar as fantasias.

— Você não está usando?

— Não! Nem saí hoje. Não tem graça.

— Por que você não convidou a Tina? — Anna falou com um


tom de humor.
Apesar de eu amar a ingenuidade que ela costumava ter, estou
contente com essa versão mais sarcástica e mais ligada dela.

— Eu teria que driblar uns cinco jogadores de basquete pra


conseguir chegar nela.

— O Lucas me contou que a Ashley contou pra ele, que a Tina


fez um teste de gravidez semana passada.

— Cala a boca!

— É sério! — Anna confirmou. — Mas parece que deu negativo.

— Credo! — exclamei. Mas, sinceramente, não podia me im-


portar menos com a Tina, então mudei de assunto. — E quando
você volta?

— Semana que vêm só.

— Eu tô com saudade — falei, apesar de não saber se deveria.

— Eu também estou!

Conversamos a noite toda, até que as duas estivessem com


sono. E, mesmo sendo nosso primeiro Halloween separadas, foi
o que eu me senti mais próxima dela.

2006

Quando abri a porta da minha casa, quase caí para trás com a
imagem de Anna vestida de Aisha das Winx.

Ela estava com um vestido verde de apenas uma alça, o cabelo


solto caindo sobre as asas que ela mesma produziu e lentes de
contato azul, imitando a personagem.

Eu sabia que ela estaria com esse vestido, eu tinha ajudado a


fazer as asas, sabia como seria a maquiagem e mesmo assim…
eu não estava preparada!

Anna me encarou por um tempo sem saber o que fazer, e per-


cebi que ela havia ficado tímida com a minha reação. Limpei a
garganta e exclamei:

— Você tá linda!

— Obrigada… você também!

Eu ainda não estava pronta, mas já estava com o top e a saia


azul turquesa.

— Hm… entra, entra — disse, me dando conta, de repente, de


que Anna ainda estava plantada na minha porta.

Nós teríamos uma festa na casa de Lucas para ir e eu ainda


teria que terminar de me arrumar. Então subimos as duas para o
meu quarto.

Eu não sabia explicar por que o clima estava tão estranho, mas
eu não conseguia parar de olhar para ela através do espelho em
que fazia a minha maquiagem e não sabia o que falar.

Anna parecia mais tímida do que o normal. Na verdade, igual


ao seu normal, mas ela nunca havia sido tímida comigo. Eu me
perguntava o que poderia ter mudado para ela estar assim agora.

O meu celular vibrou em cima da cômoda e eu abri o flip para


ler a mensagem de texto.

— O Lucas tá falando que os pais dele já saíram e a casa já


está liberada — falei sem muito entusiasmo.
A verdade é que eu não tinha vontade nenhuma de ir àquela
festa. Não que não gostasse de festas, era só que Halloween era
uma coisa nossa, só minha e de Anna. Quer dizer, eu sabia que
era uma festa, tipo, mundial, mas nós sempre passávamos juntas.
E podíamos ir para festas todos os outros fins de semana do ano.
Inclusive teria uma no próximo sábado.

— É estranho, você não acha? — Anna perguntou.

— O quê?

— Ir para uma festa de Halloween… a última foi aquela com


a Tina.

— Bom, naquela a gente era praticamente crianças ainda!

— Minha mãe diria que ainda somos. Como ela de fato disse…
seis vezes… só antes de eu sair de casa — Anna falou com uma
risada e uma revirada de olhos.

Os pais dela eram gente boa, mas muito superprotetores e, puxa


vida, nós já tínhamos 15 anos! Nós não éramos mais crianças.

— Sua mãe se preocupa demais, nunca vi uma pessoa mais


certinha que você.

— Eu não sei se é por causa daquela festa com a Tina, mas eu


não tô com muita vontade de ir na festa do Lucas.

Me virei de frente pra ela para estudar sua expressão.

— Eu também não tô — admiti.

— A gente podia, hm, ficar aqui e a assistir filmes de terror e


comer o doce das crianças — Anna sugeriu.

— E desperdiçar essa sua fantasia incrível sem ninguém ver?


— Você está vendo… pra mim é o mais importante.

Senti as minhas bochechas corando e uma sensação engraça-


da na barriga.

— Eu prefiro ficar aqui também.

— Ufa! — ela exclamou.

Um sorriso incontrolável se formou no meu rosto.

— O JP tem um monte de DVD de terror. Podemos entrar lá


e procurar.

Meu irmão não estava em casa e fazia muito tempo que eu não
entrava no quarto dele, muito menos sem autorização, mas acho
que ele não iria se importar se a gente não mexesse em mais nada.

Por fim, escolhemos A Casa de Cera, a trilogia de Pânico,


Lenda Urbana e Eu Sei o que Vocês Fizeram no Verão Passado.

— Vamos ter que virar a noite pra ver tudo — eu falei para
Anna que carregava os DVDs.

— Tudo bem.

A ideia de virar a noite com ela no sofá da minha sala me agra-


dava bem mais do que eu estava disposta a admitir.

— Quer pedir pizza? — perguntei.

— Claro!

Estávamos na metade do segundo filme, Anna estava meio


deitada no sofá, com os pés sobre a minha coxa. Já havíamos
comido uma pizza e meia e o resto estava jogado na caixa na
mesa de centro.
Boa parte das nossas fantasias estavam agora no sofá ao lado,
como as nossas asas, e as lentes azuis de Anna, que, segundo ela,
machucavam os seus olhos.

— Sinceramente, se eu estudasse nessa escola, a primeira


pessoa que eu iria desconfiar era do namorado da Sid— Anna
disse enquanto assistíamos à Pânico.

— Isso porque você é um gênio e uma pessoa sensata que


não se deixa levar pelo “charme” masculino — comentei com
uma piscadinha.

— Que charme? Esses dois têm cara de maníacos desde a pri-


meira cena.

— Tem razão.

— Inclusive eu jamais trocaria a minha melhor amiga por um


namorado!

Eu sabia que ela estava falando da Sidney e da Tatum, mas


mesmo assim, senti um calor tomar conta do meu peito.

— Não?

— É claro que não… ainda mais se ela for ruiva e meio des-
trambelhada igual a Tatum — Anna tinha um sorriso maroto.

— Você tá me chamando de destrambelhada? — perguntei.

— Se a carapuça serviu…

Tentei jogar uma almofada na direção dela, mas ela segurou


a outra ponta e a puxou, fazendo eu ir junto com a almofada e
caindo por cima dela.

Quando me dei conta, estava a poucos centímetros do seu rosto.


— Hm, talvez eu seja um pouco destrambelhada mesmo.

— Talvez — Anna concordou. Seu olhar flutuava entre a minha


boca e os meus olhos.

— Eu… é… — gaguejei, tentando voltar para o meu lugar.

Mas Anna abriu um sorriso de lado e me puxou pelo pescoço.


Só consegui ver o brilho nos seus olhos antes de sentir os lábios
dela contra os meus.

Aquele era, sem dúvidas, o melhor Halloween da minha vida!

Fim.
O sol havia se posto há algumas horas e, apesar de ser uma
noite quente, deixei o fogo aceso para terminar um medicamento
que entregaria pela manhã.

A mistura de alfazema, melaleuca e tomilho ajudaria um garoti-


nho de quatro anos a respirar melhor, porque, segundo a irmã mais
velha, ele sentia constante falta de ar, e sua família se preocupava
que ele talvez não sobrevivesse ao inverno se continuasse assim.

O aroma das ervas preenchia minha cabana e o vapor ajudava


a umedecer o ar seco. Enquanto o líquido fervia, eu me concentra-
va em moer as sementes de aboboras selvagens, parando vez ou
outra para secar o suor que brotava na minha testa. As batidas do
pilão de pedra se juntavam à sinfonia de grilos cantando, corujas
piando e os nós da madeira crepitando no fogo.

Duas batidas secas, que certamente não vinham do meu pilão,


se juntaram a essa percussão. A princípio, pensei estar ouvindo
coisas; minha cabana era cercada por floresta e a vila mais pró-
xima ficava a três quilômetros a oeste, ninguém viria até aqui ao
anoitecer a não ser que quisesse se perder na floresta. Concluí que
deveria ser apenas um esquilo e voltei às sementes.
De novo escutei a batida mais forte e impaciente, larguei o
pilão e olhei com curiosidade para a porta de madeira. Talvez
fosse alguém perdido.

Novamente, a porta foi golpeada, dessa vez, seguida de uma


voz doce e feminina:

— Olá? Tem alguém em casa? Eu gostaria apenas de conversar!

Franzi a testa com o pedido. Moças jovens não andam sozi-


nhas a essa hora a não ser que estejam com algum problema…
ou procurando um!

Apesar disso, a curiosidade me venceu e caminhei até a porta,


abri devagar a tramela e me deparei com dois olhos tão verdes
que faziam a floresta ao seu redor parecer cinza. A constelação
de sardas no nariz arrebitado e os fios dourados presos em uma
trança sobre o ombro completavam a imagem a minha frente. Por
um instante, apenas encarei os olhos esmeralda, me perguntando
o que traria ela até aqui.

— Ah! Olá, eh… puxa, por um momento achei que não tinha
ninguém em casa. — Ela fez uma pausa. — Eu gostaria de falar
com Cassandra! — disse de maneira tão articulada que imagino
que tenha praticado essas palavras no caminho.

— Você está grávida? — perguntei sem fazer rodeios. Quando


moças jovens vem sozinhas (e de noite) me visitar… bem, quase
sempre é porque andaram se divertindo demais antes do casamento.

— O quê? — perguntou confusa. — Não, não! Eu preciso de


ajuda.

— Ajuda com quê?

— Com o amor!
Novamente minha reação se resumiu a franzir a testa e encarar
aqueles olhos. Era um pedido no mínimo inusitado.

— Hm, eu posso entrar? — ela perguntou com certo receio.

A curiosidade sempre foi meu maior defeito, então, abri espaço


e fiz um gesto com a mão para que ela entrasse.

— Muito obrigada — disse ela com educação. — Nossa, que


cheiro bom!

— Sente-se, por favor — disse, apontando para uma cadeira


velha de madeira que, apesar de bamba, minha experiência me
dizia que não quebraria tão cedo, sendo assim, por ora, a garota
estaria segura.

Ela se sentou com os joelhos juntos e as mãos sobre eles; seus


olhos verdes me encaravam com uma expressão de inocência.

— Então — disse eu quando o silêncio começou a me inco-


modar —, qual o seu nome?

— Sarah! Sarah Cole. Você é Cassandra, não é?

— Cass — corrigi. — E com o que você precisa da minha


ajuda, Sarah?

— Eu já disse: com o amor! — repetiu como se fosse óbvio.

Como tive a impressão de que ela falava sério, tentei conter a


minha risada, ainda assim, um engasgo escapou da minha garganta.

— E como eu poderia te ajudar com isso?

— Com uma poção, é claro!

— Com o quê?
— Minha amiga, Anne, me disse que você é bruxa e eu pensei
que você poderia fazer alguma poção para me ajudar.

Dessa vez não consegui evitar o riso.

— De onde sua amiga tirou essa ideia?

— Ano passado você ajudou a irmã dela, Mary Goode, que


estava muito doente, todos achávamos que ela morreria, mas você
a curou!

— Sim, com medicina e botânica, não com magia!

Ela apenas me encarou desconfiada como se eu estivesse men-


tindo para ela, ou como se fosse impossível curar alguém tão
doente sem magia!

— Que tipo de problemas uma moça como você pode ter com
amor? — perguntei. — Você tem o quê? 18 anos?

— 19.

— 19 anos! Deve estar cheio de rapazes querendo se casar


com você!

— É justamente este o problema! — ela disse.

— Não entendo…

— Eu conheço todos os rapazes da vila desde criança e não


amo nenhum deles! Eu preciso de uma poção para encontrar minha
alma gêmea! Eu sei que não pode ser Henry Routh ou Thomas
Beacher! — Ela fez uma careta ao nomear os rapazes.

— E como que uma poção poderia te ajudar exatamente?

Sei que deveria apenas cortá-la e mandá-la para casa, mas como
disse, a curiosidade sempre foi meu maior defeito.

— Oh, não sei, você é a bruxa, mas me ajudar a, não sei, re-
conhecer ele quando eu o vir…

— Deve fazer meses que não aparece alguém novo na vila,


criança, você acha mesmo que precisaria de uma poção para re-
conhecer um rosto novo?

— Você deveria sair mais, Cass — ela disse em tom de repre-


ensão. — Ultimamente há muitos viajantes passando pela estrada
que cruza a vila, a maioria indo para o sul.

— E você acha que casar-se com um viajante e morar no sul


vai te fazer mais feliz do que viver na vila perto da sua família?

Ela ficou em silêncio um segundo, sua expressão de repente


menos jovial.

— Eu sinto, sabe — ela disse —, que aquele não é meu lugar,


você já sentiu isso? Como se você estivesse fora da rota do seu
destino?

Estreitei os olhos tentando estudá-la; ela era uma moça bas-


tante bonita, jovem, parecia saudável, pelos trejeitos e a maneira
que falava, parecia ser bem-educada; com certeza se encaixaria
perfeitamente numa vila cristã como essa, poderia até se casar
com um futuro pastor e ser um membro valioso para a comuni-
dade; mas a verdade é que a entendia melhor do que ninguém…

— Já — respondi apenas.

Ela me encarou com um sorriso esperançoso.

— E o que exatamente você espera encontrar fora da vila?


— perguntei.
Ela se remexeu na cadeira bamba, e torci para que não quebrasse.

— Não sei, mas deve ter mais no mundo do que essa vila
monótona! — ela falou com um ar tão sonhador e jovial que fez
eu me sentir uma anciã, mesmo sendo apenas poucos anos mais
velha. — Tem que ter!

A maneira como ela falava me fez compreender que o que a


movia era o desejo por desbravar novas possibilidades.

— Entendo! — disse apenas.

— É por isso que eu estou aqui! Minha irmã mais velha acabou
de se casar e eu sou a próxima, tenho certeza de que logo um
dos rapazes da vila irá pedir minha mão! Você precisa me ajudar
a encontrar o amor verdadeiro… eu não posso viajar sozinha, não
sei nada sobre isso e meus pais jamais concordariam, e nenhum
rapaz da vila viajará comigo, então, estou certa de que minha alma
gêmea deve ser um viajante!

Estava mais claro do que água que o que ela precisava não era
de ajuda com o amor, era apenas de coragem!

— Eu não posso te dar uma poção do amor — eu disse e vi


sua expressão murchar —, mas quem sabe um feitiço?

Os olhos esmeralda brilharam com a sugestão.

Eu sei que não deveria estar enganando uma moça tão ino-
cente, mas também sei que coragem é apenas confiança na causa
pela qual se está lutando, então, se eu puder ajudá-la acreditar ou
acreditar que acredita, talvez o feitiço dê resultado!

— Então você pode me ajudar! — Foi mais uma afirmação do


que uma pergunta.

— Talvez! Mas preste atenção, está bem? — instruí, e ela fixou


os olhos concentrados em mim. — É um feitiço muito simples,
mas tem que ser feito exatamente como eu te ensinar — disse
com importância.

Novamente ela se remexeu na cadeira, podia ver seu corpo


tremendo de excitação.

— É claro!

— Você vai precisar colher quatro dentes-de-leão, um ramo


de amor-perfeito e dois ramos de alfazema. Espere a lua aparecer
durante o solstício de verão, então, encha a tina de água e acres-
cente as pétalas do amor-perfeito e da alfazema uma a uma e se
banhe nesta água, quando a lua atingir o ponto mais alto, você
deverá assoprar os quatro dentes-de-leão aos quatro pontos car-
deais — fiz uma pausa —, essa parte é muito importante, é para
espalhar o feitiço para os quatro ventos, entendeu?

— Entendi! — disse ela, ouvindo atentamente.

— Ótimo! Depois disso, basta dizer as palavras “virtus, amor


et libertas”

— Virtos o quê?

— Virtus, amor et libertas!

— Virtus, amor et libertas — ela repetiu corretamente.

Não pude deixar de me divertir com a ideia de que em todos


esses anos que estudei Latim, esta foi a primeira vez que a língua
teve alguma utilidade prática.

— E o que exatamente esse feitiço faz? — ela perguntou.

— Ele te guiará para o seu destino, pense nele como uma


bússola que te apontará o caminho, mas isso é tudo; você deverá
tomar a iniciativa você mesma, entendeu?

— Acho que sim! Então, ele me ajudará a reconhecer o cami-


nho certo? — perguntou, confusa.

— Exatamente! Quando a oportunidade aparecer, você saberá


o que fazer!

— Puxa, estou até arrepiada! É melhor eu não perder tempo,


o solstício é em dois dias!

— Não se esqueça das palavras!

— Virtus, amor et libertas! — ela repetiu corretamente. — Ah,


quase me esqueci, quanto eu te devo? — perguntou, pegando sua
bolsa de moedas.

— É você que terá todo o trabalho — disse, recusando


pagamento.

***

Um pouco mais de uma semana havia se passado desde a visita


inusitada de Sarah, e eu aproveitava o fim de tarde para colher
algumas ervas no meu jardim.

O sol poente penetrava pelos galhos e folhas das árvores da


floresta que me cercava, formando um mosaico de amarelo e la-
ranja na minha pele enquanto eu afundava as mãos na terra úmida.

Uma sombra encobrindo o sol chamou minha atenção e levantei


os olhos das ervas para ver Sarah caminhando em minha direção.

— Fico feliz em ver que você não tenha se perdido na floresta


voltando tão tarde aquele dia — eu disse quando ela se aproximou.
— Mas se veio reclamar do feitiço, devo te informar que esse tipo
de coisa geralmente leva um certo tempo.
— Boa tarde, Cass — disse com gentileza —, na verdade,
por enquanto, acho que seu feitiço tem funcionado muito bem,
Thomas Beacher pediu Anne em casamento e segundo meu pai,
foi uma surpresa, porque sua família tinha certeza de que ele pe-
diria a minha mão.

— Bom, fico feliz em ajudar — disse, tentando evitar qualquer


tom de sarcasmo ou cinismo.

— Venho por outro problema!

Levantei-me do chão e limpei minhas mãos no avental que en-


volvia meu vestido.

— Aconteceu alguma coisa?

— Eu, eh…

— Espera — eu a interrompi —, vamos conversar lá dentro.

Sinalizei em direção à cabana.

Apesar de ela só ter estado uma única vez na minha casa, eu


senti um senso de familiaridade estranho ao vê-la se sentar na
mesma cadeira bamba da última vez. A cabana era apertada e
havia apenas um único cômodo que servia como cozinha, quarto
e sala, mas apesar do espaço pequeno, eu sempre me senti livre
em viver ali.

— Eu tenho me sentido estranha — ela disse, depois que eu


me sentei na sua frente.

— Estranha como?

— Não sei, desde o solstício, eu não consigo dormir direito,


sinto que estou sempre cansada, mas não consigo fechar os olhos
por muito tempo, além disso, estou sempre com dor de barriga.
— Que tipo de dor? — perguntei, sentindo-me mais à vontade
ao lidar com medicina e não com magia.

— Como se eu estivesse com muita fome, mas ao mesmo


tempo cheia, ou como se tivesse um vazio na minha barriga, mas
ao mesmo tempo sinto que não há espaço para mais nada. Você
acha que posso ter feito o feitiço errado?

— Não se preocupe, não há nada de errado com o feitiço — eu


disse —, nem com você! Parece-me apenas que você está agitada
demais esperando que sua vida mude!

— E estou mesmo!

— É normal se sentir assim, eu creio, vou preparar um chá de


marcela para você — disse, levantando-me.

— Obrigada, Cass!

— E sua amiga Anne está feliz? — perguntei, referindo-me


ao noivado.

— Oh, não poderia estar mais feliz, ela sempre foi apaixona-
da por Thomas. Por isso todos acharam tão estranho, porque ele
nunca deu bola para ela, mas desde semana passada ele não parou
de falar dela, segundo a irmã dele me contou.

Não pude evitar franzir a testa com a coincidência. Mesmo


sabendo que o feitiço era falso, fiquei contente que todos saíram
ganhando.

Amassei as folhas de marcela em uma xícara de madeira e


coloquei água fervente dentro antes de entregar a Sarah. Ela me
agradeceu mais uma vez.

— E o que você está preparando hoje? — ela perguntou, es-


pichando os olhos para dentro do caldeirão que estava fervendo
sobre o fogo junto a chaleira de ferro.

— Um medicamento para ajudar a aliviar as cólicas de um


recém-nascido!

— Oh, a pequena Hannah?

— Ela mesmo, a mãe dela me disse que ela chora muito a noite
e acredito que sejam cólicas, e essa mistura ajudará a diminuir o
incômodo.

— Puxa, isso é muito interessante. Como você fez?

Não era comum as pessoas se interessarem em como meu tra-


balho era feito, elas normalmente preocupavam-se apenas com
os benefícios dos medicamentos, não em conhecer o processo.

Expliquei sobre as plantas que uso e porque elas funcionam


para aquele tipo de problema. Sarah fez uma pergunta atrás da
outra e quando nos demos conta, a noite já havia caído.

Não contive um sorriso ao perceber que ela estava bem mais


tranquila na hora de ir embora do que estava quando chegou.

Posso não ser uma bruxa, mas meus remédios também fazem
mágica!

***

No domingo seguinte, mais uma vez recebi a visita de Sarah.

— Você não deveria estar na missa? — perguntei.

— Eu disse aos meus pais que não me sentia bem e eles me


deixaram ficar em casa, mas é melhor eu voltar antes do fim do
sermão, senão estarei encrencada!
— E o que você precisa dessa vez? Um feitiço para falar com
os animais?

—Não — disse, sorrindo —, espera!, você pode fazer isso?

— Claro que não, Sarah! — respondi, rindo.

— Ah, que pena!

— Então?

— Nada. Eu só vim te visitar, ver se você precisa de ajuda,


talvez?

— Você quer me ajudar? — perguntei, desconfiada.

— Quero! — disse com um sorriso doce. — Acho que estou


fazendo aquele chá que você me deu errado, porque aquele dia
saí daqui e dormi feito um bebê, mas desde então estou tomando
e não está adiantando.

— Ah! Você não quer me ajudar, quer que eu te ensine a fazer


o chá! — exclamei com um sorriso presunçoso.

— As duas coisas — disse ela sem jeito.

— Bom, tudo bem, você pode me ajudar!

***

A partir daquele dia, Sarah passou a me visitar com frequência;


quando não ia na terça-feira de tarde, ia na quinta de manhã, ou
no sábado à tardinha, ou no domingo depois da missa…

Passei a me acostumar com a sua presença e com sua ajuda, e


a estranhar os dias que ela não estava. Ela se tornou uma espécie
de aprendiz de botânica, embora, continuasse insistindo que o chá
de marcela só funcionava quando feito por mim. Quando cansou
de ouvir que o chá não tinha segredo nenhum, era só folha e água
fervente, ela passou a afirmar que o chá era inútil, e que era sim-
plesmente a minha presença que a acalmava.

Quanto ao feitiço, ela insistia que apesar de sua alma gêmea


ainda não ter aparecido, estava dando certo, afinal, Henry Routh,
o outro pretendente, havia finalmente pedido a mão de uma tal
de Mary Miller em casamento.

***

Um mês havia se passado com essa nova rotina, e eu já sabia


quase que instintivamente quando Sarah viria ou não. Hoje eu sabia
que ela ajudaria Anne com os preparativos para o casamento com
Thomas Beacher e por isso estaria o dia todo ocupada.

A única visita que esperava era a de John, um garoto de 13


anos que viria buscar um medicamento para sua mãe. Enquanto
o esperava, aproveitava a tarde mais fresca para colher maçãs.

Estava em um galho a uns três metros e meio do chão, quando


ouvi aquela voz gentil, a qual não esperava ouvir hoje, gritar meu
nome:

— Cass!

— Sarah! — exclamei, não conseguindo conter o sorriso. — Eu


não esperava você hoje!

— Eu sei — ela disse com sua voz costumeiramente gentil;


porém, pude notar que ela estava tensa. — Mas tenho notícias!

— Está tudo bem? — perguntei, começando a descer da ma-


cieira, sentindo um ligeiro desconforto na boca do estômago.

— Eu… eu acho que o feitiço funcionou! — ela disse com a


voz mecânica e eu paralisei no galho em que estava. — Quer dizer,
esta manhã fui pedida em casamento por um viajante.

— Você o quê? — perguntei e me apressei para me aproxi-


mar dela, esquecendo completamente que estava em um galho
de árvore a três metros do chão. Na queda, senti um dos galhos
rasgando a pele do meu braço.

Assim que atingi o chão, Sarah já estava ao meu lado para me


ajudar.

— Cass, minha nossa, você está bem? Você se cortou! Não,


espera, não se mexe ainda — ela me impediu de levantar.

— Eu estou bem! — insisti, levantando-me assim mesmo. —Ai!

— O que foi? — Sarah perguntou nervosa, checando cada parte


do meu corpo atrás de onde estava doendo.

— Acho que torci meu pé!

Ela me abraçou pela cintura e eu coloquei meu braço não


machucado ao redor do seu ombro para que ela me ajudasse a
caminhar.

—Vem, eu vou te levar pra dentro, a gente precisa limpar esse


corte e colocar o seu pé para cima.

— Ei, eu sou a curandeira aqui — disse em tom de brincadeira,


tentando manter o clima mais relaxado.

— Por sorte, eu sou uma excelente aluna!

Sarah me levou para a cabana em silêncio. O clima estava car-


regado e eu não sabia como quebrar a tensão.

Ela me ajudou a me sentar no catre improvisado que eu usava


como cama e colocou um travesseiro embaixo da minha perna para
apoiar o pé torcido. Em seguida, me ajudou a despir o vestido para
poder olhar o corte no meu bíceps; eu cobri meu corpo com um
cobertor de pele de urso enquanto ela estudava o ferimento. Sua
mão era quente e macia em contato com a minha pele.

— Você vai precisar costurar para mim — eu disse, observando


o corte, que era profundo e poderia infeccionar.

Sarah tirou seus olhos do ferimento e encarou os meus, assus-


tada com a ideia de costurar uma pessoa.

— Você consegue — reafirmei —, é igual costurar vestidos


ou cortinas!

— Eu sou péssima nesse tipo de serviço, Cass!

— Achei que você fosse uma excelente aluna! — provoquei,


tentando arrancar um sorriso dela.

Funcionou.

— Está bem, mas você me guia!

Assenti e disse a ela onde encontrar o kit de sutura, então, ex-


pliquei passo-a-passo o que ela deveria fazer.

Em um pedaço de pano, ela derramou um pouco de hidromel


para limpar o local, fechei os olhos tentando ignorar a ardência
que sentia. Peguei a garrafa do apoio em que Sarah a havia dei-
xado e bebi um gole generoso, esperando que funcionasse como
anestésico para a hora da sutura.

Sarah estava bastante concentrada e eu sentia sua respiração


próxima a minha; o fogo tremeluzente refletia em suas bochechas,
e realçava ainda mais o verde de seus olhos e o dourado de seus
cabelos. As mãos tremiam levemente, mas ela se concentrava para
fazer tudo direito e, para uma primeira vez, até que demonstrava
bastante coragem.

Eu podia sentir meu maxilar se contraindo a cada nova agulha-


da e, ao mesmo tempo, minha garganta fechando com as palavras
que estava engolindo.

Sarah estava quase acabando os pontos quando finalmente


quebrei o silêncio:

— E você vai aceitar?

Apesar da pergunta vaga, sei que ela entendeu ao que eu me


referia.

— Não sei — disse, sem tirar os olhos do que estava fazendo.

— Achei que era isso que você queria.

Eu senti a hesitação em seus dedos, seus olhos se fecharam e


ela respirou fundo. Antes de responder qualquer coisa, ela termi-
nou o último ponto e pegou um pedaço de pano para enfaixar o
corte. Quando ela deu o último nó, respirou fundo e respondeu:

— Era. Mas eu achei que eu teria mais certeza, achei que eu


sentiria algo mais intenso… quer dizer, o feitiço…

— Sarah… — disse suavemente interrompendo-a; com a mão


livre levantei o seu queixo para que me encarasse nos olhos. — O
feitiço não é real, eu sei que você sabe disso!

— Eu sei que você não é uma bruxa e que você me disse qual-
quer coisa para que eu te deixasse em paz aquele dia —ela disse,
sem parecer zangada ou magoada, e tive a impressão de que ela
já sabia disso há um tempo.

— Eu não quero mais que você me deixe em paz — disse,


mesmo sem saber se deveria. Ela esboçou um sorriso fraco. — E
me desculpe ter inventado um feitiço falso!

— Mas aí que tá, Cass, eu acho que ele não é falso!

— O que você quer dizer?

— Ele funcionou até aqui! Thomas e Henry pediram a mão de


outras moças em casamento.

— Isso foi coincidência, Sarah. Além do mais, o feitiço deveria


clarear o seu caminho — disse gesticulando teatralmente —, você
acabou de dizer que não tem certeza do que quer!

— Eu menti!

Oh.

Senti como se estivesse caindo da árvore de novo.

— Então você vai com ele?

Senti certa dificuldade para respirar, e por mais que tentasse


parecer casual, não conseguia evitar a tensão no meu maxilar;
contudo, apesar da minha apreensão, ela balançou a cabeça de
forma negativa.

— Eu menti quando eu disse que não sabia — ela corrigiu —,


porque eu sei que não vou com ele.

— Eu não estou entendendo.

Ela sorriu, em uma expressão que era um espelho oposto à


minha.

— O feitiço deveria me guiar até a minha alma gêmea! — ela


sussurrou, aproximando-se ainda mais de mim. — E acho que foi
isso que ele fez.

Quando me dei conta, tudo que eu podia ver era um mar de


verde-esmeralda; senti-me como uma criança perdida no coração
de uma floresta em que não importa para que lado se vire, tudo
ao seu redor é verde… verde e vivo!, e verde, até onde sei, é a
cor da esperança!

Sarah prendeu uma mecha solta do meu cabelo atrás da orelha


e deslizou a mão pela minha bochecha, testando o terreno. Quando
eu não me afastei, ela encurtou o caminho entre nós e me beijou.

A princípio foi um beijo tímido, exploratório, mas quanto mais


à vontade Sarah se sentia, mais confiante seus movimentos se tor-
navam. Ela estava no comando e, pela primeira vez desde que a
conheci, ela era a mestre e eu a jovem curiosa.

Seus lábios macios e quentes exploravam minha boca com a


mesma curiosidade que a movia em tudo, e com a qual me acos-
tumei nas últimas semanas. Senti meu corpo tremer quando a mão
dela deslizou da minha bochecha para meu pescoço, forçando meu
rosto para ainda mais próximo, um gemido escapou da minha gar-
ganta e senti Sarah sorrir sob meus lábios.

A puxei pela cintura para junto de mim enquanto me ajeitava


sobre as peles do catre, Sarah não hesitou nem por um segundo
antes me seguir.

Meu cérebro estava inebriado pela fusão intensa de sentidos;


minha mão deslizava sobre a pele quente e suave de Sarah, enquan-
to o cheiro de alfazema que exalava do seu cabelo se misturava
ao da madeira queimando no fogo; o som da respiração ofegante
dela se juntava ao do meu coração pulsando no ouvido, ao do
fogo crepitando e de um galho quebrando…

— Você ouviu isso? — perguntei, afastando-me rapidamente e


olhando na direção da janela, mas não vi nada além do ordinário.
— Hm? — ela parecia confusa e tonta ao mesmo tempo, suas
pupilas estavam tão dilatadas que era como se a noite tivesse
tomado conta de seus olhos. — Eu não ouvi nada.

— Eu estou esperando o John, pode ser ele! — falei, sentin-


do-me preocupada.

Sarah relutou em sair de perto de mim, mas por fim levantou-


-se e caminhou até a janela e depois até a porta.

— Não há ninguém — disse, mordendo os lábios rosados e le-


vemente inchados. Ela caminhou mais uma vez até mim com um
sorriso ardente; senti meu corpo tremer com seus olhos cravados
na minha pele e instintivamente umedeci meus lábios.

— Sarah… — disse sem saber como continuar a frase; a inter-


rupção trouxe um pouco de lucidez para o momento.

— Cass — ela me interrompeu com um sorriso malicioso e


levou uma mão ao meu rosto.

Me esforcei para me concentrar, mesmo que a única coisa que


quisesse fazer fosse puxá-la para mais um beijo.

— Você tem certeza do que está fazendo? — perguntei.

Seus olhos eram como imãs e era impossível para mim olhar
para qualquer outra coisa que não fosse eles.

— Nunca tive tanta certeza na vida, Cass, e a única coisa que


vai me impedir de beijar você de novo, é se você falar que não
quer!

Depois de alguns segundos presa no magnetismo do seu olhar,


notei que ela estava esperando o meu consentimento, então,
quando me dei conta, já estava puxando-a para cima de mim e
sentindo mais uma vez a doçura dos seus lábios.
As mãos de Sarah exploravam meu corpo com avidez, mas,
ao mesmo tempo, com cautela, tentando não agravar meus feri-
mentos. Uma mão se enroscava no meu cabelo enquanto a outra
dançava pela minha coxa.

Quanto mais suas mãos exploravam lugares novos, mais eu


precisava sentir todo o seu corpo contra o meu e me apressei para
abrir o laço do seu corpete.

Sem nunca separar sua boca da minha, ela me ajudou a tirar


o próprio vestido e quando me dei conta estávamos entrelaçadas
como um ser único… completo. Como se até aquele momento, eu
fosse apenas uma metade esperando o encaixe certo.

O toque de Sarah era a ignição que fazia o calor que brotava no


meu peito se alastrar por todo corpo e culminar em uma explosão
sensorial em que tudo que eu sentia era ela! Seu cheiro, seu sabor,
seu toque, seus ângulos, seus sons... apenas ela!

Naquele momento, entendi o que ela queria dizer quando afir-


mou que o feitiço era verdadeiro, eu também me sentia enfeitiçada
pelo seu toque em uma sensação que era ao mesmo tempo divina
e completamente mundana.

O mundo exterior cessou de existir por todo o tempo que es-


tivemos juntas, tempo este que seria impossível precisar, poderia
ter sido minutos ou horas, dias ou semanas…

***

Estávamos deitadas juntas sobre minha cama de peles, minha


cabeça repousando no peito de Sarah enquanto ela afagava meus
cabelos. Minha mão traçava desenhos desconexos em suas costas
e ambas apenas descansávamos em silêncio.

— Gostaria de viver para sempre neste momento — Sarah


falou em um sussurro.
— Eu também!

— Nós podemos repetir quantas vezes você quiser — ela disse,


e apesar de eu estar com a cabeça abaixo do seu queixo, pude
sentir o seu sorriso.

Me afastei ligeiramente, apenas para poder olhá-la nos olhos,


meu semblante mais sério foi espelhado por ela.

— Você sabe qual a consequência se formos pegas, não é? —


perguntei com sobriedade; era um preço bastante alto para ser
levado de maneira leviana.

O verde-esmeralda de seus olhos tinha assumido um tom mais


escuro como o da floresta no anoitecer e me encaravam com se-
riedade e algo de tristeza.

Ela apenas assentiu.

Voltei a repousar minha cabeça em seu peito. Era injusto que


algo tão maravilhoso exigisse um preço tão alto, mas…

— Estou disposta a pagar o preço que for! — eu disse, nova-


mente em um sussurro.

Senti os lábios dela no topo da minha cabeça e um beijo doce.


Mais uma vez levantei a cabeça para capturar seus lábios.

Nos beijamos lentamente para selar uma promessa. No fundo


eu sabia que o preço, por mais alto que fosse, não seria tão alto
quanto viver na solidão depois de experimentar o amor.

Estávamos tão envolvidas em nosso universo que mal percebe-


mos quando a porta da cabana foi aberta.

— BRUXARIA! — a voz do pastor Bishop ecoou pelo ambiente.


— Eu disse que as vi se beijando! — gritou John atrás do pastor.

Antes que eu pudesse compreender o que estava acontecendo,


quatro homens avançaram sobre nós e cada uma foi carregada
para um lado. Sarah conseguiu puxar uma pele para se cobrir en-
quanto eu peguei meu vestido que ainda estava sobre a cabeceira
para usar de escudo.

O pastor e os membros da vila que o havia acompanhado fa-


lavam sem parar, mas eu não conseguia compreender uma única
palavra, minha total atenção estava em Sarah, que tinha a expres-
são mais séria que já havia visto e evitava meu olhar.

Percebi que as palavras do pastor se dirigiam unicamente a ela,


mas a sua expressão estava distante, parecia perdida em pensa-
mentos; de repente o velho pastor deu-lhe um tapa na cara com
força, fazendo-a cambalear para trás.

— Seu velho desgraçado — gritei.

Os dois homens que a haviam arrancado dos meus braços ainda


a seguravam firme.

— Pastor? — Sarah disse com tanta inocência e infantilidade,


tão diferente do que eu havia visto poucos minutos, que senti meu
corpo enrijecendo. Algo estava errado! — Pastor Bishop, o que
está acontecendo? — perguntou ela.

O homem arregalou os olhos cinza ao reconhecer a inocência


nos olhos dela.

— FEITIÇARIA! — gritou o homem.

— Onde estou, pastor? — ela perguntou olhando ao redor como


uma criança perdida, olhou então para o próprio corpo protegido
apenas pela pele de urso. — Onde estão minhas roupas? O que
está acontecendo? — ela começou a tremer e sua voz falhava
enquanto repetia a pergunta.

Parecia extremamente frágil naquele momento.

Senti meu estômago se revirando.

— Oh, criança, você foi enfeitiçada por essa bruxa! — disse o


homem, mostrando uma compaixão reservada apenas para o seu
rebanho. — Deem as roupas dela, rápido! — gritou para um dos
homens que a segurava. — Minha filha, você ficará bem, creio
que o demônio que vivia em você foi exorcizado.

— Eu quero ver minha mãe e meu pai, pastor Bishop!

— Sim, criança! Nós levaremos você para casa!

— E a bruxa, senhor? — o homem que me segurava apertou


ainda mais meu braço ferido e soltei um urro de dor.

Vi os olhos de Sarah vacilarem, mas logo voltaram a inocência


pueril e a indiferença a mim.

— Levaremos conosco. Ao amanhecer ela queimará na foguei-


ra! — ele disse com desdém. — E vistam ela antes que enfeitice
mais alguém!

Me jogaram dentro de uma carroça com as mãos e pés amarra-


dos e a boca amordaçada. Meu tornozelo latejava e o sentia inchar
mais e mais a cada buraco no caminho da carroça. Os dois aldeões
continuavam ao meu lado segurando com firmeza meus braços.

Sarah seguiu na carroça do pastor, protegida sob suas asas


como um filhote de passarinho que se machucou no primeiro voo.

Sentia vontade de vomitar, e tentava respirar fundo e me


concentrar em manter tudo dentro do meu estômago, porque
amordaçada a única coisa que conseguiria seria me engasgar até
a morte com o meu próprio vômito.

Depois de alguns minutos, comecei a escutar um murmurinho


que foi ficando ensurdecedor à medida que nos aproximávamos
da vila.

Todos os aldeões e — possivelmente os viajantes de passagem


— estavam reunidos no centro da rua principal e pude ver pela
janela da minha carroça quando Sarah correu para os braços da
mãe. Sua família toda a abraçava enquanto lágrimas escorriam
em suas faces.

Não pude ver o resto da cena, porque um de meus algozes me


puxou com força para fora da carroça. Assim que pisei na terra,
uma chuva de frutas podres me alvejou e senti tudo ficar preto
quando uma pedra me acertou a testa, apesar de cambalear, não
cheguei a desmaiar e quando abri os olhos de novo, vi o pai de
Sarah parado na minha frente, seu olhar que ironicamente era tão
parecido com o de Sarah, expressava o exato oposto do que eu
via nos dela.

Ele tirou sua cinta de couro e chicoteou meu rosto.

— Você nunca mais colocará as mãos na minha filha, sua bruxa


nojenta — ele disse e cuspiu na minha cara.

Arrisquei mais um olhar para Sarah, mas ela não esboçou ne-
nhuma reação sequer. Senti novamente uma cintada me atingir a
face.

— Nem ouse olhar para ela!

O barulho, os olhares, a dor no tornozelo, o sangue escorrendo


na minha testa, o embrulho no estômago e a indiferença de Sarah
finalmente me venceram e senti meu corpo cedendo e parando
de lutar; quando me dei conta, estava sozinha em um cubículo
escuro, nos fundos da igreja.
Assim que a porta se fechou, usei minhas mãos amarradas
para tirar a mordaça e liberar tudo que estava no meu estômago.
Enquanto expurgava pela boca o que havia comido, expurgava
pelos olhos a tristeza daquela traição.

Estava prestes a pagar com a vida o pecado de ter baixado a


guarda pela primeira vez. Eu não havia mentido quando disse que
pagaria o preço se fosse preciso, mas achei que seria por alguém
que valesse o custo. Sarah dera a entender que pagaria também,
mas era evidente que não era sério e agora eu morreria sozinha
enquanto ela era adulada pela família.

Todos os aldeões que ajudei e curei viraram-me as costas sem


pestanejar. Mesmo as vidas que salvei, agora, exigiam a minha
em troca.

O som do tumulto foi dando lugar aos grilos e corujas ao passo


que a hora da minha execução se aproximava. O silêncio que
sempre me causou paz, agora me causava uma sensação pungen-
te de angústia. Eu tentava encontrar uma saída, mas meu cérebro
parecia se recusar a pensar em qualquer coisa que não na dor di-
lacerante que corroía meu peito.

Ainda faltava umas três ou quatro horas para o sol nascer


quando escutei um barulho do outro lado da porta. Primeiro pensei
se tratar de algum bicho, mas o som do metal das chaves não
deixou dúvidas de que era uma pessoa. Engoli em seco pensan-
do que pudesse ser o pai de Sarah ou um dos capangas que me
trancaram aqui querendo fazer justiça com as próprias mãos antes
da minha execução. Os homens daquele lugar adoravam cometer
atrocidades sob a desculpa de justiça.

Tentei procurar alguma coisa — qualquer coisa — que eu pu-


desse usar para me defender, mas a sala era pequena e não havia
nada nela além de mim e dois ratos.
Quando a porta finalmente abriu, senti meu coração parar.

— Sarah?! — perguntei ao ver os cabelos dourados e os olhos


iluminados pela luz de uma lamparina que ela carregava.

— Shh — ela sussurrou, aproximando-se de mim. — Meu


Deus, o que fizeram com você!?

— O que… o que você está fazendo aqui? — perguntei, sen-


tindo minha voz falhar. Não sabia como reagir; seria essa uma
tentativa de me incriminar ainda mais? O que mais ela poderia
querer? Eu já morreria na fogueira!

Ela apoiou a lamparina no chão, levou uma das mãos com de-
licadeza ao meu rosto e me beijou os lábios.

— Me desculpa, meu amor, eu achei que essa era a única saída!


Se eles achassem que eu havia sido conivente, nós duas estaría-
mos presas e ninguém iria nos resgatar. Eu precisava ficar livre
para poder te soltar!

— Eu… eu achei que você tivesse me traído!

— Eu sinto muito! — ela disse, sincera. Ela tirou uma mecha


de cabelo grudada no sangue seco da minha testa e a levou atrás
da orelha, senti os músculos do meu rosto contraindo com a sen-
sação de ardência.

— Eu vou te tirar daqui — disse, desamarrando minhas mãos


e pés —, mas antes vou tratar esses ferimentos.

Ela limpou a ferida na minha testa com hidromel e depois en-


faixou minha cabeça e me examinou à procura de mais algum
ferimento.

Por fim, colocou a mão sobre a minha bochecha, que estava


esfolada, onde o seu pai havia me chicoteado duas vezes. Apesar
do toque suave dela, eu senti minha bochecha queimando.

— Eu sinto muito por isso! — disse de maneira gentil e sincera


e em seguida plantou um beijo delicado na pele sensível, fechei os
olhos com a sensação e senti meu peito e garganta se apertando.

Meus olhos, mais uma vez, se encheram de lágrimas com a


memória das últimas horas. Mesmo depois do beijo, ela manteve
o rosto ali, grudado ao meu, eu sentia sua respiração sobre minha
pele.

— Eu sinto muito! — ela repetiu de novo e de novo. — Eu vou


tirar você daqui! — disse e moveu levemente a cabeça, apenas o
bastante para poder me beijar os lábios. Pude sentir as lágrimas
quentes dela se misturando as minhas e pela primeira vez em
horas, senti esperança.

Assim que saímos pelos fundos da igreja, vi um cavalo espe-


rando por nós. Sarah subiu primeiro para ajudar a me puxar, já
que não conseguia fazer força no tornozelo torcido.

— Sarah, você tem certeza de que quer ir comigo? — pergun-


tei. — Nós não temos dinheiro e nem para onde ir!

— Quem disse que não temos dinheiro?

Ela puxou um saco de juta da cintura. Dentro tinha moedas de


ouro e prata suficiente para que encontrássemos um lugar para
ficar por um tempo e pensar nos próximos passos.

— Como?

— Peguei da igreja! Na certa, era o dinheiro que iriam usar


para comemorar sua execução. Como não terá execução, eles não
precisarão do dinheiro! Podemos ir agora?

Assenti e a abracei pela cintura.


— E para onde vamos? — perguntei.

— Para o sul!

Fim.
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