Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Não consegui comer quase nada antes de sair pela última vez
do apartamento que foi o meu lar pelos últimos — e também
primeiros — 16 anos da minha vida. Não vou negar que nos úl-
timos dias pensei, mais de uma vez, que não me importaria que
fossem os definitivos já que a minha vida era mesmo uma ence-
nação medíocre.
Tudo ia muito bem, até uma mulher bater na nossa porta os-
tentando uma enorme barriga e reclamando direitos para o filho
que aparentemente meu pai se recusava a reconhecer.
Então, aqui estamos nós, ou pelo menos aqui está minha mãe
(fugindo da humilhação imposta pelos atos sexuais do meu pai,
que sabe lá Deus porque ela escolheu acobertar por tanto tempo)
e aqui estou eu (pagando o preço de ter que deixar toda minha
vida para trás porque meu pai é promíscuo e minha mãe é covar-
de e se importa demais com as aparências).
Casa.
Não existe mais a nossa casa, assim como não existe mais a
nossa família. Só existe um punhado de caixas que o caminhão de
mudanças já deve ter descarregado na casa que minha mãe alugou
a uma distância segura da casa dos meus avós.
Ainda bem.
***
Três dias e eu continuo a vagar por essa casa que não parece
nossa.
Pela primeira vez, sinto essa liberdade de poder sair pela rua
sem medo, pela primeira vez sinto um lampejo, ainda que bem
pequeno, de felicidade por estar aqui.
Quando chego na casa dos meus avós, olho para o outro lado
da rua e me sinto um pouco desapontada quando não encontro a
garota do primeiro dia. Subo devagar as escadas e olho mais uma
vez na direção da casa vizinha antes de bater na porta.
— Bike legal.
Não uma voz qualquer, uma voz macia e grave que vibra de
forma diferente no fundo do meu cérebro. Nem precisaria me virar
pra saber que é ela.
MEU DEUS!
— Ela é.
— Você também é.
Dessa vez não respondo nada porque não vem nada além de
uma tela azul na minha cabeça. O que aconteceu? Desde quando
eu não consigo estabelecer uma conversa trivial?
Penso na minha mãe, nas fotos dela mais nova e nos nossos
traços em comum. Eu sempre achei minha mãe bonita e me pego
mais uma vez desejando que a gente seja parecida como dizem. Eu
herdei os cabelos e olhos escuros dela, mas a verdade é que quando
me olho no espelho vejo muito do rosto anguloso do meu pai.
— Beleza.
***
Eu não faço ideia de que lago ela está falando, então dou de
ombros e digo que sim.
Maya.
Gostei!
— Dezesseis, mas faço dezessete mês que vem ela diz com
a empolgação inconfundível de quem adora fazer aniversário.
— Eu também!
— Uhum.
Nem nos meus sonhos mais otimistas achei que faria uma ami-
zade assim tão rápido, eu sempre fui muito na minha. Mas Maya
parece ser o oposto. Deve ter um milhão de amigos e aposto que
é popular na escola.
— Belo Horizonte.
— É bem longe.
— Tá bom!
Assim que concordo, ela abre outro sorriso e começa ime-
diatamente a arrancar as roupas. Faço o mesmo, mas mantenho
meu shorts de corrida, agora mais feliz por ter vindo com ele.
Desmancho meu coque e guardo meu prendedor de cabelo no
pulso porque não quero perdê-lo na água.
— Bom, foi o único lugar que eu morei além daqui, então acho
que sim. — Dou de ombros porque ainda é muito estranho pensar
que não estou aqui de férias.
— Deve ter sido bem ruim ter que deixar seus amigos, sua
escola e sua vida toda.
— De alguém em especial?
— Como assim?
— Isso é bom.
— É?
— Tem razão.
— Eu já volto!
— Quer apostar?
— Fechado!
— OOOOOOOOHHH!
— Pra estudar?
— Não saberia dizer, mas estou louca pra descobrir — ela diz
e me deixa boquiaberta.
— Por quê?
Maya já sabe da minha vida inteira, até porque ela não tem
pudor de me perguntar nada, e, da minha parte, acho fácil con-
versar com ela. Mais do que isso, eu acho tudo nela fascinante,
novo e inspirador. Os livros que ela lê, as músicas que ela gosta,
os lugares que ela sonha em conhecer.
— E de garotas?
— Como é?
***
— Uhum.
— Bora!
— Maya…
— Em minha defesa…
Dessa vez é ela que me beija, e de uma forma tão sensual e tão
nova para mim que penso que minhas pernas vão falhar a qual-
quer momento. Pressiono meu corpo ainda mais contra o dela,
um pouco por medo de perder o equilíbrio e muito porque é difí-
cil não fazer isso, ela está de biquini e o calor que irradia da pele
dela me aquece como uma manhã de sol.
Nunca imaginei que seria desse jeito, que seria com uma garota
e que eu me sentiria tão incrivelmente atraída por ela. É como se
eu tivesse ganhado um presente inesperado, algo que eu nem sabia
que queria, até chegar e transformar tudo.
— Acho que temos que ir — digo para ela, sabendo que não
posso ignorar a realidade para sempre.
— Mas tem que ser antes da volta às aulas, senão meus pais
não vão deixar e no fim de semana não rola, você sabe — ela diz.
— Então tem que ser logo. Por falar nisso, tomara que a gente
caia na mesma turma.
***
Aproveito para sair das vistas dela antes que ela recomece o
discurso.
Na manhã seguinte, acordo tarde, sentindo meu corpo todo
dolorido e um frio incomum para essa época. Visto um casaco e,
assim que minha mãe me vê na cozinha, logo dá o veredito:
— Eu tô bem, mãe.
Quando acordo, sei que preciso ligar para Maya. Ela deve estar
preocupada.
— Sabe? Como?
— Ela não é minha filha. Mas ela sabe que você está de cas-
tigo até domingo.
— Não sei por que esse desespero todo, você nem se aguenta
em pé, não é como se fosse poder sair de casa de qualquer forma.
Volto pro meu quarto e bato a porta. Não acredito que Maya
esteve aqui e nem pude falar com ela. Assim que tiver uma brecha
vou pelo menos ligar para ela.
— Foi mau.
— Eu também.
— É mesmo?
Maya fica em silêncio por uns instantes. Será que falei alguma
besteira?
— Pois é.
— Tudo bem.
— Eh… Malu?
— Oi?
— Tô com saudade.
Sinto meu coração saindo pela boca. Eu sei que disse que não
pretendia contar pra ela, mas já que ela falou…
— Eu também tô.
***
É horrível não poder falar com a Maya quando tem tantas coisas
que quero perguntar para ela. Eu estava conformada em não a ver,
mas achava que iria pelo menos poder falar com ela por telefone.
Maya fez minha vida parecer triste e sem graça antes dela. Os
problemas que eu tinha continuam existindo, mas agora eles não
parecem mais o fim do mundo, pelo contrário, parecem peque-
nos e resolvíveis. Depois dela, a vida se tornou incrível e o mundo
ficou mais colorido.
Era para ser uma alfinetada, mas tem um sorriso meio idiota
que não sai do meu rosto hoje, então vejo minha mãe sorrindo de
volta, totalmente satisfeita por achar que estou empolgada com o
primeiro dia de aula.
Beijo ela no rosto antes de sair, coisa que não fazia há muito
tempo, e ela abre um sorriso ainda maior.
Se bem que, sendo realista, não acho que seja meu cérebro no
comando nesse assunto. Nunca me apaixonei, mas já li romances
o suficiente para reconhecer os sintomas.
Não posso ir para casa, então fico rodando sem destino. Quando
me dou conta estou parada na porteira do lago. Não tinha nenhuma
intenção de vir até aqui, na verdade é o último lugar que queria
estar agora, mas pelo menos sei que vou estar sozinha.
Por mais que eu me esforce para achar uma desculpa, não tem
nada que justifique o que Maya fez. Acabo sempre voltando para
aquele primeiro dia aqui nesse mesmo lago quando ela disse “a
gente faz o que pode para se entreter por aqui”.
Não que eu não tivesse estranhado, mas acho que estava tão
feliz de ter ela só pra mim que no final achei até melhor.
Não sei como ela pretendia esconder por mais tempo que tinha
um namorado.
Na certa, está rindo de mim até agora. Por que outra razão
ela me deixaria descobrir da pior forma possível, senão por pura
diversão?
Eu podia jurar que ela sentia o mesmo que eu. O jeito como ela
me olhava parecia tão verdadeiro, me fazia sentir, sei lá, especial.
***
Não posso dizer para ela que é tarde, que já estou machucada.
Mas é o que sinto, sinto a vida me machucando continuamente
nessas últimas semanas e não entendo por quê.
— Mas eu vou morar com meu pai, eu não quero ficar aqui!
Minha mãe me olha, mas dessa vez vejo que está irritada.
Inferno.
***
— Ah, que ótimo! Hoje a minha mãe decidiu deixar você entrar.
— Maya, eu não tô a fim de falar com você, não deu pra sacar?
Sei que minha cara deve estar horrível e ela é a última pessoa
que eu queria que me visse assim, mas a cara dela também não
está boa e deixo que ela continue.
— O que você viu não é o que parece! Ele não é meu namorado.
Reúno toda a dignidade que me resta para fingir que ela também
não significou nada pra mim.
— Pode ser, mas eu quero explicar mesmo assim — ela fala
com um tom um pouco inseguro dessa vez.
— Que bom! Eu acho que iria morrer se você fosse — ela diz
e me puxa para um beijo.
Fim.