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Me sinto enjoada.

Não consegui comer quase nada antes de sair pela última vez
do apartamento que foi o meu lar pelos últimos — e também
primeiros — 16 anos da minha vida. Não vou negar que nos úl-
timos dias pensei, mais de uma vez, que não me importaria que
fossem os definitivos já que a minha vida era mesmo uma ence-
nação medíocre.

Pode soar dramático e infantil da minha parte, mas não tenho


mesmo pretensão de que pareça outra coisa. A verdade é que al-
gumas pessoas simplesmente não deveriam ter filhos. Meus pais
com toda certeza não deveriam. Pelo menos não um com o outro.

Não vou me alongar contando aqui meus flagelos familiares,


basta dizer que minha família se parecia com muitas outras: meu
pai tinha outra mulher, minha mãe não se importava de fingir
que não sabia, e eu fingia que não sabia que ela fingia. Assim,
mantínhamos o equilíbrio perfeito desse estado permanente de
fingimento.

Tudo ia muito bem, até uma mulher bater na nossa porta os-
tentando uma enorme barriga e reclamando direitos para o filho
que aparentemente meu pai se recusava a reconhecer.

Minha mãe talvez não tivesse se importado de continuar com


o teatro da família perfeita, mas a coisa fugiu do controle quando
se tornou pública.

Então, aqui estamos nós, ou pelo menos aqui está minha mãe
(fugindo da humilhação imposta pelos atos sexuais do meu pai,
que sabe lá Deus porque ela escolheu acobertar por tanto tempo)
e aqui estou eu (pagando o preço de ter que deixar toda minha
vida para trás porque meu pai é promíscuo e minha mãe é covar-
de e se importa demais com as aparências).

Já é fim de tarde quando nos aproximamos do nosso destino:


Monte Azul.

Finalmente começo a prestar atenção no que minha mãe fala


sobre a minúscula cidade onde ela cresceu. A verdade é que estou
assombrada, sabia que estávamos indo para o interior mas não
lembrava que era tão interior.

Ao meu lado, na estrada, tem um rebanho de ovelhas e pastos


a perder de vista. No outro lado, uma plantação de alguma coisa
que não faço ideia do que seja.

Vez ou outra, algum animal silvestre cruza despreocupado a


rodovia e força minha mãe a desviar ou a meter o pé no freio me
arrancando um grito de susto.

Avançamos em direção ao “centro” da cidade, que nada mais é


do que um amontoado de comércios, uma praça, uma igreja, um
banco, a prefeitura e... só! Minha mãe me mostra tudo enquanto
me conta algum fato curioso do passado.

Ela faz um desvio e pega uma rua paralela para me mostrar a


escola em que estudou e onde agora eu devo terminar o ensino
médio. Isso se eu sobreviver até o fim das férias.
Mas, até lá, quem sabe, minha mãe já vai ter se cansado de
bancar a caipira e resolvido voltar para casa.

Casa.

Quem eu quero enganar?

Não existe mais a nossa casa, assim como não existe mais a
nossa família. Só existe um punhado de caixas que o caminhão de
mudanças já deve ter descarregado na casa que minha mãe alugou
a uma distância segura da casa dos meus avós.

É para lá que estamos indo, ver o vovô e a vovó, responder


um monte de perguntas, comer até a vovó se cansar de empurrar
mais comida e, então, finalmente, pegar as chaves da casa nova.

Percebo o nervosismo da minha mãe quando ela estaciona atrás


da picape do meu avô, no acesso da garagem. Pela primeira vez,
me sinto solidaria a ela, sei que está sofrendo por antecipação com
o julgamento dos pais. Abro um sorriso para que ela saiba que
não precisa se preocupar comigo e que eu vou estar ao lado dela.

Vovó já está na varanda, vindo ao nosso encontro e meu avô


está parado na porta sem saber o que fazer, mas logo abre um sor-
riso quando nossos olhos se encontram. Ele sempre gostou de mim.

— Você cresceu, Malusita — ele diz enquanto me abraça.

Ele tem o hábito estranho de chamar coisas e pessoas nesse


diminutivo hispânico, embora não exista um fio de cabelo de des-
cendência espanhola na nossa família. Vai entender.

— Você também — respondo, dando dois tapinhas na barri-


gona que parece mesmo maior.

De rabo de olho, vejo que minha avó finalmente solta minha


mãe do abraço, que agora olha hesitante para o pai. Torço para
que o medo dela seja infundado, mas meu avô a cumprimenta de
forma fria e distante.

Enquanto comemos, converso com meu avô sobre os esportes


que gostamos e outras trivialidades enquanto minha avó conta
para minha mãe coisas sobre a casa que alugamos e a atualiza
nas notícias da cidade. Para minha surpresa, eles não tocam no
assunto do divórcio, na certa acham que estamos muito cansadas
da viagem para isso. E estamos mesmo, então minha mãe logo
trata de se despedir.

Ainda bem.

Assim que desço as escadas da casa, meus olhos cruzam com


o de uma garota mais ou menos da minha idade. Ela está chegan-
do de bicicleta na casa da frente e me olha o trajeto todo, sem
esconder a curiosidade. Não posso culpá-la, eu também a encaro,
tentando decifrar porque ela parece tão diferente das outras pes-
soas que vi na rua mais cedo.

***

Já se passaram três dias desde que chegamos, já visitamos todos


os parentes, fomos ao mercado, a cafeteria, a sorveteria e até já
fizemos a minha matrícula para o próximo ano letivo.

Três dias e eu continuo a vagar por essa casa que não parece
nossa.

Minha mãe decide repintar um cômodo nessa tarde, e por ab-


soluta falta do que fazer, me ofereço para ajudar.

— Só tem esse — ela diz, me mostrando o pincel —, mas


talvez seu avô tenha algum para emprestar.

— Tá bom, eu vou até lá dar uma olhada — respondo.


Estava mesmo ansiosa para dar uma volta na bicicleta antiga
que encontramos na garagem da casa. É uma bike verde água bem
legal, com sineta e franjinhas que saem do guidão.

No minuto que subo nela, me sinto em um filme dos anos 80,


como se a qualquer momento fosse aparecer o resto da minha
“gangue” com bicicletas parecidas ou alguém querendo me bater.

Desço a rua da minha nova casa ziguezagueando, sentindo a


sensação boa do vento nos meus cabelos e o alívio de não ter es-
quecido como se anda de bicicleta.

Pela primeira vez, sinto essa liberdade de poder sair pela rua
sem medo, pela primeira vez sinto um lampejo, ainda que bem
pequeno, de felicidade por estar aqui.

Quando chego na casa dos meus avós, olho para o outro lado
da rua e me sinto um pouco desapontada quando não encontro a
garota do primeiro dia. Subo devagar as escadas e olho mais uma
vez na direção da casa vizinha antes de bater na porta.

Meu avô fica feliz com a visita, imediatamente me leva para a


oficina improvisada que ele tem na garagem e arruma um kit com-
pleto de pintura. Minha avó não me deixa sair sem tomar café, e
separa uns bolinhos para que eu leve para minha mãe.

Saio de lá com uma sacola em cada mão e, enquanto tento equi-


librar tudo no guidão da bicicleta, escuto uma voz atrás de mim.

— Bike legal.

Não uma voz qualquer, uma voz macia e grave que vibra de
forma diferente no fundo do meu cérebro. Nem precisaria me virar
pra saber que é ela.

— Obrigada. Quer dizer, nem é minha. Nós achamos na nossa


garagem, eu e minha mãe.
— Ah, sua mãe é a mulher que estava aqui com você no outro
dia?

Agora que ela está na minha frente, consigo prestar atenção


em todos os detalhes que só vi de relance no primeiro dia. A pele
bronzeada, o cabelo loiro escuro preso numa trança frouxa, as
sobrancelhas bem desenhadas e os olhos cor de mel.

MEU DEUS!

— Aham. Essa é a casa dos meus avós — digo, indicando com


os olhos a casa atrás de mim, já que minhas mãos estão ocupadas.

Ela está vestida como no primeiro dia, de um jeito meio mo-


leque: bermuda jeans rasgada, camiseta larga, meias meia canela
e um all star detonado.

— Ela é bonita — a garota diz. — A sua mãe  explica quando


percebe minha confusão.

— Ela é.

— Você também é.

Dessa vez não respondo nada porque não vem nada além de
uma tela azul na minha cabeça. O que aconteceu? Desde quando
eu não consigo estabelecer uma conversa trivial?

Penso na minha mãe, nas fotos dela mais nova e nos nossos
traços em comum. Eu sempre achei minha mãe bonita e me pego
mais uma vez desejando que a gente seja parecida como dizem. Eu
herdei os cabelos e olhos escuros dela, mas a verdade é que quando
me olho no espelho vejo muito do rosto anguloso do meu pai.

— Vocês vieram pra ficar? Você falou que encontrou a bike


na garagem.
— Sim, viemos pra morar. Chegamos naquele dia que você
nos viu.

— Legal. Aparece aqui amanhã pra gente fazer alguma coisa,


sei lá.

— Beleza.

— Beleza  ela repete.

***

Passo o dia seguinte só esperando dar o mesmo horário em


que nos encontramos, como ela não disse a hora, presumo que
deva ser a mesma.

Quando chego na frente da casa ela já está lá.

— Quer ir até o lago?

Eu não faço ideia de que lago ela está falando, então dou de
ombros e digo que sim.

— Legal! Só vou buscar minha bike.

Ela corre para dentro de casa e instantes depois sai de bicicleta


pela garagem, com uma mochila nas costas, fone no pescoço e
um boné branco virado para trás.

— Ei, você ainda não me disse o seu nome  digo.

— Você também não me disse o seu.

— Maria Luísa. Pode chamar de Malu.

— Maya. Pode chamar de… Maya!


Deus.

Até o nome dela é bonito.

E combina tanto com ela.

Maya.

Gostei!

— Quantos anos você tem?

— Dezesseis, mas faço dezessete mês que vem  ela diz com
a empolgação inconfundível de quem adora fazer aniversário.

— Eu também!

— Faz aniversário mês que vem?

— Não. Tenho dezesseis. Mas faço dezessete em abril.

— Você vai fazer o último ano no Santo Antônio? — ela


pergunta.

— Uhum.

— Eu também! — ela fala e abre um sorriso que eu retribuo


na mesma hora.

Nem nos meus sonhos mais otimistas achei que faria uma ami-
zade assim tão rápido, eu sempre fui muito na minha. Mas Maya
parece ser o oposto. Deve ter um milhão de amigos e aposto que
é popular na escola.

— Falta muito? — pergunto um pouco preocupada por não


fazer a menor ideia de para onde estamos indo.

— Quase lá! Já tá cansada?


— Até que não.

— Aonde você morava?

— Belo Horizonte.

— É bem longe.

— Pois é, nem me fala.

— É por aqui! — Maya diz ao mesmo tempo que vira o guidão


para entrar numa estradinha secundária de terra.

Pedalamos por mais um quilometro em meio a uma paisagem


que alterna entre floresta e áreas de pasto, até chegarmos a uma
porteira. Maya a abre sem nem precisar descer da bicicleta.

Fico parada olhando para placa que diz “Propriedade particular.


Não ultrapasse” e para ela que está segurando o portão, esperan-
do que eu passe.

— Tá com medo? — pergunta, se divertindo.

— Deveria?  respondo, atravessando o portão assim mesmo.

— Não, tá tudo certo.

Depois de cinco minutos, em uma estradinha que não é mais


que uma trilha, chegamos a margem de um lago enorme de água
escura.

É um lugar lindo, cercado de árvores e montanhas, e o fundo


do lago de pedregulhos torna a água bastante limpa.

Maya desce da bicicleta e a empurra até a minúscula cabana


apoiada sobre o lago, me indicando pra fazer o mesmo.
— Isso não é invasão de propriedade?

— Não se a propriedade for da sua família.

— Ah! — respondo simplesmente, sem esconder que estou


aliviada.

— É só uma casa de barco, mas eu adoro vir aqui no verão —


ela me explica enquanto abre a porta.

— Eu adorei o píer — falo, me referindo a parte da frente da


cabana que é ao mesmo tempo varanda e deck emendados em
um píer de uns dez metros. — É demais!

— Que bom que você gostou do meu humilde refúgio —


Maya diz enquanto abre as portas duplas que dão para o deck. A
cabana é mesmo minúscula e, com o barco, só sobra espaço para
um mezanino que é até bem aconchegante, cheio de almofadas
macias e mantas bonitas. As paredes embaixo são forradas de
acessórios de pesca, mas dá para ver que houve um esforço em
decorar o mezanino.

Me junto a Maya na parte externa. Ela parece orgulhosa desse


lugar. Eu também estaria se fosse ela.

— Então, vamos nadar?

— Eu não trouxe biquini.

— Eu também não, mas isso não é problema, eu já cansei de


nadar aqui de calcinha e sutiã.

Ela me pega de surpresa, e apesar de nunca ter feito isso, está


calor e eu estou louca pra me jogar nessa água.

— Tá bom!
Assim que concordo, ela abre outro sorriso e começa ime-
diatamente a arrancar as roupas. Faço o mesmo, mas mantenho
meu shorts de corrida, agora mais feliz por ter vindo com ele.
Desmancho meu coque e guardo meu prendedor de cabelo no
pulso porque não quero perdê-lo na água.

Maya me encara séria, pergunto o que foi.

— É que eu ainda não tinha te visto de cabelo solto.

Passo a mão nos meus cabelos um pouco envergonhada, faz sé-


culos que eu não corto e eles estão mais longos do que eu gostaria.

— Você sabe nadar, né?

Digo que sim, ela sai correndo e pula de cabeça na água.


Quando retorna a superfície, me chama.

— Vem, Malu! A água tá uma delícia.

Eu corro até a borda, mas diferente de Maya, pulo de pé. Sinto


a água um pouco fria no início mas meu corpo se acostuma rápido
com a temperatura. Quando volto a tona dou de cara mais uma
vez com aquele sorriso e involuntariamente sorrio também.

— Nada mal para uma menina da cidade! — ela diz. — Até


agora você passou em todos os testes.

— Não sabia que eu estava sendo testada.

— A gente faz o que pode para se entreter por aqui. — Ela


solta uma risada antes de continuar. — Eu tô brincando. Mas se
fosse um teste você teria gabaritado: saiu com uma pessoa estra-
nha, invadiu uma propriedade e se jogou no lago de roupa. Você
sabe se divertir.

— Colocando dessa forma, até eu tô surpresa.


E estou mesmo, mas ao mesmo tempo me sentindo muito bem
com essa minha versão mais ousada. A última coisa que eu quero
é que essa garota pense que eu sou fresca ou afetada.

— Vamos saltar de novo?

Maya nada até a escada que fica na lateral do píer e eu a sigo.


Saltamos várias vezes até nos cansarmos e decidirmos nos sentar
na borda para pegar sol.

— Você gostava de morar em BH?

— Bom, foi o único lugar que eu morei além daqui, então acho
que sim. — Dou de ombros porque ainda é muito estranho pensar
que não estou aqui de férias.

— Deve ter sido bem ruim ter que deixar seus amigos, sua
escola e sua vida toda.

Maya fala com empatia, como se soubesse que eu não queria


estar ali, mas sem fazer muito caso disso.

— É. Sinto falta deles, dos meus amigos. De tudo.

Tem alguma coisa nela que me inspira confiança, então não me


importo de falar sobre a minha vida.

— De alguém em especial?

— Como assim?

— Você não estava namorando ninguém?

A pergunta me pega de surpresa e me deixa sem reação, não


por achar inadequada, mas porque isso parecia completamente
fora de questão, algo que estava muito distante de acontecer na
minha vida.
— Eu? Não.

— Isso é bom.

— É?

— Eu acho, uma coisa a menos pra sentir falta, né?

— Tem razão.

Depois de mais alguns minutos no sol, Maya se levanta de re-


pente com cara de quem teve uma ideia.

— Eu já volto!

Dois minutos depois ela aparece carregando um colchão inflá-


vel, quando chega ao meu lado, o arremessa na água.

— Duvido que você consiga se equilibrar saltando direto daqui


de cima — ela diz, colocando as mãos na cintura. Sinto como se
ela estivesse realmente me testando.

— Quer apostar?

— Quero. Vinte pila.

— Fechado!

Estendo minha mão para selarmos o acordo.

Me preparo para saltar, calculo a distância, sei que preciso acer-


tar bem o meio pra ter alguma chance de sucesso. Mas, assim que
salto, percebo meu erro.

— OOOOOOOOHHH!

Não deveria ter pulado de pé. O colchão desliza para frente


com o impacto e eu dou uma meia pirueta no ar antes de cair
como uma jaca na água.

Quando retorno a superfície, Maya está jogada no chão do píer


de tanto rir. Minha moral está um pouco abalada, admito, mas eu
faria de novo. Estou me agarrando a essa tarde como uma tábua
de salvação, eu toparia qualquer ideia maluca dela porque estou
desesperada por um pouco de diversão e por qualquer coisa que
me faça esquecer o caos da minha vida.

Então, quando Maya me convida para voltar ao lago no dia se-


guinte eu não penso duas vezes. Me sinto estranhamente fascinada
por ela, por seu jeito fácil de puxar conversa e sua capacidade de
se divertir com tudo.

Estamos sentadas no deck, quando ela volta a querer saber mais


sobre mim. Com qualquer outra pessoa eu iria achar esquisito, e
muito provavelmente me fechar. Mas Maya faz tudo parecer tão
natural e me faz sentir a mesma vontade de saber mais sobre ela.

— Você pensa em voltar pra BH pra estudar?

— Pra estudar?

— É, pra fazer faculdade.

— Só se eu não precisar morar com o meu pai.

— Você pode prestar vestibular pra outra cidade então.

— É, talvez. Mas eu nem sei o que quero estudar ainda. Tô


encarando essa mudança como um ano sabático, ou coisa assim.
Quem sabe, tirando umas férias da vida que eu tinha lá não seja
mais fácil decidir.

— Você deve ter alguma coisa em mente.

— Por incrível que pareça não tenho nada. E você?


— Quero estudar biologia marinha — ela responde com
convicção.

— Poxa. Você parece bem decidida, sempre gostou do mar


ou o que?

— Não saberia dizer, mas estou louca pra descobrir — ela diz
e me deixa boquiaberta.

— Você nunca esteve na praia?

— Nunca. Nós estamos a quase 900 km do mar, é bem longe.


— ela dá de ombros sem fazer muito caso. — Além do mais,
minha família não é muito de viajar.

— É no mínimo surpreendente a sua escolha.

— Por quê?

— Bom, sei lá, e se você não gostar tanto assim da vida


marinha?

— Aí eu mudo de curso, ué. A faculdade é uma oportunidade


única de sair dessa cidade, e eu pretendo aproveitar da melhor
maneira.

— Acho que entendo.

Definitivamente eu entendo. Apesar de eu estar chegando e


ela querendo ir embora, no fundo nós desejamos a mesma coisa:
independência.

Eu não vejo a hora de ficar longe dos dramas familiares.

A Maya eu não sei bem, mas meu palpite é de que é a cidade


pequena o que a oprime.
***

Voltamos ao lago todos os dias naquela semana, menos no


sábado e no domingo que é quando o pai de Maya usa a cabana
para pescar.

Na semana seguinte passamos as tardes na água, andando de


caiaque e explorando o lago, nadando ou simplesmente tomando
sol no píer.

E essa semana não está sendo diferente, a cada dia eu chego


um pouco mais tarde em casa e minha mãe fica um pouco mais
brava, mas, apesar das ameaças, ela não tem coragem de me proi-
bir, ela sabe que essa é a única distração que eu tenho por aqui.

Maya já sabe da minha vida inteira, até porque ela não tem
pudor de me perguntar nada, e, da minha parte, acho fácil con-
versar com ela. Mais do que isso, eu acho tudo nela fascinante,
novo e inspirador. Os livros que ela lê, as músicas que ela gosta,
os lugares que ela sonha em conhecer.

Essa tarde, todo esse fascínio fez sentido de repente.

Estamos deitadas lado a lado no colchão inflável, não no lago,


mas em cima do píer. Já é fim de tarde e estamos apenas jogando
conversa fora enquanto assistimos o sol se pôr.

Maya brinca com a minha mão de forma distraída, ora entrela-


çando nossos dedos, ora acariciando a minha palma com o polegar.
Ela não tem reservas, e eu logo me acostumo com o seu jeito de
estar sempre em contato.

— Você já se apaixonou? — ela pergunta de repente.

— Acho que não.

— Acha que não? Você tá em dúvida?


— Hmmm, não. Nunca.

— Você é muito bonita pra nunca ter se apaixonado.

Não sei se fico lisonjeada ou encabulada, mas sinto meu rosto


ardendo.

— Desde quando ser bonita é pré-requisito pra se apaixonar?

— Desde que esse fato por si só é suficiente para converter uma


legião de admiradores. Se muitas pessoas querem ficar com você,
suas chances de se apaixonar aumentam. É um fato estatístico.

— Que besteira! — Solto uma risada da teoria. — Mas ainda


que fosse verdade, não é como se tivesse uma fila de caras atrás
de mim.

— E de garotas?

Maya me olha com certa expectativa.

— Como é?

Desvio meus olhos dos dela e tento ganhar um tempo porque


não sei o que responder. Mas sinto uma sensação estranha de eu-
foria e ansiedade.

— Qualquer pessoa com dois olhos em bom estado de funcio-


namento iria querer ficar com você, Malu.

Viro o rosto na direção dela e nosso olhar se encontra mais


uma vez. Se eu prestar bastante atenção acho que terei a resposta
para a pergunta que está presa na minha garganta.

Quero perguntar se ela também é uma dessas pessoas, mas


não tenho coragem e deixo o momento passar.
***

Agora, deitada na minha cama, percebo que eu podia apenas


tê-la beijado. Isso simplificaria tudo e eu não estaria rolando de
um lado para o outro tentando pegar no sono. Em vez disso, estou
aqui pensando que tenho que fazer alguma coisa a respeito amanhã
ou nunca mais terei paz na vida.

De uma hora para outra, tudo que consigo pensar é no jeito


como o canto da boca dela se curva de forma travessa e seus olhos
se iluminam quando surge uma nova aventura, um novo lugar a ser
explorado ou quando conto algo que ela ainda não sabia.

Os detalhes de seu rosto, o efeito da voz dela sobre mim, o


cheiro. Parece que ela se tornou a única coisa importante no uni-
verso inteiro e que eu vou morrer se amanhã descobrir que entendi
tudo errado e que ela não está sentindo o mesmo que eu!

Não entendo como tudo aconteceu tão rápido, mas apesar da


velocidade vertiginosa dos acontecimentos, agora que eu tomei
uma decisão, parece que o tempo resolveu parar.

***

Estou literalmente engolindo meu almoço inteiro, tamanha


ansiedade.

— Essa pressa toda aí é porque você vai encontrar a Maya?


— Minha mãe pergunta e eu quase me engasgo com a simples
menção do nome dela.

— Uhum.

— Você não acha que tá exagerando, você não desgruda mais


dela.

É claro que justamente hoje minha mãe iria resolver implicar


com isso. Apenas reviro os olhos para ela.

— Sua avó já insinuou que eu não deveria deixar você “ficar


pra cima e pra baixo com a filha do Juca porque ela não tem muito
juízo” — diz, fazendo uma imitação perfeita da fala da minha avó.

Em outra situação, eu até teria achado engraçado, mas agora


só fico irritada. Primeiro porque a Maya é um pouco aventureira,
é verdade, mas daí a dizer que ela não tem juízo é um exagero.
Segundo, por que essa implicância agora?

— Que besteira, o que tem pra não gostar na Maya? Você


mesmo disse que é muito legal da parte dela ser tão “gentil e ami-
gável”. Foi isso que você disse, com essas palavras.

— Ok, ok. Eu me lembro — ela diz, levantando as mãos e sol-


tando um suspiro conformado. — Mas antes de ir, você vai lavar
a louça. E nada de voltar pra casa tarde.

Parece que as mães pressentem quando a gente tá prestes a


fazer alguma coisa que elas reprovariam. E essa coisa em questão,
eu tenho certeza de que a minha mãe não iria gostar nada, afinal
ela sempre foi careta.

Quando chego a casa de Maya ela já está a minha espera.

— Você demorou, já tava até achando que ia levar um bolo.

— Desculpa, minha mãe ficou no meu pé hoje — respondo


enquanto olho de soslaio para a casa da minha avó torcendo para
que ela não me veja aqui de novo. — Vamos?

— Bora!

Pela primeira vez, sinto um clima esquisito e meio tenso entre


Maya e eu, como se nós duas estivéssemos pisando em ovos. Eu
com certeza estou.
Meu plano é retomar o “assunto” que ficou inacabado assim
que a oportunidade surgir. O problema é que nunca parece ser o
momento certo.

Nós já apostamos quem nada mais rápido, já saímos com o bote


e já treinamos nossos saltos sincronizados — a Maya me ensinou
a saltar de cabeça e agora temos um vasto repertório de saltos.

Quando estamos enfim sentadas no píer e parece a oportuni-


dade perfeita, o céu subitamente escurece sobre as nossas cabeças
e o vento começa a soprar com força.

Corremos para recolher as nossas coisas e nos abrigar da tem-


pestade na cabana. Assim que Maya fecha as portas francesas de
vidro, a chuva começa a bater forte contra elas.

— Ainda bem que a gente não estava no bote — ela diz


aliviada.

Ficamos em pé em frente a porta, observando um pouco assus-


tadas a violência da chuva e do vento. A cabana está na penumbra
e é iluminada vez ou outra pela claridade dos trovões.

— Vem, vamos esperar no mezanino porque isso tá com cara


de que vai demorar — ela vai em direção a escada, mas interrom-
po o trajeto quando a seguro pela mão.

— Maya…

Eu ensaiei essa pergunta o dia todo, mas quando ela me olha


não preciso dizer nada. Apenas a puxo para perto e a última coisa
que vejo antes de beijá-la é que seus olhos assumem um tom mais
escuro e tem um brilho diferente.

Ela coloca uma mão na minha nuca e a outra na minha cin-


tura, estreitando a distância entre nós, ao mesmo tempo que eu
enterro meus dedos nos seus cabelos e intensifico o beijo. Depois
de alguns minutos, sinto que ela sorri contra a minha boca e me
afasto apenas o suficiente para olhá-la com curiosidade.

— Depois de ontem, eu achei que isso nunca mais ia aconte-


cer — ela esclarece com um sorriso malicioso enquanto envolve
meu pescoço com as duas mãos.

— Em minha defesa…

— Depois você se defende…

Dessa vez é ela que me beija, e de uma forma tão sensual e tão
nova para mim que penso que minhas pernas vão falhar a qual-
quer momento. Pressiono meu corpo ainda mais contra o dela,
um pouco por medo de perder o equilíbrio e muito porque é difí-
cil não fazer isso, ela está de biquini e o calor que irradia da pele
dela me aquece como uma manhã de sol.

Maya acaricia a minha nuca, deslizando os dedos pela lateral


do meu pescoço, mordiscando meu lábio inferior e despertando
meu corpo inteiro. Eu não consigo pensar em mais nada que não
seja a sensação da pele dela se arrepiando sob as minhas mãos.

— Você quer subir pro mezanino? — A pergunta não passa


de um sussurro no meu ouvido, a voz dela falha um pouco e isso
por si só já me faria segui-la até o fim do mundo.

Eu sei o que esse convite significa, e apesar da surpresa pela


forma apressada como as coisas estão acontecendo e da minha
total falta de experiência, eu quero.

Quero como nunca quis nada antes em toda minha vida!

E esse desejo é tão poderoso que apaga qualquer medo ou


dúvida que eu possa ter.

Deixo ela me puxar na direção da escada.


Eu não penso em mais nada que não seja ela ou os sons que
escapam da sua boca ou o cheiro de sol que exala de sua pele.
Vejo tudo em flashs: o dourado do cabelo dela se espalhando
sobre o tapete, a forma do seu corpo embaixo do meu, seus olhos
semicerrados.

Fico um pouco surpresa ao perceber que, instintivamente, eu


sei o que fazer. Ela me pergunta se já fiz isso antes, apenas nego
com a cabeça porque não encontro minha voz.

O barulho da chuva no telhado e a meia-luz produzida pela


tempestade no meio da tarde deixam tudo meio mágico, como se
o destino estivesse conspirando a nosso favor para criar um mo-
mento perfeito.

Nunca imaginei que seria desse jeito, que seria com uma garota
e que eu me sentiria tão incrivelmente atraída por ela. É como se
eu tivesse ganhado um presente inesperado, algo que eu nem sabia
que queria, até chegar e transformar tudo.

Não sei ao certo quando, mas em algum momento pegamos no


sono. Acordo entrelaçada à Maya. Uma manta nos mantém aque-
cidas e confortáveis. Me assusto ao perceber que já anoiteceu e
que lá fora a chuva ainda cai.

Não resisto ao impulso de observar Maya dormindo alguns ins-


tantes antes de acordá-la com uma sucessão de beijos pelo rosto.

Maya resmunga alguma coisa antes de abrir os olhos de forma


preguiçosa.

— Acho que temos que ir — digo para ela, sabendo que não
posso ignorar a realidade para sempre.

— Já? — ela pergunta ignorando minha preocupação e pas-


sando os braços ao redor do meu pescoço e me puxando para um
beijo. — Ainda é cedo.
— Claro que não, já escureceu!

— Eu adoro esse seu jeito de boa menina.

— Humpf — finjo uma cara contrariada, mas a verdade é que


tô adorando que ela não queira ir embora.

— É uma pena a gente não poder passar a noite aqui.

— Quem sabe outro dia, se a gente tramar tudo direitinho —


falo, já me apegando a ideia.

— Mas tem que ser antes da volta às aulas, senão meus pais
não vão deixar e no fim de semana não rola, você sabe — ela diz.

— Então tem que ser logo. Por falar nisso, tomara que a gente
caia na mesma turma.

— Com certeza vamos estar na mesma turma — ela fala en-


quanto entrelaça nossos dedos.

— Como você sabe?

— Maria Luísa e Maya estão lado a lado no alfabeto.

— É assim que eles dividem as turmas aqui?

— Não é assim que dividiam na sua escola?

— Não sei, acho que não.

— Enfim, é certo que vamos estudar juntas.

— Isso vai ser um desastre.

— Como é?! — ela me pergunta confusa.

— Como vou me concentrar em qualquer outra coisa que não


seja você se estivermos na mesma sala?

É brincadeira, mas eu sei que um pouco é verdade. Depois de


hoje, eu sei que vai ser impossível não pensar nela boa parte do
meu dia.

— Deixa de ser besta! — ela se joga sobre mim e me beija


mais uma vez. Esqueço completamente que preciso ir embora.

***

Quando chego em casa, já passa das dez da noite e para piorar


a situação eu estou encharcada. Nunca vi minha mãe tão brava
como nesse momento e eu não tenho nem ao menos uma descul-
pa razoável que explique a situação.

— Nós estávamos esperando a chuva passar. — É o melhor


que encontro para dizer.

— Você quer me matar do coração? Eu já estava certa de que


tinha acontecido alguma coisa horrível!

— Que drama, mãe.

— Se você acha que pode fazer o que bem entende só porque


teve que se mudar pra cá, está muito enganada. Daqui pra frente
vão ter regras nessa casa. E adivinha? Você está de castigo. Agora
vai tomar um banho e tirar essa roupa molhada antes que você
fique doente!

Nem me atrevo a perguntar qual é o castigo, mas já desconfio


que não vou poder sair de casa amanhã. Tudo bem, é um preço
justo a pagar, nada vai abalar a felicidade que estou sentindo agora.

Aproveito para sair das vistas dela antes que ela recomece o
discurso.
Na manhã seguinte, acordo tarde, sentindo meu corpo todo
dolorido e um frio incomum para essa época. Visto um casaco e,
assim que minha mãe me vê na cozinha, logo dá o veredito:

— Você tá com a cara horrível, eu sabia que ia ficar doente!

— Eu tô bem, mãe.

Ela ignora meu comentário e coloca a mão na minha testa para


checar a temperatura.

— Acho que tá com um pouco de febre. Volta pra cama, vou


fazer um chá com limão e mel e depois levo com umas torradas
pra você.

Me arrasto de volta para cama porque não estou mesmo me


sentindo muito disposta. Ao longo do dia vão aparecendo todos
os sintomas de um resfriado e eu me sinto tão derrubada que
durmo a tarde toda.

Quando acordo, sei que preciso ligar para Maya. Ela deve estar
preocupada.

Encontro a minha mãe no meio do caminho e ela me pergunta


por que eu não estou na cama.

— Preciso ligar pra Maya.

— Não precisa, ela já sabe que você tá doente.

— Sabe? Como?

— Ela teve aqui mais cedo.

— Por que você não me chamou? Eu queria falar com ela!

— Você tava dormindo. Além do mais, você tá de castigo e,


em boa parte, justamente por causa dessa garota.

— Por favor, me diz que você não encheu o saco dela!

— Ela não é minha filha. Mas ela sabe que você está de cas-
tigo até domingo.

— Até domingo? Puta que pariu!

— Olha essa boca se não quiser que eu aumente pra um mês.

— Era só o que me faltava, cárcere privado agora!

— Não sei por que esse desespero todo, você nem se aguenta
em pé, não é como se fosse poder sair de casa de qualquer forma.

Volto pro meu quarto e bato a porta. Não acredito que Maya
esteve aqui e nem pude falar com ela. Assim que tiver uma brecha
vou pelo menos ligar para ela.

Isso só acontece no dia seguinte quando minha mãe sai para


ir ao mercado. Estou só a um dia sem ver a Maya mas a sensa-
ção é de que já faz uma semana. É ridículo o quanto essa garota
mudou tudo aqui dentro, mas é claro que não me atrevo a con-
fessar isso pra ela.

— Ei! Tá melhor? — Pelo tom de voz dela já consigo visualizar


seu sorriso e só isso já é suficiente para me fazer sorrir também.

— Oi, mais ou menos, parece que fui atropelada por um trem.

— Sua mãe te falou que eu estive aí?

— Falou. Ela não te tratou mal, não, né?

— Não. Mas ela não parecia tá no melhor dia…


— Pois é, ela ficou pê da vida porque cheguei às dez da noite,
naquela chuva e ainda por cima peguei um resfriado.

— Foi mau.

— A culpa não foi sua. Além do mais, eu faria tudo de novo.

— Eu também.

— Aliás, por que você demorou tanto pra me beijar? — pergunto.

— Tecnicamente, foi você que me beijou, então a demora foi


sua — Ela solta uma risada antes de continuar —, mas eu queria
te beijar desde o primeiro dia.

— É mesmo?

Essa confissão me atinge direto no estômago, sinto tudo revi-


rando aqui dentro… mas de um jeito bom.

— Você realmente não percebeu?

— Talvez eu tenha sido meio lerda — admito. — Mas quando


eu finalmente entendi, não consegui pensar em outra coisa.

Maya fica em silêncio por uns instantes. Será que falei alguma
besteira?

— Você não foi lerda. E eu não mudaria nada.

— Seus pais não encrencaram porque você chegou tarde?

— Não, eles sabem que aqui não é perigoso andar na rua à


noite.

— Que bom então.

— Eu tava pensando em passar aí pra te ver — ela diz e sinto


um solavanco no peito com a simples sugestão de que ela quer
me ver.

— Eu queria muito que você viesse, mas meu castigo é regime


fechado, não posso fazer nada até domingo. Infelizmente.

— Três dias parece uma eternidade, ainda mais sabendo que


só vamos nos ver na segunda. — Maya diz se referindo ao pri-
meiro dia de aula.

— Pois é.

Sinto meu rosto quente e minha respiração ofegante mas sei


que não é o resfriado.

— Eu iria até aí e me faria de desentendida, mas a sua mãe


não parecia muito feliz comigo ontem.

— É… — Solto um suspiro antes de continuar —, foi a minha


avó que andou falando umas coisas sobre você não ser boa com-
panhia ou algo assim. Desculpa.

— Não precisa pedir desculpas, eu entendo a sua avó ter falado


isso.

Escuto um motor de carro no lado de fora. Que saco!

— Por falar na minha mãe, tô ouvindo o carro dela entrando,


melhor eu desligar.

— Tudo bem.

— Eu te ligo de novo assim que der — digo em tom de pro-


messa. — Beijo.

— Eh… Malu?
— Oi?

— Tô com saudade.

Sinto meu coração saindo pela boca. Eu sei que disse que não
pretendia contar pra ela, mas já que ela falou…

— Eu também tô.

***

É horrível não poder falar com a Maya quando tem tantas coisas
que quero perguntar para ela. Eu estava conformada em não a ver,
mas achava que iria pelo menos poder falar com ela por telefone.

Todas as vezes que liguei nesse fim de semana não encontrei


ela em casa. Posso entender a falta de sorte e os desencontros,
mas não entendo por que ela não me ligou de volta. Será que ela
não recebeu meus recados?

Ainda bem que amanhã é segunda, eu não iria suportar mais


um dia sem notícias dela.

Maya fez minha vida parecer triste e sem graça antes dela. Os
problemas que eu tinha continuam existindo, mas agora eles não
parecem mais o fim do mundo, pelo contrário, parecem peque-
nos e resolvíveis. Depois dela, a vida se tornou incrível e o mundo
ficou mais colorido.

Adormeço pensando em Maya e quando acordo ela é a primeira


coisa que me vem a mente. Me levanto cheia de energia e sen-
tindo uma felicidade absurda por saber que finalmente vou vê-la.

Passo meia hora escolhendo uma roupa, o que não é nem um


pouco a minha cara, já que sempre fui muito prática na hora de
me vestir para ir para escola.
Por fim, visto meu melhor jeans, minha jaqueta preferida e
faço uma maquiagem leve. Prendo o cabelo em um coque, porque
como eu disse, tá precisando de um corte e o único salão da cidade
parece parado nos anos 70. Não consegui confiar meu bem mais
precioso aos cuidados da velha com cabelo à la Farrah Fawcett.

Quando apareço para o café, minha mãe me olha surpresa,


mas pelo sorriso dela sei que aprovou meu esforço na produção.

— Isso tudo é pra causar uma boa primeira impressão?

— Pois é, se eu tenho que mudar de escola, é melhor eu tentar


garantir que não seja um desastre total.

Era para ser uma alfinetada, mas tem um sorriso meio idiota
que não sai do meu rosto hoje, então vejo minha mãe sorrindo de
volta, totalmente satisfeita por achar que estou empolgada com o
primeiro dia de aula.

Melhor deixar ela pensando que o motivo é esse mesmo.

— Você quer que eu te leve? — ela pergunta quando acabo


meu café.

— Não! — me apresso em recusar porque não quero minha


mãe no meu pé hoje. — Não precisa, eu vou de bike.

Beijo ela no rosto antes de sair, coisa que não fazia há muito
tempo, e ela abre um sorriso ainda maior.

Durante o trajeto até a escola tudo que consigo pensar é em


Maya. Eu deveria estar aflita com a iminência do primeiro dia em
uma escola nova, mas saber que Maya vai estar lá parece uma in-
formação bem mais relevante para o meu cérebro.

Se bem que, sendo realista, não acho que seja meu cérebro no
comando nesse assunto. Nunca me apaixonei, mas já li romances
o suficiente para reconhecer os sintomas.

E agora, também me parece bem evidente o motivo de não ter


acontecido antes. E mais uma vez percebo que essa parte também
não me preocupa, pelo contrário, sinto até um certo alívio.

Sempre me perguntei o que havia de errado comigo, por que


eu não era igual as minhas amigas? Por que eu sempre tinha que
fingir que me interessava pelas mesmas coisas que elas? Por que
nenhum cara parecia interessante o bastante?

Tinha medo de me tornar uma dessas mulheres solitárias,


porque eu sabia que não era a solidão que me atraía, mas ao
mesmo tempo, acho que tive medo de enxergar a verdade então
simplesmente ignorei a possibilidade de que eu pudesse gostar de
meninas. E agora que eu sei, percebo que os sinais sempre estive-
ram ali, bem na frente do meu nariz!

Eu deveria ter percebido que era mais que amizade o que eu


sentia pela Ana Clara, minha melhor amiga no sétimo ano, pela
qual jurei minha lealdade e amizade eterna mais vezes que conse-
guia lembrar. Que existia uma razão para eu preferir as festas do
pijama com as minhas amigas e ficar irritada quando elas muda-
vam os planos para incluir os meninos.

Ou que tinha um motivo para que os posters do meu quarto


fossem Andrea Corr, Melanie C, Neve Campbell entre outras mu-
lheres que eu admirava absurdamente, e apenas mulheres!

Não acredito que precisou acontecer uma reviravolta tão grande


e eu vir parar aqui em Monte Azul para descobrir uma coisa tão
importante sobre mim mesma. A vida é mesmo estranha.

Sou arrancada dos meus pensamentos quando chego a escola.


Diferente do dia da matrícula, o pátio está fervilhando de gente e
agora tudo parece bem mais intimidador. Deixo minha bike junto
com as outras, mas não vejo a da Maya ali. Talvez ela ainda não
tenha chegado.

Caminho pelo lugar tentando descobrir onde fica minha sala.


A maioria das pessoas fala alto e não esconde a animação de re-
encontrar os colegas. Ainda assim, sinto olhos curiosos na minha
direção o tempo todo, eu não esperava nada muito diferente, todas
as vezes que andei pelo centro da cidade foi desse mesmo jeito.

Finalmente, avisto ela no final do corredor. Sinto meu coração


acelerar e meus lábios se alargando em um sorriso involuntário.
Maya está de costas, conversando com duas garotas, mas eu re-
conheceria seu jeito único e confiante a quilômetros.

Sigo na sua direção, me sentindo de repente um pouco tímida


e ensaiando um “oi” na minha cabeça, quando vejo um cara surgir
do nada e a abraçar por trás com certa intimidade. Paraliso no
meio do caminho enquanto assisto a cena.

— Que saudade eu estava da minha namorada — escuto ele


dizer enquanto a beija no pescoço, no rosto e finalmente na boca.
Ela sorri para ele um pouco encabulada, não escuto sua voz mas
reconheço as palavras “eu também”.

As engrenagens do meu cérebro lutam para processar o que


acaba de acontecer, a primeira coisa que me vem a mente é que
preciso sair dali, mas parece que meus pés estão pregados no chão.

Parecendo pressentir minha presença, os olhos de Maya de re-


pente cruzam com os meus, percebo o sobressalto neles, mas saio
tão rápido que em questão de poucos segundos já estou pedalan-
do minha bike em direção a qualquer outro lugar. Já estou longe
quando escuto o sinal da primeira aula tocando.

Finalmente permito que as lágrimas escorram pelo meu rosto.

Não posso ir para casa, então fico rodando sem destino. Quando
me dou conta estou parada na porteira do lago. Não tinha nenhuma
intenção de vir até aqui, na verdade é o último lugar que queria
estar agora, mas pelo menos sei que vou estar sozinha.

Em vez de contornar o lago em direção a cabana, sigo na di-


reção oposta e me sento embaixo de uma árvore. Não ouso olhar
na direção da cabana e do píer, fixo meu olhar no lago e tento
entender tudo que acabou de acontecer.

Por mais que eu me esforce para achar uma desculpa, não tem
nada que justifique o que Maya fez. Acabo sempre voltando para
aquele primeiro dia aqui nesse mesmo lago quando ela disse “a
gente faz o que pode para se entreter por aqui”.

Então foi isso? Eu fui um “entretenimento” pra ela? Uma dis-


tração enquanto o namorado estava sei lá onde, provavelmente
viajando de férias?

Agora entendo por que ela nunca me apresentou a nenhum


amigo.

Não que eu não tivesse estranhado, mas acho que estava tão
feliz de ter ela só pra mim que no final achei até melhor.

Não sei como ela pretendia esconder por mais tempo que tinha
um namorado.

Que otária eu sou!

Tá na cara que ela não pretendia.

Na certa, está rindo de mim até agora. Por que outra razão
ela me deixaria descobrir da pior forma possível, senão por pura
diversão?

— Essa garota é uma sádica! — escuto minha própria voz, em-


bargada pelo choro e me sinto ainda mais patética.
Eu não acredito que no final das contas a minha avó é que
tinha razão.

Pego um dos pedregulhos do chão e jogo com toda minha


força contra o lago.

— Falsa e dissimulada. É o que ela é. Nunca conheci ninguém


mais falsa!

Eu podia jurar que ela sentia o mesmo que eu. O jeito como ela
me olhava parecia tão verdadeiro, me fazia sentir, sei lá, especial.

Eu devo ser muito ingênua mesmo!

Por falta do que fazer, caminho até o píer. As lembranças do


nosso último dia ali vão voltando uma a uma.

Me sento na beirada do deck, onde eu e Maya nos sentamos


muitas vezes nas últimas semanas, ainda sem entender como me
deixei iludir tanto. Enquanto para ela, eu fui só mais uma transa,
para mim ela tinha sido a primeira e a coisa mais bonita que já
tinha me acontecido.

Quando enfim me levanto para ir embora, minha decisão está


tomada.

***

Largo a bike na garagem e entro em casa como um furacão,


minha mãe logo aparece atrás de mim.

— Onde você estava? Nem adianta mentir porque ligaram da


escola perguntando por que você faltou — ela dispara.

— Não interessa onde eu estava! Eu não pretendo botar meus


pés nessa escola nunca mais! — Vou direto para meu quarto,
minha mãe atrás de mim.
— QUÊ?!

— Isso mesmo que você ouviu. Eu ODEIO esse lugar!

Começo a abrir as gavetas da cômoda e jogar tudo sobre a


minha cama.

Minha mãe me olha boquiaberta, sem entender nada.

— Eu vou embora, e você não vai me impedir!

— Embora pra onde? Enlouqueceu, Maria Luísa?

— Vou morar com o meu pai!

— Filha, para com isso, você tá me assustando — Ela me segura


pelos braços, tentando me impedir de continuar a esvaziar as ga-
vetas. — Se fizeram alguma coisa na escola, me fala que vou lá
agora mesmo tirar tudo a limpo!

— Não precisa perder seu tempo.

— É claro que eu preciso, você é minha filha e eu nunca vou


deixar ninguém te machucar.

Não sei se foi a escolha de palavras ou se a angústia na voz


dela, mas me sento no chão e começo a chorar copiosamente.

Não quero assustar minha mãe, mas não consigo me controlar,


não sei o que tá acontecendo comigo, só sei que é a primeira vez
que me sinto desse jeito.

Não posso dizer para ela que é tarde, que já estou machucada.
Mas é o que sinto, sinto a vida me machucando continuamente
nessas últimas semanas e não entendo por quê.

Permito que minha mãe me abrace e me console, mas decido


não contar a verdade. Não quero ter que lidar com mais drama,
não agora.

— Desculpa, mãe. Eu não queria te assustar — consigo enfim


balbuciar depois de muito tempo.

— Tá tudo bem, meu amor.

Vejo o rosto preocupado dela embaçado pelas minhas lágri-


mas enquanto ela me embala em um abraço, nós duas sentadas
no chão do quarto. Sinto culpa, vergonha e uma dor que é quase
física no meu peito.

— Desculpa! — repito, tentando me controlar.

— Tá tudo bem. Você não quer me contar o que aconteceu?

— Eu… eu acho que tive uma crise de pânico, sei lá…

— Alguém te falou alguma coisa ou te fez alg…

— Não! Ninguém fez nada, relaxa.

— Então tá, você me assustou com aquele papo de morar com


o seu pai.

— Mas eu vou morar com meu pai, eu não quero ficar aqui!

Minha mãe me olha, mas dessa vez vejo que está irritada.

— Você por acaso esqueceu que ele tá morando com aquela


mulher e que eles estão prestes a ter um bebê?!

Inferno.

Por um momento eu realmente esqueci.

— Não sei que diabos te deu, mas vou fazer um chá de


camomila pra você e quando voltar quero isso tudo de volta nas
gavetas! — ela fala de forma amorosa, apesar de eu saber que a
paciência dela já está por um fio.

***

Escuto uma batida na porta, o que é estranho porque minha


mãe nunca bate, simplesmente vai entrando. Me viro na cama e
dou de cara com Maya na porta, que agora está aberta.

Mas que diabos.

— Ah, que ótimo! Hoje a minha mãe decidiu deixar você entrar.

— Ela tá preocupada. Me pediu pra eu te convencer a ficar.


Você vai embora? — ela pergunta enquanto fecha a porta.

— Não é da sua conta.

— Você tá assim por causa do Guilherme?

— Maya, eu não tô a fim de falar com você, não deu pra sacar?

— Deu. Mas eu te procurei pela escola toda, e eu não tive um


minuto de paz essa manhã, eu preciso falar com você.

Sei que minha cara deve estar horrível e ela é a última pessoa
que eu queria que me visse assim, mas a cara dela também não
está boa e deixo que ela continue.

— O que você viu não é o que parece! Ele não é meu namorado.

— Não me importa o que ele é seu. A gente não tem nada,


você não me deve explicações.

Reúno toda a dignidade que me resta para fingir que ela também
não significou nada pra mim.
— Pode ser, mas eu quero explicar mesmo assim — ela fala
com um tom um pouco inseguro dessa vez.

— Mas que inferno, garota, você já não se divertiu bastante


as minhas custas?

— Me divertir? Do que você tá falando?!

— Deixa de ser sonsa! Eu não tô acreditando que depois de


tudo, você teve coragem de vir aqui.

— Aquilo que a sua vó falou sobre mim, existe uma razão —


Maya solta um suspiro antes de continuar —, existe uma razão
pra ela não querer que você ande comigo, bom você sabe qual é.
E a cidade inteira também sabe.

— Minha avó sabe que você é…? — pergunto preocupada. O


medo de ter que lidar com a minha família descobrindo que gosto
de garotas surgindo com força de repente.

— Com toda certeza. Foi o assunto da cidade na época. Alguém


viu eu e minha ex juntas e espalhou a fofoca, logo em seguida a
Olívia foi estudar fora e eu acabei convencendo o Gui, meu melhor
amigo, a fingir que a gente namorava. Ele também é gay.

Quando ela termina estou sem ação.

— Por que você não me contou?

— Não deu tempo! Além do mais, o Gui estava viajando e me


falou que só iria voltar na segunda semana de aula.

— Que confusão — É tudo que consigo dizer.

Me sinto meio idiota e um pouco tonta com tanta informação.


Olho para Maya que parece esperar que eu diga mais alguma coisa,
mas não encontro palavras.
— Você vai mesmo embora? — ela pergunta finalmente se
sentando na cama ao meu lado. — Eu não queria que você fosse.

— Eu não vou — Abro um sorriso e coloco minha mão sobre


a dela.

— Que bom! Eu acho que iria morrer se você fosse — ela diz
e me puxa para um beijo.

Acho que eu também!

Fim.

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