Você está na página 1de 85

A Caixinha de Natal tem uma playlist.

Para escutar, escanei


o código abaixo ou clique aqui
Índice

Playlist

Agradecimento

Diário de Natal

De Repente, Natal
Agradecimento

Essa não é a última caixinha da Sociedade da Caixinha Sáfica,


mas é a última do ano. E dezembro sempre tem espaço para re-
flexões e agradecimentos.

Dá nossa parte, queremos agradecer a cada pessoa que assina


ou assinou o projeto ao longo desses oito meses intensos, mas
maravilhosos desde o lançamento da SCS.

Quando decidimos dar início ao projeto, nem nos nossos sonhos


mais esperançosos imaginamos algo assim. Hoje temos mais de 530
assinantes ativos e já passaram mais de 900 pessoas pelo clube.

Esse projeto tem muito de nós e colocamos todo o nosso amor


na criação dele. Por vezes, achamos que não daríamos conta e que
tínhamos sido muito ousadas nos nossos objetivos, mas no final
sempre conseguimos entregar os contos no prazo e temos muito
orgulho do que o projeto se tornou.

Como é Natal e queremos agradecer, escrevemos dois contos


natalinos, de dois dos nossos casais preferidos do Baldaverso: Jane
e Charlie de Diário de Bordo de uma Impostora e Pati e Helena
de De Repente, Namoradas; esse último tendo como bônus o
Clã Lancellotti completo.

Esperamos muito que você goste, e desejamos boas festas e


um lindo ano novo.

Com amor,

Gi e Bru Baldassari
Catorze dias para o Natal

Os enfeites não eram a pior parte, muito menos o entusiasmo de


Jane. Jane era um amor, e Charlie adorava vê-la assim alegre. Não,
a pior parte eram aquelas cantigas exaustivas cantadas em coro,
e que Charlie tinha que ouvir em absolutamente todos os lugares.

Inclusive em casa.

— Eu não estou sendo ranzinza, darling, só não vejo razão


pra gente perder tempo com isso — disse Charlie, olhando para
as caixas de enfeite espalhadas no meio da sala enquanto o vinil
recém-comprado por Jane inundava seus ouvidos com as tais
músicas.

— Você acha o Natal perda de tempo?! — Jane perguntou,


cruzando os braços e esticando um bico.

— Natal, não. Mas fazer enfeites, decorar tudo, assar biscoi-


tos… Não te parece meio exagerado? Só vamos passar nós duas.

— Justamente por isso, Charlie! Não é porque vamos passar


longe das nossas famílias que não podemos ter um Natal. Além do
mais, é o nosso primeiro Natal juntas, eu quero que seja especial!

— Vai ser especial — Charlie disse, abrindo um sorriso sedu-


tor, o primeiro desde que viu a barafunda de enfeites de Natal de
Jane e ouviu o primeiro acorde de Silent Night.

Por que aquela música tinha que ser tão melancólica e chata?
Charlie detestava as músicas de Natal, sempre a deixavam triste.

Mas, apesar do sorriso da namorada, Jane não pareceu


convencida.
— Vai ser especial — Charlie reafirmou enquanto passava os
braços pela cintura de Jane e a trazia para perto na tentativa de
desfazer o biquinho estampado em sua cara. — E se você quer um
Natal com todas essas coisas, então é o que vamos ter.

— Mesmo?

— Uhum.

— Vai ser divertido, eu prometo! — Jane assegurou, agora


abrindo o sorriso largo e contagiante que Charlie amava.

As canções podiam ser absolutamente entediantes, mas Jane era


a criatura mais cheia de vida e adorável que Charlie já conheceu,
e ela sabia que toparia qualquer coisa que Jane quisesse.

O problema era que Jane também sabia disso. Sabia que Charlie
aceitaria fazer qualquer coisa para agradá-la, mas ela não queria
que o Natal fosse uma obrigação. Então se muniu com o propó-
sito de, nas semanas restantes antes das festividades, despertar o
espírito natalino em Charlie.

Certamente que não seria uma tarefa lá muito fácil, porque


estava óbvio para Jane que Charlie não tinha o menor apreço pelo
Natal, mas Jane sabia que o espírito natalino estava lá, em algum
lugar. Talvez um pouco esquecido devido aos anos que Charlie
havia passado trabalhando e longe da família. Mas lá, sem dúvidas.

Charlie não era um Scrooge. Pelo menos, Jane pensava que


não. Ela achava que não combinava com Charlie, não combinava
com a pessoa que adorava pensar em presentes especiais e sur-
preender com gestos gentis.

Twelve Days of Christmas ecoou pela sala e, enquanto ela can-


tarolava junto a letra, uma ideia esplêndida surgiu na sua mente.
Doze dias para o Natal

Faltavam doze dias para o Natal e Jane estava exultante com


seu plano de surpreender Charlie com doze noites especiais. Tinha
sido muita sorte ter a ideia faltando duas semanas para o Natal, e
ela aproveitou os dois dias seguintes para elaborar uma lista com
atividades bem natalinas:

12. Decorar a árvore e pendurar as meias na lareira

11. Fazer chocolate quente juntas

10. Ver as luzes de Natal

9. Ir ao teatro

8. Fazer uma casa de biscoito de gengibre

7. Escrever cartões de Natal

6. Patinar no gelo

5. Noite de jogos

4. Noite do pijama

3. Fazer um boneco de neve

2. Ser voluntárias na ceia comunitária

1. Andar de trenó

No primeiro dia, ou no décimo segundo da contagem para o


Natal, Jane surpreendeu a namorada com um pinheiro de dois
metros e meio de altura. Um lindo abeto italiano que quase tocava
o teto da sala e recendia seu perfume delicioso de madeira pelo
ambiente.

De acordo com a tradição local, o dia de enfeitar a árvore era


oito de dezembro, um feriado católico, quando era inaugurada a
árvore de Natal da cidade, que ficava em frente à Catedral, na
Piazza San Giovanni.

As duas até participaram do evento. O corteo storico, forma-


do por uma banda e figurantes vestidos com roupas medievais,
desfilou pelas ruas da cidade até chegar à árvore, onde ela final-
mente foi acesa.

Por essa razão, Jane não sabia se ia conseguir um pinheiro,


mas bastou pedir a ajuda de uns conhecidos para tudo se resolver
no mesmo dia. As pessoas ficavam muito mais solícitas no Natal.

Pelo menos isso era igual no mundo todo.

— Santo Deus! Como você conseguiu essa árvore? E como


trouxe até aqui? E como fez passar pela porta? — Charlie per-
guntou quando entrou em casa, arrancando as luvas e o gorro.

Em dezembro já fazia muito frio em Florença, especialmente


nos últimos dias, em que a temperatura havia despencado.

— Foi a Francesca que me ajudou. Tudo que eu precisei fazer


foi perguntar pra ela onde poderia conseguir um pinheiro — Jane
disse com um largo sorriso. — Na verdade, não passou pela porta,
teve que entrar pela janela.

— Eu acho que é a maior árvore de Natal que eu já vi… dentro


de uma casa, eu quero dizer.

— Você gostou?

— É bem… frondosa, sem dúvida.


— Eu estava te esperando pra gente decorar juntas.

Pela primeira vez, Jane ficou apreensiva com o seu plano. É


verdade que a árvore era, como ela poderia descrever?, um tanto
exagerada para o espaço. Mas ela havia decidido que se ia despertar
o espírito natalino na namorada, teria que usar armamento pesado.

Mas, naquele momento, esperando a resposta de Charlie, Jane


começou a ficar um pouco apreensiva. E se em vez de gostar do
Natal, Charlie passasse a odiá-lo ainda mais? Jane não queria obri-
gar a namorada a fazer coisas que ela não tinha vontade.

Elas se respeitavam e se amavam acima de qualquer coisa, mas


a realidade é que moravam juntas há poucos meses. E Jane nem
tinha certeza absoluta ainda se Charlie já tinha superado aquele
tema da falsidade ideológica. Talvez fosse melhor não abusar muito
da sorte.

Mas era Natal!

— Eu vou adorar — Charlie disse com um sorriso doce, final-


mente acalmando os nervos de Jane. — É só o tempo de eu tomar
um banho. Tá muito frio lá fora, eu tô congelando até os ossos.

Vinte minutos depois, elas já estavam ao redor do Abeto, discu-


tindo os melhores enfeites. Charlie se mostrou uma boa ajudante
já que a função de decoradora ficou mesmo ao encargo de Jane.

— Não é só porque não vai aparecer que não precisa de deco-


ração, Charlie — Jane exclamou, de cima de um banco de madeira,
tentando pendurar uma bola vermelha na parte mais escondida
do pinheiro.

— Darling, ninguém vai conseguir ver essa bola.

— E se ele cair quando a gente tiver visitas e as pessoas verem


que não tinha decoração na parte de trás?
— Esse pinheiro só vai cair se um tornado levar a nossa casa,
Jane, e, nesse caso, acho que a decoração é o que menos vai
importar.

— Bom, eu acho que a árvore é linda e merece ser toda


decorada!

Jane estava na pontinha dos pés mesmo em cima do banco,


porque a árvore era mesmo imensa e ela mal alcançava no topo.

— Vai fundo, então, não quero ser eu a responsável pelo nosso


pinheiro ficar com a autoestima baixa — Charlie brincou.

Jane se virou rapidamente para responder à piadinha, mas se de-


sequilibrou. Charlie tentou agarrá-la, mas Jane despencou sobre ela.

As duas caíram sobre a bagunça de bolas de Natal, mas, por


sorte, conseguiram desviar dos objetos que quebravam.

— Obrigada — Jane disse com um sorriso, se ajoelhando e


passando a mão sobre o próprio vestido para desamassá-lo.

Charlie, que ainda tinha as duas mãos firmes plantadas na cin-


tura dela, também se ajoelhou.

— Pelo menos não foi o pinheiro — ela disse. — Se bem que


agora ele já tem decoração na parte de trás.

— Engraçadinha.

Charlie se esticou e, apoiando uma das mãos no chão para ter


mais equilíbrio, deu um beijo em Jane.

Já se passara cinco meses desde que começaram a namorar e


Charlie ainda não havia se acostumado com o friozinho na bar-
riga que sentia toda vez que beijava Jane. E ela se perguntava se
algum dia iria.
Às vezes achava que estava sonhando. Tudo havia acontecido
tão rápido e de uma maneira tão pouco convencional que ela tinha
medo de ter pego no sono no meio de um dos livros da Agatha
Christie e fantasiado tudo.

Mas Jane parecia bem real, a casa que dividiam parecia bem real
e aquele pinheiro colossal, sem dúvidas, parecia bem real também.

Falando nele, Charlie tinha que admitir que estava sendo diver-
tido decorá-lo, e ver o sorriso da namorada fazia tudo valer a pena.

Depois da árvore pronta, sem mais nenhum incidente, Jane


apareceu com as meias.

— Qual das duas você prefere?

— Hmm, a verde eu acho. Por quê?

— Como por quê? Pra ser a sua meia, oras.

— E o que eu faço com ela?

— Você não pendurava a meia quando era criança?

— Na verdade, não.

Jane fez uma cara de compadecimento tão exagerada, como se


Charlie tivesse contado um fato verdadeiramente trágico, que, por
um momento, ela pensou que talvez tivesse mesmo.

— Bom, a gente pendura as meias e o Papai Noel enche elas


de doce na noite de Natal.

— Jane, darling, não estamos meio grandinhas para acreditar


em Papai Noel?

— Você tem que ser sempre tão objetiva, Charlie?


Charlie apenas deu de ombros. Na verdade, ela achava que sim.

Ela, inclusive, tinha muito orgulho do seu pensamento direto e


objetivo e isso já tinha se mostrado muito útil inúmeras vezes ao
longo da sua vida. Afinal, qual era o propósito de ver as coisas de
outra forma que não objetivamente?

— Da mesma forma que vai ter um presente pra você embaixo


da árvore na manhã de Natal, a sua meia vai estar cheia.…

— Está bem — Charlie disse, ainda meio desconfiada de que


isso era de fato um grande exagero.

Nos dias seguintes, os itens da lista continuaram sendo cum-


pridos: elas fizeram chocolate quente juntas, foram ver as luzes
de Natal no centro da cidade e também foram ao teatro assistir
O Quebra Nozes.

Oito dias para o Natal

O plano para o oitavo dia antes do Natal era construir uma ca-
sinha de biscoito de gengibre.

Jane sempre ajudava a sua mãe a fazer os bonecos de biscoito


de gengibre e tinha certeza de que não teria problemas com eles,
afinal, era só seguir a receita. Certo?

Certo?

— Charlie, está tudo um desastre — Jane exclamou vinte mi-


nutos depois de começar.

Tinha pedaços de casa de gengibre para todo o lado na banca-


da. Vários dos pedaços estavam quebrados ou deformados. E as
partes que por algum milagre ainda estavam inteiras não estavam
ficando no lugar.

— Tá tudo bem se a gente não conseguir montar a casa —


Charlie disse. — Pelo menos fizemos os biscoitos.

— Esses biscoitos são a coisa mais deprimente que eu já vi


na vida!

Apesar do sofrimento de Jane, Charlie soltou uma risada.

— Você tem certeza de que o glacê deveria ser assim? —


Charlie perguntou quando tentou usar o creme para colar uma
parede na outra.

— Acho que sim…

— Você acha?

— É que eu nunca fiz o glacê. Era a minha mãe que fazia e eu


só ajudava ela a colar as partes — Jane falou, tentando colar mais
uma parede. Quando não colou, ela jogou o biscoito na mesa. —
Não sei mais o que fazer pra essa porcaria ficar no ponto!

Jane estava à beira das lágrimas.

Charlie colocou as mãos sobre as dela, obrigando-a parar o


que estava fazendo.

— Jane, a gente não tá fazendo todas essas coisas pra se di-


vertir? Que importância tem se o biscoito ficou horrível ou se a
casinha está se desmontando? Nenhuma de nós é confeiteira… ou
arquiteta! Só estamos nos divertindo.

— Eu não me sinto me divertindo.

Charlie puxou Jane para perto dela.


— É porque você tá levando isso a sério demais, darling.

— Nossa casinha de gengibre tá mais para um lixão de gengibre.

— Acho que toda vila de gengibre precisa de um lixão, você


não acha?

— Você só tá tentando me animar…

— E tá funcionando? — Charlie perguntou com um sorrisinho.

— Tá — Jane respondeu. — Eu só queria que o seu Natal


fosse perfeito.

— E está sendo.

— Mesmo com um lixão de gengibre?

— Eu nem gosto tanto assim de biscoito de gengibre. Mas a


gente podia fazer uns muffins já que estamos com a mão na massa.

— Eu amo muffin.

— Eu sei.

Depois do fiasco da casinha de gengibre, a noite seguinte foi


passada de forma bem mais tranquila: escrevendo cartões de Natal.
Afinal, se não iriam passar as festas com a família, podiam pelo
menos enviar mensagens.

Seis dias para o Natal

Faltando seis dias para o Natal, Jane e Charlie foram patinar


no Parterre, um rinque de patinação no gelo montado na Piazza
Libertà, bem no centro da cidade.

Apesar do frio, o céu estava de um azul vivo e o dia parecia


mais de primavera do que de inverno. Charlie amava aquele país.
A mudança fora ainda melhor do que ela poderia ter imaginado,
e a alegria de Jane em estar ali era a cereja do bolo.

Era tão evidente que Jane estava feliz, que Charlie não conse-
guia evitar se sentir feliz também. Talvez, no fim das contas, esse
fosse o espírito natalino que Jane tanto queria que a namorada
sentisse.

Jane não estava habituada com o gelo, mas tinha muita inti-
midade com o patins de rodinha, essa era uma das coisas que ela
fazia com frequência quando morava em San Francisco.

Já Charlie patinava no gelo sempre que tinha a oportunidade,


mas aquela era a primeira vez que iriam patinar juntas.

E Charlie amava quando faziam algo juntas pela primeira vez!

— Por enquanto, esse está sendo o meu item preferido da sua


lista — Charlie comentou enquanto patinavam lado a lado.

— Que lista? — Jane se virou para ela sobressaltada e quase


escorregou. Charlie se apressou a pegá-la pela mão e ajudá-la a
se equilibrar.

— Vai com calma, darling — Charlie disse. — Aquela dos


“doze dias para o Natal”.

Jane parou subitamente, fazendo Charlie, que ainda segurava


sua mão, parar também.

— Não era pra você ler a lista. Era surpresa!

— Você deixou ela no nosso bloco de notas da cozinha, darling,


eu não achei que fosse segredo.

— Você nunca usa aquele bloco de notas!

— Às vezes eu uso — justificou, erguendo os ombros.

Jane franziu o nariz, mas voltou a patinar, puxando Charlie


com ela.

— Por que eu nunca consigo esconder nada de você? — Jane


perguntou frustrada.

— Se te consola, eu também acho difícil esconder coisas de


você.

— E que coisas você tenta esconder de mim? Posso saber?

— Se você pudesse saber eu não precisaria esconder, não acha?

Jane encarou Charlie estreitando os olhos, mas logo tratou de


voltar ao tema inicial:

— Que bom que você gostou do item de hoje. Está sendo meu
dia preferido também.

— E sabe qual é a melhor parte? — Charlie perguntou, com


um sorriso. — Poder estar de mãos dadas com você e isso ser
perfeitamente normal.

Jane virou para ela, um sorriso sincero e brilhante surgiu em


seu rosto. Sim, essa era sem dúvida a parte preferida de Jane.

Ela se agarrava a todas as oportunidades de estar em contato


com Charlie sem levantar suspeitas.

A princípio ela achava isso algo triste, e odiava cada segun-


do que era obrigada a tratar Charlie como uma amiga. Mas Jane
pensou que raiva e ódio não a levariam a lugar nenhum e, com
sorte, talvez no futuro as coisas fossem melhores. A partir desse
momento, Jane fez disso um jogo, pensando em todas as formas
que poderia expressar seu amor sem que as pessoas ao redor se
dessem conta do que de fato significava.

E ela adorava toda vez que achava uma saída.

Quatro dias para o Natal

Jane batizou a noite em que faltavam quatro dias para o Natal


de “noite do pijama”. O evento consistia em usar pijamas combi-
nando, que ela mesma havia personalizado com temas natalinos,
beber gemada e ler histórias de Natal junto a lareira.

Isso era algo que Charlie sentia que poderia aproveitar, afinal,
ela amava ler um bom livro próxima a lareira. E somar Jane a essa
equação só melhoraria ainda mais a experiência.

— Eu posso escolher o livro? — Charlie perguntou.

— Contanto que seja de Natal…

Jane terminava de servir as canecas com gemada e aproveitou


para batizar com um pouco de uísque. Estava muito frio e o uísque
iria ajudar a aquecê-las.

— Seu desejo é uma ordem!

Jane sorriu para si mesma, percebendo que Charlie parecia cada


dia um pouco mais animada com os programas natalinos.

Assim que terminou de servir as gemadas, Jane colocou alguns


biscoitos de gengibre — que elas compraram na feira da cidade,
não os que elas haviam feito — em uma bandeja e levou tudo
para a sala. A lareira estava acesa, mas Jane atiçou o fogo e colo-
cou mais uma tora, para garantir que tivesse força para mantê-las
aquecidas por bastante tempo.

— Tá, eu tenho duas opções — Charlie disse, voltando.

— Vejamos.

Jane havia espalhado almofadas no chão para que elas pudes-


sem se sentar bem em frente a lareira.

— Peguei Cântico de Natal do Dickens, porque é um clássi-


co — ela falou, mas Jane notou que não parecia mais empolgada
do que se tivesse dito que leriam um manual de eletrodoméstico.

— E o outro?

Charlie sorriu antes de mostrar a capa.

— O Natal do Poirot da Agatha Christie.

Jane soltou uma risada. É claro que Charlie iria querer um mis-
tério de Natal.

— Está bem, vamos ver quem é a pobre alma assassinada da


vez.

Charlie alargou ainda mais o sorriso e se sentou confortavel-


mente nas almofadas, com as costas apoiadas no sofá, o livro em
uma das mãos e a outra alcançando a caneca de gemada.

Jane se sentou de frente para ela, com as duas mãos firmes


na caneca, deixando que o líquido quente ajudasse a aquecer os
dedos gelados.

Charlie limpou a garganta, antes de abrir a primeira página.


— Começa com uma dedicatória — ela disse.

Então leu com sua voz aveludada e o sotaque britânico que


Jane adorava:

Meu querido, James

Você sempre foi um de meus leitores mais fiéis e bondosos e,


por isso mesmo, fiquei seriamente perturbada ao receber seu co-
mentário crítico.

Queixou-se de que os meus assassinatos estariam ficando refi-


nados demais — na verdade, anêmicos. Demonstrou, também, o
desejo de “um assassinato dos bons, violento e cheio de sangue”.
Um assassinato em que não houvesse dúvida de ser um assassinato!

Pois esta é a história que escrevi especialmente para você.

Espero que lhe agrade.

Com carinho, de sua cunhada

Agatha

— Puxa, que natalino — Jane ironizou, rindo.

Charlie só soltou uma risada também, ela apreciava o humor


britânico, mesmo há anos morando longe do seu país.

— Ela parece um tanto rancorosa, não acha, Charlie?

— Creio que sim! Mas é isso que faz as suas histórias


interessantes.

— Bom, vamos a ela então.

Jane se inclinou um pouco mais para frente, pronta para escutar


a história. Ela achava que qualquer coisa soava romântica na voz
de Charlie, até mesmo um assassinato cheio de sangue.

— Primeira parte, 22 de dezembro — Charlie leu. — Um.


Stephen levantou a gola do casaco enquanto andava rapidamente
ao longo da plataforma. Um denso nevoeiro pairava sobre a esta-
ção. Motores enormes sibilavam ensurdecedoramente despejando
nuvens de vapor em meio ao frio cortante. Tudo por ali estava
sujo e encardido de fumaça;

“‘Que país repugnante, que cidade repugnante’, Stephen pensou


com aversão.”

— Londres é adorável, não sei por que dessa má fama toda


— Jane disse.

— Eu ainda não cheguei na parte que ele diz que é Londres


— Charlie apontou com um sorriso, erguendo uma sobrancelha.

— Hm… bem, é que tem mesmo muita fumaça lá, amor. Eu


supus.

Charlie soltou uma risada.

— Sou obrigada a concordar. Bem, deixa eu continuar.

E Charlie continuou.

Antes mesmo de chegarem ao segundo capítulo, Jane havia


se deitado sobre o tapete com a cabeça na coxa de Charlie, en-
quanto ouvia atentamente, tentando absorver todos os detalhes,
para solucionar o caso antes do Poirot, enquanto comia biscoitos
de gengibre.

Ao tempo em que estavam no capítulo quatro, Charlie fazia


cafuné de forma inconsciente na cabeça de Jane, e ria de todas as
observações que ela fazia ao longo do livro.
Ela seria uma boa detetive, Charlie pensou, mas seria péssima
em guardar as informações para si mesma.

Elas não tinham a intenção de ler o livro todo, mas quando se


deram conta, Charlie estava lendo a última linha e o relógio da
sala marcava seis horas da manhã.

— Puxa — Jane disse. — Esse foi dos bons. Eu nunca teria


acertado.

— Eu passei longe também.

Quando se deitaram para enfim dormir, ambas tinham um


sorriso.

Charlie abraçou Jane enquanto pensava que o Natal não era


um feriado tão tolo assim, Já Jane concluiu que o espírito natalino
podia ser encontrado até em um livro sobre assassinato.

Três dias para o Natal

Faltavam três dias para o Natal, e Charlie percebeu que Jane


olhava impaciente pela janela de tempos em tempos.

— Não vai nevar hoje, darling.

— Como você tem tanta certeza?

Charlie deu de ombros. Ela vivera a vida toda em Londres e


Nova York, ela sabia quando ia nevar quase que por instinto. E o
clima hoje, ela tinha certeza, não estava para neve.

— A previsão do tempo no jornal dizia que iria nevar — Jane


reclamou.
— A previsão nunca é confiável.

— Se ao menos eu tivesse um plano B — Jane resmungou. —


Eu tinha certeza de que iríamos fazer o boneco de neve hoje. Até
tricotei um cachecol pra ele!

— Talvez a gente possa fazer um boneco diferente — Charlie


disse, tentando colocar um sorriso no rosto da namorada a qual-
quer custo.

— Só se for um boneco de terra — Jane reclamou.

— Ou de tinta.

— De tinta?

— Vem comigo — Charlie disse, e puxou Jane pela mão até o


quarto que haviam transformado em um atelier. — Você já disse
umas duas vezes que iria me ensinar a pintar, acho que chegou
a hora.

Os olhos de Jane brilharam. Desde o dia em que Charlie a ensi-


nou dirigir, Jane tinha a vontade de ensinar algo para ela também,
como forma de agradecimento.

— Você tem certeza? Eu sou uma professora bem severa —


Jane disse, mas não conseguiu manter a cara séria.

— Tenho — Charlie respondeu, feliz em ver a mudança no


semblante dela.

Um dia para o Natal

Na manhã do dia 24, Jane acordou animada.


E como não poderia? Aquele seria o último dia antes do Natal
e também o mais importante do seu plano de despertar o espírito
natalino em Charlie.

Hoje, ela tinha certeza, seria um dia memorável.

O único problema era que Charlie não parecia particularmente


empolgada com a ideia, na verdade, Charlie parecia o oposto de
empolgada.

— Jane, isso fica a mais de 60km daqui — ela resmungou


quando percebeu que precisaria dirigir até Abetone só para andar
de trenó.

— E daí? — Jane deu de ombros. — Já calculei tudo. Se a


gente sair daqui às dez, vamos chegar lá, almoçar, andar de trenó
e voltar a tempo para a ceia na Francesca.

À convite da amiga, Jane e Charlie iriam passar a ceia na casa


de Francesca. Isso, pelo menos, era algo para o qual ambas esta-
vam empolgadas. A manhã de Natal seria apenas entre as duas,
mas a ceia, elas sabiam, deveria ser compartilhada com as pessoas
que gostavam. E os amigos que fizeram nesses poucos meses que
moravam na Itália haviam sido muito importantes para que elas
pudessem considerar Florença seu lar.

E nada mais justo que comemorar esta data com eles.

Mas Charlie não parecia convencida de que o plano de Jane


daria certo. Então Jane achou que precisaria jogar mais pesado:

— Não foi pra isso que você comprou a Giulietta? — ela per-
guntou se referindo ao Alfa Romeo Spider de Charlie. — Pra que
você precisa de um carro veloz se não pra uma ocasião como essa?

A menção à Giulietta fez Charlie esboçar um sorriso.


Jane se deu um tapinha figurado nas costas ao notar a expres-
são da namorada.

— Pensando bem — Charlie comentou —, vai ser divertido


dirigir até Abetone!

Trinta minutos depois elas estavam a bordo da Giulietta a ca-


minho dos Apeninos Tosco-Emilianos. A paisagem Toscana, que
normalmente já era um deleite, ficava cada vez mais bonita à
medida que os picos nevados despontavam no horizonte.

Jane notou o sorriso permanente nos lábios de Charlie enquanto


dirigia e sorriu também.

— Acho que era isso mesmo que a gente precisava — Charlie


comentou, pegando a mão de Jane na sua e plantando um beijo
no dorso. — Me desculpa por ter sido contra a ideia.

— O importante é que agora a gente tá aqui.

Jane abriu ainda mais o sorriso e pensou que nada, nada mesmo,
poderia estragar aquele dia.

***

Assim que chegaram, não demorou nada para conseguirem


alugar um trenó e se equiparem para o passeio.

Jane estava animada, e Charlie tinha o mesmo sorriso que


sempre estampa o seu rosto antes de voar ou fazer qualquer outra
coisa que envolvesse velocidade.

Como era de se esperar, a montanha estava bem movimentada


com famílias e jovens casais esperando se divertir na neve.

As duas já haviam descido a montanha umas quatro vezes


quando decidiram sair da pista intitulada “iniciante” para a
“avançada”.

— A intermediária não tem muita diferença da iniciante —


Charlie disse.

Jane olhou meio desconfiada para a pista que iriam encarar,


mas depois de uma análise superficial concluiu:

— Não parece muito difícil — Ambas se sentaram no trenó.


— Você pilota!

Charlie apenas sorriu antes de pegar impulso para descer a pista


que era mais íngreme e lisa, o que a deixava mais rápida.

— Isso sim é divertido! — Charlie disse enquanto o vento


gelado cortava o rosto delas, deixando suas bochechas rosadas.

Jane agarrava com força na cintura da namorada, aproveitan-


do a oportunidade para poder abraçá-la, mas também temendo
ligeiramente pela sua vida.

Já haviam descido cerca de quinhentos metros quando o trenó


começou a acelerar ainda mais devido a inclinação da pista.

— Vai mais devagar, Charlie! — Jane recomendou, começando


a sentir um pouco mais de adrenalina do que estava esperando.

— Não dá pra frear.

— Charlie! A gente tá saindo da pista!

— Eu não consigo controlar… — Charlie disse. — Tá


desgovernado.

Charlie tentava usar os pés para guiar, mas devido à alta velo-
cidade não conseguia ter precisão suficiente para ter controle do
movimento e o trenó ziguezagueava desenfreadamente.
Os olhos de Jane se arregalaram quando, em vez de neve
branca, eles viram apenas troncos.

— A ÁRVORE! — ela gritou.

— NÓS VAMOS BATER! — Charlie rebateu — PULA!

As duas pularam segundos antes do trenó se chocar contra um


Abeto centenário e se partir em dois.

Jane sentia neve entrando na sua roupa, ouvido e botas enquan-


to rolava alguns metros. Já Charlie teve o percurso interrompido
por um tronco seco caído.

Quando Jane finalmente parou de rolar, ela notou que estava


cerca de cem metros mais abaixo do que a namorada.

— Charlie? — ela gritou juntando as mãos próxima a boca.


— Você tá bem?

Charlie não respondeu num primeiro momento, fazendo o co-


ração de Jane acelerar. A descarga de adrenalina foi tanta, que ela
subiu a montanha correndo sem nem sentir o cansaço.

Ela notou que Charlie parecia meio perdida olhando para a


própria perna.

— O que foi? — ela perguntou, quando se aproximou.

Charlie estava sentada na neve, tentando tirar a própria bota.


Jane logo abaixou para ajudá-la.

— Eu bati com o pé — Charlie falou, e Jane pôde notar pelo


seu tom que ela estava com dor.

Assim que tirou a bota e a meia deu para notar que já estava
inchando e, se Jane tivesse que apostar, apostaria que em questão
de minutos estaria roxo também.

Com cuidado ela aproximou a mão do pé da namorada.

— Dói?

Charlie soltou um gemido de dor no segundo que a mão de


Jane tocou o inchaço.

— Acho que deve ter torcido — Jane comentou. — Eu… eu


vou procurar alguém que trabalha aqui para nos ajudar.

Jane já estava se levantando para ir, mas Charlie a puxou pela


mão.

— Jane — ela disse e esperou a namorada a olhar. — Você


tá bem?

Jane não era do tipo que não demonstrava o estresse ou que


guardava para surtar depois que já havia passado. Charlie sabia
disso e podia ver nos olhos dela que ela estava a ponto de come-
çar a chorar.

— Tá tudo bem — Charlie reafirmou. — Eu tô bem, deve ser


só uma torção mesmo.

Jane balançou a cabeça, pronta para ir atrás de ajuda, mas antes


que ela pudesse decidir se era melhor subir ou descer a montanha,
outro trenó, com dois rapazes, as viu e parou para prestar ajuda.

Rapidamente elas explicaram o que havia acontecido e eles


disseram que iriam descer e pedir para o pessoal do parque ir ao
resgate delas.

Enquanto esperavam, as duas sentaram lado a lado sobre uma


das partes do trenó, Jane tirou o cachecol que usava e fez como
se fosse um embrulho cheio de neve.
— Coloca no seu pé — ela disse.

Charlie não falou nada, apenas aceitou e posicionou onde doía.

— Uma vez eu torci o meu patinando lá em San Francisco. A


Claire tinha apostado comigo quem conseguia fazer a melhor ma-
nobra e eu sabia que podia ganhar, porque ela não era tão boa,
mas aí exagerei na acrobacia e acabei caindo.

— É um milagre a Claire não ter te matado com uma das ideias


dela — Charlie disse, abrindo um sorriso pela primeira vez.

— Acho que o meu anjo da guarda é forte — Jane comentou.


— Enfim, ficou tão inchado que eu achei que tinha quebrado, mas
não quebrou, e a enfermeira da pista só disse para eu colocar bas-
tante gelo e deixar o pé elevado.

Por algum tempo nenhuma das duas disse nada.

Jane podia sentir a neve que entrou na sua roupa começando


a derreter.

“Isso não é bom” ela pensou.

Mas o pensamento foi ofuscado pelo tornozelo de Charlie cada


vez mais inchado.

— Me desculpa — ela disse em um quase sussurro. — A culpa


é minha.

Charlie virou o rosto bruscamente na direção de Jane.

— Sua? Fui eu que insisti para a gente pegar essa pista.

— Me desculpa por forçar tanto esse negócio do Natal — Jane


disse. — Se a gente tivesse ficado em casa como você queria, nada
disso teria acontecido.
Não foi exatamente o silêncio, mas a forma como Charlie pa-
receu se remexer sobre o trenó que deixou Jane apreensiva.

— Quando eu e o Rob tínhamos cinco anos, nossa mãe teve


outro filho — Charlie disse, e mesmo sem saber o que ela conta-
ria, Jane sentiu um nó na garganta. — O nome dele era George,
ele tinha nascido prematuro, mas depois de uns meses no hospi-
tal, ele tinha recebido alta e a gente achava que ele ficaria bem.
Mas o problema que ele tinha no pulmão piorou e ele… ele não
resistiu. Ele morreu no dia 24 de dezembro, um pouco antes de
completar sete meses.

— Charlie…

— Minha mãe não gostava muito de comemorar o Natal depois


disso — ela continuou. — E quando eu entrei para Northern Star
eu sempre passava trabalhando… acho que eu tinha esquecido
como comemorar.

— Eu me sinto uma imbecil agora — Jane disse.

— Você não tinha como saber, darling — Charlie a consolou,


colocando a mão sobre a de Jane. — E isso já faz muitos anos.

— Mesmo assim.

— Eu não contei isso pra você se sentir mal, foi justamente o


oposto. Contei para poder dizer que esse é o primeiro Natal que
eu quero comemorar. Não só porque você gosta e eu quero ver
você feliz sempre, mas porque eu sinto que tenho muitos motivos
para comemorar e agradecer.

— Charlie… — Jane murmurou, deixando as lágrimas de ner-


vosismo pelo acidente que se somaram à emoção das palavras da
namorada finalmente caírem.

— Eu te amo — Charlie disse.


— Eu também te amo — Jane respondeu e, antes que ela ti-
vesse chance de pensar, os lábios gelados de Charlie já estavam
grudados aos seus.

Foi um beijo rápido e cauteloso porque estavam em um lugar


público, mas foi o suficiente para aquecer o coração de Jane e es-
pantar o frio que sentia.

Não demorou muito para o resgate chegar e, como Jane havia


suspeitado, o pé de Charlie estava apenas torcido. Ainda assim, foi
Jane que teve que pilotar a Giulietta de volta até Florença.

Para o desespero de Charlie.

Manhã de Natal

Jane acordou com o sol da manhã atravessando o vidro e ilu-


minando o seu rosto. O calor dos raios não era suficiente para
aquecê-la, mas era agradável mesmo assim.

A primeira coisa que ela percebeu é que Charlie não estava dei-
tada ao seu lado, e que o local onde ela deveria estar estava gelado.

A segunda coisa que Jane notou foi a melodia natalina vinda


da sala.

Desconfiada, Jane se levantou, vestiu um roupão fofinho sobre


o pijama e desceu atrás da sua namorada.

Para sua surpresa, encontrou Charlie no piano tocando The


Christmas Song do Nat King Cole. Atrás dela, a árvore de Natal
estava iluminada com as luzes coloridas que elas haviam instalado,
e sobre o piano, tinham duas canecas fumegantes de chocolate
quente.
— Feliz Natal — Charlie disse, assim que terminou a música.

Jane abriu um imenso sorriso antes de responder.

— Feliz Natal!

Jane se sentou ao lado de Charlie na banqueta do piano e pegou


a caneca com as duas mãos. Antes de Charlie tocar mais uma
canção para Jane, ela plantou um beijo nos seus lábios e depois
outro na sua bochecha.

Jane podia ver um brilho diferente nos olhos de Charlie e sentiu


uma sensação gostosa no peito ao notar que o seu plano tinha fun-
cionado. Mais que isso, o seu plano trouxe sentido não só para o
Natal de Charlie, mas encheu de novos significados o seu próprio.

Charlie tocou mais algumas músicas enquanto Jane tomava


calmamente o seu chocolate quente. Não precisava de mais nada,
nem de presentes, nem de bonecos de neve, nem de casinhas de
gengibre… Tudo que ela poderia querer estava ali, ao seu lado.

E isso era tudo que o Natal precisava significar.

Fim.
Pati

— Eu não tô doente — Helena diz.

Examino ela por um segundo: olhos brilhantes, nariz verme-


lho, olheiras profundas, voz fanha e rosto pálido igual a uma vela.

— Tem razão, amor, você tá pronta pra posar pra capa da Boa
Forma.

— Eu não fico doente!

São sete da manhã e ela ainda está na cama. Se esse não é um


indicativo de que ela está se sentindo muito mal, não sei mais o
que pode ser. Afinal, estamos falando de uma pessoa que costuma
acordar todo dia às cinco em ponto para correr.

Abro um meio sorriso e me sento ao seu lado.

Helena é a pessoa mais teimosa que eu conheço e não é uma


surpresa para mim que ela se recuse a ficar doente na véspera de
Natal. Mas hoje ela pode espernear o quanto quiser, eu não vou
deixar ela fazer esforço e ficar ainda pior.

— É uma gripe — falo para ela. — Logo passa, mas hoje você
vai ter que descansar.

— A gente precisa ir pro Luneta, Pati.

— Amor, você não pode ir assim.

— Que absurdo, eu não tô morrendo, você mesma disse: é só


uma gripe…
— Mas você não quer passar vírus para todo mundo, quer?

Ela me encara com as sobrancelhas juntas e um bico que talvez


seja intimidador para algumas pessoas, mas para mim é apenas
fofo. Espero ela pensar na resposta por um segundo.

— Não — responde, contrariada.

— Então tá decidido — Dou o veredito. — Você vai ficar de


repouso.

É a manhã do dia vinte e quatro e deveríamos pegar a estra-


da, para passar o Natal no Luneta com as irmãs da Helena, logo
depois do almoço.

Eu sei que a ansiedade dela em ir é porque está com saudade


do Ju e da Juju, que já estão lá desde o dia vinte e um, quando
foram com a Luísa e a Sofia.

Eles amam aquele lugar e a gente sabia que seria um pecado


fazê-los ficarem aqui só porque a Helena tinha que trabalhar, sendo
que os primos estavam indo já no primeiro dia de férias.

Mas não significa que não estamos morrendo de saudades. A


última vez que ficamos tantos dias longe deles foi na nossa lua de
mel. Nem parece que isso já foi há sete meses.

Nós passamos a nossa lua de mel em Mendoza, na Argentina,


mas não posso dizer que conhecemos profundamente o lugar. Para
ser sincera, não saímos muito do hotel.

Ficamos em uma Estância de frente para a Cordilheira dos


Andes e passamos os dias bebendo vinho, aproveitando o spa do
hotel e a presença uma da outra.

Foi perfeito!
Helena está semi deitada, com as costas apoiadas a uma mon-
tanha de travesseiros. Coloco a mão na sua testa para ver se está
com febre — está — e aproveito para fazer um cafuné.

Ela me olha com os olhinhos brilhantes de gripe, o que faz ela


parecer doce e inocente, coisa que sei bem que ela não é. Mas,
ainda assim, fico com pena.

— Vamos fazer assim — falo, afagando os seus cabelos. —


Você descansa agora de manhã e se você estiver melhor à tarde,
a gente vai, pode ser?

— Fechado — ela diz com toda a dignidade que a gripe lhe


permite (o que não é muita), então me estende a mão, como se
fosse um acordo de negócios. Aperto a sua mão antes de deixar
um beijo no dorso.

Como pode uma pessoa intimidadora ser na verdade tão fofinha?

É engraçado, nós já morávamos juntas há quase um ano quando


nos casamos, mas de alguma forma, a vida de casada é diferente.
É melhor. Eu não sei explicar, mas alguma coisa muda quando
você diz que aceita a outra pessoa para sempre.

Talvez tenha sido alguma magia da Mila, que ninguém nunca


vai me convencer de que não é uma bruxa. Afinal foi ela que re-
alizou a cerimônia.

Mas eu acho que é na verdade a cumplicidade.

Nos seus votos, a Helena disse que eu não pertenço a ela e nem
ela a mim, porque isso implicaria em não ter escolha. Mas acho
que talvez a gente pertença um pouquinho uma à outra, sim. Acho
que o casamento vai mesclando nossos gostos, medos, desejos,
alegrias, memórias… e quando você vê, está dividindo tudo que
antes carregava sozinha.
Eu sei que posso falar qualquer coisa pra ela. Qualquer medo,
qualquer sonho, qualquer coisa besta que eu teria vergonha de falar
para outra pessoa. Sei que ela vai estar ali sempre que eu precisar.
Se eu ficar doente ou se eu realizar um sonho. Se eu tiver um dia
bom ou ruim. Se eu estiver feliz ou deprimida.

Porque eu também vou estar para ela.

Bem, talvez no fim das contas ela esteja mesmo certa — como
quase sempre — e a gente não pertença uma à outra. Porque per-
tencimento remete a uma hierarquia, em uma ser dona da outra.
E não é isso.

É o oposto disso. É uma união.

Acho que eu já estou divagando aqui. Mas o que eu quero dizer


é que estar casada é melhor do que eu imaginei. É confortável,
divertido e romântico. E eu me sinto ainda mais apaixonada hoje
do que no dia que nos casamos.

Vou até o armário de remédios ver o que eu acho. Não é um


armário muito farto, porque nenhum de nós é muito afeito a tomar
remédio. Mas encontro Paracetamol e uns comprimidos para gripe
que compramos quando o Ju ficou doente depois de surfarmos
em um dia com muito vento.

Vou te falar, naquele dia a Helena ficou brava, viu.

E o pior que nem foi só comigo e com o Ju. Sobrou sermão até
para o Pepa, que nem tinha ido conosco, mas, de acordo com a
Helena, tinha incentivado o Ju a começar a surfar. O pobrezinho
deve ter se arrependido até o último fio de cabelo de ter vindo vi-
sitar o Ju nesse período, e demorou dois meses para ter coragem
de olhar para Helena de novo.

Volto para o quarto e ela está na mesma posição em que a


deixei. Tem um olhar de cachorro perdido, mas se recusa perder
a pose. Embora esteja apoiada em uma montanha de travesseiros
fofinhos, ela está com as costas tão ereta que você pensaria que
ela está no meio de uma reunião com o presidente.

— Trouxe dois remédios e o café da manhã — digo, carregan-


do uma bandeja com mamão e banana com canela, um copo de
água para os remédios e um outro com suco de laranja de caixinha.

Percebo que ela está mal mesmo quando nem ao menos per-
gunta pelo café. Helena ama café preto sem açúcar.

Me sento ao seu lado e levo a minha mão a sua nuca, para


fazer um carinho enquanto ela come. Seus cabelos estão pratica-
mente loiros agora. Na minha opinião, combina muito com ela e a
deixa mais jovem, mas acho que sou meio suspeita, porque acho
ela linda de qualquer forma.

Assim que termina de comer, ela toma os comprimidos a con-


tragosto e não demora nem cinco minutos para pegar no sono de
novo. Tiro dois dos travesseiros das suas costas para que ela possa
ficar deitada, planto um beijo na testa quente dela, ajeito o cober-
tor sobre o seu corpo e saio do quarto, pé ante pé.

Sinceramente, não sei como ela pode achar que está em con-
dições de sair de casa. Não chego a ficar preocupada porque sei
que ela vai melhorar logo, mas me dá certa angústia ver ela nesse
estado.

Aproveito que ela dormiu para ligar para as crianças.

— Que horas vocês vão chegar!? — Juju pergunta quando


atende a chamada de vídeo.

Sinto meu coração se partindo um pouco. Eu também queria


poder passar a noite de hoje com eles, e realmente espero que a
Helena acorde melhor para a gente poder ir.
— Oi pra vocês também — brinco.

— Oi! — Os dois falam em uníssono, com os rostinhos espre-


midos um no outro para aparecerem na câmera.

— Eu não sei se vamos conseguir ir hoje — falo, com certa


tristeza.

— Por quê? — Júlio pergunta.

Antes de eu conseguir responder, o Pudim pula no colo do Ju


e dá uma lambida na bochecha dele, arrancando risadas de todos
nós. Além dos dois, Pudim e Guga também já estão no Luneta.

Eu sei o que você tá pensando: o Guga deve estar odiando.

Eu também achava isso, mas descobri que ele adora aquele


lugar e, todas as vezes que o levamos, foi o maior escarcéu na
hora de voltar.

Mas o principal motivo dele ter ido junto com as crianças, é


que eu estava com medo de que a Helena pudesse dar fim nele
em alguma madrugada depois dele derrubar a árvore de Natal
duas vezes.

— Cadê a mamãe? — Juju pergunta.

— Então, é por isso que acho que não vamos conseguir ir hoje.
Ela tá bem gripada e tá dormindo agora.

A carinha dos dois sofre uma alteração e vejo que os deixei


preocupados. Me arrependo no mesmo instante.

— É só uma gripezinha, mas ela não quer passar pra vocês —


Tento corrigir.

— Eu nunca vi ela doente — Ju diz, com a testa franzida.


— Ela diz que nem ela — brinco.

Mais uma vez os dois transparecem a preocupação que sentem.


Como se ela nunca ter ficado doente faça dessa gripe algo mais
sério do que realmente é.

— É claro que ela já ficou doente — explico. — Só que ela é


muito teimosa pra admitir. De qualquer forma, tenho certeza de
que até amanhã ela vai estar novinha em folha e vamos passar o
Natal com vocês.

— Você pede para ela ligar pra gente depois? — Juju pergunta.

— Claro, meu amor.

— Que horas vocês chegam? — A cara da Luísa aparece de


repente na tela com um sorriso, enquanto envolve o corpo da so-
brinha com os braços.

— Elas não vem — Ju e Juju falam meio amuados.

— O quê? Por quê?

— A Helena tá gripada… Ela não admite, mas tá.

— Ah — Vejo o sorriso dela esmorecer também. — Você acha


que ela melhora até amanhã?

— Acho que sim.

— Tomara mesmo — Lu diz. — A Lara vai ficar descompensa-


da quando descobrir. Ela quase morre quando tem a mais mínima
mudança nos planos e ela tá planejando essa ceia desde setembro.

— O que tá rolando? — Mila também aparece na tela, se es-


premendo ao lado do Ju, que está com o Pudim no colo.
— A Lena tá doente — Lu conta. — E elas não sabem se vão
conseguir vir hoje.

— O que ela tem? Constipação por ser tão rabugenta?

Solto uma risada, mas Luísa dá um peteleco na cabeça da irmã


antes de apontar com os olhos para Ju e Juju, que ainda parecem
preocupados com a mãe.

— É só uma gripe — explico —, se ela acordar melhor, vamos


hoje ainda.

— A Lena é a doente mais teimosa que existe, ela vai tentar te


convencer a todo custo que está bem — Mila diz.

— É, eu sei, mas eu não vou deixar ela sair se estiver mal.

— Faz um chá de mel, limão e alho. Eu vou fazer um reiki à


distância para ela.

— Hmm… Obrigada… — digo, sem saber ao certo como reiki


à distância pode funcionar. Mas como eu disse, ela é meio bruxa,
então quem sabe não funciona mesmo?

— Enfim, você cuida dela — Mila continua —, que a gente cuida


da Lara, que com certeza vai ter uma síncope quando descobrir.

— Descobrir o quê? — escuto a voz da Lara distante.

— Hmm, eu tenho que ir — me adianto antes que ela apareça


na tela também. — Amo vocês — falo para o Ju e para a Juju.

— A gente também!

Mando um beijo para todos, então desligo a ligação antes de


ter que explicar tudo de novo para a Lara.
Dou uma espiada no quarto para ver se a Helena está bem,
quando vejo que ela ainda está dormindo, me jogo no sofá da sala
para ver um pouco de TV.

Acho a reprise de um campeonato de kitesurf e fico assistindo.

Meu celular toca depois de uns vinte minutos.

— E aí, feio? Como tá as ondas aí?

— Pô tá muito irado, feia — Pepa diz no outro lado da linha.


— A Mari já tá mandando baita bem. Acho que vou conseguir
convencer ela a pegar umas ondas com a gente da próxima vez.

Pepa e a namorada, a Mari, estão de férias na África do Sul, e


ele está tentando ensinar ela a surfar, mas ela tem um pouco de
medo do mar, então tá sendo um processo meio lento.

— Daora. Eu levo o Ju e a gente pega uma praia mais tranqui-


linha pra eles treinarem.

— E como tão os pestinhas?

— Já tão lá no Luneta…

— Tá só você e a patroa em casa? Eu tô atrapalhando os planos


de vocês? — ele pergunta, erguendo uma sobrancelha de forma
sugestiva.

Reviro os olhos, mas solto uma risada mesmo assim.

— Não, a Helena tá baita gripada e tá dormindo agora.

— Pô, melhoras pra ela aí — ele diz. — Ahh! Deixa eu te


contar. A Mari achou esse pessoal aqui que vende, tipo, essas
experiências para turistas e a gente vai, tipo, catar cogumelos sel-
vagens e fazer o próprio prato hoje no jantar, não é muito natalino,
mas acho que vai ser daora…

Ele passa uns dez minutos me contando das aventuras dos dois
e do programa que farão hoje. Logo a Mari diz para ele que já
está na hora de eles saírem.

Olho o meu relógio e calculo que já deve ser perto das quatro
da tarde lá. Desejo feliz Natal para os dois e desligo.

***

Já é perto das onze da manhã quando vejo Helena, parada na


porta da sala, com o cobertor sobre os ombros embora esteja uns
25ºC lá fora, me encarando igual o Guga faz quando quer um
abraço.

— Por que você não estava no quarto quando eu acordei? —


ela pergunta, contrariada.

Caminho até ela e levo as minhas mãos às suas bochechas antes


de lhe plantar um beijo nos lábios.

Ela continua quente. Talvez mais quente que antes.

— Eu não queria te incomodar — explico. — Como você tá


se sentindo, amor?

— Ótima.

— Você tá com fome? — pergunto, guiando ela de volta para


o quarto.

— Não.

Ela não impõe nenhuma resistência, apenas gira os calcanhares


e me acompanha. Se eu não estivesse preocupada com o bem-
-estar dela agora, até acharia engraçado o jeito que ela se recusa
a admitir que está mal, mas se deixa ser cuidada mesmo assim.

— Que tal um banho de banheira? — pergunto quando chega-


mos ao quarto. — Para relaxar um pouco, acho que pode te ajudar.

— Você vai ficar comigo?

— Fico.

— Pode ser — ela diz, erguendo os ombros como se fosse um


“tanto faz”, mas eu conheço a minha esposa. Ela não faz nada
que não tenha vontade, então sei que ela quer.

Coloco ela de volta na cama e vou preparar o banho. Capricho


colocando bastante sais e espuma e até acendo as velas aromáti-
cas para deixar mais aconchegante.

Deixo a água bem quente, mesmo sendo verão, porque ela está
com febre e não seria nada bom ter um choque térmico.

Helena está exatamente na mesma posição que a deixei, sentada


na beirada da cama com o cobertor sobre os ombros, e confesso
que agora começo a me preocupar um pouco mais. Ela parece
estar piorando.

Será que deveria levar ela ao médico?

Me sento ao seu lado e levo mais uma vez a mão à testa.

— A febre não passou ainda — comento.

— Eu tô bem — ela insiste —, só preciso de um banho.

Decido não criar caso agora, afinal a banheira está quente e


esperando por ela. E gripe é assim mesmo, primeiro te humilha
depois vai embora como se nunca nem tivesse existido.
No banheiro, ajudo ela a se despir e entrar na água. Eu me
sento na beirada da banheira.

— Você não disse que ia entrar?

— Não… eu disse que te faria companhia.

Ela me encara com a testa franzida e cara de zangada.

— Entra logo, Pati — ela ordena.

Típico Helena.

Tão fofinha quando está brava.

Mas eu não estou com febre, iria derreter nessa banheira.

— A água tá muito quente — explico, enquanto solto o cabelo


dela que estava preso em um coque e massageio seu couro
cabeludo.

— Entra, amor — ela me pede meio manhosa, se virando para


mim com os olhinhos brilhantes de gripe.

— É golpe baixo me olhar assim — brinco.

— Por favor, eu preciso de você.

Correção: isso que é golpe baixo.

Mas ela está mesmo com uma carinha de dar pena e sei que
deve estar se sentindo ainda pior.

— Você é muito manipuladora, sabia? — falo, já tirando a


blusa e o shorts.

— Se continua funcionando…
Prendo meu cabelo para não molhar, e ela abre um sorriso
levado, até meio infantil, quando termino de tirar a roupa.

— Dá um espacinho pra mim — peço, e ela desencosta para


eu poder me sentar atrás dela.

Meu Deus, essa banheira parece um caldeirão, com a água e a


Helena brigando para ver quem está mais quente.

Me ajeito, e a Helena não perde tempo em se aconchegar contra


o meu corpo.

Eu vou cozinhar aqui dentro.

Virar uma sopa de Pati.

Sinto minhas bochechas esquentando e meu corpo suando


mesmo dentro da água.

Mas não é comum eu ver a Helena assim toda manhosa, então


sei que ela está mesmo precisando de um chamego, e não vou
ser eu a negar.

Abraço ela pela cintura e a puxo para mais perto e ela deita a
cabeça no meu peito e entrelaça nossos dedos.

— Eu liguei para as crianças agora há pouco — conto.

— Você falou alguma coisa pra eles?

— Falei que você estava gripada e não queria passar para eles.

Ela assente a cabeça, meio sonolenta.

— Eles ficaram preocupados — falo — , mas eu falei que não


era nada demais. A Juju pediu pra você ligar depois.
— Você não devia ter preocupado eles.

— Eu não queria deixar eles com a expectativa de que a gente


tava indo para depois ter que mudar os planos. Só quis deixar
todo mundo a par.

— Mas a gente devia ir hoje — ela fala, mas não soa como
uma imposição, na verdade, tenho a impressão de que ela está
quase dormindo outra vez.

— Você mal aguenta acordada, linda.

— Eu vou melhorar depois do banho.

— Depois do almoço a gente vê, tá bom?

Escuto algo parecido com um “uhum”. Não falo mais nada e


deixo ela relaxar.

Depois de alguns minutos, me acostumo com o calor da água


e paro de me importar. Percebo que a Helena dormiu de novo.

Sei que um pouco é da gripe e outro pouco é do remédio que


te derruba mesmo.

Ou vai ver é o tal reiki à distância da Mila.

De qualquer forma, tento não me mexer muito para não


acordá-la.

Não me surpreende tanto ela ter ficado doente. Essas últimas


semanas ela estava super ansiosa e agitada e esse tipo de estresse
é péssimo para a imunidade.

A Helena pode falar o que quiser da Lara, mas elas não são tão
diferentes assim. A Helena também é bem controladora.
Esse é o primeiro Natal que vamos passar os quatro juntos como
uma família, já que ano passado, embora já estivéssemos morando
juntas, eu passei o Natal com os meus pais e a minha avó. E sei
que a Helena estava toda agitada porque queria que tudo saísse
perfeito. Esse pensamento faz com que eu a aperte mais um pouco
contra mim e dê um beijinho na sua têmpora. Ela não acorda.

Mas como eu ia dizendo, nessas últimas semanas ela estava


toda agitada com os preparativos. Com os presentes. Com a árvore.

— Eu nunca montei uma árvore de Natal, Pati — ela disse,


numa manhã no começo de dezembro enquanto a gente esperava
o Ju e a Juju na saída da escola para irmos almoçar.

A gente tinha decidido que mesmo que fossemos passar o Natal


no Luneta, a gente deveria montar uma árvore. Na verdade, quem
decidiu foi a Juju e nós todos só concordamos.

A Juju era igualzinha à Helena. Ela mandava e todo mundo


obedecia.

— Como assim nunca montou uma árvore? Nem quando era


criança?

— Você conheceu a Lara? — ela me perguntou com ironia. —


Ninguém podia chegar nem perto da decoração. Ela era pior do
que é hoje, se você quer saber. Controladora.

Soltei uma risada, porque conseguia visualizar muito facilmente


uma mini Lara não deixando ninguém estragar a decoração dela.

— Bom, mas não tem nenhum mistério, amor — falei. — É


só montar e decorar.

— E se não combinar?

— Combinar com o quê?


— Sei lá, uma decoração com a outra?

Soltei mais uma risada, porque ela certamente estava se preo-


cupando além da conta com uma coisa muito boba.

— É uma árvore de Natal, amor, é pra ser cafona mesmo. A


gente leva as crianças na loja de decoração, eles escolhem as que
eles gostam, a gente escolhe as que a gente gosta, depois vai tudo
pra árvore, aí vai ficar, tipo, uma representação da nossa família.
Meio caótica, mas linda assim mesmo.

— A Lara me disse que tem que ter combinação de cores e


disse pra evitar verde e vermelho porque é brega. Era pra usar
dourado, ou cobre, ou…

— Achei que a gente tinha concordado que a Lara não bate


bem da caixola, amor.

Ela fez uma pausa e me olhou meio desconfiada. Eu sabia


que o gosto da Lara era impecável e a casa dela parecia saída do
Pinterest, mas a nossa não precisava ser assim só porque a dela era.

Depois de um tempo, a Helena cedeu:

— Tem razão…

— Relaxa um pouco, amor — eu disse. — Eles tão vindo.

Não demorou nem trinta segundos para Ju e Juju entrarem feito


dois raios no banco de trás do carro.

Eles estavam discutindo algo entre eles que, como peguei pela
metade, não consegui acompanhar.

— Que tal a gente comprar as decorações de Natal hoje? —


perguntei, me virando para eles na primeira pausa que eles fizeram.
— Eba!

— Daora!

— A gente pode escolher o que quiser, mamãe? — a Juju per-


guntou para a Helena.

Ela se virou para mim e eu fiz que sim com a cabeça. Ela sorriu
antes de responder:

— Claro.

— Até do Homem-Aranha? — Ju quis saber.

Ela fez uma careta meio assustada, mas disse que sim para o
filho.

Apenas soltei uma risada.

Naquele mesmo dia montamos a árvore. A Juju quis montar


enquanto assistíamos Frozen e ela cantava todas as músicas junto
com as personagens. No fim das contas, o Homem-Aranha ficou
no lugar da estrela ou do anjo no topo da árvore.

Não acho que a Lara aprovaria a nossa árvore, mas, para mim,
era a árvore mais bonita que eu já tinha visto.

— Vamos fazer uma selfie — Ju disse, pegando o meu celular


e abrindo na câmera.

Ele me jogou um gorrinho de Papai Noel enquanto ele mesmo


usava o outro.

— Pudim, vem cá — Juju disse, de joelhos, chamando o nosso


filhote de Labrador que já não era mais tão pequeno.

Ele correu até ela balançando o rabo e com a língua pendurada.


— Cadê o Guga? — perguntei.

— Em algum cômodo, soltando pelo pela casa, que é a única


coisa que ele sabe fazer — Helena disse.

Ela não estava errada, mas eu amava tanto ele!

Talvez pressentindo que eu esperava por ele, Guga apareceu e


o Ju correu para pegá-lo no colo.

— A gente devia colocar um chapeuzinho nele também — o


Ju disse. — Tem aquele do Papai Noel de pelúcia que a gente
comprou.

A Juju não perdeu tempo em tirar o gorrinho do mini Papai


Noel e colocar no Guga. Ele não estava com cara de quem estava
amando, mas pelo menos não tentou tirar.

Ju o pegou no colo e se posicionou para tirar a foto. Juju estava


ao lado dele e eu atrás dela, Helena estava ao meu lado e, bem
nessa hora, o Pudim deu uma bela de uma lambida na sua boche-
cha. Ele adorava isso, ela nem tanto.

Helena ainda dorme contra o meu peito e a essa altura a água


já está morna. Penso em pedir o nosso almoço, mas o meu celular
está apoiado no armário das toalhas e não sei se alcanço.

Solto uma das mãos que a Helena segura firmemente, meus


dedos estão todos murchos de ficar tanto tempo na água. Estico
o meu braço, mas ainda falta uns quinze centímetros para eu
conseguir.

Observo a Helena por alguns segundos, ela até ressona enquan-


to dorme. Me certifico que estou segurando-a para não escorregar
e acabar comendo espuma ou se afogando, e, com cuidado, tento
me esticar mais um pouco. Meus dedos roçam de leve no aparelho
então dou um último impulso para finalmente conseguir pegá-lo.
Helena resmunga alguma coisa e se ajeita mais uma vez em
mim, mas não acorda. Nunca vi ela dormir assim.

A selfie que tiramos aparece como papel de parede no meu


celular e sobre ela, duas notificações da Mila e uma do Pepa.

A do Pepa é apenas a foto de um cogumelo enorme. A mão


dele está do lado para fins de comparação e os dois são quase do
mesmo tamanho. Respondo com um emoji qualquer antes de ver
as mensagens da Mila.

A primeira é de quarenta e cinco minutos atrás e ela diz que


vai começar o reiki, e que a Helena deve ficar meio sonolenta.

A outra é de três minutos atrás:

Mila: Acabei! Senti que ela estava dormindo. Ela parece com
a cabeça bem pesada, acho que está congestionada, então fiquei
mais tempo ali. Se ela estiver dormindo pode deixar ela assim mais
um pouco, depois acorda ela devagar.

Encaro a mensagem por quase um minuto. Depois me viro para


a Helena, então para a mensagem de novo, então para a Helena.

Ninguém nunca vai me convencer de que essa guria não é


bruxa.

Respondo a Mila, depois perco algum tempo no APP do Orso


escolhendo algo que julgo ser apropriado para alguém resfriada.
Seleciono uma sopa de capeletti de frango e uma tilápia com
legumes.

Faço o pedido, então decido que é hora de acordá-la, já que a


água está ficando fria.

Dou um beijo na sua bochecha e vou descendo pelo pescoço.


Helena resmunga alguma coisa, mas não se mexe.

— Amor, tá na hora de acordar.

— Hmm?

— A gente tem que sair, a água tá fria e o nosso almoço tá


chegando.

— A gente já chegou?

— Aonde?

— No Luneta?

— Ainda não — respondo, porque não acho que ela esteja


acordada o suficiente para eu explicar que estamos em casa.

Depois de algumas tentativas, ela finalmente acorda.

— Como você está se sentindo? — pergunto.

— Ótima.

Eu sei que ela vai responder isso todas as vezes, mas agora ela
parece menos irritada, o que significa que ela está melhor que da
última vez que perguntei.

Você tem que aprender a ler a Helena se quiser viver com ela.

Percebo que ela não está mais quente e acho que a febre passou.
Mas ela ainda está com a voz meio fanha.

— Melhor a gente sair dessa água fria — digo, afastando ela


um pouco para eu poder sair primeiro e ajudá-la a sair depois.

Quando ela sai, antes de eu ter tempo de pegar as toalhas, ela


me enlaça pela cintura e me puxa para um beijo.
O corpo dela está molhado e a pele, macia, por conta do sais
de banho. Minha mão desliza pela sua cintura, pressionando ela
contra mim e nesse momento esqueço completamente que ela está
doente e aprofundo o beijo.

Mas a minha tentativa logo é interrompida quando ela se afasta


para poder espirrar.

Ela me olha como quem pede desculpa, mas solto uma risada
da cena.

— Você é mesmo muito manipuladora, amor — falo, enquanto


pego uma toalha e coloco sobre os seus ombros.

— Eu não sei do que você tá falando.

Pego outra toalha para mim e me enxugo também.

— Você aí, tentando me seduzir para eu achar que você tá


melhor.

— Agora é crime eu beijar a minha esposa?

Ela tem um sorriso meio malicioso.

— Não, mas você vai ter que se esforçar mais do que isso pra
me convencer que está liberada para ir pro Luneta.

— Eu gosto de desafios.

— É, é, eu já sei — falo, e empurro ela pelos ombros na di-


reção do closet.

Ela veste uma roupa confortável e eu faço o mesmo. Como já


está se sentindo melhor, deixo ela secando o cabelo enquanto vou
até a cozinha arrumar a mesa para o almoço.
Quando a Helena desce, parece mesmo melhor. Está menos
abatida e parece mais disposta. Mas o nariz continua vermelho e
a voz fanha. Além de espirrar a cada dois minutos.

— O que você pediu — ela pergunta, caminhando até mim.

Ela me abraça por trás enquanto eu lavo a louça do café da


manhã que ainda estava na pia.

— Sopa de capeletti de frango e tilápia.

— Com legumes?

— Uhum…

— Você acha que dá tempo de eu ligar para as crianças antes


da comida chegar?

Fecho a torneira, seco as mãos e pego o meu celular.

— Acho que sim. Diz aqui que a comida vai chegar em dez
minutos.

— Tá, vou ligar pra eles — ela anuncia e me dá um beijo nos


lábios antes de ir.

O amor é uma coisa estranha mesmo, você não acha? Porque


se fosse qualquer outra pessoa assim com essa cara de gripe, nariz
vermelho desse jeito e essa voz fanha, eu teria nojo de beijar. Mas
a Helena eu não me importo nem um pouco.

Consigo escutar as vozes do Ju e da Juju animados falando com


a Helena, mas não consigo distinguir o que falam.

Não demora muito para a comida chegar. Almoçamos na mesa


da cozinha mesmo.
Helena está menos rabugenta, o que me faz pensar que apesar
dos espirros e da quantidade impressionante de lenços de papel
amontoados ao lado dela, ela está mesmo melhorando.

***

Depois do almoço, estamos na sala de TV.

A Helena toma mais uma rodada de remédios, mas dessa vez


não fica sonolenta como pela manhã.

Por algum motivo, em vez de estarmos sentadas no sofá, es-


tamos no chão, eu encostada no sofá e ela em mim enquanto
assistimos a um dos milhares de filmes de Natal idênticos uns
aos outros.

Helena está comendo aquelas nozes com caramelo salgado que


ela adora e eu, como uma pessoa normal, pipoca de microondas.

— Esse homem tem muita cara de colono — ela diz.

— Ele é fazendeiro, amor.

— Escolheram um ator perfeito então, porque ele tem mesmo


muita cara de colono.

Eu não sei exatamente o que na cara do coitado denota tanto


que ele seja “colono”, mas Helena nunca vai muito com a cara dos
mocinhos em filmes de Natal… ou filme nenhum.

— Me surpreende ele não ter uma esposa morta e uma filha


— comento. — Sempre tem uma criança sem mãe.

— Verdade — ela concorda, colocando mais uma noz na boca.


— Inclusive, se eu fosse essa moça aí, caía fora logo, porque a
chance de ela se tornar a esposa morta é muito alta.
— Que pensamento mais macabro!

— Todos esses mocinhos de filme de Natal são viúvos, só tô


falando que em algum momento eles tiveram que conhecer a pri-
meira esposa.

— Bom, vamos torcer pra não ter uma continuação então,


porque eu gostei da mocinha.

— Você gosta de todo mundo, amor — ela diz, quase em um


tom de crítica.

— Tem razão, eu gosto até de você — provoco.

— Ei! — Ela se vira com a testa franzida. — O que você quer


dizer com is…

Antes que ela consiga terminar a frase, eu a corto com um beijo.


Consigo sentir ela sorrindo contra a minha boca.

— Você não devia ficar me beijando — ela fala quando nos


afastamos. — Vai pegar gripe também.

— Meio tarde pra pensar nisso, né?

Ela ergue os ombros, como que em sinal de culpa.

— E eu não me importo — falo, puxando ela pra mim de


novo. — O que eu posso fazer se você fica irresistível com essa
cara de tadinha.

— Tadinha, não!

— Só um pouquinho.

Helena faz um bico e a beijo sem pestanejar.


Ficamos assim por algum tempo. Quando o filme acaba, já é
perto das quatro da tarde. Helena ainda está espirrando um pouco,
mas no geral parece bem melhor.

— Você acha que está bem pra pegar a estrada? — pergunto.


— Seja sincera. Porque se eu aparecer com você doente no Luneta,
a Juju vai brigar comigo.

Ela solta uma risada porque sabe que eu estou brincando. Adoro
implicar com as duas e falar que são igualmente mandonas.

— Na verdade, eu tô bem melhor.

Coloco a mão na sua testa. A temperatura parece normal. Ela


não está mais tão pálida nem abatida.

— Tá, mas eu dirijo — digo.

Helena abre um sorriso enorme quando percebe que vamos


hoje, e sei que é a escolha certa. Não me sentiria bem em fazer
ela passar o Natal longe dos nossos filhos.

Arrumamos as poucas coisas que faltavam, nos trocamos e em


poucos minutos já estamos no carro.

— Manda uma mensagem para a Lara, avisando que estamos


indo — peço, já na rodovia. — Ela deve tá meio surtada ainda
com as mudanças no cronograma.

— Ela já deve ter deixado todo mundo louco com os prepara-


tivos — Helena diz, digitando no celular. — Pronto. Credo, ela já
visualizou. Aposto que ela tá me xingando.

Helena bloqueia o celular e o coloca no bolso antes da men-


sagem da Lara entrar.

— Tadinha, também não é fácil organizar os eventos da sua


família, né, amor?

— Nossa.

Sei que ela está falando em um sentido “não tira o corpo fora
dessa, porque você que escolheu fazer parte”, mas sempre me
derreto toda quando ela diz “nossa família”.

Ela percebe o meu sorriso bobo e abre um também, depois


encontra a minha mão e planta um beijo.

***

Quando chegamos ao Luneta, Ju e Juju correm para nos recep-


cionar, com o Pudim vindo logo atrás.

— Mamãe, você tá bem? A tia Lara disse que você ia falar que
sim mesmo que não tivesse. E a tia Lu disse que você era muito
teimosa pra ficar doente por muito tempo. E a tia Mila disse… —
Juju não parava de falar. Helena teve que cortar ela com um abraço.

— Eu tô bem… de verdade — Helena diz. — Só espirrando


um pouco ainda.

Ela esticou o braço para o Ju entrar no abraço também, e ele


não perdeu tempo.

— E a tia Lu tem razão, nenhuma gripezinha idiota ia me fazer


passar o Natal longe de vocês.

Os dois soltam uma risada e logo vêm me abraçar também.


Não demora muito para todo o resto da família vir nos recepcionar.

Já são quase sete horas e a mesa da ceia já está montada sob


o pergolado que Mila construiu ao lado da casa. Claramente a de-
coração tem o dedo da Lara, com luzinhas de Natal e arranjos de
flores. A louça e, claro, a comida ainda não estão ali.
Entramos na casa da Mila, onde a ceia está sendo preparada,
com exceção do peru, que ela pediu para ser feito na cozinha da
sede.

— Tudo bem vocês comerem o pobrezinho, mas ele não pre-


cisa ser cremado na minha cozinha — ela tinha dito.

Apesar de nenhuma das irmãs saberem nem fritar um ovo, elas


decidiram que esse ano a ceia seria feita por elas mesmas. Lara até
contratou um chef particular para ensinar ela a cozinhar.

Sinceramente, tenho um pouco de medo dessa refeição, mas


acho fofo que elas queiram fazer sozinhas.

— Mamãe — Ju diz, na sala da casa da Mila, com toda a fa-


mília reunida —, eu acho que o Guga tá namorando a Elvira.

— Como é? — As quatro irmãs Lancellotti indagam em


uníssono.

— Eu acho que eles tão namorando — Ju repete.

— Por que você acha isso? — pergunto.

— Ele tá sempre correndo atrás dela — Júlio explica. — E eu


vi ele dar um passarinho morto pra ela.

— Que romântico — ironiza Luísa.

— Agora que você falou… — Sofia comenta. — Eu vi ela ten-


tando chamar a atenção dele ontem.

— A vovó sempre foi meio namoradeira mesmo — Lara diz.

O que eu mais gosto nas irmãs é que todas elas embarcam nas
maluquices da Mila. Por exemplo, todas aceitam a teoria da Mila
de que a Elvira é a encarnação da avó delas sem questionar.
— E sempre gostou de ruivos — Mila completa. — O vovô
era ruivo e aquele terceiro namorado dela depois que ele morreu
também era.

— Qual?

— Aquele que tinha nome de fruta…

— O Banana — Helena responde.

— Esse.

— Como você sabe? — Lara pergunta. — Ele tinha cabelo


branco.

— Ela me mostrou uma foto dele um pouco mais jovem, era


bem ruivo, igual ao Guga.

— Ela te mostrou foto? — Helena pergunta desconfiada. —


Por quê?

— Porque eu pedi pra ver, ué. A culpa não é minha que vocês
eram desgarradas da família quando ela estava viva.

— Enfim — Helena diz. — Agora a gente sabe por que o Guga


nunca quer voltar quando a gente traz ele aqui.

— Tadinho, vai ter que viver um amor à distância — falo.

— Quer dizer que agora ele é o vodrasto de vocês? — Sofia


brinca.

— Pra ser sincera, o Guga tem a personalidade melhor que a


do vovô — Helena comenta.

— Isso é possível? — Sofia pergunta. — Sem ofensas, Pati.


Apenas gesticulo com a mão algo como “de boas”.

— A Lena tinha que ter puxado essa doçura toda de alguém


— Mila comenta, arrancando uma risada de todos.

— Em defesa da Lena — Lara se manifesta —, ela só é rabu-


genta, o vovô era meio pilantra também.

— Ainda bem que me recuperei a tempo de vir ouvir esse


monte de desaforo — Helena ironiza.

— E a gente tá muito feliz que você está aqui para ouvir —


Luísa diz, cutucando a perna da Helena com o pé.

Logo Chiquinho e Murilo entram falando que toda decoração


externa está pronta. O Chiquinho está todo alegre e pelo que a
Sofia me contou, é porque a namorada dele aceitou passar o dia
de Natal com eles. Ela chega amanhã de manhã.

Fico feliz por ele, se tem um cara que merece ser feliz é o
Chiquinho.

— Ligaram do hospital — Chiquinho comenta. — A Luna


ganhou alta.

— A Luna está no hospital? — Helena pergunta, olhando arre-


galada para a Mila, então para o Murilo e depois para o Chiquinho.

— É — Chiquinho confirma. — Ela tava com diverticulite…

— Diverticulite???

— Eles acham que é porque ela andou comendo umas comidas


estragadas que achou no lixo da sede.

— A Luna tava comendo lixo?


A cara da Helena é de puro horror e acho que a Mila finalmente
fica com pena e explica:

— Luna, a cachorra da Sofia, não a minha filha. A minha filha


tá dormindo.

— Aaah!

— O hospital veterinário ligou — Mila esclarece.

— Bom, eu vou lá buscar ela — Sofia fala. — Você vem


comigo, amor?

— Claro — Luísa diz, saltando da poltrona em que estava.

Assim que as duas saem, seguidas do Chiquinho e do Murilo,


que nunca ficam parados muito tempo, Helena se vira para Mila:

— Você é a única pessoa que eu conheço que deu o nome de


um bicho pra própria filha.

— Isso não é verdade — Mila diz. — Eu conheci umas três


“Mel”, o que é um nome tradicional de cachorra. Também conhe-
ço umas duas “Bellinha”…

— Eu quis dizer um bicho que você convive — Helena corrige.


— Você já morava aqui quando engravidou.

— Ah! Bom, é verdade — Mila concorda. — Mas eu acho


que a Luna tem uma energia incrível e já está com 16 anos, logo
a passagem dela por esse mundo acaba. Pensei que essa era uma
boa forma de honrar uma alma tão pura.

Helena revira os olhos.

— Bom, você que explique pra sua filha daqui a alguns anos
que batizou ela em homenagem a uma cadela!
— Se você quer saber, a Luna e a Luna se dão muito bem. Tem
uma conexão única.

— Às vezes eu acho que a gente releva demais as suas loucu-


ras, sabe? — Helena comenta.

— E qual seria a alternativa?

— Te internar em um manicômio!

Mila apenas dá de ombros. Não parece se ofender nem dar


muita importância.

— E quem iria curar a sua gripe se ela estivesse internada? —


eu pergunto para a minha esposa.

— Como é?

— A Mila fez um reiki à distância e você melhorou rapidinho


depois disso.

— Como é? — Helena repete.

— A Luísa me falou que o negócio da Mila iria funcionar —


Lara conta. — Que eu não precisava me preocupar. E olha só você
aí firme e forte.

— Tá vendo? — falo para a Helena. — Você aí querendo in-


ternar ela e ela te ajudando.

— Cristo.

Todo mundo solta uma risada da cara dela.

***

Por causa das crianças — e dos adultos que não aguentam até
a meia-noite para comer — a ceia é servida lá pelas nove horas.

Sou obrigada a admitir que elas mandaram bem e está tudo


gostoso. Dá pra notar que foi feito por pessoas com pouca prá-
tica, porque tem coisas que já estão quase geladas e outras que
poderiam ter cozido um pouco mais. Mas o sabor está excelente
e os ânimos também. E é isso que importa.

Eu acho até difícil de imaginar como era a relação da Helena


com as irmãs antes daquele verão no Luneta, porque, para mim,
parece que elas sempre foram assim próximas.

Principalmente agora, nessa mesa cheia de gente falando, rindo


e se provocando. Estão na mesa: a Mila, o Murilo e a Luna (a filha
deles, não a cachorra da Sofia) na cadeirinha de criança; a Lara,
a Alícia, o Lucas e o Vicente; a Luísa, a Sofia e o Chiquinho; eu,
a Helena, o Ju e a Juju. Além da Elvira, do Guga, do Pudim, da
Luna (a cachorra da Sofia), do Paçoca e do Bartô (também ca-
chorros da Sofia), que estão rodeando a mesa na esperança de
ganhar algum agradinho.

Eu cresci em uma família unida, com tios e primos, mas não


era assim. Éramos unidos, mas acho que mais por hábito de se
ver do que por amor.

Mas sei que é essa a sensação que as pessoas almejam quando


falam que gostariam de ter uma família grande. E fico muito feliz
de poder passar o Natal com eles e poder fazer parte desse grupo.

Depois do jantar, decidimos começar a revelação do amigo se-


creto. A Lara tá organizando isso há meses e eu sinceramente nem
sei tudo que tem para “organizar”, sempre achei que era só sorte-
ar os papeizinhos e boa. Mas não ouso questionar ela sobre isso.

Então, como está uma noite limpa e agradável, nos reunimos


ao redor da fogueira do luau, que fica a alguns metros do pergo-
lado em que jantamos. Ninguém acende a fogueira, mas como o
Chiquinho já tinha instalado umas luzinhas de rua, o clima fica
tão aconchegante quanto se o fogo estivesse aceso.

— Eu começo! — Luísa dá um pulo e caminha até o centro


da roda.

Helena está ao meu lado, segurando a minha mão. Júlio está


no outro lado dela e Júlia no meu.

Eu peguei a Alícia, o que eu adorei, porque adoro comprar


presentes para crianças. É bem mais divertido e mais fácil do que
para adultos.

Comprei um par de patins para ela, que já está com cinco anos.
A Lara provavelmente vai querer me matar ou dar com os patins
na minha cabeça, mas dá última vez que a Alícia foi lá em casa
ela ficou obcecada pelos patins da Juju e não parou de falar disso.
E eu não me importo de ensinar ela a patinar. Eu, a Helena, o Ju
e a Juju patinamos quase todos os domingos no calçadão, e ela
poderá vir com a gente sempre que quiser.

— Bom, a minha amiga secreta — Luísa começa — é uma


mulher.

— Isso elimina só o Mu, o Chiquinho, o Vicente, o Lucas e o


Ju — Mila diz, parecendo mais animada do que as crianças com
esse momento.

— É uma mulher adulta.

Escuto a Alícia e a Juju soltarem algo parecido com uma bufada.

— É uma irmã sua? — pergunto, já que ainda pode ser eu.

— Sim, é uma irmã minha — ela confirma.

— Eu jurava que era eu, porque você não me deixou nem dar
uma espiadinha no que era — Sofia comenta.

— Isso é só porque você é linguaruda, amor, e ia acabar com a


surpresa — Luísa responde e Sofia revira os olhos, embora esteja
rindo. — Tá, a minha amiga secreta é mãe…

— Grande dica — Helena ironiza. — Nós três somos mães.

— … e é impaciente, rabugenta e mal-humorada — Luísa


acrescenta.

— Helena — todo mundo entoa ao mesmo tempo.

Helena solta uma risadinha meio sarcástica, mas se levanta e


abraça a irmã.

— Pô, Lena, como é difícil comprar presente pra você, vou


te contar. Mas espero que você goste — Ela entrega um pacote
quadrado e fino.

Quando Helena desembrulha, abre um sorriso.

Sim, um sorriso.

Pelo jeito a Lu acertou.

— Eu sei que você ficou com a vitrola do papai e que você


adorava quando ele colocava esse para tocar — Luísa aponta para
o disco que está agora nas mãos da Helena. — O que ele tinha
tava todo furado, aí achei esse num antiquário. Tá funcionando
direitinho, eu testei lá em casa.

— Eu adorei — Helena diz e finalmente mostra pra todo mundo.

É o disco Bookends do Simon & Garfunkel. A Helena adora


esse álbum, sempre escuta no carro.
— Tá… — Helena entrega o presente dela para mim e pega o
que ela trouxe. — É minha vez.

O presente dela é uma caixa quadrada de uns vinte centímetros,


mas parece bem pesada apesar do tamanho.

— A minha amiga secreta também é uma irmã minha.

— Que marmelada isso, hein — Chiquinho brinca.

— Também tô achando — comento.

— Vocês tem que entender que metade das pessoas aqui são
irmãs dela — Sofia comenta.

— Tem razão — Chiquinho fala. — Prossiga, Helena.

— Bom, como todas as três são tão diferentes e cada uma é


fora da casinha do seu jeito…

— Olha quem fala — Lara exclama. — Você é a mais esqui-


sita de nós quatro.

— O foco não sou eu, Lara. Não me interrompe.

— É uma cavala, mesmo — Mila comenta.

— É o próprio Scrooge — Luísa acrescenta.

— Enfim — Helena continua, sem dar bola. — Como eu ia di-


zendo, como cada uma é única à sua maneira, qualquer dica que
eu der, vocês irão acertar de cara. Por isso, antes eu queria apro-
veitar e comentar que, pra mim, esse é o Natal mais importante
desde que o papai morreu. Sei que passamos anos nos vendo por
obrigação e para agradar a mamãe, mas que se dependesse da
gente, cada uma estaria na sua casa…
— Com exceção da Mila — Lara fala.

— Com exceção da Mila — Helena repete. — Só que nos últi-


mos anos, graças às loucuras da mamãe, a gente não precisa mais
se obrigar a se ver. Agora a gente se reúne porque conseguimos
reencontrar aquele laço que existia quando a gente era criança e
que, por muito tempo, eu achei que tinha se perdido para sempre.
E esse Natal em especial é ainda mais importante para mim, porque
é o primeiro que eu passo não só com as minhas irmãs, mas com
os meus filhos e esposa — Ela sorri para mim e para os gêmeos
e sinto meu coração se derreter todinho. — E eu tô muito feliz
de estar aqui.

— Puta que pariu, Lena! Você vai me fazer chorar — Luísa


comenta.

— Que lindo isso, Lena! — Mila fala.

— Quem é o Scrooge agora? — Helena brinca.

Lara não fala nada, mas vejo ela enxugando uma lágrima. A
Helena adora pegar todo mundo desprevenido e mostrar que ela
se importa mais do que todos, embora disfarce isso muito bem a
maior parte do tempo.

— Bom e quem é a irmã, afinal? — Luísa pergunta.

— Ah! Sim, a minha amiga secreta é excêntrica, vegana e há


quem diga que eu só tô aqui agora porque ela me curou hoje.

— Mila! — Mais uma vez, todos respondem ao mesmo tempo.

Mila dá um pulo, parecendo uma criança, e corre até a Helena.

— Olha, eu achei que isso fosse a sua cara, e a mulher da loja


me garantiu que você iria gostar…
Mila logo rasga o papel da caixa e solta uma gargalhada quando
vê o objeto.

— O que é? — Juju pergunta.

Mila mostra e todos os adultos compartilham a risada dela.

É a cara da Mila.

— É uma bola de cristal — Mila fala para Juju.

— Tipo, de vidente?

— Isso.

— E funciona?

— Sim.

— Não.

Mila e Helena falam ao mesmo tempo.

— Porque você comprou se acha que não funciona, mamãe?

— Porque a tia Mila gosta dessas coisas e o que eu acho não


importa nesse caso.

— Mila, você tem certeza de que sabe usar esse negócio? —


Lara pergunta, olhando meio desconfiada para o objeto.

— Eu nunca usei, mas não deve ser tão difícil.

Ela meio que dá de ombros.

— Se tem alguém nessa família que saberia usar — Luísa fala


—, esse alguém é você.
— Até hoje quando eu lembro daquele dia que você, sei lá
como, descobriu que o meu pai e a mãe de vocês já tinham se
beijado, eu sinto um calafrio — Sofia conta.

— Isso faz muito tempo — Chiquinho se defende.

— Que história é essa? — pergunto.

— A Mila entrando em contato com o espírito da nossa mãe


na sede antiga e descobrindo o caso dela com o Chiquinho na
adolescência — Helena me explica.

— Não foi um caso — Chiquinho fala —, foi um beijo só.

— Como é… — pergunto. — Não, espera, eu prefiro não


saber detalhes.

— Enfim, espero que você goste — Helena diz para a Mila.

— Eu adorei — ela exclama, e puxa Helena para outro abraço.

Em seguida, Helena volta a se sentar ao meu lado e entrelaça


mais uma vez os nossos dedos. Me viro para ela, com um sorriso.

— O que foi? — ela me pergunta.

— Nada, você é muito fofinha, só isso — digo e dou um beijo


na bochecha dela.

Ela revira os olhos, mas logo vejo um sorriso se formando.

— O meu amigo secreto não é uma irmã minha…

— É um homem? — Chiquinho pergunta animado.

— Sim — ela diz. — Mas, em formação ainda.

— Uma criança? — Murilo deduz.


— Precisamente — ela concorda. — O meu amigo secreto
gosta de coisas radicais, do Homem-Aranha, e se não fosse por
ele, a Elvira não estaria aqui hoje…

— Sou eu! — Ju diz, animado.

— É você — Mila confirma e abre um sorriso.

Ju corre até ela e recebe um abraço.

Pelo formato do presente já dá para saber o que é, mas todos


deixam que ele abra antes de falar qualquer coisa.

— Eu sei que você já tem um, mas esse é personalizado —


explica Mila.

Quando o Júlio abre, vê um skate com o Homem-Aranha


na prancha. Mas em vez do Miles Morales, tem o rosto do Ju
desenhado.

— Que irado! Eu adorei, tia.

Mila dá mais um abraço nele e um beijo na testa antes de voltar


para o seu lugar.

Ju põe o skate do meu lado e pega o presente que ele trouxe.

— Hmm… o meu amigo secreto é na verdade uma amiga se-


creta — ele começa.

— Você tem certeza de que colocou o nome dos homens


adultos no sorteio, querida? — Vicente pergunta em tom de brin-
cadeira para a Lara.

— Parem de ser impacientes — Lara fala. — Nem as crianças


estão tão agoniadas.
Vicente, Murilo e Chiquinho trocam olhares e fazem uma careta
arrancando uma risada das crianças.

— Pode continuar, Ju — Luísa diz.

Ele segura o presente atrás do corpo e se balança de um lado


para o outro. Ele não é uma criança tímida, mas posso ver que
está nervoso ou ansioso.

— Eu conheci ela aqui no Luneta e ela sempre foi legal comigo


e com a Juju. Ela é bonita, carinhosa e sempre tem paciência para
me ensinar coisas novas e… — ele hesita.

— Acho que todo mundo já sabe quem é — Lara diz com


um sorriso amoroso para ele quando pausa. — Mas pode falar se
você quiser, Ju.

Não entendo direito. Todos os outros fomos nós que tentamos


adivinhar, mas com ele ninguém fala nada e deixam ele terminar
sozinho.

Ju parece respirar fundo antes de continuar:

— A minha amiga secreta é a minha mãe!

— Mas a Helena já foi — comento.

— Ele tá falando de você, sua tonta — Luísa fala.

De mim?

Sinto meus olhos enchendo de água imediatamente.

Ai, meu Deus.

Ele me chamou de mãe?


Ou eu tô delirando?

De repente, me viro para a Helena, preocupada que ela vá


achar ruim, mas ela me olha com um sorriso caloroso e assente
com a cabeça, me incentivando a levantar. Antes que eu possa
fazer isso, ela deixa um beijo no dorso da minha mão que estava
entrelaçada com a dela.

— Você me fez chorar — falo para o Ju quando chego perto


dele.

Me abaixo para ficar na sua altura e abro os braços para receber


ele em um abraço. Sinto ainda mais vontade de chorar.

Esse moleque, tinha que fazer isso em público!

Abraço ele tão forte, que fico com medo de ter quebrado os
ossinhos da costela dele.

— Isso sim é marmelada — Luísa grita, e começo a rir sobre


o ombro do Ju.

Quando nos afastamos, ele tem um sorriso lindo e eu devo estar


com a cara péssima, mas ele não parece ligar e me entrega o meu
presente. Dou um beijo na testa dele antes de aceitar.

Não importa o que seja, o meu presente eu já ganhei e nada


vai superá-lo.

— A mamãe me ajudou a escolher, mas eu acho que você vai


gostar.

Ele me entrega uma sacolinha pequena e, quando abro, tem


uma caixinha de joias. Dentro, encontro uma pulseira de ouro cheia
de pingentes pendurados.

— Eu sei que você gosta de pulseiras, porque sempre usa um


monte — ele explica. — E essa representa a nossa família.

Pego a pulseirinha e vejo que tem um gato, um cachorro, um


menino, uma menina e duas mulheres.

— Eu amei! — Falo e puxo ele para mais um abraço. — Você


me ajuda a colocar?

Ele assente com a cabeça e, com certa dificuldade, consegue


fechar no meu pulso.

— Obrigada, meu amor. Eu amei! — falo para o Ju mais uma


vez e ele volta para o seu lugar. — Bom, agora que o meu filho
me fez chorar em público, podemos seguir.

Escuto algumas risadas, então a brincadeira segue. Para ser


sincera, não consigo mais prestar muita atenção em nada que não
seja a minha esposa e os nossos filhos.

Agradeço a Deus — e ao reiki da Mila — por termos conse-


guido vir hoje.

Esse é o melhor Natal da minha vida.

***

Em algum momento, a Luísa aparece com um violão e começa


a tocar algumas músicas de Natal. Como está uma noite agradável,
ficamos aqui até que as crianças comecem a ficar com muito sono.

Nós e a família da Lara vamos dormir na sede do acampamen-


to, nos quartos que elas construíram para essa finalidade, mas a
Luísa e a Sofia preferem ficar na casa do Chiquinho com ele. E a
Mila, é claro, na sua casa.

Helena e eu damos boa noite para Ju e Juju antes de eles irem


dormir.
Não costumamos “colocar” eles para dormir, porque eles têm
a sua própria rotina à noite e já estão com quase treze anos, mas
hoje é um dia especial, então nos sentamos na beirada da cama
de cada um deles por alguns minutos.

— Amanhã vocês tem que acordar cedo, viu — Helena diz,


sentada na cama do Ju. — Pra gente tomar café da manhã lá na
tia Mila antes de abrir os presentes.

Apesar do amigo secreto, é claro que compramos presentes


para todo mundo, afinal se tem uma coisa que essa família gosta
de fazer é compras. Mas a troca de presente, seguindo o crono-
grama detalhado da Lara, acontece na manhã de Natal, depois do
café da manhã em família.

— Pode deixar — Ju fala. — A Juju já programou o desperta-


dor faz duas semanas.

Solto uma risada e passo a mão pelas tranças da Juju. Estou


sentada na cama dela.

— Durmam bem — falo para os dois. — Amanhã de manhã


esperem a gente para irmos juntos, tá bem?

Eu sei que eles estão ansiosos para a manhã de Natal, então


provavelmente estarão prontos antes de nós. Ainda mais que eu sei
que a Helena gosta de enrolar de propósito, só para irritar a Lara.

— Tá bom, mãe — Juju fala, e mais uma vez sou pega de


surpresa.

Sinto meus olhos umedecendo de novo. Como a Helena conse-


guiu se acostumar com isso? Tenho impressão de que vou chorar
até eles fazerem 85 anos.

— Feliz Natal, meu amor — falo para a Juju e deixo um beijo


na testa dela. Vejo Helena fazendo o mesmo no Ju.
Não sei se é o Natal, a minha família ou esse lugar, mas sinto
uma sensação imensa de paz enquanto eu e a Helena caminhamos
em silêncio até a nossa suíte, no final do corredor.

Passamos pelo quarto da Alícia e do Lucas, e escuto a Lara


contando uma história para os dois. Tem algo de reconfortante
no tom da voz dela lendo as páginas do livro para os filhos, e me
pego agradecida por ter ganhado não só filhos e uma mulher in-
crível, mas também cunhadas e sobrinhos e até alguns agregados.

Quando me dou conta, já estamos no nosso quarto. Helena


toma um banho quente, já que ficou no sereno muito tempo e
ainda está meio gripada, e eu resolvo fazer o mesmo.

Assim que saio do banho, Helena já está na cama me esperando.

— Que dia longo, né? — ela fala.

Me enfio embaixo do cobertor e me aconchego nela, deitan-


do a minha cabeça no seu peito e entrelaçando as nossas pernas.

— Muito.

Ficamos em um silêncio tranquilo por algum tempo, mas sinto


uma pontinha de ansiedade me atacando.

— Hmm… amor — falo, meio hesitante.

— Hã? — Ela parece meio sonolenta e noto que ela já estava


quase dormindo.

— Você, hmm, tá de boas com o que o Ju falou hoje?

— O que o Ju falou hoje? — ela pergunta, parecendo genui-


namente não saber do que eu estou falando. Ela ainda tem os
olhos fechados.
— Quando ele me chamou de… de mãe.

Ela finalmente abre os olhos e os foca em mim. Ela me estuda


por um tempo, então se vira de lado, fazendo eu ter que me mover
também e tirar a cabeça do seu ombro. Ficamos cara a cara, as
duas com a cabeça no travesseiro dela.

— Por que não estaria, amor?

Não sei direito por onde começar, mas agora sinto minha gar-
ganta meio fechada e meu peito pesado. Tento respirar fundo
antes de explicar:

— Por que foi você que… que adotou eles e, hmm, sei lá,
eu apareci depois e vocês tem um vínculo lindo… eu… eu não
quero… não quero me intrometer, mas eu amo eles…

Sou interrompida quando sinto os lábios dela nos meus. É um


beijo rápido, mais para me fazer parar de falar do que qualquer
outra coisa. Ainda assim é carinhoso o suficiente para acalmar um
pouco o meu coração.

Ela me olha com serenidade e, nesse momento, tenho certeza


de que ela não está zangada ou contrariada.

— Você também tem um vínculo lindo com eles. — Ela tem


uma mão na minha cintura e a outra sob a própria cabeça. — E a
gente é uma família, Pati. Não existe isso de meus filhos. Ou minha
família e a sua família. Somos uma família. São nossos filhos.
Nossa casa. Nossas coisas. Nossos bichinhos… Eu jamais teria
pedido você em casamento se eu não quisesse compartilhar tudo.

— Eu vou chorar de novo — falo, já chorando.

Ela me dá mais um beijo e me puxa para mais perto.

— Eu acho que chorei por três dias a primeira vez que a Juju
me chamou de mãe — ela confessa.

— Eles são igual a você, gostam de pegar a gente desprevenida.

Helena solta uma risadinha.

— É para ter mais impacto — ela comenta. — E se você quer


saber, o Ju tava super nervoso para esse momento, achando que
você não fosse gostar.

— O quê? Como eu não ia gostar.

— Foi o que eu falei para ele — Ela faz um carinho com a mão
que está na minha cintura. — No fundo, vocês dois estavam com
o mesmo medo. O que é uma tremenda besteira, porque é óbvio
que eles são loucos por você e você por eles.

— Você sabia desde o começo?

— Sabia, ele pediu a minha ajuda.

Fico sem saber o que responder, então respondo a única coisa


que sinto no momento:

— Eu te amo.

— Eu também te amo — ela diz e me dá mais um beijo.

— Eu tô muito feliz que a gente conseguiu vir hoje — digo.

— Eu também.

E como em um passe de mágica, toda a minha ansiedade se


esvai e fica só aquela sensação de paz que sentia antes. Ficamos
mais um tempo em um silêncio confortável. E só o quebro quando
me lembro de algo importante.
— Isso significa que você considera o Guga seu também?

Helena solta algo parecido com um grunhido e tenho certeza


de que revira os olhos, embora não consiga ver porque estou mais
uma vez no peito dela.

— Era o preço para ter você…

Solto uma risada e abraço ela pela cintura.

— Feliz Natal — digo.

— Feliz Natal, amor.

Fim.

Você também pode gostar