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Minha história de amores:

Anos 60...
José e Anita

Anos 80...
Daniel e André

Ano 2012...
Keli
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Numa pequena cidade, no interior de São Paulo,
morava uma menina morena que adorava ler.
Seus pais gostavam muito do hábito da menina
porque assim ela não ficava rondando fazendo
perguntas e atrapalhando-a nos seus afazeres.
Sua mãe, dona Laura, fazia bolos deliciosos e
os vendia para a cidades ao redor. Seu pai, senhor
Manoel, desempregado, era quem entregava os
bolos, num carro velho. Desempregado, não.
Desculpe a má informação. Entregador de bolos.
Os dois amavam o que faziam.
Assim os dias passavam. A menina ia para a
escola no período da manhã. Estava cursando o 4º
ano. Como já disse, gostava muuuuito de ler. Lia
todos os tipos de histórias: adorava ler histórias
que davam medo na alma e não dormir à noite.

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Na escola, na aula de leitura, ela lia contos de
terror. Lia para os colegas. Ela lia tão dramaticamente,
que todos a ouviam sem piscar e, qualquer barulho,
gerava gritos de susto.
Seu nome era Keli e, além de ler, ela estudava
música. Todas as tardes, ia até a casa da professora
Carla. Aprendia a tocar órgão e piano. Amava
tocá-los e fazer a música brotar dos teclados com
o toque dos seus dedos.

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A casa da professora Carla era enorme,
antiga e cheia de cômodos escuros. Todas as
outras crianças tinham medo dela porque diziam
que o pai de Carla, depois de morto, ainda
morava ali. E, para piorar, o cemitério ficava do
outro lado da rua.
Keli não se importava. Ela era a única aluna que
comparecia à casa da professora. As outras crianças,
que também estudavam música, solicitavam para
a professora ir até a casa delas.
Além de aprender música, Keli também
frequentava a biblioteca do pai de Carla. Ela
era enorme. Com paredes forradas de livros.
Andava pelo cômodo observando-os. Sorte
dela, porque na sua cidade não havia biblioteca,
nem livraria. A professora separava vários tipos
de livros. Keli levava-os para casa e lia-os com
muito prazer.
Keli adorava sorvete. No verão ou no inverno,
não faltava sorvete na sua casa, na geladeira. Quer
que ela faça alguma coisa, prometa sorvete. Seu
pai trazia sorvetes, de vários sabores, das cidades
onde entregava os bolos.

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Um dia, esqueceu-se do tempo tocando
no piano as novas partituras que a professora
passara para ela. Quando percebeu eram quase
seis horas. Começava a escurecer lá fora. Pediu
para a professora, que também estava perdida em
sonhos ouvindo Keli tocar divinamente, para ligar
e avisar sua mãe sobre o atraso. A mãe de Keli
não estava preocupada porque a cidade em que
moravam era tranquila e ela tinha muitos bolos
para fazer e entregar e não vira a hora passar.
Keli despediu-se da professora e atravessou a
rua para caminhar até a sua casa. Raramente via o
cemitério no lusco-fusco. Para outras pessoas seria
um momento de medo. Keli não se importava.
Caminhava olhando as sepulturas ao longe, o
cemitério não tinha muros, e cantarolava as
melodias que tocara ao piano.
Distraída, não ouviu o assobio na primeira
vez. Estava no final da calçada do cemitério e
ouviu pela segunda vez. Olhou para trás e viu
uma menina acenando para ela. Já estava escuro.
Parou e ficou esperando a menina se aproximar,
mas ela não se mexeu. Só acenava.
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Keli começou a caminhar em direção à menina,
mas ela se afastava. Parou na porta do cemitério.
Keli parou e ficou olhando a menina entrar no
cemitério. Estranhou muito. Virou-se e continuou
a caminhada para sua casa.
Ao chegar, viu seu pai estacionando o carro
e desceu com o embrulho do sorvete na mão.
Ficou pensando: qual seria o sabor dessa vez. Só
saberia no almoço do dia seguinte. Gostava do
suspense e da surpresa do sabor. Seu Manoel
nunca repetia.
Na tarde seguinte, comentou com a professora
de piano sobre a menina que vira no dia anterior.
A professora não estranhou, de modo algum,

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quando Keli disse o que vira. A professora ouviu
com atenção e sorrindo contou-lhe que aquela
menina morava em outra cidade. Ela tinha sido sua
aluna, ótima aluna, mas morrera de meningite. Os
pais, muito tristes, decidiram enterrá-la ali para não
ter quer vê-la no cemitério de sua própria cidade.
Depois, mudaram para outro estado.
No final da aula, a professora Carla entregou-lhe
dois livros: Matilda, de Roald Dahl, e Poliana, de
Eleanor H. Porter.
Ao chegar em casa, começou a lê-los e não
conseguiu parar. Dona Laura precisou tomar os livros
das mãos dela. Fingindo estar brava, disse-lhe para
ir para a cama.
Contrariada, Keli obedeceu.
Na aula comentou com a professora Alseli
sobre os livros que estava lendo. Alseli pediu
para ela levá-los para a aula e ler para as outras
crianças.
À tarde, ao voltar para casa, após a aula
de piano, caminhava pela calçada, olhando os
túmulos do cemitério, quando avistou a menina do
dia anterior acenando para ela perto da esquina.

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Sorrindo, Keli continuou caminhando em direção
à menina. Quando chegou perto, Keli ouviu a
menina falando dentro de sua cabeça.
Ela disse que gostava de ouvi-la tocando e que
isso a fazia lembrar-se das suas aulas ali. Amava
tocar, ouvir a música que o piano produzia. Sentia
muitas saudades. Ela, ao tocar, cumpria o desejo
dela sem saber. Perguntou o que Keli mais gostava
e ela respondeu, sem pensar: sorvete.
A menina sorriu e tocou-lhe o nariz. Keli
estremeceu um pouco e a menina entrou no
cemitério.
Ao chegar em casa, como sempre, Keli beijou
sua mãe.
– Argh, que nariz gelado – disse sorrindo-lhe.
Seu pai também estava em casa porque o
carro estava quebrado novamente. Ele a beijou e
fez uma careta brincalhona ao reclamar do nariz
gelado.
Na manhã seguinte, na escola, começou a ler
para os colegas a história da Matilda. Quando o
sinal bateu, indicando o final das aulas. Todas as
crianças reclamaram. Keli beijou Ketlyn e Erick que

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estavam perto dela. As duas crianças reclamaram
do nariz gelado e saíram correndo.
Ao chegar em casa, sua mãe estava muito
feliz. Havia ganhado, numa rifa, uma batedeira
planetária. Paquerava-a há muito tempo. Mas
estava além das suas posses.
Naquela manhã dona Anita a visitou. Estava
vendendo uma rifa de uma batedeira. O dinheiro
arrecadado, seria usado para comprar alimentos
para formar uma cesta básica para as famílias que
ainda sofrem por causa da pandemia. Era apenas
um real. Ela escolheu seu próprio nome: Laura. E
ganhou quando abriram a rifa. Já estava fazendo
bolos com ela.

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Keli almoçou vendo a mãe cantando e
olhando a batedeira trabalhar. Nunca vira a
mãe tão animada.
Depois de fazer as tarefas de casa que a
professora passara, disse tchau para a mãe, que
não a ouviu, tão encantada estava com a batedeira.
Ao chegar na casa da professora Carla, ela a
beijou como sempre e a professora, sorrindo, disse
que seu nariz estava gelado, igual a um sorvete.
Keli, tocou mais feliz do que nunca, porque
sabia que a menina estava ouvindo e sorrindo.
Ao chegar na escola, Ketlyn e Erick, estavam
radiantes. Ambos haviam ganhado o presente que só

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receberiam, talvez, em setembro, aniversário dos dois.
Ketlyn ganhou a boneca que tanto desejava (caríssima
por sinal) porque seu pai, Ailton, recebera um prêmio
inesperado na empresa em que trabalhava. E Erick
ganhou o carro de bombeiros, com controle remoto,
da sua mãe, Keila, muito caro também, porque ela
fora promovida na empresa onde trabalhava.
Keli, ficou muito feliz pelos dois. Sentou-se
em seu lugar e prestou atenção na aula. No final,
a professora Alseli a chamou e parabenizou-a pela
redação que ela fizera na semana passada. Como
sempre, fora a melhor. A professora a beijou e
sorrindo disse que ela estava com o nariz gelado.
No final da tarde, seu Manoel chegou em casa
sorridente. Elas estranharam porque normalmente
ele chegava sério, estressado: às vezes o carro
velho parava e dava muito trabalho fazê-lo voltar a
funcionar. Ele contou para elas que ele havia ganhado
um carro novo numa rifa que havia comprado no
mês passado e nem se lembrava mais. Pagou cinco
reais no número. E hoje, quando foi entregar um bolo
naquela cidade onde comprara a rifa, foi procurado
pelo seu José que lhe deu a maravilhosa notícia.

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Agora é vender o carro velho e fazer a documentação
do carro novo. Keli ouviu a história e sorriu vendo
seu pai e sua mãe se abraçarem felizes.
A escola estava diferente. Keli não estava
entendendo o que se passava. Via as professoras
sorrindo umas para as outras e conversando em
segredo. Todas as crianças estavam intrigadas com
o que viam. Quando a professora Alseli entrou,
Keli percebeu o sorriso enorme estampado na
face dela, e o brilho diferente no olhar.
As crianças estavam alvoroçadas. Nunca haviam
visto a professora tão diferente. Parecia que alguma
coisa maravilhosa acontecera. Passaram a aula
cochichando e se perguntando. No intervalo,
pediram para Keli perguntar para a professora o
porquê de tanta felicidade. Keli, também estava
morrendo de curiosidade. No meio da última aula,
levantou a mão. A professora, sorrindo, perguntou o
que ela queria. Keli disse que todos da sala estavam
morrendo de curiosidade. Alguma coisa acontecera.
– Todas as professoras e principalmente a
senhora estão muito diferentes. O que aconteceu?
– perguntou Keli.

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A professora Alseli sorriu, olhou para a
sala. Disse que depois de muitos anos tentando
finalmente realizara seu mais mais profundo
desejo: engravidar. Todos os médicos que procurara
desanimara-a. Diziam que ela tinha um problema
no útero e que por causa dele, jamais engravidaria.
Ontem, ao sair da escola, passou pela farmácia
para comprar um remédio para o marido. Viu
no balcão o aparelho para verificar a gravidez.

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Sem pensar, comprou. Ao chegar em casa, foi
preparar o almoço.
Quando o marido chegou à noite, jantaram
e conversaram sobre o dia deles. Na hora de ir
dormir, lembrou-se do teste de gravidez. Entrou
no banheiro e o fez. Começou a gritar.
O marido entrou assustado no banheiro,
achando que ela havia caído ou se cortado. Para
sua surpresa ela estava chorando e rindo ao
mesmo tempo. Mostrou o teste: grávida. Nunca
dormiu tão bem como naquela noite.
Ao chegar na escola, Alseli contou para todas
as professoras. Depois de muitos anos, finalmente
conseguira. Seria mãe.
A professora de piano, naquela tarde, estava
diferente. Sorria mais do que o normal. Keli, curiosa,
perguntou a razão dela estar tão sorridente. A
professora disse que sempre desejara mudar-se
daquela casa enorme. Sentia-se muito só. A casa
era muito grande e cheia de lembranças de sua mãe
e de seu amado pai. Sempre desejara vendê-la.
Mas não tinha coragem. O que faria com tantos
livros e tantas lembranças.
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Guardou no fundo da alma o sonho. Com os
livros sabia o que fazer: uma biblioteca pública.
Só não sabia como. Queria que as crianças da
cidade tivessem as mesmas oportunidades de ler.
Keli disse que as outras crianças tinham medo
da casa, do cemitério. Diziam na cidade que as
luzes da biblioteca ficavam acesas a noite inteira.
O fantasma do pai dela ficava lendo, assim como
em vida fazia. A história a entristecia.
Naquela manhã, para sua surpresa, o prefeito
da cidade, Daniel, o presidente da câmara de
vereadores, André e a secretária de cultura, Joice, a
havia visitado e fizeram uma proposta maravilhosa.
A cidade compraria a casa, derrubaria e construiria
um centro cultural no terreno. Incluindo aí, uma
biblioteca, aproveitando os livros do pai dela,
uma escola de música, para ela lecionar e outros
equipamentos culturais e sociais. O centro cultural
receberia o nome de seu pai, professor emérito da
faculdade de letras da cidade vizinha. A professora
aceitou no ato. Seu maior desejo se realizava.
Agora só faltava passar a lei de desapropriação pela
câmara dos vereadores. Já estava tudo certo, verba

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já separada, não havia volta. E mais uma coisa,
colocariam um muro alto ao redor do cemitério.
Sorrindo, Carla passou a nova lição para ela.
Na escola, Keli acabara de ler o livro da Matilda
para os colegas e começara a ler o livro da Poliana.
No final da aula, a professora sorriu para Keli
e pediu para ela aguardar um pouco. Ela disse
que sabia que estava grávida de uma menina, que
sempre fora sensitiva, e tinha certeza de que Keli
também era. Escolhera ser professora por causa
disso e tinha certeza de que a menina seguiria
o mesmo caminho. Ela sorriu, confirmando e a
beijou com seu nariz gelado.

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Na semana seguinte, Keli apareceu com uma
novidade na aula. Disse para a professora que ela
havia escrito uma história com a covid-19. Alseli achou
interessante porque o ano anterior fora muito difícil.
Ficaram vários meses sem aula, até desenvolverem
a vacina. Foi a maior tragédia no Brasil.
A professora disse que normalmente quem
lê muito acaba escrevendo, falando e pensando
com mais facilidade. Pode até tornar-se uma
escritora. Keli ficou olhando para a professora
com um sorriso, até que ela disse que ela poderia
ler a história na última aula.
No intervalo, Ketlyn e Erick, que sempre
brincavam com ela, estavam curiosos sobre a
história. Keli disse que os dois eram personagens
da história dela. Os dois insistiram para ouvir a
história, mas ela disse que só saberiam na hora.
Seria uma surpresa para os dois, já que eles eram
os melhores amigos dela.
Na última aula, a professora pediu para Keli
contar a história. Ela levantou-se. Abriu um papel
e começou. O título era:

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A fada Helena e o alquimista Francisco
contra a Covid-19

Era uma vez um lugar encantado onde as


pessoas eram muito felizes. Viviam com a rainha
Ketlyn, o rei Erick, fadas elfos e unicórnios.
No aniversário da rainha foi feito um grande
baile. Todas as fadas e bruxas foram convidadas.
A bruxa Corona morava num reino muito distante,
não recebeu o convite pois o pombo-correio se perdeu.
Ela ficou enfurecida quando soube que não
fora convidada para festa e lançou uma praga
sobre o reino: um vírus que ficou conhecido como
Covid-19.
O feitiço fez com que as pessoas do reino
adoecessem, principalmente os avós.
Elas sentiam cansaço, tinham tosse, febre alta
e dificuldade para respirar. Muitas delas tiveram
suas vidas roubadas pelo Covid-19.
O reino ficou muito triste. Todos os sábios
estudavam para descobrir como quebrar o encanto
do trágico feitiço.

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Um dia, a fada Helena, depois de muito
pesquisar nos livros de sua biblioteca, descobriu
uma maneira. Soube que as folhas de uma árvore
mágica curariam a doença. Então, voou com o
seu unicórnio encantado até a floresta da árvore
mágica. Chegando lá, contou para ela o que
estava acontecendo e que precisaria das suas
folhas para fazer a vacina para curar e proteger
as pessoas. A árvore cedeu.
A fada Helena retornou para o reino e entregou
as folhas para alquimista do rei, Francisco, fazer
o remédio.
Francisco trabalhou na fórmula durante meses.
Finalmente conseguiu neutralizar os efeitos do
vírus no corpo das pessoas do reino. Ninguém mais
morreria.
A rainha Ketlyn e o rei Erick autorizaram a
vacinação. Os cavaleiros do reino cavalgaram o
reino todo e vacinaram todas as pessoas, até as
crianças.
Francisco e a fada Helena foram homenageados
num grande baile no castelo.

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Em todos as cidades, o povo fez grandes festas
do abraço, para comemorar o fim da pandemia.

Keli olhou para a sala. Todos em silêncio. Viu


lágrimas escorrerem pelo rosto da professora.
Ninguém esquecera o ano passado.
A professora a abraçou e a sala pegou fogo.

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José Cláudio da Silva nasceu em Brasília
(DF), em 1959. Desde 1960 mora em São Paulo.
É professor aposentado de Língua Portuguesa.
Pela Scortecci publicou em 2015 “A adolescente
que ama ler”.
É autor de “Pai, posso dar um soco nele?”,
“O pacto maldito e outras histórias de morte” e
“Amar-go”. Mora em Cajamar numa casa cheia
de livros.

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Copyright© José Cláudio da Silva
10060/1 – 50 – 28 – 2021

O conteúdo desta obra é de responsabilidade do(s)


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CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO


SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

S58m

Silva, José Cláudio da


A menina que tinha o nariz gelado / José
Cláudio da Silva ; ilustração Mauro Freitas. - 1.
ed. - São Paulo : Scortecci, 2021.

ISBN 978-65-5529-636-5

1. Ficção. 2. Literatura infantojuvenil


brasileira. I. Freitas, Mauro. II. Título.

21-74078 CDD: 808.899282


CDU: 82-93(81)

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