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EDIÇÃO ESPECIAL: DESIGUALDADES - ANO 2022 | ISSN 2237-7506

O ATENDIMENTO AO ABORTO LEGAL ENQUANTO


POLÍTICA PÚBLICA: avanços, obstáculos e retrocessos no
Brasil
ATTENDING LEGAL ABORTION AS A PUBLIC POLICY: advances, obstacles
and setbacks in Brazil

Maria Clara de Mendonça Maia 1, Letícia Amédée Péret de Resende2

1
Mestranda em Ciência Política pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
2
Mestranda em Sociologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG.

RESUMO
Este artigo visa atualizar a discussão sobre a efetivação do direito ao aborto no Brasil para os
casos previstos por lei, tendo em vista a permanência dos desafios para essa efetivação, e a
identificação de um novo momento de disputas políticas em relação aos direitos sexuais e
direitos reprodutivos no país. A pesquisa, de natureza qualitativa e exploratória, propõe uma
abordagem histórica e descritiva da temática, apresentando e analisando os principais
marcos, avanços e retrocessos desde a redemocratização até o presente. Conclui-se que
persistem dificuldades no acesso ao aborto legal no Brasil, e que tais dificuldades são um
obstáculo substancial para o reconhecimento e a consolidação dos direitos sexuais e dos
direitos reprodutivos no país. Os avanços nos marcos legais e normativos foram e têm sido
muito paulatinos, sem a existência de grandes saltos ao longo dos anos. Ademais, no período
131
recente, o cenário de neoconservadorismo que se instaurou no Brasil, além de hostil ao
avanço desse direito, ameaça impor retrocessos que minariam as duras conquistas das
últimas décadas.

Palavras-Chave: Aborto legal; movimentos feministas; neoconservadorismo; políticas


“antigênero”.

ABSTRACT
This article aims to update the discussion about the enforcement of the right to abortion in the
cases provided by law in Brazil, in view of the ongoing challenges for this enforcement, as well
as the recognition of a new stage of political struggles related to sexual rights and
reproductive rights in the country. Based on a qualitative and exploratory model, the study
proposes a historical and descriptive approach to the subject, presenting and analyzing the
main milestones, advances and setbacks, from redemocratization to the present. The findings
indicate that there are persistent difficulties in accessing legal abortion in Brazil, and these
difficulties pose a substantial obstacle to the advancement of sexual rights and reproductive
rights. The improvements in legal and regulatory frameworks were and have been very
gradual, with no major leaps over the years. Furthermore, the neoconservative conjuncture
that was recently established in Brazil is not only hostile to the advancement of this right, but
also threatens to cause setbacks that would undermine the hard-fought achievements of
recent decades.

Keywords: Legal abortion; feminist movements; neoconservatism; “anti-gender” policies.


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1 INTRODUÇÃO

Remete ao período imperial a primeira legislação específica sobre o aborto no


Brasil, quando a prática foi criminalizada pelo Código Criminal do Império de 1830.
Décadas depois, em 1890, foi realizada atualização da referida legislação, prevendo
pena de prisão para as mulheres que interrompessem a gestação, mas trazendo
atenuantes para casos de estupro e autorizando o aborto em caso de risco de vida da
mulher. É o Código Penal de 1940 que estabelece a legislação ainda vigente,
tipificando o aborto como crime contra a vida, com exceção para casos em que não
há outro meio de salvar a vida da gestante ou se tratar de gravidez resultante de
estupro - quando assim for, o procedimento deve ser praticado por médico e
precedido de consentimento da gestante e, se incapaz, de seu representante legal.
Apesar da obrigatoriedade de o Ministério da Saúde assegurar o acesso aos serviços
de aborto legal às gestantes, a literatura aponta para a existência de falhas
persistentes na garantia do abortamento legal e humanizado (LOUREIRO, VIEIRA,
2004; MADEIRO, DINIZ, 2015; MUDJALIEB, 2020; SENAPESCHI, VIEIRA, MARIANO, 132
2021).
No Brasil, o embate em torno da pauta do aborto se fortaleceu principalmente
a partir da década de 1980, no bojo dos processos de redemocratização. O consenso,
entretanto, nunca foi uma realidade. Enquanto os movimentos feministas defendiam a
autonomia e a necessidade do reconhecimento e da efetivação dos direitos sexuais e
dos direitos reprodutivos, e pautavam o aborto enquanto um problema de saúde
pública, os movimentos conservadores, sobretudo religiosos atuavam contra qualquer
tipo de permissão para a interrupção da gravidez. A oposição dos movimentos
conservadores englobava inclusive os casos de abortamento legal já previstos no
Código Penal. Apesar disso, os movimentos feministas, tendo protagonizado as
reivindicações da legalização do aborto, se constituíram, naquele período, como um
dos atores centrais no debate político do tema e o principal ator comprometido com a
luta pela garantia de políticas públicas que permitam efetivar o direito ao atendimento
ao aborto legal.
Loureiro e Vieira (2004) e Mudjalieb (2020) apontam que, ainda que a
Constituição Federal de 1988 tenha garantido os direitos reprodutivos, reconhecendo-
-os como direitos básicos das e dos cidadãos, a maior parte dos serviços de saúde
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não foram preparados para atender casos de aborto legal. O despreparo é percebido,
sobretudo em situações que o abortamento se faz necessário por decorrência de
violência sexual. Nesses casos, quando a mulher consegue acesso a um serviço que
realiza o atendimento, é frequentemente solicitado a ela que apresente documento
comprovando a violação, como Boletim de Ocorrência (B.O.) ou laudo pericial. Isso
acontece ainda que a legislação não traga essa exigência. Além disso, é frequente a
indisponibilidade de profissionais para realizar o procedimento.
No que se refere ao contexto atual, Biroli, Machado e Vaggione (2020)
comentam que, embora as disputas políticas em relação às dimensões de gênero,
sobretudo aos direitos sexuais e aos direitos reprodutivos, sejam antigas, há algo
novo no enquadramento desses debates. Haveria uma nova atuação com uma
politização reativa à noção de gênero, aos direitos sexuais e aos direitos reprodutivos
(CORRÊA, PATERNOTTE e KUHAR, 2018; KÓVATZ e POIM, 2015; MORAGAS, 2020).
Em linhas gerais, os direitos sexuais relacionam-se com o livre exercício da
sexualidade, como prática da liberdade, como um domínio do amor e do prazer,
através da igualdade, da responsabilidade e da autonomia (CÔRREA e PARKER, 2004);
133
enquanto os direitos reprodutivos são entendidos como a autonomia e o controle dos
corpos, com a liberdade da decisão sobre a reprodução e em que momento
(PETCHESKY, 1999).
Diante da permanência de desafios para a efetivação do direito ao
abortamento nos casos previstos por lei, e da percepção do transcorrer de um novo
momento de disputas políticas em relação aos direitos sexuais e aos direitos
reprodutivos, em especial ao direito ao aborto, o presente artigo tem como objetivo
atualizar a discussão sobre a efetivação do direito ao aborto legal no Brasil para os
casos não puníveis pelo Código Penal. Trata-se de uma pesquisa qualitativa e
exploratória que, para a interpelação do objeto, propõe uma abordagem histórica e
descritiva da temática apresentando e analisando os principais marcos, avanços e
retrocessos desde a redemocratização até às recentes disputas políticas.
Para realizar o proposto, o artigo se organiza em outras quatro seções para
além da presente introdução. Na primeira delas, traça a trajetória da instituição do
direito ao abortamento no país, identificando os marcos normativos e legais do
Executivo Federal em relação à pauta e apresentando a experiência pioneira do
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Hospital Jabaquara, em São Paulo. Em seguida, para a compreensão das principais


disputas em torno da efetivação desse direito, pauta o agendamento político do tema
desde a redemocratização à “onda rosa”1. Por fim, em uma última seção analítica,
situa o período mais recente dessas disputas, apontando para os retrocessos de
caráter neoconservador em relação aos direitos sexuais e aos direitos reprodutivos,
para os limites que se apresentam nesse contexto e as possibilidades. Para concluir,
as considerações finais são acompanhadas de possíveis questões para pesquisas
futuras que pretendam se aprofundar no estudo do objeto.

2 O ESTADO BRASILEIRO FRENTE AO ABORTAMENTO NÃO PUNÍVEL NO PAÍS

2.1 PRINCIPAIS MARCOS LEGAIS E NORMATIVOS

Nesta primeira seção de análise serão apresentados os principais marcos da


instituição do direito ao aborto legal no Brasil, desde a redemocratização, para traçar
o panorama institucional do processo que se desenrola para a efetivação desse
direito. No âmbito federal, a primeira iniciativa no sentido de regulamentar a 134
efetivação do acesso ao aborto nos casos não puníveis pelo Código Penal se deu com
a proposição do Projeto de Lei n° 020/91. O PL dispunha sobre a obrigatoriedade de
atendimento dos casos de aborto legal no Sistema Único de Saúde (SUS), proposto
pelos deputados federais Eduardo Jorge e Sandra Starling. Não foi aprovado e os
serviços existentes seguiram baseando-se em portarias municipais ou estaduais.
Somente em 1999, dez anos após a instituição do primeiro serviço de aborto legal no
país no Hospital Jabaquara/SP, em 1989, ocorreu a primeira regulamentação
nacional, com a publicação da Norma Técnica “Prevenção e Tratamento dos Agravos
Resultantes da Violência Sexual contra Mulheres e Adolescentes” (BRASIL, 1989)
(MADEIRO, DINIZ, 2015). Talib e Citeli (2005) apontam que a norma teria sido
publicada após pressão do Conselho Nacional de Saúde e do Conselho dos Direitos
da Mulher, e que os movimentos feministas teriam contribuído para sua elaboração. A
Norma Técnica orientava os serviços de atendimento ao aborto legal no âmbito do

1
Balestro e Monteiro (2019) classificam a onda rosa como a ascensão de governos progressistas na
América do Sul após o desgaste político e social das reformas neoliberais dos anos noventa. “Alguns
destes governos, como nos casos do Brasil e Argentina, buscaram associar as políticas sociais e
redistributivas com tentativas de construção de uma estratégia de desenvolvimento econômico” (p.
45).
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SUS, para os casos de violência sexual, garantindo equipe multidisciplinar e exigindo a


apresentação de B.O., autorização da gestante, registro no prontuário médico e
informação à mulher da possibilidade de responsabilização criminal em caso de
apresentação falsa. Muitas discordâncias surgiram em torno da necessidade de
apresentação de documentos comprobatórios em caso de estupro e, em 2005, a
Norma Técnica foi reeditada, e passou a ser ilegal a necessidade de apresentação de
B.O. ou laudo do IML.

Ainda em 2005, foi publicada Norma Técnica de Atenção Humanizada ao


Aborto pelo Ministério da Saúde, contando com a participação de movimentos
feministas organizados e com especialistas da Coordenadoria de Saúde da Mulher do
Ministério da Saúde, a Rede Feminista de Saúde, o Comitê Latino-americano de
Direitos da Mulher, o Centro de Pesquisa Materno-Infantil de Campinas, a Associação
Brasileira de Saúde Coletiva e a Federação Brasileira de Sociedades de Ginecologia e
Obstetrícia (RIBEIRO, FONSECA, 2015).
As diretrizes estabelecidas na Norma Técnica seguem os compromissos
135
assumidos pelo Brasil na Conferência Internacional sobre População e
Desenvolvimento em Cairo, em 1994, quando a criminalização do aborto foi tratada
como grave problema de saúde pública, e abordam, por exemplo, aspectos legais e
éticos do aborto, planejamento familiar, oferecimento de apoio e informações, entre
outros. A normativa possui como fundamento a atenção clínica ao abortamento e o
planejamento reprodutivo pós-abortamento, com acolhimento e orientação. Ribeiro e
Fonseca (2015) ressaltam, entretanto, que não foram criados instrumentos de
avaliação do cumprimento da normativa no âmbito do SUS.
Embora tenha havido um aumento dos serviços de aborto legal
implementados no sistema de saúde brasileiro, Madeiro e Diniz (2016) mencionam
que dados do Ministério da Saúde confirmavam haver, em 2009, 60 serviços de
aborto previstos em lei estruturados no país. Segundo Fonseca et al (2020), o número
de abortos realizados na rede é inferior à demanda das mulheres que teriam direito ao
aborto legal e há desconhecimento por parte dos médicos sobre a legislação -
frequentemente exigem às mulheres, indevidamente, a apresentação de B.O., por
exemplo. Tendo em vista solicitações indevidas de documentações que afastam
mulheres que demandam a realização de abortamentos legais, o desconhecimento
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sobre a legislação e a quantidade insuficiente de locais onde é prestado serviço de


abortamento legal, ressalta-se haver um distanciamento entre o funcionamento dos
serviços de aborto legal no Brasil e o que é previsto nas normativas e legislações.
O Programa Nacional de Direitos Humanos (2010) prevê a responsabilização
da Secretaria de Políticas para as Mulheres e do Ministério da Saúde pelo
monitoramento dos serviços de aborto legal. Apesar disso, são observados
retrocessos, como a redução dos referidos serviços no país e a revogação da Portaria
nº. 415/2014 do Ministério da Saúde, que incluía na Tabela de Procedimentos,
Medicamentos, Órteses/Próteses e Materiais Especiais do SUS o procedimento de
interrupção da gestação previsto em lei. A referida revogação se deu através da
Portaria nº 437/2014, no dia 28 de maio, junto ao Dia Internacional de Luta pela Saúde
da Mulher e Dia Nacional de Redução da Mortalidade Materna.
Em 2012, o Supremo Tribunal Federal (STF) aprovou a ADPF nº 54,
autorizando a interrupção da gestação no caso de fetos anencéfalos, apresentada em
2004 pela Confederação Nacional dos Trabalhadores em Saúde, em parceria com
movimentos feministas.
136
A Tabela 1 sintetiza os principais instrumentos governamentais vinculados ao
atendimento ao aborto legal já publicados no Brasil:
Tabela 1 – Instrumentos governamentais já publicados pelo atendimento ao aborto legal

Ano Instrumento Detalhamento


Aborto provocado é crime contra a vida previsto no Código Penal
Código Penal
Brasileiro de 1940, nos artigos 124 a 127, exceto em casos de risco de
1940 Brasileiro (Decreto
vida para a mãe e de gravidez resultante de estupro, devendo ser
Lei nº 2848/1940)
praticado por médicos, conforme artigo 128.
Norma técnica - A mulher em situação de gravidez decorrente de violência sexual, bem
Prevenção e como a adolescente e seus representantes legais, devem ser
Tratamento dos esclarecidos sobre as alternativas legais quanto ao destino da gestação
1999 Agravos Resultantes e sobre as possibilidades de atenção nos serviços de saúde. É direito
da Violência Sexual dessas mulheres e adolescentes serem informadas da possibilidade de
contra Mulheres e interrupção da gravidez, conforme Decreto-Lei 2848, de 7 de dezembro
Adolescentes de 1940, artigo 128, inciso II do Código Penal Brasileiro.

Plano Nacional de Metas: reduzir em 5% o número de complicações de aborto atendidas


2004 Políticas para as pelo SUS e aumentar em 15% os serviços de atenção à saúde da mulher
Mulheres em situação de violência.

Norma Técnica - Um guia para apoiar profissionais e serviços de saúde e introduzir novas
2005 Atenção abordagens no acolhimento e na atenção, com vistas a estabelecer e a
Humanizada ao consolidar padrões culturais de atenção com base na necessidade das
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Abortamento - 1ª mulheres, buscando, assim, assegurar a saúde e a vida.


edição
Ações: apoiar técnica e financeiramente a organização dos serviços de
atenção ao aborto previsto em lei, apoiar a organização de Centros
II Plano Nacional de
Colaboradores para a atenção humanizada ao aborto, parto, nascimento
2008 Políticas para as
e as urgências e emergências maternas; definir e implementar
Mulheres
mecanismos de monitoramento dos serviços de atendimento ao aborto
legal, garantindo o seu cumprimento.
Norma Técnica -
Ampliação do acesso à atenção, auxiliando profissionais de saúde na
Atenção
organização de serviços e no desenvolvimento de uma atuação eficaz,
2011 Humanizada ao
qualificada e livre de julgamentos morais nos casos de abortamento,
Abortamento - 2ª
base de uma saúde pública de fato universal, integral e equânime.
edição
Protocolo para Utilização de Misoprostol em Obstetrícia, em linguagem
Protocolo
2012 técnica, dirigido a profissionais de saúde em serviços especializados,
Misoprostol
para agilizar os procedimentos e atendimentos.
Concede o direito ao aborto de fetos anencéfalos, que não têm
2012 ADPF nº 54 possibilidade de vida após o parto, sem necessidade de autorização
judicial.
“Nos dias 11 e 12 de abril de 2012, o Supremo Tribunal Federal (STF)
julgou procedente a Arguição de Descumprimento de Preceito
Norma Técnica - Fundamental (ADPF) nº 54, proposta pela Confederação Nacional dos 137
Atenção às Mulheres Trabalhadores da Saúde, e decidiu, definitivamente, que a mulher com
2014
com Gestação de gestação de anencéfalo poderá manter ou interromper a gestação, se
Anencéfalos assim o desejar, na rede pública ou no serviço privado de saúde.
Portanto, não é mais necessária qualquer autorização judicial para a
realização do procedimento” (BRASIL, 2014, p. 7).
Norma Técnica -
Atenção “No cerne da atenção integral e humanizada no SUS, é importante
Humanizada às garantir, com qualidade e respeito, a escolha das mulheres que sofreram
2015
Pessoas em violência sexual pelo abortamento assegurado pela legislação brasileira”
Situação de (BRASIL, 2015, p. 18).
Violência Sexual
Dispõe sobre o Procedimento de Justificação e Autorização da
Interrupção da Gravidez nos casos previstos em lei, no âmbito do
Sistema Único de Saúde-SUS.
Estabelece: Art. 1º, a obrigatoriedade pelo médico e demais profissionais
Portaria Nº da saúde notificarem à autoridade policial os casos em que houver
2020
2.282/2020 indícios ou confirmação de crime de estupro; em seu Art. 6º, o
esclarecimento da mulher sobre os desconfortos e riscos possíveis à
sua saúde; em seu Art. 8º, a equipe médica deverá informar à gestante
sobre a possibilidade de visualização do feto ou embrião por meio de
ultrassonografia.
Fonte: Elaboração própria.
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Desde a publicação do Código Penal de 1940, que excetua a tipificação do


aborto enquanto crime nos casos de risco de vida para a mulher e de gravidez
resultante de estupro, observa-se que os principais avanços em relação à
institucionalização do direito ao aborto se deram a partir de 1999, com a publicação
da primeira norma técnica com orientações para atendimento às mulheres no caso de
abortamento de gravidez resultante de estupro. Em seguida, outras normas técnicas e
protocolos foram publicados para orientar o atendimento dos casos de aborto legal
no âmbito do SUS, e metas e ações vinculadas ao direito foram instituídas através de
Planos Nacionais de Políticas.
O principal retrocesso identificado ocorreu em 2020 com a publicação da
Portaria Nº 2.282/2020 que, ao dispor sobre o procedimento de justificação e
autorização da interrupção da gravidez nos casos previstos em lei, no âmbito do SUS,
estabelece, entre outras coisas, a obrigatoriedade de profissionais da saúde
notificarem à autoridade policial sobre casos em que houver indícios ou confirmação
de estupro; a necessidade da gestante assinar um Termo de Relato Circunstanciado
com o relato do estupro, com advertência expressa sobre a previsão dos crimes de
138
falsidade ideológica (art. 299 do Código Penal) e de aborto (art. 124 do Código Penal);
assim como disponibilização pela equipe médica da possibilidade de a mulher
visualizar o feto ou embrião por meio de ultrassonografia. Dessa forma, avalia-se
haver uma tentativa de constranger as equipes médicas e as mulheres que optam por
realizar aborto legal.

2.2 O PIONEIRISMO DA EXPERIÊNCIA DO HOSPITAL JABAQUARA

A primeira experiência de implementação de serviço de abortamento legal no


Brasil ocorreu no Hospital do Jabaquara em 1989, onde a Prefeitura de São Paulo
implementou o serviço para casos de estupro, exigindo, naquele momento, a
apresentação do Boletim de Ocorrência (B.O.) e do laudo da perícia do Instituto
Médico Legal (IML). Sua implementação ocorreu dez anos antes da publicação da
primeira Norma Técnica de regulamentação do serviço em nível federal.
Talib e Citeli (2005) apontam o pioneirismo da experiência do Hospital
Jabaquara em 1989, sobretudo pela atuação dos movimentos feministas brasileiros
que, desde a década de 1980, lutavam por políticas públicas que garantissem os
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direitos sexuais e os direitos reprodutivos. A Prefeita da cidade de São Paulo, Luiza


Erundina (PT) tinha relação com os movimentos feministas e, à época, o então
Secretário de Saúde Eduardo Jorge nomeou Maria José Araújo, uma médica
feminista, para chefiar o Programa de Saúde da Mulher. No âmbito deste programa, a
feminista negra Edna Rolland coordenou a implantação dos serviços de aborto legal
nos hospitais municipais.
Foram realizadas sondagens nos hospitais quanto à sensibilização sobre o
tema entre os profissionais; seminários que contavam com feministas, advogados e
representantes de federações e conselhos médicos; e consulta formal a órgãos como
a Organização dos Advogados do Brasil, a Comissão da Mulher Advogada e o
Conselho Regional de Medicina. Minuta de Portaria reguladora foi encaminhada à
Procuradoria Geral do Município, que emitiu parecer favorável em 16 de maio de 1989.
O serviço foi instituído pela Portaria nº 692/1989, que obrigava os hospitais
municipais a prestarem atendimento médico para os casos de abortamento previstos
no Código Penal. Naquele momento, para os casos de estupro, a gestante deveria
apresentar BO e laudo do IML, em que a agressão não poderia ultrapassar quinze dias
139
e deveria ser atendida por equipe multidisciplinar.
O Hospital Jabaquara foi escolhido para a implantação do serviço devido à
maior sensibilização entre os profissionais da saúde, e o serviço foi inaugurado em 12
de agosto de 1989. Ressalta-se que, apesar dos esforços da equipe responsável da
Secretaria de Saúde, o segundo serviço municipal somente foi implantado onze anos
depois.
Com a mudança na Prefeitura de São Paulo, que passou a ser ocupada por
Paulo Salim Maluf, instituições religiosas e jurídicas passaram a acionar a prefeitura
frequentemente, com denúncias de realização de aborto ilegal na rede e solicitações
de apuração pelo Ministério Público. Ainda em 1994, houve processo de
criminalização e descredibilização de profissionais que realizavam os serviços. Talib e
Citeli (2005) informam que, de acordo com a equipe técnica, a capacitação para
realização dos procedimentos de interrupção legal da gravidez foi realizada por um
coletivo feminista, em parceria com uma agência internacional de apoio à saúde
reprodutiva e o treinamento para utilização do método de aspiração manual
intrauterina foi realizado em outro país.
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3 O AGENDAMENTO POLÍTICO DO ATENDIMENTO AO ABORTO LEGAL NO BRASIL


DA REDEMOCRATIZAÇÃO À “ONDA ROSA”: MOVIMENTOS FEMINISTAS EM
INTERAÇÃO COM O ESTADO

A ação política dirigida ao Estado, objetivando inserir determinados temas na


agenda decisional dos governos, tem feito parte do repertório de ação dos
movimentos sociais (TILLY, 1978). Para discutir o agendamento político, este trabalho
parte da perspectiva de Kingdon (1995), que classifica a agenda como “uma lista de
assuntos ou problemas na qual os oficiais governamentais e as pessoas de fora do
governo proximamente associadas aos primeiros, prestam seriamente atenção em
um determinado tempo” (KINGDON, 1995, p. 4). A agenda pode ser entendida,
portanto, como o conjunto de problemas inseridos no debate público que são objeto
de controvérsia e exigem intervenção da autoridade pública.
Para a compreensão das principais disputas em relação à efetivação do
direito ao aborto não punível no Brasil, importa mencionar, mais especificamente, a 140
movimentação de feministas reivindicando o reconhecimento do aborto enquanto um
problema de saúde pública e a necessidade de intervenção estatal por meio de
políticas públicas para a garantia do aborto legal. As feministas se dirigem ao Estado
tanto com ações extrainstitucionais reivindicativas - atos públicos, por exemplo -
quanto se inserindo em instâncias participativas por ele engendradas - onde insistem
em pautar o problema e situá-lo dentre as preocupações governamentais.
Ainda que ações de natureza intrainstitucional tenham adquirido maior
centralidade no repertório de movimentos feministas em determinadas épocas e, em
outras, retraído, havia em alguma medida, desde a redemocratização, a crença de que
seriam possíveis avanços, ao pressionar o Estado, na legislação sobre o aborto e nas
políticas públicas de garantia à realização do aborto legal nos casos previstos em lei.
Por mais que os embates com grupos conservadores e neoconservadores
permanecessem, a arena institucional e os espaços engendrados pelo Governo
Federal eram tidos como ambientes onde se deveria travar a disputa política e
pressionar para o reconhecimento e efetivação desses direitos. No âmbito do Estado
e nas arenas internacionais de encontro, os conflitos eram mediados e alguns
avanços foram alcançados.
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A Tabela 2 apresenta uma síntese dos principais marcos e eventos de diálogo


entre os movimentos feministas e o Estado, nos quais os direitos sexuais e os direitos
reprodutivos foram pautados. São identificados também os responsáveis pela
convocação e os produtos desses encontros, quando se aplica.
Tabela 2 – Direitos sexuais e direitos reprodutivos em pauta: principal marcos e eventos de
diálogo entre movimentos feministas e o Estado Brasileiro
Ano da Responsável pela
Atividade/Evento Resultado
Convocação Convocação
Comissão para Documento “Assistência Integral à
1983 elaborar política de Ministério da Saúde Saúde da Mulher: Bases de Ação
saúde da mulher Programática”
Documento público de avaliação do
Encontro sobre Saúde,
Casa da Mulher do Encontro. Presença de 300
1983 Sexualidade,
Rio de Janeiro representantes de 57 grupos de
Contracepção e Aborto
mulheres e de parlamentares.
Criação do Conselho
1985 Nacional dos Direitos Executivo Federal Não se aplica
das Mulheres (CNDM)

1985
Encontro Nacional de
Mulheres
CNDM
Carta das Mulheres aos Constituintes
(Constituição de 1988)
141
I Conferência Nacional
1986 de Saúde e Direitos da Ministério da Saúde Relatório final
Mulher
Criação da Comissão Posicionamentos sobre diversos temas
1986 de Estudos sobre Ministério da Saúde (esterilização em massa, norplant,
Direitos Reprodutivos aborto...)
Conferência
Internacional sobre
1994 População e ONU Plataforma de Ação
Desenvolvimento
(CIPD-Cairo)
Conferência sobre a
1995 ONU Plataforma de Ação
Mulher (Beijing)
Comissão
Organizadora
Conferência Nacional
2002 Nacional composta Plataforma Política Feminista
de Mulheres Brasileiras
pelo Poder Público e
pela Sociedade Civil
Elaboração da Política Pacto Nacional pela Redução da Morte
Ministério da Saúde
Nacional de Atenção Materna e Neonatal - Política Nacional
2003 (Área Técnica de
Integral à Saúde da de Direitos Sexuais e Direitos
Saúde da Mulher)
Mulher (PNAISM) Reprodutivos
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Secretaria de Política
I Conferência Nacional
para as Mulheres do I Plano Nacional de Política para as
2004 de Política para as
Governo Federal Mulheres (2005)
Mulheres (CNPM)
(SPM) e CNDM
Pré-proposta de projeto de lei para a
2005 Comissão Tripartite SPM e CNDM
descriminalização do aborto
II Plano Nacional de Política para as
2007 II CNPM SPM e CNDM
Mulheres (2008)
Plano Nacional de Política para as
2011 III CNPM SPM e CNDM
Mulheres 2013-2015

2015 IV CNPM SPM e CNDM Relatório Final

Fonte: Adaptado de BATISTA, 2012, com informações acrescentadas pelas autoras.

A Tabela 2 permite observar os variados momentos, desde a


redemocratização, para os quais os movimentos feministas foram convocados ou se
envolveram em ações em diálogo com a institucionalidade para contribuir com o
agendamento e o avanço da pauta dos direitos sexuais e dos direitos reprodutivos.
A primeira instância retomada pela Tabela 1, a comissão convocada pelo
Ministério da Saúde para elaborar a política de saúde da mulher, se desdobrou na
142
elaboração, em 1983, do documento “Atenção Integral à Saúde da Mulher: bases de
ação programática”. Esse documento serviu de apoio para o Programa de Assistência
Integral à Saúde da Mulher (PAISM). O PAISM foi a primeira política pública a abordar
a saúde da mulher de forma integral, contemplando todos seus ciclos de vida e
avançando no entendimento sobre os direitos sexuais e, sobretudo, direitos
reprodutivos, com a inserção de ações de planejamento familiar, assistência médica
ginecológica e opções de contracepção. No ano seguinte à publicação do documento
“Atenção Integral à Saúde da Mulher: bases de ação programática”, ocorrida em 1984,
é criado, em 1985, o Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM), composto
tanto por atores estatais quanto por movimentos feministas e outros atores da
sociedade civil.
Tendo em vista os intensos debates em torno da nova Constituição a ser
formulada na década de 1980, que traria consigo o novo regramento jurídico a balizar
a sociedade brasileira, as feministas elaboraram no âmbito do CNDM, em 1986, a
“Proposta à Assembleia Constituinte”. O CNDM ainda convocou o Encontro Nacional
de Mulheres, momento em que foi elaborada a Carta das Mulheres aos Constituintes.
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A Carta reivindicava, entre uma miríade de pautas que organizam a vida das mulheres,
a legalização do aborto e a inserção dos direitos sexuais e dos direitos reprodutivos
nas políticas de saúde. Em paralelo e em oposição à movimentação das feministas,
os movimentos conservadores e religiosos tentaram inserir na nova Constituição a
garantia do direito à vida “desde a concepção”. A bancada da Assembleia Constituinte
era composta por vinte e seis mulheres que, conjuntamente, apresentaram trinta
emendas sobre os direitos das mulheres demandadas pelos movimentos feministas
através do CNDM (PINTO, 2003). Os movimentos feministas, embora não tenham
conseguido avançar com a ampliação do direito ao aborto, garantiram que o termo
“desde a concepção” fosse barrado.
Posteriormente, no final da década de 1980, com o avanço da ofensiva
conservadora sobre as pautas feministas e com o debate no Legislativo emplacado
pela Igreja Católica com apoio dos parlamentares evangélicos que visavam
criminalizar o aborto mesmo naqueles casos já previstos por lei, a estratégia
feminista passou a ser a de, por um lado, impedir retrocessos na legislação vigente
(ROCHA, 2006) e, por outro, implementar serviços de atendimento às gestantes que
143
desejassem o abortamento e se enquadrassem nos casos legais para abortamento.
Na década de 1990, a V Conferência Internacional de População e
Desenvolvimento do Cairo (1994) e a IV Conferência da Mulher em Pequim (1995),
convocadas pela Organização das Nações Unidas (ONU), mobilizaram as feministas
brasileiras para participação. Nas Plataformas de Ação decorrentes desses eventos -
das quais o Brasil foi signatário -, os direitos sexuais e os direitos reprodutivos foram
inseridos no âmbito dos direitos humanos e que, portanto, deveriam ser garantidos
pelas legislações nacionais e seus serviços de saúde. Corrêa e Kalil (2020) apontam
que as duas Conferências criaram um momento político oportuno para visibilizar a
questão do aborto enquanto um problema de saúde pública.
Ainda na década de 1990, entretanto, o governo federal brasileiro reduziu os
veículos institucionais de diálogo com os movimentos sociais, e o CNDM teve atuação
limitada em relação ao período da sua criação. Em paralelo, os movimentos
feministas articularam sua atuação em redes temáticas. Uma delas, a Rede Nacional
Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e Reprodutivos criou, nos anos 2000, as
Jornadas Brasileiras para o Aborto Legal (Sileira et al, 2018), uma coalizão de
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movimentos feministas que pautava a defesa dos direitos sexuais e dos direitos
reprodutivos.
Nos anos 2000 a América Latina vivenciou a conhecida “onda rosa”, com a
eleição e gestão de governos progressistas e, no caso brasileiro, dos governos do
Partido dos Trabalhadores (PT) (2003-2016). Corrêa e Kalil (2019) apontam para o
período dos governos petistas, de um giro à esquerda iniciado em 2003, como
favorável à recepção pelo Estado de demandas da sociedade civil, incluindo àquelas
relacionadas ao gênero e à sexualidade, e de ampliação das instâncias participativas.
No primeiro ano de gestão do PT foi criada, com status de ministério, a Secretaria
Especial de Políticas para as Mulheres (SPM), responsável por convocar as
Conferências Nacionais de Políticas para as Mulheres (CNPM). É nas conferências
que são discutidos, elaborados e aprovados os Planos Nacionais de Políticas para as
Mulheres. Nesse sentido, as CNPM são eventos importantes para a inserção, na
institucionalidade, de pautas caras às feministas, inclusive as vinculadas aos direitos
sexuais e aos direitos reprodutivos. Segundo Matos e Paradis (2014), os Planos
Nacionais produziram uma espécie de “efeito cascata”, desencadeando programas
144
específicos a nível local, voltados para a superação das desigualdades de gênero.
Os três Planos Nacionais de Políticas para as Mulheres contam com capítulo
voltado para a saúde das mulheres, direitos sexuais e reprodutivos, e com capítulo
voltado para o enfrentamento à violência contra as mulheres. No caso do I PNPM, os
objetivos ligados à saúde das mulheres, aos direitos sexuais e reprodutivos envolvem,
entre outros, promover a melhoria da saúde das mulheres brasileiras mediante a
garantia de direitos legalmente constituídos e a ampliação do acesso aos serviços de
assistência, e garantir os direitos sexuais e direitos reprodutivos das mulheres. Como
um dos passos para alcançar esses objetivos figura reduzir em 5% o número de
complicações de abortamento atendidas pelo SUS. Ainda, dentre as prioridades,
consta promover a atenção obstétrica, qualificada e humanizada, inclusive a
assistência ao abortamento em condições inseguras para mulheres e adolescentes, e
a revisão da legislação punitiva que trata da interrupção voluntária da gravidez. Se
tratando do enfrentamento à violência contra as mulheres, é indicado como passo
necessário aumentar em 15% os serviços de atenção à saúde da mulher em situação
de violência (BRASIL, 2006).
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No II PNPM, em seu capítulo voltado para a saúde das mulheres, direitos


sexuais e direitos reprodutivos, figura como uma das prioridades a promoção da
assistência obstétrica qualificada e humanizada, incluindo a atenção ao abortamento
inseguro de forma a reduzir a morbimortalidade materna. O Plano de Ação dessa
prioridade envolve apoiar técnica e financeiramente a organização dos serviços de
atenção ao aborto previsto em lei, e apoiar a organização de Centros Colaboradores
para a atenção humanizada ao aborto, parto, nascimento e as urgências e
emergências maternas. No capítulo voltado para o enfrentamento de todas as formas
de violência contra as mulheres, consta como uma das prioridades promover a
atenção à saúde das mulheres em situação de violência com atendimento qualificado
ou específico, e integra o Plano de Ação dessa prioridade definir e implementar
mecanismos de monitoramento dos serviços de atendimento ao aborto legal,
garantindo o seu cumprimento (BRASIL, 2008).
O Plano Nacional de Política para as Mulheres 2013-2015, em seu capítulo
que versa sobre a saúde das mulheres, direitos sexuais e direitos reprodutivos, tem
como uma das metas disponibilizar e ampliar os serviços de atenção integral à
145
interrupção da gravidez nos casos previstos em lei. Ainda, como uma das linhas de
ação, a implementação da assistência em planejamento reprodutivo no âmbito da
atenção integral à saúde, bem como a garantia dos direitos sexuais e dos direitos
reprodutivos das mulheres. Em outra linha de ação, chega a versar especificamente
sobre a ampliação e a qualificação dos serviços da rede de saúde de atenção às
mulheres e adolescentes em situação de violência doméstica e sexual, incluindo a
interrupção da gravidez prevista em lei. No capítulo sobre o enfrentamento à violência
contra as mulheres, consta como um dos objetivos específicos prestar atendimento
às mulheres que têm seus direitos humanos e sexuais violados, garantindo os direitos
sexuais e os direitos reprodutivos na perspectiva da autonomia das mulheres sobre
seu corpo e sobre sua sexualidade (BRASIL, 2013).
O Relatório Final da IV CNDM, por sua vez, não se trata de um documento
com objetivos, metas e linhas de ação, como os Planos Nacionais, mas consolida
propostas aprovadas na conferência. Dentre elas, constam: trabalhar visando a
garantia e a ampliação dos direitos reprodutivos, e pelo reforço e ampliação dos
serviços de aborto legal e de atendimento humanizado para mulheres que chegam às
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unidades de saúde em processo de abortamento; e garantir o acesso à interrupção da


gravidez de acordo com os permissivos legais; realizar revisão do Código Penal que
criminaliza o aborto, garantindo as mulheres o direito ao aborto seguro na rede
pública, bem como o pronto atendimento aos casos previstos na legislação atual
(BRASIL, 2016).
Apesar da inserção, ao longo desses anos, da pauta da garantia do
abortamento seguro para os casos previstos em lei em Planos Nacionais de Políticas
para as Mulheres, elaborados a partir do Executivo, no Legislativo o embate foi mais
acirrado. O crescimento da bancada evangélica e religiosa na Câmara dos Deputados
tem obstaculizado o agendamento do problema do aborto enquanto pauta na qual se
precisa avançar para que os direitos sexuais e os direitos reprodutivos das mulheres
sejam garantidos. Exemplo disso é a criação, em 2005, da Frente Parlamentar em
Defesa da Vida e Contra o Aborto, vigente ainda hoje, que tinha como objetivo
acompanhar e fiscalizar as políticas públicas relacionadas aos direitos à vida do
nascituro e à prática do aborto. Dificuldades para esse agendamento se reforçam
com o declínio da “onda rosa” e o avanço neoconservador no país.
146
4 NEOCONSERVADORISMO E POLÍTICAS “ANTIGÊNERO”: LIMITES E
POSSIBILIDADES DO MOMENTO RECENTE

Para atualizar a discussão sobre a efetivação do direito ao aborto não punível


no Brasil faz-se necessário compreender os possíveis retrocessos e disputas em
relação aos direitos sexuais e aos direitos reprodutivos no período mais recente.
Em 2016, com a retirada ilegal de uma presidenta democraticamente eleita e o
esgotamento do ciclo político progressista, observa-se a ampliação massiva dos
movimentos neoconservadores no país, que culmina, em 2018, com a eleição do
Presidente Bolsonaro, que colocou as pautas “antigênero” no centro da agenda
eleitoral e de governo. O termo neoconservadorismo permite caracterizar o
recrudescimento do conservadorismo político e social no contexto atual, apontando
as diversas coalizões que sustenta-os nos diferentes contextos, organizado pela
racionalidade política de regulação da moralidade sexual por princípios religiosos
(BROWN, 2006; BIROLI, MACHADO e VAGGIONE, 2020).
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O neoconservadorismo religioso tem crescido e feito avançar suas pautas e


discursos, encontrando guarida em espaços político-institucionais, liderados por uma
extrema direita que têm no centro de sua agenda cruzadas contra a “ideologia de
gênero”. Essa extrema direita é a mesma que constrói um projeto neoliberal a partir da
erosão do público, operada por um modelo duplo de privatização: tanto pela
privatização propriamente econômica, que em nome de uma lógica de mercado
sucateia o que é público e beneficia o privado, quanto pela privatização por meio da
familiarização e da cristianização.
Os papeis tradicionais de gênero adquirem centralidade quando a esfera
pública deixa de ser reconhecida como um âmbito legítimo de construção de
solidariedade e de promoção de agendas de justiça social, e a realidade vivida em
coletividade deixa de fazer sentido em prol do entendimento de que seria a família o
único e fundamental espaço em que o indivíduo deva encontrar suporte e ter suas
necessidades atendidas (BIROLI, 2020; BROWN, 2020). Nesse sentido, debates que
politizam a esfera privada e o trabalho reprodutivo – tanto em sentido biológico
quanto social –, e a luta pelo reconhecimento do direito à autonomia sexual e
147
reprodutiva, ameaçam uma ordem necessária para a manutenção e o
prosseguimento do avanço neoliberal e corrosão do público.
A ideia da ameaça constante da “ideologia de gênero” passou a fazer parte do
discurso popular e tem tido papel fundamental na eleição de políticos autoritários e de
extrema direita ao redor do mundo (BROWN, 2020), como no caso brasileiro, com a
eleição de Jair Bolsonaro à Presidência. As feministas e os demais sujeitos políticos
que pretendem avançar com as garantias de autonomia e igualdade de gênero
passam a ocupar esse lugar de invasores que ameaçam a ordem e que precisam,
portanto, ser derrotados, em nome de um suposto funcionamento adequado da nação
e da vontade do “povo”. Nesse sentido, a “ideologia de gênero” se tornou slogan de
políticos de extrema direita que buscam se autointitular salvadores da pátria e
defensores das crianças e das famílias (KOVÁTS; PÕIM, 2015; BIROLI, 2018).
Entre o guarda-chuva compreendido como “ideologia de gênero”, estão as
políticas de educação sexual, reivindicações pelo acesso adequado a políticas de
planejamento familiar e a métodos contraceptivos, e pela descriminalização do
aborto. O conceito, na verdade, respalda uma oposição mais ampla aos direitos das
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mulheres e de pessoas LGBTQIA+, e à igualdade de gênero como uma dimensão


fundamental para a construção das democracias.
No Brasil, a mobilização da ideia de haver uma “ideologia de gênero” pairando
e agindo como uma ameaça sobre a nação, e a proposição de políticas “antigênero”
que minam direitos conquistados, são anteriores à eleição de Bolsonaro para a
Presidência da República. O Projeto de Lei nº 5.069, de 2013, de autoria do Dep.
Eduardo Cunha (PMDB/RJ) e outros, que recrudesce a tipificação penal em torno da
orientação sobre práticas abortivas, traz em sua justificativa uma argumentação que
atrela as reivindicações por direitos sexuais e por direitos reprodutivos, e pela redução
das situações de abortamento inseguro, a uma ofensiva internacional contrária aos
desejos da maioria esmagadora do povo brasileiro, que repudiaria a prática do aborto.
No texto do referido Projeto, consta que o fomento ao aborto ilegal seria uma
estratégia das “(...) poderosas entidades internacionais e supercapitalistas,
interessadas numa política neomalthusiana de controle populacional" (BRASIL, 2013).
Aponta que "(...) os meios para o controle e redução da população mundial passaram
a ser apresentados com uma roupagem feminista, sob o paradigma dos chamados
148
‘direitos sexuais e reprodutivos’” (BRASIL, 2013), enquanto qualquer iniciativa para a
adoção de práticas de redução de danos causados pela prática do abortamento seria
tática de organizações transnacionais neomalthusianas para impor uma redução
demográfica aos países da América Latina, Ásia e África. Ou seja, seria necessário
combater as estratégias escusas de organizações transnacionais neomalthusianas,
que instrumentalizariam movimentos feministas e o discurso da emancipação das
mulheres para reduzir a população de determinados continentes.
O PL nº 5.069/2013 não apenas traz em sua justificativa um discurso atrelado
ao entendimento de que haveria uma “ideologia de gênero” ameaçando a vontade do
povo e o bom ordenamento da sociedade, mas efetivamente é, em si, uma ameaça
aos direitos já conquistados pelas mulheres. O Projeto de Lei tipifica como crime
contra a vida o anúncio de meio abortivo e prevê penas específicas para quem induz a
gestante à prática de aborto, com majoração da pena quando praticado por
funcionário da saúde pública, ou exerce a profissão de médico, farmacêutico ou
enfermeiro, e quando a gestante for menor de idade. Com isso, o projeto esvazia
hipóteses em que a prática do aborto é legal. Outro Projeto substitutivo a esse,
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aprovado na Comissão de Constituição e Justiça e Cidadania, da Câmara dos


Deputados, incrimina o aborto realizado em caso de gravidez resultante de estupro -
até então situação em que há legalidade na prática do abortamento – e abre
possibilidade de se incriminar um profissional de saúde que atenda essa mulher que
não deseja ter um filho fruto de uma violência sexual.
Chegando ao momento mais atual, desde 2019 ocupa a presidência do país
um político que carrega consigo discursos e práticas neoliberais e neoconservadoras.
A visibilidade de Bolsonaro e o crescimento de sua base de apoio estão fortemente
relacionados com sua oposição à chamada “ideologia de gênero”. Durante o período
da campanha eleitoral e após, como mandatário, seus discursos seguiram e seguem
essa mesma direção, e contrapõem o que dizem as declarações internacionais sobre
direitos humanos e, muitas vezes, o próprio arcabouço jurídico brasileiro. Falas
justificando a desigualdade salarial entre homens e mulheres (LIMA, 2015), e
afirmando que minorias devem se curvar em relação a maiorias (REIS, 2019) - sendo
as minorias, para ele, todos aqueles que se sentem ofendidos e fragilizados por seus
discursos e práticas, e as maiorias, o conjunto “de bem” povo brasileiro -, têm um
149
peso simbólico importante que adquire materialidade nas práticas que vêm sendo
consumadas (CUNHA, 2020).
O discurso criado em torno das questões de gênero oculta, segundo Cunha
(2020), propósitos de despromoção da igualdade de gênero (intencional e
pejorativamente chamada de “ideologia de gênero”), indo além de um mero caráter de
ferramenta de discurso político. Em espaços internacionais, decisões do governo
Bolsonaro e posições de representantes brasileiros também refletem esses
propósitos. Na contramão de posicionamentos históricos do país, além de votarem
contra a inclusão do termo “gênero” em resoluções da ONU, pediram a exclusão de
trecho de resolução proposto por países africanos para abolir a mutilação genital
feminina, por ser conduta recente do Itamaraty solicitar a exclusão de toda e qualquer
referência ao acesso das mulheres à saúde sexual e reprodutiva (CHADE, 2019).
Em 2019, na 41ª sessão do Conselho de Direitos Humanos da ONU, o
representante do governo brasileiro ao mesmo tempo em que afirmou que o Governo
Brasileiro se comprometia com a luta contra a discriminação e violência contra as
mulheres, reforçou a posição do governo favorável ao direito à vida desde a
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concepção, condenando práticas abortivas. Nessa mesma linha, a ministra Damares


Alves realizou pronunciamento na 63ª sessão sobre a Situação da Mulher do mesmo
ano, referenciando à inviolabilidade do direito à vida, enfatizou que o entendimento do
conceito “vida” para o atual governo tem origem na concepção. Ao fazerem isso,
reduzem a problemática em torno da questão do aborto e reinserem a discussão em
um quadro de criminalização.
Voltando os olhos para os espaços nacionais, após assumir a presidência,
Bolsonaro realizou alterações ministeriais e em uma delas o Ministério de Direitos
Humanos passou a se chamar Ministério da Mulher, da Família e Direitos Humanos. A
inserção do termo “família” no título de um Ministério que deve dar conta dos direitos
humanos de uma diversidade de sujeitos reflete as concepções tradicionais e
conservadoras do governo. A ministra indicada para a pasta, Damares Alves é
advogada, pastora evangélica e já foi assessora parlamentar do ex-senador Magno
Malta (PR-ES), aliado de Bolsonaro, e ficou conhecida por suas declarações de tom
reacionário e retórica conservadora. As declarações públicas de Jair Bolsonaro e
Damares Alves contrárias às pautas feministas se traduzem na prática política do
150
governo. Em março de 2019 aconteceu o relançamento da Frente Parlamentar em
Defesa da Vida e da Família, que contou não apenas com a presença da ministra
Damares Alves, mas com um discurso por ela proferido, em que destacou o
alinhamento do governo e do ministério aos propósitos da Frente:

Todas as políticas públicas nessa nação devem ser construídas na


perspectiva do fortalecimento da família. Lembrando que família
protegida resulta em nação protegida. Família fortalecida é nação
soberana. Deixar de lado a família é colocar em risco, inclusive, a
segurança nacional (BRASIL, 2019)
A atuação da Frente vêm sendo marcada por lutas contra o avanço dos
direitos sexuais e dos direitos reprodutivos, manifestas principalmente na oposição à
descriminalização do aborto e na luta pela proibição da interrupção da gravidez nos
casos hoje permitidos pela legislação; pela aprovação do Estatuto da Família - que
visa restringir a definição de núcleo familiar somente para aqueles constituídos por
um homem e uma mulher -, do Estatuto do Nascituro e da PEC 29/2015, que
reconhecem direitos à vida desde a concepção, criminalizando o aborto em qualquer
situação, mesmo as situações em que o aborto é legal.
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Em agosto de 2020, o Ministério da Saúde Brasileiro publicou a Portaria Nº


2.282, que “Dispõe sobre o Procedimento de Justificação e Autorização da
Interrupção da Gravidez nos casos previstos em lei, no âmbito do Sistema Único de
Saúde-SUS”. A referida Portaria estabelece, em seu Art. 1º, a obrigatoriedade pelo
médico e demais profissionais da saúde notificarem à autoridade policial; em seu Art.
6º, o esclarecimento da mulher sobre os desconfortos e riscos possíveis à sua saúde;
em seu Art. 8º, a disponibilização pela equipe médica da mulher visualizar o feto ou
embrião por meio de ultrassonografia, configurando-se como mais um retrocesso em
relação à garantia do aborto legal em caso de estupro.
No que se refere à atuação intra institucional no repertório dos movimentos
sociais que reivindicam os direitos sexuais e os direitos reprodutivos, em 2018, ainda
antes de Jair Bolsonaro assumir a presidência, em 27 de novembro, foi editado o
Decreto nº 9.585 convocando a V Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres
(V CNPM). A Conferência foi convocada para o mês de novembro de 2021, em Brasília
- DF, segundo regimento aprovado pela Portaria nº 7, de 18 de janeiro de 2021,
precedida por conferências municipais, intermunicipais, estaduais e do Distrito
151
Federal, quando parte das delegadas seriam eleitas. Entretanto, a V CNPM não foi
realizada no período previsto.
O repertório de ação e as interações dos feminismos brasileiros variaram nos
diferentes momentos políticos vividos pelo país, em dados períodos, ações
extrainstitucionais são priorizadas ou disputas em espaços institucionais ganham
maior destaque. Nesse sentido, a ocupação de instâncias participativas e a entrada
em agências governamentais não são, necessariamente, estratégias permanentes
dos movimentos feministas. As elaborações e reelaborações de seus repertórios de
ação e interação passam por considerações racionalistas sobre a mobilização de
recursos e o fortalecimento das possibilidades de avanço; por análises das
possibilidades que se colocam em cada contexto político em termos de
oportunidades e constrangimentos; e partem também de enraizamentos ideológicos,
caracterizados por determinados valores e visões de mundo que influenciam as
interpretações e definições de estratégias (RESENDE, 2019).
Segundo Carlos, Dowbor e Albuquerque (2017), os movimentos podem tanto
optar por ações que confrontam a institucionalidade, quanto se empenhar na
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cooperação com o Estado, a depender das circunstâncias. Nesse sentido, a interação


com a institucionalidade, por não constituir fim em si mesma para muitos
movimentos feministas, requer decisão estratégica levando em conta esses diversos
fatores (RESENDE, 2019).
Como já visto neste artigo, durante o período da chamada “onda rosa”, na
vigência dos governos petistas, foi notada ampla participação social em espaços
engendrados pelo Estado. Entretanto, segundo Matos e Paradis (2014), os
mecanismos institucionais de mulheres acabam por servir, em alguns casos, mais
como resposta retórica às mulheres, quando inseridos em governos que não
compartilham do compromisso profundo com as transformações nas desigualdades
e hierarquias de gênero. Naquele período, esse não teria sido o caso brasileiro.
Todavia, no período atual, o chamamento de uma V Conferência de Políticas
para as Mulheres não parece permitir avanços, sobretudo se tratando da questão do
aborto e dos demais direitos sexuais e dos direitos reprodutivos, tema deste artigo.
Conforme já pontuado, sob a gestão Bolsonaro, de caráter neoconservador e
neoliberal, os movimentos têm sido sistematicamente direcionados ao desmonte de
152
um arcabouço jurídico de garantias mínimas desses direitos, à desestruturação das
políticas públicas de acesso ao aborto legal e ao fortalecimento de valores
neoconservadores que vinculam o ser mulher à maternidade, à representação de
papéis tradicionais de gênero e à responsabilidade pelo cuidado da família, afastando
debates sobre a igualdade de direitos, tratados como “ideologia de gênero”.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

No Brasil, persistem dificuldades no acesso ao aborto legal, obstáculo


importante para o avanço dos direitos sexuais e dos direitos reprodutivos. Os avanços
nos marcos legais e normativos foram e têm sido muito paulatinos, não tendo sido
identificados grandes saltos ao longo dos anos. Os poucos avanços conquistados
foram possíveis, de modo geral, seja com alguma articulação e construção conjunta
entre movimentos feministas e Estado, seja com a atuação desses movimentos
reforçando o aborto legal enquanto problema político e, com isso, situando-o no
debate público.
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Os principais avanços para a garantia do direito ao aborto legal no Brasil em


âmbito federal, após a publicação do Código Penal, se deram somente a partir de
1999, com a publicação de protocolos e normas técnicas para institucionalização do
direito e orientação ao atendimento no âmbito do SUS. A publicação ocorreu dez anos
após a experiência pioneira do Hospital Jabaquara, em São Paulo, onde o primeiro
serviço de atendimento ao aborto legal foi instituído. Ressalta-se que, mesmo a nível
federal, os marcos institucionais vão de encontro ao momento de crescimento da
atuação dos movimentos feministas pelo agendamento da pauta.
Os avanços não são consensuais e enfrentam reações desde o início do
período da redemocratização. Entretanto, o cenário político que se instaurou no Brasil
nos últimos anos não apenas se apresenta hostil ao avanço de políticas que
garantiriam o acesso ao aborto legal no país, mas traz consigo um desafio redobrado
àquelas e àqueles que se envolvem no agendamento e no avanço desse direito: o
avanço de forças neoliberais neoconservadoras ensaia promover retrocessos que
minariam as duras conquistas das últimas décadas. O reforço, por parte de membros
do governo Bolsonaro, da noção de “ideologia de gênero” e a mobilização dessa ideia
153
para deslegitimar qualquer tentativa de garantir direitos sexuais e direitos
reprodutivos são uma ameaça para a promoção da igualdade de gênero de forma
mais ampla. Representa, ainda, uma tentativa de condenar senão jurídica (enquanto
as tentativas para maior criminalização seguem em curso), mas também socialmente
as mulheres que buscam a efetivação de seus direitos sexuais e direitos reprodutivos
pelo acesso a serviços públicos de abortamento legal. Tendo em vista o exposto, é
possível conceber que os movimentos em luta pelo aborto legal e por serviços que
prestem atendimento adequado aos casos previstos em lei não têm incorporado e
não incorporarão em seus repertórios ações intrainstitucionais como fizeram em
outras épocas. Para que seja possível abrir caminhos para futuros avanços, são mais
prováveis mobilizações externas à institucionalidade e de enfrentamento.
Sugere-se, para pesquisas que pretendam se aprofundar no estudo das
disputas em torno do abortamento legal no momento recente, estudo mais detido
sobre a atuação organizada da sociedade civil em torno da pauta na vigência do
governo Bolsonaro, assim como aprofundar a compreensão da influência da noção de
“ideologia gênero” no apoio ou na oposição da população a avanços nos direitos
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sexuais e nos direitos reprodutivos, sobre mudanças de percepção da sociedade civil


sobre o abortamento legal nos últimos anos.

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