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Mestranda em Ciência Política pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
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Mestranda em Sociologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG.
RESUMO
Este artigo visa atualizar a discussão sobre a efetivação do direito ao aborto no Brasil para os
casos previstos por lei, tendo em vista a permanência dos desafios para essa efetivação, e a
identificação de um novo momento de disputas políticas em relação aos direitos sexuais e
direitos reprodutivos no país. A pesquisa, de natureza qualitativa e exploratória, propõe uma
abordagem histórica e descritiva da temática, apresentando e analisando os principais
marcos, avanços e retrocessos desde a redemocratização até o presente. Conclui-se que
persistem dificuldades no acesso ao aborto legal no Brasil, e que tais dificuldades são um
obstáculo substancial para o reconhecimento e a consolidação dos direitos sexuais e dos
direitos reprodutivos no país. Os avanços nos marcos legais e normativos foram e têm sido
muito paulatinos, sem a existência de grandes saltos ao longo dos anos. Ademais, no período
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recente, o cenário de neoconservadorismo que se instaurou no Brasil, além de hostil ao
avanço desse direito, ameaça impor retrocessos que minariam as duras conquistas das
últimas décadas.
ABSTRACT
This article aims to update the discussion about the enforcement of the right to abortion in the
cases provided by law in Brazil, in view of the ongoing challenges for this enforcement, as well
as the recognition of a new stage of political struggles related to sexual rights and
reproductive rights in the country. Based on a qualitative and exploratory model, the study
proposes a historical and descriptive approach to the subject, presenting and analyzing the
main milestones, advances and setbacks, from redemocratization to the present. The findings
indicate that there are persistent difficulties in accessing legal abortion in Brazil, and these
difficulties pose a substantial obstacle to the advancement of sexual rights and reproductive
rights. The improvements in legal and regulatory frameworks were and have been very
gradual, with no major leaps over the years. Furthermore, the neoconservative conjuncture
that was recently established in Brazil is not only hostile to the advancement of this right, but
also threatens to cause setbacks that would undermine the hard-fought achievements of
recent decades.
1 INTRODUÇÃO
não foram preparados para atender casos de aborto legal. O despreparo é percebido,
sobretudo em situações que o abortamento se faz necessário por decorrência de
violência sexual. Nesses casos, quando a mulher consegue acesso a um serviço que
realiza o atendimento, é frequentemente solicitado a ela que apresente documento
comprovando a violação, como Boletim de Ocorrência (B.O.) ou laudo pericial. Isso
acontece ainda que a legislação não traga essa exigência. Além disso, é frequente a
indisponibilidade de profissionais para realizar o procedimento.
No que se refere ao contexto atual, Biroli, Machado e Vaggione (2020)
comentam que, embora as disputas políticas em relação às dimensões de gênero,
sobretudo aos direitos sexuais e aos direitos reprodutivos, sejam antigas, há algo
novo no enquadramento desses debates. Haveria uma nova atuação com uma
politização reativa à noção de gênero, aos direitos sexuais e aos direitos reprodutivos
(CORRÊA, PATERNOTTE e KUHAR, 2018; KÓVATZ e POIM, 2015; MORAGAS, 2020).
Em linhas gerais, os direitos sexuais relacionam-se com o livre exercício da
sexualidade, como prática da liberdade, como um domínio do amor e do prazer,
através da igualdade, da responsabilidade e da autonomia (CÔRREA e PARKER, 2004);
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enquanto os direitos reprodutivos são entendidos como a autonomia e o controle dos
corpos, com a liberdade da decisão sobre a reprodução e em que momento
(PETCHESKY, 1999).
Diante da permanência de desafios para a efetivação do direito ao
abortamento nos casos previstos por lei, e da percepção do transcorrer de um novo
momento de disputas políticas em relação aos direitos sexuais e aos direitos
reprodutivos, em especial ao direito ao aborto, o presente artigo tem como objetivo
atualizar a discussão sobre a efetivação do direito ao aborto legal no Brasil para os
casos não puníveis pelo Código Penal. Trata-se de uma pesquisa qualitativa e
exploratória que, para a interpelação do objeto, propõe uma abordagem histórica e
descritiva da temática apresentando e analisando os principais marcos, avanços e
retrocessos desde a redemocratização até às recentes disputas políticas.
Para realizar o proposto, o artigo se organiza em outras quatro seções para
além da presente introdução. Na primeira delas, traça a trajetória da instituição do
direito ao abortamento no país, identificando os marcos normativos e legais do
Executivo Federal em relação à pauta e apresentando a experiência pioneira do
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Balestro e Monteiro (2019) classificam a onda rosa como a ascensão de governos progressistas na
América do Sul após o desgaste político e social das reformas neoliberais dos anos noventa. “Alguns
destes governos, como nos casos do Brasil e Argentina, buscaram associar as políticas sociais e
redistributivas com tentativas de construção de uma estratégia de desenvolvimento econômico” (p.
45).
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Norma Técnica - Um guia para apoiar profissionais e serviços de saúde e introduzir novas
2005 Atenção abordagens no acolhimento e na atenção, com vistas a estabelecer e a
Humanizada ao consolidar padrões culturais de atenção com base na necessidade das
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1985
Encontro Nacional de
Mulheres
CNDM
Carta das Mulheres aos Constituintes
(Constituição de 1988)
141
I Conferência Nacional
1986 de Saúde e Direitos da Ministério da Saúde Relatório final
Mulher
Criação da Comissão Posicionamentos sobre diversos temas
1986 de Estudos sobre Ministério da Saúde (esterilização em massa, norplant,
Direitos Reprodutivos aborto...)
Conferência
Internacional sobre
1994 População e ONU Plataforma de Ação
Desenvolvimento
(CIPD-Cairo)
Conferência sobre a
1995 ONU Plataforma de Ação
Mulher (Beijing)
Comissão
Organizadora
Conferência Nacional
2002 Nacional composta Plataforma Política Feminista
de Mulheres Brasileiras
pelo Poder Público e
pela Sociedade Civil
Elaboração da Política Pacto Nacional pela Redução da Morte
Ministério da Saúde
Nacional de Atenção Materna e Neonatal - Política Nacional
2003 (Área Técnica de
Integral à Saúde da de Direitos Sexuais e Direitos
Saúde da Mulher)
Mulher (PNAISM) Reprodutivos
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Secretaria de Política
I Conferência Nacional
para as Mulheres do I Plano Nacional de Política para as
2004 de Política para as
Governo Federal Mulheres (2005)
Mulheres (CNPM)
(SPM) e CNDM
Pré-proposta de projeto de lei para a
2005 Comissão Tripartite SPM e CNDM
descriminalização do aborto
II Plano Nacional de Política para as
2007 II CNPM SPM e CNDM
Mulheres (2008)
Plano Nacional de Política para as
2011 III CNPM SPM e CNDM
Mulheres 2013-2015
A Carta reivindicava, entre uma miríade de pautas que organizam a vida das mulheres,
a legalização do aborto e a inserção dos direitos sexuais e dos direitos reprodutivos
nas políticas de saúde. Em paralelo e em oposição à movimentação das feministas,
os movimentos conservadores e religiosos tentaram inserir na nova Constituição a
garantia do direito à vida “desde a concepção”. A bancada da Assembleia Constituinte
era composta por vinte e seis mulheres que, conjuntamente, apresentaram trinta
emendas sobre os direitos das mulheres demandadas pelos movimentos feministas
através do CNDM (PINTO, 2003). Os movimentos feministas, embora não tenham
conseguido avançar com a ampliação do direito ao aborto, garantiram que o termo
“desde a concepção” fosse barrado.
Posteriormente, no final da década de 1980, com o avanço da ofensiva
conservadora sobre as pautas feministas e com o debate no Legislativo emplacado
pela Igreja Católica com apoio dos parlamentares evangélicos que visavam
criminalizar o aborto mesmo naqueles casos já previstos por lei, a estratégia
feminista passou a ser a de, por um lado, impedir retrocessos na legislação vigente
(ROCHA, 2006) e, por outro, implementar serviços de atendimento às gestantes que
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desejassem o abortamento e se enquadrassem nos casos legais para abortamento.
Na década de 1990, a V Conferência Internacional de População e
Desenvolvimento do Cairo (1994) e a IV Conferência da Mulher em Pequim (1995),
convocadas pela Organização das Nações Unidas (ONU), mobilizaram as feministas
brasileiras para participação. Nas Plataformas de Ação decorrentes desses eventos -
das quais o Brasil foi signatário -, os direitos sexuais e os direitos reprodutivos foram
inseridos no âmbito dos direitos humanos e que, portanto, deveriam ser garantidos
pelas legislações nacionais e seus serviços de saúde. Corrêa e Kalil (2020) apontam
que as duas Conferências criaram um momento político oportuno para visibilizar a
questão do aborto enquanto um problema de saúde pública.
Ainda na década de 1990, entretanto, o governo federal brasileiro reduziu os
veículos institucionais de diálogo com os movimentos sociais, e o CNDM teve atuação
limitada em relação ao período da sua criação. Em paralelo, os movimentos
feministas articularam sua atuação em redes temáticas. Uma delas, a Rede Nacional
Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e Reprodutivos criou, nos anos 2000, as
Jornadas Brasileiras para o Aborto Legal (Sileira et al, 2018), uma coalizão de
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movimentos feministas que pautava a defesa dos direitos sexuais e dos direitos
reprodutivos.
Nos anos 2000 a América Latina vivenciou a conhecida “onda rosa”, com a
eleição e gestão de governos progressistas e, no caso brasileiro, dos governos do
Partido dos Trabalhadores (PT) (2003-2016). Corrêa e Kalil (2019) apontam para o
período dos governos petistas, de um giro à esquerda iniciado em 2003, como
favorável à recepção pelo Estado de demandas da sociedade civil, incluindo àquelas
relacionadas ao gênero e à sexualidade, e de ampliação das instâncias participativas.
No primeiro ano de gestão do PT foi criada, com status de ministério, a Secretaria
Especial de Políticas para as Mulheres (SPM), responsável por convocar as
Conferências Nacionais de Políticas para as Mulheres (CNPM). É nas conferências
que são discutidos, elaborados e aprovados os Planos Nacionais de Políticas para as
Mulheres. Nesse sentido, as CNPM são eventos importantes para a inserção, na
institucionalidade, de pautas caras às feministas, inclusive as vinculadas aos direitos
sexuais e aos direitos reprodutivos. Segundo Matos e Paradis (2014), os Planos
Nacionais produziram uma espécie de “efeito cascata”, desencadeando programas
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específicos a nível local, voltados para a superação das desigualdades de gênero.
Os três Planos Nacionais de Políticas para as Mulheres contam com capítulo
voltado para a saúde das mulheres, direitos sexuais e reprodutivos, e com capítulo
voltado para o enfrentamento à violência contra as mulheres. No caso do I PNPM, os
objetivos ligados à saúde das mulheres, aos direitos sexuais e reprodutivos envolvem,
entre outros, promover a melhoria da saúde das mulheres brasileiras mediante a
garantia de direitos legalmente constituídos e a ampliação do acesso aos serviços de
assistência, e garantir os direitos sexuais e direitos reprodutivos das mulheres. Como
um dos passos para alcançar esses objetivos figura reduzir em 5% o número de
complicações de abortamento atendidas pelo SUS. Ainda, dentre as prioridades,
consta promover a atenção obstétrica, qualificada e humanizada, inclusive a
assistência ao abortamento em condições inseguras para mulheres e adolescentes, e
a revisão da legislação punitiva que trata da interrupção voluntária da gravidez. Se
tratando do enfrentamento à violência contra as mulheres, é indicado como passo
necessário aumentar em 15% os serviços de atenção à saúde da mulher em situação
de violência (BRASIL, 2006).
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5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
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dez. 1940.
CHADE, J. Brasil veta termo “gênero” em resoluções da ONU e cria mal-estar. 2019.
Disponível em: <https://jamilchade.blogosfera.uol.com.br/2019/06/27/ brasil-veta-
termo-genero-em-resolucoes-da-onu-e-criamal-estar/>. Acesso em 23 de maio de
2021.
LIMA, V. Jair Bolsonaro diz que mulher deve ganhar salário menor porque engravida.
Revista Crescer. 25 de fevereiro de 2015. Disponível em: <https://revistacrescer.globo.
com/Familia/Maes-e-Trabalho/noticia/2015/02/jairbolsonaro-diz-que-mulher-deve-
ganhar-salario-menorporque-engravida.html>. Acesso em 23 de maio de 2021.
ROCHA, M. I. B. da. A Discussão política sobre aborto no Brasil: uma síntese. Revista
Brasileira de Estudos Populacionais, São Paulo, v. 23, n. 2, p. 369-374, jul./dez de
2006.
SENAPESCHI, E. M.; VIEIRA, P.; MARIANO, S. A.. Aborto Legal, Direitos Sexuais e
Direitos Reprodutivos na Pandemia de COVID-19. Revista Feminismos, Vol.9, nº 1,
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TILLY, C.. From mobilization to revolution. New York: Newbery Award Records, 1978.