Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
SOPE OTULANA
Consultora sênior na área de gênero, igualdade e desenvolvimento social
na Oxford Policy Management, onde lidera pesquisas qualitativas sobre
os impactos sociais e de gênero nas políticas de transferência de renda,
proteção de crianças e desinstitucionalização de crianças vulneráveis,
violência sexual e de gênero em contextos humanitários e pesquisa de
políticas globais de enfrentamento à violência contra mulheres e meninas.
RESUMO
Nas últimas décadas, sobretudo a partir dos anos 2000, as políticas de en-
frentamento à violência contra as mulheres desenvolveram-se de maneira
exponencial. Essas políticas, entretanto, tiveram como foco a resposta à
violência, depois de sua ocorrência. Entendendo o enfrentamento à vio-
lência como um conjunto de ações envolvendo não somente a resposta,
mas também a prevenção, este artigo apresenta argumentos a favor da
prevenção como um eixo de atuação prioritário e urgente. A revisão de
intervenções internacionais na área de prevenção à violência contra mu-
lheres e meninas demonstra que abordagens participativas, que promovem
o questionamento e a mudança das normas sociais que geram a violência,
são consideradas as mais avançadas.
Palavras-chave
Mulheres. Gênero. Violência. Prevenção. Boas práticas. Lei Maria da Penha.
153
ABSTRACT
In the last decades, particularly since the 2000s, policies to eliminate vio-
lence against women have developed exponentially. These policies, howe-
ver, focused on response, i.e. actions after its occurrence. Understanding
that the elimination of violence involves a set of actions which involve not
only response but also prevention, this article argues in favour of preven-
tion as a priority matter. The review of international interventions in the
field of prevention of violence against women and girls demonstrates that
the most advanced approaches are participatory and challenge social nor-
ms that enable violence in order to promote change.
Keywords
Women. Gender. Violence. Prevention. Best practices. Maria da Penha Law.
154
Prevenção à violência contra as mulheres: uma revisão das práticas internacionais e a urgência de atuação no Brasil
1 INTRODUÇÃO
A partir dos anos 2000, as políticas de enfrentamento à violência
contra as mulheres desenvolveram-se de maneira exponencial. Entenden-
do-se o enfrentamento à violência como uma gama de ações envolvendo
a resposta à violência depois de ocorrido e a prevenção para evitar que ela
ocorra, este artigo argumenta em favor de uma priorização do eixo de pre-
venção como meio para uma transformação social profunda e duradoura.
Primeiramente, o artigo traz uma breve descrição dos ganhos no Brasil nas
últimas décadas e apresenta uma estrutura holística para o enfrentamento
à violência contra as mulheres. Em seguida, são realizados uma revisão da
bibliografia internacional e um levantamento de iniciativas internacionais
para demonstrar que as abordagens participativas que promovem o ques-
tionamento e a mudança das normas sociais causadoras da violência são
consideradas as mais avançadas.
2 OS AVANÇOS NO BRASIL
Nas últimas décadas, os avanços relacionados ao enfrentamento à
violência contra as mulheres no Brasil foram significativos, tanto em ter-
mos legislativos quanto de políticas e serviços. A Lei n. 11.340/2006, Lei
Maria da Penha, doravante LMP (BRASIL, 2006), por exemplo, é referên-
cia mundial como legislação de enfrentamento à violência contra as mu-
lheres. Para além do pioneirismo, uma das maiores qualidades da LMP é
sua popularidade: é conhecida por 100% das brasileiras, um êxito surpre-
endente para qualquer lei.
A Secretaria de Políticas para Mulheres (SPM), criada em 2003, fo-
mentou a criação de órgãos locais de políticas para mulheres, os chamados
Organismos de Políticas para Mulheres (OPMs). A descentralização da po-
lítica, essencial para um país diverso e de proporções continentais como o
Brasil, foi uma inovação em termos de políticas na área no mundo.1
O Brasil conta também com uma série de marcos normativos impor-
tantes para guiar e executar ações e serviços de enfrentamento à violência
contra as mulheres, nomeadamente os planos nacionais de políticas para
mulheres, frutos de processo de participação popular nas conferências na-
1Em levantamento de 2014, a SPM identificou 680 OPMs, sendo 24 estaduais e 656 municipais (co-
brindo 11,8% do total de municípios brasileiros). Mais informações em Brasil (2015).
155
Roberta Gregoli - Sope Otulana
3 A URGÊNCIA DA PREVENÇÃO
Mesmo com a popularidade da LMP, a maioria das pessoas a conhe-
ce apenas superficialmente,3 o que pode gerar a impressão que se trata de
uma lei de cunho exclusivamente punitivo. Porém, o primeiro capítulo é
inteiramente voltado às “medidas integradas de prevenção”, com o objetivo
de “coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher [...] por meio
de um conjunto articulado de ações da União, dos Estados, do Distrito
Federal e dos Municípios e de ações não governamentais”. Para além da
2 Vale também citar o Pacto Nacional de Enfrentamento à Violência contra as Mulheres, lançado
em 2007 (BRASIL, 2011b), o qual definiu as esferas e responsabilidades dos governos nos três níveis
para a implementação do plano nacional.
3 De acordo com pesquisa do DataSenado, 100% das pessoas “já ouviram falar” da LMP, porém 81%
declaram saber pouco ou nada sobre ela (BRASIL, 2017, p. 10).
156
Prevenção à violência contra as mulheres: uma revisão das práticas internacionais e a urgência de atuação no Brasil
157
Roberta Gregoli - Sope Otulana
Tem como foco a população Tem como foco os indivíduos e Tem como foco os grupos
como um todo e os ambientes grupos com alto risco de serem afetados pela violência na
em que as relações de gênero e vítimas ou perpetradores da construção de capacidade
comportamentos violentos são violência contra mulheres e os sistêmica, organizacional e da
moldadas, para abordar fatores fatores que contribuem para comunidade para responder a
que levam a ou protegem contra tal risco. esses fatores.
a violência às mulheres.
158
Prevenção à violência contra as mulheres: uma revisão das práticas internacionais e a urgência de atuação no Brasil
159
Roberta Gregoli - Sope Otulana
Local Zâmbia
Resumo Trabalho para a eliminação da violência contra mulheres e meninas por meio da trans-
formação de atitudes e crenças, e da mobilização de homens e meninos para a promo-
ção da não violência.
Abordagens para “Construção de um movimento” por meio de campanhas de mídia, marchas, etc. liga-
engajamento das a eventos internacionais (Dia Internacional das Mulheres, 16 dias de ativismo).
160
Prevenção à violência contra as mulheres: uma revisão das práticas internacionais e a urgência de atuação no Brasil
Parcerias YWCA
Nome do programa
Local Ruanda
Abordagens para Diálogo e sensibilização sobre violência contra as mulheres com membros da
engajamento Associação de Poupança e Crédito na Aldeia (Village Savings and Loans Association)
através de ‘educadores-pares’ eleitos dentro da Associação.
(continua)
161
Roberta Gregoli - Sope Otulana
Nome do programa
Local Ruanda
Resumo Educação não formal e advocacy comunitário para encorajar homens e casais a refletir
de maneira crítica sobre compartilhamento de decisões e dinâmicas de poder em seus
relacionamentos, com o objetivo de aumentar o impacto de programas de microcrédito
e transferência de renda sensíveis a gênero.
Abordagens para 17 atividades de grupo para homens, cujas parceiras participam do programa de
engajamento empoderamento econômico.
Promundo
Evidências Os achados demonstram que o envolvimento entre homens e suas parceiras nessas ati-
vidades comunitárias resultou em aumento de renda e na participação de homens nos
trabalhos de cuidado com os filhos, bem como na redução de conflitos entre os casais.
Nome do programa
(continua)
162
Prevenção à violência contra as mulheres: uma revisão das práticas internacionais e a urgência de atuação no Brasil
Mudança social mobilizada no Cabo Oriental e províncias do Estado Livre para atuar
na violência contra mulheres e crianças.
Programas de rádio.
Parcerias UNICEF
UNFPA
Evidências Programa de Ação Integrado sobre a Violência contra Mulheres e Crianças e Plano
Estratégico Nacional para a Eliminação da Violência contra Mulheres e Crianças pac-
tuados, adotados e em fase de implementação.
(continua)
163
Roberta Gregoli - Sope Otulana
Nome do programa
Abordagens para Campanhas lideradas por jovens encorajando grupos de apoio entre pares, o
engajamento engajamento de jovens e reforço de mudanças de normas sociais na comunidade.
Sessões de educação não formal com campanhas e ativismo lideradas por jovens para
transformar papeis estereotipados de gênero (ex. uso de contraceptivos e divisão de
tarefas domésticas).
Evidências Mudanças nos índices da Escala Gender Equitable Male (GEM), que mede as mudanças
em atitudes relacionadas a gênero, violência, sexualidade, masculinidade e saúde
reprodutiva.
Nome do programa
Resumo MenCare é uma campanha mundial com foco na paternidade, ativa em mais de 45 pa-
íses em 4 continentes. Sua missão é promover o envolvimento igualitários dos homens
como pais e cuidadores não violentos para fomentar o bem-estar da família, a igualda-
de de gênero e melhores condições de saúde para mães, pais e crianças.
(continua)
164
Prevenção à violência contra as mulheres: uma revisão das práticas internacionais e a urgência de atuação no Brasil
Aliança MenEngage
Nome do programa
Local Zâmbia
Abordagens para Centros de atendimento integrados fornecem uma gama de serviços de saúde, apoio
engajamento psicossocial, informações sobre HIV e teste, fornecimento de kits de profilaxia pós-
exposição e contraceptivo de emergência, atendimento jurídico a adultos e crianças;
treinamento da equipe do centro de atendimento integrado e agentes de serviços;
encaminhamento e trabalho em rede com os demais serviços (exemplo: saúde,
abrigamento, assistência financeira); atendimento móvel a comunidades rurais para
a promoção de sensibilização e serviços; avaliações organizacionais dos parceiros do
projeto e fortalecimento de capacidades.
Abordagem dos fatores de risco da violência contra as mulheres e mobilização das co-
munidades por meio de um programa holístico de comunicação.
165
Roberta Gregoli - Sope Otulana
WLSA
Evidências A avaliação da Teoria de Mudança mostrou que o programa provê um percurso claro
para a prestação de serviços e prevenção da violência contra as mulheres e casamento
infantil.
Nome do programa
Prevention+ (Promundo)
Abordagens para O programa promove ativamente o engajamento de homens jovens e adultos como
engajamento parceiros – junto com mulheres jovens e adultas – para desafiar e transformar normas
e práticas de gênero nocivas. Os grupos participam de programas extensivos de pre-
venção à violência contra mulheres e iniciativas de empoderamento econômico (infor-
madas em parte pelas abordagens e currículos dos programas MenCare+ e Journeys of
Transformation), oferecidas em parceria com serviços da comunidade.
Aliança MenEngage
166
Prevenção à violência contra as mulheres: uma revisão das práticas internacionais e a urgência de atuação no Brasil
5 DF, PA, PE, PI, para citar alguns. Sobre o programa do DF ”Maria da Penha vai à Escola” (DIS-
TRITO FEDERAL, 2015).
167
Roberta Gregoli - Sope Otulana
168
Prevenção à violência contra as mulheres: uma revisão das práticas internacionais e a urgência de atuação no Brasil
169
Roberta Gregoli - Sope Otulana
170
Prevenção à violência contra as mulheres: uma revisão das práticas internacionais e a urgência de atuação no Brasil
171
Roberta Gregoli - Sope Otulana
6 DESAFIOS MAPEADOS
A mudança de práticas, comportamentos e atitudes é algo complexo
e que leva tempo, pois normas tradicionais sobre a violência contra mulhe-
res e meninas são formadas por uma vasta gama de processos sociais em
múltiplos níveis da ordem social (FLOOD; PEASE, 2009). Enquanto há
evidências que normas nocivas de gênero podem mudar, os mecanismos
exatos para essa mudança permanecem apenas parcialmente compreendi-
dos e com escassas evidências. Ainda que os mecanismos que relacionem
mudanças de atitudes à redução de comportamentos violentos não sejam
claros, existem evidências que sustentam que atitudes mais igualitárias,
por parte dos homens, estão associadas à menor chance de perpetração de
violência doméstica (LEVTOV et al., 2014). 8
Diversas revisões bibliográficas, como as de Ricardo, Eads e Barker
(2011), relatam a necessidade de avaliações mais rigorosas e pesquisas padro-
nizadas sobre o que efetivamente funciona para mudar normas e comporta-
mentos relacionados à violência contra mulheres e meninas. Uma revisão da
OMS de 2007 sobre 58 intervenções concluiu que 33% das intervenções não
podiam ser avaliadas devido à falta de dados, ou à existência de dados não
padronizados (WORLD HEALTH ORGANIZATION, 2010). Além disso, a
maioria dos programas que possui dados disponíveis não fez distinção entre
mudanças em normas sociais e mudanças nas atitudes dos indivíduos, o
que torna difícil discernir de que maneira as intervenções estão atingindo
os impactos observados (ALEXANDER-SCOTT; BELL; HOLDEN, 2016).
8 Ainda que este artigo argumente pelo desenvolvimento de ações para mudanças de normas sociais
relativas à violência contra as mulheres, não há uma relação de causalidade direta e imediata entre as
mudanças de normas sociais e a redução da violência. Por exemplo, em programas que visam mu-
dar normas sociais sobre empoderamento das mulheres, a vulnerabilidade de mulheres e meninas à
violência pode, às vezes, aumentar no curto prazo (BOTT; MORRISON; ELLSBERG, 2005). Essa
complexidade acerca das mudanças em normas e atitudes pode ser observada nos dados globais
sobre comportamento de homens e uma aparente ambivalência sobre mudanças. Mesmo quando
os homens têm atitudes razoavelmente positivas relacionadas a gênero e não enxergam a igualdade
como perda de direitos, podem sentir que já se avançou o suficiente. Também é possível que homens
apoiem leis que punem a violência contra as mulheres, ao mesmo tempo em que continuam a sentir
que o privilégio patriarcal é a “ordem correta das coisas”. Tal ambivalência é especialmente prevalen-
te em países de baixa renda (LEVTOV et al., 2014). Isso remete a um desafio mais amplo sobre as
normas e os comportamentos violentos, sustentados por posicionamentos complexos, inter-relacio-
nados e, muitas vezes, contraditórios, sugerindo que apenas mudar atitudes individuais ou promover
a conscientização sobre a violência contra as mulheres é necessário, porém por si só é insuficiente.
172
Prevenção à violência contra as mulheres: uma revisão das práticas internacionais e a urgência de atuação no Brasil
7 CONCLUSÃO
A partir do panorama traçado neste artigo, percebe-se que mudar
atitudes, práticas e comportamentos nocivos exige a elaboração de políticas
de prevenção que envolvam pesquisa, planejamento e expertise da realidade
local. Não se trata de uma tarefa simples. Porém, é necessário e urgente o
empenho no sentido de criar e implementar ações e políticas de prevenção
estruturadas, particularmente tendo como público homens jovens e adultos.
Assim, será possível, de fato, construir, no médio e longo prazo, uma trans-
formação profunda e duradoura nas normas sociais e atitudes e comporta-
mentos individuais em favor de uma sociedade mais igualitária em termos
de gênero e, por consequência, livre de violência contra mulheres e meninas.
8 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ABRAMSKY, T.; DEVRIES, K.; MICHAU, L.; NAKUTI, J.; MUSUYA,
T.; KISS, L.; KYEGOMBE, N.; WATTS, C. Ecological pathways to
prevention: how does the SASA! community mobilisation model work to
prevent physical intimate partner violence against women? BMC Public
Health, London, v. 16, n. 339, p. 1-21, 2016.
173
Roberta Gregoli - Sope Otulana
174
Prevenção à violência contra as mulheres: uma revisão das práticas internacionais e a urgência de atuação no Brasil
175
Roberta Gregoli - Sope Otulana
176
Prevenção à violência contra as mulheres: uma revisão das práticas internacionais e a urgência de atuação no Brasil
QUEM AMA ABRAÇA. Uma história que ainda busca um final feliz.
2011. Disponível em: <www.quemamaabraca.org.br/2013/>. Acesso em:
20 set. 2018.
RICARDO, C.; EADS, M.; BARKER, G. Engaging boys and young men
in the prevention of sexual violence: a systematic and global review of
evaluated interventions. Washington: Sexual Violence Research Initiative,
2011. Disponível em: <https://reliefweb.int/sites/reliefweb.int/files/
resources/menandboys.pdf>. Acesso em: 20 set. 2018.
177
Roberta Gregoli - Sope Otulana
178