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O feminicídio em Goiás e as políticas públicas de combate as práticas de opressão às

mulheres.

Jully Anne Ribeiro da Cruz1

Resumo:

O presente trabalho tem por objetivo analisar o contexto das investigações sobre as
mortes violentas de mulheres, além das razões de seu crescimento contínuo no estado de
Goiás. Para tanto, apresento o termo Feminicídio, segundo compreensão da ONU Mulheres,
para fazer referência a um fenômeno social e cultural que, por essência, pressupõe a
dominação patriarcal – estudos sobre o feminicídio objetivam sensibilizar quanto a morte de
mulheres por razão do desprezo de sua condição social, cultural e étnica. Nesse trabalho,
assumindo tais pressupostos, procuro compreender a perpetuação ascendente do feminicídio
no estado de Goiás a partir da conformidade com o pensamento patriarcalista encarnado no
sistema. Utilizarei as literaturas a respeito da construção histórica do estado, a sua
formulação identitária, bem como as literaturas que corroboram como alternativas ao
pensamento hegemônico na tentativa de encontrar uma resposta a perpetração das mortes de
mulheres em razão de seu gênero. Nesse âmbito, investigarei o processo e abordagem nos
postos de acolhimento de denúncias e investigações (as delegacias especializadas em
violência contra a mulher) as evidentes características do pensamento coronelista, que
podem impactar sobre a relação de eficiência-eficácia nas políticas de combate à violência
de gênero e sua incidência em um âmbito educacional-cultural. O espectro final aqui
demonstrado é uma crítica ao não funcionamento das políticas públicas de combate a
violência de gênero quando desacompanhadas do debate de gênero.

Palavras-chave: Violência contra à mulher; Políticas Públicas; Goiás.

Introdução

As mortes violentas de mulheres se tornaram uma preocupação no país, excitando


diversas movimentações em defesa dos direitos humanos das mulheres levantando a

1
Estudante de graduação em Ciências Sociais, bacharelado em Políticas Públicas, na Faculdade de Ciências
Sociais, Universidade Federal de Goiás. E-mail: anne.ribeiro.cruz@gmai.com
necessidade de uma política de investigação séria e a formulação de indicadores que
explicassem qual a razão da perpetração dos casos de violência e morte das mulheres.

Com vistas no argumento da ONU Mulheres, em que o feminicídio é um fenômeno


pressupõe a dominação patriarcal, bidimensional aonde o social e o cultural são campos
geradores a depender das características pertinentes as regiões em que se estabelece.
Portanto, ao olharmos para os estudos acerca da identidade goiana, nesse artigo, ponderarei
o peso e importância do arquétipo do coronel no imaginário popular e sua relação com a
manutenção das políticas de proteção as mulheres.

O estado de Goiás oferece a relação de 22 Delegacias Especializadas de Atendimento


à Mulher (DEAM), 11 Centros Especializados de Atendimento à Mulher (CEAM) e 07
Núcleos de Atendimento à Mulher (NEAM)2, contudo a realidade percentual se mantém
acima de 80% desde os anos de 1980, tendo chegado a ocupar o segundo lugar no ranking
de feminicídios no ano de 2017 com um índice de 8,7% com relação a mulheres negras.

Os estudos sobre a formação do estado de Goiás demonstram raízes profundas na


machidão que constituiu esse território e no racismo impregnado nos primeiros habitantes
da região3 e adjetiva os índices para a continuidade dos casos de feminicídios. Toda
sociedade é constituída de valores, crenças e atributos que formam a sua cultura e esta é
transmitida de geração adiante. Goiás não se diferencia nesse aspecto e autores, como
Ferreira (1994), discorrem sobre as ascendências dos códigos e condutas que moldaram a
mentalidade aqui referida.

A hipótese consiste na crítica ao modelo oferecido de combate a violência de gênero


com respaldo em uma mentalidade enrijecida e disseminada por setores religiosos
conservadores que atravessaram o largo dos anos e negligenciam, para tanto, o debate de
gênero nos espaços de formação cidadã, silenciando, invisibilizando os corpos femíneos.

Panorama da Violência Contra a Mulher

Sob o olhar imperativo4, a despeito das mortes de mulheres no Brasil, foi lançado
uma importante meta às instituições políticas para o enfrentamento à continuidade das

2
CF. GOIÁS (Estado). Superintendência da mulher e igualdade racial. Redes de Atendimento à Mulher. 2016.
Disponível em < http://www.sgc.goias.gov.br/upload/arquivos/2016-06/lista-de-telefones.pdf >. Acesso em 21 ago.
2019.
3
CF. SAINT HILAIRE apud CASTRO, Transgressão, controle social e Igreja Católica no Brasil colonial: Goiás,
século XVIII. 2009 p. 53.
4
Aqui desejo reforçar o juízo realizado pela Organização das Nações Unidas (ONU) que se impôs por um dever
objetivo de um fim prático de grande relevância.
violências de gênero com o intuito de prevenir que mais mulheres morressem em razão de
sua condição do ser social e/ou biológico. Para que as instituições da Administração Pública
pudessem reverter a crescente estatística dos feminicídios no Brasil foram reforçadas
preocupações com relação a impunidade, ao diagnóstico perante as mortes violentas de
mulheres e a construção de políticas públicas sobre o tema começaram a ganhar espaço na
agenda política dos entes federados.

Diante das diversas manifestações, principalmente nos anos de 1970 e 1980,


preocupações com políticas públicas sobre o tema resultaram entre várias iniciativas, na
maior participação da mulher no mercado de trabalho, maior nível de escolaridade, em
conselhos em todos os níveis dos entes federados no intento de reforçar a participação social
garantindo a busca pela equidade de gênero e na criação de delegacias especializadas, para
o enfrentamento dos fatos. Ressalto, todavia, que a institucionalização das Conferências
Nacionais de Políticas para as Mulheres só foi realizada no ano de 2004, havendo
consecutiva ocorrência nos anos de 2007, 2011 e 20165.

As conferências em níveis municipais e estaduais foram requeridas e por vezes


construídas, nos atentando para o estado de Goiás foram realizadas cinco conferências sendo
dessas quatro conferências estaduais e uma conferência livre (informação verbal)6. Quanto
aos dados relativos aos municípios goianos há grande dificuldade do estado em organizar os
dados para a transparência e publicização das ações do conselho. (informação verbal)7

A maior conferência de mulheres [...] foi em 2011 [...] fizemos 35


conferências municipais e regionais, essa foi a maior, foi a
conferência que conseguiu atingir o maior números de municípios,
organizando o estado de Goiás em regiões. Então foram 35
conferências em 35 municípios diferentes e eles abarcavam outros
municípios. (informação verbal)8

5
CF. Relatório Final da IV Conferência Nacional de Políticas para as Mulheres. Disponível em <
https://www.mdh.gov.br/informacao-ao-cidadao/participacao-social/conselho-nacional-dos-direitos-da- mulher-
cndm/Relatorio_final_IV_CONFERENCIA_NACIONAL_DE_POLITICAS_PARA_AS_MULHERES.pdf>. Acesso
em 19 de ago. 2019.
6
Noticia fornecida em apoio a este trabalho por Sidiana Soares, presidenta do Centro Popular da Mulher em Goiás.
Goiânia, em agosto de 2019.
7
Informação fornecida em apoio a este trabalho por Ana Rita Marcelo de Castro, presidenta do Conselho Estadual
da Mulher (CONEM, 2017/2019) em Goiás. Goiânia, agosto de 2019.
8
Informação fornecida em apoio a este trabalho por Ana Rita Marcelo de Castro, presidenta do Conselho Estadual
da Mulher (CONEM, 2017/2019) em Goiás acrescida da relação de municípios participantes das conferências por
e-mail. Goiânia, agosto de 2019.
Contudo, é notável que a democracia baseada em ideias que visam representar
determinado grupo, com vistas a um bem coletivo, são incapazes de ocasionarem mudanças
efetivas para grupos socialmente excluído, em nosso caso as mulheres, incluso a
representação das mulheres nos espaços políticos. Para tanto seria necessário que paradigmas
como a divisão social do trabalho fossem redefinidos ou superados (ARAÚJO, Clara. Mulher
e representação política, 2010, p. 142).

Sem embargo das produções acadêmicas, das pesquisas, do levantamento de dados


por parte da sociedade civil organizada assim como pelo poder público, o feminicídio ainda
é uma realidade e a população, apesar das conferências de políticas públicas para as mulheres
e dos conselhos municipais, estaduais e nacional, parece ainda não ser capaz de perceber e
assumir com convicção a gravidade da perpetração da violência de gênero e/ou fazer uso das
políticas já implementadas pelo poder público. Do mesmo modo o poder público ao largo
dessas quatro décadas não fizera frente a perpetração dessa violência.

Tendo em vistas essas situações a pergunta que salta é: Porque, a despeito das
políticas de proteção às mulheres no Brasil, o feminicídio tem sido crescente no Estado de
Goiás? A hipótese apresentada para responder essa pergunta vai de encontro com a
afirmativa conceitual do termo Feminicídio, construída pela Organização das Nações Unidas
Mulheres (ONU MULHERES), sob o juízo do Protocolo Latino-americano de 2014, no qual
foi compreendido como fenômeno transdimensional, aonde as esferas social e cultural
corroboram para a sua perpetração.

As mortes violentas de mulheres por razões de gênero são fenômeno global. Em


tempos de guerra ou de paz, muitas dessas mortes ocorrem com a tolerância
das sociedades e governos, encobertas por costumes e tradições, revestidas de
naturalidade, justificadas como práticas pedagógicas, seja no exercício de direito
tradicional – que atribui aos homens a punição das mulheres da família – seja na
forma de tratar as mulheres como objetos sexuais e descartáveis (ONU
MULHERES, 2012, p. 14. Grifo meu).

Embora as mortes violentas de mulheres incidam por razões distintas, sendo


necessário romper com as barreiras do essencialismo9 e observar caso a caso, este fenômeno
tem em seu cerne a presença de um pensamento hegemônico10 que se transfigura na

9
Empresto o conceito apresentado por Deepika Bahri em Feminismo e/no pós-colonialismo, em que faz uso de
Pnina Werbner (1997) para explicar “essencializar é atribuir a uma pessoa, categoria social, grupo étnico,
comunidade religiosa ou nação uma qualidade constitutiva fundamental, básica e absolutamente necessária. É
colocar uma falsa continuidade atemporal, uma distinção ou delimitação no espaço, ou uma unidade orgânica. É
sugerir uma uniformidade interna e uma diferença externa ou alteridade”. Essencializar seria, portanto, um olhar
que lança sobre o outro uma distinção do eu de forma hierarquizada, dando ao eu a categoria de sujeito e ao outro
uma categorização de objeto de estudo.
10
O conceito de pensamento hegemônico e/ou hegemonia dominante é classicamente empregado na literatura
marxista para denominar as disposições das classes numa determinada ordem, para Gramsci (1984) a sociedade
dominação patriarcal11 e está intimamente ligado a manutenção do status quo daqueles aos
quais é delegado a função de domínio.

Nesse sentido, o presente artigo pretende explicitar a situação do estado de Goiás, em


que grandes autores como Chaul (2001) e Leal (1975), remontam sua trajetória com a certeza
da “decadência” e do “desdém governamental”, arguindo, em seus trabalhos, as bases de
formação da identidade coronelista goiana12.

Com denotada prudência a formação e história de Goiás, observamos as escolhas


políticas de seus gestores desde sua fundação, àquilo que percorre o imaginário popular, as
mudanças geográficas oriundas da expansão do seu setor de maior pungência econômica, a
agropecuária, o impacto desse conjunto de variáveis para ponderarmos sobre as
considerações objetivamente às políticas de combate às opressões/violências de gênero. A
relação existente entre essas variáveis e a violência de gênero pode ser percebida na Agenda
2030 para o desenvolvimento sustentável em seu objetivo 16 “Promover sociedades
pacíficas e inclusivas para o desenvolvimento sustentável, proporcionar o acesso à justiça
para todos e construir instituições eficazes, responsáveis e inclusivas em todos os níveis”
(ONU, 2015, p. 36) e nos objetivos de 01 ao 11 que são considerados relevantes para a
prevenção às violências13 definidos pelos chefes de Estado em setembro de 2015, na ONU.

Se Norbert Elias for considerado em seu conceito de auto regulação, descrito em “O


processo civilizador” (1939), para buscar compreender o porquê, a despeito das políticas de

política ou Estado, que correspondem à função de hegemonia que o grupo dominante exerce em toda a sociedade e
àquela de domínio direto sendo, portanto, a sociedade civil dotada de imprescindível papel no arranjo de uma contra
hegemonia dominante.
11
Max Weber, em sua obra “Economia e Sociedade” (capítulo IX), define o patriarcalismo como um tipo de
dominação tradicional, advinda de uma perpetração de poder que é expressa na origem da própria palavra
dominação. A figura do “patriarca” é a figura do dominus cujo radical, em latim, domus é o equivalente a casa,
moradia. Presente na organização social, segundo Weber, ab initio, “para a mulher” significaria” estar submetida à
autoridade doméstica” do homem, por sua superioridade “normal da energia física e psíquica” (p.234), assim como
tudo aquilo que lhe fosse pertencente teria razões para a perpetração de sua subalternidade. Essa relação é
constituída pela idéia de propriedade privada, sendo “os filhos de todas as mulheres submetidas ao poder doméstico
de um homem, seja esposa, seja escrava, são considerados, independentemente da paternidade física, "seus" filhos,
bem como são considerados seu gado os animais nascidos de seus rebanhos” (p.235). Weber considera a dominação
patriarcal ilimitada, primordialmente legitimada pela continuidade da servidão de àqueles que são dominados, por
dizer respeito a dominação doméstica cujas normas são estatuídas de forma arbitrária e segundo costumes
heterônomos.
12
É preciso ponderar que tais apontamentos remontam a um período posterior aos momentos de expansão das
fronteiras. Antes de um estabelecimento de governança de fato, houve o período em que as relações não se
organizavam pelo viés capitalistas. Tal período ficou conhecidas como “frente de expansão”, seguindo pela
dominação daqueles que estavam determinados a conduzir um processo capitalista de expansão, esse período ficou
conhecido como a chegada das bandeiras, contudo no processo de expansão das fronteiras (Miziara, 2006), a
chamada frente pioneira faz progredir as relações capitalistas as quais adquiriram outras características, falaremos
delas mais adiante.
13
CF. Atlas da Violência 2018, IPEA, FBSP, 2018. p.83-84. <Https://assets-dossies-
ipgv2.nyc3.digitaloceanspaces.com/sites/3/2018/06/ipea_fbsp_atlasdaviolencia2018relatorio.pdf>. Acesso em 29
nov. 2018.
proteção às mulheres no Brasil, o feminicídio é crescente no estado de Goiás, é possível que
o coronelismo, presente no estado, desde a sua gênese, possa explicar a não redução da
violência de gênero, a naturalização das violências sofridas que antecedem os fatídicos casos
de feminicídio.

Expressões da autoimagem de Goiás em números de mortes violentas de mulheres

Ao olharmos para os estudos acerca da identidade goiana, sua formação, as


motivações para a sua alocação no território notaremos o peso e importância de arquétipos
que construíram o estado e ainda marcam o imaginário popular.

Esse arquétipo aqui aferido é a imagem do coronel, visto como uma figura de virtude
e liderança, nas palavras de Leal (1975, p.154) por “uma forma peculiar de manifestação do
poder privado” constituído por “nossa estrutura agrária, que fornece a base de sustentação
das manifestações de poder privado” e, muito embora, Leal conteste a existência dos
coronéis como uma reminiscência meramente situada “pela nossa história colonial”, há de
se observar a presença dos vícios às vicissitudes presentes na mentalidade colonizadora
como pode ser percebido nos estudos de Silva, Moura e Campos (2015. p. 239) “A pobreza
e a ineficiência do Estado em instituir um sistema de coesão social fizeram com que a região
entrasse em uma condição permanente de desumanização”. Mediante as dificuldades de
acesso “todos estavam sujeitos a precariedade e escassez”, contudo os “senhores das terras”
nas palavras de Leal (1975, p.155) “conseguiam passar bem de boca” mantendo sua pretensa
virtuosidade e prestígio tal qual um déspota sob o olhar de autores como McCreery (2006,
p. 240) que considera tal dominação como uma forma de “despotismo pastoral, em que os
coronéis, os senhores de gado, assumiam o controle das funções políticas e administrativas
do Estado”

A relação entre o patriarcalismo e o coronelismo é expressa por Vitor Nunes Leal


(1975) em que o primeiro, conserva o seu “conteúdo residual” no segundo. Contudo para
esse autor seria errôneo reduzir o coronelismo ao patriarcalismo, sua objeção é conceitual.
Segundo Leal (1975) o patriarcalismo colonial se difere, pois esse estaria mais próximo ao
poder privado “com a concentração do poder econômico, social e político no grupo parental”
enquanto o coronelismo é “também isso, mas não é somente isso”, constituindo em um
sistema político de relacionamento compromissado entre o “poder privado decadente e o
poder público”(LEAL, 1975, p. 251).

Esse quadro nos sugere motivação para crer que, sendo o coronelismo análogo a um
receptáculo do patriarcalismo o seu conteúdo residual induza negligência ao tratamento e
cuidado às mulheres goianas, bem como a impunidade nos casos de violência e ou morte
violenta de mulheres. Segundo Leal (1975) o coronelismo far-se-á em ambientes favoráveis
a estas condutas.
Seu habitat são os municípios do interior, o que equivale a dizer os municípios
rurais, ou predominantemente rurais; sua vitalidade é inversamente proporcional
ao desenvolvimento das atividades urbanas, como sejam o comércio e a indústria.
Consequentemente, o isolamento é fator importante na formação e manutenção do
fenômeno (LEAL, 1975. p. 251).

No que diz respeito às populações femíneas, o processo de habitação do território


goiano se difere de outras ocupações nas diversas regiões do mesmo período, não indicando
relações com as mulheres indígenas, pois os principais relatos históricos da época dão ênfase,
principalmente, a morte das populações indígenas, devido aos conflitos para a dominação
das terras que eram maiores e mais agressivos, levando a dizimação dos nativos do território.
Com relação as populações emigrantes por relações escravistas, há a presença do uso dos
corpos femíneos com o total desprezo pelas populações coloridas. Os homens preferiam não
se casar a firmarem um compromisso com mulheres goianas, ou não brancas, sendo tal
conduta de grande influência no processo de formação social e étnica da sociedade goiana
(Castro, 2009, p. 53).

María Logunes (2014) analisa as relações de gênero, sexualidade e raça concomitante


com a relação entre os colonos e colonizados, sua leitura colabora para que possamos
perceber a profundidade das raízes as quais pertencem as opressões sofridas no estado de
Goiás pelas populações coloridas14 e feminizadas. Não obstante o histórico de dominação
das mulheres, sejam elas negras ou indígenas15, não tomarei como foco o percurso histórico,
mesmo que seja preciso apreciá-lo como locus da compreensão para o período recente. Mais
precisamente, pretendo, aqui, abordar a situação em que se encontram os índices de
feminicídio nas últimas quatro décadas.

Contudo dos dados recolhidos foi preciso reduzir as tabelas e apresentar as taxas mais
altas diante do volume de mortes em relação ao montante populacional. Enfatizo que esse é
um número de vítimas aproximado, a realidade das subnotificações é um dado que não se

14
Nesse trecho desejo abranger a multietnicidade das populações que se estabeleceram em Goiás bem como fazer
alusão a população LGBTQI+ na contemporaneidade.
15
Lugones (2014), em sua equação sobre a colonização do gênero, afirma a necessidade de buscarmos perceber as
relações de gênero a partir do processo de colonização e desumanização dos seres. Para tanto, ainda que brancas
e oriundas das mesmas regiões, as mulheres “colonizadoras”, por não serem o oposto complementar do homem
branco colonizador, não eram tidas em falta ou por algo a mais que uma peça para a passagem de suas riquezas e
genes.
pode ignorar, cujo fato, por outro lado, nos instiga a produzir essa investigação.

TABELA 1 – Feminicídios de Goiás. Mesorregião sul. 1980-2016


Municípios Feminicídios Média População de A cada 100
Mulheres no mil mulheres
ano de 2010.

Davinópolis 5 0,16 973 17,12


Itarumã 11 0,36 2.981 12,30
Paraúna 15 0,5 5.343 9,35
Maurilândia 14 0,46 5.490 8,50
Goiatuba 39 1,3 16.263 7,99
Piracanjuba 27 0,9 11.829 7,60
Edéia 11 0,36 5.488 6,68
Jataí D 81 2,7 44.050 6,12
Santa Helena de Goiás C 33 1,1 18.148 6,06
Caldas Novas D 61 2,03 35.468 5,73
Pires do Rio 25 0,83 14.620 5,69
Bom Jesus de Goiás 16 0,53 9.972 5,34
Orizona 11 0,36 6.917 5,30
Mineiros D 40 1,33 25.765 5,17
Itumbiara D C 73 2,43 47.117 5,16
Catalão D 66 2,2 43.127 5,10
D
Rio Verde 130 4,33 86.481 5,01
Morrinhos C 28 0,93 20.691 4,51
Cachoeira Alta N 6 0,2 4.805 4,16
Mesorregião Sul: 1.029 34,3 627.383 435,19
FONTE: Os dados originais são provenientes do SIM-DATASUS. Até 1995 as informações são do CID9, a partir
de 1996 são do CID10. Os dados referentes a população são do Censo de 2010 provenientes do IBGE. A
transformação dos dados foi realizada pela autora. LEGENDA: D = DEAM; C = CEAM; N = NEAM.

A mesorregião sul conta com o montante de 82 municípios, um total populacional de


627.383 mulheres, onde o número de registros de mortes violentas de mulheres, na série
histórica exibida, chega a 1.029 casos. Ainda que a mesorregião sul conte com seis das vinte
e duas DEAM divulgadas pela Rede de Atendimento à Mulher – 2016, bem como três
CEAM e um NEAM, encontramos dados discrepantes justamente em lugares de baixa
densidade populacional, como o caso de Davinópolis e Itarumã.

Ambas as cidades são consideradas de pequeno porte, o número de casos registrados


é elevado em relação ao contingente populacional e em ambas não há presença de nenhum
dos espaços destinados ao atendimento e cuidado das mulheres. O que provavelmente
implica nas subnotificações dos casos, bem como no agravo do silenciamento das mulheres.

TABELA 2 – Feminicídios de Goiás. Mesorregião Centro Goiana. 1980 – 2016.

Municípios Feminicídios Média População de A cada 100 mil


Mulheres no mulheres
ano 2010

Leopoldo de Bulhões 13 0,43 3.867 11,20


Fazenda Nova 10 0,33 3.070 10,85
Iporá 39 1,3 15.967 8,14
Hidrolândia 20 0,66 8.461 7,87
Goianápolis 12 0,4 5.242 7,63
Firminópolis 12 0,4 5.888 6,79
Uruana 12 0,4 6.817 5,86
Ceres C 17 0,56 10.567 5,36
Goiânia D C 1.082 36,06 681.076 5,29
Anápolis D C 264 8,8 171.565 5,12
Itapuranga N 20 0,66 13.184 5,05
Itaberaí 26 0,86 17.532 4,94
Jaraguá N 30 1 20.639 4,84
Goianira 24 0,8 16.961 4,71
Nerópolis 17 0,56 12.261 4,62
Aparecida de Goiânia D 319 10,63 230.894 4,60
Goianésia D 40 1,33 29.478 4,52
São Luís de Montes Belos N 20 0,66 15.307 4,35
Inhumas 32 1,06 24.592 4,33
Bela Vista de Goiás 15 0,5 11.937 4,18
Trindade D 65 2,16 53.099 4,08
Senador Canedo D 50 1,66 42.215 3,94
Mesorregião Centro Goiana: 2.317 77,23 1.563.976 359,76
FONTE: Os dados originais são provenientes do SIM-DATASUS. Até 1995 as informações são do CID9, a partir
de 1996 são do CID10. Os dados referentes a população são do Censo de 2010 provenientes do IBGE. A
transformação dos dados foi realizada pela autora. LEGENDA: D = DEAM; C = CEAM; N = NEAM.

A mesorregião centro goiana compreende 82 municípios assim como a mesorregião


sul, apesar disso o seu montante populacional é quase o triplo, somando 1.563,976 mulheres.
O número de mortes de mulheres aqui também chega a dobrar de volume, no entanto quando
discorremos sobre a taxa dos incidentes a cada 100 mil mulheres é notável a diferença. Nessa
mesorregião a Rede de Atendimento à Mulher relatou outras seis DEAM, três CEAM e três
NEAM.

Assim como na tabela anterior, as ocorrências nas cidades com baixa densidade
populacional apresentam uma discrepância que deve ser observada com denotada relevância.
Poderíamos dizer que a capital de Goiás é a cidade mais violenta de todo o estado, contudo
o que esses dados conjeturam é que o município de Goiânia é um reflexo da mentalidade do
estado, somado aos problemas sociais encontrados e aprofundados nas regiões mais
populosas.

TABELA 3 - Feminicídios de Goiás. Mesorregião Norte. 1980 – 2016.

Municípios Feminicídios Média População de A cada 100 mil


mulheres no mulheres
ano de 2010

Santa Terezinha de Goiás 14 0,46 5.043 9,25


Mara Rosa 12 0,4 5.228 7,65
Cavalcante N 8 0,26 4.479 5,95
Porangatu D 32 1,06 21.071 5,06
Alto Paraíso de Goiás 5 0,16 3.464 4,81
São João d'Aliança 7 0,23 4.981 4,68
Niquelândia 28 0,93 20.702 4,50
Uruaçu D C 24 0,8 18.506 4,32
Campos Belos 12 0,4 9.262 4,31
Minaçu N 19 0,65 15.333 4,27
Mesorregião Norte Goiana: 197 6,58 146.635 104,66
FONTE: Os dados originais são provenientes do SIM-DATASUS. Até 1995 as informações são do CID9, a partir
de 1996 são do CID10. Os dados referentes a população são do Censo de 2010 provenientes do IBGE. A
transformação dos dados foi realizada pela autora. LEGENDA: D = DEAM; C = CEAM; N = NEAM.

Essa mesorregião conta com 27 municípios e um conjunto populacional de 146.635


mulheres. A população de mulheres nessa região é relativamente baixa sendo suas maiores
concentrações nos municípios de Porangatu, Niquelândia, Uruaçu e Minaçu onde estão
presentes também o maior volume de mortes na série histórica somando 32, 28, 24 e 19
mortes respectivamente.

Os municípios dessa mesorregião em sua maioria são de baixa densidade


populacional sendo encontradas apenas duas DEAM, um CEAM e dois NEAM o que pode
agravar a questão das subnotificações.

TABELA 4 - Feminicídios de Goiás. Mesorregião Leste. 1980 – 2016.


Municípios Feminicídios Média População de A cada 100 mil
Mulheres no mulheres
ano de 2010
Vila Boa 8 0,26 2.136 12,48
Alexânia 34 1,13 11.816 9,59
Corumbá de Goiás 13 0,43 4.942 8,76
Luziânia D C 222 7,4 87.438 8,46
Planaltina D 99 3,3 41.121 8,02
Cristalina 53 1,76 22.575 7,82
Padre Bernardo 29 0,96 13.689 7,06
Formosa D 99 3,3 50.119 6,58
Santo Antônio do 58 1,93 31.826 6,07
Descoberto D
Cidade Ocidental C 47 1,56 28.467 5,50
Pirenópolis 18 0,6 11.239 5,33
Valparaíso de Goiás D 87 2,9 68.331 4,24
Águas Lindas de Goiás 99 3,3 79.692 4,14
D

Novo Gama D 60 2 48.341 4,13


Iaciara C 7 0,23 6.058 3,85
Mesorregião Leste 1.010 33,66 579.169 169,58
Goiana:
FONTE: Os dados originais são provenientes do SIM-DATASUS. Até 1995 as informações são do CID9, a partir
de 1996 são do CID10. Os dados referentes a população são do Censo de 2010 provenientes do IBGE. A
transformação dos dados foi realizada pela autora. LEGENDA: D = DEAM; C = CEAM; N = NEAM.

Esta região tem por um lado em seu histórico as rotas e a busca pelo ouro, por outro
lado comporta os municípios que circundam a capital brasileira, Brasília. A mesorregião
leste conta com 32 municípios em sua grande maioria com populações de médio porte e com
grande volume de feminicídios.

Para tanto, compreende o maior número de delegacias especializadas no atendimento


à mulher, somando sete DEAM das vinte e duas relatadas pelo estado e anda três CEAM são
oferecidos. Os registros de mortes violentas de mulheres desses municípios em sua grande
maioria são datados dos anos de 1980, sugerindo que essa pode ser a região com menor risco
de subnotificação.

TABELA 5 - Feminicídios de Goiás. Mesorregião Noroeste. 1980 – 2016.

Municípios Feminicídios Média População de A cada 100mil


Mulheres no mulheres
ano de 2010
Britânia 12 0,4 2.700 14,81
Mundo Novo 9 0,3 3.007 9,97
Crixás 22 0,73 7.510 9,76
Matrinchã 6 0,2 2.160 9,25
Bom Jardim de Goiás 11 0,36 4.119 8,90
Mozarlândia 16 0,53 6.553 8,13
São Miguel do Araguaia 26 0,86 10.897 7,95
Itapirapuã 9 0,3 3.879 7,73
Jussara 21 0,7 9.539 7,33
Araguapaz 7 0,23 3.653 6,38
Aragarças 17 0,56 9.117 6,21
Piranhas 8 0,26 5.549 4,80
Cidade de Goiás C 16 0,53 12.468 4,27
Nova Crixás 7 0,23 5.694 4,09
Total: 208 6,93 107.639 136,65
FONTE: Os dados originais são provenientes do SIM-DATASUS. Até 1995 as informações são do CID9, a partir
de 1996 são do CID10. Os dados referentes a população são do Censo de 2010 provenientes do IBGE. A
transformação dos dados foi realizada pela autora. LEGENDA: D = DEAM; C = CEAM; N = NEAM.

O Noroeste goiano compreende o menor número de municípios do estado. São 22


municípios abarcando uma população de 107.639 mulheres. Os feminicídios nessa região
somam um total de 208 mortes relatadas. Haja vista que só encontramos um espaço destinado
ao acolhimento das mulheres em situação de vulnerabilidade e nenhuma delegacia
especializada no registro e investigação dessas mortes, a probabilidade de subnotificações
nessa região é ampla.

Análise dos resultados

Como pode ser observado, ainda que a média das mortes violentas de mulheres
expressas possam parecer pequenas temos de nos atentar para a frequência relativa que são
apresentadas pela taxa de mortes a cada 100 mil mulheres. A presença do quantitativo de
mortes relacionados a sua incidência nas amostras populacionais estabelecem um percentil
ilustrativo. Todavia, seguindo o entendimento do antropólogo Lévi Strauss (1982) pode ser
considerado que, são o conjunto de propriedades simbólicas “linguagem, instrumentos,
instituições sociais e sistema de valores estéticos, morais ou religiosos” (Lévi-Strauss,
Claude. As estruturas elementares do parentesco, 1982, p. 44) que ao influenciar
internamente produziria ações externas, para que haja um estabelecimento normativo,
conduzindo a perpetuação destas condutas e códigos.

Para compreender de modo qualitativo a relação dos dados quantitativos já


apresentados buscarei, adiante nas pesquisas sobre feminicídio em goiás, as narrativas de
mulheres que sofreram casos de violência de gênero e procuraram e/ou estão nas casas de
acolhimento a mulheres em situação de vulnerabilidade social (Centros de Referência da
Mulher e Centro de Valorização da Mulher). Desse modo complementarei para apreciação
e análise dos indicadores de violência no estado de Goiás.

A antropóloga Custódia Selma Sena (1998) ao pensar o regionalismo goiano buscou


em Mauss (1977) condições para explicar os códigos contingentes a uma identidade, através
de suas leituras podemos compreender que estes elementos por vezes não seriam explícitos,
mas presentes “vinculadas tanto a sua localização territorial quanto as suas próprias formas
de simbolização” (SENA, 1998, p. 27). Ou seja, “isto equivale a dizer que é a própria
condição de periferia que constitui a região como fenômeno” (SENA, 2010, p. 50).

Compreendamos, para tal, o pensamento coronelista como um fator que envolve e


exerce grande influência sobre a população goiana, isto é, nas palavras da autora:

[...] a construção simbólica da região é parte integrante do fenômeno da região: as


paisagens culturais, os espaços morais, as imagens e os emblemas regionais, as
crenças e valores locais são realidades simbólicas que transformam,
especificando-o, o homem abstrato (universal/nacional) num homem de seu tempo
e de seu lugar. [...] Por outro lado, do ponto de vista do processo de construção
simbólica da região, tanto a literatura regionalista quanto o discurso político, tanto
a interpretação histórica quanto a explicação sociológica regional, são, cada um a
seu modo, expressões da auto-imagem da região. (SENA, 2010, p. 57)

Desse modo, faz-se crer que determinados padrões de comportamento são


reproduzidos derivados das memórias históricas internalizadas, ou nas palavras de Elias
(2006)

Eles são herdeiros não só de uma linguagem específica, mas também de um


modelo específico de civilização e, portanto, de formas específicas de auto
regulação, que eles absorvem mediante o aprendizado de uma linguagem comum
e nas quais, então, se encontram: no caráter comum do habitus social, da
sensibilidade e do comportamento dos membros de uma tribo ou de um Estado
nacional. (ELIAS, 2006, p.23)

Com esta profundidade é preciso ressalvar que existem mecanismos e instituições


que garantem a perpetração e a memória destes códigos de comportamento, identificados
como coronelista, em que Carvalho (2012) assegura:

O coronelismo, nessa visão, não é simplesmente um fenômeno da política local,


não é mandonismo. Tem a ver com a conexão entre município, Estado e União,
entre coronéis, governadores e presidente, num jogo de coerção e cooptação
exercido nacionalmente. (CARVALHO, In: LEAL, Ano: 2012 p. 02)

Para além de sua influência política, que pode sugerir motivação as carências a
respeito do funcionalismo público, conjuntamente, ele apreende valores desfavoráveis à
importância dos papeis de gênero na sociedade, relegando ao feminino menosprezo. Ferreira
(1997) afirma

A mulher obedecia e procurava agradar em tudo a seu marido. Neste tipo de


sociedade, os ajustes violentos não eram esporádicos; apareciam associados a
circunstâncias banais, imersos no cotidiano dos indivíduos. O uso da força, da
violência, era largamente reforçado e utilizado. (FERREIRA, Gracy Tadeu da
Silva. O coronelismo no estado de goiás (1889 - 1930): as construções do
fenômeno pela história e pela literatura, 1997, p. 83)

As mulheres eram submetidas a tratamentos diferenciados, inclusive na igreja, aonde


Castro (2009) nos conta que havia preocupação até mesmo com as portas em que as mulheres
entravam na igreja, pois a elas arrogavam-se a demonização dos corpos, principalmente
àsmulheres negras e indígenas16. As populações que se organizavam na busca de ouro e outros
minérios se apartavam dos laços familiares, na carência da figura de mulher, tal figura só
poderia ser encontrada, diante da mentalidade colonial de gênero, na mulher branca, “a
colonizadora”, conduziam uma vida de lascívia à margem do matrimônio com mulheres
negras e indígenas.

Os primeiros aventureiros que se embrenharam nesses sertões traziam consigo


unicamente mulheres negras, às quais o seu orgulho não permitia que se unissem
pelo casamento. A mesma razão impediu-os de desposarem as índias. Em
consequência, tinham apenas amantes. (SAINT HILAIRE apud CASTRO, 2009
p. 53).

Os estudos sobre o coronelismo em Goiás também mostram a igreja, como um outro


ator de máxima relevância para sua manutenção, ou seja, a conexão entre município, estado
e União que se dava entre os coronéis, o governo e o chefe de estado era reforçada pela
presença da igreja que desde os processos colonizadores travestia-se em um pano de fundo
com as promessas de salvação e misericórdia. Todavia sua função primordial para a
manutenção do status quo era apaziguar os conflitos com a população indígena, catequizando
e difundindo as ideias das hegemonias dominantes sobre os povos dominados17. Contudo
sua conduta mediante ao debate de gênero, inerente ao estabelecimento de políticas de
enfrentamento às violências sofridas pelas pessoas femíneas bem como a qualidade do seu

16
CF. LUGONES, María. Estudos Feministas, Florianópolis, 22(3): 935-952, setembro-dezembro/2014, p. 938.
17
Posto que a igreja tenha se reorganizado através dos séculos, modernizando e revisando sua conduta garantindo
a manutenção de seus fiéis, o seu poder sobre a mentalidade do povo goiano ainda detém uma extraordinária
participação como pode ser observado pelas diversas festividades nos diversos municípios, parte relevante da
economia do turismo.
bem viver, tem se situado em percepções contrárias à ideologia de gênero18, reforçando uma
perspectiva determinista e negando a existência de argumentações científicas sobre o
termo19. Segundo o Instituto Patrícia Galvão (Instituto Patrícia Galvão, 2015) “A construção
de comportamentos legitimados socialmente para homens e mulheres cria e perpetua espaços
para que as violências aconteçam sempre que uma pessoa não se encaixa nos padrões
esperados”, o papel da igreja, portanto, ainda consiste no processo de retroalimentação de
seus moldes preestabelecidos cujo o resultado são barreiras para a emancipação humana.

O coronel narrado por autores como Leal ( 1975, p. 155) apresenta sua dominação
em todos os setores que determinariam a qualidade da vida de seus subordinados, sejam estes
motivados por seus próprios esforços, sejam estes reféns das poucas condições de
enfrentamento como observado na mesma obra “a massa humana que tira a subsistência das
suas terras vive no mais lamentável estado de pobreza, ignorância e abandono”. Ao longo
dos anos essa figura se transmutou, tendo sua imagem suavizada e em muitas regiões
esmaecidas pelas novas formas de dominação. Antes agressivas e violentas, a posteriori
vinculadas cada vez mais ao capital financeiro, como narra Leal (1975, p. 155) “É, pois, para
o próprio “coronel” que o roceiro apela nos momentos de apertura, comprando fiado em seu
armazém para pagar com a colheita, ou pedindo dinheiro, nas mesmas condições, para outras
necessidades”, contudo sem jamais se desvencilharem de outros capitais como os
denominados por Pierre de Bourdieu (1989) de capital simbólico e cultural.

O estado de Goiás oferece a relação de 22 Delegacias Especializadas de Atendimento


à Mulher (DEAM), 11 Centros Especializados de Atendimento à Mulher (CEAM) e 07
Núcleos de Atendimento à Mulher (NEAM)20, em um universo de 246 municípios, sendo
que seis dos onze CEAM estão localizados em municípios em que há presença de DEAM,
ou seja, apenas 13,8% dos municípios goianos estão preparados para o enfrentamento,
acolhimento e registro dos casos de violência contra a mulher e apenas 2,4% dos municípios
estão aptos a realizarem o registro e garantirem auxilio as mulheres vítimas de violência e
em situação de vulnerabilidade.

Interpretamos, para tal, as taxas de violência contra a mulher e precisamente as taxas

18
CF. Arquidiocese de Goiânia, Missa para os professores. <https://bit.ly/2zun9Dp>. Acesso em 28 nov. 2018.
19
CF. Pe. Luiz Henrique Brandão de Figueiredo, Ideologia de gênero de que lado vamos ficar? disponível em:
< https://bit.ly/2zunhmn >. Acesso em 28 nov. 2018.

20
CF. GOIÁS (Estado). Superintendência da mulher e igualdade racial. Redes de Atendimento à Mulher. 2016.
Disponível em < http://www.sgc.goias.gov.br/upload/arquivos/2016-06/lista-de-telefones.pdf >. Acesso em 21
ago. 2019.
de mortes violentas de mulheres no estado de Goiás segundo as análises recolhidas dos
bancos de dados governamentais, as quais apresentam um índice relevante nas regiões
predominantemente dotadas de características rurais, um escasso aporte para registrar caso
haja ocorrência, tão pouco políticas públicas eficazes que impeçam a violências dirigidas as
mulheres em razão do seu gênero de acontecer, como explicitado nas tabelas aqui
apresentadas.

Neste limite, é possível que o coronelismo presente no estado de Goiás possa explicar
a mentalidade subalternizada do povo goiano e com a mesma intensidade a relegação do
sentimento de opressão às figuras femíneas, como aponta Lugones (2014) em seus estudos
sobre a colonialidade de gênero. Por suposto, o coronelismo, tem grande importância para a
não redução da violência de gênero, chegando aos casos de femicídio/feminicídio
precisamente por sua indumentária constituinte de uma cobertura empoderadora e opressora,
que por vezes dissimula o cuidado e proteção em estimação a sua própria virtuosidade.

Conclusões

O pensamento coronelista é um fator que envolve e exerce grande influência sobre a


população goiana se efetuando como uma “expressão da autoimagem” de Goiás, “onde a
vida social é orientada pelas relações pessoais de compadrio, de favor, de proteção” (SENA,
2010, p. 57), atingindo inclusive o funcionalismo público. A suposição sobre esse impacto é
que haja para o mesmo um indicador de impunidade, devido conjuntamente a apreensão de
valores desfavoráveis a importância da tipificação do crime de “feminicídio”, realizada
durante o governo Dilma.

Essa desvalorização gera demasiada relutância ao debate de gênero nas diversas


esferas do poder público, sem as quais não se pode haver entendimento da violência
simbólica pertinente a omissão do debate de gênero e sua relação causal da permanência e
crescimento das taxas de femicídio/feminicídio. Tal negligência favorece a impunidade e o
descrédito quanto a importância da vida das mulheres goianas.

No estado de Goiás os índices expostos conduzem a pertinência dessa reflexão, o


Mapa da Violência do ano de 2015 mostra que no correr de uma década Goiás manteve um
percentil de 89,5 mulheres mortas. Nessa série histórica não houve nenhum ano em que
menos de 100 mulheres fossem assassinadas21, contudo para uma análise qualitativa no que

21
CF. Mapa da Violência 2015, disponível em:
<https://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2015/MapaViolencia_2015_mulheres.pdf >. Acesso em: 12 dez.
2018.
diz respeito as motivações da presença contínua e crescente da violência de gênero,
induzindo tragicamente em sua forma mais calamitosa, o feminicídio, é preciso observar que
“nenhuma lei é capaz, por si só, de alterar um cenário de violência, ainda mais quando
intrinsecamente ligada à cultura de desigualdade e discriminação contra as mulheres”
(YAMAMOTO & COLARES, 2015).

O espectro final aqui demonstrado é um conjunto de argumentações que conduz ao


entendimento de ampla maioria sobre as razões para a perpetração do feminicídio, uma
crítica a identidade coronelista, bem como do não funcionamento das políticas públicas de
combate a violência de gênero quando desacompanhadas do debate de gênero.

Por fim ressalto a importância de permitir espaços para a continuidade de ações,


pesquisas e políticas públicas de enfrentamento, não somente as violências de gênero,
todavia a constituição do imaginário social. É imperativo a necessidade do estabelecimento
do debate de gênero nos ambientes que estruturam a formação de cada indivíduo, tendo em
vista, a sua relação com a cultura dominante local e, por conseguinte o imaginário do
tradicional goiano.

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