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Abri os olhos quando a luz do sol entrou pelas frestas da persiana.

Mesmo embaixo das


cobertas sentia o frio intenso da manhã de inverno. Ouvia na cozinha minha mãe preparando o café.
Estiquei a perna para fora da cama, mas voltei-a imediatamente para baixo das cobertas
quando senti o frio. Resolvi ficar mais uns minutos deitado, contemplando os grãos de poeira
iluminados pelos feixes de luz do sol.
Em seguida ouvi passos lentos em minha direção, cada vez mais altos, até chegarem à minha
porta. Minha mãe bateu três vezes, com leveza, e entrou no quarto. Vi-a vestida com seu pijama
todo branco e os cabelos loiros soltos sob os ombros. Sorriu ao encontrar meus olhos abertos, e
ficou alguns instantes em silêncio, apenas me observando. Em seguida, falou com alegria:
- Bom dia! Chega de preguiça, vamos levantar, que está na hora. O café está pronto na cozinha, e
hoje é dia de aula, não pode atrasar.
E saiu, de volta à cozinha. Me levantei com dificuldade, sem vontade de sair no frio. Na
cadeira ao lado estavam as minhas roupas para a escola, que ela havia deixado separadas ainda na
noite anterior. Camiseta, calça, meias, cueca.
Tirar o pijama era a parte mais difícil. Removi-o com rapidez, e vesti tudo com pressa,
tremendo. Detestava a sensação do tecido frio com o corpo. Por sorte, logo esquentava. Peguei o
casaco que estava pendurado nas costas da cadeira, vesti, fechei bem, e sentei novamente na cama,
com os braços juntos ao corpo por alguns minutos.
Senti uma melancolia diferente. Não gostava de ir à escola. Preferia ficar em casa, junto da
minha mãe o dia todo, como nos fins de semana. Durante a semana era difícil, tinha de sair, ir à
escola e enfrentar aulas cansativas. O conforto da minha casa era muito mais agradável.
Levantei e caminhei até a cozinha, a passos lentos. Quando cheguei, ela já estava sentada na
mesa, com um pão na mão esquerda e a xícara de café na direita.
- Senta, teu café vai esfriar.
Me sentei, tomei um gole do café com leite bem doce. Achei muito quente. Ela já tinha
deixado um pão com queijo no meu prato. Comi-o inteiro, rapidamente. Depois peguei a xícara e
dei alguns golinhos no café, mas não quis terminá-lo.
Minha mãe havia saído da mesa enquanto eu comia, para se vestir. Voltava agora com uma
calça jeans, tênis, e um casaco preto. Nas mãos uma malinha, onde carregava o uniforme do
trabalho. Me viu sentado, olhando a xícara pela metade.
- Não precisa tomar tudo. Vamos, está na hora de ir.
Ao ouvir estas palavras, foi com se uma tristeza repentina tomasse conta do meu corpo. Não
queria de jeito nenhum sair lá fora, no frio, e ter de enfrentar um dia inteiro de escola. Seria tão bom
se pudesse ficar em casa, bem deitado, esperando minha mãe voltar.
Senti uma lágrima escorrer pelo meu olho direito.
- Mas o que é isso? - Perguntou minha mãe.
- Não quero ir.
- Tu já está com nove anos. Precisa se acostumar com a escola.
Após dizer isso, se aproximou e me deu um abraço apertado. Me senti aquecido e seguro.
Ainda não queria sair, mas o carinho foi como uma injeção de confiança, que me deu forças para
levantar. Peguei minha mochila da escola, que ela trouxera consigo quando voltara do quarto. Me
estendeu sua mão e saímos juntos de casa.
O sol nascia, e o aroma dos campos cobertos de orvalho e da lenha queimada nos fogões das
casas ao redor invadia minhas narinas.
Vivíamos em uma vila distante de tudo. Cercada de campos abertos, e coxilhas até a linha do
horizonte. Tinha uma rua principal, onde ficava a escola, a igreja, um mercadinho, uma farmácia e
mais alguma comércio. Nossa casa era rosa, de madeira, cercada por um murinho de pedras, com
um belo jardim à frente. A rua da casa ficava atrás da principal, bem de costas para a igreja da vila.
Ao redor havia mais quatro casas, e à frente mais umas três. Todas muito parecidas, pequenas e
antigas, feitas com tábuas e telhas de cerâmica. Algumas eram coloridas, como a nossa e a do
vizinho, de um verde claro que eu adorava, e minha mãe dizia ser horrível. Já as casas da rua da
frente, com exceção de uma azul, não tinham nenhuma pintura, ostentando as cores naturais do
cedro envernizado.
Descemos de mãos dadas até a rua, e demos a volta pelos fundos da igreja, em direção à
faixa. Via alguns meninos chegando sozinhos para a aula. Uns vinham a pé, em grupos, falando
alto, rindo, fazendo brincadeiras pelo caminho. No outro sentido vinha somente um rapaz de
cabelos bem escuros, em roupas simples, meio sujas, sem casaco, carregando um caderno e o estojo
nas mãos.
Eu era o único que aos nove anos ainda era levado pela mãe para a escola. Isto até se tornara
motivo de piada entre os moleques. Mas tinha de ser assim, do contrário, não iria. Não me agradava
esta situação, o que me dava ainda mais vontade de chorar e desaparecer dali.
Paramos na frente do portão. Minha mãe passou a mão na minha cabeça, se despediu e
seguiu até a parada de ônibus logo adiante. Do lado de dentro, crianças brincavam no pátio. Era um
espaço pequeno, uma quadra de futebol e um pequeno gramado, onde ocorriam aulas de educação
física quando o tempo permitia.
Hesitei por um momento, olhei ao redor e vi que os moleques vinham vindo. Era hora de ter
coragem e entrar, sem demonstrar medo, para que talvez me poupassem das piadinhas.
Segui reto até a frente da porta, onde alguns professores conversavam. Não olhei para os
lados, evitando os olhares das outras crianças. Aguardei apenas alguns segundos, e minha
professora apareceu, chamando todos da turma a formar uma fila, para subirmos à sala. Uma
menina pegou sua mão, e eu fui logo atrás delas.
Cheguei à sala, me sentei na fileira da frente, respirei fundo, e me preparei para mais um dia.
A primeira aula foi de português, tínhamos de separar as sílabas das palavras. Não achava
isto uma tarefa muito difícil, mas a obrigação de resolver exercícios em voz alta me perturbava.
Chamou os alunos em ordem alfabética: primeiro Adriano, que tinha de separar as sílabas da
palavra livro. Respondeu ela, prontamente, li-vro. Em seguida Alice, com a palavra mesa. Disse ele:
me-sa. O próximo era eu, que tinha de soletrar casa. Sabia a resposta, mas não consegui dizê-la em
voz alta. Quem me dera se precisasse somente escrever em um papel.
A professora insistiu. Sem retorno, alguns moleques perguntaram se um gato teria comido a
minha língua, o que provocou o riso da sala inteira.
Lágrimas desceram pelo meu rosto. Não conseguia, e ainda virava motivo de piada.
Os moleques foram repreendidos, a professora pulou minha vez, e disse para eu ir ao
banheiro lavar o rosto. Saí da sala e senti um alívio ao me ver sozinho no corredor. Fui até o
banheiro, lavei o rosto na pia, e me olhei no espelho. Os olhos castanhos cercados de uma
vermelhidão. A dificuldade em segurar o choro era grande. Tomei uns minutos para me acalmar, e
voltei à sala.
O resto da aula seguiu como sempre. Tivemos alguns exercícios de matemática, e no último
período uma aula de espanhol, com outra professora.
Ao fim da aula, fui ao refeitório almoçar. Me sentei longe dos colegas, como sempre. Comi
um arroz com feijão e uma saladinha de verduras. Ao terminar, peguei minha mochila e fui embora
para casa.
Os meninos da minha idade passavam a tarde brincando na rua, jogando bola, aprontando
sacanagens, mas eu sempre ficava dentro de casa. Não me dava bem com eles, não tinha amigos, e
nem queria saber de brincadeiras. O mundo me assustava.
Passei a tarde brincando com uns bonecos do lado de fora da casa. As vezes alguns colegas
meus passavam pela frente da minha casa, olhavam curiosos, e eu geralmente me escondia atrás da
casa.
Nos invernos, minha mãe chegava já de noite. Cansada do trabalho, me dava um abraço, ia
tomar banho, e depois preparar nossa janta. Depois, geralmente sentávamos juntos à frente da
televisão, e assistíamos ao jornal e às novelas, até a hora de dormir.

2
Transcorreu-se a semana como todas as outras. No fim de semana, meu tio de Porto Alegre
veio me visitar. Era irmão do meu pai. Chegou de manhã, quando eu ainda dormia. Acordei com o
barulho dele conversando com a minha mãe na sala. Fui até lá, cumprimentei-o, e não prestei muita
atenção. Comi e voltei ao meu quarto, com meus brinquedos.
Logo mais, a mãe foi me avisar que iriam visitar meu pai no Apanhador.
Não conheci meu pai direito. Tiraram ele de perto de mim quando ainda era muito novo.
Levaram para a cadeia, e lá ele vivia, diziam que pagando por erros que cometera. Meu tio e minha
mãe iam até lá nos domingos, levar algumas coisas e visitá-lo, mas eu nunca podia entrar lá. Diziam
que não era lugar para criança.
Isto gerou em mim um fascínio inexplicável. Quando passava pela estrada, de onde era
possível ver o presídio de longe, ficava fascinado, observando aquela construção cinzenta, cercada
de muros, torres, arames, guardas armados. Sempre quisera saber o que tinha lá dentro, que tipos de
pessoas, o que teriam feito.
Por outro lado, não me despertava muita preocupação a situação do meu pai. Não me
lembrava da sua voz, de sua personalidade. Minha mãe raramente falava dele. Apenas por umas
fotos guardadas no armário sabia como era seu rosto. Não tinha muita curiosidade em conhecê-lo.
Já a casa dele era um local que eu queria conhecer. Ouvia falar que lá aconteciam todas as
piores coisas, que todos os maus, ladrões, assassinos, pessoas que cometem erros, iam para lá pagar
seus pecados.
Uma professora uma vez me disse que eu tinha de tomar o exemplo do meu pai para a vida.
Que não fizesse coisa errada, não cometesse crimes, não fizesse mau aos outros e rezasse sempre,
que não iria para lá. Lugar de gente sem Deus. Casa do Diabo.
Estranho que para alguém com tanto medo da escola, a cadeia não parecia assustadora, mas
interessante, diferente. Falavam que ninguém queria ir para lá, que era o pior lugar, e precisamente
por isso, tinha vontade de entrar lá, de ver com meus próprios olhos.
Pedia com frequência à minha mãe para me levar lá. Dizia que sofria demais com a falta do
meu pai, que queria vê-lo ao menos uma vez, dar um abraço nele. Mentira. Queria matar a
curiosidade sobre o local misterioso e danado que todos temiam.
Uns minutos depois ela apareceu de novo no quarto, me avisando que tinha deixado comida
pronta na geladeira, e estava indo com meu tio ao Apanhador. Nem levantei a cabeça de volta para
ela, me senti frustrado, era mais um Domingo sozinho, e sem desvendar o mistério da cadeia.

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