Você está na página 1de 4

Quando abro meus olhos,vejo que não estou mais acelerada,levanto da cama que antes

pousava meu corpo e coloco os pés no chão frio,sinto como se estivesse flutuando pelo
quarto,nenhum som alto chegava até os meus ouvidos,apenas o leve chiado das ondas do
vento que caminhava no meu rosto.
O celular continuava deitado na penteadeira e as roupas fora do armário,gotas de sangue
no chão e a lâmina que antes estava presa em meus dedos,agora via-se caída embaixo da
cama, tiras de pano branco enroladas junto as mechas de cabelo perto da cadeira da
penteadeira, a Luz branca da lua iluminava o quarto escuro e o vento soprava as cortinas
cinzas.
Dando passos leves eu caminho pelo quarto e ao abraçar o meu corpo,sinto ardência em
meus braços,cortes e arranhões por debaixo das longas mangas da minha blusa
preta,fechei meus olhos em um suspiro e continuei caminhando até chegar no espelho"não
tinha sido um pesadelo,eu realmente tinha feito tudo aquilo",pensei enquanto passava as
mãos no cabelo que agora estava curto,meus olhos vermelhos e inchados,o rosto de uma
garota cansada,os lábios sérios que a tempos não buscavam sorrir.
Sentei no chão encostando minhas costas na porta e passando os dedos no cabelo
busquei não pensar no que realmente tinha feito,um turbilhão de sentimentos estava
presente,mas o pior era o que sempre insistia em ficar,o vazio,quieto e doloroso, trazendo
com ele a solidão,o medo,o arrependimento. Olhei para o relógio 3:45 da manhã,sono eu já
não tinha, então resolvi pegar meu celular,o fone e escutar as únicas coisas que me
acalmavam,minhas músicas,faziam com que eu viajasse em meus pensamentos,ocupavam
minha mente vazia com alguma coisa. Então assim fiquei o resto da madrugada, até dar o
horário da escola.
Assim que o relógio aproximava-se das 6 horas já estava quase terminando de arrumar o
quarto,o sangue e as faixas junto aos fios de cabelo agora via-se dentro do lixo do banheiro
em meio aos papéis. Peguei o uniforme cinza e a calça preta com rasgos no joelho e depois
de passar perfume os vesti, colocando uma blusa azul escuro que tinha mangas bem
largas,tirei o tênis branco Adidas debaixo da cama e o calcei, assim levantei andando até o
banheiro, joguei uma água no rosto e penteie o cabelo, escovei os dentes limpando também
o piercing que continha nos lábio inferior, guardei a escova,desliguei a luz e sai do
banheiro,olhei o relógio já era 6:47,peguei a mochila,o celular pondo no bolso da blusa e os
fones no ouvido saindo de meu quarto em um suspiro.
Como sempre meus pais já estavam acordados, minha mãe ajeitando o café da manhã e
meu pai mexendo no celular degustando seu café preto. Tentei passar rápido sem ser vista
mas fui pega pela minha mãe segurando o meu rosto preocupada "Você cortou o seu
cabelo?! Por que fez isso?!!",escutei meu pai atrás "Ela é adolescente querida,deve estar
mudando 'o visual' como eles dizem, não precisa se preocupar", minha mãe apenas
respirou fundo passando a mão na testa "Senta,o café está pronto não vai pra escola sem
se alimentar", sei que devia fazer um esforço e também não estava tão atrasada,mas
realmente não estava com apetite "Desculpa mãe preciso ir" falei abrindo a porta e antes de
fechar ouvi um "Não vai pra escola sem comer!!" Segui o meu caminho de cabeça baixa,
não conseguia olhar o rosto das pessoas, odiava sair de casa e minha ansiedade fazia
questão de não ajudar, coloquei as mãos nos bolsos da blusa e respirei fundo escutando
"everything i wanted - Billie Eilish" enquanto sentia o ar poluído da cidade ,um aroma
diferente chegou até os meus pulmões,era doce como as flores,ao abrir os olhos a dona
daquele cheiro estava ao meu lado,ela deu um lindo sorriso mesmo que não tenha
mostrado os dentes aquele pequeno sorriso aqueceu o meu peito e pode ver as cores que
vinha junto a ela,sem reação voltei o olhar para o chão arrumando o cabelo. Não sei o
porquê mas ela seguiu todo o caminho ao meu lado e só então percebi que ela estava de
mochila e que estudava na mesma escola que eu,uma parte de mim ficou relaxada por ela
não ser apenas uma estranha maluca. Entrei em meio a multidão no portão de
entrada,parece que estava havendo uma briga feia entre alguns moleques do fundamental e
médio,passei pela multidão e continuei caminhando o trajeto de sempre, pátio, corredores,
sala de aula,carteira, encostei a bolsa do lado da carteira e debrucei esperando alguma
alma chegar e lá vinha:as garotas metidas e ricas, mesmo estudando em escola pública,as
que falam mais que o Maracanã,as dos livros que sempre caem no chão,os que vivem para
fazer bullying, os metidos a galã de novela, os rejeitados, inteligentes e solitários e por fim o
professor pedófilo.
Como já do esperado o professor deu boas vindas (cara,só foi as férias de julho),falou um
monte de "blá blá blá" e quando o povo já estava perto de acabar caindo no sono a porta
bateu, era a diretora "Desculpa por atrapalhar professor, entra aí menina" em meio ao braço
vi quem entrava,era a garota de antes, ela não parecia estar com uma cara boa, aquele
sorriso e as cores tinha sumido,ela sentou na carteira vazia do meu lado sem olhar para
outro lugar a não ser a sua mesa, depois de uma conversa a diretora se retirou e o
professor começou enfim a aula. Tentei prestar atenção na aula, mas dentro da minha
cabeça só tinha um longo buraco vazio, não tinha ânimo, criatividade, tão pouco vontade,
disfarçava quando o professor me dava encaradas, seu olhar era assustador como se
quisesse te comer pelos olhos,um sorriso sarcástico e um disfarce de ingenuidade e
inocência digno de um papel na novela das nove. Já tinha escutado muitos boatos dele por
anos nessa escola,muitas histórias mal contadas e muitas transferências estranhas de
várias garotas.
Meus olhos encontraram com os da estranha garota,logo aquele sorriso apareceu
novamente junto a uma ajeitada no cabelo,era curioso e começou a prender a minha
atenção. O tão esperado Recreio chegou para os amantes da comida escolar, sentei
encostando as costas no tronco seco da árvore que foi minha fiel companheira durantes
esses anos de estudo junto ao meu celular e fones, fechei os olhos respirando fundo e não
demorou para as cenas da noite passada chegarem e o aperto no peito, sons de passos
cada vez mais próximos chamaram minha atenção, desligando a agoniante memória,abri os
olhos e lá estava ela novamente em minha frente,deu um pequeno sorriso e disse "Eu juro
que não estou te perseguindo", "Só está querendo me seguir"falei seria e ela soltou um
pequeno riso "Estou te incomodando?"," Se não me puxar para sair andando pelo recreio
afora tá de boa",ela sorriu novamente enquanto deixava uma perna dobrada e outra
estendida,era impressionante como ela conseguia trazer a beleza para si,os raios de Sol
batendo em seu rosto era algo tão natural mas ela exalava um brilho próprio que prendia
toda a minha atenção, diferentes das pessoas,não conseguia não olhar para ela era
curioso,estranho, intrigante. Ela passou o resto do recreio sem dizer uma única palavra
como se estivesse respeitando o meu espaço,estendeu as mãos em um gesto de querer me
ajudar a levantar, não recusei, levantei segurando em suas mãos e tirei a areia da calça, ela
ponhou algumas mechas atrás da orelha e seguiu ao meu lado.Sua presença por algum
motivo não me incomodava ou me trazia desconfiança,apenas era boa, um carinho
silencioso que foi se estendendo pelos dias,como uma rotina,todo dia ela estava ali do meu
lado, sorrindo porém sem dizer muitas palavras,apenas fazendo companhia e conforme os
meses se passavam sua presença animava os meus dias e aquela estranha conectividade
se tornou uma amizade, que mudou os meus estranhos dias solitários,o tempo agoniante
cheio de pensamentos vazios foi trocado por boas conversas e momentos que alegravam o
meu interior, aquecendo o meu coração e trazendo aquele sorriso nos lábios que por muitos
tempo permaneceram sérios.

Os dias passaram muito rápido,mesmo que no meu ver ele tivesse congelado, exatamente
ali,no nosso pequeno universo paralelo. Devo admitir, esses meses com você ,me fizeram
ver um lado dentro de mim que por mim estavam esquecidos,parados no meu passado de
infantilidade. Os cortes, cicatrizados,as noites em claro,apenas por lembranças do
demorado dia,de nossas aventuras rebeldes. Você me tirou do quarto,fez eu sentir os
suaves sentidos naturais,trouxe o calor do sol mas uma vez a minha pele, aceleração,
ansiedade apenas por tentar te alcançar em corridas.
Estava faltando pouco tempo para o grande inferno chamado pelos "normais" escola
acabar,junto com o ano. Sentada no sofá da sala da casa da Willa (sim o nome dela é
Willa),pensava sobre a grande desgraça de ontem com meus pais. Saio de meus devaneios
quando vejo ela sentar do meu lado com uma garrafa de cerveja."Anda muito pensativa,tem
certeza que não quer falar sobre isso?",respiro fundo e balanço com a cabeça olhando o
chão seriamente,ela me abraçou de lado me fazendo deitar em seu peito,sempre me
confortava,ouvir seu coração,no começo isso me assustava,me deixa confusa,pois não
tinha muito contato com as pessoas,mas com o tempo e com a compreensão da Willa eu
me acostumei com seus afetos. Cada dia mais sentia que estávamos mais próximas,mais
íntimas e em alguns momentos de silêncio,outros sentimentos começaram a aparecer,Willa
como era mais experiente foi quem deu o primeiro passo,na questão de sabermos o que
havia entre nós,isso nós duas descobrimos ao mesmo tempo e não precisamos dizer uma
palavra a outra,apenas sentir,deixar que as coisas acontecessem sem questionar o por que.
Desde então éramos assim, não colocamos rótulos do que era,amizade,namoro...

Não mudei o meu jeito frio,ou sem expressão,apesar de deixar alguns risos, sorrisos e até
amostras de que estava feliz junto a ela, não deixava ela ver o quanto precisava dela,ou
que sentia sua falta,mas de algum modo ela sempre entendia minha silenciosa língua. Ela
anda distante desde que cheguei,ocupada com seus pensamentos preocupados,sentia que
algo bom não iria vir,claro que não iria fazer questão de perguntar,por mais que me
incomodasse.
Sai de seus braços quando ouvi ela dizer que precisávamos conversar. Seu rosto não
estava o mesmo,tinha dado poucas goladas na bebida, então estava sóbria,apenas fiquei
atenta a o que ela queria me dizer. Se arrumou no sofá,respirou fundo passando a língua
em seu lábio inferior enquanto estava de olhos fechados e voltou o rosto em minha direção
"Olha...eu sei que fui muito presente,sempre passei serenidade e alegria, sempre busquei te
animar,tirar você de casa,mostrar a loucura que é você testar até onde você consegue
ir,posso dizer que...eu não sei como seria se não tivesse ficado tão curiosa em te
conhecer,o seu jeito diferente me intrigava,era algo novo e eu queria ver o que daria.
Conhecer a sua personalidade,seu modo diferente de sentir as coisas,seu rosto neutro por
pensamentos e sua alma desacordada,era algo que sempre me impulsionava a trazer ainda
mais o lado bom da vida,que existia sim alguém em uma situação pior do que a minha...que
é preciso apenas ter uma mão estendida um sorriso sincero para te trazer a vontade de
confiar no mundo de novo…
Não importa o que tenha acontecido,ou que disseram tanto pra mim quanto pra você,os
momentos ao seu lado foi os mais felizes e que menos me arrependo de ter vivido,mesmo
com tantas pessoas dizendo que somos aberrações por querer acreditar e viver o amor,
então digo e sempre direi 'Eu te amo' ninguém irá poder apagar o que vivemos,curar ou
exorcizar,somos diferentes,e por isso ficam bravos,por não poderem sentirem o mesmo que
nós,por não serem como nós" colocou a mão no meu rosto,sua mão estava gelada "Eu não
quero enrolar,pois sei que quanto mais demorar, maior vai doer...Eu...vou ter que voltar para
a minha cidade natal e isso quer dizer outro país,meu tempo aqui era temporário,meus pais
estavam aqui por conta do trabalho e sabia que só iria ficar um ano aqui,claro que não sabia
do que me esperava,que iria te conhecer, talvez você ache muita idiotice da minha parte
mas...eu não quero me afastar de você...Eu te amo pra caralho...(senti como se todos os
meus momentos de dor tivessem voltado como um furacão em minha direção aos poucos
perto de me atacar)eu não espero que me perdoe por isso,ou que não me esqueça, só
quero que saiba que não importa a porra de tempo que vou ficar longe,eu vou voltar para
você!!(levantei friamente do sofá,segurando as lágrimas a desgraça tinha começado tudo de
novo e o arrependimento começou a chegar,de ter acreditado,de pensar que podia confiar
em alguém novamente, não conseguia pensar direito em nada mais, só tive a ação de me
virar para ela e botar pra fora tudo que estava preso)

Em meio a espinhos, começamos a brigar, não conseguia entender, não queria entender,ela
tentava se explicar, tentando me fazer pensar que suas palavras eram verdadeiras,que ela
iria voltar,que ela me amava,mas eu não conseguia acreditar estava cega pela tristeza
novamente e nada mais fazia sentido,tudo tinha voltado a ser como era antes,mas a dor era
extremamente maior. Em suas palavras em choro ela jogou a garrafa que estava em mãos
em busca de tirar todo aquele ódio preso dentro de si,apenas abri a porta de sua casa e
friamente disse "Espero que você não volte nunca mais..."

Dentro de mim eu sabia que não queria dizer aquilo,o ódio,a tristeza e o cansaço falaram
mais alto. Sai de sua casa sem rumo, não podia ver mais o mundo igual,estava
completamente desorientada, perdida,em meu próprio pensamento e pra falar a verdade
nem sei como cheguei em casa. Meus nervos estavam mais ativos do que dos meus
tempos de crise e tudo parecia ter voltado ao início,como um sonho que em vista é longo
mas foi apenas uma noite passada. Minha única força,foi de chorar e sentir raiva por estar
chorando outra vez,por ver que tinha me afundando novamente dentro da minha própria
ilusão.

Você também pode gostar