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Emilly Amite

Do outro lado do
Espelho

Série Doze Mundos – Livro 1

3° Edição

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Emilly Amite

Copyright © 2016 Emilly Amite


Registro: Fundação Biblioteca Nacional
Revisão: Ana Paula Alamino Lesser
Colaboradores: Simone dos Santos, Karoliny L. Cardoso,
Priscila Gonçalves, Hellidy Martins.
Arte Capa: Emilly Amite
Imagens: Pixabay
Diagramação: Emilly Amite

______________________________________________
Amite, Emilly. – 3ªed – Publicação independente
2017.
1. Literatura brasileira 2. Fantasia

A autora desta obra detém todos os direitos autorais


registrados perante a lei. Em caso de cópia, plágio e/ou
reprodução completa e/ou parcial indevida sem a
autorização, os direitos do mesmo serão reavidos
perante à justiça.
"Lei nº 9.610, de 19 de fevereiro de 1998."

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Facebook: Emilly Amite / Página: @SérieDozeMundos


Intagram: @Emillysamite
Email: Emilly.s.amite@gmail.com

Copyright © 2016 Emilly Amite

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Aos meus amigos, os verdadeiros, poucos e que ficaram tão distantes de
mim, mas que nunca saem dos meus pensamentos, e que mesmo estando à
distância, permanecem aqui comigo, porque me ajudaram a descobrir que
a vida é cheia de surpresas!

E às minhas filhas, pois foram seus sorrisos que me deram mais


motivação para voltar a escrever essa história

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E. A. Lomérius.

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Prólogo

Estávamos no gramado do quintal dos fundos, eu gritava, implorava


para ela não o destruir, sabia que aquele era o único modo de voltar para
meu verdadeiro lar, no qual só havia passado alguns dias, mas que me sentia
viva. Ela segurava a marreta perigosamente perto do vidro delicado de
cristal e chorava também! Foi a primeira vez que a vi tão nervosa.
Então novamente sua superfície se tornou líquida e dali as sombras
vieram e nos arrastaram de volta para dentro do espelho. Vi-me novamente
caindo naquele breu, só que dessa vez alguém caía comigo, não podia ver
seu rosto, mas sabia que devia estar gravado em uma expressão de terror.
Mal sabia que ela também já esteve do outro lado...

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u estava tendo um sonho muito louco, em uma ida à praia

E durante as minhas férias, comecei a correr, então, todos


que estavam nela me olharam e começaram a correr
também. Quase toda a água do mar era feita de pequenas
bolhas de sabão coloridas que estouravam e nos deixavam
cegos e a areia me dava a sensação de estar pisando em pequenos
pedregulhos de cachoeiras e rios. Quando parei de correr, percebi estar
sozinha no quintal de minha casa e era noite, ao me virar para olhar em
volta, pisei sobre algo frio e brilhante e caí em um buraco sem fundo...

O barulhento despertador em minha cabeceira começou a tocar.


Levantei-me sem ânimo ainda com o sonho louco em minha cabeça e gemi
ao lembrar que era segunda-feira e teria provas finais essa semana. O fim de
semana não foi nada divertido, tendo que sentar e estudar o tempo todo até
meu cérebro travar e não conseguir lembrar de mais nada que estava
estudando. Antes de entrar no banheiro, entrei no quarto de meu irmão
caçula e abri as cortinas deixando o sol entrar, meu irmão estava deitado
todo torto na cama e sua coberta estava parcialmente para fora dela,
terminei de puxá-la e coloquei minha mão gelada por baixo da blusa dele,
ele imediatamente pulou da cama gritando e fazendo caretas.

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― Vamos, Leonard! ― (sim, éramos os irmãos Leona e Leonard!)
Chamei indo em direção ao banheiro ― hoje temos que sair mais cedo! ―
Ele resmungou algo e tenho certeza de que voltou a se cobrir. Entrei no
banheiro para tomar um banho e olhei meu reflexo no espelho, sabe aqueles
comercias de remédios para dormir? Que a pessoa acorda linda, com cabelo
arrumado e roupa perfeitamente esticada? É mentira! Meu cabelo estava
todo embolado, meus cachos castanho-claros pareciam mais com um bolo
de linhas de tricô emaranhadas e embaixo de meus olhos verdes as leves
olheiras davam um contraste nada charmoso com a expressão de cansaço
que eu carregava. Não pude demorar muito no banho, pois teria que fazer
café para meu irmão, da última vez que o deixamos utilizar a cozinha
sozinho, ele quase ateou fogo a casa. Fiz um misto quente e um copo de
achocolatado.
― Levanta! Seu monte de preguiça! Vem tomar café! ― Berrei o mais
alto que pude, então o escutei saltar da cama e correr pelo quarto
desesperado. Fui até a geladeira onde minha mãe havia deixado um bilhete
“Léo, deixei o almoço para vocês no congelador, é só colocar no micro-
ondas, estaremos em casa às 17 horas. Beijos, mamãe”.
Minha mãe sempre foi muito rigorosa, especialmente quando se
tratava da nossa alimentação, mas é claro que eu não ia fazer um prato de
salgadinhos e beber meio litro de refrigerante no almoço. Leonard desceu as
escadas correndo e enfiou seu misto goela abaixo, amaciando com o copo de
leite com chocolate.
― Vai me deixar na escola hoje? ― Ele perguntou me olhando torto.
― Nem pensar! Você desce sozinho para o ponto da sua escola! Se não,
vou me atrasar!
― Tudo bem, mas hoje eu vou almoçar na casa do Diego, a mãe dele
vai ligar para a mamãe.
― Se ela ligar, tudo bem! ― Tomei um copo de leite, escovei os dentes
e saímos para ir à escola. O ponto de ônibus ficava a uma quadra da minha
casa e a escola de Leonard era três quadras depois da minha, era uma viajem
curta, apenas dez minutos.

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― Me mande uma mensagem quando chegar lá! ― Gritei para meu
irmão na janela do ônibus quando desembarquei. Ele acenou, tinha que
cuidar bem dele se não era castigada pelo meu padrasto, era meu pai, mas
como não sentia nenhuma afinidade por ele, fingia ser meu padrasto para
justificar a falta de sintonia entre nós.
Os corredores estavam abarrotados de alunos mortos-vivos, era uma
segunda feira de provas finais, todos carregavam a mesma expressão de
sono que eu, e na certa, todos estavam em desespero para não ter que ficar
em casa estudando nas férias que se aproximavam. A minha primeira aula
seria de educação física, então meu dia não havia começado tão mal. Como
hoje era prova, o professor havia colocado marcações pela quadra como se
fosse uma gincana.
― Leona! Bom dia! ― Suely, uma aluna de tamanho avantajado,
correu na minha direção ― hoje ficaremos em dupla para a gincana de
prova, ok? ― Nós nos dávamos bem nessa aula, pois corríamos mais que os
outros alunos, eu era quase aerodinâmica, meu corpo era magro e eu não
tinha muitos atributos interessantes (em outras palavras, era uma tábua)
então me dava bem em quase todos os esportes que praticava, pois não tinha
o risco de pular e ficar parecendo uma cena de filme adulto.
Sempre que havia necessidade de duplas, Suely e eu nos uníamos para
pegar as melhores notas, pois na minha turma só haviam alunos preguiçosos
e gente que ficava dormindo escondido durante essa aula. Minha única
amiga de verdade estudava em outra turma então, só nos víamos durante o
intervalo. Esse seria meu último ano nessa escola, havia voltado para essa
cidade apenas para completar o ensino médio, pois vivi muito tempo com
meus avós no campo e minha única amiga, Lucy, era tão chegada que sua
mãe havia dado permissão para ela ir com minha família viver no campo
conosco. Essa cidade não era tão grande, porém não era tão pequena quanto
a outra em que eu vivia, também era mais próxima das cidades centrais e
ficava apenas a algumas horas de carro.
Eu tinha quase um treinamento de sobrevivência, Lucy, meus primos,
meu irmão e eu sabíamos caçar, montar armadilhas, cabanas e pescar, meu
avô gostava de nos levar para fazer trilhas e camping selvagem, pois ele

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achava que se nós nos perdêssemos um dia, do jeito que éramos frescos,
morreríamos no mato. Isso nos deixou muito fortes e eu às vezes parecia
mais um garoto do que uma jovem de dezessete anos.
A gincana da prova de educação física foi fácil, uma grande corrida de
obstáculos com curvas, cordas para ficarmos suspensos sobre areia fofa e
alguns saltos pequenos que para Suely e para mim, foi moleza.
Até a hora do intervalo fiz três provas de fim de ano, cada uma mais
terrível que a outra, os professores haviam caprichado com suas intenções
malignas de detonar alguns alunos e quando finalmente chegou o momento
de dar uma pausa, já estava ficando cansada. Avistei Lucy sentada embaixo
de uma árvore do lado de fora do refeitório, ela é uma pessoa muito sensitiva
e por isso às vezes fica viajando, sentei-me a seu lado para conversar e ela
estava com o olhar perdido no céu.
― Léo... ― ela estava com a voz distante ― e se pudéssemos viajar
para outra época? Pra onde você gostaria de ir?
― Eu não sei Lucy, talvez para o passado... devia ser legal andar a
cavalo e dormir sob as estrelas!
― Eu gostaria de ir para algum lugar onde fosse tudo igual e tudo
diferente... talvez num mundo tipo os dos filmes de fantasia...
― Lucy?
― Que foi?
― Você bebeu calda de chocolate no café de novo? ― Ela virou os
olhos na minha direção e ficou corada, apesar da mente infantil que ela
tinha, eu gostava de imaginar as coisas que dizia, algumas me faziam rir
muito.
― Sabe Léo, estou com uma sensação estranha, como se fosse
acontecer alguma coisa! ― Um frio passou pela minha espinha, pois sempre
que ela falava isso, algo realmente acontecia. Na última vez em que ela disse
essa frase, cheguei em casa e recebi a notícia de que algumas pessoas
conhecidas da escola do campo haviam sofrido um acidente.
― Vamos para Niterói de noite? Ficar na casa da sua tia e ir ao
shopping ver um filme? ― Perguntei, ela sorriu para mim e assentiu. O sinal

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do fim do intervalo tocou rápido demais hoje. Voltei para a sala e terminei
as últimas provas do dia, estava entediada, fiquei pensando que logo teria
que resolver o que faria do meu futuro, mas ainda não sabia o quê e não
estava muito animada com mais estudos. Antes de sair da escola, aproveitei
para almoçar na cantina, o almoço da turma da tarde parecia muito melhor
que o café sem graça que ofereceram para nós mais cedo.
Resolvi ir andando para casa já que hoje não estava muito quente.
Peguei meu celular no bolso da mochila e notei que haviam três mensagens
não lidas. A primeira era de meu irmão dizendo que havia chegado à escola,
a segunda era de minha mãe confirmando o almoço dele na casa do amigo e
a terceira era de meu irmão de novo dizendo “eu te disse que ela deixaria”.
Bloqueei a tela, coloquei o telefone de volta no bolso e continuei andando,
parei na praça próxima à escola, estava um dia lindo, morno e a brisa estava
suave, bateu uma preguiça, então resolvi me deitar no gramado para
aproveitar um pouco mais.
Acordei com o som de uma revoada de andorinhas, eram quase seis
horas da tarde, levantei-me alarmada, meio tonta ainda, fui andando pela
rua, que já estava meio morta a essa hora sem movimento de pessoas, só
alguns gatos esticados em pontos estratégicos aproveitando os últimos
feixes de luz solar. O bairro sempre foi muito calmo, o céu estava passando
de alaranjado para púrpura, continuei andando lentamente apreciando ao
máximo o anoitecer. Ao passar por uma quadra, notei uma luz acesa que
vinha de uma garagem aberta cheia de quinquilharias e uma senhora idosa
de aparência frágil colocando mais caixas para fora. Como eu sou uma
pessoa muito curiosa e as pessoas dessa cidade não são de desconfiar de seus
vizinhos, resolvi entrar no quintal e oferecer ajuda para ver se havia algo
interessante por lá.
― Hum, com licença, a senhora precisa de ajuda? ― Perguntei à
senhora que carregava as caixas. Ela ergueu os olhos e se iluminou ao
perceber que teria ajuda para arrumar aquelas tranqueiras.
― Claro, minha querida! Pode me ajudar a tirar essas caixas de dentro
da garagem? ― Fui até uma pilha de caixas de papelão empoeiradas e
comecei a tirar uma por uma e colocar na varanda. Eram caixas de diferentes

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tamanhos e pesos, algumas com o fundo bastante gasto balançavam
perigosamente nas pilhas mais altas. Alguns minutos depois e com surtos de
tosse, já tinha colocado todas as caixas na varanda, mas não tinha nada de
curioso, só algumas antiguidades, louças e álbuns de fotografia. A senhora
trouxe um copo com refresco para mim e começou a revirar o conteúdo das
caixas. Havia muitas lembranças de valor ali, como porcelanas antigas com
detalhes em ouro, provavelmente era um tesouro de família.
― Eu estava esperando terminar a obra de minha cozinha para
colocar essas louças, minhas filhas ficaram de vir me ajudar, mas acho que
tinham coisas mais importantes a fazer. ― Disse a velhinha, eu senti muita
pena dela ali sozinha, mas eu precisava ir para casa. Quando ia me despedir,
notei no fundo de uma das caixas que havia um enorme embrulho embalado
em panos velhos muito sujos. Puxei os panos e vi que era um espelho antigo
emoldurado em cedro e contas de marfim.
― A senhora vai pendurá-lo? Parece bem pesado! ― Disse, retirando
os panos e fazendo com que uma nuvem de poeira rodeasse a nós duas.
Fiquei olhando para meu reflexo quase invisível sob as camadas de sujeira
do espelho.
― Ah não, este espelho é muito antigo e é de cristal, não traz boa sorte
ter um espelho desse dentro de minha casa! No final da rua tem um brique,
ainda deve estar aberto, leve-o para mim e tente negociar com o dono! Pode
ficar com o dinheiro do espelho pela sua ajuda! Obrigada!
Fiquei contente, devia valer um bom dinheiro e eu poderia juntar com
a minha mesada para fazer umas compras boas. Peguei o espelho com muita
cautela, as bordas de sua moldura eram grandes e pareciam ter detalhes em
ouro envelhecido, mas provavelmente não era, se não ela não teria dado
para eu vender. Era pesado, muito pesado na verdade, minha sorte foi que
eu já estava acostumada a carregar peso, pois ajudava minha mãe com as
caixas de tranqueiras de seu antiquário. No fim da rua onde ela dissera, havia
uma casinha velha de madeira com uma plaquinha de “Brique do Vovô” na
porta. Entrei com cuidado e coloquei o espelho em cima do balcão. Um
senhor de aparência sonolenta apareceu para me atender. Ele parecia um

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bulldog enrugado, olhou de mim para o espelho e com um olhar entediado
disse:
― Cinquenta reais e eu lhe compro ele! ― Cinquenta reais não me
pareciam muita coisa, mas como eu não sabia o valor e não tinha intenção
de voltar e perguntar à senhora...
― Setenta e a gente fecha? ― Perguntei tentando a sorte, o velho me
olhou, olhou para o espelho novamente e acenou com a cabeça, pegou
dinheiro numa caixinha de madeira em cima do balcão e me entregou
algumas notas amassadas, peguei-as, conferi e enfiei em minha carteira.
― Moça! ― Chamou o senhor enquanto eu me virava para poder sair
― pode colocá-lo ali nos fundos para mim? Meu braço está enfaixado e eu
posso deixá-lo cair. ― Bufei. Não tinha como deixar o velhinho na mão,
peguei o espelho e fui para o quintal na parte de trás e o coloquei na varanda,
a luz da varandinha estava acesa e então notei que nas bordas do espelho
havia uma frase escrita em um idioma que reconheci imediatamente como
latim. Eu sabia ler um pouco em latim, gostava muito de línguas antigas e as
estudava por causa da loja de antiguidades de minha mãe, peguei um pano
velho que estava em cima de uma penteadeira antiga de madeira e comecei
a limpar a moldura do espelho para poder ler. Estava escrito em letras muito
bem desenhadas:
“Accessus in alterum orben noctu adarati plenilunium portan aperuerit, sed
tantum licet puris intrare”
Que significava mais ou menos:
“O portal para o outro mundo se revela ao anoitecer, a lua cheia abrirá
um portal, mas só os puros poderão entrar. ”
Fiquei olhando para aquelas letras, a frase não fazia nenhum sentido
naquela moldura de espelho. Eu olhei para o céu e a lua estava começando a
aparecer. Olhei de volta para o espelho e vi o reflexo da lua, quando de
repente a inscrição na moldura brilhou levemente e o vidro do espelho
começou a tremer, eu olhei para meu reflexo no espelho e ele começou a
borrar até desaparecer por completo, vi que a superfície dele estava mole,
quase líquida.

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Fiquei assustada, sabia que deveria me afastar, sentia meu coração
batendo tão rápido que fazia um zumbido em meus ouvidos. Estiquei a mão
para tocar sua superfície e quando meus dedos tocaram a superfície do
espelho, eu senti um puxão e meus pés saíram do chão. Fui puxada para
dentro dele e me vi caindo em um túnel brilhante e prateado. Minha
garganta ardia de tanto que eu gritava, pois, o túnel não parecia ter fim.
Fechei os olhos. Alguns segundos depois, eu ainda estava caindo e já havia
ficado quase sem voz de tanto gritar, fiquei imaginando a velocidade que eu
acertaria o chão, seria com certeza o meu fim! Se é que esse túnel teria fim.
Só podia estar sonhando, me belisquei, mordi o braço, puxei meu cabelo e
nada de acordar, estava realmente acabada! Eu nunca tive um namorado, eu
não me despedi de ninguém e agora morreria em uma colisão com o chão
que parecia nunca chegar.
Quando olhei para o fim do túnel, vi uma escuridão. Aquilo me
apavorou mais que o túnel em si, meu corpo começou a desacelerar, foi
como estar freando no ar! Encolhi-me como forma de me preparar para o
choque e fechei os olhos, não importava o que fosse, eu não queria ver. Senti
meu corpo bater em algo e fiquei imediatamente sem ar. Ao abrir os olhos,
percebi que estava dentro da água, que por mais estranho que pareça, estava
morna, quase quente e senti pequenas correntes elétricas em meu corpo.
Segurei firme o ar em meus pulmões, sabia que o ar em meu corpo
iria me mostrar a saída da água, pois estava um breu tão escuro que não
podia ver meu dedo na frente dos olhos. Meu corpo fez uma leve inclinação,
então nadei para onde estava levantando, botei o rosto para fora da água,
puxei o ar e fiquei aliviada de sentir que era ar puro e não algum gás
venenoso ou vácuo como nos filmes de ficção.
Dei graças a Deus por ter deixado todo meu material com Lucy, para
que ela estudasse a matéria que não havia copiado. Olhei em volta e ainda
estava muito escuro, eu não sabia onde era a margem, mas não podia ficar
dentro da água para sempre, então forcei minha vista e quando vi que não
muito longe de onde eu estava boiando havia uma fraca luz como a de uma
vela ou uma lamparina, nadei desesperadamente naquela direção, senti
meus pés baterem em alguma coisa, me assustei com o impacto e percebi

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então que não era nada demais, só a margem se aproximando, saí da água
devagar, afundando meus pés na grossa lama, um pouco mais para frente,
abaixei para tocar no chão e notei que havia muito mato, sentei-me mesmo
assim e peguei meu celular do bolso.
Por sorte era lançamento, a prova d’água (com a minha sorte, eu
poderia deixá-lo cair no vaso sanitário, na piscina ou mesmo na pia
enquanto lavava a louça) pelo menos era mesmo a prova d’água, desbloqueei
a tela e vi que estava sem sinal, ótimo, isso eu já esperava, o relógio dele
indicava que eram quinze para as oito da noite, procurei a função lanterna
e comecei a andar pela floresta à beira do lago, estava muito frio, mas o único
agasalho que eu tinha estava dentro da mochila e com certeza estava
encharcado. Vi novamente a fraca luz na floresta e comecei a andar em
direção a ela, meu coração estava disparado, eu não era muito medrosa, mas
um barulho nos galhos das árvores perto de mim me fez-me querer correr
como um rato assustado.
Estava com os olhos cheios de lágrimas e com as pernas travadas.
Totalmente apavorada, virei lentamente quando senti algo gelado tocar em
meu braço, uma figura encapuzada segurava uma lâmina a poucos
milímetros da minha pele, quando eu ia gritar, ela tapou minha boca e
apontou para o lado, outra criatura estranha estava de pé próxima a nós.
― Faça uma reverência! ― Disse a voz feminina.
― O quê? ― Eu olhei para o capuz e de volta para a criatura de olhos
enormes e amarelos.
― Quer morrer? Se curve! ― Eu lentamente curvei a cabeça como
num cumprimento, a criatura imitou meu gesto e uma porção de água que
estava sobre sua cabeça derramou no chão, então ela fez um movimento
brusco e se atirou no lago de novo.
― O que era aquilo? ― Perguntei assustada.
― Um Kappa. Oras, o que você achou que era? ― Ela retirou o capuz
e me olhou, seu olho esquerdo era fechado por uma enorme cicatriz que ia
da sua testa até a bochecha ― apague essa luz, ou vai atrair mais deles! ―
Eu apaguei a luz e comecei a segui-la pelo som, já que ela havia apagado a
lamparina e não dava para enxergar nem a minha mão na frente do rosto.
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Ela andava em passos largos, eu estava com medo de ficar para trás e andei
mais rápido para manter o passo com ela. Alguns segundos depois, ela parou
e virou em minha direção.
― Até onde pretende me seguir? ― Eu dei um pulo para trás com o
susto que levei.
― Eu estou perdida! Caí naquele lago e não sei onde estou nem como
voltar pra casa, pelo amor de Deus, me deixe ficar com você! ― Eu estava
com tanto medo e tanto frio que aquelas palavras saíram mais tremidas e
dramáticas do que eu esperava. Ela continuou parada me olhando, suspirou
e então falou.
― Tudo bem, você pode ficar na minha casa até amanhã. Depois
veremos o que fazer com você!
Nós andamos por tanto tempo que meu corpo já estava ficando
dormente, quando ela parou, eu olhei para frente e vi luzes vindas de uma
pequena casa no topo de uma árvore. Ela puxou uma corda presa na casca
da árvore e uma escada de corda e madeira se desenrolou e bateu com um
ruído abafado na grossa casca da árvore, ela subiu sem demora e eu a segui.
A árvore era muito alta, a casa devia estar a uns dez metros do chão,
pelo menos. Tinha dois andares e me surpreendi quando me deparei com luz
elétrica no meio de todo aquele mato. Ela abriu a porta e mandou que eu
entrasse, a casa era rústica, mas bem decorada, todos os móveis eram de
madeira e tinha uma lareira acesa no canto de uma enorme sala. Ela atiçou
o fogo e o alimentou com mais lenha. Ela era muito bonita, tinha longos
cabelos negros e parecia ser muito forte, seu olho era repuxado no canto e
de um verde amarelado e a pele branca levemente bronzeada, parecia ser
asiática. (Será que eu havia atravessado aquele espelho e ido parar no
Japão?)
― Você está toda molhada, venha. ― Ela me guiou até uma porta onde
havia um banheiro, era de louça e tinha uma banheira grande com duas
torneiras. ― A torneira maior é a de água quente, pode tomar um banho, a
água daquele lago está um pouco perigosa nessa época do ano.

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― Eu não tenho roupas! ― Ela me olhou de cima a baixo e saiu do
banheiro, voltando pouco depois com um vestido marrom longo e de
mangas longas com um símbolo de duas espadas cruzadas na altura do peito.
― Esse deve servir em você. Como é seu nome?
― Leona, e o seu?
― Nellena, mas pode me chamar de Nena.
― Pode me chamar de Léo se quiser! ― Ela deu um breve sorriso e
pegou uma toalha, colocou num gancho na parede e saiu. Tirei minha roupa
molhada e entrei na banheira, liguei a água quente e botei o pé em baixo,
quase ouvi um chiado quando a água caiu na minha pele.
― Ah, regule a temperatura com a torneira de água fria! ― Fiquei
imaginando que ela poderia ter me dito isso antes, pois agora eu estava com
uma pequena bolha no alto do pé, deixei a água na temperatura de fazer uma
canja de tanto frio que estava sentindo e entrei na água, soltando um
choramingo de alegria. Fiquei um bom tempo ali de molho, mas tinha que
sair logo pois precisava de algumas respostas, então sequei-me e coloquei o
vestido que ficou um pouco frouxo no quadril e nos seios, mas de
comprimento ficou ótimo. Antes de esvaziar a banheira, lavei minhas
próprias roupas na água, meu moletom cinza estava quase pingando lama e
a blusa não estava em melhor condição. Quando saí do banheiro, Nena
estava sentada em frente à lareira.
― Ponha suas roupas nessa cordinha atrás da lareira, até amanhã elas
já estarão secas, pode ficar com este vestido se quiser.
― Obrigada. ― Ela havia arrumado uma cama para mim no chão perto
da lareira e colocado uma fina grade de proteção para não voar brasas onde
estava a cama, fiquei em dúvida se ela não havia me dado um quarto por
segurança ou pelo frio que estava fazendo. Eu pendurei as roupas e me
deitei. Ela estava me olhando.
― Nena, onde eu estou? ― Perguntei.
― Na floresta de Gheshira, no continente sul de Mantum, em Amantia
claro!
― Amantia?

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― Sim, este mundo se chama Amantia. ― Meu estômago afundou e
senti minha visão embaçar de pânico, no momento em que atravessei o
espelho, eu cruzei uma fronteira para outro mundo! Mas, como? Minha
cabeça doía demais para pensar nisso, queria dormir e tentar acordar desse
pesadelo! Coloquei a mochila perto da lareira para secar também, olhei o
celular, havia o ganhado de presente de natal, era inquebrável e a prova
d’água, meu pai escolheu esse depois de eu quebrar uns dez diferentes em
menos de seis meses, a proteção de tela era uma foto da minha família numa
viajem de férias, meus olhos ficaram úmidos, pois eu não sabia se voltaria a
vê-los! Desliguei o celular para não acabar a bateria.
― Precisa de carga? Tem uma tomada ali no canto. ― Eu a olhei e
lembrei que tinha um carregador extra na minha mochila, mas ia esperar
secar.
― Agora não, obrigada. Vocês têm celulares por aqui?
― Não são iguais a esse seu aí, são mais antigos. A tecnologia aqui é
quase igual à do seu mundo, pois temos grupos que vão lá buscar coisas para
revender aqui para os sem magia, embora quase não precisemos. ― Olhei
para ela quase sem acreditar. ― Aqui é minha casa de caça, por isso é tão
rústica.
― Mas você sabe de onde eu venho? E essas roupas? ― Perguntei ―
parecem medievais!
― Imagino que você seja de algum mundo do outro lado dos portais,
tem aparência muito frágil comparada a pessoas desse mundo, então concluí
que seja de um dos outros, e pela tecnologia – Ela apontou o celular em
minha mão ― da terra. E as roupas, elas são quentes, a fibra especial usada
para esse tecido é colhida em plantações não muito longe daqui. Esse
vestido é um uniforme padrão dos caçadores da minha raça.
― Sua raça? Como assim? ― Ela notou meu tom de voz assustado e
riu.
― Você não está mais no seu mundo, mas não se preocupe! Sou
humana também, criança! Aqui existem várias raças de humanoides, fora os
monstros! ― Fiquei encantada e ao mesmo tempo apavorada com a ideia de
um mundo paralelo cheio de criaturas diferentes.
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― Mas eu já ouvi falar desses Kappas no meu mundo, são demônios da
água, não é?
― Sim, mas existem lendas, e as lendas vem de algum lugar, certo?
Demônios, monstros e as raças de humanoides daqui, como eu disse, podem
vagar entre os mundos. Existiam muitos portais e vários seres costumavam
escapar, até que a maioria dos portais que não eram seguros foi lacrada,
agora existem poucos e a maioria deles é aberta artificialmente nas cidades
dos Metamorfos ― explicou ela, meu estômago embrulhou ― Agora sugiro
que vá dormir, amanhã vou te levar para Alamourtin. ― Eu queria
perguntar mais, saber mais, porém ela já havia se levantado e saído andando.
Não tive escolha senão tentar manter a calma, fiquei ali deitada pensando
que isso ainda poderia ser um sonho. Só deixei de acreditar que seria sonho
no momento em que adormeci rapidamente.

Acordei com cheiro de comida no ar, achei que era mamãe fazendo
algo diferente e levantei num pulo. Olhei em volta, vi a lareira apagada e
minhas roupas na pequena corda atrás dela, isso realmente não foi um
sonho, bateu uma tristeza, um desânimo enorme. Levantei-me e senti meu
coração apertado, arrumei a cama improvisada como uma boa hóspede,
dobrei os cobertores e os empilhei em cima do pequeno sofá trabalhado em
troncos e almofadas grossas de couro e fui até onde estava Nena.
― Bom dia! ― Disse ela colocando uma caneca grande de algo
parecido com café na mesa.
― Isso é café? ― Perguntei mesmo sabendo que não era pelo cheiro.
― Não, é um chá preto. Pode beber, não tem gosto ruim. ― Nena
pegou um pão escuro também, cortou em fatias e colocou sobre a mesa com
um pote de manteiga e um prato cheio do que parecia ser salame artesanal.
― É pão de sementes e trigo escuro. ― Ela explicou olhando minha
expressão, eu não queria fazer desfeita, peguei uma fatia e dei uma mordida,
parecia com pão integral, só que um pouco mais pesado.
― É bom! ― Eu disse dando outra mordida.

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― A manteiga é de leite de cabra, é bom você comer, nós vamos andar
muito. ― Eu passei um pouco, fiz um sanduíche com o salame e comi,
realmente era bom, tomei um gole do chá. Meus olhos ficaram vermelhos, o
chá era forte e picante. Nena começou a rir.
― É diferente... ― tomei todo o chá de uma vez só e usei o pão para
tirar o gosto ruim da boca. Depois do “café” ela colocou umas botas grossas
e me passou um par de botas também.
― Coloque essas, são mais seguras que esse seu sapato que deixa as
canelas de fora. ― Peguei as botas e olhei de novo para meu tênis. Ele já
estava seco, mas pelo jeito do mato que eu havia visto ontem, preferi colocar
as botas. Fiz uns rolinhos com as minhas roupas e coloquei dentro da
mochila, o resto das coisas dentro dela já estavam secas, organizei tudo
dentro para caber todas as roupas. Nellena pegou um alforje e passou pelo
braço, então saiu segurando a porta para que eu fosse atrás. Ainda era muito
cedo e estava um pouco escuro quando pisei na varanda daquela casa da
árvore e percebi que estávamos no meio de uma floresta enorme. Descemos
as escadas da casa e ela puxou a corda até a escada estar totalmente enrolada
no topo da pequena varanda. Estava clareando rápido e quando olhei para
cima tive uma grande surpresa.
― Dois sóis? ― Eram realmente dois sóis, um quase branco e outro
mais avermelhado de cada lado do céu.
― Sim, Sirius e Áries. De uns tempos para cá vem ocorrendo um
estranho fenômeno, uma vez por mês apenas Sirius ilumina o céu, o mundo
fica totalmente vermelho, neste dia, todos devem ficar em locais cobertos,
pois ele pode fritar uma pessoa em questão de segundos, a maioria da
vegetação de áreas mais secas murcha e queima, e em locais que têm muitos
rios e lagos a quantidade de vapor fica enorme, aí no final do dia de Sirius
chove muito, mas esse mundo se refaz em algumas horas toda vez que é
destruído.
― Então, por que não queima agora? ― Estava começando a
esquentar sob os sóis, era como andar numa praia de manhã procurando um
lugar para montar a barraca.

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― Porque Áries neutraliza o calor de Sirius. Uma vez por mês, Áries
também fica só no céu, neste dia a terra congela, as plantas morrem também,
mas algumas horas depois estão totalmente recuperadas e vivas, os
movimentos desses sóis são bastante incomuns. ― Disse ela, olhei para os
sóis de novo, não doía olhar para Áries, mas não me atrevi a olhar direto
para Sirius. ― Só os salamandras podem sair quando Sirius está só no céu,
pois suas peles não queimam.
― Salamandras? ― Eu sabia que eram bichinhos como lagartos, mas
nunca tinha visto uma.
― Sim, são muito bonitos, mas são irritados, nunca provoque um
salamandra se não, dependendo da ascendência ele pode atear fogo em você
ou te queimar com o calor que geram! ― Estávamos andando há alguns
minutos, a vegetação estava verde e novinha, como se tivesse acabado de
nascer e crescido instantaneamente. Perto de nós tinha um rio largo de
águas cristalinas e no meio dele, um pouco mais à frente, tinha um enorme
moinho de madeira e metal. Mais à frente havia algo como uma fazenda.
― Esse moinho que leva eletricidade para sua casa, não é? ― Ela
assentiu com a cabeça, foi até a beira do rio encher uma garrafa com água e
voltou. Chegando mais a frente eu vi uma cerca alta de madeira, Nena abriu
um portão grande e pegou um arreio que estava pendurado do lado de
dentro. Deitado na grama bem no meio do campo cercado havia um enorme
cavalo marrom. Quando eu digo enorme é por que era realmente enorme,
ele devia ter uns três metros de altura e era forte, troncudo. Ele levantou as
orelhas, se levantou e começou a vir na nossa direção. Nena tirou de dentro
de uma bolsa de couro duas bolotas grudentas e as deu ao animal, que as
mastigou e ficou saltitando em volta de nós.
― Este é Pupo, meu bichinho de estimação. Eu dou essas bolas de
açúcar de batatas a ele para comprar seu bom humor! ― Ela riu, tirou uma
sela grande que estava pendurada na cerca e colocou em cima do cavalo. Ele
imediatamente se deitou no chão com a cabeça abaixada, Nena terminou de
prender a tira de couro em volta do tronco do cavalo e montou. Ela esticou
a mão para que eu subisse também, mesmo com o animal deitado, tive
dificuldade para montá-lo. Já havia cavalgado antes no sítio do vovô Enzo,

22
então talvez, só talvez, não fosse cair. Montei atrás de Nena e andamos
lentamente até onde estava o portão, ela o fechou, passou um trinco e
sussurrou algo para o cavalo.
― Segure-se em mim com força, senão você vai cair! ―
Imediatamente eu agarrei a cintura dela e o cavalo disparou! Ele corria tão
rápido que não podia distinguir o que passava por nós, só vi o rio se
aproximar, meu estômago afundou e quase mastiguei os pães de novo, ele
deu um salto quando alcançou a margem e pareceu voar por cima das águas
cristalinas, pousando do outro lado com tanta leveza que mal senti tocar o
chão, logo arrancou de novo e continuamos a correr, fechei meus olhos e
coloquei a cabeça nas costas de Nena, torcendo para que o café não
resolvesse sair. Tive certeza de ter escutado suas risadas e acabei
adormecendo enquanto corríamos, pois tudo que podia ver eram borrões.
Acho que haviam se passado pelo menos umas cinco horas desde que
começamos a correr, pois meu estômago estava doendo e roncando.
Finalmente tive coragem para olhar para os lados de novo e vi uma enorme
estrada de pedras largas e achatadas ladeada por longas árvores de folhagem
cor de vinho, com cuidado, olhei por cima do ombro de Nena, mas ainda não
via nenhum sinal de civilização, apenas a estrada e a vegetação ao nosso
redor.
As árvores eram enormes e das mais diversas cores, a maioria com
folhas em tons de cobre, vinho e verde oliva e de cascas grossas e escuras.
Agora o cavalo estava indo mais lentamente, quase trotando, dava para
apreciar a bela paisagem que se estendia ao meu redor como um grande
quadro. Logo comecei a escutar o som de água corrente ficando cada vez
mais alto, provavelmente nos aproximávamos de outro rio ou uma pequena
cachoeira. Nena disse algo ao cavalo, ele diminuiu ainda mais a velocidade e
apenas trotando agora, então paramos perto de um rio cristalino, na sombra
de uma enorme árvore de casca fina parecida com uma goiabeira. Nena
pegou um arco e uma aljava de couro que estavam presos na cela do cavalo
e dentro de sua bolsa de couro puxou um rolo de uma linha grossa.
― Como você consegue dormir em cima de um cavalo? ― Nena não
parava de rir.

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― Sei lá, deu sono, o que vai fazer? ― Perguntei curiosa, ela me olhou
e levou os dedos aos lábios, depois amarrou a linha na parte de trás da flecha,
andou quase sem fazer barulho até a margem e atirou a flecha amarrada
dentro do rio, logo a linha começou a desenrolar do carretel, ela agarrou
laçando algumas vezes no pulso e começou a puxar um enorme peixe que
estava se debatendo preso à flecha. Nena o tirou da água, era um peixe
realmente grande, devia ter uns cinco quilos ou mais! Eu a ajudei a tirá-lo da
água, ela pegou uma faca e tirou a cabeça do peixe e começou a limpar em
cima de uma pedra na beira do rio.
― Leona, pegue os frascos de tempero dentro da bolsa, por favor! ―
Eu obedeci imediatamente, já imaginando o sabor do peixe depois de pronto,
abri a bolsa e vi uns vidrinhos cheios de pós, folhas picadas e sal temperado
e entreguei para ela. ― Agora pode juntar um pouco de lenha? Vamos
almoçar antes de continuar. ― Eu sabia acender uma fogueira, peguei a
madeira e arrumei numa pilha perto de onde ela estava temperando o peixe.
Peguei um pouco de folhas secas e a lupa da aula de biologia que ainda estava
na minha mochila, coloquei contra o sol e fiz uma bolinha de luz nas folhas,
logo o fogo acendeu. Nena veio até mim com dois espetos de madeira, os
colocou do lado da fogueira e botou um pequeno caldeirão de metal sobre o
fogo com um pouco de água, tirou um embrulho de pano de dentro da bolsa
e vi que era a metade de um pão. Quando a água começou a ferver, ela pegou
umas folhas, colocou dentro e o tirou do fogo. Parecia aquele chá horroroso,
tremi ao me lembrar do gosto.
― Fique tranquila, esse é um chá refrescante, não é o mesmo! ― Disse
ao ver minha cara de tristeza para o chá. Nena espetou o peixão em uns
gravetos e colocou sobre o fogo. Nós comemos assim que ficou pronto, não
tinha ideia de minha fome até queimar a boca toda com o peixe, estava
muito bom e o chá também.
Depois de comer, lavei o rosto no rio e puxei as mangas do vestido
mais para cima, peguei a garrafa de água que eu levava para a aula de
educação física, lavei-a e a enchi, a água estava muito limpa e fresca, então
não tive medo de beber. Nena fez a mesma coisa, Pupo também estava se
refrescando, mas bem abaixo de nós no rio. Descansamos um pouco e logo

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voltamos à estrada, Pupo foi mais devagar, pois nossas barrigas cheias não
iriam aceitar muito bem os pulos dele.

― Falta muito para essa cidade? ― Resmunguei depois de quase uma


hora de viagem sentindo meu bumbum começar a doer, a paisagem não
variara muito até aqui e estava começando a ficar entediada também.
― Não muito, vamos chegar lá ao anoitecer ― ela me respondeu
sorrindo ― Hoje vai ser uma noite clara! ― Nena olhava para o céu com uma
expressão serena. Atravessamos uma floresta densa e quando as árvores
começaram a ficar escassas, olhei em volta e notei que estávamos
começando a subir uma montanha numa estrada estreita e sinuosa.
Passamos por uma ponte de cordas onde tivemos que descer de Pupo
e andar devagar. Um pouco ao lado dessa ponte estava sendo construída
uma enorme ponte de pedra com quatro guaritas, duas em cada ponta da
ponte.
― Por que ainda não está pronta? ― Perguntei me referindo à ponte.
― Alguns trabalhadores que participavam da construção da ponte
sofreram um acidente carregando as pedras morro acima, agora só
continuarão mês que vem! ― Tive certeza de que nunca veria aquela ponte
terminada.

Estava começando a escurecer e ainda estávamos andando. Os sóis já


haviam se recolhido, deixando apenas o horizonte manchado de cores, a
paisagem era como de um filme, a cor púrpura do céu fazia as árvores
parecerem desenhadas a mão e com lápis de cor.
― Olhe para o sul! ― Nem imaginava para onde estava o Sul, mas
fiquei virando minha cabeça até achar alguma coisa diferente. Quando a vi,
fiquei maravilhada, a lua daqui era imensa! Cobria uma boa parte do céu, era
azul clara e brilhante, o céu começava a se encher de estrelas, mas a visão
daquela lua me prendeu. ― Linda, não é? ― Nena estava olhando para ela
também e vi um brilho no seu olhar.

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― Muito bonita! Ontem quando eu cheguei, o céu estava tão escuro!
― Resmunguei. Aquela lua teria feito muita diferença para eu não me
apavorar tanto.
― Ontem foi dia de Sirius, se você tivesse caído na água umas três
horas antes, você teria morrido cozida. O sol Sirius quando está só,
desaparece apenas à meia-noite.
― E os animais não morrem? ― Perguntei.
― Claro que sim, qualquer um que não ficar protegido morre, a não
ser que seja uma salamandra, mas a maioria se protege, escondendo-se em
tocas profundas e cavernas algumas horas antes do sol nascer. As cidades
também são protegidas por magia, senão, virariam fornos gigantes!
Continuamos andando por algum tempo até que em nossa frente,
alguns metros de distância vi enormes portões brancos com grades de ferro,
havia luz para todos os lados, movimento de gente e vozes de muitas pessoas
conversando. Descemos do cavalo antes de entrar pelo portão, um velho
enorme de quase três metros de altura foi quem abriu o portão para nós. Ele
tinha o corpo coberto por pelos leves e brancos que lhe davam o aspecto de
um gato depois de passar por uma depilação.
A cidade estava muito movimentada, ela era incrivelmente grande,
cheia de prédios e casas antigas, Nena segurou meu braço e me guiou por
uma viela estreita onde havia um estábulo no final. Ela tirou a cela de Pupo,
pendurou perto da baia e serviu um bolo de feno para ele. Saímos pela
mesma viela de volta à rua principal, nela havia várias lojas de armas, vi
espadas de vários tamanhos, arcos, machados, lanças, uns cetros e cajados.
Parecia que havia caído dentro de um MMORPG.
― Quem usa esses cetros e cajados aqui? ― Perguntei olhando para
um grande cetro com uma pedra azul na ponta.
― Os magos, bruxos, sacerdotes... é muito raro vê-los desfilando por
aí e a maioria encomenda suas armas, mas sempre tem um ou outro que os
compram! ― Havia também lojas de roupas com variados modelos
diferentes em manequins de vários tamanhos e formas, sapatos e até uma
loja mais escondida de armaduras. Lojas com frascos e vidros coloridos na
vitrine e outras com comidas exóticas de cheiro tentador. Seres de todos os
26
tipos desfilavam pelas ruas, um grupo de mulheres ruivas com as peles
levemente avermelhadas, olhavam uma das lojas de frascos coloridos.
― São boticários, frascos de poções para restaurar a força, fechar
ferimentos, ou até mesmo poções de amor. Aquele grupo são salamandras,
devem estar procurando ervas para manter suas peles frias, pois quando elas
encostam nos outros seres, elas os queimam! ― Explicou Nena percebendo
meu olhar de curiosidade. ― Fora do mundo delas, elas não têm um bom
controle de sua magia de fogo.
― Nenhuma criatura aqui é perigosa? ― Me arrependi da pergunta,
pois ela me encarou com um olhar assustador, depois respirou fundo para
me explicar.
― Quase tudo aqui é perigoso, Leona! Salamandras queimam você e
comem qualquer um se estiverem com muita fome, elfos negros, alguns
deles são mercenários, matam humanos para vender órgãos aos boticários
ou os vendem vivos a vampiros. Bruxos e duendes quando estão sem energia
matam e comem os humanos. Quase não há homens humanos aqui, pois as
sereias os matam também. Os únicos seres pacíficos são os elfos da floresta
de Górtia, que são os elfos da luz, além dos silfos que também são muito
bondosos e calmos se não forem provocados e as fadas, mas é raro encontrá-
las, pois desapareceram dessas regiões há muito tempo.
― Entendi, desculpe! ― Ela meneou a cabeça.
― Tenha sempre cuidado, você só deve confiar num elfo negro se você
estiver o pagando para algum serviço e pagando muito bem, pois os
mercenários são espadachins e arqueiros excelentes, mas muito, muito
perigosos, não se esqueça! ― Ela olhou para um lugar escuro no canto de um
beco. ― Vê ali? São vampiros. Eles ficam escondidos até o movimento
diminuir, se houver humanos na rua durante a hora de menor movimento,
eles os levam daqui para sugar o sangue, os corpos não são achados porque
eles atiram o cadáver aos lobisomens! ― Nena estava falando de coisas ruins
para me alertar, mas eu estava ficando tão apavorada que estava prestes a
me beliscar para ver se acordava em meu quarto. Quando olhei para o grupo
de vampiros, uma vampira estava me olhando, tinha os cabelos longos e

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azulados e olhos cor de sangue, ela mostrou as presas para mim. Nena puxou
meu rosto para ela e me sacudiu levemente.
― Eles hipnotizam, sabia? Dá para parar de olhar?
― Desculpe! ― Andamos até a frente de um prédio antigo e bem
bonito que parecia um enorme hotel, e era, quando entramos tinha uma
placa com os dizeres ‘hospedaria e restaurante’ escrita em vários idiomas
(um deles, o meu!). Nena pediu um quarto com duas camas e uma mesa para
jantar.
― Você tem algum dinheiro do seu mundo aí? ― Ela me perguntou,
eu abri minha mochila e peguei minha carteira, havia os setenta reais do
espelho, setenta reais que havia pegado de mesada com meu padrasto e mais
trinta e cinco reais que havia sobrado do dinheiro que recebia por mês para
fazer trabalhos para alguns alunos da escola. No total tinha cento e setenta
e cinco reais, passei o dinheiro para ela, a velhota no balcão pegou o
dinheiro, contou e depois trocou por um saco de moedas pesadas e grandes.
― Nossa! Você estava com bastante dinheiro aí! Isso aí dá para
comprar umas dez das melhores armaduras e armas boas. Deve ter umas oito
mil moedas ― disse ela erguendo o saco e medindo seu peso, eu peguei o
saco de moedas e enfiei dentro da mochila, estava tão cheia que poderia
rasgar a qualquer momento.
― O que ela vai fazer com todo esse dinheiro que troquei? Ela não vai
poder usar esse dinheiro aqui, certo? ― A velhota gorducha me olhou e disse
numa voz arrastada.
― Quando os Negociantes vão ao seu mundo para trazer mercadorias,
você acha que eles roubam? ― Eu fiquei envergonhada e murmurei umas
desculpas. Nena me levou para uma sala grande onde estavam várias pessoas
jantando. Um enorme relógio na parede mostrava que eram oito da noite.
Fiquei olhando para ele até que Nena perguntou o que eu gostaria de comer,
ela me passou o cardápio e eu fiquei olhando, não tinha nada que eu
conhecesse ali.
― O que mais se parece com um bife e arroz aqui? Eu fiquei olhando a
expressão divertida dela. Ela girou o cardápio na minha mão.

28
― Esse lado que é de comidas humanas! ― Ela mostrou a página e
começou a rir de novo. ― A página que você estava vendo é de alimento das
salamandras, é tudo cru! ― Eu olhei o cardápio de novo, tinha bife com
batatas assadas, arroz, feijão, massas e saladas. Eu pedi um bife e arroz com
salada. Nena pediu algo do cardápio dos Elfos.
― É boa e leve a comida deles, então prefiro comida élfica de noite! ―
A comida não demorou muito a chegar, seu gosto me lembrava de
restaurantes a peso, mas estava muito boa. A comida élfica que Nena pediu
também estava com um cheiro bom, embora fosse um prato totalmente
vegetariano.
― Os elfos negros são carnívoros. ― Disse Nena fazendo um pequeno
gesto com a cabeça para um grupo de homens e mulheres no fundo do
restaurante, na mesa deles só tinha carne, peixe, aves e alguns pães. Não deu
para ver seus rostos direito, mas eram altos, e todos tinham aparência forte,
eram morenos claros e quase não dava para vê-los comendo ou falando.
Quando acabamos de jantar, subimos para o quarto, fui seguindo os números
da chave.
Ao chegarmos, Nena me mandou tomar banho primeiro, eu não
demorei muito, lavei o cabelo com um xampu de ervas muito cheiroso que
estava num pacotinho na pia, o chuveiro era muito forte e a água estava bem
quentinha. Aqui fazia muito frio à noite, coloquei meu moletom e a blusa
preta e me atirei na cama. Puxei o celular de dentro da mochila e o liguei,
meu coração acelerou, estava com um pontinho de sinal, corri os dedos pelas
mensagens, mas não havia nada nas caixas de entrada nem ligações
perdidas, logo o pontinho de sinal sumiu de novo. Quando Nena saiu do
banho, eu não pude me segurar para perguntar.
― Aqui tem redes de sinal de celular? ― Ela me olhou, tirou a toalha
dos cabelos e sentou na cama;
― Como eu te disse ontem, a tecnologia daqui não é tão avançada, pois
é muito perigoso transitar entre os mundos com objetos de outros mundos,
talvez a tecnologia de sinal daqui não seja compatível com o seu aparelho!
― Ela tirou um Nokia tijolão da bolsa de couro que estava carregando

29
(realmente uma verdadeira antiguidade que hoje em dia é usada na
construção civil para demolir paredes).
― Meu marido já chegou em casa! ― Disse ela enquanto olhava
mensagens do seu telefone. ― Amanhã vamos procurar um guia para te
levar até a Torre das Nuvens, a cidade dos metamorfos, eles têm mais
facilidade para atravessar os portais entre os mundos, aí você poderá voltar
para casa.
― Você disse que aquela casa era sua casa de caça, então, onde você
mora? ― Eu estava sob as cobertas e secando meu cabelo com uma toalha.
― Eu moro com meu marido na cidade de Monte Azul, a Leste daqui,
uns oito dias de cavalgada. Se eu tivesse dinheiro aqui comigo, ia de dirigível
amanhã. São apenas dois dias de viagem! ― Nena me salvou, eu deveria
dividir o dinheiro com ela, então puxei o saco de moedas e comecei a
despejá-las na cama. ― O que está fazendo? ― Perguntou ela olhando as
moedas.
― Vou dividi-las em dois e te dar metade!
― Não, por favor, não precisa, apenas vinte moedas já bastam, a
passagem de dirigível custa 10 moedas! ― Eu tirei trinta das moedas e dei a
ela, o resto eu guardei. ― Não gaste tudo, sugiro você a comprar uma arma
e usar o dinheiro para pagar um mercenário para te levar até a Torre das
nuvens.
― Mas não seria mais rápido eu ir de dirigível? ― Ela me olhou de
novo quase com pena.
― O dirigível só voa para cidades seguras, como Górtia, Vila das Flores
e Monte azul, as outras cidades são consideradas potencialmente perigosas
e o dirigível não pode as sobrevoar. ― Eu olhei para ela, estava com medo
de fazer a pergunta.
― Essa Torre das Nuvens é muito longe? ― outra vez eu pude ver o
olhar de pena. Ela pegou um mapa na escrivaninha que estava na parede
perto da porta e o abriu em cima da cama. O mapa desse mundo era duas
vezes menor que o mapa da terra. Todas as marcações do mapa só
mostravam nomes de cidades e traços em vermelho dividindo-as em
territórios.
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― Esse mundo é dividido em quatro continentes que são: Edro,
Mantum, Vintro e Lastar, os dois habitados, norte e sul, e dois continentes,
até onde sabemos, desabitados, a Leste e a Oeste! ― Vintro era o maior
continente, cabia Mantum duas vezes dentro dele. Ela continuou a falar ―
Ao Norte, aonde você vai, é a parte mais perigosa de Amantia, pois lá existem
as cidades de criaturas mais ofensivas, só os metamorfos e algumas cidades
élficas são mais calmas do lado de lá, aqui no Sul é onde estão as cidades de
criaturas mais pacíficas. Aqui – Ela apontou um lugar no mapa. ― É a cidade
central, país de Mantum. A Torre das Nuvens está no país de Edro, entendeu?
A Torre das nuvens fica aqui, nesse ponto, e nós estamos aqui, é
aproximadamente um mês de viagem! A leste e a Oeste dos mares territórios
de Abissais. ― Meu estômago afundou, eu levaria uma eternidade para
voltar.
― Entendi. ― Suspirei, depois de dizer um mês de viagem, eu já estava
pensando em tudo de errado que iria acontecer, meus pais chamando a
polícia, cartazes de desaparecida, ia perder o final do ano letivo mesmo
sabendo que já havia passado. Minha mente foi tomada de tudo que é tipo
de imagens do que poderia acontecer, Nena percebeu meu nervosismo e
resolveu me tirar dos pensamentos tortuosos.
― Leona, o que seus pais fazem onde você mora?
― Hum, minha mãe tem um antiquário, ela vende muitas coisas
antigas e algumas raras... Livros com idiomas antigos também. Tem coisas lá
que parecem ser de outro mudo! ― Eu ri, lembrando-me das engenhocas
velhas nas estantes e paredes da loja. ― Meu pai a ajuda com a loja, mas ele
é escritor.
― É mesmo? E essas coisas de outro mundo? Pode descrevê-las para
mim? ― Ela me olhava com um olhar terno, calmo. Então comecei a
descrever as coisas estranhas da loja. Antes mesmo de terminar a primeira,
já estava dormindo.
Sonhei de novo com minha casa, que estava fazendo macarronada
para meu irmão, que ele jogava o macarrão no teto e que o macarrão
grudava...

31
2

cordei muito cedo, o céu nem estava claro ainda, lembrei

A da conversa com Nena e ri da técnica que ela usou para me


fazer dormir (falar sobre uma coisa chata até cair de sono),
mas Nena não estava mais na cama ao lado, a porta estava
meio aberta e havia um bilhete na cama:

“Leona, sinto muito não esperar você acordar, mas o Dirigível sai às cinco da manhã,
quando você acordar para tomar café, vai ter um elfo negro, um mercenário, te
esperando na mesa perto da porta, eu conversei com ele, é um conhecido, alguém que
eu confio e ele aceitou te levar à Torre das Nuvens por oitocentas moedas.
Compre um arco e uma aljava de flechas quando sair daí antes de partir, no
caminho você aprende a usar, obrigada pelas moedas e pelo passeio, espero que volte
para sua casa em segurança!

Abraços, Nellena. ”

Fiquei nervosa ao terminar de ler o bilhete, teria que viajar sozinha


com um mercenário depois de Nena ter me dito que eram perigosos. Não
podia simplesmente ficar tranquila, mesmo sendo um conhecido dela, mas
não poderia fazer nada sozinha, e tinha que voltar para casa de qualquer
jeito! Provavelmente não iria chegar em casa antes do natal e não sabia um
modo de justificar minhas faltas e terminar o ensino médio, talvez diria para

32
meus pais que fugi de casa para fazer alguma doideira de adolescente, quem
sabe se meu castigo não seria eterno dando uma justificativa dessas?

Levantei-me da cama num pulo, quanto mais rápido saísse, mais


rápido estaria em casa. Tomei um banho, arrumei minhas coisas e desci as
escadas rapidamente até o restaurante que estava quase deserto, a não ser
por um casal numa mesa nos fundos da sala e pela figura sentada na mesa
perto da porta. Respirei fundo e andei até ele em passos largos e firmes
embora estivesse muito nervoso.
Sentei na cadeira vazia em sua frente, ele estava lendo um livro e
quando sentei o fechou e olhou para mim. Senti um frio na espinha e uma
estranha sensação de familiaridade quando os olhos dele encontraram os
meus. O elfo tinha um olho azul e outro cinza-claro, quase prateado, tinha
os cabelos pretos longos até o meio das costas e parecia ser alto mesmo
sentado dava para notar isso, devia ter pouco mais de dois metros de altura
e devia ser muito forte, pois pude ver o desenho dos músculos através da
blusa cinza que ele usava. Estava muito sério encarando-me.
― Hum... Bom dia. ― falei timidamente abaixando meus olhos para o
cardápio, ele não respondeu, ficou apenas me olhando com as sobrancelhas
perfeitamente desenhadas erguidas. Eu pedi uma omelete com torradas e
um café preto à garçonete. Ele pediu algo também, mas não entendi a língua
que ele falou, será que ele conhecia meu idioma? Antes de eu perguntar algo,
ele falou comigo.
― Então, vamos para Torre das Nuvens, certo? ― Sua voz causou
arrepios na minha pele e fez com que minha garganta se estreitasse, não sei
ao certo se era medo ou apenas nervosismo.
― Hum, certo... preciso encontrar alguém que possa me mandar de
volta para casa. ― Expliquei, notando que ele ainda estava me olhando,
então o encarei também, mas apenas por alguns segundos, pois virei os olhos
para outro lado e ele pareceu satisfeito com a minha reação.
― Quero dinheiro adiantado! ― Eu olhei para ele de novo.
― Metade agora e metade quando chegarmos lá! ― Falei firmemente,
costumava assistir a muitos filmes e sabia que se pagasse adiantado poderia
33
não vê-lo de novo. Ele sorriu ainda me encarando e fiquei observando-o
desconfiada.
― Tudo bem, metade agora e metade quando chegarmos lá, mas vai
demorar mais ou menos um mês.
― Eu já sabia dessa parte! ― Suspirei tristemente e ele olhou para
minha mochila no chão.
― Quantas peças de roupa você tem aí?
― Um moletom e uma blusa. ― Ele riu de novo.
― Um mês de viagem por desertos, lugares congelados e florestas
fechadas. Você acha que consegue se virar com isso? ― Eu estava o
encarando de novo. Com certeza teria que comprar algumas roupas. Tomei
meu café em silencio imaginando a loja que eu tinha visto com Nena, iria
passar lá depois de tomar o café, sem falar que por recomendação dela teria
que comprar uma arma. Paguei a conta e saímos. Fui andando na direção
que eu havia visto a loja e os sóis já começavam a se levantar no céu.
― Como é seu nome mesmo? ― Ele me perguntou.
― Eu não disse, é Leona ― ele ergueu uma sobrancelha e por um breve
momento, pareceu em choque com a resposta, mas ele piscou e aquela
estranha expressão havia desaparecido e um pequeno sorriso se desenhava
no canto de sua boca.
― Me chamo Ewren. ― Eu olhei para ele e reparei melhor em seu
rosto. A não ser pelo olho cinza que agora estava prateado contra o sol, ele
parecia humano, porém muito mais forte e alto, se fosse comparar com um,
diria que ele se parecia com um indígena, tanto pela cor da pele, quanto pelo
tipo físico, cabelo e rosto, sua pele era de tom pardo avermelhado e bastante
bronzeada. Ele estava usando uma calça de um tipo de couro espesso com
um tipo de suporte nas duas pernas onde estavam duas enormes adagas de
aparência mortal, estava com uma bandoleira atravessada e presa a ela, uma
enorme espada de lâmina aparentemente muito afiada, só aquelas armas
fizeram o pouco de sangue em meu rosto desaparecer.

34
Entrei na loja e ele ficou do lado de fora esperando, encostado na
parede com cara de poucos amigos. Uma mulher estranha, mas bonita estava
arrumando algumas roupas num balcão e olhou para mim, algo nela me
pareceu um tanto familiar, seus olhos eram amarelos e a sua pele tinha um
tom pálido cinzento. A vassoura deitada atrás da porta como proteção
indicava que ela devia ser uma bruxa.
― Bom dia, querida! O que deseja? ― Ela perguntou, sua voz era
sedosa e ela tinha um cheiro doce enjoativo.
― Eu estou indo viajar para Torre das Nuvens e preciso de algumas
roupas ― ela me olhou de cima a baixo.
― Está indo tratar de negócios? ― Ela perguntou me rodeando, podia
ter começado a tremer como bambu no vento com a aproximação dela,
porém Ewren entrou na loja e veio até mim e a mulher se afastou.
― Arrume as roupas, Moan, não te interessa o que ela vai fazer. ― A
bruxa o olhou sair da loja e emitiu um estranho som com a boca, então pegou
um vestido longo cinza e sem mangas e me entregou.
― Este é bom para andar de dia e de noite, ele é leve para o dia e é
tecido com lã de Yeti, por isso, ele aquece de noite, você só precisa de um
poncho para colocar por cima. Ela pegou um poncho preto lindo feito de lã
e me entregou, pegou também um vestido mais leve e curto cor de linho,
uma calça de um tecido forte de cor preta e uma bata na mesma cor. ― O
conjunto preto você usa no deserto, ele impede o calor de entrar e não deixa
passar areia ― e me deu também um lenço que provavelmente era para o
rosto. ― O vestido de linho é melhor usar na floresta das almas, ela é muito
quente à noite ― Disse a bruxa, ela pegou mais um par de botas, mas com o
cano menor do que a que eu estava usando, e outra bota interessante feita
de tecido que era para enrolar nas pernas até o joelho, a sola era grossa de
couro.
― Hum, por acaso não tem roupa íntima? ― Perguntei, ficando
corada.
― Ah, claro... ― Puxou um grande pacote preto de baixo do balcão e
havia vários saquinhos de peças íntimas. ― Essas foram trazidas do outro
mundo humano na última abertura de portal! ― Ela colocou o saco sobre o
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balcão, eu peguei algumas peças do meu tamanho e botei junto com as
roupas que ela havia me dado.
― Só isso? ― Eu olhei de novo para minha mochila, que além de
material escolar, meu moletom e umas barrinhas de cereal, agora tinha
moedas e com certeza não caberia mais nada, a bruxa pareceu ler minha
mente e pegou uma bolsa grande de couro e colocou as roupas dentro. ―
São trinta moedas! ― Eu peguei escondida as moedas na mochila, paguei e
saí da loja. Ewren estava do outro lado da rua na frente do boticário.
― Deveria comprar um estojo de antídotos! Você é humana, tudo no
caminho pode te matar ― ele estava olhando um estojo preto na vitrine
repleto de frascos com líquidos e pós coloridos.
Eu suspirei e entrei na loja. Havia um sujeito esverdeado misturando
uns líquidos escondido atrás do balcão, ele parou e pegou o quite de
antídotos que eu pedi, achei sabonetes e comprei alguns também. A bolsa de
couro era tão grande que arrumei minha mochila dentro dela também. Eu
não achava que fosse precisar de uma arma, então deixei isso pra lá.
― Sabe cozinhar alguma coisa? ― Fiquei realmente ofendida com a
pergunta.
― Claro que sei! Bom, pelo menos no meu mundo. ― Ele pegou outro
estojo com temperos e me entregou, eu o guardei na bolsa. Ewren voltou até
a hospedaria, pegou uma mochila grande feita também de couro escuro, foi
ao estábulo e pegou um cavalo e amarou as bagagens nele, havia água e
comida também. Andamos até o outro lado da cidade onde saímos por um
portão menor para uma pequena estrada estreita. Ele parou no portão e
olhou para mim, peguei a metade do dinheiro que havia combinado e
entreguei. Estava calor demais, eu estava com muita preguiça de andar, mas
queria muito chegar em casa.
Caminhamos em silêncio por um longo tempo pela estrada, o cenário
foi mudando, a cidade de Alamourtin ficou para trás, ela ficava no topo de
uma montanha e enquanto descíamos, a vegetação rasteira foi aparecendo
e o calor foi aumentando. Eu enrolei as mangas do vestido e teria amarrado
a saia se não estivesse acompanhada de uma figura masculina. Comecei a
sentir um arrependimento enorme de não ter comprado uma faca ou adaga

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na loja de armas. Quando chegamos a uma área plana, seguimos por uma
trilha até perto de um rio.
― Se seguirmos o rio, você não vai sentir tanto o calor. ― Ewren
deixou o cavalo beber água. Estava bem mais fresco perto das margens do
rio e lembrei-me da criatura que vimos quando caí no lago logo após cair no
espelho.
― E se aparecer um Kappa? ― Eu olhei para as águas cristalinas do rio
e acabei duvidando que algo fosse sair dali.
― Um Kappa? Você acha que um Kappa vive quanto tempo se
aparecer na minha frente? ― Ele estava me olhando como se eu tivesse dito
que um rato pode comer um leão.
― Desculpe, não tive intenção de ofender. ― Sensível!
Andamos por mais algumas horas em total silêncio nas margens do rio
e eu estava ficando entediada. Algum tempo depois o rio ficou mais largo,
havia muitas pedras e nas pequenas bolsas de água haviam peixes enormes
nadando. Meu estômago resmungou alto e eu senti meu rosto esquentar,
então peguei dentro da mochila uma barrinha de cereais que por sorte
estava vedada o suficiente para não encher de água quando caí no lago. Eu a
comi depressa implorando que minha fome sossegasse, mas meu estômago
roncou de novo, “traidor”. Ewren parou perto de uma árvore onde tinha
uma boa sombra e soltou o cavalo que deitou na grama e começou a rolar
alegremente. Ele tirou a blusa e entrou na água. Eu o olhei espantada, não
sabia o que ele iria fazer, vi o desenho dos músculos de seus braços e ombros
e seu abdome definido, corei levemente e disfarcei mexendo nas folhas das
árvores.
― Pegue minhas adagas ali na pedra! ― Disse ele, virei de costas e
peguei uma delas, era muito pesada, sem querer a deixei escorregar, abrindo
um corte profundo em minha mão.
― Droga! ― Resmunguei baixinho tentando parar o sangramento
com um lenço, pegando-as novamente e lhe entregando as adagas.
Ele ficou em silêncio sem se mover dentro da água, percebi que estava
apenas esperando até que os peixes se acostumassem com a sua presença.

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Eu fiquei quieta observando. Ele virou lentamente de costas e ficou
parado de novo, em suas costas tinha uma tatuagem de uma fênix negra com
asas enormes que cobriam quase toda a área. De repente ele fez um rápido
movimento, tirou dois peixes da água e os jogou para mim, eu gritei e tentei
desviar, mas os peixes caíram em cheio em cima de mim. Os peixes eram
enormes e não paravam de se debater. Ele saiu da água e ficou olhando para
mim.
― Pegue-os! ― Eu tentei pegar, mas os peixes eram muito grandes.
Ewren revirou os olhos, tirou a cabeça dos bichos, começou a limpar e eu
fiquei fedendo a peixe.
― Por que você os jogou em mim? Não podia ter colocado eles perto
da margem?
― Eles iriam se debater até cair na água. ― Peguei o vestido de linho
na bolsa e o sabonete, fui para longe de onde ele estava limpando os peixes,
coloquei o vestido e as botas na pedra e, entrei na água e comecei a me
esfregar para limpar o vestido que Nena havia me dado. Quando acabei de
me lavar, olhei por cima do ombro para ver onde Ewren estava, ele estava
de costas acendendo a fogueira, fui rapidamente para trás de uma pedra
maior no rio e tirei o vestido lavado, coloquei o de linho até a cintura, me
levantei da água e puxei o resto. Torci o vestido e o pendurei em uma árvore,
voltei até onde ele estava assando os peixes e me sentei com cuidado, fiquei
apenas observando aquela figura estranha e grosseira sentada à minha
frente, me sentia mal, ficando tonta e um pouco ofegante.
Quando os peixes finalmente ficaram prontos, eu comi a minha parte
e fiquei sentada na sombra da árvore junto com o cavalo, peguei uma
toalhinha de rosto que ficava na mochila para as aulas de educação física e
enrolei na mão cortada, pois o lenço já estava todo sujo de sangue. Ewren
olhou-me de lado e viu o que eu estava tentando fazer.
― Como você fez isso? ― Perguntou
― Deixei sua adaga cair e ela cortou a minha mão. ― Respondi
rispidamente.
― Você comprou o estojo de antídotos? ― Ewren perguntou, olhando
para a mão que não parava de sangrar.
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― Isso é apenas um corte, já vai melhorar! ― Respondi novamente
com grosseria, mas percebi que minha vista estava começando a embaçar.
Ele bufou andou até mim, pegou o estojo e tirou de lá um frasco pequeno
com um pó branco e outro vidrinho dentro de sua própria bolsa com
pequenas bolinhas amarelas, tirou uma e me deu.
― Mastigue isso! ― Eu o olhei desconfiada ― Agora! ― Ele rosnou,
fiquei o encarando por mais alguns segundos, mas acabei cedendo e
tomando o remédio, a tonteira começou a passar. Ele usou o pozinho e fez
uma pasta com um pouquinho de água, puxou a minha mão e passou a pasta
no corte. Ardeu bastante, mas imediatamente o corte se fechou deixando
apenas uma linha rosa e ele me encarou fazendo uma expressão zangada.
― Você não recebeu muita educação de onde veio, não é? ― Fiquei
vermelha, não sei se de vergonha ou raiva. ― Essas adagas contêm veneno
na lâmina.
― Não tanta educação quanto você parece ter! ― Respondi ignorando
a parte do veneno. Ele sentou perto de mim e parecia que ia tirar um cochilo.
― De onde você saiu? ― Perguntou, ignorando minha grosseira e
jogando os braços por trás da cabeça.
― Da minha mãe! ― Respondi ainda com raiva, ele se levantou,
agachou na minha frente, pegou meu queixo com força e olhou nos meus
olhos.
― Escuta, estou te fazendo um favor, qualquer um teria cobrado o
dobro ou até o triplo para fazer essa viagem e poderia simplesmente cortar
sua cabeça, roubar todo seu dinheiro e ir embora sem ter que fazer nada ―
ele parou de falar, respirou e puxou a adaga da cintura ― Eu também
poderia arrancar a sua língua e ter uma viagem fácil, porém silenciosa, ou
ser ruim e te abandonar no meio do nada, certo? ― Ele colocou a lâmina no
meu pescoço fazendo ondas geladas de medo se espalharem por todo meu
corpo ― Mas, como eu estou sendo bonzinho e hoje acordei de bom humor,
dobre essa língua e responda mais educadamente ou eu a uso de isca para
pescar sereias no mar de Água doce! ― Falando isso, ele soltou meu rosto.
― Vamos começar de novo? De onde você veio? ― Ele ficou girando a adaga
na mão, meu coração ainda não tinha voltado a bater normalmente.

39
― Da Terra, eu entrei num espelho anteontem e caí num lago dentro
da floresta de Gheshira.
― Viu? Não é tão difícil responder direito! ― Disse ele guardando as
adagas ―Terra, é? ― Sentou novamente encostando-se na árvore ― O
tempo lá passa muito diferente daqui.
― Como diferente? ― Perguntei medindo minhas palavras.
― Do seu mundo para esse mundo existe uma forte interferência
temporal, que faz com que o seu mundo seja igual e diferente daqui.
― Ainda não entendi!
― Meia hora no seu mundo equivale a um dia deste mundo, então
desde a hora que você caiu aqui, ainda não se passou nem uma hora lá! ― O
olhei incrédula, não sabia se ele estava falando a verdade, mas isso explicaria
a ausência de ligações e mensagens no meu celular e a hora diferente no
display. Minha mãe iria imaginar que eu estava na casa de Lucy, já que eram
quase oito da noite quando caí no espelho e como eu havia recebido mesada,
ela com certeza pensaria que eu havia saído com Lucy para torrar a mesada
no shopping, quando nós duas saíamos eu dormia na casa dela ou de sua tia
e não avisava.
― E você veio de onde? ― Perguntei tentando ser educada com ele.
― Da floresta de Crecência, sou um elfo negro.
― Que idade você tem?
― Não me lembro, parei de contar quando cheguei a mil e seiscentos,
e você?
― Dezessete pelo que sei, eu contei todos. ― Ele ficou parado por um
tempo me encarando e depois começou a rir. ― Qual é a graça? ― Perguntei
frustrada.
― É muito interessante o fato de Nena, mesmo me conhecendo, ter
me entregado uma jovem virgem para levar pro outro lado de Amantia por
oitocentas moedas, eu poderia te vender para os vampiros ou para as bruxas
por umas cinco mil moedas! Sangue de virgem é item muito utilizado por
feiticeiros aqui! ― Eu congelei, fiquei olhando para os meus pés e tentando
respirar corretamente.

40
― E quem te disse que eu sou virgem? ― Gaguejei acabando com a
minha farsa.
― Dá para saber só de olhar para você, tem cara de inocente e uma
virgem não cai em feitiço dos elfos negros, se você não fosse, estaria me
obedecendo e me respondendo sim senhor.
― Não tenha tanta certeza ― consegui falar mais calmamente. Ele
olhou para mim quase rindo.
― Então, tire a roupa! ― Ele sorriu, um sorriso perverso
acompanhado de um olhar estranho que causou arrepios na minha pele.
Senti muita saudade de Nena.
― Claro que não! Ficou louco? Seu pervertido!
― Viu, não obedeceu! Eu não tenho interesse em crianças humanas,
só se for pra venda, claro! ― Eu fiquei ofendida e pensei em responder
“quem desdenha quer comprar”, mas era melhor eu não arrumar um novo
motivo para brigar, ainda mais porque há alguns instantes ele estava com
uma faca em meu pescoço.
― Você não vai me vender de verdade, não é? ― Eu tentei usar o olhar
de triste e comovente, mas ele não mudou a expressão assustadora.
― Talvez... Sangue de virgem é melhor do que sangue de dragão... ―
ele parecia estar falando sério, me olhava de canto de olho com um leve
sorriso nos lábios, era encantador e ao mesmo tempo assustador. Comecei a
planejar uma fuga, uma hora teríamos que parar para dormir e quando ele
dormisse, eu iria embora e procuraria ajuda de gente melhor na cidade mais
próxima. Ele se levantou, arrumou as coisas e começou a andar novamente,
eu o segui lentamente e observando bem o caminho por onde estávamos
passando. Ele pareceu não notar o meu comportamento, então tentei agir
normalmente.
Saímos do campo de rasteiras e começamos a entrar numa floresta
escura de árvores sinistras e altas e sem nenhuma vegetação no chão além
das folhas mortas. Já havia escurecido, o céu estava nublado e não podia ver
a lua daqui.

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― Fique por perto, podem ter vampiros nessa floresta, não quero dar
de graça uma mercadoria tão valiosa! ― Ele olhou para mim e sorriu, como
estava escuro, não percebi se foi um sorriso ou aquela cara de psicopata, por
que a Nena não veio comigo?! Eu não queria morrer! No meio da floresta,
Ewren parou, tirou o peso do cavalo para que ele pudesse descansar e o
amarrou a um tronco no chão. Ele andou por perto juntando bastante lenha
e colocou perto de mim.
― Acenda uma fogueira aí, eu vou buscar água. ― Ele saiu de perto,
eu iria fugir só na hora que ele dormisse, separei a mochila e o poncho e
acendi a fogueira. Ele voltou com um caldeirão de metal polido trazendo
água e colocou sobre o fogo, depois foi até a bolsa de mantimentos e tirou
uma espécie de saco grande e frio. Dentro do saco havia pedaços de carne
picada e congelada. Eu fiquei olhando e notei que parecia muito com uma
bolsa térmica.
― Isso é uma bolsa isolante, você pode manter coisas congeladas ou
quentes nela por dias sem estragar. ― Ele colocou um pouco da carne no
caldeirão, acrescentou temperos e tampou, depois pegou batatas em outro
saco e as descascou. Tirou um caldeirão menor da sacola que estava em cima
do cavalo e me entregou ― ali do lado passa um riacho, encha de água!
― Por favor? ― Eu resmunguei, olhando para ele. Ele nem sequer
olhou de volta, respirei fundo pensando duas vezes se o acertava ou não com
aquele caldeirão e fui pegar a água resmungando. Voltei rápido para a
fogueira, pois estava frio e escuro. A carne no caldeirão estava com um
cheiro muito bom, ele colocou as batatas e deixou tampado, depois pegou
alguns pães, duas tigelas pequenas e ficou esperando ficar pronta.
― Para que essa água? ― Perguntei olhando para o caldeirão que eu
enchi.
― Para fazer chá. ― Ele só respondeu isso e depois ficou vigiando o
ensopado. Ewren encheu as tigelas e me passou uma, eu não estava com
muita fome, mas a comida estava muito boa e o pão era branquinho e macio,
acabei comendo duas vezes e depois tomei um pouco daquele chá estranho
apimentado, estava quase me acostumando com o gosto ruim, acabei me

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arrependendo de ter comido tanto, seria difícil fugir com a barriga cheia e
com sono.
Fiquei imaginando alguém engordando um leitão para depois assá-lo,
e eu era esse leitão no momento. Peguei um quite de higiene dentro de um
estojo na minha mochila, peguei a escova de dente e a garrafa de água e
escovei meus dentes, depois me encostei num tronco bem próximo à
fogueira. Para minha surpresa, Ewren pegou uma escova de dente dentro de
um pequeno bolso em sua jaqueta e fez o mesmo. Claro que era normal, era
um mundo parecido com o meu e diferente, assim como Lucy havia dito. Tão
diferente e tão igual...
― Durma enquanto é cedo, se não os barulhos da floresta não te
deixarão dormir mais tarde! ― Eu peguei meu celular na bolsa e verifiquei
se a bateria de reserva estava carregada, quando confirmei, botei os fones e
fingi que dormi. Fiquei vigiando com os cantos dos olhos. Quase uma hora
depois Ewren pegou no sono, eu me levantei lentamente e acenei com os
braços para ver se ele iria abrir os olhos. Quando tive certeza que ele estava
adormecido mesmo, levantei, peguei minha mochila e saí andando no meio
da floresta. Não sabia para onde ir, mas tinha certeza que não iria voltar para
o mercenário que estava me achando com cara de mercadoria
contrabandeada. Comecei a procurar por luz na floresta que indicaria
alguma casa ou vila. Rodei por bastante tempo naquela escuridão medonha,
as árvores secas lembravam-me um cenário de filmes de terror em
cemitérios e com mortos vivos.
Depois de andar muito, tive que admitir que estava perdida. Os sons
da floresta me apavoravam, eu devia ter ficado quietinha com o mercenário
e esperado para fugir a cavalo durante o dia. Pensei em voltar para a
fogueira, porém não conseguia mais enxergar sua luz. Aquela lua gigante da
noite passada não estava em lugar nenhum para me ajudar. Continuei
andando, já que não adiantaria nada me jogar no chão e começar a chorar,
eu estava apavorada demais para gritar por socorro. Por vezes tropeçava em
raízes e pedras, até cair de joelhos, parei e respirei fundo, teria que ficar aqui
até o dia clarear, pois não estava chegando a lugar nenhum e poderia me
ferir seriamente se continuasse assim.

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Olhei para o céu, algumas estrelas pálidas apareciam de vez em
quando entre as nuvens, fazendo o cenário ficar ainda mais arrepiante. O
frio estava ficando cada vez mais intenso, não havia pegado o poncho e
estava batendo os dentes de frio, quando olhei para cima de novo, vi um par
de asas gigantes passarem bem acima de mim nas árvores, fiquei dormente.
O pânico foi tão intenso que eu fiquei sem voz e meus olhos se encheram de
lágrimas. Eu ficava repetindo “é só uma coruja”, mas, na realidade, se fosse
uma coruja, ela deveria ter sido criada a achocolatado e farinha láctea, pois
era imensa. Ouvi outro barulho vindo do meio das árvores, galhos secos
quebrando bem perto de mim, eu não conseguia achar minha voz para gritar
e o pânico não permitiria nem que eu me movesse.
Fiquei olhando, procurando o que estava fazendo o barulho, mas nada
aparecia. Agachei-me no chão para esperar aquilo aparecer e talvez
conseguir lutar para sobreviver até de manhã. Uma sombra parou a menos
de um palmo de mim e pude sentir a respiração gelada em meus cabelos.
Quando olhei para o lado, vi um enorme rosto pálido com olheiras e presas
gigantes pertinho de mim. Eu juntei todo ar que tinha nos pulmões e gritei
o mais alto que pude. O vampiro esticou as garras na minha direção e quando
me virei para correr, senti algo cortando minhas costas e caí no chão.
Senti o sangue quente escorrer e me virei para a criatura, seus olhos
estavam de um vermelho vivo, ele parecia surpreso, talvez, com a minha
reação, pois ficou parado um momento me encarando. Tentei me levantar
para fugir e foi aí que ele se moveu novamente em minha direção, mas uma
faca cintilante perfurou seu olho, fazendo a criatura guinchar e se afastar.
Ewren pousou atrás de mim com as asas enormes e negras abertas, seus
olhos estavam prateados, sua pele cinza e seu cabelo branco. Ele puxou a
espada das costas e arrancou a cabeça do vampiro. Logo em seguida pegou
um galho em uma árvore, espetou o coração dele e ateou fogo ao resto do
corpo. Depois virou na minha direção e me pegou no colo, eu estava
entorpecida e assustada demais, meu corpo estava gelado e estava sem voz.
Não me lembro se estava mais assustada com o vampiro ou com a criatura
que chegou voando depois dele.

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― Pare de chorar! ― Disse ― Ninguém mandou fugir! Eu não ia te
vender de verdade, menina idiota! ― Ele voou de volta para perto da
fogueira e me colocou no chão, se virou de costas para mim e a sua tatuagem
se moveu como se estivesse viva, depois se encolheu, fazendo as asas dele se
moverem e encolherem até desaparecerem e reaparecerem como as asas da
tatuagem, que ficou imóvel novamente.
― Sinto muito pelo vestido! ― Ele me colocou sentada de costas para
a fogueira e rasgou a parte de trás do vestido. ― Corte de garra de vampiro
pode matar, sabia? ― Ewren pegou o estojo e jogou um líquido gelado, eu
senti arder do meu ombro esquerdo até o meio das minhas costas, ele pegou
um pano e molhou na água que estava no caldeirão em cima da fogueira e
começou a limpar o sangue.
― Eu achei que você quisesse ir para casa, seu eu soubesse que queria
morrer, teria feito de um jeito menos doloroso! ― ainda não conseguia
responder. Eu o vi tirar uma enorme agulha do estojo de poções e agarrei a
mão dele. Ele riu ― Sinto muito, mas não tem pó suficiente para fechar, eu
tenho que dar uns pontos primeiro e passar o pó por cima só para cicatrizar!
― Recomecei a chorar. ― Oras! Você não estava chorando quando resolveu
fugir, não é?
― Eu tenho medo de agulhas! ― Consegui botar para fora entre os
soluços.
― Se tivesse mais medo de vampiros, não precisava ficar com medo
da agulha agora. ― Ele queimou a agulha no fogo, depois passou água
fervendo e começou a costurar minhas costas. Quando ele acabou, toda força
que eu usei para não chorar se foi e eu recomecei a choradeira, Ewren passou
a pasta em cima do corte e depois apertou com o dedo.
― Ainda dói?
― Não... está só formigando. ― Disse entre soluços.
― Ótimo, não vai inflamar. ― Ewren me virou de frente para ele,
lavou a toalha e limpou meu rosto. Ele tinha voltado ao normal, estava com
um olho azul e outro cinza, com sua pele cor de mel e seu cabelo preto. ―
Me responda uma coisa?
― Hum? ― Resmunguei, estava quase caindo de sono e de cansaço.
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― Você fugiu por que eu disse que ia te vender?
― Claro! ― Respondi indignada, será que ele era idiota ou algo assim?
― Você é bem burrinha, se sangue de pessoas inocentes valesse tanto
assim, você acha que teriam crianças nas cidades? As pessoas venderiam
seus próprios filhos por cinco mil moedas! Eu disse aquilo porque você
estava sendo grosseira e eu queria curtir com a sua cara. Eu nem imaginava
que você ia cair nessa, na verdade, nenhum idiota acreditaria nisso! ― Ele
ficou rindo de mim o tempo todo, eu também teria rido da minha própria
burrice se não estivesse ferida, com frio e envergonhada. Mas como eu
continuei com a cara amarrada de quase morta, ele parou de rir
― Me desculpe. Não vou mais brincar assim! ― Ele passou a mão no
corte de novo, dessa vez senti apenas um calafrio. ― Está sentindo formigar
ainda?
― Não, só estou com sono. ― eu levantei e peguei minha mochila,
tirei de dentro meu moletom e minha blusa. ― Olhe para o outro lado, por
favor! ― Ele me encarou e depois virou de costas para mim. Eu puxei o braço
de dentro do vestido e coloquei a blusa por cima dele. Depois coloquei o
moletom e tirei o vestido.
― Dá para costurar, é só lavar o sangue.
― Prefiro jogar fora. ― Resmunguei.
― Uma pena... ― disse ele mordendo os lábios e tentando não rir.
Pegou um cobertor grosso feito de lã e colocou perto da fogueira. Eu deitei
nele e dormi antes que ele pudesse dizer mais alguma gracinha.

Acordei tarde, os sóis já estavam altos, como se fossem se tocar no céu.


A fogueira estava acesa e tinha chá fervendo nela. Ewren me passou um
sanduíche e um copo de chá. Sentei toda torta para comer, senti uma leve
fisgada nas costas e soltei um suspiro.
― Está doendo? ― Ewren não parecia preocupado.
― Não... Só está coçando. ― Me remexi enquanto tomava meu café.
― Nó vamos parar mais à frente na vila das flores para comprar mais
remédio, você se machuca muito fácil. ― Eu nem respondi, estava presa

46
num mundo repleto de todos os monstros que no meu mundo são os mais
assustadores e perigosos e ele ainda queria que minha pele fosse feita de
aço? Quando terminamos de arrumar as coisas, fui até o rio me lavar e
escovar os dentes.
Do outro lado do rio havia um filhote de um tigre branco com listras
pretas, ele estava sozinho e choramingando. Fiquei ali observando,
esperando sua mãe aparecer, mas nada apareceu, então me certifiquei de
que era raso, puxei as pernas da calça para cima e entrei no rio. O bicho ficou
me olhando desconfiado, eu estiquei a mão para ele cheirar, então ele
esfregou a cabeça na minha mão e eu o peguei no colo. Era muito fofo e seu
pelo era macio. Imaginei que ele devia estar com fome, prendi o lenço do
meu cabelo entre duas pedras e em menos de cinco minutos eu peguei um
peixe. Não tinha nada para cortá-lo, então peguei uma pedra lisa e consegui
picar o peixe em pedaços. O bichinho o comeu rapidamente.
― Preciso te dar um nome? ― Perguntei olhando o pequeno tigre.
Ewren apareceu.
― Achei que você tivesse se afogado! ― Veio reclamando quando viu
o tigre na minha frente ― O que é isso?
― Um filhote, o achei do outro lado do rio, como não apareceram
outros, eu catei ele.
― Sugiro deixá-lo aqui, eles chegam a ficar maiores que um cavalo,
sabia? ― Eu o olhei e fiquei com pena de deixá-lo sozinho.
― Eu cuido dele!
― Ele vai te comer, pode ter certeza! ― Ewren disse olhando para o
filhote de cara amarrada.
― Eu correrei o risco. ― Peguei o tigre no colo ― Feroz! Esse é seu
nome.
― Muito criativo. ― Ewren revirou os olhos e saiu andando.
― Qual você sugere? ― Perguntei sem olhar para ele.
― Ponha o nome que quiser desde que não me atrase! ― Ewren era
sem dúvida muito mais grosseiro do que eu e não tinha o direito de reclamar
de mim.

47
Partimos em alguns minutos, estava carregando Feroz no colo, mas ele
pesava muito, então o coloquei no chão e ele começou a nos seguir. O cenário
demorou muito para mudar, aquela floresta horrível parecia não ter um fim,
pois, algumas horas de caminhada depois, ainda estávamos dentro da
floresta.
― Não estamos perdidos? ― Perguntei a Ewren que ia andando na
frente e guiando o cavalo. Ele olhou para mim como se eu tivesse o ofendido
profundamente.
― Eu tenho cara de quem se perde em florestas? Sou um elfo, lembra?
Não me julgue como um humano com sentidos primários!
― Ei! Eu não tenho sentidos primários! ― Reclamei.
― Não fui eu que me perdi a duzentos metros de onde estava
acampado ontem e quase morri para um vampiro! ― Ok, um a zero para ele.
A floresta foi se tornando mais densa, parecia que estávamos nos
afastando cada vez mais da estrada. E se Ewren ainda estivesse com a ideia
de me vender? Feroz começou a rosnar levemente e seu pelo estava todo
eriçado.
― Que foi, bichinho? ― Estiquei os braços, ele pulou em mim e se
enrolou no meu colo.
― Você deveria ter colocado o nome dele de covarde! ― Ewren parou
e fez um sinal para que eu parasse também, ele pegou a espada que estava
em suas costas e foi pelo meio das árvores até eu perdê-lo de vista. Feroz de
repente saltou do meu colo e começou a bater as patas no chão e crescer até
ficar maior do que o cavalo que estávamos levando.
Ele saltou em uma árvore e voltou com um pequeno homenzinho
verde preso nos dentes. O duende se debateu debilmente, pois já estava todo
mordido. Ewren voltou segurando outro duende pelas pernas. Ele tomou um
susto tão grande quando viu feroz que largou o duende, que quando se viu
livre, correu desesperado pela floresta, Feroz engoliu o que estava em sua
boca e saltou para pegar o outro. Ewren e eu olhávamos de boca aberta, pelo
menos desta vez eu não era a única espantada.

48
― Eu disse que ele não ia me comer! ― Ainda estava olhando Feroz
devorar o outro duende. Ewren acenou com a cabeça, e Feroz veio até nós se
lambendo e sentou perto de mim. Eu estiquei a mão para afagá-lo e ele
começou a ronronar, fazia isso tão alto que até o cavalo se assustou com os
barulhos. Ewren também afagou o tigre.
― Será que eu consigo montar nele? ― Perguntei rindo.
― Acho que até o cavalo consegue montar nele! ― Ewren ainda
olhava desconfiado para o tigre, eu tentei me segurar nas costas dele e ele
não parecia incomodado. Então me ajeitei e fiquei sentada em suas costas,
pouco depois ele espirrou e se esticou, me derrubando no chão. Feroz voltou
a ficar do tamanho de um filhote após eu descer de cima dele e continuamos
a andar.
― Por que você pegou aquele duende? ― Quis saber.
― Eles são muito espertos quando o assunto é roubar, se eles
chegassem perto o suficiente, te roubariam sem você perceber e aí não
poderia me pagar! ― Explicou ele olhando Feroz dormir em meus braços.
Andamos sem parar até a paisagem mudar totalmente, quando
começou a esquentar demais, paramos para comer.
― É verão por aqui? ― Perguntei enrolando as mangas da blusa e
dobrando as pernas da calça.
― Sim, mas daqui a alguns dias será dia de Áries ficar só no céu, temos
que estar preparados, na próxima cidade teremos que comprar um abrigo
de inverno para o cavalo e uma barraca de couro de Yeti.
― Por que não ficamos na cidade até o dia de Áries passar?
― Por que quando tudo congelar, a passagem entre as montanhas
Eternas irá congelar e fechar, e a geleira que se forma é tão espessa que
demora duas semanas para derreter e reabrir a passagem, fora que a
próxima cidade é chamada Vila das Cinzas, uma vila que era refúgio de
salamandras, ou seja, estará tão quente que não dá para ficar mais de
algumas horas. ― Ele estava parado olhando o céu. ― Se partirmos agora,
chegaremos lá ao anoitecer, é a melhor hora, pois não estará tão quente! ―
Ele terminou de comer e levantou-se. Começamos a arrumar as coisas e

49
andamos por um vale coberto de uma vegetação acinzentada e pequenos
lagos escuros. Quando a escuridão começou a aparecer, alcançamos um
muro longo e avermelhado e seguimos até avistar um enorme portão de
ferro.
― Por que todas as cidades aqui são fechadas?
― Por causa da quantidade de criaturas que tentam invadir.
Lobisomens, duendes e vampiros são os mais frequentes, vê em cima dos
muros? ― Os muros eram muito altos e de fora a fora havia soldados
armados com arcos de vigia. Depois de sermos reconhecidos como “não
perigosos” por um guarda, os portões foram abertos e pudemos entrar. A
cidade era pequena e muito quente, Feroz parecia incomodado com o calor.
Andamos pelas ruas repletas de pedras achatadas e quentes no chão até
encontrar uma hospedaria pequena no final de uma ruela. Quando
chegamos à recepção, pedi dois quartos separados, mas Ewren mandou
pedir só um.
― Essa vila é muito careira, o preço dos quartos aqui é alto, sem falar
que eles mandam gnomos atrás do dinheiro nos quartos à noite para roubar
e ter que obrigar os hóspedes a trabalhar. ― Ele sussurrou para mim.
Subimos até o quarto, era como a hospedaria de Alamourtin só que, óbvio,
muito mais quente.
Peguei Feroz e fui para o banheiro, abri a água no frio e coloquei-o
dentro da banheira, ele não se incomodou, pareceu até gostar da água.
Depois o sequei, esvaziei e limpei a banheira e fiquei dentro da água fria
também, detestava aquele calor todo. Enquanto Ewren estava no quarto, eu
peguei umas moedas e saí para ver se achava uma loja que vendesse roupas
mais leves. Não muito distante da hospedaria, encontrei o que estava
procurando. Comprei algumas peças de roupa, outra loja bem próxima
vendia alguns tipos de doce que se pareciam muito com sorvete. Comprei
um de curiosidade. O gosto era horrível, parecia que alguém tinha feito
aquele sorvete de fígado cozido, mas Feroz ficou muito satisfeito com aquele
troço horroroso.
Voltei para a hospedagem, Ewren estava deitado sem camisa na cama
mais próxima à porta.

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― Vai querer descer para jantar? ― Ele questionou olhando para a
bolsa que estava na minha mão.
― Será que eles não trazem comida no quarto? ― Perguntei.
― Acho que sim, mas você vai ter que descer lá, escolher e pedir algo
para que tragam. ― Desci e fui até a recepção, pedi porções de salada, carne
e batatas, que era a única comida mais semelhante a humana que eles
serviam e voltei para o quarto para esperar pela comida, Ewren estava
brincando com Feroz e oferecendo a ele uma das barrinhas de cereais da
minha mochila.
― Acho que não deve demorar. ― Como na outra hospedaria, havia
um mapa numa escrivaninha. O abri e comecei a olhar ― Estamos aqui? ―
Perguntei apontando um pequeno desenho de um muro no mapa.
― É ― disse ele sem olhar para o mapa.
― Como sabe se nem está olhando? ― Ele olhou rapidamente e
sacudiu a cabeça. ― Você não vai tomar banho? ― Eu perguntei, notando
que seu cabelo estava sujo e com pequenos pedacinhos de galhos.
― Não.
― Por quê?
― Não quero ficar atraente demais para você, pode ser que resolva
pular em cima de mim enquanto durmo! ― Eu olhei para ele e tive uma
súbita vontade de lhe dar um soco na cara, porém isso com certeza
machucaria minha mão, então entrei no banheiro, enchi a banheira com
água e voltei para o quarto. Peguei Ewren pelos cabelos e o arrastei até a
banheira.
― Ou você entra ou você vai voltar para cama e eu vou jogar água em
você! ― Eu usei meu tom de zangada de quando mandava meu irmão tomar
banho e ele não queria ir.
― Está fazendo isso para tentar me ver sem roupa? ― Ele perguntou
com um sorriso e começou a abrir a calça. Eu me virei, saí do banheiro e bati
a porta. Meu rosto corou e meu coração quase saiu pela boca, ele era
definitivamente louco. Feroz veio até minhas pernas e começou a roçar
pedindo por carinho. O jantar chegou, eu dei a parte de Feroz e comi a

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minha. Alguns minutos depois eu ouvi um ruído estranho no banheiro, mas
não tinha coragem de ir ver. Feroz sacudiu as orelhas, pegou uma peça de
roupa na bolsa de Ewren e levou para a porta do banheiro, Ewren esticou a
mão, pegou e saiu vestindo a calça que Feroz levou.
― E essa agora? ― Perguntei olhando para o tigre deitado em cima da
minha cama.
― Elfo, posso me comunicar com animais e plantas. ― Ele olhou
aborrecido para mim e sentou para comer.
― Você não gosta de água, não é? ― Ele ficou mais irritado ainda,
terminou de comer e dormiu. Eu deitei e apaguei a luz da cabeceira. Feroz
deitou quase em cima de mim. A noite foi muito quente e desconfortável, eu
mal conseguia dormir com medo de Ewren e dos tais gnomos ladrões. Então
fiquei deitada de lado, mexendo no meu celular e olhando as mensagens
antigas que havia enviado para minha mãe e para Lucy. Sentia muita falta
de casa e nem percebi a hora em que dormi.

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3

cordei antes das quatro da manhã suando muito. Fiquei

A dentro da banheira cheia d’água e quase cochilei ali, pois


foi a única hora que ficou fresquinho. Para um lugar
parecido com meu mundo, faltavam ventiladores ou um ar
condicionado. Eu queria colocar gelo na banheira, mas me
contentei com a água fria. Coloquei um dos vestidos leves e fui chamar
Ewren, eu queria sair desse lugar antes dos sóis aparecerem e
transformarem o lugar num micro-ondas. Andei até a cama onde ele estava
deitado de bruços. Eu sacudi o ombro dele, mas ele não se mexeu.
― Ewren? ― Chamei puxando seu braço, ele então se virou, agarrou
meu pulso e me puxou para cima dele, caí sem jeito por cima de seu peito e
ele deslizou a mão pelas minhas costas.
― Eu disse que você ia querer me pegar enquanto eu dormia. ― Eu
tentei me soltar, mas ele estava apertando meu braço. Ele passou o braço
livre em volta de minha cintura, mas eu levantei a minha mão e dei uma tapa
tão forte no rosto dele que até Feroz pulou assustado e derrubou o abajur do
criado mudo. Ele abriu os olhos e me soltou.
― Você ficou maluca? ― Ele perguntou esfregando o rosto, estava
ficando vermelho e dava para ver as marcas dos dedos.
― Foi merecido, seu pervertido! ― Me afastei e peguei Feroz que
ainda estava com os pelos em pé. Ewren se levantou bufando e foi para o
banheiro, arrumou as coisas e começamos a sair. Antes de sairmos da cidade

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que nem tinha sol e já parecia um forno, passei no boticário para comprar
mais pó de cobrir ferimentos e mais mantimentos. Dessa vez eu comprei a
comida, pois não queria comer carne todos os dias. Quando chegamos ao
estábulo para pegar o cavalo, ouvimos uma briga de um casal.
― Você acha que sozinhos não vamos chegar lá? ― A voz masculina
parecia indignada.
― Precisamos de alguém para nos levar até lá, com o seu nível de
estupidez, morreríamos no meio do caminho! ― Ewren olhou para mim
querendo rir.
― Eles estão piores do que nós, um casal de abissais! ― Eu o encarei
sem entender ― Sereianos! Devem estar fritando aqui! ― Olhei de lado, eles
olharam para mim e depois para Ewren e vieram em nossa direção.
― Hum... com licença! ― Disse a mulher, sua pele tinha um belo tom
de azul com uma tatuagem safira que ia do rosto ao ombro e olhos quase
brancos, o homem era quase igual a ela só que com cabelos longos e
trançados. ― Você é um mercenário, certo? ― Perguntou ela a Ewren.
― Por? ― Ewren parecia irritado quando a mulher dirigiu-se a ele
como mercenário.
― Vocês estão viajando? Poderiam nos mostrar o caminho até o mar
das conchas? ― Ewren olhou para ela, depois para o homem que estava com
ela e riu.
― Sereianos não seguem o mar pelo cheiro? ― Ela parecia
envergonhada.
― Sim, mas meu namorado ― ela disse as palavras com deboche ―
não sabe usar os sentidos dele, eu tampouco. ― Ewren olhou para eles e
ficou pensando por alguns segundos.
― Quanto vocês me pagam até lá? ― Ele olhou para os dois que
ficaram em silêncio nos olhando. O sereiano puxou um saquinho de trás da
calça.
― Só temos oitenta moedas, são três dias de viajem, certo?
― Tudo bem, podem vir conosco. Mas não me atrapalhem! ― Ewren
pegou uma terceira bolsa que estava perto do cavalo e colocou em cima dele.

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Pelas peças de metal, acreditei que fosse a barraca e a proteção para o cavalo.
Antes de sairmos da cidade, voltei correndo até a loja ao lado do boticário e
comprei um arco, uma aljava de flechas e uma adaga pequena, poderia ser
útil.
Quando partimos, Ewren ainda estava de cara feia, seu rosto ainda
tinha pequenas marcas brancas dos meus dedos e ele ia andando na frente
com o abissal masculino. A mulher veio para perto de mim.
― Como é seu nome? ― Ela perguntou olhando para mim com aqueles
olhos estranhos e brancos.
― Leona, e o seu?
― Amijad e ele ― disse ela apontando seu namorado ― é Lirien, mas
pode me chamar de Ami, meu nome é complicado. ― Lirien ia falando algo
com Ewren e olhando de vez em quando para trás.
― Vocês brigam sempre?
― Nem sempre, mas o calor nos irrita muito. ― Ela parecia mais
tranquila, seus cabelos tinham a cor verde oliva e tinha marcas por todo
corpo como pequenas tatuagens que agora estavam quase da cor de sua pele,
só que mais claras.
― Vocês moram nesse mar das conchas, certo? ― Ami coçou a cabeça
e deu um sorriso sem graça.
― O mar das conchas é bem calmo, ao contrário do mar das tormentas
onde habitam sereias canibais. Lá fica a cidade principal dos Sereianos, a
cidade de água doce. ― Ela evitou minha pergunta, mas continuou contando
sobre as cidades marinhas. Estávamos conversando muito entretidas até que
ouvimos um grito fino apavorado vindo da nossa frente, olhamos e corremos
desesperadas até onde estava Lirien caído no chão, quando chegamos mais
perto, notamos que Feroz estava mordendo sua barriga, quase arrancando
um pedaço e Ewren não conseguia parar de rir.
― Qual é a graça?! ― Disse Ami tentando soltar a barriga de Lirien da
boca de Feroz.
― Ele queria mostrar que estava em forma levantando a blusa, acho
que Feroz achou que ele parecia com comida! ― Eu também tive que me

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segurar para não rir, se Feroz ficasse em seu tamanho real, provavelmente
o trataria como comida. Eu o peguei e dei um tapa em seu focinho.
― Feroz feio! Ele não é comida!
― Isso! Parece comida, tem cheiro de comida, mas não é para comer!
― Ewren disse soltando outra gargalhada. Tive que morder a língua com
força para não rir e fui pegar um pouco do pó para ferimentos. Até a hora do
almoço eu tive que andar ao lado de Ewren para não rir da mordida rosada
na barriga azul de Lirien e Feroz ficou no meu ombro olhando para trás e
sacudindo sua calda como se estivesse pronto para dar o bote.
― Ewren? ― Chamei, ele estava rindo do ferimento de Lirien e achei
que seu humor poderia estar melhor.
― Que foi?
― Desculpe pelo tapa, acho que foi exagerado... ― só queria evitar o
mau humor dele.
― Tudo bem, empatamos!
― Empatamos? ― Perguntei confusa ― com o quê?
― O rasgão do vampiro em suas costas. ― Eu havia esquecido,
realmente, se ele não tivesse dito que iria me vender, eu não teria me
machucado. Continuamos em silêncio até a hora de parar para almoçar.
Feroz levou a sério a possibilidade de Lirien ser o seu almoço, enquanto eu
tentava pescar com o arco do jeito que Nena havia feito, Feroz mordeu a
perna de Lirien e não soltava de jeito nenhum, foi um alvoroço. Eu tive que
pescar uns quatro peixes enormes para ele ficar cheio e parar de atacar
Lirien. Ewren tirou um cochilo perto de um arbusto, já que não havia mais
árvores nessa região.
― Vamos ficar um dia inteiro andando no deserto, então devemos sair
logo para que consigamos percorrer a maior parte do caminho do deserto a
noite. ― Fiquei para trás carregando Feroz para que ele não se aproximasse
de Lirien de novo e fui conversando com Ami.
― ...é assim que nós fazemos viagens em meu mundo. ― Ela olhou
para mim, depois para Ewren e de novo para mim.

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― Como são os relacionamentos no seu mundo? ― Ela parecia muito
curiosa.
― Bom, acho que quando conhecemos alguém que gostamos,
tentamos ver se a pessoa também gosta de nós, se sim, nós começamos a
namorar.
― Com que idade?
― Depende, meus pais começaram a namorar bem jovens e estão
juntos até hoje.
― E você? Tem namorado?
― Não... já tive um na oitava série, mas foi por brincadeira. ― Menti.
― Eu e Lirien estamos juntos há pouco mais de cem anos, mas ainda
não nos casamos.
― Cem anos? Que idade você tem?
― Hum... algo entre seiscentos e trinta e seiscentos e quarenta. Não
me lembro bem. E você?
― Dezessete ― todos nesse mundo eram alguns séculos mais velhos
que eu. Ela estava sorrindo e seus dentes eram pontudos como agulhas
entrelaçadas.
― As humanas daqui, com sua idade já são mães. Na verdade, existem
poucos humanos por aqui, sem falar que nós quase não envelhecemos.
― Como assim?
― Aqui você para de envelhecer quando alcança a maturidade e a cada
década você envelhece muito pouco em sua aparência. Pelo menos os
humanos daqui são assim, outras raças quase não aparentam
envelhecimento.
― Hum, então será que a Nellena tinha que idade? Nem cheguei a
perguntar.
― Nellena? Nellena Muriel?
― Não sei, não perguntei seu nome completo.
― Uma caçadora com uma cicatriz em um olho?
― Essa mesma! ― Ela ficou me olhando boquiaberta.

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― Nellena Muriel é a maior caçadora de lobisomens daqui! Ela é
incrível! Tem uns dois mil anos! É casada com um elfo da floresta de Górtia!
― Hum, achei que ela fosse casada com um humano.
― É muito difícil que humanas se casarem com homens humanos,
quase não tem homens humanos aqui, apenas poucos meninos humanos que
ainda não são adultos.
― Por quê? ― Estava curiosa, Feroz tentava se soltar para atacar
Lirien de novo, mas eu o ignorei para escutar a história de Ami.
― Pouco tempo atrás, os humanos viviam do outro lado do mar das
tormentas, mas essa zona era muito perigosa. Então um elfo chamado Laurin
mandou que fosse erguida uma cidade em cima do Monte Azul para trazer
os humanos para este lado do mar, alguns meses depois, quando a cidade
ficou pronta, cinquenta navios partiram do cais da cidade de Avalon. No
segundo dia de viagem, quando estavam no meio do mar, uma das mulheres
notou que seu marido estava meio... aéreo. ― Disse ela tentando explicar de
um modo fácil ― E depois de alguns minutos, ele se atirou no mar. Minutos
depois todos os homens estavam pulando dos navios, algumas esposas
pularam atrás para resgatá-los, mas as águas em volta dos barcos estavam
vermelhas de sangue. As sereias devoraram os homens e as poucas mulheres
que se jogaram atrás deles. ― Quando ela terminou de contar, eu me afastei
um pouco e ela riu. ― Não precisa se preocupar, eu não como humanos
quando estou em terra.
― Quando está em terra... ― essa frase foi bem mais assustadora que
“vou te vender aos vampiros”.
― Hum, entendo... ― ela me olhou, esperando ver se eu tinha
realmente entendido. Eu preferia perguntar o porquê para Ewren depois.
Lirien veio ficar perto dela e eu fui para perto de Ewren, cheguei tão perto
que ele começou a me encarar divertido.
― Eu disse, quase tudo nesse mundo se alimenta de humanos ― eu o
encarei.
― Elfos também?

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― Os elfos brancos não, mas um elfo negro, com muita fome e na
ausência de outro alimento, talvez. ― Eu sentia mais falta de casa agora do
que antes. Ele viu minha expressão de medo e sacudiu a cabeça.
― Você é bem influenciável, não é?! ― Ele riu.
― Seu mundo, suas regras! Como vou saber quando está tentando me
assustar? ― Estava envergonhada por cair de novo.
― Você não é uma pessoa muito inteligente!
― Obrigada. ― Eu respirei fundo e olhei para trás, vi Lirien e Amijad
cochichando. ― Ewren, o que ela quis dizer com “não como humanos
quando estou em terra”?
― Na água, sereias ficam muito maiores, suas bocas cheias de presas
aumentam e elas ficam com a mente maligna e mortas de fome. Na terra eles
ficam com uma aparência quase humana e força limitada e não podem
esmagar as presas com suas caudas. Aí são obrigadas a não moer humanos,
pois não conseguem matá-los com facilidade para se alimentar.
― Entendi... ― Esse pessoal são sabia o que eram vacas? Frangos? Por
que tudo tinha que acabar em “comer os humanos”?
Estava ficando muito escuro e não havíamos alcançado o deserto, mas
dava para ver as dunas de onde estávamos.
O rio estava ficando estreito, então teríamos que parar aqui para
acampar e dormir. Foi difícil achar lenha, depois que Ewren acendeu a
fogueira, eu fui junto com ele levando Feroz para pegar água. Ewren foi para
a fogueira na minha frente e eu fiquei para me lavar no rio, Feroz cresceu
imediatamente quando Ewren se afastou. Eu fiquei congelada no lugar
esperando o perigo, pois notei que ele mudou de forma para me proteger.
Quando voltei para fogueira, Lirien viu Feroz grande, deu um gritinho
estranho e desmaiou, Ami revirou os olhos e jogou areia no rosto dele para
acordá-lo. Eu tive que fazer o jantar, pois comprei coisas diferentes. Fiz uma
sopa de frango com legumes para comer com pão. Ewren não ficou muito
satisfeito e foi pescar, voltou com uns peixes pequenos e os assou. Lirien e
Ami comeram algo frio e gelatinoso que estava na bolsa deles.
Provavelmente eu não iria conseguir dormir com medo dos sereianos e eles
não dormiriam com medo de Feroz, quando fui deitar na minha manta,
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Feroz enroscou-se em volta de mim e acabei dormindo apoiada nele. Com
ele como guarda, nenhum dos dois iriam se atrever a me fazer de lanche da
madrugada. Ewren provavelmente não iria dormir e ficaria vigiando a noite
toda.
Acordei cedo por causa do calor e vi que Ewren estava fazendo aquele
chá horrível.
― Vamos pegar o deserto na pior hora do dia, mas não podemos
esperar! ― Enquanto os sereianos acordavam, fui encher todas as garrafas e
cantis disponíveis com água. Quando voltei, peguei o arco para testar e atirei
uma flecha que quase acertou a cabeça de Ami. Eles deviam pensar que eu
queria os matar. Entrei no rio e antes de sair, molhei bem meus cabelos e
amarrei-os bem apertados num coque, coloquei o conjunto preto que tinha
comprado para usar no deserto e as botas de amarrar. Enrolei o lenço na
cabeça e envolta do pescoço para que pudesse cobrir o rosto assim que
precisasse, preguei uma tira do vestido de linho que o vampiro havia
rasgado e separei para tampar o focinho de Feroz, Ewren já tinha
providenciado proteção para ele e para o cavalo, só Lirien e Ami pareciam
não se preocupar.
― Ewren, se eles estavam sofrendo com o calor na cidade, o que vai
acontecer com eles no meio do deserto? ― Ewren olhou para mim com um
sorriso maldoso.
― Digamos que não vamos precisar de comida para Feroz! ― Eu olhei
para ele espantada. Era exatamente o que eu imaginava, eles iriam cozinhar
no deserto e Feroz ia comer peixe no almoço. Não gostava muito deles, mas
não queria que eles virassem comida, a não ser que Feroz estivesse passando
muita fome... eu gostava mais dele. Entramos no deserto antes do sol nascer,
eu havia esvaziado minha mochila e coloquei Feroz dentro dela com a
cabecinha para fora, coloquei a mochila para frente para ficar mais fácil de
poder carregá-lo no deserto, e se ele ficasse com sede, era mais fácil dar água
a um gatinho do que a um tigre.
Quando os sóis finalmente nasceram, os dois abissais já estavam com
a pele tão seca que eu podia ver as rachaduras. Eu imaginei que eles fossem
sentir calor, mas não a ponto de morrerem de verdade. Quando foi se

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aproximando do meio dia eles quase não tinham força para caminhar, não
tinha nenhuma sombra para parar a quilômetros em qualquer direção que
eu olhava, mas eu não me sentia tão quente, devia ser a roupa especial.
Estava ficando com fome e com sede. Ewren parou perto de um tipo de
planta alta parecida com um cacto e a cortou com uma adaga, no lugar onde
ele cortou, começou a jorrar água limpa e cristalina.
O cavalo bebeu bastante, depois Lirien e Ami se enfiaram em baixo e
quase dava para ouvir suas peles chiando. De dentro de uma das bolsas,
Ewren puxou duas melancias enormes. Eu fiquei tentada a olhar a bolsa para
ver se ela tinha fundo mágico. Ele as cortou, dividiu para nós e deu uns
pedaços de carne assada que estava guardando para Feroz. As melancias
estavam bem fresquinhas e com tanto suco que caíram como uma luva para
o almoço. Depois de quase vinte minutos em baixo da água, ela parou de
espirrar até ficar numa fina linha d’água, eles beberam e eu enchi um copo
para beber também, a água era meio adocicada e dava uma leve ardência na
garganta, mas refrescava e isso já bastava.
Continuamos a andar, Ewren não parecia incomodado com o calor,
quando cheguei perto dele e toquei em seu braço, notei que ele estava frio.
― Você está bem? ― Perguntei me assustando com a temperatura de
seu corpo.
― Eu me adapto para sobreviver, se precisar, posso elevar minha
temperatura ou abaixar. ― fiquei tentada a perguntar o que aconteceria se
eu o enterrasse na areia, mas ele parecia um pouco mais assustador do que
de costume, então segurei minha pergunta para depois, quando senti a falta
de algo, olhei para trás procurando os sereianos, Ami estava tentando
levantar Lirien que estava se debatendo no chão, eu corri para ajudar
achando que ele estava tendo uma convulsão ou morrendo com o calor,
quando cheguei perto, ele estava transformado em um tritão, com a cara e a
boca cheias de areia.
― Venham! Aproveitem também! A água está ótima ― ele gritava
com a voz arrastada, devia estar com a garganta cheia de areia e seus olhos
pareciam duas bolsas de areia. Feroz queria sair da mochila a qualquer custo,
Lirien parecia um peixe empanado na frigideira e Ewren não parava de rir.

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O cumulo foi quando ele puxou Ami para o chão, deu um pulo como se fosse
mergulhar e encheu a boca com mais areia. Ewren explodiu em gargalhadas
e Ami o olhou feio.
― Ewren, aquela planta era alucinógena?
― Claro que não, ele viu uma miragem e com certeza está com febre
por causa do calor!
Nós o arrastamos por quase quatrocentos metros até onde tinha outro
cacto para lavá-lo. Aos poucos ele foi recobrando a consciência e quando se
tocou que estava com os olhos cheios de areia, entrou em desespero.
Ficamos muito tempo parados para limpar Lirien, eu sentia pena, mas era
tão engraçado!
Quando acabamos de limpá-lo e bebemos mais água, voltamos a andar.
― Desse jeito vamos chegar ao fim do deserto só amanhã depois do
meio dia, andem mais rápido! ― Ewren estava ficando irritado, Lirien era
bem... Bom, era burro mesmo! Não tinha como descrever com outras
palavras, podia ver a tristeza nos olhos deles dois naquele calor. Ao
anoitecer a temperatura começou a baixar rapidamente, ficou muito frio e
coloquei o poncho por cima da roupa. Caminhávamos muito mais durante a
noite, era melhor do que sob dois sóis.
Meu estômago começou a fazer barulhos tão altos que podiam ser
ouvidos a quilômetros (sei, é exagero, só estava fazendo muito barulho).
Procuramos parar perto de dois enormes cactos, Lirien e Ami estavam tão
cansados que entraram em um saco de dormir e cobriram os rostos com um
tecido muito fino que não entrava areia.
Ewren rapidamente armou a tenda de couro, ela era grande e larga,
tinha espaço para colocar duas camas de casal. Eu entrei e comecei a
arrumar as camas, Ewren alimentou o cavalo, cobriu o rosto dele com uma
espécie de máscara de pano assustadora que parecia um cavalo fantasma e
tampou-o com uma espécie de colcha grossa. Ele tirou um pequeno fogareiro
de uma caixa, o acendeu com as cascas soltas do cacto e fez um creme
estranho e apimentando para comermos com pão. Aquilo encheu meu
estômago, Feroz enrolou-se no final da minha cama e dormiu. Eu deitei

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embaixo das cobertas e fiquei olhando para Ewren, ele estava deitado com
os braços atrás da cabeça olhando para cima e eu comecei a rir.
― Qual é a graça? ― Ele perguntou virando para mim e me encarando
com aqueles olhos estranhos.
― Não me sai da cabeça a imagem de Lirien se jogando na areia. ―
Ewren riu também. ― Ele é um idiota! Não sei por que Ami está com ele ―
eu resmunguei e Ewren olhou para mim.
― Quando você ama uma pessoa de verdade, você ama até seus
defeitos e aprende a conviver com eles como se eles fossem qualidades, por
isso não importa, às vezes para ela, se ela o ama de verdade, a falta de
perspicácia dele pode ser atraente para ela.
― Entendo. ― Fiquei envergonhada ― E você não tem namorada? ―
Perguntei olhando para Feroz que agora esfregava a cabeça nos meus pés.
― Eu já fui casado, alguns séculos atrás.
― E por que não está mais com ela? Ela não gostou dos seus defeitos?
― Quando eu falei isso, ele se virou totalmente na minha direção.
― Ela foi assassinada... ― meu estômago afundou. ― Estávamos em
nossa casa quando um idiota veio brigar com ela por conta de um lobo de
estimação que ela tinha, o lobo havia rasgado uma colcha que estava no seu
quintal ― Ewren estava com um olhar sem foco, como se estivesse distante
dali ― O homem enfurecido por ela não se responsabilizar pela colcha, deu-
lhe uma tapa no rosto que a derrubou no chão, fiquei furioso! Transformei-
me na mesma hora, peguei o homem pela garganta e o atirei longe. Ela nunca
tinha me visto naquela forma antes ― quando ele me disse, lembrei-me dele
com a pele cinza, os olhos prateados, o cabelo branco e as asas negras. ― Ela
se assustou, ficou nervosa e se afastou, eu não a segui, queria a deixar esfriar
a cabeça. Eu não devia tê-la assustado, podia ter quebrado o pescoço dele
sem me transformar. ― Ele fez uma pausa e cobriu os olhos. ― Quando vi
que ela estava demorando a voltar, segui sua trilha pela floresta perto de
Dascar, quando escutei ela gritar, soube que era tarde demais. Corri na
direção do som, um grupo de uns oito lobisomens estava com ela, só cheguei
a tempo de ver os olhos assustados dela e depois o lobisomem que estava
com ela nos braços arrancou sua cabeça ― eu fiquei ali parada escutando ele
63
falar dela com tamanha frieza, meu coração parecia que tinha parado de
bater, mas ele não parou de falar ― Comecei a atacá-los, mas eles eram
muitos. Quase morri também, se não fosse a Nellena chegar e matá-los com
uma besta com setas de prata... Só um fugiu, o que a decapitou. Até hoje não
sei o que eles faziam tão perto de uma vila de caçadores. Ela foi a presa que
saiu sozinha de casa por minha culpa. ― Ele respirou fundo e bufou ― Por
isso estou te levando até a Torre das Nuvens, pois tinha uma dívida com a
caçadora e por ela ser uma velha amiga de minha família.
― Eu sinto muito. ― E de novo abri minha boca para falar besteira,
provavelmente eu o magoei.
― Tudo bem, foi há muito tempo, e eu já me acostumei com a sua falta
de modos! ― Ele olhou para mim e sorriu. Foi o primeiro sorriso sincero que
eu o vi dar, não podia acreditar que ele conseguia sorrir assim, ainda mais
depois do que me contou, porém fiquei encantada com aquele sorriso.
― Como era o nome dela?
― Emma. ― Ele ficou pensando por um tempo. Depois de muito
tempo de silêncio, quando eu estava quase dormindo, ele falou de novo.
― E você? Não tem ninguém? ― Eu fiquei corada com a pergunta,
achei que fosse óbvio.
― Nunca gostei de ninguém por lá, também não estava muito
interessada em arrumar um namorado, meu foco era outro. Então, só estava
pensando em estudar e morar sozinha por um tempo para decidir o que ia
fazer da minha vida...
― Ninguém nasce para viver sozinho. ― Ele estava com os olhos
fechados.
― Talvez... ― eu estava quase adormecendo e não me lembro do que
ele falou depois disso.

Acordei no meio da noite suando, Feroz não estava mais na cama e a


barraca estava aberta. Ewren estava dormindo. Saí para ver se Feroz estava
por perto da barraca, quando me deparei com uma cena horrível, Lirien e
Ami estavam aos pedaços pelo chão, havia poças de sangue para todos os

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lados, do cavalo só restavam ossos e Feroz estava encolhido perto do cacto.
Corri para ele e o peguei nos braços, ele estava tremendo. Quando olhei para
o lado, vi uma enorme sombra de um lobisomem, ele estava vindo em minha
direção, eu tentei chamar Ewren, eu gritava mais e mais e cada vez o som
ficava mais baixo e a barraca mais longe, eu estava sendo arrastada para o
meio do deserto...
Acordei desesperada, meu cabelo estava úmido de suor e meus olhos
cheios de lágrimas, Feroz se remexeu inquieto aos meus pés. Eu estava
soluçando. Ewren levantou apenas a cabeça da cama.
― Que foi?
― Pesadelo. ― peguei a garrafa de água da minha bolsa e tomei toda
de uma vez, respirei fundo e tomei toda a água da outra garrafa também. ―
Está muito quente. Ainda nem amanheceu, certo? ― Ele olhou para fora.
― Ainda está escuro, mas deve ser quase cinco na manhã. ― Eu me
estiquei, minha vontade era deitar e dormir mais, porém sabia que não podia
ficar aqui muito mais tempo. Quando saímos da barraca, o cenário era
interessante. Onde deveriam estar Lirien e Ami, haviam dois montinhos de
areia, como covas recém-tapadas, ao chegarmos mais perto, vimos um
pedaço do tecido do saco de dormir. Eu os sacudi até a areia sair e eles
levantaram atordoados sem perceber o que tinha acontecido. Ajudei Ewren
a arrumar a barraca e colocá-la de volta na bolsa. Tivemos que tomar um
café às pressas para poder sair antes que o sol subisse demais no céu.
― Se nós andarmos bem rápido, poderemos chegar ao Mar das
conchas antes do fim da tarde. ― Ewren saiu andando e arrastando Lirien
que parecia ainda estar dormindo. A caminhada se tornou muito mais
cansativa quando chegamos a uma parte do deserto onde havia muitas
dunas. Por mais de duas vezes vi cobras passeando perto de nós. Feroz estava
adormecido dentro da mochila e antes do meio-dia, minha garganta estava
ardendo e minha pele estava seca, só não mais seca que a pele de Ami, que
novamente parecia estar rachando. Ewren parou no alto de uma duna e
apontou para um ponto à frente, eu só vi um borrão, estava ficando tonta.
― Uma miragem? ― Ami perguntou.

65
― Não, eu sinto o cheiro da água. ― Ewren andou mais rápido, o
cavalo também parecia eufórico ao notar um pequeno oásis no meio daquele
deserto. Quando chegamos perto, eu fiquei muito feliz por não desaparecer.
Havia um lago de água cristalina, grama e algumas palmeiras e coqueiros.
Enchemos as garrafas, bebi água até meu estômago esticar e doer. Feroz e o
cavalo também se encheram de água. Ewren achou uns pedaços de cascas e
folhas das palmeiras e coqueiros e acendeu um pequeno fogo, tirou a carne
congelada toda da bolsa e assou. Eu tirei alguns cocos e Ewren os abriu.
Senti-me numa praia nas férias.
Depois que acabei de comer e verifiquei que todas as garrafas estavam
bem cheias, eu entrei na água. Minha pele formigou em contato com água
tão fria, mas foi a melhor sensação que eu tive. Ewren e Ami também
entraram na água. Lirien estava desmaiado na sombra das palmeiras depois
de comer até passar mal. Ficamos quase uma hora dentro da água, depois
que saímos, Lirien se lavou por alguns instantes e arrumamos as coisas para
seguir viagem, eu queria poder arrastar esse oásis atrás de mim.
Dei uma última molhada no rosto, Feroz bebeu mais um pouco de água
e partimos novamente. Antes de perdermos o oásis de vista atrás das
imensas dunas, um grupo de seis pessoas se aproximou de nós. Ewren puxou
a espada e ficou alerta. Ami e Lirien mudaram a cor dos seus corpos para um
tom acinzentado e ficaram com os olhos vermelhos, os dois estavam com
pequenas espadas curtas em ambas as mãos antes que eu pudesse perceber,
mesmo sem saber usá-lo ainda, peguei o arco e fiquei esperando, Feroz saiu
de dentro da mochila e ficou do tamanho grande com suas enormes presas
de fora. O grupo se aproximou e ouvi Ami cochichar para Lirien.
― Dois silfos, dois humanos, um aswang e um duende. ― Eu fiquei
olhando, mas para mim eles ainda estavam distantes demais para distinguir.
Quando chegaram perto, notei que as humanas eram mulheres e que havia
uma criatura de pele cor de oliva, olhos cor de barro e dentes pontiagudos.
Os outros dois eram elfos negros como Ewren, um tinha o cabelo curto cor
de caramelo e cicatrizes pelo rosto, o outro parecia velho, mas quando
chegou mais perto, notei que eram queimaduras. O duende estava em um

66
cavalo e todo coberto por uma manta. O elfo de cabelo curto nos viu e soltou
uma risada zombeteira.
― Um elfo, dois sereianos e uma humana! ― Ele olhou para nós ― e
um saco de pulgas que daria um lindo tapete.
― O que querem? ― Ewren perguntou sem mudar sua expressão, ele
não pareceu preocupado.
― Tudo, o dinheiro, o cavalo, as mercadorias e o gato.
― Não daremos nada! ― Ewren falou e fez como se fosse começar a
andar. O grupo desmontou dos cavalos e começaram a fazer sons de
zombaria.
― Sinto muito, mas nós tomaremos... ― Antes que ele terminasse a
frase, Ewren estava atrás dele com a espada em seu pescoço, Ami segurava
as duas humanas pelos cabelos e Lirien espetou a espada embaixo do queixo
da mulher de pele oliva, a espada saiu no topo de sua cabeça, Feroz havia
devorado o Duende em questão de segundos e eu estava apontando a flecha
na direção do elfo de face queimada.
― Eu disse... que não daríamos nada, agora se forem bonzinhos nós os
deixaremos vivos. ― Ewren acenou para mim. ― Pegue os cavalos. ― Eu
peguei as rédeas e puxei os cavalos até onde o cavalo de Ewren estava. Eles
levaram os prisioneiros para o oásis e deixei os cavalos beberem água. Ewren
empurrou os que restaram para dentro da água e disse.
― Ami, Lirien! ― Ele apontou para a água ― uma gratificação pela
ajuda. ― Ami e Lirien sorriram de um modo assustador, o grupo começou a
gritar e tentaram atravessar a lagoa a nado. Ami e Lirien entraram na água
e mudaram para forma de sereias. Ewren me pegou no colo, abriu as asas e
voou muito rápido para o alto. Fiquei apertando Feroz no colo com tanta
força que ele quase me mordeu. ― Você não vai querer ver isso!
― Você mandou Ami e Lirien devorarem eles? ― Perguntei
aterrorizada.
― Ou isso, ou na hora que chegássemos no Mar das conchas, eles nos
devorariam! Entenda, Sereianos são muito fortes e muito perigosos se

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ficarem muito tempo sem se alimentar! ― Eu tentei bloquear a imagem
deles devorando os bandidos.
― E a outra criatura que Lirien matou?
― O aswang? Ele tem uma língua enorme e venenosa, se esperasse ele
agir, ele poderia perfurar a nós quatro em um único ataque. ― depois de
alguns momentos ele voltou. A água estava limpa e cristalina como antes,
não havia ossos e nem restos.
― Não tente achar nada, Leona, nós não deixamos vestígios! ― Disse
Ami com um olhar de satisfação. Montamos os cavalos e dividimos a carga
entre os cavalos restantes. Eu me sentia um pouco enjoada, o olhar de
satisfação do casal de sereianos me causava mais arrepios do que Ewren. A
única coisa boa é que não teríamos que seguir viagem a pé no deserto.

Antes dos sóis se porem, chegamos a uma grande cidade costeira.


― Cidade de Castal. ― Disse Ewren enquanto passávamos pelos arcos
da cidade. A cidade parecia um aquário gigante, enfeitada e com cores vivas,
os prédios e casas pareciam ser construídos com conchas e caracóis gigantes,
enquanto as ruas eram cobertas por areia de vidro colorida, os postes de luz
eram em tubos de corais, tudo na cidade dava a impressão de estar debaixo
d’água.
― Bom, aqui deixamos vocês! ― Disse Ewren a Lirien e Ami.
― Boa viagem para vocês e obrigada! ― Agradeceu a Ami. Ela se virou
para mim e tirou uma delicada pulseira de pérolas de um estojo guardado
em sua bolsa e me entregou. ― São pérolas do Mar das Tormentas, muito
raras! Uma prova de que nossa amizade será eterna! ― Agradeci
timidamente.
― Foi o presente mais bonito que eu já recebi! Obrigada ― Fiquei
olhando os dois se afastarem e entrarem no mar. Seguimos para a cidade.
― Vamos passar a noite aqui? ― Perguntei olhando as lojas, estava
com vontade de comprar algo, as joias e roupas eram lindas.

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― Ficou louca? ― Você viu como dois Sereianos devoraram quatro
pessoas em menos de três minutos? Você tem meia hora ou menos para
comprar algumas coisas enquanto eu negocio os cavalos e compro mais
mantimentos.
Corri para a loja de joias e comprei um brinco de perola para combinar
com a pulseira, embora as pérolas não fossem da mesma qualidade nem do
mesmo formato, ficou bonito. Depois fui à loja de roupas do outro lado da
rua e comprei um vestido branco bordado com pequenos detalhes em forma
de conchas e uma saia longa de seda. Saí apressada procurando Ewren que
estava apenas com seu cavalo, Feroz dormindo em cima dele e as nossas
bagagens.
― Vendeu os outros seis? ― Eu fiquei com pena do pobre animal
levando todo o fardo sozinho de novo.
― Sim, no dia de Áries só poderemos proteger um. ― Saímos da
cidade sem nem comer, mas depois de ver Lirien e Ami se alimentando, eu
preferi sair depressa mesmo. ― Se andarmos em nosso passo de novo,
chegaremos à Bahia da Areia daqui a quatro dias, daqui a dois dias será dia
de Áries e teremos que ter passado o desfiladeiro do esqueleto.
― Sabe, os nomes deste lugar são muito sugestivos.
― Não fui eu que escolhi, se fosse, teria só numerado! ― Eu olhei para
ele tentando imaginar se seria uma solução prática ou pura preguiça, fiquei
com a teoria da preguiça e o segui balançando a cabeça em reprovação.
― Por que não podemos atravessar de barco por aqui e continuar
andando do outro lado?
― Só se você for alpinista... A costa de Edro são quilômetros de
montanhas perigosas cobertas de neve e a vilas de vampiros e salamandras
também ficam concentradas naquela região.
― Mas Nellena disse que lá era o lado perigoso e aqui era o calmo,
então, por que tinha vila de Salamandras e tem um monte de sereias,
vampiros e lobisomens por aqui?
― Não tem como controlar cem por cento da população de todas as
criaturas. E quanto mais perto do país de Edro, mais Cidades potencialmente

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perigosas são achadas. Ao Sul de Mantum tem as cidades, vilarejos humanos
e dos Elfos brancos. E realmente, as sereias e os vampiros daqui são muito
menos violentos do que os vampiros de Edro e das ilhas.
― Se esses são calminhos, não quero cruzar com algum violento! ―
Disse pensando na enorme cicatriz que ganhei nas costas.
― Realmente não foi comum o ataque do vampiro, eles quase não
atacam humanos do lado de cá! ― Disse ele se perdendo em pensamentos.
Já havia escurecido completamente quando perdemos o mar de vista,
Feroz dormia profundamente na mochila e o cavalo também parecia
cansado. Este lugar ventava e fazia mais frio. Eu não sei como e nem por que,
mas cochilei enquanto caminhava e quase caí, Ewren me segurou e parou o
cavalo.
― Acho que nos afastamos o suficiente. Podemos dormir por aqui. ―
Ele montou rapidamente a barraca e fui para dentro arrumar as camas.
Depois de dar água e comida para o cavalo, Ewren entrou e fechou a barraca.
― Não faremos nada para comer? ― Ewren olhou para mim e sorriu,
pegou uma bolsa de couro e dentro dela estava bem quente, haviam dois
recipientes enormes cheios de comida. Eu abri para ver o que era e meus
olhos brilharam. Purê de batatas, carne assada, salada, arroz e lentilha.
― Quanto mais perto de Edro, mais fácil achar comida humana boa!
― Explicou Ewren rindo da minha cara de felicidade. Comia tão rápido que
entalei uma ou duas vezes.
― Eu não sabia que gostava de comida humana ― eu falei enfiando
outra grande quantidade de comida na boca.
― Emma não sabia fazer comida élfica. Por isso acostumei com comida
humana. ― Acabei de comer e bebi muita água. Ewren abriu um pequeno
mapa e começou a marcar. ― Estamos aqui ― disse ele, marcando um
pequeno pontinho perto de algumas montanhas. ― Essas são as Montanhas
Eternas e esse o Vale do Esqueleto, passaremos por ele ao pôr do sol e ao
anoitecer deveremos chegar à planície das Folhas Verdes e acampar lá até o
dia de Áries passar. Aqui ― ele apontou para o final do desfiladeiro ― tem
uma cachoeira, vamos acampar do lado dela até o dia de Áries passar.

70
― Não dá para sair? ― Eu perguntei tentando não pensar no que
aconteceria na hora que sentisse vontade de ir ao banheiro.
― Não. Vai ficar gelado e com tempestade de neve o dia inteiro! ― Ele
pareceu entender minha preocupação ― no quite de antídotos tem uns três
frascos com rótulo Sinfame, ele serve para manter você sem fome ou sede
por alguns dias, comigo só funciona por dois dias.
― Ou seja, vou ficar sem comer por um dia inteiro? ― Ewren riu.
― Sim! Sinto muito! Essa poção vai tirar a fome, a sede e todas as
necessidades biológicas básicas.
― Entendi! Então não sentiremos sono também? ― Perguntei.
― Pois é, por isso tem outra poção aí para poder dormir, mas só se
você estiver entediada, claro! ― Vi um brilho de malícia em seus olhos.
― Não vai ter nada para fazer o dia inteiro, o melhor é dormir mesmo!
― Disse arrumando meu travesseiro. Ewren revirou os olhos e sacudiu a
cabeça como se expulsasse algum pensamento dela. Ele estava deitado,
Feroz estava em sua cama, mas ele o empurrou com o pé para cima da minha.
Fechei os olhos, estava exausta de andar muito rápido para nos afastar do
mar e acabei pegando no sono antes mesmo de terminarmos de conversar.
Acordei muito cedo de novo, tive pesadelos com os sereianos e perdi
meu sono. Ewren ainda estava dormindo, peguei meu celular e liguei. Tinha
uma mensagem da minha mãe “Léo, não fique na rua até muito tarde, se
quiser, pode dormir na casa de Lucy e se puder, traga um saco de laranjas,
pois seu pai gripou, beijos, mamãe te ama! ”
Meus olhos se encheram de lágrimas, para ela eram alguns minutos,
mas para mim eram dias de saudade. Meu coração apertou. Ewren acordou
e me viu chorando, ele levantou rapidamente e sentou do meu lado
― Você está bem? Pesadelo de novo? ― Ele perguntou e parecia
preocupado.
― Apenas saudade de casa, minha mãe me mandou uma mensagem.
― Ele relaxou ao meu lado.
― Logo você estará em casa, eu prometo que vou te levar em
segurança até o portal! ― Eu corei, ele me abraçou e enquanto estava nos

71
braços dele, eu me senti melhor, aliviada, estava tão quente que se eu
pudesse, dormiria naquele abraço. Mas ele se levantou para arrumar a
barraca para partirmos.
Estava estranhamente calmo. Feroz dormiu o tempo todo dentro de
minha mochila, o dia estava muito agradável e fresco, enquanto andávamos,
eu admirei o máximo dessa paisagem, era como um cenário de um filme de
magia, o chão estava coberto por um gramado verde macio e com mini flores
roxas, os paredões do desfiladeiro estavam cobertos de musgo, limo e flores
que caíam em pêndulos, eram azuladas ou as vezes cor de rosa. Passamos
por este lugar o dia inteiro, paramos apenas para fazer um lanche rápido,
Feroz comeu um pouco de grama e depois voltou a dormir.
Os sóis já baixavam no horizonte, ao avistar uma cachoeira no final do
desfiladeiro, eu corri em direção a ela, peguei os cantis e as garrafas e os
enchi, Ewren deixou o cavalo beber água. A cachoeira fazia um bolsão de
água e escorria para uma pequena caverna no paredão do desfiladeiro atrás
de nós. Peguei o xampu e o sabonete dentro da mochila, uma toalha e o
vestido cinza grosso. Entrei na água, estava gelada, mas eu precisava muito
de um banho, tirei a roupa dentro da água, lavei-a e embrulhei em uma
sacola.
Fiquei na água até minha pele formigar. Depois que saí, me vesti
rapidamente. Ewren já tinha montado duas barracas, a nossa parecia
relativamente menor do que nas outras noites e em outra barraca o cavalo
estava deitado dentro com um saco de feno na boca. Ewren entrou na
cachoeira também, eu acendi a fogueira, coloquei o suporte de ferro por
cima do fogo e dois caldeirões de água pendurados nele sobre o fogo. Ewren
voltou com o cabelo pingando e sentou-se em um tronco ao lado da fogueira,
eu peguei a toalha e esfreguei seu cabelo.
― Você não sente frio? ― Perguntei tocando sua pele que estava
gelada.
― Eu posso camuflar minha temperatura para igualar à do ambiente,
assim não sinto frio nem calor. ― Eu já estava com o vestido cinza de lã e o
poncho. Ewren fez uma sopa com muita pimenta, carne e batatas, colocou

72
nas tigelas que vieram com a comida de ontem e as colocou na bolsa
aquecida.
― Para o nosso café quando o dia de Áries acabar! ― Explicou. Depois
encheu uma garrafa térmica com chá e deixou do lado da bolsa de comida.
Coloquei um pouco da sopa quando já estava ficando morna para Feroz, ele
comeu e entrou na barraca.
― É muito folgado, não? ― Resmunguei olhando Feroz deitar-se em
cima da minha cama.
― Dizem que os bichos se parecem com seus donos... ― Ewren estava
colocando os últimos pedaços de lenha na fogueira e colocou dois enormes
pedaços de carne para assar.
― Ainda vai comer mais?
― U-hum... ― resmungou ele olhando a carne. Eu queria perguntar
se ele estava bem, mas resolvi ficar quieta, Ele estava sendo muito agradável
para ser verdade. Entrei na barraca e me deitei, notei que havia algumas
camadas a mais de cobertor. Depois de me enrolar bem, Feroz ficou em seu
tamanho gigante e deitou ao meu lado, deixando tudo muito mais quente.
Depois de alguns minutos Ewren entrou para dormir também, fiquei
olhando ele se deitar. Parecia cansado e até meio fraco.
― Você está bem? ― Perguntei tentando ser o mais gentil possível.
― Não muito. Quando chegarmos ao Porto da Besta Santa do outro
lado do Mar das Tormentas nós iremos parar e ficar uns dois dias por lá!
Tudo bem? Eles têm cristais de energia por toda a cidade, ficar muito tempo
sem um cristal está me fazendo mal.
― Cristais?
― Sim, cristais de energia são espalhados por algumas cidades para
que os elfos negros possam se purificar... ― ele fez uma pausa longa e só
recomeçou a falar quando eu forcei para ele continuar.
― Não estou entendendo! ― Disse.
― Simples, Leona, existe um bom motivo para Elfos Negros serem
chamados assim, elfos negros já foram elfos comuns que foram corrompidos
pelo poder e pela crueldade, nossos corações se tornaram negros, e a cada

73
maldade cometida por nós, a nossa aparência clara e de luz se tornava escura
como das criaturas malignas. Tornamo-nos destrutivos e perigosos e não
podíamos ser curados para voltar à luz. ― Disse ele suspirando ― Assim os
elfos brancos da cidade de Górtia criaram enormes cristais feitos das
lágrimas das árvores da vida e criaram a cidade de Crecência dentro da
floresta de marfim, colocaram esses cristais purificadores e isolaram todos
os elfos negros lá até que com o tempo nossos corações foram sendo limpos
da maldade, embora nunca mais possamos a voltar a ser elfos normais. ―
Ele suspirou novamente e pressionou a mão contra seu peito. ― Os elfos
brancos nos deram a oportunidade de sair da cidade de Crecência e
espalharam cristais por todas as cidades, mas quando passamos muito
tempo longe desses cristais, nossos corações endurecem e a alma volta a
escurecer, aí pode ser perigoso por que podemos nos tornar ruins e
agressivos novamente.
― Por isso você está sério assim?
― Não, por isso eu deixei Lirien e Ami devorarem aqueles bandidos na
estrada, se eu os tivesse matado, isso poderia me deixaria pior. ― Eu vi nos
olhos dele um brilho maligno quando ele ficou pensando sobre isso por
muito tempo, então decidi tirar os pensamentos dele da estrada.
― Ewren, poderia me responder duas coisas?
― Tudo bem.
― Primeiro, se você pode voar, e muito rápido, por que não me levou
da cidade de Alamourtin direto para a Torre das Nuvens?
― Seria a coisa óbvia a se fazer, certo? ― Ele perguntou.
― É... ― Mas quando eu reparei sua expressão inelegível, fiquei quieta
e deixei-o terminar.
― Leona, estamos em um mundo em que todos os monstros do seu
mundo são reais. Aqui tem vampiros, lobisomens, duendes, dragões, goblins,
gigantes e por aí vai!
― Gigantes?
― Sim, gigantes também, e para harmonia desse mundo perigoso,
existem limites, territórios. Eu poderia sobrevoá-los se eu fosse um elfo

74
branco com asas, um mago, um silfo ou até o guardião de alguém, pois eles
são quem mantém esse mundo em ordem, são como governantes, eles têm
poder político sobre todas as terras, mas respeitando as raças existentes
aqui. Mas como eu não sou um deles, eu tenho que respeitar o limite das
cidades, existe uma regra sobre sobrevoar territórios de outras raças,
sempre que alguém passava voando por cima de um território não
pertencente a sua raça, havia uma briga por violação de terras, então foi
criada a lei que alados só podem sobrevoar territórios pertencentes a sua
raça ou territórios neutros, como as cidades centrais, florestas em volta
dessas cidades e territórios que seus líderes permitam o voo.
― Não entendi muito bem... ― realmente eu não tinha entendido.
― Você é bem burrinha, sabia? Se você for alado de uma raça
possivelmente hostil você só pode voar sobre território de outra raça com
permissão, ou em locais neutros, cidades híbridas que não pertencem a
nenhuma raça. E eu sou um mercenário, é mais fácil uma vaca voar do que
me darem permissão para voar por essas cidades.
― Ah sim, entendi, mas essas cidades neutras são livres e qualquer um
pode entrar e sair voando, certo?
― Sim.
― Mas, e o mar das Tormentas?
― Território sereiano.
― Mar das conchas? ― Tentei.
― Neutro. ― Ele estava de cabeça baixa, sabia de cor os territórios e a
quem pertenciam.
― Então por que não poderia atravessá-lo voando?
― Por que todas as cidades costeiras do país de Edro são de Sereianos
e as montanhas do outro lado são dominadas por gigantes. E os gigantes se
alimentam de tudo e todos que entram nas suas terras por voo ou a pé! ―
Depois que ele falou isso, eu fiquei imaginando uma pessoa voando por cima
das montanhas dos gigantes, uma enorme mão vindo em sua direção, o
agarrando e jogando goela abaixo, como sapos se alimentando de moscas.
Meu pensamento foi interrompido por uma unhada de feroz que estava se

75
esticando atrás de mim. Quando ele bocejou, quase desmaiei com seu bafo
de felino.
― Feroz! Fique pequeno de novo, por favor! ― Falei apertando seu
focinho. Ele abriu os olhos grandes e amarelos, espirrou e ficou em tamanho
miniatura, depois entrou para debaixo das cobertas.
― Qual era a outra pergunta? ― Ewren perguntou me olhando, eu
fiquei desconcertada por aqueles olhos me encarando.
― Bom... Na verdade, eu esqueci o que ia perguntar ― fiquei corada e
deitei a cabeça sobre meu braço.
― Então eu posso perguntar uma coisa? ― Ele continuava me
encarando.
― U-hum... ― respondi sem prestar atenção no que ele estava
falando.
― Como exatamente uma garota de dezessete anos cai num portal no
meio de um lago cheio de kappas? ― Seus olhos estavam cheios de
curiosidade.
― Bom, eu estava ajudando uma velhinha a por umas coisas de sua
casa para fora, aí achei um espelho, ela me mandou vender o espelho e
quando fui vender, eu li a inscrição da moldura do espelho e o portal abriu.
― Espera, você abriu o portal? ― Perguntou ele gesticulando com as
mãos.
― Acho que sim, eu li o que estava no espelho, e antes de ler o espelho,
estava normal. Depois que acabei de ler, o espelho ficou líquido...
― Interessante... ― disse ele pensativo.
― O que é interessante?
― Apenas magos humanos, magos metamorfos e algumas exceções
podem abrir portais. ― Ele ficou olhando para mim como se estivesse
tentando descobrir algo. Eu peguei o celular na mochila, o liguei e fingi que
estava olhando algo, desativei o flash e tirei uma foto dele deitado, depois
desliguei e joguei no fundo da mochila. Não consegui segurar um sorrisinho.
― Eu estou sentindo falta de comer doces... ― eu estava falando isso
para mim e nem percebi que falei alto, só quando Ewren riu.

76
― Por que não comprou nenhum na cidade?
― Nem vi que havia uma loja de doces nas cidades! ― Resmunguei
brava comigo mesma por ter falado alto.
― Ficam perto da padaria. Ah, falando em doces! ― Ewren se levantou
e pegou os frascos de poção Sinfame e me deu um ― tome de uma vez só,
depois de aberto, em dez segundos ele amarga! ― Abri a tampinha e virei o
vidro dentro da boca, parecia que eu havia engolido recheio de chiclete de
menta, minha boca ficou gelada e ardeu. Eu estava ficando sonolenta, deitei
novamente sobre meu braço e fiquei olhando para o teto da barraca, Ewren
estava mexendo em um pequeno caderno com capa de couro.
― O que está fazendo?
― Anotações.
― Sobre o quê? ― Perguntei me virando para ficar de frente para ele
novamente
― Não é assunto que seja do seu interesse. ― Tudo bem, foi um fora!
O mesmo que se ele dissesse “não interessa, enxerida”. Virei para o outro
lado, Feroz estava deitado sobre meus cabelos, ele rolou, resmungou, depois
farejou meu rosto, lambeu meu nariz e começou a ronronar. Eu cocei sua
cabeça fazendo-o se esticar em minha direção. Feroz se arrastou por baixo
das cobertas e foi dormir nos meus pés.
Eu fiquei me lembrando da escola, da minha casa, dos meus pais, eu
sentia muita falta, mas de algum jeito eu não me sentia triste, depois eu
comecei a pensar nas lembranças que eu estava acumulando desse lugar,
quando pensei em Ewren e que quando atravessasse o portal para casa,
nunca mais iria vê-lo, nunca mais iria escutar suas grosserias e olhar para
aqueles olhos azul e prata, meu coração apertou. É estranho saber que
existem outros mundos e imaginar que você pode fazer amigos neles, mas
também nunca mais vê-los.

77
4

assei a noite inteira tendo sonhos com doces, sonhei que

P comia torta gelada de abacaxi, depois sonhei com


brigadeiro de panela e acordei sentindo até o gosto do
brigadeiro. Eram cinco e meia da manhã quando acordei,
olhei para o lado e vi Ewren ainda dormindo, eu estava com
sono, mas não conseguia dormir, talvez já fosse o efeito da poção, tentei me
levantar e notei que meus braços estavam dormentes. Fui deixando meu
corpo voltar dos sonhos e quando percebi, minha cama estava como uma
pedra de gelo, a não ser pelos pés, onde Feroz estava deitado e enrolado
como uma pantufa quente.
Na parede do lado da minha cama tinha um pequeno quadrado de
tecido com zíper de fora a fora, eu o abri cuidadosamente para não fazer
barulho, era uma pequena janelinha, não aberta totalmente, mas com uma
fina tela onde pude ver o lado de fora, estava tudo totalmente coberto de
neve! Camadas grossas de neve! Eu nunca havia visto isso na minha vida.
Mas quando entrou um vento pela janelinha, eu soube que não iria vê-la ao
vivo, pelo menos, não agora. Ewren acordou e olhou para mim.
― Já acordada? Feche isso, está entrando frio! ― Eu fechei
rapidamente o zíper e sentei em minha cama.
― Desculpe, eu acordei porque estava com muito frio!
― Peça a Feroz para crescer, assim ele se deita ao seu lado e você não
sente frio! ― Foi o que eu fiz, puxei delicadamente o cobertor até achar a

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bolinha Feroz dormindo, eu tentei chamá-lo e sacudi-lo, mas ele não se
mexia.
― Ewren, ele não acorda! ― Choraminguei ficando nervosa ― ele está
respirando, mas não acorda!
― Ele está hibernando, só deve acordar quando o dia de Áries passar.
― Ah, tudo bem então. ― Eu me encolhi de volta na minha cama.
Ewren ficou me observando.
― Você está com muito frio mesmo?
― Bastante! ― Respondi esfregando meus braços embaixo das
cobertas.
― Então você deve morrer antes do meio dia! ― Ele falou aquela frase
tão naturalmente que eu não sabia se ele estava debochando de mim ou se
estava falando sério.
― Hã? ― Foi tudo que consegui falar, minha boca estava levemente
dormente.
― A temperatura está -17°C e são seis da manhã, ao meio-dia a
temperatura deve chegar a pelo menos -35°C.
― Então eu vou congelar?
― Vai, você vai acabar ficando imóvel, suas pupilas vão dilatar, sua
frequência cardíaca vai cair lentamente e você não vai perceber! ― Ele
estava olhando para mim e sorriu. ― Mas nem vai doer! ― Ewren é louco,
eu percebi isso agora, ele estava falando de como eu iria morrer congelada
em algumas horas e ainda sorria para mim. Meus olhos se encheram de
lágrimas, mas eu não estava sentindo forças para chorar, Ewren começou a
rir alto e levantou da cama dele, estava com uma calça tipo moletom e blusa
de manga, ele veio até onde eu estava deitada encolhida, tirou o cobertor de
cima de mim e se deitou de frente para mim.
― Eu disse que ia te levar para casa, não vou te deixar congelar,
embora você fique adorável quando está azul de medo ou de frio! ― Eu vi
seu cabelo ficar cinza quase branco e seus olhos mudarem de cor, sua pele
ficou naquele estranho tom pálido cinzento e suas asas se abrirem devagar
nos envolvendo completamente, ele me levantou do chão para que a asa

79
esquerda pudesse passar por debaixo de mim, depois nos fechou como num
ninho e puxou o cobertor para cima, eu me sentia como uma lagarta num
casulo.
Não demorou muito para começar a esquentar, minha cabeça estava
perto do pescoço dele, coloquei minha mão gelada em seu pescoço e ele
quase pulou.
― Espera você estar quente de novo para encostar essa mão em mim!
― Ewren resmungou, eu fiquei quietinha até sentir todo meu corpo ficar na
temperatura ideal. Ele me puxou mais para perto. ― Melhor agora?
― Sim. ― Fiquei encolhida perto dele, eu podia escutar seu coração
bater.
― Eu posso variar minha temperatura sem nenhum problema, por
isso aguento temperaturas baixas, mas como você ia morrer de frio, eu tive
que subir a temperatura.
― Pode subir até quanto sem ter problemas? ― Eu não devia ter
perguntando isso. Ele riu de forma que seu corpo tremeu.
― Posso ficar muito mais quente! ― Ele estava falando perto do meu
rosto, eu senti seu nariz em minha orelha e depois o senti descer até meu
pescoço. Meu coração acelerou tanto que parecia que iria sair por entre as
costelas, fiquei imóvel, sem respirar e meu corpo estava tão rígido que
podiam me usar como pedra que eu não iria me mexer. Ewren notou e
começou a rir de novo.
― Por isso que eu gosto de mulheres humanas, é fácil fazer perderem
o controle!
― Eu estou bem controlada. ― Falei com a voz falhando. Droga!
― Estou percebendo... ― ele começou a mexer com o meu vestido, eu
levantei o rosto para olhar para o rosto dele, eu vi seus olhos brilhando no
escuro que havia ficado no ninho das asas e vi um brilho avermelhado no
fundo dos seus olhos. Algo maligno ali, me lembrei das palavras que ele havia
dito na noite anterior “elfos negros eram elfos brancos que foram
corrompidos pelo poder e pela crueldade, nossos corações se tornaram

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negros” me assustei o suficiente para enfiar a unha no braço que estava
descendo pelas minhas costas. Aquele brilho sumiu.
― Eu prefiro que você me deixe morrer de frio se for para ficar assim!
― Ele riu de novo.
― Estou só brincando com você. ― Disse ele ― já disse que se fosse
para te fazer algo, você não teria passado da primeira noite. ― Pelo tom de
sua voz parecia que ele estava tentando se convencer disso. Eu me encolhi
de novo. Ele estava sossegado agora, estava tão confortável que acabei
dormindo novamente.
Acordei sentindo meu braço formigando, ainda estava no ninho das
asas de Ewren e ele estava acordado.
― Estava esperando você acordar, pelo visto a parte do sono não
funcionou com você! ― Ele falou se levantando e fechando as asas, o
cobertor caiu sobre mim. ― Fique aí embaixo, está mais frio que antes! ― E
estava mais frio mesmo, até respirar parecia doloroso com essa
temperatura. Ewren sentou de novo em sua cama e começou a escrever em
seu livrinho novamente, mal ele saiu da minha cama e o frio voltou. Ele não
parecia que ia voltar tão cedo para perto de mim, então fiz um ninho com as
cobertas e puxei Feroz para o meu colo, abraçando-o para me manter um
pouco aquecida. Tremia tanto que se podia ouvir meus dentes rangendo.
― Ewren? ― Perguntei tentando disfarçar a voz e quebrar o terrível
silêncio ―Por que quanto mais tarde mais frio, se ao decorrer do dia deveria
ficar menos frio com o sol?
― Áries é uma estrela de gelo e Sirius é uma estrela de fogo, quando
Áries está só no céu, ele congela tudo. Então, quanto mais perto do meio-dia,
mais proximidade com essa terra e assim mais frio.
― Então, se Áries congela tudo, quando Sirius fica só nos céus não
deveria pegar fogo em tudo?
― Tecnicamente não, pois esse mundo tem muito mais água do que o
seu mundo, então quando Sirius sobe ao céu sozinho é criada uma grande
quantidade de vapor que causa o efeito de abafamento, impedindo assim os
incêndios.

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― Mesmo em plantações?
― Sim, em todas as plantações ficam vários tonéis de água misturada
com um pó de mussile, uma planta que facilita a vaporização. E para cada
litro de água são gerados mil e setecentos litros de vapor.
― Interessante! Então quando os sóis sobem juntos aos céus eles
regulam a temperatura um do outro?
― Não, apenas regulam a temperatura do planeta. ― Ewren terminou
de escrever e saiu da barraca, deixando entrar um vento gelado. Ele voltou
alguns minutos depois.
― Que foi isso? ― Perguntei batendo o queixo.
― Fui olhar o cavalo.
― Ele está bem? ― Perguntei, se eu estava congelado, imagino o pobre
cavalo sozinho.
― Está dormindo. A temperatura da barraca dele está normal. ― Eu
estava sentindo Feroz se revirar no meu colo enquanto o apertava, peguei
um pedacinho da carne no pote de comida dele e coloquei diante do seu
nariz. Ele mastigou sem abrir os olhos.
― Ele vai sonhar que estava comendo carne! ― Eu ri, mas Ewren
estava mais sério e com pequenas sombras embaixo dos olhos. Eu estava
vendo aquele brilho vermelho de novo em seus olhos, ele sentou na cama
dele e começou a escrever no seu livrinho de novo. Eu fui até o estojo de
antídotos e remédios e vi que havia um vidrinho de sonífero, (seu rótulo era
“somnus”, dei graças por saber ler latim, vi que era a poção sonífera que ele
falou) abri devagar a tampa e senti o cheiro, não tinha cheiro de nada, eu
nem imaginava a dosagem então peguei dois canecos grandes e em um
coloquei pouco menos da metade do vidro de sonífero e no outro apenas
algumas gotas. Peguei o chá quente que estava na garrafa térmica e servi.
Ewren olhou para mim desconfiado quando lhe entreguei o chá.
― Não precisamos tomar nada, lembra? ― Perguntou ele olhando-me
com o cenho franzido.
― Deu vontade de tomar alguma coisa, é estranho ficar sem beber
líquidos. ― Respondi inocentemente.

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― Você não gosta desse chá, por que está tomando? ― Ele parecia
cada vez mais assustador.
― É quente, não precisa ser bom, só precisa esquentar! ― Respondi
rispidamente tentando parecer convincente.
― Eu também esquento e não sou bom! E aí? ― Ele estava com malicia
na voz, o olho dele que era azul estava ficando castanho avermelhado. Fiquei
com medo de aborrecê-lo agora e empurrei o chá na direção dele, tomando
o meu que estava com apenas umas gotinhas de sonífero. Ele não esperou
uma resposta, bebeu o chá e jogou a caneca no canto. Veio até onde eu estava
sentada em minha cama e deitou perto de mim de novo fechando as asas, eu
podia sentir uma energia sombria em volta dele, meu coração não parava de
se jogar contra as minhas costelas.
― Por que tão nervosa? Eu não vou te machucar! ― Ele disse devagar
e sua voz perecia estar se arrastando, ele pegou minha mão e mordeu de
leve. Por que esse sonífero não faz efeito logo! Ewren me puxou pra perto dele,
dessa vez sem nenhuma gentileza, mas ele não parecia estar com raiva. Sua
respiração estava irregular e seu coração também. Devo ter colocado
sonífero demais!
― Ewren, me solte! ― Eu fiz força para me soltar, mas ele não deixou
eu me mover, cravei as unhas em seu braço, mas parece que ele nem sentiu.
Eu senti sua mão passar em meu pescoço, depois ele me abraçou de novo e
ficou em silêncio, eu estava ficando com muito medo, olhei para seu rosto,
não via nada, então ergui minha mão, seus olhos estavam fechados e agora
ele respirava profundamente. Depois de alguns minutos, quando eu me
acalmei, eu senti meu corpo pesar e meus olhos arderem.
Ainda estava enrolada nas asas de Ewren quando despertei, estava
fazendo um pouco de calor, escutei o cavalo relinchar e bater as patas do
lado de fora da barraca como se estivesse nos chamando. Como Ewren não
se movia, eu o empurrei para o lado, ele rolou e ficou de bruços no chão.
―Ai meu Deus! Feroz, acho que ele não vai mais acordar! ― Feroz
levantou as orelhas como se tivesse me entendido e cheirou Ewren. Eu olhei
meu celular, era quase duas da tarde e meu estômago roncou alto. Eu saí da
barraca, já não havia mais neve, a grama estava verde e a cachoeira estava

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fazendo arco-íris nas pedras. O cavalo estava bebendo água, comi o resto da
carne assada e dei uma parte a Feroz, ele se jogou no bolsão da cachoeira e
foi até perto de algumas pedras onde pegou alguns peixes que deviam ter
morrido congelados e os devorou, voltou pulando para perto de mim. Eu não
sabia o que fazer, Ewren estava deitado na mesma posição que o rolei em
cima de um cobertor no chão da barraca. Com dificuldade puxei-o para fora
da barraca e comecei a arrumar as coisas como Ewren fazia, depois enrolei a
barraca e a amarrei, não ficou um embrulho tão bom quanto o dele, porém
dava para colocar no cavalo. Depois de juntar as coisas, eu peguei o cavalo e
amarrei as coisas nele, ele parecia incomodado comigo fazendo isso.
― Sinto muito menino, mas o seu dono está desmaiado! ― E eu estava
ficando louca falando com um cavalo. Depois que estava tudo certo, só
Ewren continuava errado, tentei lhe jogar água, sacudir, gritar, mas nada
parecia fazer efeito. Foi então que eu tive uma ideia. Cheguei perto dele, as
asas iriam me atrapalhar para levá-lo em cima de Feroz, mas o animal
parecia entender o que estava acontecendo então veio para perto de Ewren
e pisou com a patinha no meio das costas dele onde ficava a fênix tatuada. A
tatuagem então se mexeu e recolheu as asas, transformando-se em
tatuagem novamente. Eu o virei.
― Feroz, você me entende? ― Perguntei olhando fixamente nos olhos
do tigre e torcendo para ele me entender, ele cresceu, ficou no seu tamanho
normal e colocou a cabeça em meu ombro. ― Feroz, você sabe para onde
fica a cidade portuária desse lado do mar das tormentas? ― Perguntei. Feroz
colocou uma garra para fora e fez um risco na direção da estrada. Eu olhei
sem acreditar, imaginando que fosse um sonho e me belisquei várias vezes
antes de perguntar novamente.
― Feroz? Sabe qual é a cidade que precisamos ir para atravessar o mar
das Tormentas? ― Estava olhando nos olhos dele de novo. Ele começou a
riscar o chão com suas garras e desenhou uma ancora no chão ― Pode nos
levar lá? ― Feros espirrou e sacudiu sua enorme cabeça, ele andou até o
cavalo e lambeu o focinho dele, o cavalo de repente cresceu, ficou maior e
mais forte, e depois foi até Ewren e deitou perto dele, eu montei em suas
cotas, puxei Ewren para cima, coloquei-o sentado atrás de mim, amarrei-o

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em minha cintura e prendi seus braços em volta de meu pescoço, quando
terminei, me inclinei para frente.
― Podemos ir? ― Perguntei a Feroz, ele se levantou, rugiu alto e
começou a correr. Corria numa velocidade tão grande que eu tive que olhar
para ver se o cavalo conseguia acompanhar, para minha surpresa ele estava
ao nosso lado. Tive que me segurar com todas as minhas forças, pois estava
com medo de Ewren desequilibrar e me levar pro chão junto, estávamos
correndo tão rápido que eu só via borrões em volta de mim. Eu não consegui
marcar o tempo, a corrida era constante, não tinha variação na velocidade
dos animais.
Não estava nem olhando para frente, estava apenas confiando que iria
chegar ao meu destino e torcendo para não cair, meu corpo estava dolorido
de não me mover e eu sentia o cheiro da maresia, quando finalmente abri os
olhos, estava escuro, eu olhei para frente e vi o porto a poucos metros de
nós. Feroz foi diminuindo a velocidade e parou perto de um grande navio
que estava ancorado na ponta do cais. Desprendi Ewren de mim, Feroz
deitou-se no chão respirando com força, eu afaguei sua cabeça, o cavalo
também estava bufando. Uma mulher desceu do navio e veio em minha
direção, ela era muito bonita, ruiva e com olhos pretos e vivos.
― Você está bem? ― Disse ela olhando de mim para os animais e
depois olhando Ewren.
― Estou só dolorida da viagem, o cavalo e meu Tigre devem estar com
muita sede... ― eu estava com a garganta seca também.
― Quer que eu te ajude a encontrar um hotel? ― Ela perguntou, mas
sem mover os olhos de Ewren.
― Eu preciso chegar ao porto da Besta Santa. Ele é um elfo negro, está
me levando para lá, mas... ― eu não queria contar sobre o sonífero ― acho
que ele pegou algo por engano no estojo de medicamentos e está dormindo
desde ontem!
― De onde você está vindo? ― Ela perguntou olhando os animais
respirando rapidamente.
― Vim do Desfiladeiro do Esqueleto, estava acampada perto da
cachoeira.
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― Desfiladeiro do esqueleto? São dois dias de viagem daqui! Mas se
você quer mesmo ir para o Porto da Besta Santa eu posso te levar, por uma
taxa, é claro! ― Disse ela já levando os animais a bordo, eu a segui, ela desceu
uma rampa dentro do navio onde tinha um pequeno estábulo com alguns
cavalos e uma baia vazia, Feroz encolheu de tamanho deixando Ewren cair
no chão do navio, dando um enorme susto na mulher.
― A propósito, qual seu nome? ― Perguntei me sentido uma mal-
educada.
― Banshee ― ela respondeu.
― Leona, prazer! ― Ela sorriu para mim e colocou o cavalo na baia,
que deitou no feno, ela colocou bastante água e comida. Feroz bebeu tanta
água que achei que sua barriguinha fosse explodir. Havia um cano no teto,
Banshee gritou um nome por ele e logo alguém chegou correndo perto de
nós.
― Mag, me ajude a levá-lo para cima! ― A mulher atarracada de
aparência hostil a ajudou a levar Ewren de volta ao convés do navio, ela
entrou na cabine e dentro da mesma tinha duas portas, dois quartos
diferentes. Ela abriu uma porta e colocou Ewren deitado em uma cama.
― Ele está apenas dopado, deve acordar em poucas horas, vou pedir
para a cozinheira fazer uma comida bem forte, ele parece meio fraco.
― Sim ― respondi triste ― está. Ele disse algo sobre os cristais de
purificação.
― Leona, estamos partindo para o porto da Besta Santa, sabe que o
mar das tormentas é infestado de sereias e que teremos que prendê-lo, pois
as sereias poderão enfeitiçá-lo.
― Sim, já sei ― respondi.
― E como ele parece tão cansado, é provável que esteja ficando
corrompido pela ausência dos cristais, eu irei fazer um carregamento de
cristais no porto da Besta Santa, tenho algumas Elfas a bordo. Como você
reparou, minha tripulação é constituída apenas por mulheres.
― Sim, eu notei, mas há alguns dias vi uma sereia devorar duas
humanas sem dó nem piedade.

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― Só se alimentam de mulheres se estão muito tempo em terra, para
elas a carne de mulher é amarga. ― Ela esfregou uma cicatriz em seu braço,
depois se levantou e prendeu os braços e pernas de Ewren em grilhões
brilhantes.
― Prata? ― Perguntei.
― Sim, diminui a força e a lucidez de todas as criaturas mágicas,
inclusive magos e bruxos, mas os elfos negros, com a prata eles perdem os
sentidos a ponto de nem saberem o que estão fazendo, assim não tem risco
de quebrar as correntes. Leona, sinto muito, mas você terá que dormir com
a tripulação, tudo bem? ― Ela me perguntou docemente.
― Tudo... ― eu só queria chegar logo do outro lado, ela falou com
outra mulher sobre a comida e depois me mostrou o navio e onde eu
dormiria.
― Você janta comigo hoje! ― Disse a capitã depois de um tour pelo
navio.
― Capitã, estamos prontas para zarpar! ― Disse uma mulher que
notei ser uma salamandra.
― Levantar âncora e a todo pano! ― Ela ordenou, depois me levou de
volta à cabine. O jantar foi servido alguns minutos depois, foram servidos
muitos frutos do mar desconhecidos por mim e muitas frutas e verduras. Eu
comi tanto que senti minha roupa apertar um pouco. Depois do jantar fui
para o outro quarto ao lado do que Ewren estava preso, entrei com Banshee,
lá havia um banheiro e nele uma tina enorme cheia de água quente.
― Pode tomar banho se quiser, a água quente vai relaxar você! ― E
ela tinha razão, eu estava suja de poeira, cansada e dolorida, provavelmente
pela velocidade da corrida de Feroz! Ainda bem que tinha um estojo de
segurança em minha mochila. Depois do banho, ela havia servido um prato
enorme de comida.
― Vou dar para ele ― disse ela apontando para o quarto de Ewren. ―
Ele acordou faz alguns minutos! ― Eu senti meu rosto esquentar.
― Tudo bem, eu vou! ― Disse tomando o prato das mãos dela, Banshee
pareceu frustrada por alguns segundos.

87
― Não o solte por nada! ― Disse ela enquanto voltava ao seu quarto.
Eu observei a porta por alguns instantes depois entrei no quarto, Ewren
estava sentado de cabeça baixa na cama. Quando me viu entrar, notei que
seus olhos estavam escuros e seu rosto estava muito mais sério que o
normal.
― Como se sente? ― Perguntei baixo, para prevenir se alguém
estivesse escutando.
― Com fome e com dor de cabeça, você me dopou? ― Ele parecia
indignado.
― Desculpe, você ficou assustador! ― Eu disse sentando na cama a sua
frente.
― Me solte! Se não, você vai ver algo assustador de verdade! ― Ele
pediu puxando os braços.
― Não posso, só a capitã tem a chave! ― Eu estava com muita pena de
vê-lo acorrentado, peguei um pouco de comida no garfo e levei até sua boca.
Ele ficou de boca fechada me encarando. Eu comi o que estava no garfo e fiz
como se fosse me levantar e sair.
― Tudo bem! Eu como! ― Métodos de psicologia testados em meu
irmão funcionavam neste mundo também! Ele comeu rapidamente, mas em
nenhum minuto ele tirou os olhos de mim.
― Depois eu volto para te ver ― eu disse me levantando, ele segurou
a minha mão e um frio passou pela minha espinha. Eu olhei para ele e vi um
pequeno brilho azul sob aqueles olhos negros.
― Desculpe se machuquei você. ― Ele disse. Eu não havia entendido
até olhar para meu pulso, tinha uma marca arroxeada. Devia ser de quando
ele me segurou e não me deixou sair antes de desmaiar pelo remédio. Eu não
soube responder, apenas saí e fui até onde eu iria dormir. Levei uns pedaços
de algo que parecia lula para Feroz e ele os engoliu vorazmente. Tive um
sono pesado e sem nenhum sonho.
Acordei com Feroz mordendo meus dedos, pelo cheiro de comida
deveria ser quase hora do almoço. Levantei-me, fiz um cafuné em Feroz que
estava deitado em minha rede e fui até o convés. O dia estava lindo e o mar

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estava azul tão claro que dava para ver os peixes na água. Havia mulheres
trabalhando por toda parte, a maioria era formada por humanas e algumas
salamandras. Eu não sei por que, mas morria de medo delas.
― Bom dia! ― Disse uma jovem que estava sentada em cima de um
canhão.
― Hum, bom dia! ― Respondi. ― Onde estamos? ― Perguntei
― A um dia do Porto da Besta Santa. Você dormiu quase dois dias. ―
Disse ela com um estranho sorriso no rosto, a olhei espantada, por isso meu
estômago doía tanto, fui almoçar com ela e depois iria ver Ewren. Levei um
pouco de comida escondido para Feroz, que comeu até alguns legumes.
Quando estava subindo de volta ao convés para ver Ewren, escutei
sussurros de duas mulheres que estavam de guarda.
― ..., mas a capitã está lá há horas!
― Tanto tempo sem homem que tomou o namorado da menina! ―
Elas riram baixinho. Não estava entendendo o que elas queriam dizer, mas
tive um mau pressentimento. As mulheres no convés estavam distraídas
com algo na proa do navio. Entrei sorrateiramente pela cabine e parei em
frente à porta de Ewren. Olhei para o lado e notei que a porta do quarto de
Banshee estava aberta, entrei e vi um pequeno buraco na parede que dava
para o quarto onde Ewren estava acorrentado.
Quando olhei pelo buraco, eu senti um nó na garganta e um aperto no
peito. Ela estava com Ewren no outro quarto, ou melhor, sobre Ewren, sem
nenhuma roupa, estava agarrada a ele e beijando-o. Ele estava retribuindo o
beijo dela e seus dedos acariciando suas costas, enroscando os dedos
naqueles enormes cachos ruivos. Saí dali tão rápido que as tripulantes nem
me viram passar e corri para onde Banshee havia colocado o cavalo. Sentei
perto dele e respirei fundo, estava nervosa e com o coração acelerado sem
saber o motivo, para me distrair, comecei a escovar o cavalo com tanta força
que ele reclamou batendo a cauda em mim.
― Tem razão! ― Eu estava falando com o cavalo de novo ― Ele não é
nada meu, eu não devia nem estar assim! ― Mas eu estava, e estava com
raiva dela também por tocar nele. Percebi naquele momento que estava com
ciúme. Comecei a sentir um desejo estranho de enforcar Banshee com seu
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próprio cabelo, minhas mãos estavam tremendo, eles deviam estar um
pouco acima de mim, se divertindo. Eu comecei a imaginar o cabelo dela se
apertando com força em volta de seu pescoço até ela ficar roxa. Suspirei
novamente tentando afastar meus pensamentos negativos e foi aí que ouvi
um grito abafado.
Ouvi vários passos correndo e outros gritos. Limpei a escova que
estava usando no pobre cavalo. Havia um balde d’água perto da porta e
quando olhei o reflexo do meu rosto para ver se haviam marcas de lágrimas,
fiquei apavorada. Havia uma marca como se fosse uma tatuagem de vidro
brilhante no meio da minha testa, era uma orquídea verde do tamanho de
uma moeda e em meu braço esquerdo desde o pulso até o ombro apareceram
marcas parecidas com um cipó cheio de pequenas folhas, daquele mesmo
desenho de vidro verde brilhante.
Tentei arrancar com as unhas, mas parecia que estava tentando
arrancar uma parte de mim, como uma unha, tentei lavar, mas eles não
saíam. Não podia subir ao convés assim, elas estranhariam. Quando eu fui
me acalmando da raiva de Banshee, as tatuagens desapareceram. Respirei
fundo e subi correndo para ver do que se tratava o escândalo. Quando
cheguei ao convés, quase todas as mulheres estavam em volta dela. Elas
estavam com facas cortando seu longo cabelo para soltar de seu pescoço,
Banshee não estava respirando, a mulher que parecia um troll fez respiração
boca a boca e ela começou a tossir.
― O que aconteceu, capitã? ― A mulher chamada Mag estava
segurando Banshee sentada.
― Meus cabelos... começaram a me sufocar... ― ela notou onde estava,
viu seus cabelos no chão e começou a chorar. Não consegui sentir pena,
estava achando bem feito e apreciei as lágrimas dela. Talvez esse mar tivesse
alguma maldição, pois eu estava me sentindo diferente. De repente o rosto
de Banshee ficou branco, ela apontou um dedo magro para mim e como se
estivesse gritando, abriu a boca e ficou daquele jeito até as outras olharem.
― MAGA! ― Começaram a gritar ― A CAPITÃ DEIXOU UMA MAGA
ATRAVESSAR O MAR! VAMOS MORRER! ― Elas estavam todas gritando e
apontando para mim. Olhei meu braço esquerdo, a raiva devia trazer aquelas

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tatuagens de volta à minha pele. Eu não sabia o que fazer, mas como eu
desejei que ela sufocasse com os próprios cabelos...
― Quietas! ― Berrei ― eu não quero ouvir um pio até chegarmos ao
Porto da Besta Santa! ― Eu então desejei que houvesse algum homem a
bordo, a mulher troll era a que mais se parecia com um, então ela se
contorceu e transformou-se num homem tão feio quanto a mulher que era
antes. As outras se afastaram dele instantaneamente e alguns segundos
depois, ouvimos uma melodia vinda do mar. A mulher troll que agora era
homem, andou lentamente até a beirada do navio como se estivesse
hipnotizada e se jogou no mar. Todas as outras começaram a gritar, eu não
podia acreditar no que estava acontecendo. Banshee se ajoelhou diante de
mim e começou a implorar perdão, eu não conseguia engolir, só ficava com
mais raiva.
― Vamos matá-la! ― Disse Mag ― Antes que ela nos mate! ―
Algumas mulheres puxaram espadas e começaram a vir em minha direção.
Feroz então saltou diante de mim e soltou um rugido tão alto que fez
algumas tábuas do assoalho vibrarem e se soltarem. Elas imediatamente
desistiram da ideia de me matar. Concentrei-me o suficiente para falar.
― Já disse, comportem-se e eu não machuco mais ninguém! ― Entrei
para a cabine com Feroz e fechei a porta. Ouvi um barulho vindo de onde
Ewren estava preso, fui olhar o que era, ele estava sentado, suas roupas
estavam no chão e estava coberto apenas por um lençol.
― Que diabos de barul... ― ele estava gritando, quando olhou para
mim ficou mudo e de boca aberta ― Uma Maga!? ― Seu rosto empalideceu
e ficou olhando-me surpreso e desconcertado.
― AH! CALE A BOCA VOCÊ TAMBÉM! ― Gritei para ele, depois bati a
porta atrás de mim e fiquei sentada na cabine até o anoitecer.
Uma salamandra veio trazer o jantar. Ela ainda estava assustada, se
curvava ligeiramente para falar comigo e me senti mal por isso, pois não
tinha nada contra as outras tripulantes.
― Senhora... ― ela chamou ― a capitã pediu autorização para entrar
no quarto dela ― disse enquanto colocava o jantar sobre a mesa. Eu me
sentia mal, pesada. Minha raiva era apenas de Banshee.
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― O Navio é dela. ― Respondi secamente olhando para outro lado.
― Obrigada! ― Agradeceu a mulher. Banshee entrou encolhida,
olhando-me de canto de olho. Ainda estava coberta por uma blusa velha e
com muito medo de mim, depois desviou os olhos para a porta da cabine
onde estava Ewren.
― Vai lá ― disse, com a raiva me tomando de novo ― entra lá e faz o
que você estava fazendo antes! ― Ela mudou ligeiramente de cor, passando
para um tom de roxo e correu para seu quarto. Eu me sentia um monstro.
Realmente estava com ciúmes dele. Lembrei-me de quando Ewren ainda não
estava tomado de maldade, quando eu chorei de saudade de casa e ele me
abraçou. Eu senti raiva de imaginar que ela estava com ele. Não conseguia
parar de pensar nisso, aí me voltou na cabeça, “os grilhões de prata tiram a
força e a lucidez” talvez Ewren não tivesse percebido o que estava
acontecendo? Improvável! Entrei no quarto onde ele estava, ainda estava
deitado olhando para o teto e ainda coberto com o lençol.
― Ewren? ― Chamei. Ele não respondeu, na verdade nem virou em
minha direção. ― Não vai falar comigo? ― Perguntei. Nenhuma reação, ele
continuou em silêncio. Sentei-me no chão perto dele, mas longe o suficiente
para que ele não me alcançasse e fiquei esperando chegarmos ao porto da
Besta Santa. Eu me sentia uma criança de castigo sentada ali por horas sem
me mover.
Tomei um susto quando ouvi o barulho da âncora descendo, havia
cochilado ali, Ewren estava na mesma posição. Levantei-me de um pulo.
― Ewren? Levante e coloque sua roupa, eu vou te soltar!
― Hum... ― ele resmungou e olhou para mim. Seus olhos estavam
totalmente vermelhos e desfocados.
― Você está bem? ― Levantei e fui em sua direção. Ele deu um pulo
na minha direção mostrando enormes garras, dentes pontiagudos e um
olhar assustador. Atirei-me contra a parede onde ele não podia me alcançar
por causa das correntes. A única maneira de tirá-lo do navio seria dopá-lo
novamente, porém não sabia como, ele provavelmente não tomaria o
remédio. Feroz entrou no quarto trazendo o estojo de remédios.

92
― Feroz inteligente! ― Eu afaguei sua cabeça e peguei o remédio.
Coloquei em uma colher, mas Ewren a atirou longe. Fui até o aposento de
Banshee, ela estava sentada à frente de uma penteadeira tentando arrumar
o que sobrou de seus cabelos.
― A chave. ― Pedi secamente. Ela olhou-me com lágrimas nos olhos
e me deu a chave prateada.
― Po-podeira devolver meu cabelo? ― Ela pediu soluçando.
― Lamento, não sei fazer isso. ― Respondi e saí do aposento, em cima
da mesa na cabine havia um mini bolo de chocolate com nozes,
provavelmente a sobremesa de Banshee, eu tirei o frasco do sonífero de
dentro do bolso do poncho e com uma colher tirei um pedaço de cima do
bolo e entornei um pouco do remédio, depois recoloquei o pedaço do mini
bolo e o cobri com um pouco de creme para não parecer tão suspeito e voltei
para onde Ewren estava. Ele havia vestido suas calças, mas ainda parecia
atormentado. Eu o olhei e suspirei, não tinha um jeito fácil de fazer isso.
― Quer sair daí? Quer a chave? ― Eu mostrei-lhe a chave em minha
mão. Ele esticou a mão para tocá-la e eu a recolhi. Estava completamente
inconsciente do que estava acontecendo e senti até pena ― Só se comer o
doce, aí te entrego a chave! ― Estendi a mão com o bolo.
― Tá brincando? ― Ele estava com a voz cansada e alterada.
― Ou come ou eu não te solto! ― Eu disse e novamente estiquei a mão
com o doce para ele. Ele pegou e comeu, na verdade, engoliu inteiro.
― A chave! Dê-me a chave, mulher! ― Ele pediu, estendendo a mão
novamente.
― Vem, Feroz, vamos ver o cavalo e pegar as coisas! ― Quando saí,
pude ouvir os gritos de Ewren. Escovei o cavalo e depois coloquei as coisas
em cima dele, deveria estar quase anoitecendo, olhei pela janelinha na
lateral do navio, ele estava atracado num grande porto e havia grandes lojas,
casas e hotéis para todos os lados.
Esperei um pouco de tempo para o sonífero fazer efeito. Quando entrei
no quarto, Ewren estava deitado na cama com a boca parcialmente aberta.
Cheguei bem perto para ter certeza de que ainda estava vivo. Quando

93
percebi que estava adormecido, soltei os trincos das correntes dos pés e
depois das mãos, Feroz estava em seu tamanho grande para levar Ewren
para fora do navio. Quando o segurei para colocá-lo em cima de Feroz, ele
me agarrou, me puxou contra ele e colocou as garras em meu pescoço.
― Alguns remédios não fazem efeito duas vezes! ― Ele disse tão baixo
que quase não pude entender. Feroz encolheu rapidamente passando por
entre minhas pernas e mordendo a perna de Ewren que urrou de dor me
largando.
― Sinto muito Ewren, mas tenho um sonífero infalível! ― Peguei a
cadeira que estava ao lado da cama e acertei com toda força nas costas dele,
que caiu por cima de Feroz, uma fina linha de sangue apareceu descendo por
suas costas.
― Feroz! Eu o matei de novo! ― Feroz fez um barulho como se
estivesse rindo ou espirrando. Saí com Feroz, Ewren em cima dele e o cavalo
de dentro do navio e procurei pelo porto algum lugar para levá-lo. Depois de
andar um bom tempo parecendo uma atração de circo, achei um hotel onde
havia serviço de Pronto atendimento e um tipo de sala de banho com sauna
e pedras quentes. Um homem de pele avermelhada nos atendeu e ele olhava
desconfiado de Ewren para mim.
― Por acaso você estava tentando sequestrar o elfo? ― Ele perguntou
me pegando de surpresa com aquela pergunta inusitada.
― Não! Ele estava muito tempo longe dos cristais de purificação e
começou a ficar agressivo! ― O homem então o pegou com dificuldade e o
colocou em cima de uma mesa que parecia uma maca, mas feita de uma
estranha pedra branca. Fiquei olhando Ewren ali, parecia até um inocente
elfo ferido desse jeito.
― Então veio ao lugar certo, essa sala é uma sala de restauração, vocês
vieram de navio, certo?
― E teria outro meio de chegar aqui? ― Perguntei soando tão rude
que fiquei envergonhada.
― Realmente não, mas o mar das tormentas causa distúrbios
comportamentais e físicos, no caso dele, perdeu quase toda a força, ele está

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tão fraco quanto um gato! ― Feroz se incomodou com a comparação e eriçou
o pelo.
― Então, se eu tentasse obrigá-lo a fazer algo, ele faria? ― Perguntei
me lembrando de Banshee em cima dele.
― Bom, não totalmente, ele inconscientemente teria que aceitar. ―
Eu bufei, o enfermeiro começou a cuidar dos ferimentos das mordidas de
Feroz e depois do corte que eu abri em suas costas com a cadeirada. ― Ele
ficou muito tempo sem um cristal de purificação, antigamente o poder de
um elfo negro aumentava consideravelmente sem um cristal de purificação,
mas como eles se tornaram muito perigosos em zonas sem cristais, foi
lançado um feitiço por uma maga muito poderosa, quando elfos negros
ficassem distantes de cristais de purificação, seus poderes de cura e sua
resistência física seriam diminuídos, nem sua força continuaria igual.
― Como é seu nome? ― Perguntei para cortar o assunto, eu queria
sair dali, estava me sentindo mal, como se tivesse agredido um gato indefeso
que estava tentando me arranhar.
― Alodinio ― disse o salamandra.
― Alodinio! Vou dar uma voltinha pela cidade, depois eu volto! ―
Falei enquanto girava nos calcanhares e saía de fininho dali.
― Tudo bem, irei cuidar dele, quando você voltar, estaremos aqui! ―
Saí com Feroz nos braços, o porto era grande, a cidade me era
estranhamente familiar e fui andando por uma ruela até encontrar uma rua
larga com enormes lojas de todos os tipos. Fiquei olhando as vitrines de
todas as lojas até achar uma loja escondida em um beco estreito. A loja era
cheia de pedras, gemas cintilantes e cristais. Em uma parede havia uma
grande caixa de vidro com cristais azuis brilhantes. Uma senhora de rosto
redondo (igual a essas avós de filmes, as doces velhinhas) veio me atender.
― Olá minha querida, procurando por algo especial? ― Ela perguntou
seguindo meu olhar até os cristais na parede.
― O que são esses cristais? ― Perguntei.
― São ornamentos feitos com cristais de purificação! Tenho
pingentes, brincos, pulseiras e anéis! ― Ela foi até o balcão e de trás dele

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puxou uma maleta de couro forrada de veludo cheia de joias feitas com
cristal de purificação.
― Qual o nome desse cristal?
― Gota de lágrima ― ela disse pegando uma caixinha menor com um
conjunto. Era lindo, um par de brincos em forma de pequenos losangos
brilhantes, um anel com o cristal combinando com os brincos e uma pulseira
com vários pequenos pingentes no mesmo formato, fiquei encantada.
― Quanto custa? ― Deviam custar uma fortuna.
― Duzentas moedas este conjunto. A gota de lágrima não é um cristal
raro, só vale pela lapidação artesanal e pelas correntes de aço damasco, eu
mesma fiz! ― Disse ela com um enorme sorriso no rosto, ela o fez com tanto
trabalho e carinho que não pude resistir. Comprei o conjunto todo. Também
comprei um cristal maior em corte comum com uma corrente feita de
escamas de dragão, pelo que a velhinha me disse, é uma corrente tão
resistente que só um dragão pode arrebentar. Pedi para embrulhar o cristal
maior para presente, pois me recusava a viajar com Ewren surtando.
― Cuidado ao usar o conjunto, minha jovem, este cristal foi criado
com as lágrimas de criaturas Místicas, se forem usados por um mago, eles
podem aumentar seus poderes!
― Por quê?
― Por que quanto mais puro o coração de um mago, mais forte será
seu poder. ― Ela me deu uma piscadela e sentou de novo atrás do balcão
onde a vi trançando pequenas tiras de couro, despedi-me e saí da loja.
Caminhei lentamente olhando o conjunto em minhas mãos, parei para
colocá-los, olhei meu reflexo na vitrine de uma loja, era tão lindo! Quando a
claridade batia nos cristais, eles mudavam de cor. Feroz andou atrás de mim
miando e fazendo sons de reprovação.
― Com fome? ― Perguntei a ele, que se esfregou na minha perna ―
Claro que está com fome! ― Tinha um restaurante perto de onde nós
paramos, então pedi alguns bifes e dei para Feroz. Enquanto ele comia, liguei
meu celular para ver se estava com sinal. Milagrosamente estava com um
pontinho de sinal, digitei uma mensagem rapidamente para minha mãe:

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“Mãe, está tudo bem, estou em segurança, por favor, não se preocupe,
estarei em casa em breve! ”
A mensagem parecia muito suspeita, então a apaguei e reescrevi:
“Mãe, estamos passeando no shopping, só vamos para casa quando
fecharem as lojas, beijos, te amo, até logo! ” Li a mensagem novamente, só
então a enviei. Alguns segundos depois de aparecer “mensagem entregue”
a rede sumiu, desliguei o telefone e vi que Feroz já havia terminado de
comer. Voltamos calmamente ao hotel, a vista da cidade à noite era ainda
mais bonita, a lua cheia estava começando a aparecer e fazia as ondas
brilharem quando quebravam bem próximas ao cais. A cidade parecia uma
pintura retrô, com postes de luzes amareladas e paralelepípedos cobrindo
as ruas. Já estava muito escuro e o movimento nas ruas secundárias havia
diminuído, então parei de enrolar e fui logo para o hotel. Entrei para
procurar por Ewren, ele estava na mesma sala de restauração, só que
acordado e dentro de uma piscina de pedras com água quente. Ele me viu
chegar e eu vi seus olhos estreitarem, olhou-me de cima abaixo e depois
pareceu aliviado.
― Está se sentindo bem? ― Perguntei timidamente.
― Com dor de cabeça e com pontos ardendo nas costas, mas bem! ―
Disse ele parecendo irritado, ainda me olhando desconfiado.
― O que está olhando? ― Perguntei olhando para onde ele olhava.
― Eu tive a impressão de ter visto marcas de mago no seu braço e na
sua testa! ― Eu disfarçadamente olhei meu reflexo nas águas. Estava
normal.
― Você se lembra de como chegou ao navio? ― Perguntei tentando
soar inocente.
― Só me lembro de ter escutado uma gritaria, ter visto você com
marcas de mago e uma mordida na perna, depois que você me deu um
bolinho. ― Então ele não se lembrava do que estava fazendo com Banshee
ou estava mentindo muito bem.
― Então você... Hum... não se lembra de nada do navio? ― Quando
falei isso, um traço de iluminação mudou seu olhar, mas continuou a me
encarar com um ar de santo. Ele não me devia nada, não era nada para mim,
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eu não podia nem reclamar. Fui surpreendida pelas palavras que ele disse
depois disso.
― Minha função é apenas te levar à Torre das Nuvens em segurança,
só isso! Não devo explicações do que faço enquanto não estou com você,
certo? ― Eu fiquei corada, senti de novo aquele nó na garganta. Ele
continuou me encarando. ― Você logo vai estar em sua casa e não vai fazer
diferença para você o que eu fiz ou deixei de fazer por aqui! Não é? ― Eu
sabia disso e sabia muito bem, e que comparada a ele eu não era nada neste
mundo, segundo suas próprias palavras eu era uma criança, não significava
nada para ele como ele não deveria ser nada para mim.
― Eu não disse nada, estava apenas perguntando se lembrava de algo!
― Disse tentando engolir o caroço em minha garganta.
― Lembro de tudo clara e perfeitamente. E se você é uma maga, por
mais criança que seja, controle-se, não saia por aí usando seus poderes sem
saber controlar suas emoções, ou você controla suas emoções ou seus
poderes a controlarão. Se você não pode se controlar, você se torna má! ―
Eu fiquei com raiva de novo, quem era ele para me falar de bem ou mal? Meu
corpo tremeu e mordi a boca para não lhe responder como merecia. As
tatuagens reapareceram.
― Está vendo? ― Disse ele apontando para meu braço ― o sentimento
é o pior inimigo da razão e você só pode controlar seus poderes com a razão,
se deixar levar pelos sentimentos é se entregar para o mal.
― Não sei o porquê disso! ― Resmunguei.
― Por que, se fosse algo para o bem, você não ficaria mais forte
quando tivesse sentimentos felizes? Seus poderes só apareceram pela
primeira vez quando ficou com raiva e teve sentimentos negativos. ― Eu
sabia disso, havia notado, mas não tinha pensado que poderia me tornar má.
Virei as costas e o deixei lá falando sozinho, fui procurar para qual
quarto que levaram minhas bagagens. Tomei um banho, dei banho em Feroz
e deitei na cama cobrindo o rosto com os braços. Senti as lágrimas
escorrerem, ainda não tinha aprendido a não ser tão chorona, sempre chorei
à toa. Eu não sabia lidar com sentimentos ruins, eu nunca havia sentido
ciúmes de nada ou mágoa. E também estava acostumada a viver sem
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emoções fortes, dor ou medo. Fiquei deitada por muito tempo pensando,
sem conseguir adormecer. Ewren entrou no quarto e deitou na outra cama.
O olhei discretamente por baixo da curva do meu braço. Estava vestido de
linho branco e com o cabelo trançado.
― Você está bem? ― Me perguntou, eu sequei as lágrimas
discretamente enquanto tirava os braços do rosto.
― Ótima, maravilhosa! ― Disse sarcasticamente, virei para o lado e
fiquei esfregando a cabeça de Feroz, que ronronou alto.
― O que é isso? ― Sabia que ele se referia ao colar com cristal que eu
havia deixado sobre a cama dele. Nem me deu ao trabalho de virar para ter
certeza.
― Um presente, pra você ficar calminho durante o resto da viagem.
― Eu não queria olhar para ele. Não queria que ele tocasse mais em mim,
talvez devesse pedir para outra pessoa me levar o resto do caminho, mas
isso só provaria a Ewren que eu não podia controlar meus sentimentos e que
o estava evitando por algum motivo, e ele descobriria a verdade.
― Me desculpe, não quis ser grosseiro com você. Ainda não estou cem
por cento purificado.
― Hu-hum ― não lhe disse mais nada. Ele sentou em minha cama e
me virou na direção dele.
― Você tem que entender! ― Ele estava olhando dentro dos meus
olhos, dentro da minha alma. Dessa vez não sabia do que ele estava falando.
― Não entendo, não sou adivinha para saber o que você está pensado!
― Ewren colocou o colar e continuou olhando para mim.
― Você ainda é muito criança, talvez um dia pense e comece a
entender como a vida aqui funciona.
― Eu não sou criança, pare de me chamar assim! ― Gritei tão alto que
Feroz pulou, bufou para mim e foi para cama de Ewren.
― Se não fosse, não estaria fazendo esse escândalo todo! ― Eu soltei
meus braços e virei. Por que ele não podia simplesmente entender que eu
tive ciúme? Eu respirei fundo e me virei novamente.
― Me desculpe. ― Eu disse.

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― Pelo quê? ― Ele estava me forçando, eu o encarei.
― Por me meter em sua vida, por atrapalhar você!
― Leona ― ele me encarou novamente ― preciso te perguntar uma
coisa e quero que você seja totalmente sincera. ― Ele estava me segurando.
Eu assenti com a cabeça ― Você gosta de mim? ― Ele me segurou com força
para que eu não pudesse me virar. Meu coração batia tão forte que por um
instante achei que ele ia saltar do meu peito e isso perto dele já estava se
tornando comum demais, ele não me soltou e continuou me encarando com
aqueles olhos grandes e coloridos.
― Bom, se você me considerar como uma amiga também, então, acho
que sim... ― tentei mentir, mas sempre fui uma péssima mentirosa.
― Não foi isso que te perguntei! ― Perguntou pressionando-me,
embora meu coração dissesse uma coisa, eu sabia que dizer a verdade iria
fazer ele se afastar e eu não sabia se o queria perto ou longe de mim.
― Não! Ficou louco?! Você é muito velho! ― Disse brincando e dando
um meio sorriso, tentando ao máximo parecer convincente e prender
minhas lágrimas novamente. Ele me soltou.
― Ainda bem, pois se dissesse sim eu iria arrumar outra pessoa para
te levar. ― Ewren se levantou e voltou para a cama dele. Eu senti um frio na
espinha. Se tivesse dito a verdade, ele me largaria e mandaria outra pessoa
terminar o serviço? Então eu não significava mais que um negócio em
andamento para ele! Era difícil não acreditar nisso, afinal, eu não havia
pagado ainda o restante do dinheiro, mas talvez ele quisesse apenas me
testar, me provocar para ver a minha reação.
― Eu não vou mais tocar em você, me desculpe! ― Disse ele ― Não
quero te confundir! ― Eu estava começando a ficar com raiva novamente.
― Você não está me confundindo, mas deve estar ficando confuso,
isso sim! ― Respondi grosseiramente ― Parece que você gosta de mim e
está tentando não se confundir! ― O encarei, ele pareceu pego de surpresa
pelas minhas palavras e desviou o olhar. Levantei-me e saí do quarto, antes
de sair pude ver um sorriso divertido em seu rosto, o que me deixou com
mais raiva. Bati a porta atrás de mim para demonstrar minha frustração e
subi alguns lances de escada até chegar ao telhado do hotel. Andei até o
100
beiral e me sentei perto da grade de proteção, que por sinal era muito baixa
e de protetora não tinha nada. O céu estava lindo, as estrelas brilhavam
intensamente e a lua estava tão grande que se eu esticasse minha mão
poderia tocá-la, estava tão claro que podia ler um livro sem precisar de
nenhuma outra luz. O vento estava frio, porém tolerável, fazia minha pele
arrepiar, mas era relaxante e a maresia fazia-me sentir como se estivesse
num passeio de férias. Fiquei sentada ali olhando as estrelas, pensando e
imaginando quantas coisas maravilhosas deste mundo eu não veria. Estava
quase cochilando quando senti um movimento atrás de mim, devia ser Feroz
me seguindo. Olhei para trás e não vi nada, apenas o telhado e a porta para
a escadaria, senti algo mexer em meu cabelo e fechei os olhos.
― Você não disse que não ia mais tocar em mim? ― Reclamei me
virando para o lado e congelei. Um par de olhos vermelhos estava
encarando-me.
― Conheço seu cheiro! ― Era um lobisomem. Havia cicatrizes pelo
seu focinho e faltava parte de uma orelha. ― Conheço seu cheiro, parece
com o da sacerdotisa... Lupine! ― Disse a criatura, esse é o nome de minha
mãe!
― Eu não sou Lupine! Sou filha dela! Você a conhece? ― A criatura
me olhou de novo e mostrou os dentes. ― Como sabe o nome de minha mãe?
Já foi ao meu mundo? ― Quis saber, a criatura largou uma gargalhada
medonha e afastei-me para o outro lado do telhado sem fazer movimentos
bruscos. Ele andou em minha direção lentamente sem desviar o olhar.
Me virei devagar e ele espelhou meu movimento, estava a seis andares
do chão e a rua principal estava movimentada. Se eu tentasse gritar,
provavelmente morreria antes de alguém chegar para me socorrer. Não
sabia ainda como usar meus poderes, vi a criatura dar um pulo em minha
direção, parecia que estava tudo em câmera lenta, não pensei duas vezes,
girei meu corpo e me atirei do beiral para a rua, não senti mais nada, apenas
escutei um som de algo batendo e a dormência por todos os lados e aí tudo
começou a ficar escuro.
Eu queria gritar, mas não tinha ar nos meus pulmões para isso, havia
um gosto forte e metálico na minha boca. Meu corpo não respondia aos

101
comandos para me mover ou levantar, não conseguia abrir os olhos e tudo
doía, quando forcei para abrir os olhos, minha visão estava embaçada, não
sabia o que estava acontecendo ao meu redor, havia pessoas pedindo ajuda
e outras falando comigo, mas estavam tão distantes... via apenas sombras,
só podia sentir a dor. Num breve momento de lucidez, tive a certeza de que
iria morrer confirmada ao ouvir uma voz muito distante...
― Não toque nela, não tem como ter sobrevivido...

102
5

cordei com meu despertador tocando na beira da cama.

A Desliguei e fui até meu banheiro tomar banho. Senti cheiro


de café vindo da cozinha, entrei no quarto de Leonard para
chamá-lo, mas ele não estava lá. Seu quarto estava
diferente, as caixas de brinquedo no canto haviam sido
trocadas por um computador e a cama estava com uma colcha diferente.
Voltei ao meu quarto e reparei que não havia mais cama, só havia uma
escrivaninha no canto com uma foto. Corri até a cozinha para perguntar a
mamãe o que estava acontecendo e eu tive um choque ao chegar à cozinha.
Meu irmão estava grande, quase adulto, sentado e tomando uma
xícara de café, meu pai estava enrugado com cabelos brancos e expressão
triste, e minha mãe também. Eu os chamei, mas a minha voz tinha sumido.
Tentei tocá-los, mas eu não conseguia chegar perto. Voltei correndo ao meu
quarto, a foto que estava na mesa era minha, eu tinha tirado aquela foto com
a câmera de Lucy no verão. Na escrivaninha tinham vários artigos de jornais
escritos “Jovem desaparecida ainda não encontrada”, eram fotos minhas nos
jornais. Comecei a revirá-los até achar um jornal “Corpo de jovem
desaparecida encontrado nos fundos de um antiquário, dono é principal
suspeito de assassinato” Eu não conseguia acreditar! Eu estava aqui! Como
isso tinha acontecido?

Acordei gritando, a dor me consumiu e perdi o ar. Ewren estava ao


meu lado sentado.
― PARE! Por favor, não se mexa! ― Ele disse, me segurando na cama.
Outro homem entrou no quarto, ele tinha o cabelo curto castanho, era forte
103
e tinha um jeito de galã de novela. Pelas orelhas achei que fosse um elfo
também.
― Que bom que você acordou! Quase não tínhamos esperanças de
você sobreviver! ― Ele disse, olhando meus olhos com uma pequena
lanterna. ― Como se sente, Leona? ― Ele perguntou.
― Horrível! ― Mal pude escutar minha própria voz, a dor estava por
todos os lados.
― Bom, para alguém que pulou de seis andares, você está ótima,
apesar de estar com fraturas em praticamente cada osso do seu corpo. Mas
agora que você já acordou, eu posso te oferecer uma solução para a dor! ―
Disse ele olhando em uma pequena escrivaninha.
― Não! ― Disse Ewren levantando e segurando o braço dele ― Não
pode dar isso a ela!
― Isso ou ela vai ficar meses nessa cama até as fraturas curarem, na
melhor das hipóteses, é claro, pois não tem muitas chances de ela voltar a
andar depois de uma fratura na coluna! ― Disse ele a Ewren. Ewren saiu
bufando do quarto. Feroz estava deitado ao pé da cama. O lugar parecia uma
enfermaria gigante.
― Onde estou? ― Perguntei, minha voz saiu tão baixa que não sabia
se ele tinha me escutado.
― Em Lótus Vale. ― Disse ele ― Algumas horas de viajem para frente
do porto da Besta Santa.
― Você é um elfo? ― Ele riu.
― Não, um silfo. ― Até onde eu sabia, silfos são elementais do vento.
Mas estava com muita dor para perguntar se estava certa. ― Leona você tem
duas opções, esperar por uma recuperação lenta e dolorosa ou se recuperar
em dois dias com um remédio... diferente! ― Ele fez uma pausa e ficou
esperando eu dizer algo.
― Que remédio? ― Quis saber.
― Bom, é bem desagradável, mas corta a dor imediatamente e cura
rápido.
― Que remédio? ― repeti.

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― É sangue de aswang.
― Quê?
― Sangue de aswang. Aswang é um monstro, uma mistura de bruxa
com vampiro, mas o sangue deles possui propriedades curativas e
regenerativas quase imediatas.
― Tem efeitos colaterais? ― Perguntei, porém a dor era tanta que eu
não me importava em tomar qualquer coisa para melhorar.
― Hum... ― ele olhou para mim ― seu corpo pode ficar diferente...
― Diferente tipo, ganhar chifres ou alguns olhos extras? ― Ele riu
novamente.
― Não, não, você vai ficar com uma aparência mais adulta por causa
dos agentes presentes no sangue do Aswang, sua resistência física vai
aumentar muito e você pode ficar um pouco mais hostil... ― disse ele
gentilmente olhando para mim com cautela.
― O quanto mais hostil? ― Eu perguntei.
― O suficiente para arrancar a cabeça de alguém que tocar na sua
comida se estiver com fome! ― Eu suspirei, isso eu já fazia, então podia lidar
com essa parte.
― Mas a parte da hostilidade não é certo, não é?
― Não, mas as chances são muito grandes! ― Pensei de novo. Quando
respirei fundo, uma dor agonizante me fez perder o ar e me dobrar ao meio.
― Costelas quebradas ― disse ele. Eu abri a mão o máximo que pude e
gesticulei para ele me dar o frasco.
Ele me deu o frasco com um líquido roxo viscoso.
― Tampe o nariz, pois você vai sentir vontade de vomitar! ― Disse
ele, eu já havia tomado uma dose de conhaque e não imaginava algo tão ruim
quanto aquilo. Virei o conteúdo do vidro em uma golada só! Tive que segurar
para o líquido não voltar, era realmente horrível, não podia nem imaginar
algo tão ruim para comparar. O Silfo sentou na beirada da cama com uma
tigelinha de vidro com algo marrom e cremoso dentro, ele pegou uma
colher, pegou um pouco do doce e trouxe em direção a minha boca. ― Tome
esse para tirar o gosto! ― Eu obedeci imediatamente e comi. Era mousse de

105
chocolate! O gosto ruim se foi na segunda colherada e fiquei nas nuvens.
Depois da última colherada do doce, mal fechei os olhos e já estava no
mundo dos sonhos.
Acordei pouco depois, parecia que fazia pouco tempo que havia
pegado no sono, porém estava me sentindo maravilhosa! Como se eu tivesse
dormido em uma nuvem. Levantei-me devagar para ter certeza de que
estava tudo no lugar, eu parecia diferente, um pouco mais pesada e meio
desajeitada ao andar, fui até o final da sala esperando que a porta estreita
fosse um banheiro, andei lentamente para ter certeza que não iria cair e era
mesmo um banheiro.
Havia um grande espelho na parede. Lavei meu rosto e quando olhei
meu reflexo, eu tomei um susto. Meu corpo estava totalmente diferente, eu
não parecia mais uma atleta de natação! Meu cabelo que antes batia um
pouco abaixo dos ombros estava quase na altura dos joelhos. Foi como se eu
tivesse dormido e acordado alguns anos depois, o problema é que as marcas
no meu braço esquerdo também estavam lá, mas agora elas subiam do braço,
passavam pelo ombro e acabavam na minha nuca e eram quase da cor da
minha pele. ― Saí do banheiro, o silfo estava de pé do outro lado da sala me
esperando e olhando para mim. Eu estava com uma expressão boba e alegre
no rosto.
― Eu disse que ficaria diferente. ― Disse ele olhando para mim.
― Como? ― Perguntei.
― Para consertar seu corpo, o sangue de Aswang só pode ser usado
uma vez, ele acelera o seu tempo para consertar tudo mais rápido, esse é o
corpo que você só teria com uns vinte anos de idade talvez.
― Ah, agora entendi por que o cabelo cresceu. ― Disse passando a
mão em meu cabelo, sem falar de todo o resto que mudou. ― Bom, foram
três dias de restauração...
― TRÊS DIAS? ― Gritei.
― É, você ficou desacordada por cinco dias até eu poder te dar o
sangue de aswang, depois você dormiu por mais três para se recuperar!

106
― Então estou aqui há muito tempo! ― Eu estava muito atrasada e
tinha que voltar para casa o mais rápido possível, pois iriam sentir minha
falta logo. ― Desculpe, mas como é seu nome? ― Perguntei olhando para o
silfo, estava envergonhada.
― Aeban, General Aeban do exército de Lótus! ― Ele apertou a minha
mão. Podia sentir um afeto por ele que não podia explicar.
― Aeban, pode me dizer, por favor, onde está Ewren?
― Está na sala ao lado. ― Ele apontou para a esquerda. ― Vou estar
na minha sala se precisarem de mim! ― Disse saindo pela porta e fechando-
a, procurei minhas roupas e vesti a primeira que peguei, o vestido que
comprei na cidade de Castal, ele ficou um pouco apertado, mas ainda coube.
Procurei por uma tesoura pela enfermaria e encontrei uma num armário
debaixo da pia do banheiro, amei o cabelo, mas tão longo assim ia me dar
trabalho desnecessário para o resto da viagem e já seria muito difícil
disfarçar o corpo, então cortei o cabelo na altura da cintura, com dó de
deixar do mesmo tamanho que era antes.
Saí dali e vi a porta da sala que Aeban havia dito, estava entreaberta,
Ewren estava sentado numa poltrona acariciando a cabeça de Feroz, que
pulou do colo dele para me receber.
― Oi bichinho fofo! ― peguei Feroz no colo e apertei meu rosto em
sua carinha macia, seu peso havia mudado drasticamente, estava leve como
um gatinho doméstico, o remédio havia mesmo aumentado minha força e
pude constatar isso o segurando. Ewren estava sério olhando para mim, ele
se levantou e pegou o conjunto de cristais que eu havia comprado na loja da
velhinha.
― Eu limpei o sangue... ― disse ele colocando o conjunto em mim ―
prefiro evitar um surto de raiva sua agora, se os cristais purificam elfos,
devem purificar humanos também! ―Tive um calafrio quando suas mãos
tocaram em meu pescoço e segurei o cabelo para que ele pudesse fechar o
colar.
― Obrigada. ― Agradeci lhe dando um sorriso tímido.

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― Poderia me explicar o que aconteceu? Quer dizer, por que você
pulou do prédio? Estava com tanta raiva de mim assim? ― Eu o olhei
espantada.
― O quê? Como você é egocêntrico! Por que faria isso por estar com
raiva de alguém? ― Minha resposta o deixou atordoado.
― Você quase morreu, Leona! ― Ele estava quase gritando.
― EI! Pode parar! Eu pulei para tentar não morrer! ― Esbravejei em
resposta. Ele pareceu ainda mais confuso com minhas palavras, voltou a
sentar e ficou olhando para mim esperando uma explicação. ― Olha, saí e
fui para o telhado tomar um ar, quando cheguei lá, alguns instantes depois
apareceu um lobisomem horrível...
― Pera aí, um lobisomem? Em Porto da Besta Santa? ― Perguntou ele
usando um tom sarcástico, não acreditando em mim.
― É! Um lobisomem, ele chegou e falou que reconhecia o meu cheiro,
me chamou de Lupine e quando eu disse que não era ela, ele começou a
avançar pra cima de mim. Foi aí que eu pulei! ― Eu terminei de dizer e
Ewren estava pálido.
― Como era ele?
― Preto, peludo, olhos vermelhos e dentes grandes.
― Detalhes, Leona! ― Ele estava de pé novamente.
― Hum... tinha cicatrizes no focinho e faltava metade de uma orelha.
― Black Jango! ― Ewren disse este nome como se estivesse cuspindo
algo.
― Quem seria esse?
― O Lobisomem, Black Jango, líder da matilha de Lobisomens
Mercenários ― Ewren parecia mais assustador que o lobisomem naquele
momento. Aeban entrou no quarto.
― Está tudo bem? ― Ele perguntou olhando Ewren andar de um lado
para o outro.
― Hum... não sei dizer ― eu também estava olhando preocupada para
Ewren.

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― Aeban! O que sabe sobre Black J.? ― O lobisomem? Ele está a serviço
do Mago Arcadius. Dizem que Arcadius está monitorando as raças mais
hostis e montando um exército para algum propósito que desconhecemos,
estamos o procurando há muito tempo e ainda não temos pistas de seu
paradeiro. Mas tenho quase certeza sobre Black J. estar a serviço dele! Por
quê?
― Ele veio atrás de Leona no Porto da Besta Santa! ― Ewren estava
olhando para mim.
― Mas por que ele estaria atrás dela? É só uma humana! ― Aeban
parecia tão confuso quanto eu.
― Não é não. É uma maga e de origem desconhecida! ― Disse Ewren
nervoso dando um olhar significativo a Aeban. Origem desconhecida? Eu
que não entendi nada agora.
― Oh! Aí muda tudo! ― Disse Aeban pensativo.
― Eu ainda não entendi... ― disse olhando os dois parados e
pensando.
― Leona, magas humanas são muito raras, e se for uma maga humana
pura, de uma linhagem específica, pode ser ainda mais perigosa e útil... ―
disse Aeban olhando para mim pensativo, ele ficou estranho de repente,
observando-me da cabeça aos pés.
― Mas não vamos falar disso agora! ― disse Ewren quebrando a
concentração de Aeban. ― Nós estamos muito atrasados, precisamos seguir
viagem!
― O caminho é mais perigoso a partir de agora, Ewren, sugiro a você
levar um guarda com vocês! ― Aeban estava oferecendo escolta para nós e
ele parecia estranhamente preocupado.
― Não, uma pessoa a mais só causaria problemas! E ainda teremos que
passar pelas Montanhas de Jade, vai chamar uma atenção desnecessária se
for um grupo maior!
― Se você se garante... ― disse Aeban ― Já volto, espere mais um
minuto! ― ele saiu da sala em passadas leves e rápidas.

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― Está se sentindo bem para continuar? ― Ewren estava olhando-me
cautelosamente.
― Claro! Estou ótima, quanto mais cedo sairmos, mais cedo eu chego
em casa! ― disse. Ewren virou-se para a janela e pareceu magoado por um
segundo, mas eu não liguei, deve ter sido coisa da minha cabeça. Aeban
entrou na sala trazendo algo nas mãos.
― Aqui Leona! ― Ele esticou a mão para que eu pudesse pegar. Era
uma fina corrente de ouro e um pingente minúsculo de madeira pintado de
branco, em uma ponta era fino e na outra parecia uma armação delicada de
pequenas raízes em volta de uma gema vermelha.
― O que é? ― Perguntei.
― Um cajado de jaspe vermelho. Ajuda a canalizar as energias para
você usar a sua magia! ― Disse ele ― Coloque-o sobre a palma esquerda e
feche a mão. ― Eu o fiz, uma luz saiu da minha mão fechada e o pingente
cresceu até ficar um pouco maior do que eu. Olhei-me no reflexo na janela e
as marcas haviam voltado.
― O que são essas marcas? ― Perguntei.
― Elas são a prova da sua linhagem, mostram aos outros o que você é
e a qual família pertence ― Aeban parecia intrigado, chegou tão perto que
pude ouvir seu coração bater, ele estava olhando a flor em minha testa ―
essa marca na sua testa ... não, não pode ser! ― Disse ele sacudindo a cabeça.
― O que eu posso fazer? ― Perguntei olhando novamente o cajado
branco com a pedra vermelha na ponta.
― O que seu nível de poder permitir... na verdade tente fazer magia
com coisas já existentes, por exemplo, transformar pedra em ouro. ― Disse
ele.
Eu olhei o cajado novamente e imaginei um enorme pote de sorvete
de milho verde com calda de chocolate, olhei para uma caixinha de balas que
estava em cima da mesa e senti como se uma pequena corrente elétrica
passasse de mim até a caixa, então imediatamente ela se transformou em
um pote de vidro enorme e cheio de sorvete com calda.

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― Incrível! ― Maravilhei-me quando troquei o cajado de mão para
comer o sorvete, ele encolheu e voltou a ser um pingente.
― Quando você o muda de mão, ele volta a ser um pingente. ―
Explicou Aeban. Eu comi o sorvete com tanta felicidade que quase saíram
lágrimas dos meus olhos, Ewren estava rindo.
― Você só pensa em comida? ― Ele estava observando-me comer.
― Interessante... ― disse Aeban, saindo sério do quarto e olhando
discretamente de canto de olho para mim.
Ewren virou-se novamente para mim e ficou olhando o pequeno
pingente-cajado em meu pescoço.
― De agora em diante teremos que deixar o cavalo e continuar a pé.
― Ewren parecia cansado e pensativo. ― Temos muita bagagem para levar!
― Terminei de tomar o sorvete, peguei o cajado com a mão esquerda e
observei o cômodo, havia uma poltrona vermelha de veludo embaixo da
janela perto de Ewren, num instante fiz a cadeira encolher ao tamanho de
uma bolinha de tênis de mesa. Ewren olhou para mim com um olhar
debochado.
― Perfeito, faça isso no meio da floresta à noite para fazer as bagagens
crescerem de novo, pois quando você usa seus poderes, seu sangue cheira a
magia a uns dez quilômetros de distância, nem vai chamar atenção! ― Ele
fazia uma careta que não conseguia traduzir, me senti triste e sabia que teria
que carregar peso também quando Ewren mudou sua expressão e pegou
meu braço.
― Tive uma ideia! ― Disse ele me arrastando para uma sala onde
Aeban estava sentado atrás de uma mesa, ele nos olhou com curiosidade.
― Hum... Precisam de alguma coisa? ― Perguntou Aeban parecendo
tão confuso quanto eu.
― Na verdade sim, Aeban, você ainda teria a Lupa de Andir? ― Aeban
ficou surpreso com a pergunta de Ewren.
― Como sabe que eu a tenho?
― Sou um mercenário, sei onde os tesouros mais raros se escondem,
Aeban! ― Aeban se levantou e andou até um armário, subiu em uma

111
pequena escada de madeira e da prateleira mais alta, tirou uma caixa que
parecia ser feita de pétalas de flores costuradas umas às outras com fios de
ouro. De dentro ele tirou uma pequena lupa branca delicadamente
trabalhada.
― É, um item muito valioso! ― Aeban ponderou sem tirar os olhos da
lupa. ― Para que você a quer?
― Para levarmos a bagagem sem precisar do meu cavalo, irei deixá-lo
aqui, depois volto para buscá-lo! ― Aeban parecia desconfiado.
― Desculpem, mas em que a lupa nos ajudaria com a bagagem? ― Quis
saber olhando o objeto que estava sendo quase esmagado pelas mãos
grandes de Aeban, ele olhou para mim e desviou o olhar como se tentasse se
lembrar de algo.
― Essa não é uma lupa comum, foi feita por um Gigante chamado
Terminus que se apaixonou por uma silfa, pelo seu tamanho ele nunca
poderia ficar junto dela, a silfa chamada Fylgiar correspondia ao amor dele,
mas também sabia que nunca poderiam ficar juntos. Um dia uma fada viu o
sofrimento deles, pegou o pó das fadas e jogou sobre o gigante, que na
mesma hora encolheu, Terminus e Fylgiar ficaram juntos por um dia e uma
noite, porém no dia seguinte Terminus tornou a crescer.
“Ele ficou furioso, queria de qualquer modo voltar ao tamanho de
Fylgiar para poder ficar com ela novamente, então ele invadiu uma vila de
fadas, matou todas elas, retirou a carne de seus ossos e usou os crânios para
fazer a moldura da lupa e os ossos para fazer o cabo, com os cabelos das fadas
ele trançou, fez uma rede fina, mergulhou-a no lago dos olhos e ela se
transformou nessa lente. Quando ficou pronta, ele apontou a lupa para si e
virou a face dos crânios em sua direção, fazendo-o encolher. ― Aeban fez
uma pausa e olhou com dó a frágil estrutura da lupa ― Quando Terminus
contou a Fylgiar como havia feito para encolher, ela o desprezou e fugiu, ele
enfurecido, a seguiu até outra vila de fadas, onde Fylgiar havia contado sobre
o feito de Terminus, as fadas enfurecidas amaldiçoaram Terminus, tomaram
dele a lupa e o lançaram ao mar das tormentas para ser devorado pelas
Sereias. Fylgiar sentiu-se culpada, então tirou a própria vida e a lupa ficou
escondida sob proteção das fadas. ”

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― E como você a conseguiu? ― Ewren parecia insensível à história,
mas eu estava segurando as lágrimas, comovida.
― Quando livrei a vila das Orquídeas de uns lobisomens, as fadas me
deram de presente. ― Disse Aeban. ― Você tem que me devolvê-la inteira e
segura, Ewren Ascaridian Lomerius! ― Disse ele a Ewren segurando-o no
braço com firmeza ― Ou eu vou lhe caçar até o fim do mundo! ― Ele não
parecia mais um ser calmo e também não parecia falar da lupa, Ewren sorriu.
― Estou deixando meu companheiro de séculos como garantia,
Espiral irá me esperar aqui e quando eu vier buscá-lo, você terá a sua lupa!
― Eu não sabia que aquele cavalo era tão velho, nem muito menos que
Ewren fosse apegado a ele a ponto de deixá-lo como garantia por um tesouro
como a lupa, mas por ser mercenário, podia ser um truque e ele poderia fugir
com a lupa depois de me deixar na torre das nuvens.
― Podem levá-la! ― Disse Aeban entregando a lupa em minhas mãos
― Guarde com cuidado! Para encolher objetos vire os crânios para frente e
para aumentar, vire-os de costas! ― Aeban me explicou pausadamente,
como se eu fosse incapaz de entender a funcionalidade de um objeto tão
simples. ― Boa viagem, amigos! ― Disse ele fazendo uma saudação. Ewren
a repetiu e saiu da sala.
― Obrigada por tudo! ― Eu disse timidamente ― Espero poder voltar
algum dia, em situação melhor! ― Aeban riu.
― Vai estar de volta antes mesmo do que pensa! ― Havia muita
certeza em suas palavras.
Saí da sala e fui andando pelo corredor até encontrar uma porta aberta
que levava a um enorme pátio, Ewren estava do outro lado do pátio onde seu
cavalo estava deitado em um pequeno círculo no gramado e uma senhora
gritava para ele tirar o animal de cima de suas plantas, o cavalo não parecia
nem um pouco interessado em sair dali. Ewren parecia estar se despedindo
dele, me aproximei e notei pela primeira vez um olhar terno nele.
― Primeira vez que vou deixá-lo para trás numa viajem desde que
Emma me deu ele de presente. ― Eu olhei aquele cavalo e ele parecia não
notar que seria deixado para trás.

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― Você nunca me disse o nome dele! ― Eu não sabia o que dizer além
disso e Ewren riu.
― Espiral, eu disse na sala de Aeban! ― Quando ele disse o nome, o
animal olhou para ele e ficou mexendo as orelhas como se esperasse que
Ewren dissesse algo mais ― Emma colocou esse nome por que ela o
encontrou na floresta branca, Espirais de cristal.
― Parece mais nome para um gato do que para um cavalo!
― Verdade... Bom, temos que ir, não é? ― Ewren levantou-se do chão,
arrumou a pilha de coisas para a viagem e as amarrou juntas, eu peguei a
lupa e apontei para o fardo amarrado a minha frente que encolheu até ficar
do tamanho de um estojo de canetas. Coloquei-o dentro da bolsa tiracolo de
couro que Ewren havia deixado separada da pilha de coisas, dentro dela só
iria o fardo encolhido, duas garrafas de água e alguns pãezinhos, Ewren não
me deixou colocar mais nada para comer pois desse lado de Amantia haviam
mais florestas com árvores frutíferas e rios, então não precisaríamos de
muita comida reserva. Nos dirigimos ao portão da cidade e eu já ia sair
andando quando Ewren segurou meu braço e apontou para o chão.
― O que foi? ― Eu olhei para onde ele estava apontando e estávamos
pelo menos uns duzentos metros de altura do chão, eu fiquei tonta e de
pernas bambas e agarrei seu braço com força.
― Lótus Vale é uma cidade flutuante... pode pular se quiser, vai chegar
bem rápido ao Vale lá embaixo! ― Ewren nunca perdia uma oportunidade
de uma piadinha sem graça.
― E como vamos descer? ― Perguntei.
― Do mesmo jeito que subimos, voando! ― Ewren mudou sua
aparência e abriu suas grandes asas negras, tenho que dizer, mesmo vendo
isso várias vezes, ainda me surpreendia. Quando ele me pegou para
descermos, Feroz veio correndo com o que parecia um frango assado gigante
na boca e uma multidão furiosa atrás dele. Feroz se atirou em cima de mim
deixando a carne pendurada pelos dentes e garras, Ewren levantou voo e
meu estômago quase afundou com a velocidade que saímos do chão. Ao
pousarmos, Feroz ficou em seu tamanho gigante e engoliu o frango inteiro.

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― Acho que ele roubou o almoço dos guardas! ― Ewren parecia
divertido e Feroz parecia muito satisfeito. Eu dei de ombros, já não podia ser
feito nada, Feroz engoliu de uma vez, provavelmente por ter pensado que
iríamos tomar dele.
Começamos a andar, a trilha era larga, de um lado, enormes e antigas
árvores muito verdes e floridas faziam a paisagem parecer um bosque
encantado, o perfume de suas pequenas flores brancas era doce, as flores
caíam em cachos das copas das árvores e pareciam nuvens. Do outro lado
havia uma plantação e havia algumas mulheres trabalhando a terra úmida.
Muitas nos olhavam e acenavam. (Estavam acenando para Ewren, não para
mim, claro!)
― São silfas... ― Ewren parecia não perceber o quanto elas faziam
para chamar atenção ― A maioria das tarefas de plantio e colheita fica por
conta delas, elas cantam enquanto trabalham e as plantas crescem mais
rápido e ficam sempre mais bonitas.
― Elas são muito lindas... e bem altas! ― Eu me sentia quase anã com
meus humildes um metro e setenta de altura, comparada a elas.
― Silfas e Elfas são muito sem graça! Humanas são temperamentais e
bem mais femininas. ― Olhei para ele e ele continuava olhando para a
frente. De repente senti meu rosto ficar quente e Ewren riu. ― É mais fácil
deixá-las sem graça também. ― Imediatamente amarrei a cara e andei mais
rápido, Feroz se arrastava atrás de mim, com certeza estava passando mal
depois de engolir um frango quase do tamanho de um avestruz. Peguei-o no
colo, ele deu uma leve bufada de alívio e cochilou.
― Ewren? Você notou como Aeban ficou estranho quando viu a marca
na minha testa? ― Perguntei, ele concordou acenando com a cabeça ―
Estava pensando numa coisa que ele disse agora a pouco na sala, sobre as
magas... ― olhei de canto de olho para Ewren e o vi empalidecer
ligeiramente. Ele fez um som para eu continuar a falar ― Quando ele disse
sobre magas puras... Ele quis dizer virgem, certo? ― Agora Ewren havia
perdido a cor totalmente.
― Sim... foi isso que ele quis dizer, por quê? ― A voz dele saiu
vacilante.

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― Ewren, então meu sangue é realmente mágico? ― Ele fechou os
olhos e disse um “sim” tão baixo que quase duvidei que fosse uma resposta.
― Então, quando você ameaçou me vender, você estava falando sério?
― Parei de caminhar para olhar diretamente para ele ― Você disse que se
o sangue de pessoas inocentes fosse valioso não haveria crianças nas
cidades! Você mentiu para mim! ― Eu o fulminava com o olhar.
― Não menti, sangue de inocentes e de moças virgens não é valioso,
quando eu te disse aquilo não sabia que você era uma maga! Mas existe a
possibilidade do seu sangue não ser amaldiçoado, pois não eram todas as
magas humanas que possuíam esse tipo de sangue ― ele evitava me olhar
nos olhos ― porém, agora a história é outra!
― Por quê? Como assim, amaldiçoado? ― Ele coçou a cabeça e
resolveu me olhar diretamente.
― Leona, sobre a maldição, eu não sei exatamente, só sei que era uma
linhagem específica de magas que possuíam essa maldição ― disse ele de
olhos fechados ― sangue de magos e magas normais podem ser usados em
qualquer tipo de ritual mágico, ele serve para aumentar a eficácia de
qualquer tipo e feitiço e poção, mas o de magas humanas virgens dessa
família, Arbarus, se não me engano, esse é bem diferente... ― ele desviou o
olhar novamente.
― Me diga logo então! Pare de enrolar! ― Estava ficando nervosa.
― Qualquer um que beber o sangue de uma dessas mulheres, se ela
ainda for virgem, pode se curar de qualquer doença ou qualquer ferimento
fatal e pode aumentar seu próprio poder em até cem vezes! Por isso elas
foram caçadas por todos os que descobriam sobre essa maldição do sangue
delas.
― E as meninas que nascem magas? O que acontece com elas? ― Ele
me encarou novamente respirando fundo.
― Se elas forem dessa linhagem, como falei, o sangue delas só fica com
esse poder, digamos assim, a partir de certa idade. Então todas as meninas
nascidas magas com o símbolo dessa família eram levadas para o templo
ainda bebês para serem criadas pela sacerdotisa e ficavam lá até a idade
adulta, elas eram guardadas pelos melhores exércitos... ― ele deu uma pausa
116
e quando percebeu que eu não tinha desistido de ouvir a história, suspirou
e continuou falando ― Depois de um tempo começaram as tentativas de
invadir os templos para sequestrar essas jovens. Aí ficou complicado.
― Elas morreram? ― Perguntei.
― Não, elas fugiram e algumas delas foram para outros mundos.
― Então... não tem mais nenhuma maga aqui? ― Era algo difícil de
acreditar.
― Dessa família não, se tiver algumas delas por aqui, devem ter
arrumado um modo de quebrar a maldição ou estão muito bem escondidas,
a maioria das magas por aqui são de outras raças ― Estávamos caminhando
novamente e ele parecia menos nervoso agora.
― Então eu sou a única maga humana por aqui agora?
― Provavelmente não, as outras ficam nas vilas dos humanos todo o
tempo e esse é um reforço para te mandar logo para sua casa! Não tem como
descobrirmos se seu sangue é normal ou não ― ele estava muito sério e
nervoso novamente.
― Não sabia que no meu mundo existiam magos, achei que fossem só
lenda... ― e realmente eram, assim como todas as criaturas daqui. Parei
imediatamente de caminhar ― Isso quer dizer que não sou filha dos meus
pais? ― Estava chocada. Eu fui adotada? Ou fui trocada na maternidade e na
verdade seria filha de um casal de magos?
― O Lobisomem sentiu o cheiro parecido com o de sua mãe, e você
está aqui há muito tempo para o cheio do contato dela ter continuado em
você. ― Quando ele me disse isso, outra explicação me veio à cabeça, porém
mais difícil de aceitar.
― Minha mãe traiu o marido dela! ― Eu cobri a boca, eu já tinha essa
desconfiança que Nigel não era meu pai, pois não nos parecíamos em nada,
mas sempre achei que fosse bobagem da minha cabeça e que eu havia
puxado tudo por parte de mãe.
― Bom, não posso afirmar isso, não conheço seus pais. ― Ele estava
andando novamente de olhos fechados.
― Mas, dois humanos normais podem ter filhos magos?

117
― Não, é uma herança genética direta, um dos dois tem que ser mago!
― Então meu pai é um mago! ― Eu estava tentando imaginar um pai
mago fazendo coisas explodirem em casa para divertir os filhos bebês ―
Seria divertido ter um pai mago!
― Mas o Lobisomem conhece sua mãe... ― Ele sussurrou, como se
quisesse que eu entendesse alguma coisa, me fez parar e pensar novamente.
Minha mãe nunca adoecia, nunca se machucava e a aparência dela não
mudou nas fotos da família desde que nasci.
― Ewren, minha mãe é daqui! ― Ele parou de andar para me olhar.
― Talvez o Lobisomem possa ter conhecido ela enquanto ainda estava
em forma humana, andando pelo seu mundo a procura de coisas valiosas
para roubar. Os Lobisomens eram os que mais atravessavam os portais para
roubar coisas dos outros mundos. ― Seu rosto estava pálido e eu podia ver
pequenas marcas de suor em suas têmporas.
― Talvez... ― a loja de minha mãe realmente era visitada por muitas
pessoas estranhas. Mas continuava com algo me incomodando lá no fundo.
Ficamos em silêncio por um bom tempo. Continuei pensando, a ideia
não saía de minha cabeça, então resolvi perguntar novamente.
― Ewren? E se um Mago Élfico, por exemplo, tiver uma filha com uma
humana comum? ― Ele encolheu os ombros.
― Humm ― ele resmungou coçando a cabeça novamente, ele devia
ter achado que eu desistiria dessa conversa.
― Tem várias possibilidades, uma é a criança nascer híbrida, com
características das duas raças, mas essa é a que ocorre com menos
frequência, é raro acontecer isso, outra é a criança nascer totalmente
humana com ou sem poderes, ou élfica com ou sem poderes, mas no caso
que você citou, é mais provável a criança nascer élfica.
― Por quê?
― O mais forte que é o dominante quando se diz respeito aos filhos,
no caso que você usou de exemplo, o que é mais forte são os genes do mago
élfico, então o mais provável é que o bebê nasceria élfico, com ou sem

118
poderes de mago, quase nunca nasce um bebê humano num casal que um é
humano e o outro não é, menos ainda um bebê humano com poderes.
― Nunca aconteceu isso então?
― De vez em quando acontece, mas é muito, muito raro. ― Ele tentou
encerrar o assunto ali.
― Não consegui entender ainda essa história de gene dominante!
― Você não é muito inteligente mesmo, não é? ― Ele riu, eu bufei e
fiquei em silêncio para ver se ele iria me explicar melhor. ― Por exemplo,
se você tivesse um filho comigo, é maior a chance de ele nascer élfico do que
nascer humano, por você ser uma maga, talvez um elfo com poderes de
mago, ou híbrido, mas dificilmente um bebê humano ― Eu corei e meu rosto
começou a esquentar quando ele disse isso.
― Não podia ter dado outro exemplo? ― Eu estava muito vermelha e
meu rosto ardia, deixei-o passar a minha frente no caminho e ele me ignorou
e continuou a caminhar, porém vi um sorriso de lado no seu rosto. Ele fazia
de propósito para me deixar constrangida.
Andamos desde a hora do almoço até o fim do entardecer, ainda estava
claro com os sóis se pondo e eu estava com muita fome a essa altura.
Paramos na beira de um rio, Ewren com certeza iria pescar, então recolhi
lenha e a empilhei para fazer uma fogueira, peguei a Lupa de fadas de dentro
da bolsa e aumentei as bagagens, peguei um vestido longo de lã e meu kit de
banho, estava ficando muito frio, então, quando Ewren voltasse, eu iria me
enfiar dentro do rio.
Deixei a fogueira acesa e esperei, não demorou muito para Ewren
aparecer com três peixes grandes já limpos e temperados e os colocou no
fogo. Eu caminhei com cuidado até a beira do rio, era largo e a correnteza
estava forte, Feroz me seguia e sentou na beirada me esperando, tirei a
roupa e pulei dentro da água de uma vez só para não sentir tanto a friagem,
foi meio inútil, pois até minha alma doeu, a água estava gelada e meus dentes
batiam mesmo tentando mantê-los apertados.
― Quer entrar, Feroz? A água está uma delícia! ― Disse com meus
dentes batendo tanto que nem tenho certeza se as palavras saíram como
meu cérebro as ordenou. Quando fui sair do rio, Feroz ficou em pé de um
119
pulo e começou a rosnar alto. Me virei para a direção que ele estava olhando
e havia uma garotinha passando boiando a menos de dez metros de mim na
parte mais funda do rio, quando fui pegá-la, Ewren me puxou pelo braço
para fora do rio e me empurrou para as pedras, Feroz passou à minha frente
como se fosse para me proteger e então a garota se levantou, seu rosto
estava em carne viva, os olhos vermelhos pareciam de fogo e tinha dentes
enormes e pontiagudos. De onde ela estava, saíram tentáculos e começaram
a se mover em direção à margem.
― Vá para perto do fogo! Rápido! E tampe os ouvidos! ― Peguei minha
roupa e corri de volta para onde estava a fogueira. Feroz ficou com Ewren,
depois de alguns segundos de silêncio eu ouvi um som horrível de algo
rasgando e um guincho de congelar a alma. Ewren veio com feroz em seus
calcanhares.
― O que era aquilo?
― Um aswang recém-nascido. Por isso a aparência de podre... ―
Ewren ficou parado onde estava olhando para mim, eu não entendia o que
ele estava olhando surpreso.
― O que houve, você está bem? ― Eu estava encolhida perto do fogo
e me levantei achando que ele havia se ferido, quando eu levantei, ele sorriu.
― Vai me agradecer? ― Foi pelo tom de maldade nas palavras dele
que notei que saí com tanto medo de perto deles no rio que nem terminei de
me vestir, estava apenas enrolada no vestido. Eu me virei de costas e
coloquei o vestido. Meu rosto deve ter ficado roxo naquele momento.
― Você é muito maldoso! ― Eu reclamei me virando de volta, Ewren
estava sentado no chão perto da fogueira olhando para mim e aquele sorriso
ainda estava em seu rosto.
― Pare de fazer essa cara! ― Eu resmunguei sentando o mais distante
possível da fogueira e me encolhendo novamente.
― O Sangue de Aswang que você tomou fez muitas melhorias, hein!
― Ewren era mais assustador elogiando do que quando estava ofendendo,
queria jogar algo nele, mas não tinha nada em meu alcance.

120
― Cala a boca! O que aquela coisa estava fazendo lá? ― Perguntei
apontando em direção ao rio, tentando de qualquer jeito mudar de assunto
e fazer a cor de meu rosto voltar ao normal.
― Hum, estamos em Edro, esqueceu? Território noventa por cento
hostil. ― Eu peguei o meu peixe e o chá amargo e fiquei encolhida comendo
enquanto Ewren dava a comida dele para Feroz.
― Não está com fome? ― Perguntei o vendo dar os dois peixes
restantes a Feroz.
― Não, o cheiro daquela criatura normalmente me tira o apetite! ―
Ewren colocou mais alguns gravetos na fogueira e deitou de lado, olhando
para mim. Eu estava com sono, cansada e agora, envergonhada. Ia demorar
dias para essa cena sair da minha cabeça.
― Por aqui não tem cidades onde possamos passar a noite? ― Estava
olhando a floresta escura em volta e sentindo arrepios.
― Por quê? Quer me trancar em um quarto com você? ― Os olhos dele
pareciam mais divertidos do que nunca ― Dá para fazer muita coisa ao ar
livre, é mais divertido! ― Senti um calor desconhecido e corei novamente.
― Porque não estou me sentindo muito bem nessa floresta! ― Minha
resposta saiu mais grossa do que eu pretendia, mas fez aquele brilho
desaparecer dos olhos de Ewren.
― As cidades mais calmas estão muito fora de rota no momento, pela
floresta é mais rápido e mais seguro, quanto menos “gente” nos ver, menos
perigoso será para você, pois se você não percebeu, as suas marcas de maga
agora estão sempre aparentes mesmo que quase da cor da pele, mas
aparecem e se isso não bastar, você chamou atenção de um Lobisomem
muito perigoso! ― Ah, droga! Ainda tinha mais essa, tapar as marcas com
maquiagem! Respirei fundo e tentei não pensar nisso agora.
― Mas não vamos passar por nenhuma cidade?
― Ah... Bom, iremos passar por Arcádia, talvez possamos parar um
pouco por lá, mas, nessa época deve estar tudo congelado!

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― Hum... ― Ewren continuou falando algo, mas eu não prestei mais
atenção, Feroz estava em seu tamanho normal deitado atrás de mim, seu
pelo quentinho e macio me fez pegar no sono mais rápido do que o normal.
Ainda não havia clareado totalmente quando Ewren me acordou, eu ia
dar bom dia quanto ele me puxou da cama, tapou minha boca e fez um sinal
para que eu ficasse quieta. Eu usei a lupa para encolher as bagagens e as
coloquei dentro de minha bolsa, Ewren fez um sinal para que eu montasse
em Feroz, que estava abaixado como se esperasse que nos sentássemos em
suas costas. Ewren montou atrás de mim e feroz começou a correr tão
silenciosamente que eu só escutava o roçar de seus pelos em minha roupa.
Ewren estava sério e olhava para os lados, a neblina estava tão densa que eu
não podia ver nem um metro a nossa frente. Ficamos em silêncio por um
longo período até chegarmos a uma parte menos fechada da floresta, notei
que ali havia geado, pois o chão estava coberto por uma fina camada de gelo.
― Acho que é seguro falar agora. ― Meu coração disparou quando a
voz de Ewren quebrou o silêncio.
― Que susto! Não faça mais isso! ― Resmunguei ― Por que saímos
correndo? ― Perguntei tentando descer meu coração da garganta de volta
ao peito.
― Lembra do bichinho do rio?
― Com certeza! ― Falei tentando afastar aquela imagem da criatura
da cabeça.
― Estávamos a menos de dez metros de um ninho cheio deles. ―
Ewren parecia mais calmo.
― Como você não sentiu o cheiro do ninho?
― O ninho estava coberto por hera perfumada para espantar
predadores e Aswangs são como minhocas, você vê um, e quando se olha
bem, eles estão embolados juntos... ― quando ele falou isso, eu imaginei um
monte de aswangs se contorcendo juntos no chão, foi uma imagem mental
muito engraçada, na verdade, só perdeu a graça quando eu os imaginei
almoçando juntos, e que predadores naturais um aswang poderia ter? Fiquei
com muito medo para imaginar.

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― Entendi... então, saímos da floresta?
― Vamos ter que parar em Arcádia e traçar uma nova rota bem longe
de rios. O problema é que esta região é muito cheia deles...
― Quantas horas até chegar à cidade de Arcádia? ― Perguntei
ansiosa.
― Horas? ― Ewren riu-se ― Pelo menos dois dias de subida. ― Ewren
apontou para uma montanha branca, no alto da montanha havia uma
nuvem rosada. Meu estômago afundou.
― E antes que você pergunte, é território de dríades e Nagas. Não
podemos ir voando!
― Bom, dríades eu até sei o que são, são aquelas criaturas que nascem
com as árvores e morrem com elas, certo? Mas, e nagas?
― Certo, e Nagas são metade humanos e metade serpente.
― Sério, porque todos os monstros mais estranhos são metade
homem e metade algum bicho? Porque o homem está sempre metido no
meio dessas coisas sobrenaturais? ― Eu sempre achei estranhas essas
ligações entre homem com seres sobrenaturais.
― Só são sobrenaturais no seu mundo, eu também sou um
sobrenatural para você, e porque o homem é o único ser que não respeita as
leis da natureza desde o início dos tempos, fora as mulheres que são
atentadas e teimosas!
― Ei!
― A maioria das criaturas estranhas surgiu porque homens se uniram
a criaturas não humanas, formando híbridos, antigamente isso era mais
fácil, como te contei ontem, hoje quase não nascem híbridos, foram os
magos que impediram de eles nascerem misturados para evitar que novas
criaturas continuassem a surgir. Quase todas as criaturas existentes já
estavam nos mundos quando o homem apareceu. Sinto muito dizer, mas sua
raça é devastadora e destrói tudo que pode. Só os humanos que vivem aqui
aprenderam a manter as coisas vivas e não, as destruir.
Nós estávamos conversando tão entretidos que nem percebi que já
estávamos no pé da montanha e subíamos com calma, olhei a trilha estreita

123
da montanha, as árvores antigas da floresta em torno dela e ao longe um
lago cujas águas deviam estar muito geladas.
Ewren ia andando lentamente na frente e Feroz parecia divertir-se
com a subida. Eu já estava faminta e ainda não devia estar na hora do almoço.
O silêncio da viagem só era quebrado pelos sons dos nossos passos ou, de vez
em quando, rosnados de Feroz para animaizinhos que se escondiam atrás
das pedras. Eu estava a metros de distância de Ewren, cansada e me
arrastando. Ele olhou para trás depois de algum tempo e sorriu.
― Esqueci que não tomamos café! ― Ele voltou alguns passos até onde
eu estava e pegou a lupa e a bolsa enquanto eu me sentava em uma pedra
para descansar. Estava começando a ficar muito frio, minhas unhas estavam
em um tom de roxo nada bonito. Peguei a bolsa onde estavam minhas roupas
e vesti o poncho longo. Não sabia o que Ewren iria fazer já que não tinha
nenhum rio aqui para pescar e nem árvores para recolher lenha.
― Leona, você é uma maga, sabia? Se você quiser fazer uma pilha de
lenha surgir na sua frente daquela grama queimada, seria uma boa coisa! ―
Disse Ewren pegando uma bolsa térmica com pedaços de carne congelada
dentro.
― Mas você disse que era perigoso fazer qualquer tipo de magia fora
das cidades seguras!
― Aqui está bem seguro no momento! ― Ele moveu os braços
mostrando a montanha deserta em torno de nós. Peguei o colar com o
pingente e segurei o cajado com a mão, fechei meus olhos e concentrei
minha mente em uma pilha seca de lenha. Onde estava um bolo de grama
queimado pelo frio, apareceu uma fogueira acesa. As marcas em meus braços
brilhavam bem mais forte do que na última vez.
― É, parece que quanto mais longe de áreas seguras, mais forte fica
seu poder. ― Disse Ewren colocando pedaços de carne nos espetos para
assar.
― Hum, tipo, mais perigoso e mais forte? ― Ele olhou para mim com
certa desconfiança.

124
― Acho que mais forte e mais atraente a monstros seria a pergunta
certa. ― A carne bem temperada assando fazia meu estômago doer. Da
sacola, Ewren tirou duas pequenas garrafas escuras tampadas com rolha.
― O que é isso? ― Perguntei timidamente.
― Cerveja escura. ― Eu estava imaginando alguma poção sinistra.
― Posso ficar com uma? ― Eu havia bebido uma vez com Lucy na casa
dela quando seus pais estavam de férias e ela estava só em casa.
― Tem certeza? Pode te fazer mal e eu não quero ter que te arrastar
caindo de bêbada montanha acima! ― Ewren tinha o dom de me irritar
profundamente, tinha vezes que desejava ser mais forte do que ele para
poder dar-lhe uns tapas.
― Claro! Eu não fico bêbada facilmente! ― Ele ergueu as mãos num
gesto de rendição e me passou uma garrafa, devia ter pouco menos de meio
litro naquela garrafinha, então comemos carne assada e tomamos aquela
estranha cerveja com um leve gosto de maçã.
― Por que parece que tem maçã aqui? ― Perguntei sentindo tudo a
minha volta um pouco mais brilhante.
― Pois tem suco de maçã junto, eu sabia que você ia pedir e misturei
suco de maçã em uma para ficar mais fraco.
― Eu não sou criança, já pedi para não me tratar como uma! ― Sentia
como se meu corpo pesasse menos de um quilo e estava mais aquecida.
Ewren começou a rir, o sorriso dele parecia mais lindo hoje...
― Não é criança, mas age como uma, e se eu não tivesse misturado
suco, você estaria desmaiada agora, se já está tonta assim... ― eu fiz um
gesto para que ele se calasse e me levantei.
― Não estou tonta, estou ótima! ― Andei tranquilamente ao que me
parecia ser em linha reta. Dei uma volta, me sentei pesadamente no chão e
bebi o resto da cerveja em uma golada. Ewren riu mais ainda e deu o resto
da carne para Feroz, que me olhava com curiosidade.
― Leona? ― Ewren chamou e eu escutei sua voz tão distante. Quando
abri os olhos, estava começando a escurecer. Ewren me deu um tapa na testa,

125
tentei me levantar, mas ele me impediu, eu estava deitada em cima de Feroz
e havia muita neve ao nosso redor.
― Onde estamos? ― Perguntei, cada letra que eu disse fez minha
cabeça doer.
― Na metade da montanha... você dormiu desde umas onze da manhã
até agora, já devem ser umas cinco e meia da tarde...
― Minha cabeça dói muito. ― Eu reclamei esfregando as têmporas.
― Sabe Leona, às vezes eu penso que você faz as coisas para me
provocar ou para me irritar! ― Ele parecia aborrecido.
― Hum? ― Eu não havia entendido.
― Eu disse “não quero ter que te arrastar caindo de bêbada montanha
acima! ” E você disse que não ficava bêbada facilmente, aí você pega a minha
garrafa de cerveja, bebe e desmaia! Se eu fosse mau como você me julga,
poderia ter feito qualquer coisa e você nem iria perceber, mas como não sou
mau... ― ele fez uma pausa e ficou por um tempo de olhos fechados ― você
fez de propósito, estava com preguiça de subir andando, não foi? ― Ele
estava de cara amarrada. Meu rosto ficou vermelho, isso nunca me passou
pela cabeça, embora eu estivesse morrendo de preguiça.
― Nossa, Ewren, você me julga muito mal também! ― Disse
esfregando o rosto para a cor vermelha disfarçar.
― Só o fato de você ter ficado corada indica a sua maldade, fez a gente
pegar o caminho mais longo para você não cair de cima de Feroz! ― Ele
parecia realmente zangado, então resolvi não discutir.
― Tudo bem, me desculpe! ― Eu me sentia mais arrependida pela dor
de cabeça que sentia.
― Shh! ― Ewren estava olhando para algumas rochas congeladas a
vários metros de nós. Pude ver um movimento suspeito lá em cima, ele fez
um gesto para Feroz, que respondeu jogando-se ao chão, cavando
silenciosamente um bolo de neve e me enterrando junto com ele, fazendo
apenas um buraco para respirar e enxergar Ewren, que estava indo em
direção às rochas com a espada na mão e com aquela assustadora aparência
cinzenta. Vi quando algo totalmente branco saiu de trás das rochas, era

126
enorme, quase um metro maior que Ewren, tinha pelos e dentes grandes e
afiados. O monstro puxou um enorme bastão de gelo e começou a girá-lo,
Ewren atacou a criatura, que desviou numa velocidade incrível e o acertou
pelas costas. Ewren mal tocou o chão e já estava de pé atacando o monstro
novamente, dessa vez o ataque acertou, mas o animal ficou muito furioso e
jogou Ewren contra as pedras. Eu comecei a me mexer para tentar sair, mas
a neve e Feroz não deixavam, uma linha de sangue escorria na neve onde
Ewren estava caído tentando se levantar.
― Feroz! Se não fizermos alguma coisa, ele pode morrer! ― Feroz
pulou para fora da neve e correu na direção do monstro, eu me levantei com
dificuldade, meu corpo parecia estar congelando e dormente. Feroz mordeu
aquela enorme criatura e também foi atirado nas pedras fazendo um som
terrível e não se mexeu mais. Meu coração queimou de raiva. Peguei meu
cajado, o ergui para o alto e fiz uma gigantesca bola de fogo torrar aquela
criatura até só sobrar ossos queimados e vapor da neve derretida ao redor
dele. Corri até Ewren e Feroz, o tigre estava gemendo tão baixinho que quase
não se podia ouvir. Ele estava morrendo, Ewren também estava ferido, mas
me olhava tão assustado que nem percebia seus ferimentos.
― Ewren, o que eu faço?! Ele vai morrer! ― Quase mal podia achar
minha própria voz.
― Use seu poder de cura, você é uma maga! ― Ele estava encostado a
Feroz.
― Eu não sei como! ― Eu chorava com medo e abraçada em Feroz.
― Apenas faça! ― As patas de Feroz começaram a contrair. Eu me
levantei, me afastei dos dois e estiquei minhas mãos para eles. Estava
rezando, torcendo para que eles se curassem e ficassem fortes de novo para
continuarem comigo. Ao redor deles apareceu um enorme círculo brilhante
com letras brancas ofuscantes, uma torre de luz saiu dessas letras e eu fiquei
temporariamente cega, quando voltei a enxergar, vi Feroz pequeno no colo
de Ewren. Corri, me joguei de joelhos ao lado deles e passei minha mão no
pelo macio de Feroz.
― Ele está bem, só está dormindo.

127
― E você? ― estava engolindo o choro com toda a minha força, mal
me restou energia para falar.
― Estou bem... ― Ewren continuava olhando para mim assustado ―
você está se sentindo bem? ― Ele parecia cauteloso, eu não entendi o porquê
da pergunta, talvez por que eu ainda chorava.
― Estou melhor agora... ― uma mecha de cabelo prateado caiu ao lado
do meu rosto, me virei para ver quem estava ao meu lado e a mecha de
cabelo se moveu também. Meu cabelo estava prateado e as marcas do meu
braço estavam lilás. Peguei uma bola de neve na mão e a transformei num
pequeno espelho, meus olhos também estavam lilás e as marcas em meu
braço brilhavam tanto que a neve ao meu redor estava colorida, no lugar de
minhas unhas tinham garras afiadas, longas e brancas.
― O que... ― minha voz saiu como um sopro. Logo em seguida voltei
ao normal.
― Parece que o sangue de Aswang acelerou o processo de evolução de
seus poderes também! ― Ewren finalmente falou depois de muito tempo em
silêncio e olhando para mim ― Essa transformação e a cor das suas marcas
são da transformação de magas adultas, mas não tem como você estar nesse
nível ainda! ― Ele estava se levantando e limpando a neve da roupa.
― Por que não? ― Eu ainda olhava para o espelho, mesmo já estando
em minha forma normal.
― A sua aparência era de uma maga completa, adulta, porém seu
poder não foi liberado por completo... ― Ewren foi diminuindo o som de sua
voz e estendeu a mão para que eu levantasse, fiquei me segurando nele por
um momento, então peguei Feroz do colo dele e comecei a andar
novamente. Olhei para os restos do monstro do chão e Ewren começou a
jogar neve em cima dos ossos para disfarçar o que havia acontecido.
― Ewren, o que era aquilo?
― Um Yeti... ― Ewren estava estranho, sério, com olhar zangado, eu
achei a princípio que fosse por causa da minha transformação, mas eu não
tinha coragem de lhe perguntar o porquê de sua cara feia, estávamos a salvo
agora, Feroz estava bem, dormindo em meu colo e ele não estava mais ferido,
eu havia feito algo útil e os salvado.
128
― Eu não sei o que é esse bicho, você disse que todos os monstros que
nós consideramos mitos e contos em nosso mundo são reais aqui, mas esse
eu nunca ouvi falar... ― Ewren parou e olhou para trás.
― Nunca ouviu falar do “Abominável homem das neves”?
― Nunca... eu vivo num lugar quente, lá só tem geada nas regiões mais
frias.
― Ele é extremamente forte e muito difícil de matar, eu prefiro
enfrentar lobisomens e Aswangs a enfrentar um Yeti adulto. Os monstros
desse mundo fizeram aparições no seu mundo por portais perdidos, por isso
existem as lendas... provavelmente ainda existem alguns perdidos por lá. ―
A imagem de um Aswang passeando pelas ruas da minha cidade me
apavorou. Continuamos a subir até a noite cair e paramos para acampar e
dormir.
A noite estava mil vezes pior, era difícil enxergar um palmo a frente
dos olhos e não tinha como acender a fogueira por causa da forte nevasca
que atingia a montanha, fiquei enrolada nas asas de Ewren novamente e
coloquei Feroz entre nós, já que ele ainda não havia despertado, o silêncio
era perturbador, mas como estava muito cansada, resolvi dormir para não
perturbar Ewren ainda mais, pois ele ainda estava muito sério. Fechei os
olhos e fiquei em silêncio até o sono me alcançar.

129
6

cordei com calor, estava suando muito, saí devagar para

A não acordar Ewren ou Feroz, aparentemente não havia se


passado nem três horas desde que peguei no sono, mas eu
me sentia mal, meu coração estava batendo muito rápido
e minha garganta estava trancada e eu não sabia como
fazer aquilo parar.
Saí de dentro da barraca, estava muito escuro e ventava, mas não havia nem
sinal da neve, peguei meu cajado e fiz a pedra na ponta brilhar para que eu
pudesse enxergar, fui caminhando até a encosta da montanha, já não sabia
em qual direção a barraca estava, mas não estava preocupada, encontrei
uma pequena caverna entre as pedras, entrei, me sentei e fiquei ali, olhando
para o teto daquela caverna, minha cabeça doía. Ouvi passos, mas não queria
me mexer, não sentia perigo nenhum em estar ali, um homem se aproximou,
sentou-se em minha frente e me encarou.
― Por que tão longe de casa, menina? ― Ele era até bonito, longos
cabelos castanhos, tinha aparência desleixada e sua voz era firme e
agradável de se ouvir, porém seu olhar era vazio.
― Eu já não sei mais porque estou aqui, nada está mais fazendo
sentido pra mim! ― Eu podia ouvir as palavras saindo de mim, mas não eram
minhas palavras.
― Você é uma daquelas meninas do templo, não é? Aquelas que não
podem sair de lá... então, por que está sozinha aqui? ― Eu estava encarando
aqueles olhos negros vazios que eram tão familiares e ao mesmo tempo
desconhecidos para mim.

130
― Não sou uma das garotas do templo, sou da Vila das Flores ― disse
tentando parecer calma e convincente, ele sabia sobre mim? Meu coração
estava acelerado e meu rosto estava quente.
― Eu sei quem você é, você estava no palácio com a sacerdotisa da
rainha, então isso te faz uma das mulheres sagradas de sangue amaldiçoado,
não é?! ― O tom de voz dele era suave, ele falava de um jeito amável, mas
havia algo errado com aquilo, eu podia sentir.
― Como sabia que era eu? ― Ele pegou minha mão e aproximou o seu
rosto do meu.
― Sei que seu sangue é puro, suas marcas verdes estão brilhando e
enquanto estiver assim, você será útil para mim! ― Meu braço direito tinha
as marcas de mago, elas estavam acesas me alertando do perigo, vi o brilho
de uma lâmina e a dor foi terrível, eu não encontrava minha voz para gritar
por socorro e estava sendo carregada para fora daquela caverna quando
outra pessoa apareceu, me tomou dos braços daquele homem e o cortou com
uma espada, logo em seguida ele fugiu muito ferido...
― Você?! O que faz aqui fora? ― Ele perguntou.
― Só queria ir embora, fugir disso tudo! Estou tão cansada de viver
presa! ― Respondi tentando ignorar a dor em meu peito.
― Não se preocupe, vou ficar ao seu lado, assim ninguém mais tornará
a feri-la por causa disso! ― Disse ele limpando a mão suja com meu sangue...
Era Aeban, eu reconheci, mas parecia mais jovem e mais magro. A dor veio
de novo quando ele me tirou do chão e eu gritei...
― Leona! Olha para mim, abre os olhos! ― Ewren estava me
sacudindo, estava deitada no colchonete na barraca e Feroz estava a meus
pés olhando para mim.
― Oh! O que aconteceu? Onde está Aeban e o homem ferido? ― Minha
voz estava arrastada e quase não pude escutá-la.
― Leona, Aeban está em Lótus Vale, dias de viagem atrás de nós. Você
deve ter tido um pesadelo, estava se mexendo muito, então acordei para ver
se estava tudo bem, mas você não acordava por nada! ― Me sentei e ainda
podia sentir a dor de onde o punhal entrou em mim.

131
― Ewren, era tão real... Não parecia um sonho, parecia uma
lembrança... ― Eu olhei para Ewren, seu rosto estava cansado e parecia
muito diferente do Ewren que saiu de Lótus Vale comigo. ― Deve ter sido só
um pesadelo estranho... falta muito para chegar à Arcádia? ― Eu queria
deixá-lo o menos preocupado possível e chegar logo na cidade para
descansar.
― Acho que mais algumas horas de caminhada, aí chegaremos lá! ―
Tomamos o café rapidamente para poder seguir viagem, Feroz estava quieto
e abatido e tudo estava com um clima estranho e meio triste desde a hora
que tive que usar meus poderes para destruir o Yeti e salvar Ewren e Feroz.
― Ewren? E se eu fizesse aparecer um trenó e algumas renas para nos
puxar o resto do trajeto montanha acima?
― O certo seria um mushing puxado por cães, e não, você não vai mais
usar seus poderes até chegar a um local seguro, durante a noite você
começou a brilhar e eu e Feroz tivemos que espantar várias sombras
carregadoras que estavam nos seguindo pela montanha.
― Sombras carregadoras? ― Para mim, parecia algo tipo” fantasmas”,
o que me deixou mais assustada ainda.
― Sim, Almas de bruxas, elas saem do corpo a procura de qualquer
coisa valiosa para roubar e vender e você chamou a atenção delas! ― Eu
bufei e o ajudei a terminar de arrumar as bagagens e as encolher para
podermos continuar a viagem.
Os sóis brilhavam muito mais belos daqui de cima e dava para ver
marcas no céu como se alguém tivesse pego os raios brancos de Áries e
utilizado como tinta para riscá-lo.
― Ewren, o que são aquelas marcas no céu? ― Eram duas linhas que
se cruzavam e se encontravam atrás do sol Áries e iam em direção ao
horizonte.
― São as linhas Espectrais. É uma espécie de proteção a todas as
formas de vida desse mundo, só dá para vê-las brilhando das cidades
suspensas ou das montanhas... ― Ewren continuou falando, mas eu não
conseguia tirar os olhos do céu, era lindo, era como se o céu fosse uma
mandala gigante.
132
Algumas horas depois chegamos à cidade, era tão linda! Havia
cerejeiras para todos os lados e a cidade ficava dentro de uma bolha
gigantesca protegida da neve. As ruas eram feitas com pedras brancas que
se encaixavam perfeitamente umas nas outras e as casas e edifícios eram
claros e cobertos por flores, havia poucas pessoas na rua principal, então
fomos em direção a um pequeno edifício próximo a uma praça e entramos.
Ewren fez o registro e pediu dois quartos diferentes dessa vez. Havia uma
mulher aguardando atendimento na recepção, muito bonita, tinha um olho
azul e outro verde, cabelos cor de mel e um sorriso encantador, fiquei corada
perto dela, ela sorriu e acenou para Ewren, ele fez um sinal para ela e depois
ela se virou e saiu rindo baixinho, tentei ignorar.
Entrei no meu quarto e fui direto tomar um banho, também dei banho
em Feroz e escovei seu pelo.
― Por que ele não quis ficar perto de mim dessa vez, Feroz? Por que
ele está bravo comigo desde o incidente com o Yeti? ― Eu estava ficando
louca, esperando que Feroz me respondesse novamente, mas ele abaixou as
orelhas e espirrou como se estivesse desviando da minha pergunta. Ewren
estava a três quartos de distância, então fui até sua porta e bati uma vez, ele
não respondeu.
― Ewren? Vou dar uma volta pela cidade, tudo bem? ― Coloquei o
ouvido na porta para escutar alguma resposta, escutei uma risadinha
feminina e logo depois a voz dele.
― Não saia do limite dos muros da cidade, não se meta em encrencas
e não converse com estranhos! ― Gritou a voz dele de dentro do quarto,
seguida de mais alguns risinhos. “Está certo, papai” resmunguei entre os
dentes para a porta, tenho certeza de que ele ouviu, pois sua risada parou,
mas a mulher que estava com ele riu ainda mais, devia estar debochando de
mim, meu coração apertou. Saí com Feroz em meus calcanhares e fui dar
uma volta pela cidade, a algumas quadras da pensão havia várias lojas,
comprei umas peças de roupa e uma pregadeira de cabelo.
Depois dali parei em um tipo de padaria, comprei uns doces e fui
sentar em um banquinho na praça da cidade, algumas pessoas me olhavam
com curiosidade, notei um grupo de elfos perto de mim e outras raças

133
espalhadas pela praça, muitos me olhavam de canto de olho. Resolvi fingir
que não estava vendo e peguei um livro que encontrei no quarto da
enfermaria quando estava em Lótus Vale para ler, era um livro sobre as raças
desse mundo, seus pontos fracos, pontos fortes e locais que vivem, acho que
foi deixado lá de propósito para eu pegar, era um livro caseiro, parecia ter
sido feito à mão até a capa, talvez anotações pessoais de Aeban, porém, se
ele havia deixado na minha cabeceira talvez fosse para que eu pudesse
aprender algo a mais sobre esse mundo.

Abri os olhos tirando o livro de cima do rosto, os sóis estavam quase


se pondo, havia pegado no sono no meio da leitura e Feroz estava alerta ao
meu lado. Levantei-me num pulo e quando me virei correndo para voltar à
pensão, esbarrei em alguém e caí sentada.
― Sinto muito, não esperava que fosse trombar em mim! ― Ele me
estendeu a mão para que eu pudesse me levantar, quando olhei para ver
quem era, quase fiquei de boca aberta. Ele era lindo! Tinha cabelos ruivos
até a cintura, olhos e pele cinzenta, era forte e alto e tinha tatuagens
parecidas com as de Amijad e Lirien, com certeza era um sereiano também.
― Desculpe! Não vi você! ― Meu rosto ficou quente.
― Tudo bem! ― Ele sorriu ― Você está bem? Não se machucou?
― Na-não, estou bem mesmo! ― Tirando o fato de eu quase ter
desmontado ao cair, estava tudo bem.
― Meu nome é Demétrius! ― Ele estendeu a mão e a única coisa que
consegui fazer foi ficar ali de boca aberta. Ele sorriu e levantou as
sobrancelhas esperando eu me apresentar.
― Ah, desculpe! Meu nome é Leona! ― Eu sorri meio desajeitada e
estendi a mão para ele, ele segurou e beijou minha mão. Fiquei corada e
puxei a mão sorrindo como uma idiota.
― De onde você é, Leona? ― Ele parecia ter saído de um sonho.
― Estou vindo de Alamoutim!

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― Ah, entendo! Bem que reparei que você não é daqui, eu não teria
deixado de notar uma flor como você! ― Não conseguia tirar o sorriso do
rosto! Olhei em volta e reparei que estava escurecendo rapidamente e não
queria ficar fora da pensão ao anoitecer.
― Desculpe, estou voltando para a pensão! ― Disse me virando,
apanhando Feroz em cima do banco e andando de volta à pensão.
― Espere, eu te acompanho! É perigoso aqui à noite! ― Demétrius
caminhou ao meu lado e fomos conversando. Ele estava viajando também.
― Cheguei a Arcádia há poucas horas, só para passar a noite em um
local confortável mesmo! Estarei partindo ao amanhecer para a Vila Langai,
ao pé da montanha, conhece?
― Não... na verdade, eu não sou daqui! ― Ele me olhou com
curiosidade, então contei toda a verdade, exceto a parte de eu ser maga.
― Então ficarei feliz em acompanhá-los até o pé da montanha! ― Ele
falou dando um sorriso incrivelmente lindo.
― Não vai acompanhar não! ― Disse Ewren entre os dentes me
puxando para longe dele, já estávamos em frente à pensão.
― Oh! Desculpe, quem é você? O pai dela? ― Demétrius parecia estar
debochando de Ewren, que o cortou imediatamente entre um rosnado.
― Não, não sou pai dela, mas estou responsável por levá-la em
segurança até o seu destino! ― Ewren parecia que ia arrancar a cabeça de
Demétrius a qualquer momento.
― Se tivesse tão focado nesse objetivo, não a teria deixado sozinha em
uma cidade como essa, eu fiquei de guarda até ela acordar na praça e em
momento algum vi você a vigiando!
― Você dormiu na Praça, Leona?! ― Ewren ficou furioso.
― Ah, eu cochilei enquanto lia! ― Fiz meu melhor olhar de
“desculpe”.
― Qual parte do não se meta em encrencas você não entendeu?!
― Vejo vocês amanhã cedo! ― Demétrius virou-se para sair, mas
antes pegou a minha mão e a beijou novamente. Ouvi Ewren soltar outro
rosnado assustador e entrei para a pensão com ele atrás de mim. Eu podia

135
sentir seu olhar na minha nuca, me fulminando. Quando entrei no quarto,
ele entrou junto e bateu a porta.
― Além de não entender a parte do não se meta em encrencas, não
entendeu o não fale com estranhos, não é? ― Ele gritou.
― Eu só falei com ele por que estava com pressa de voltar, aí acabei
esbarrando nele! ― Resmunguei.
― E por acidente saiu falando tudo, não é? Eu vi o jeito que ele olhou
para você! ― Eu estava com a cabeça baixa ― Sabe como ele estava te
olhando?
― Do mesmo jeito que você estava olhando Banshee no navio? ―
Deveria ter ficado quieta, pois ele se enfureceu ainda mais.
― Você só pode estar achando que isso é brincadeira, não é? Vai
chegar uma hora que eu não vou conseguir te proteger, pois você vai atrás
dos problemas!
― Ewren? ― Fiz a voz mais doce que eu pude.
― O quê? ― Ele rosnou cruzou os braços e ficou olhando para o teto.
― Você não pediu dois quartos separados? Por que está aqui ainda?
― Ele não disse mais nada, apenas me encarou com ira brilhando nos olhos
e simplesmente virou de costas desaparecendo e batendo aporta atrás de si.
― Feroz? ― Feroz olhou-me bem nos olhos e espirrou ― Isso foi um
ataque de ciúme ou foi coisa da minha cabeça? ― Ele abaixou as orelhas e
fingiu estar dormindo. É melhor eu não me iludir, ele ficou com raiva mesmo
por eu não ter escutado seus conselhos e ter quase me metido em encrenca.
Deitei na cama e fiquei rolando para os lados, pensando, quando cheguei à
conclusão de que não havia feito nada de errado, dormi em paz.
Ao sairmos da pensão de manhã, Demétrius estava ao lado da porta
nos esperando.
― Demoraram! ― Disse ele para Ewren e veio me cumprimentar.
― Se beijar a mão dela de novo, eu arranco sua língua fora! ―
Demétrius sorriu e soltou minha mão, dizendo apenas “bom dia” perto de
meu ouvido. Ewren mudou ligeiramente de cor, se ele pudesse matar alguém
só com o olhar, eu também teria morrido agora.

136
― Até onde você pretende nos acompanhar? ― Ewren parecia mais
furioso do que na noite anterior.
― Até a Vila Langai ao pé da montanha, minha irmã tem um
estabelecimento lá, irei ficar com ela por uns dias... ― Demétrius sorria o
tempo inteiro, diferente de Ewren que estava o tempo inteiro de cara
amarrada.
― Tudo bem pra mim! ― Disse enquanto tirava Feroz das mãos de
Ewren, o bichinho já estava ficando roxo de tanto que era apertado.
Demétrius foi à frente, depois o seguimos.
― Nunca mais faça isso! ― Ewren cochichou para mim ― Não chame
qualquer um para nos acompanhar! É perigoso, sua idiota! ― Eu ia
respondê-lo grosseiramente, mas resolvi ficar quieta e fingir que não estava
ligando para a raiva dele. Já tinha perdido as esperanças de ser uma crise de
ciúme, então resolvi ignorar cada palavra que saísse dele até chegarmos à
vila ao pé da montanha, apressei o passo e fui andar ao lado de Demétrius,
que agiu como um guia turístico e ficou me falando das cidades de Edro.
Podia sentir uma forte energia vinda de Ewren, que nos fulminava com o
olhar raivoso.
A paisagem era mágica, à medida que descíamos a neve diminuía e as
árvores ficavam enfeitadas com pingentes de gelo que brilhavam com a luz
dos sóis, fazendo espirais coloridas no chão em torno delas. Demétrius me
puxou para a beirada da estrada e apontou para um ponto logo abaixo de
nós.
― Está vendo aquele lago lá embaixo? ― Ele segurou meu rosto para
me guiar até onde ele estava mostrando. ― É o lago dos olhos! Durante a
noite pode-se ver milhares de bolas de luz flutuando em volta dele, e dentro
também!
― Parece incrível! ― Realmente parecia ser, o lago era rodeado por
árvores de folhas vermelhas e laranjas e da distância que estávamos, parecia
mais uma pintura do que uma paisagem real. Ewren chegou mais perto e
começou a armar a fogueira para preparar o almoço.

137
― Volto daqui a pouco! ― Demétrius disse já se afastando e saindo
das nossas vistas. Fui para onde Ewren estava fazendo um ensopado na
fogueira.
― Você confia demais nas pessoas! ― Ele resmungou enquanto mexia
o caldeirão.
― Ele parece ser confiável! ― Eu estava olhando para a estrada onde
Demétrius havia sumido.
― Olhando você assim, parece até que está apaixonada! ― Ele havia
parado de mexer na comida para me encarar ― Sabe que ele é um sereiano,
se ele te enfeitiçou, eu não vou saber, mas posso te garantir uma coisa! Se
ele te mandar fazer qualquer coisa, você vai obedecer, aí já era! ― Ewren
realmente estava com o humor terrível.
― Ele não me enfeitiçou! Ele só está sendo simpático e eu estou
retribuindo! ― Ewren respondeu apenas sacudindo os ombros. ― Parece
que você está com ciúmes! ― Não consegui segurar.
― Ciúmes, eu? De você? Por favor! Ponha-se no seu lugar menina! E
não parece que você está sendo educada, parece que você está flertando com
ele! ― Dessa vez ele parecia um monstro. Os olhos dele haviam ficado
totalmente prateados, mas ele estava usando o cristal, então tudo que eu
podia fazer era esperar o seu humor melhorar. Ele me deu a comida e
afastou-se resmungando algo em sua língua que não pude compreender.
― Quando você estiver em perigo por causa dele, não venha correndo
pedir ajuda pra mim, se vira sozinha! ― Ele gritou de longe. Estava sentado
sozinho distante da fogueira. Terminamos de comer e ficamos esperando
Demétrius voltar. Ewren, claro, estava de cara fechada reclamando da
demora e queria ir sem ele voltar. Eu o fiz esperar mais um tempo, como
Demétrius não voltava e já passavam das duas da tarde, me levantei para
seguirmos em frente.
Demétrius apareceu pouco depois que começamos a andar.
― Desculpem a demora, fui almoçar! ― Ele piscou para mim. Me
lembrei de Lirien e Ami comendo e tive calafrios.

138
― Nem imagino quem foi a pessoa inocente que lhe serviu de almoço...
― disse Ewren entre os dentes, ele estava quase alegre por Demétrius não
ter voltado, mas a alegria sumiu tão rápido quanto apareceu.
Continuamos a conversar sobre o mundo. Contei sobre o meu e sobre
as pessoas de lá. Tudo parecia ser novo e interessante para ele e sempre que
eu falava, Demétrius sorria. Feroz dormia tranquilamente em meus braços e
Ewren estava bem atrás de nós nos vigiando.
Quando o sol estava se pondo, paramos para acampar, fiz uma pilha
de lenhas em chamas aparecer, já que ainda não havíamos chegado a um
lugar onde houvesse madeira seca, e Demétrius ficou fascinado com meus
poderes.
― Eu disse para você não usar magia fora das cidades! Muito menos
na frente desse idiota! ― Ewren falou baixinho para mim quando Demétrius
não estava olhando.
― Tudo bem! Ewren, você precisa confiar mais nas pessoas! ― Depois
que eu disse isso, ele simplesmente se calou, não disse mais nenhuma
palavra durante a refeição e depois ficou sentado imóvel como uma estátua
perto da fogueira. Demétrius se aproximou e me ofereceu uma bebida, tinha
gosto de suco de romã e acerola, era muito bom! Ewren ficou ainda mais
azedo quando me viu beber aquilo. Fiquei conversando com Demétrius até
o sono bater.
Mesmo quando já estávamos dentro da barraca, Ewren me ignorou
totalmente e continuou em silêncio. Pensei em pedir desculpas mesmo não
tendo feito nada demais, mas como ele nunca cedia nada, preferi ficar em
silêncio também.
Acordei no meio da noite escutando uivos não muito distantes dali.
Ewren me mandou ficar quieta e saiu da barraca. Olhei no celular, eram oito
e meia ainda, mas não conseguia ajustá-lo ao horário desse mundo, então
resolvi olhar lá fora pelas janelinhas da barraca. Feroz dormia
tranquilamente, o que era estanho, pois quando Ewren saía, ele
imediatamente acordava e ficava de alerta.
Depois de algum tempo saí da barraca e fiquei procurando rastros na
neve para ver em qual direção Ewren havia ido, mas não tinha nenhuma
139
marca no chão. A fogueira ainda estava acesa, mas estava ventando muito e
era para ela ter se apagado. Então Demétrius apareceu entre as árvores
congeladas.
― Demétrius! ― Eu estava aliviada de não estar sozinha ― Onde você
estava? ― Ele se aproximava de mim, mas não sorria mais. ― Está tudo bem?
― Perguntei dando um passo mais para perto dele.
― É interessante! ― Ele começou a falar olhando em volta
cautelosamente ― Ele disse que você estaria com um elfo negro, mas eu não
esperava uma maga tão descuidada e muito menos um elfo tão adestrado!
Achei que teria mais problemas com vocês dois! ― Ele puxou uma faca torta
da cintura.
― O quê? ― Eu não podia compreender.
― O maior problema que eu tive foi para sedar seu gatinho de
estimação, até desligar seus poderes foi fácil! Te ofereci uma poção e você
bebeu sem ao menos perguntar o que era! Nunca esperei que fosse tão fácil
pegar vocês! ― Ele riu.
― Não acredito! Eu confiei em você! ― Ele riu mais ainda.
― Oras! Nada desse lado de Amantia é confiável, nem seu elfo é! Você
é ingênua demais! ― Eu comecei a me afastar, algo em mim estava dormente
e eu não conseguia fazer meu cajado mudar.
― Por que... ― comecei a falar, mas ele interrompeu com outra
gargalhada. De trás dele começaram a aparecer outros homens esfarrapados
e com a aparência desleixada.
― Eu disse, eu adormeci seus poderes, o efeito é temporário, claro!
Mas é tempo suficiente para lhe entregarmos ao Black e pegar nossa
recompensa! AJOELHE-SE! ― Ele gritou. Senti uma dor como se fosse um
choque, meu corpo respondeu ao comando dele e eu fiquei de joelhos.
Lágrimas começaram a rolar pelo meu rosto, não de tristeza ou medo dessa
vez, mas de raiva, queria transformá-lo em sushi! Ewren me avisou e eu o
ignorei. Demétrius chegou bem perto e me levantou pelo pescoço, uma de
suas garras perfurou minha pele fazendo uma fina linha de sangue escorrer.
Ele sorriu, me puxou para perto e lambeu o sangue.

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― Que achado! Agora que sei disso, a recompensa vai dobrar! ― E riu
novamente me jogando ao chão. Eu não conseguia falar e nem ao menos, me
mover. ― Peguem o gato na barraca! A pele dele vai dar um belo tapete! ―
Alguns dos homens que estavam com ele foram andando até a barraca. Eu
fechei os olhos implorando para Ewren voltar, mas parecia que isso não ia
acontecer.
Queria levantar, pegar Feroz e fugir, mas nem gritar eu conseguia, me
sentia inútil, só arrumava problemas! Parecia que era um imã para criaturas
ruins. Então, um brilho prateado passou raspando em meu ombro e
atravessou um dos homens que iam até a barraca. Ele urrou e caiu na neve.
Os outros se espantaram e começaram a procurar em volta e tentar localizar
de onde veio a adaga. Ewren! Alguém pulou por cima de mim com um manto
cobrindo-o completamente e com uma espada na mão, em um único
movimento, decapitou outros dois.
O último tentou correr montanha acima, mas foi pego por Ewren, que
desceu do céu com suas asas abertas, ele atravessou sua mão no peito dele e
arrancou seu coração, que ainda pulsou algumas vezes na mão de Ewren.
Demétrius assustado, pulou em minha direção para usar-me como escudo e
começou a pronunciar palavras estranhas, com sons musicais, então a
pessoa com o capuz puxou um arco das costas e lançou contra ele uma flecha
dourada, mas no momento em que a flecha tocou seu rosto, ele se
desmanchou numa poça de água e sumiu na neve.
― Leona! Você está bem? ― Ewren me levantou e ficou me
encarando, eu estava em choque e não conseguia falar nem me mover ainda.
A outra pessoa de manto se aproximou e quando chegou bem perto, abaixou
o capuz. Era uma mulher e eu já havia a visto em algum lugar, ela tinha os
cabelos prateados cacheados e olhos vermelhos como o fogo que ainda ardia
na fogueira, marcas de mago no braço direito como as minhas, porém
vermelhas, e um pequeno brasão brilhante escarlate em sua testa.
― Ela está com um veneno de paralisia, mas não é difícil de remover!
― Ewren me colocou sentada perto do fogo, a mulher então esticou as mãos
para mim e pronunciou palavras no mesmo idioma que Ewren usava e senti

141
meu corpo ficar leve, foi como se uma brisa morna soprasse em mim e tirasse
um véu escuro que me cobria.
― E agora? ― Ele perguntou olhando para ela.
― Já está normal! ― Disse ela e sorriu, um sorriso alegre e brilhante.
Quando ela abaixou as mãos, seus cabelos ficaram num tom de castanho-mel
e seus olhos, um azul e outro verde. Era a mulher que estava na recepção da
pousada! Eu levantei, abracei Ewren e chorei com vontade, de soluçar.
― Me desculpa! ― Disse entre os soluços ― Você me avisou e eu nem
liguei! ― Ele riu e me abraçou de volta. Um abraço quente e apertado. O
mundo poderia acabar ao nosso redor que eu poderia viver eternamente
dentro daquele abraço...
― Eu te avisei! ― Ele se afastou para me olhar. O corte no meu pescoço
ainda ardia, mas eu me sentia segura novamente.
― Feroz! ― Levantei rápido, corri e entrei na barraca. Feroz ainda
estava adormecido, levei-o para fora e o coloquei perto do fogo onde a
mulher o olhou e mexeu em suas patas.
― Ele vai acordar daqui a pouco! Não há mais perigo por aqui, podem
ficar tranquilos agora! ― Ela o pegou no colo e ficou acariciando suas
orelhas.
Leona, deixe-me apresentar minha irmã, Lórien! ― Ela sorriu pra
mim.
― Muito prazer! ― Ela esticou a mão para mim e eu fiquei ali, parada,
de boca aberta.
― Sua irmã? ― Perguntei como uma boba, com a boca ainda
semiaberta.
― Sim! Irmã dele! ― Ela riu ― eu encontrei vocês na pousada, mas
Ewren não queria que eu os acompanhasse, então ele fez sinal para eu não
me aproximar de vocês! Mas quando vi que pediram quartos separados, fui
lá tirar satisfação com esse idiota! ― Ela gesticulava para ele e ele cobria o
rosto com a mão.
― Lóri, por favor! Não...

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― Sabe por que ele não queria que eu me aproximasse? ― Ela
perguntou quase aos berros.
― Lóri... ― ele tentava a interromper.
― Porque ele tem vergonha de ter uma irmã Hibrida! ― Ela fez um
drama, deitou na neve e fingiu que chorava.
― Eu não tenho vergonha por você ser hibrida, tenho vergonha
porque você é louca e faz qualquer um passar vergonha! ― Disse ele ― Olhe-
se! Você está envergonhando até seus futuros descendentes assim! ― Ela
continuava a fingir que chorava e rolava na neve. ― Lórien! Juro, não tenho
vergonha de você! Você é incrível! ― Ewren parecia ter ganhado ela, que
deu um pulo da neve.
― Tudo bem, isso eu posso aceitar! Mas, mudando de assunto, por que
esses caras atacaram vocês? ― Era inacreditável, ela passou de louca a uma
pessoa normal num piscar de olhos.
― Porque eu estou levando uma maga para a Torre das nuvens que
não aprendeu ainda aquela regra básica que os pais ensinam aos seus filhos,
“não fale com estranhos” ― ele parecia irritado novamente.
― Ele disse que tinha uma recompensa se me levasse para o Black...
― quando eu disse o nome, Ewren endureceu ― Mas quem contou pra onde
estávamos indo? Como ele sabia nos encontrar tão facilmente? ― Perguntei.
― Será que Lirien... ― Ewren começou e imaginei os sereianos, já que
Demétrius também era um.
― Não, eles não poderiam contar... Lirien era muito medroso,
provavelmente está escondido no mar com Ami... ― falei ― Banshee! ―
Disse ficando vermelha.
― A capitã do navio? ― Ewren perguntou, ela com certeza teria
motivos de sobra para dizer onde estávamos.
― Ela deve ter ganhado algo em troca da informação... ― disse Lórien,
nesse momento o primeiro homem que foi atacado por Lórien começou a se
mover na neve.
― Ela... quer o elfo... ― Ewren então o levantou.
― Fale, vamos! ― O homem estava quase morto.

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― Me cure... eu falo... ― Lórien imediatamente mudou de forma,
ficando com seus olhos vermelhos e cabelos prateados novamente. (Não
tinha como negar que era muito parecida com Ewren) ela fez aparecer
correntes grossas de prata no chão e prendeu o homem, antes de curá-lo
com uma coluna de luz branca.
― Agora fale! ― Ewren gritou. Onde as correntes de prata tocavam o
homem, sua pele queimava.
― A capitã dos ventos, ela falou que havia trazido para a terra uma
maga e um elfo. E que a maga havia feito mal a ela e à tripulação sem elas
terem feito nada! ― Claro, elas eram inocentes e boas e eu um monstro do
mar! O homem falava de forma grotesca e com a voz arrastada.
― Continue! ― Lórien agora estava segurando uma faca bem próxima
ao homem.
― Ela disse que a maga não era deste mundo e que tinha os poderes
em desenvolvimento! Então Black Jango perguntou se ela sabia para onde
vocês iam e a mulher pediu uma recompensa pela informação. ― Ele parou
de falar para coçar os ferimentos que a corrente causava e Ewren o chutou
para que ele continuasse a falar.
― Vamos, fale logo! Ou vou terminar de cortar essas mãos antes que
a corrente o faça! ― Lórien gritou, ela era mais assustadora que Ewren!
― Calma, calma! A capitã dos Ventos pediu a cabeça da mocinha como
recompensa pela informação, mas ele disse que precisava dela inteira com
todas as partes no lugar! Então ela pediu o elfo! ― Ele apontou para Ewren
com a cabeça. ― Mandou que o levássemos amarrado para ele ficar de
enfeite na sua cabine para sempre! ― O homem riu.
― Ele não disse para que precisava dela? ― Ewren parecia já saber a
resposta, mas perguntou mesmo assim.
― Não... acha que eles falam dos planos grandes com os peões? ― Ele
riu novamente.
― Ele é um lobisomem também? ― Perguntei.

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― Era! ― Disse Ewren, nesse momento sacou as adagas e arrancou a
cabeça do lobisomem fora com um único ataque. Eu segurei a respiração por
um momento.
― Vocês adoram matar as pessoas! ― Soltei sem nem medir minhas
palavras. Ewren me olhou furioso.
― Vocês? Os únicos que adoram matar aqui são eles! Se nós dois não
tivéssemos aparecido, você que estaria indo pra forca agora! ― Ele gritou as
palavras para mim. Eu sabia, eu só não pude segurá-las. Além de quase ter
sido levada, aquele lobisomem poderia estar envolvido na morte da esposa
dele ou de muitos outros inocentes.
― Sinto muito... ― quis recolher as palavras, mas já era tarde. Abaixei
a cabeça e fiquei ali quieta enquanto Ewren e Lórien decidiam o que fazer e
queimavam os corpos dos lobisomens. Eles discutiam em élfico, então as
únicas coisas que eu entendia eram meu nome e o nome deles.
― Humm... Ewren? E agora, o que faremos? ― Perguntei arriscando
falar novamente. Ele sentou perto do fogo e ficou pensativo.
― Vocês deveriam mudar de rota! ― Lórien disse sentando-se ao seu
lado.
― Mas a única passagem disponível que não é muito perigosa e nem
passa dentro de nenhuma cidade mais perigosa ainda é a rota das folhas
secas...
― Rota das folhas secas, aquela dos comerciantes? ― Lórien parecia
se esforçar para lembrar.
― Sim, tem um túnel por baixo da Vila Safira, o problema é que ela
aumentaria o tempo da viagem em mais cinco dias!
― Não se for daqui direto para a Vila Safira! ― Lórien parecia
empolgada. Ewren amarrou a cara e apontou para o penhasco da montanha.
― Não posso sobrevoar essa região, seria imediatamente derrubado
se sobrevoasse esse território, vamos supor que algo lá embaixo amortecesse
a queda, ainda teríamos dois dias de viagem até a vila! E por dentro da
Floresta Negra, cheia de dríades, Nagas e Duendes nojentos!
― Mas, você não pode enfrentá-los? ― Perguntei.

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― Alguns, sim! Mas estamos falando de centenas! ― Ele estava
olhando na direção da floresta e seu olhar estava cansado.
― Podemos ir voando! ― Lórien tirou o manto e abriu suas asas,
embora menores que as de Ewren, eram lindas e brancas com algumas
plumas vermelhas trançadas entre as outras.
― Você pode! Eu não posso voar sobre esse território! ― Ewren
reclamou, mas Lórien riu e fez uma bolha brilhante com a palma da mão. A
bolha foi crescendo até ficar do tamanho de uma casa.
― Não é uma proteção cem por cento! Mas eu consigo mantê-la sem
estourar por vinte e cinco minutos! Se voarmos rápido, dá para pousar na
estrada bem próximo à muralha da vila, daí é só mais uma hora de
caminhada até os portões! E pronto! Estaremos em casa! ― Ela me olhou e
deu uma piscada.
― Em casa? ― Perguntei.
― Sim! Moro lá na vila Safira. Já foi à casa dele?! ― Disse ela
apontando com o queixo para Ewren.
― Você é a melhor! ― Ewren a beijou no rosto e correu para onde
estava a barraca. Mal chegou perto e já havia desmontado o acampamento e
o encolhido com a lupa. Lórien ficou com Feroz no colo e a bolha nos cobriu,
Ewren mudou sua forma, abriu as asas e num piscar de olhos estávamos
voando por cima da floresta. Era assustador de noite e havia perdido toda a
magia que eu tinha visto naquele mesmo dia de manhã.
― Vou ver a casa onde você cresceu! ― Brinquei tentando desviar a
atenção da floresta abaixo de nós.
― Vai! ― Ainda estava zangado ― Vai conhecer minha mãe também!
― Meu coração disparou. Imaginei imediatamente uma senhora rabugenta
que iria perguntar quem eu era e o que eu fazia com o filho dela, mas,
infelizmente, não haveria nada demais para contar...
Depois de longos minutos de voo em silêncio, a bolha começou a ficar
colorida e ondular.
― Ewren! A Bolha vai estourar! Temos que chegar ao chão agora,
feche as asas! ― Ewren parou subitamente no ar e fechou as asas. Entramos

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em queda livre, eu queria gritar como se estivesse em uma montanha russa,
estávamos caindo em uma parte escura, ainda muito próxima à floresta.
Antes de tocar no chão, a bolha estourou. Lórien moveu suas mãos
bruscamente e outra bolha apareceu embaixo de nós, só que cheia de água.
Quando entramos nela, imediatamente a bolha estourou e escorregamos
numa poça de lama até bater numa árvore.
― Genial! ― Eu resmunguei ― Não podia nos fazer cair numa cama
elástica? Ou uma pilha de colchões?
― Desculpe! Só pesei em água ― Lórien levantou com dificuldade,
sacudiu as mãos novamente e ficamos limpos e secos.
― Lórien, pare de usar tanto seus poderes, vai chamar a atenção! ―
Disse Ewren sacudindo a cabeça em direção à floresta logo atrás de nós.
― Ok! Só andar nessa direção agora! Em mais ou menos uma hora
chegaremos à muralha! ― Ela chegou bem perto e passou o braço em volta
de minha cintura. Feroz, que estava quieto durante o voo, despertou na
queda e foi andando em nossa frente, ele parecia um gato bêbado. Ewren
andava atrás de nós, vigiando o caminho estreito. Quando nos distanciamos
dele o suficiente para que não nos ouvisse, Lórien começou um
interrogatório.
― Leona? Me diga uma coisa, com toda sinceridade, de todo seu
coração? ― Ela cochichava e dava risadinhas bem baixinhas. Fiquei com
medo de responder, mas disse um “sim” bem baixinho. ― Você gosta dele?
― Dele quem? ― Perguntei sabendo sua resposta.
― Meu irmão, claro! ― Eu corei, passei por uma gama de cores e tive
taquicardia quando ela fez a pergunta.
― Não! ― Disse mais baixo ainda. Ela deu um tapa em meu ombro.
― Não minta para mim! Eu vi que quando você me viu na hospedaria,
que eu sorri para ele, você quase se rasgou de ciúme! ― Ela estava dando
risinhos cada vez mais altos.
― Fica quieta! Ele vai escutar! Eu não gosto, eu não estava com ciúme!
― Eu tropecei nas palavras. Ela riu novamente.

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― Eu sabia! ― Ela estava esfregando seu rosto no meu como uma
louca. ― Uma maga humana como cunhada, que fofo!
― Já disse que não gosto dele, e ele não gosta nem um pouco de mim!
Pare de bobagem! ― Fiquei toda vermelha, agora entendi porque Ewren
disse que ela era louca.
― Tudo bem, vou fingir que acredito! ― Ela olhava para o céu e
sacudia seus cabelos, brincando, zombando de mim.
― Você agora a pouco disse que era híbrida, mas Ewren disse que é
raro nascerem híbridos, e você tem poderes também! Como pode? ―
Perguntei tentando desviar o assunto de mim e de Ewren.
― Ah, não é impossível nascerem híbridos, mas é a raça mais forte que
domina, geneticamente falando! Meu pai é um mago humano, minha mãe é
uma elfa, eu nasci meio maga, meio elfa, pois a força dos dois era igual! ―
Lórien sorriu, ela caminhava pulando, brincando e dançando. Pensando
melhor, ela não era louca, era apenas feliz demais em um mundo onde tudo
era mais difícil.
― Eu ri de propósito quando estava no quarto na hospedagem! ― Ela
disse depois de um longo tempo em silêncio. ― Desculpe, mas achei
divertido te provocar!
― Tudo bem! ― Na hora não estava nada bem, mas agora eu estava
tranquila.
― Ali! A Muralha! ― Ela apontou para a frente, eu demorei a entender
o que ela estava mostrando e quando consegui fazer meus olhos enxergarem
a escuridão, vi um muro gigantesco verde, coberto por hera e flores roxas
minúsculas, fomos as duas correndo para bem perto do paredão. O aroma
das flores era fantástico! Era doce e tão suave.
― A cidade é toda rodeada por esse muro? ― Perguntei olhando para
cima, deveria ter a altura de um prédio de cinco andares.
― É sim, a muralha é viva! ― Lórien sorriu e tocou a mão nas flores
do muro, que imediatamente soltaram uma nuvem de perfume e mudaram
de cor, passando para um azul lindo. Toquei no muro também, foi como se
as plantas começassem a crescer em minhas mãos e subir por meus braços,

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Feroz também entrou na brincadeira, as flores pareciam roçar no pelo dele
também! Ewren já havia nos alcançado, ele nos viu brincando no muro,
bufou e saiu andando na nossa frente.
― O que deu nele? ― Perguntei.
― Ah, desde que ele partiu da cidade pela primeira vez, ele não pode
mais tocar no muro! ― Ela sorriu dando um último carinho às plantas e
caminhando ao lado do muro.
― Não entendo!
― Ele saiu daqui ainda jovem, devia ter uns duzentos de idade, foi para
a Planície dos Cata-ventos para treinar e ser um soldado da guarda real! Para
proteger a família real!
― E o que aconteceu para ele não poder mais tocar no muro? ― Lórien
suspirou e olhou para Ewren.
― Houve uma batalha, logo que ele chegou ao acampamento, um
exército de Trolls atacou a base deles. Eles levaram os soldados elfos que
sobreviveram. Os que não foram devorados, foram torturados e forçados a
cometer todos os tipos de atrocidades, até escurecerem para formar um
grupo de bandidos cruéis e sem empatia, e quando isso aconteceu, já era
tarde demais... ― Ela havia parado de andar e estava acariciando o muro
novamente. ― Elfos negros são considerados uma ameaça a qualquer um,
então esses muros protegem a cidade de tudo que não é bom!
― Lórien? Como ele era? ― Perguntei ― Era muito ruim? ― Lórien
deu um suspiro triste.
― Ruim é elogio perto do que ele era, a única palavra que chegaria
perto da personalidade dele naquela época é monstro! ― Disse ela
abaixando o tom de voz enquanto falava.
― Tão mau assim? ― Eu o olhava, mas não sentia medo.
― Ele violentava mulheres e as matava por pura diversão, depois
queimava os corpos, matava tudo que se aproximava dele, destruía
vilarejos... eles alteraram a mente dele de um jeito que nem lembrava mais
seu próprio nome! ― Um arrepio passou pelo meu corpo. Ele não era

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diferente de Demétrius ou Black Jango naquela época. Lórien também o
olhava com pena.
― Foi tão doloroso para ele quando ele recobrou a consciência e
descobriu tudo de ruim que havia feito! Ele só desejava se vingar do que
fizeram com ele. ― Ela conseguia sentir sua dor.
― E quando ele foi curado? Ou parcialmente curado... ― Perguntei
olhando Ewren lá na frente, coçando as orelhas de Feroz e sorrindo.
― Quando conheceu Emma.
― A esposa dele, não é? ― Lórien assentiu com a cabeça.
― Ela era uma menina quando eles se conheceram, tinha dezessete
anos! ― Ela riu, lembrando de uma memória distante ― eu o encontrei
novamente, depois de mais de duzentos anos, o fiz beber uma poção feita
com cristais de cura, estava tentando fazê-lo melhorar, mudar de ideia,
tentar se purificar completamente, mas ele não me dava ouvidos, estava o
seguindo para uma vila humana, procurando os responsáveis pelo exército
de Trolls, lá ele tentaria obter informações sobre quem comandava o grupo,
até aquela época havia muitas dessas vilas humanas espalhadas por Edro.
― Hum ― fiz um som para que ela continuasse a falar e Lórien se
perdia em pensamentos facilmente.
― O vilarejo que ele estava indo era bem pequeno, ele procurava um
homem que fabricava armas incrivelmente fortes que com certeza tinha as
informações que Ewren queria! Quando chegamos perto da vila, notamos
que ela havia sido completamente destruída por lobisomens. Ele entrou no
vilarejo para tentar achar a casa do homem, para ver se o velho ainda estava
vivo e se haviam armas para ele roubar! ― Seu rosto se contorceu ao
lembrar disso ― O vilarejo estava um caos e em destroços, cinzas e casas
ainda pegando fogo, horrível! Nisso, vimos em frente a uma casa uma
menina loira sentada, olhando para dentro e chorando. Os corpos de seus
pais e de seu irmão caçula estavam ali no chão. Ewren ainda estava ruim, os
cristais não tinham feito o efeito que eu imaginei, ele me disse “vamos matá-
la também? Aí ela não vai mais chorar porque vai estar com eles” ― Lórien
parou de falar novamente para ter certeza de que Ewren não a escutava lá
da frente.
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― Continue, ele não está escutando!
― Então Emma se virou para ele e o encarou com os olhos azuis dela
bem abertos. Ela não estava com medo dele, se levantou, pulou em cima dele
e ficou ali abraçada chorando. Ele não teve reação! Ficou lá parado com os
olhos arregalados e sem entender o que estava acontecendo. Emma o
amoleceu na hora! ― Lórien não conteve o riso, eu tapei sua boca para ela
rir baixo e ela sacudiu as mãos para dizer que tinha parado. ― Eu o
incentivei para que ele retribuísse o abraço dela. Ele levantou a mão e passou
no cabelo dela, então ela sorriu e desmaiou.
― E o que ele fez depois?
― Levou ela para Alamourtim para que Nellena cuidasse dela. Mas ele
sempre ia vê-la! Todos os dias nos finais de tarde, até que ele virou um
gatinho adestrado! Ewren era um doce com ela, quando ele a olhava, era
como se um cego visse o sol pela primeira vez. ― Meu coração se apertou
quando Lórien disse isso ― E Ele esperou por ela até que ela o aceitasse,
então ele levou-a para vila dos caçadores para viverem juntos.
― E foi aí que ela morreu, não é?
― Foi! ― Disse ela com um olhar de tristeza, mas com uma mescla de
esperança. ― Então ele se perdeu de novo, não ficou tão monstruoso e
doentio quanto antes, mas ainda assim ficou ruim, seco, sem vida... até
encontrar você!
― Hum? ― Fiquei olhando-a com os olhos arregalados.
― Pois é! Ele está ficando manso de novo! Eu o deixei em Alamourtim
quase um mês atrás, ele estava muito mau, até meio perverso às vezes, como
antes de Emma aparecer! ― Quando ela disse isso, lembrei-me dele
colocando a faca em meu pescoço ― Nós encontramos com Nellena numa
manhã em um hotel e ela pediu ajuda dele. Como ele tinha muitas dívidas
com ela, ele aceitou e eu vim pra casa, pois tinha outros... Assuntos! Daí,
desse dia pra cá ele mudou consideravelmente! Por isso que te perguntei se
você gostava dele! ― Ela sorriu novamente pra mim, aquele sorriso quente
e encantador, parecido com o do irmão. Dei um esbarrão em Ewren sem
querer e ele me segurou antes de eu cair no chão.

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― O que vocês duas tanto falavam lá trás? ― Fiquei vermelha e Lórien
riu.
― Estava contando pra ela o motivo de eu ter vindo na frente e ter
deixado você sozinho em Alamoutim! ― Ela mentia bem.
― Eu não sei que motivo é esse! ― Disse ele olhando para ela de forma
suspeita. Nós já estávamos em frente aos portões da cidade. Lórien então
correu até o portão fechado e bateu uma alça gigante de ferro. Pouco tempo
depois um Elfo de cabelos claros abriu o portão, ela o puxou pela parte de
cima da armadura e o beijou, ele soltou a espada surpreso, mas a retribuiu.
Ewren e eu ficamos olhando a cena sem saber o que fazer. Ele parecia querer
se esconder em algum lugar e esfregou o rosto com as mãos, eu disfarcei e
tentei pegar Feroz no colo, mas ele estava em tamanho grande, então quase
caí em cima dele tentando tirá-lo do chão para esconder meu embaraço.
Lórien soltou o guarda do portão, sorriu para nós dois e gritou.
― Viu? Assim que se faz! ― Ela o largou e veio nos arrastar para
dentro da cidade. Ewren revirou os olhos.
― Sei o motivo que a fez voltar pra casa logo! ― Falei baixinho.
― Percebe as coisas de fora, mas não as que acontecem ao seu redor...
― O quê? – O olhei de canto de olho.
― Nada! – Ele revirou os olhos.
― Bem-vinda! ― Sussurrou Lórien para mim. Olhei para Ewren,
quando atravessamos os portões seus olhos mudaram, foi como se tivesse
trocado de lugar com outra pessoa, esse Ewren que entrou na cidade era
outro. Olhei em volta, mesmo de noite a pequena cidade brilhava. As casas
eram em cima de árvores antigas, eram casas grandes que se prendiam
circulando os troncos das árvores, parecia que elas haviam sido plantadas
no interior das casas e as levado para o alto conforme cresciam, estavam
cobertas por heras e trepadeiras, essas tinham uma fosforescência e seu
brilho era sutil, porém muito bonito.
Lórien ia à frente, quase saltitando, de vez em quando ela se virava
para ver meu rosto, como uma criança mostrando a alguém o que ela havia
acabado de fazer.

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As pedras das ruas eram perfeitamente lisas e polidas, como andar
num espelho, mas não eram escorregadias. A maioria dos habitantes
deveriam estar dormindo, pois além das luzes das plantas, a maioria das
casas estava escura. Foi como entrar num sonho, era um lugar tão calmo e
cheio de tranquilidade...
― Ali! ― Lórien apontou para uma rua, viramos a esquina e
começamos a subir uma pequena ladeira até chegar a uma casa que não
estava sobre as árvores, era maior que as outras e era murada também.
Fiquei um pouco decepcionada quando vi Ewren abrir o portão, fiquei
imaginando que iria passar a noite em uma casa na árvore. Olhei novamente
para a casa diferente das outras, todas as janelas dessa estavam abertas, elas
eram tão grandes que eu poderia ficar em pé nelas sem problemas, quando
percorri os olhos por todas, notei o que deveria ser um pequeno animal
branco deitado em uma delas. Uma Raposa branca! Era pequenina, tinha três
caudas, mas era tão fofa! Ela levantou as orelhas quando Ewren bateu o
portão atrás de nós e pulou da janela aterrissando suavemente no ombro
dele.
― Chuva! ― Ele acariciou a raposinha que respondeu esfregando-se
nele e enrolando seu pescoço com as caudas.
― É sua? ― Perguntei
― Mais ou menos, é da vila, mas sempre esteve aqui em casa. ― Ele a
pegou no colo, colocou em cima de mim e escutei Feroz bufar com ciúmes.
― Por que esse nome? ― Ela ficou me cheirando por um bom tempo
antes de finalmente lamber meu rosto e se enrolar em meu pescoço também.
― É um espírito da água, ela faz chover aqui na vila. ― A raposa pulou
de mim para Lórien, que atravessou o pequeno jardim e foi para a porta da
casa.
― Venham logo! ― Ela estava batendo na porta. Nos aproximamos,
fiquei atrás de Ewren e de Lórien para não ser vista logo de cara. A porta se
abriu e uma elfa apareceu. Ela era ainda mais linda que seus filhos! Tinha
longos cabelos cor de mel e olhos acinzentados.
― Bem-vindo de volta! ― Ela sorriu e abraçou Ewren, ele estava todo
sem jeito perto dela, parecia até desconfortável.
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― Hum, olá... mãe ― ela beijou a testa dele e fez um movimento para
que entrasse, depois ela olhou feio para Lórien.
― Você poderia ter me avisado que ia sair! ― Ela nem parecia estar
chamando atenção de Lórien, falava tão suavemente.
― Ewren estava com problemas! Só fui ajudar! ― Disse ela sem graça.
Lórien me arrastou para frente. ― Essa é Leona! Foi ela quem a Nena
entregou para Ewren levar para a torre das nuvens! ― Eu me encolhi.
― Olá! Seja bem-vinda, meu nome é Arin! ― Ela sorriu para mim e me
beijou na testa também. Arin! Que nome diferente! Fiquei feliz em conhecê-
la.
― Obrigada! ― Eu não sabia mais o que falar, estava parada de boca
semi-aberta admirando-a.
― Vamos, entrem! ― Lórien pegou meu braço e saiu me levando casa
adentro, a casa era bonita e bem espaçosa, com uma decoração linda e
natural, as luzes eram tão diferentes e espalhadas de tal forma que pareciam
estrelas no teto da casa. Atravessamos a sala de visitas, subimos a escada até
o segundo andar e entramos na terceira porta à esquerda.
― É meu quarto! ― Lórien parecia uma criança brincalhona. Ela
moveu as mãos para o teto e uma enorme bola de luz prateada se acendeu.
Era como estar num planetário! Havia uma lua cheia e centenas de
estrelas no teto. Sua cama era de madeiras retorcidas, como se uma árvore
tivesse sido moldada em uma cama, na verdade, todos os móveis eram do
mesmo estilo. Havia vaga-lumes voando e podia até sentir o cheiro de grama
e folhas secas. ― Eu criei esse quarto enquanto aprendia a usar meus
poderes! ― Ela sentou-se na cama para olhar o teto. ― Não me canso de
olhar para ele!
― É incrível! Será que minha mãe liga se eu fizer no meu quarto? ―
Quando pensei nisso, meu estômago afundou... tinha que ir para casa, mas
cada dia que se passava, eu tinha menos vontade de voltar.
― Não se preocupe! ― Disse Lórien esfregando minhas costas, parecia
que tinha lido minha mente― você ainda vai poder nos visitar! É só me
avisar quando for vir! Aí eu vou até onde o portal se abrir para te buscar!

154
― Como irei te avisar? Não posso nem te mandar uma carta! ― Ela
revirou os olhos, foi até a cômoda, abriu a última gaveta e tirou dois
pequenos espelhos com moldura de bambu. Logo em seguida usou sua unha
para cortar meu dedo. ― Ei! ― Ela pingou o sangue nas duas superfícies do
espelho que brilharam, depois cortou o próprio dedo e pingou o sangue
neles também. O vidro absorveu o sangue, então ela me entregou um.
― Quero ver Leona! ― Disse ela perto do espelho que segurava. O
espelho que estava em minha mão tremeu e seu rosto apareceu nele, ela fez
uma careta e o espelho transmitiu. Ela me mostrou seu espelho e meu rosto
aparecia nele também. ― Pronto! Leve ele com você e eu sempre vou estar
lá!
― Como? ― Perguntei surpresa.
― Seu sangue! ― Ela riu ― Essa magia se limita a uma única vez, mas
com o seu, com certeza o efeito não vai passar, então toda vez que você me
chamar, onde eu estiver, se estiver nem que seja com um pedacinho desse
espelho, poderei ouvir você e te ver!
― Como assim, com o meu sangue? ― Ela ficou pálida.
― Você é uma maga humana e pura... ― explicou rapidamente ―
sangue de maga virgem, sabe? ― Eu a encarei por um minuto, mas dei de
ombros.
― Obrigada! ― Disse abraçando-a. Ela afagou minha cabeça e riu.
― Vou pegar alguma coisa para a gente comer! ― Disse ela saindo do
quarto ― tem um banheiro ali, pode usar! ― Ela saiu fechando a porta atrás
dela.
Feroz se esticou em cima da cama de Lórien e ficou rolando com as
patas para o alto. Entrei no banheiro com minhas roupas e fui tomar um
banho antes dela voltar com o lanche. Quando acabei, olhei meu reflexo no
espelho e peguei o pingente no meu pescoço fazendo-o crescer, me imaginei
do mesmo modo que cheguei aqui, com a mesma aparência física, eu mudei
rapidamente ficando como era antes, mas o efeito não durou e voltei a ficar
como o sangue do Aswang me deixou. Coloquei o pingente de volta no
pescoço, me vesti e virei para sair para o quarto, olhando de relance para o
reflexo no espelho, uma mancha negra me chamou a atenção, ela estava no
155
meu pescoço, onde Demétrius havia me perfurado com sua garra. A mancha
pulsou e cresceu, minha visão ficou embaçada, me sentei no chão do
banheiro e minha respiração ficou difícil. Tentei chamar por Lórien, mas
minha voz quase não saía.
Ewren abriu a porta do banheiro e me pegou do chão, me colocou na
cama de Lórien e afastou meu cabelo para que pudesse ver a mancha.
― Ewren... ― Eu tentei falar, mas não saiu som algum.
― Fique quieta! Por Deus! Você não consegue ficar mais de uma hora
sem me arrumar algum problema, não é? Lórien! ― Ele falou o nome dela
baixo, mesmo assim ela o escutou de onde quer que estivesse, pois em pouco
tempo apareceu na porta com uma bandeja e duas tigelas. Me senti inútil,
ainda mais depois de ele me dizer que só arrumava problemas. Mas era como
se meu corpo estivesse seco, eu não tinha lágrimas para chorar.
― O que é isso? ― Lórien colocou a bandeja na mesinha de cabeceira
e veio mais perto para ver a mancha.
― É veneno daquele Abissal nojento! Vou buscar um antídoto, fique
com ela e não deixe ela se mover, para não espalhar mais rápido! ― Ele saiu
bufando e batendo o pé.
― Não se preocupe! Não é muito letal! ― Isso foi para me animar? ―
Ewren também não está com raiva de você, só da sua incapacidade de
perceber perigo e se afastar dele! ― Lórien pegou uma bolha de vidro e a
colocou bem perto da mancha, murmurou uma melodia baixinho, então a
bolha grudou no meu pescoço e eu senti como se todo meu sangue passasse
por aquela bolha, ficou nisso por quase cinco minutos até que ela começou
a se encher de um líquido azulado, e quando a bolha começou a absorver o
sangue também, Lórien a retirou e colocou um lenço em meu pescoço para
limpar o sangue.
― Prontinho! ― Ela revirou a bolha com veneno e sangue. ― Ewren
vai ficar com muita raiva de mim!
― Por quê? Você não me curou? ― Perguntei coçando por cima do
pano que ela havia colocado.

156
― Ele está lá embaixo fazendo um antídoto! Veneno de Abissal é
demorado para sair do corpo, ia ter que tomar uma poção nojenta com gosto
de alga amarga por três dias até o veneno sumir completamente!
― E por que você não falou que ia fazer isso? ― Perguntei olhando
sua cara de diversão.
― Por que eu meio que inventei esse modo de tirar veneno! É como se
alguém o sugasse de dentro de você! Mas para isso eu tive que calcular por
quanto tempo você está ferida para não errar o tamanho da bolha, se eu
fizesse maior do que o necessário, poderia fazer todas as suas veias
estourarem e aí você iria morrer. ― Ela deu um sorriso sádico enquanto
girava a bolha na mão! Por que eles falavam tão naturalmente de modos que
eu poderia morrer?
― Mas você já é habilidosa com isso, não é? O fez muitas vezes! ― Ela
escondeu a boca com a mão e me olhou de canto de olho.
― Você foi minha primeira cobaia humana! ― Lórien falou isso e caiu
na gargalhada ― Inventei esse método tem alguns meses. Mas só testei em
animais feridos por cobras e nagas! ― Fiquei ali sentada olhando-a.
― Você é definitivamente louca de pedra! ― Disse cada palavra
lentamente para que ela entendesse. Ela piscou para mim.
― Sem um pouquinho de loucura, a sanidade não valeria quase nada!
― Ewren entrou no quarto com uma caneca de vidro cheia de uma gosma
verde, Lórien sacudiu a bolha para ele, que ficou de boca aberta e quase
deixou a caneca cair.
― Você testou isso nela? ― Ele parecia não acreditar no que estava
vendo ― Podia ter matado ela, Lórien! Ficou louca!
― Mas deu tudo certo! ― Respondeu ela sorrindo alegremente, ele
respirou fundo, colocou a caneca na mesinha e saiu do quarto, fechando a
porta delicadamente atrás dele.
― Vou passar longe dele hoje! ― Disse ela pegando uma das tigelas
com sopa e me entregando.
― Por quê? ― Peguei a tigela e uns pãezinhos e comecei a comer.

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― Quando ele fica assim, muito calmo ou em silêncio, é quando ele
fica mais irritado!
― Entendo! Minha mãe fazia isso também, quando ela se irritava
comigo e com meu irmão, ela ficava calma e saía andando como se nada
tivesse acontecido, mas quando ela voltava, eu podia correr para o outro
lado da cidade que a vassoura que ela atirou me acertava em cheio e deixava
uma marca que não desaparecia por dia! ― Lórien quase engasgou com a
sopa de tanto rir.
Ficamos ali conversando boa parte da noite, depois Lórien ficou
deitada do meu lado cantando e afagando meus cabelos e fechei os olhos
apenas por um instante para descansá-los, mas não queria dormir.

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7

ram duas da manhã quando acordei com sede, Lórien não

E estava mais no quarto, apenas Feroz, deitado todo esticado


na beirada da cama. Saí do quarto como um gato ladrão, na
pontinha dos pés. Não queria acordar ninguém, só queria
achar a cozinha e tomar um pouco de água.
Desci as escadas, virei no corredor próximo à porta por onde entramos
e um pouco mais para frente tinha uma luz acesa. Ouvi vozes e fui me
aproximando bem devagar para tentar ouvir a conversa. Eram as vozes de
Lórien e Ewren.
― Mas não é culpa dela! ― Lórien estava falando.
― Eu sei disso! Em parte é minha culpa, pois deveria ter arrumado
outra pessoa para levá-la! Talvez um elfo da floresta de Górtia tivesse sido
melhor! A essa altura ela estaria em casa e talvez nem soubesse que é uma
maga! ― Eles estavam falando de mim.
― Mas lhe pediu esse favor por algum motivo. Ela poderia ter
escolhido qualquer outro, mas confiou em você! Talvez se outra pessoa a
levasse, não se preocuparia em esperar eles abrirem os portais e saber se ela
foi em segurança!
― Eu sei, Lórien! É por isso que vou levá-la até lá, para ter certeza de
que ela voltou pra casa.
― Ótimo! Faça isso e pare de reclamar. Leona é um amor de menina e
você é um chato! Deveria tratar ela melhor!
― Eu trato bem demais! Tratei-a um pouco melhor algumas vezes e
olha no que deu! ― Ele parecia frustrado.

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― Qual é o problema dela estar apaixonada por você? ― Ela sabia,
achei que fosse brincadeira dela!
― O problema dela se apegar a mim é que vai acabar se magoando
depois! E não preciso de mais esse problema! Ela é um imã para tudo de ruim!
― Mas você sabe que é por causa da natureza dela! E você está atraído
por ela, não minta para mim, sei que você gosta dela! Olha como você está!
Está melhor agora do que na época de Emma! ― Meu coração acelerou
novamente quando ouvi as palavras de Lórien.
― Elas não são nem um pouco parecidas, Emma era doce, graciosa e
gentil! Leona é quase como um bicho selvagem! Ela me derrubou duas vezes,
sabia? Ainda tenho uma cicatriz nas costas para provar ― Lembrei do
sonífero e da cadeirada nas costas dele e sorri.
― Talvez essa diferença que te deixou assim, ela é o oposto do que
você esperava quando Nellena te pediu para levar uma menina até lá! ―
Disse ela ― É por isso que digo novamente, ela é muito forte! Se fosse
treinada por mim, poderia ser tão forte quanto eu e até melhor que você,
então poderia ficar aqui, ela não seria mais uma pessoa vulnerável! ― cada
vez que Lórien falava, eu a amava mais!
― Lórien, é diferente! Ela tem uma casa para voltar com pessoas que
a amam! Eu não a tomaria deles mesmo se a quisesse! Ela vai estar em
segurança do outro lado dos portais no mundo dela! ― Ele suspirou ― Lá o
sangue dela não vale de nada, não vai atrair ninguém!
― Você sabe um jeito disso parar! Viu acontecer antes! ― Ewren riu
debochando.
― Vi! E esse é mais um exemplo de que as coisas podem piorar! ―
Lórien não desistia de discutir mesmo com cada novo motivo que ele
arrumava.
― Aeban quebrou a maldição da Sacerdotisa, você sabe disso! Ela não
ia mais ser perseguida! ― Disse ela furiosa.
― Pois é, correu tudo às mil maravilhas depois do ritual, não é? Se
lembra? A sacerdotisa acabou tendo que abandonar Amantia do mesmo

160
jeito! ― Pude ouvir o sarcasmo em sua voz, eu queria tanto perguntar quem
era essa de quem eles falavam, mas estava escutando escondida.
― Ewren, você está só arrumando desculpas! ― Ela parecia estar
cansando da discussão.
― Eu não quero a Leona aqui, quero que ela vá embora e ainda vou
pedir para que Aristes lacre os outros portais para que ela nunca mais volte!
― Ele gritou e bateu na mesa. Senti meu coração despedaçar como vidro
atirado ao chão.
― Ewren! Por quê? ― Ela perguntou baixinho como se o
repreendesse.
― Porque cansei de cuidar de crianças, não sou babá! Não a quero aqui
e vou fazer de tudo para que ela vá para casa e não volte, entendeu? ― Pude
ouvir a cadeira que ele estava sentado arrastando bruscamente contra o
chão. Corri de volta ao quarto torcendo para que eles não me ouvissem subir.
Tropecei no tapete do quarto de Lórien ao entrar e caí de joelhos ao lado da
cama. Havia um caroço em minha garganta e meu coração batia
dolorosamente, era apenas um estorvo para ele, alguém que estava só lhe
causando problemas.
Mas eu não iria ficar chorando aqui, sequei as lágrimas de meu rosto,
tinha que ser rápida. Montei o plano na cabeça, iria definitivamente seguir
sozinha. Peguei minhas coisas e as arrumei na mochila, apenas o que eu
precisava e algumas lembranças, o básico que eu poderia carregar sem
dificultar a viagem, já tinha uma ideia do que faria a seguir. Se ele não me
quer aqui, se eu sou um fardo, eu vou sozinha! Doeu pensar isso, pois nunca
mais iria vê-lo.
Eu realmente o amava, não fazia ideia de em qual momento me
apaixonei por aquele bruto e grosseiro, mas ia ser doloroso nunca mais ver
aqueles olhos prateados. As coisas que coloquei na mochila poderia levar
para casa e dizer que comprei numa feira de artesanato, pois assim não
levantaria suspeitas. Quando terminei de arrumar, olhei em volta. Sentia
que estava me despedindo para sempre, ia ser como despertar de um sonho,
igual àqueles sonhos que tentamos dormir novamente para tentar saber o

161
final, mas não importa quantas vezes você tente, você nunca volta para o
mesmo sonho, então não ia ser assim...
Fiz um carinho em Feroz, ele levantou as orelhas, mas não abriu os
olhos. Ainda devia estar sob efeito do remédio que Demétrius deu para ele.
― Feroz! ― Disse bem baixinho ― Cuide bem deles para mim. ― Apertei
meu rosto contra seu pelo macio, para não chorar fiquei dizendo para mim
mesma “é apenas um até logo, amanhã eu volto! ” Tentei acreditar nisso
enquanto caminhava pelo quarto até a janela, como tinha notado da rua, era
realmente grande e eu podia ficar em pé nela facilmente.
Segurei firme o pingente e o fiz crescer, tirei uma folha de papel da
mesinha de Lórien e a transformei numa águia gigante de papel, ela bateu
as asas fazendo um forte vento e derrubando algumas coisas no quarto, torci
para ninguém ter escutado. A águia voou alto e ficou pairando sob a janela.
Antes de sair, peguei todo o dinheiro que havia sobrado e deixei em cima da
cômoda com um bilhete. “Ewren, obrigada pelos seus serviços, aonde vou,
não precisarei disso”. Parecia grosseiro, mas ia ficar assim mesmo, ele
merecia aquelas palavras. Olhei para minha escrita bem trabalhada de anos
usando cadernos de caligrafia. Fui até a janela e pulei sobre a águia de papel,
ela tremeu um pouco, mas parecia suportar meu peso facilmente, fiquei de
olhos fechados por alguns segundos torcendo para ela não se desfazer.
Quando percebi que ela não iria sumir, dei a ordem de onde ela deveria ir.
― Para a torre das nuvens, o mais rápido que você puder! ― A águia
obedeceu, me segurei enquanto ela disparava cortando os céus, vi as luzes
da cidade ficando para trás e cada vez se afastando mais. Meus olhos se
encheram de lágrimas novamente. Está tudo bem! Só estou indo para casa!
Eu sabia que era onde eu deveria estar e que precisava ir, mas sentia que esse
era meu lugar, parecia que eu havia nascido, crescido e vivido toda minha
vida aqui, era como se o mundo que eu estava prestes a entrar, fosse o
mundo surreal.
Olhei para baixo novamente e não havia sinal de cidades ou vilas.
Ainda estava bastante escuro e fiquei com um pouco de medo olhando
para baixo naquela escuridão, a águia era bastante silenciosa, só ouvia
poucas vezes suas asas batendo rapidamente para manter-nos planando.

162
Acabei cochilando, quando acordei os sóis já surgiam, tingindo os céus de
cores maravilhosas, senti um frio na espinha ao avistar uma pequena vila ao
meu lado esquerdo, parecia algo familiar e fiquei olhando para ela para
tentar entender o que havia de errado. Uma nuvem cresceu um pouco à
minha frente tomando forma de um homem gigante dizendo com uma voz
de trovões:
― Você não tem autorização para sobrevoar essa área! Desça
imediatamente! ― Continuei voando com receio de descer ― Você tem dez
segundos para descer! ― O gigante de nuvens começou uma contagem, não
sabia o que fazer, se eu descesse, estaria vulnerável no chão e não sabia nada
sobre o local que estava sobrevoando, poderia ser um lugar muito perigoso,
afinal, era um território hostil. Quando o gigante de nuvens terminou a
contagem, ele ergueu suas mãos e as bateu, desmanchando-se e fazendo uma
onda de choque tão poderosa que fez o vento e as nuvens virem em minha
direção. Agarrei-me fortemente a águia, mas quando o vento forte a tocou,
ela se desfez em milhares de confetes de papel e fui atirada longe. Segurei o
cajado e pensei em qualquer coisa que pudesse amortecer minha queda, mas
antes que caísse, alguém me segurou. Eu estava com as mãos nos olhos, fiz
um check-up mental para ver se meu corpo estava inteiro, estava tudo bem,
ainda, então abri meus olhos lentamente para ver quem era.
Arin estava me segurando. Arin! O que ela fazia aqui? Como me achou?
― Poderia ter me chamado e dito que não queria mais seguir viagem
com Ewren! ― Ela estava séria, aborrecida, como uma mãe que pega o filho
travesso fazendo uma coisa errada.
― Bem, desculpe, me decidi de última hora que queria ir sozinha... ―
ela revirou os olhos igual à Lórien. ― Não sabia que eu não poderia voar por
aqui, achei que só os elfos negros não podiam.
― Você não tem um registro, então você representa uma ameaça
também! ― Eu fiquei envergonhada.
― Só queria ir logo para casa e não causar mais problemas a ninguém!
Ewren ficou muito chateado? ― Perguntei.
― Eles nem perceberam que você partiu, dormiram discutindo na
sala, eu escutei um barulho no quarto de Lórien e depois vi uma águia de
163
papel rodeando minha casa. Então concluí que você ouviu a conversa deles
e fugiu ou resolveu chamar a atenção de toda a cidade fazendo um
espetáculo aéreo! ― Fiquei mais envergonhada ainda. Arin desviou o voo e
começou a descer.
― Aonde vamos? ― Estava com medo dela voltar para casa e entregar
minha escapada a Ewren e Lórien.
― Tomar café, depois vamos para a torre das Nuvens! ― Ela falou com
toda calma.
Pousamos dentro da Vila que agora a pouco quis me derrubar. Um
homem de cabelos espetados veio correndo até nós.
― Vocês aí... Ah, Senhora Arin! ― Ele ficou completamente sem graça
quando viu quem estava comigo.
― Olá Dracir! ― Disse ela cordialmente ao homem. Ele tinha uma
aparência estranha, pele meio esverdeada como dos aswangs que
encontramos no deserto, mas não parecia ser um deles.
― Perdão senhora, achei que a menina fosse alguma espiã! ― Ele
abaixou a cabeça quando ela se aproximou dele.
― Está tudo bem! Não está, Leona?
― Está sim! ― Eu tentei sorrir, porém pareceu forçado.
― Então o que posso fazer por vocês? ― Ele perguntou abaixando-se
ligeiramente, como se sentisse intimidado pela presença de Arin.
― Por enquanto nada, Dracir! ― Ela fez um gesto para que ele se
afastasse. Ele fez uma reverência e se afastou. Eu a segui até um prédio que
parecia ser uma casa de chá. Arin entrou, a segui enquanto ela escolhia um
bom lugar para sentar, o lugar era até bonitinho, com decoração delicada de
tons pastéis, parecia uma casa de avó. Arin sentou-se e imediatamente
apareceu uma jovem para servi-la. Ela pediu algo para comer e depois olhou
para mim para que eu pedisse o meu café. Pedi a primeira coisa que vi no
cardápio e fiquei sentada de cabeça baixa. Depois de um bom tempo em
silêncio, ela suspirou e começou a falar.
― Por que você saiu assim? ― Sua voz era doce novamente.

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― Não queria mais ser um estorvo para ninguém! ― Estava falando
de Ewren e ela sabia.
― Eu te levaria imediatamente se você tivesse pedido! ― Ela parecia
irritada, mas seu tom de voz não deixava isso claro ― Meu filho pode ser
estúpido e grosseiro, mas ele se arriscou para te trazer até aqui em
segurança e você faz essa bobagem! ― Ela realmente estava irritada, só
minha presença já colocava Ewren em perigo e eu fui ingrata de me pôr em
risco por ter ficado magoada.
― Sinto muito! ― Foi tudo que consegui dizer.
― Eu sei que sente, mas antes de tomar decisões, você tem que pensar
no que as outras pessoas fazem por você... Leona quero te contar uma coisa
que meus filhos suspeitam, mas ainda não têm certeza, para te dizer isso,
você tem que manter a calma... ― quando ela ia começar a falar, a jovem
trouxe o café e falou três paravas em outra língua, pareceu algo muito sério,
pois Arin endureceu e fechou os olhos. Quando a jovem se afastou, perguntei
o que ela ia dizer.
― Tome seu café primeiro! ― Disse ela rapidamente. Nem sei o que
havia pedido, era pegajoso e cinza. Coloquei uma colherada na boca, tinha
gosto de aveia, mas ainda assim era muito estranho ao paladar. Mesmo assim
comi, engolindo rapidamente as colheradas para não as devolver ao prato.
Quando terminamos de comer, Arin levantou-se, pagou a conta e saiu.
Fui atrás dela sem entender sua repentina mudança de humor. Do lado de
fora do estabelecimento, ela abriu os braços para o sol Sirius e mudou de
aparência, eu não consegui acreditar, por mais que tenha visto Ewren e
Lórien fazerem algo parecido, foi como olhar para o sol e depois passar a
vida trancada em um quarto escuro.
Seus cabelos castanhos ficaram dourados, em seu braço direito
apareceram vários aros como pulseiras douradas e em sua testa uma
pequena flor de lis da mesma cor. Suas asas eram tão grandes quanto as de
Ewren, mas eram brancas e seus olhos ficaram em cor de âmbar.
― Vamos! ― Disse ela sorrindo ― dessa forma chegaremos lá em
poucas horas de voo! ― Ela esticou a mão para mim e a segurei, então ela
me pegou no colo e deu um salto. Disparamos no céu como uma bala. Mal
165
consegui erguer minha cabeça com a pressão do voo. Depois de alguns
instantes ela ficou em linha reta, foi aí que consegui levantar a cabeça. Arin
tinha um olhar entristecido, mas quando me viu olhar para ela, sorriu.
― Arin? ― Eu queria conversar, quebrar o silêncio e distraí-la, mas
não tinha ideia do que dizer, então perguntei a primeira coisa que me veio à
cabeça ― Por que não tem carros aqui? ― “Sério gênio? Foi isso mesmo que
você conseguiu perguntar? ” Arin sorriu.
― Já trouxeram carros para cá antes, mas não deu nada certo! Além
de serem barulhentos, são muito poluentes. Em poucos dias que alguns
ficaram aqui, várias criaturas ficaram doentes com aquela fumaça que eles
soltam, sem falar que com a magia que existe por aqui, não tem lógica usar
uma coisa tão ultrapassada e sem segurança! ― Claro! Porque uma águia de
papel virar farelo no ar é um modo bem seguro de viajar” pensei.
― Entendo, isso acontece muito no meu mundo também... ― Eu
realmente não fazia a mínima ideia de como puxar assunto com ela.
― Aqui os cavalos e Tigres do Sol como aquele que você deixou lá em
casa, são mais usados como montarias. São muito mais rápidos que carros e
são uma boa companhia, as carruagens voadoras também são uma boa
opção, mas aqui em Edro elas são pouco usadas. ― Disse ela num tom
desanimado ― Os gigantes não querem nem saber se você tem permissão
para voar com uma, eles simplesmente te derrubam!
― Eu não vi nenhum gigante desde que estou aqui! ― Disse, na
verdade não tinha visto nem a metade das criaturas que Ewren e Nena
disseram habitar por aqui.
― Dê graças por isso! Nem eu me arrisco a enfrentar um gigante
sozinha!
― E enfrenta outras criaturas? ― Eu a imaginava como uma
diplomata, uma soberana talvez, mas não uma guerreira.
― Sim, eu era General do Exército de Górtia antes de me casar com o
Pai de Ewren... ― ela mudou para uma expressão terna e saudosa. ― Ele era
maravilhoso, era Major, muito forte também! Nós nos conhecemos
brigando! ― Ela riu da lembrança que espelhava em seus olhos. ― Eu estava
ensinando alguns soldados a lutar com espadas duplas e ele veio me dizer
166
que eu estava errando, então o mandei se colocar em seu lugar, mas ele
continuou dizendo que o modo que eu estava ensinando era o errado, então
sugeri que se ele me vencesse, que ensinasse do modo dele! ― O sorriso dela
foi enorme.
― Ele venceu? ― Perguntei curiosamente.
― Não, perdeu no segundo golpe! E disse que me deixou vencer, pois
não queria humilhar alguém na minha posição! Depois, eu o observava
treinar todas as madrugadas até ficar melhor que eu.
― Onde ele está agora? ― Perguntei para não deixar o assunto morrer
e o silêncio voltar.
― Ele morreu no final da batalha contra os gigantes. Mas eu já
carregava Ewren, então abandonei o exército e me instalei na cidade de
Alamourtim por algum tempo antes de voltar para a Vila Safira. Ewren tinha
uns doze anos quando conheci o pai de Lórien. Ele era um homem bom, era
um boticário e herbologista, também um mago muito poderoso, mas quase
nunca utilizava seus poderes. Ele ensinou tudo que Ewren sabe sobre
venenos, remédios e poções, ele ficou muito habilidoso graças ao padrasto.
― E o que houve com ele?
― Ele desapareceu há muito tempo, foi chamado para uma expedição
com um grupo de reconhecimento ao mundo dos sons, o décimo primeiro
mundo do círculo, e nunca mais voltou.
― Você acha que ele ainda pode voltar? ― Perguntei
― Acho que não, o mundo dos sons é o maior de todos do círculo dos
Doze e o tempo lá passa muito rápido em relação a Amantia, alguns dias aqui
equivalem a meses lá. Lá os portais não abrem com tanta facilidade como
aqui, poucas pessoas que foram, retornaram, e os que voltaram estavam
muito velhos e não deram conclusões sobre o mundo. ― Me passou um frio
na espinha quando imaginei o que aconteceria se tivesse caído lá.
― Círculo dos doze? ― Perguntei tentando arrancá-la de seus
pensamentos.
― Sim, é como uma espiral que prende os doze mundos das doze
dimensões diferentes num mesmo lugar. O seu mundo, a terra, é o quinto

167
mundo, esse aqui é o primeiro. ― Ela movia a boca silenciosamente, fazendo
uma conta.
― Não entendi, como num mesmo lugar?
― Por exemplo, estamos sobrevoando a floresta Kiralum, a floresta
dos mortos. Mas se eu pudesse abrir um portal direto aqui e agora, esse
mesmo lugar que estamos corresponde a um ponto fixo no seu mundo, ou a
um ponto fixo no mundo dos ventos, os portais se abrem sempre como se os
mundos estivessem alinhados e unidos.
― Como o portal que caí? Então o lago que eu caí fica embaixo da loja
do velhinho onde abri o portal?
Arin riu.
― Mais ou menos, não embaixo, mas no mesmo lugar! ― Disse ela.
― Como um mundo dentro do outro! ― Concluí, era incrível. ― Mas
eu caí por horas! Como pode ser no mesmo lugar?
― Você atravessou um portal não natural que é parecido com o direto,
vai sempre levar ao local em que os mundos se encontram, mas é um portal
feito por algum mago ou bruxa para fins comerciais. Normalmente ficam
ligados a locais não habitados para que eles possam passar com contrabando
despercebidos dos outros! Você deu muita sorte de ter tirado o espelho de
um lugar, colocado em outro e ter caído perto de uma das casas de Nellena.
― Então, se eu não tivesse tirado o espelho da casa da velhinha, eu
cairia em outro lugar? ― Perguntei.
― Sim, sua sorte foi ter caído na água...
― Legal!
― Os Magos Salamandras e os Metamorfos têm uma habilidade
incrível para abrir os portais diretos mais rapidamente, o que demora em
média dois dias de preparação, eles fazem em algumas horas! ― Um traço
de preocupação passou por seus olhos.
― Então, daqui a algumas horas estarei em casa... ― eu estava tão
louca para voltar para casa no dia que cheguei aqui, e agora? Eu sentia falta
da minha mãe, de Leonard, de Lucy, mas não conseguia desfazer aquele nó
na minha garganta. Eu não queria partir, de certa forma eu queria ficar, mas

168
sabia que não podia. ― Arin? Por que Black Jango está atrás de mim? ―
Perguntei e senti seu corpo enrijecer com a tensão.
― Não posso dizer ao certo, mas acredito que ele esteja cumprindo
ordens.
― De quem? ― Insisti, ela sabia de algo, pela sua reação ela sabia e
não queria me contar.
― Arcádius, um mago muito abominável que tenta por séculos ganhar
o controle total desse mundo. Se ele conseguir todo o poder que deseja, ele
acha que vai conseguir realizar esse feito.
― Então ele está atrás de mim por que acha que meu sangue pode o
fazer ser o mais poderoso?
― Ele está atrás de você porque tem certeza de que seu sangue vai dar
o que ele precisa. ― Respondeu ela.
― Isso é ridículo! Quer dizer, já vi algumas coisas estranhas, mas seria
impossível o meu sangue fazer alguma diferença para o poder de alguém! E
como ele me encontrou? Como saberia que eu estava aqui? ― Ela me olhou
com severidade.
― Acha que estou mentindo para você? Ele é um mago muito
poderoso, possui feitiços que poderiam encontrar uma pérola no mar das
conchas sem ao menos chegar perto da água! ― Então Arin fechou as asas e
entrou em queda livre. Agarrei-me em seu pescoço e prendi a respiração, ela
passou pelas árvores sem ao menos ser tocada pelas folhas e pousou
suavemente no solo. A floresta era muito escura, o sol quase não chegava
aqui e demorou muito para minha visão se acostumar. A única luz que eu via
era a que emanava de Arin.
Ela fez aparecer um arco dourado e uma flecha e a disparou. A flecha
passou zunindo por mim e desapareceu entre as árvores. Pouco depois
escutei um urro e grunhidos.
Arin então andou em direção ao som, quando cheguei bem perto pude
ver um animal enorme à beira da morte com a flecha cravada em seu
pescoço.

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― Um lobo? ― Impossível ser um lobo comum, era grande demais
para ser um e seu pelo era prateado.
― É um Waheela, uma espécie de lobo misturado com urso. ― Ela
começou a pronunciar palavras estranhas e correntes de prata prenderam o
Waheela ao chão. Ela retirou a flecha do animal, que ganiu e se contorceu de
dor, depois começou a tentar uivar, mas o corte em seu pescoço era
profundo demais.
― Me dê sua mão, Leona ― eu estiquei a mão como ela ordenou, Arin
então passou a unha de sua mão abrindo um corte em minha palma. Eu
suguei o ar, ela segurou minha mão de modo que formasse uma concha,
quando já estava cheia de sangue, ela olhou para mim. ― Preste atenção! ―
Arin abriu a boca do Waheela e virou meu sangue na boca do animal, que se
debatia debilmente no chão, ficamos ali observando o bicho, ele parou de
agonizar e ficou em silêncio, não respirava mais. Alguns minutos se
passaram, o silêncio era tenso, ia indagar o que havia acontecido com o lobo,
então uma forte luz saiu do animal, Arin me agarrou e deu um pulo para trás.
O Waheela estava de pé, havia arrebentado as correntes, dobrado de
tamanho, seu pelo estava com um brilho azulado e em sua pata direita
haviam marcas prateadas formando o desenho de uma corrente. Caí de
joelhos ao ver o animal ali, de pé e com o dobro do tamanho, agora parecia
um elefante na altura. Ele farejou o ar e se virou para correr, derrubando
algumas árvores na fuga.
― Entendeu agora? Você é descendente direta da família Arbarus ―
Arin olhava para onde o Waheela havia fugido. Meu sangue ainda pingava
da mão, onde as gotas caíam na terra, brotavam pequenas flores vermelhas
e brilhantes. Arin a levantou e a assoprou, no mesmo instante que o ar
gelado saiu de sua boca, minha mão se curou imediatamente.
― Vamos! ― Disse ela me pegando e voando novamente. Eu estava
em choque, até agora eu não tinha realmente acreditado nesse poder que
podia ou não existir no meu sangue. Um bom tempo depois, consegui falar
novamente.
― Mas ouvi Lórien dizer que tinha um jeito desse poder desaparecer
do meu sangue!

170
― É, mas sempre tem um risco, então não é uma boa ideia! ― Sua
expressão era mais tensa e sua boca havia se estreitado em uma fina linha.
― Mas o que é? O ritual? ― Arin fechou os olhos ― Não vou pedir
ajuda de ninguém, talvez possa fazer sozinha! ― Ela me olhou docemente e
sorriu.
― Você não poderia realizar esse ritual sozinha, pois não teria
nenhum efeito! Agora deixe isso de lado e olhe lá! ― Ela apontou com o
queixo para um ponto no meio das nuvens, bem a nossa frente. Eu mal
conseguia ver, pois as nuvens faziam colunas como redemoinhos em volta
de algo cintilante e azul. Ao chegar mais perto, deu para ver o que ela estava
tentando me mostrar. Era simplesmente maravilhoso, o lugar mais lindo que
já vi! A cidade era completamente envolta em nuvens, mas parecia um sino
dos ventos gigante, a cidade flutuava e brilhava, eu tenho certeza que podia
ouvir música vinda de onde os ventos batiam nos prédios azuis da cidade.
Arin diminuiu a velocidade do voo e foi descendo lentamente até um
ponto que parecia ser uma pequena praça. Quando pousamos, uma criança
de olhos amarelos e cabelos azuis veio nos receber.
― Senhora Arin! Quanto tempo! ― Ela sorriu para Arin e beijou sua
mão.
― Muito tempo, Datani! ― Disse ela para aquela criança, eu não sabia
ao certo se era um menino ou uma menina.
― Veio procurar o mestre Aristes? ― Perguntou a criança me olhando
desconfiada de canto de olho.
― Sim, tenho um pedido a lhe fazer, poderia nos levar até ele? ― A
criança balançou a cabeça e foi andando na nossa frente. A cidade era mais
linda de perto, a música que eu ouvia era mesmo do vento batendo nos
prédios, que eram feitos de um fino vidro brilhante. Andamos por algumas
ruas estreitas e subimos uma alameda inclinada até chegar a um tipo de
torre com uma abóbada gigante em cima e uma espécie de para raios no alto.
― Arin? ― Cochichei puxando sua roupa ― para que precisa de para
raios aqui se estamos acima das nuvens? ― Ela riu.

171
― Não é um para raios ― cochichou de volta. ― É um aparelho que
causa ondas e vibrações para abrir os portais Artificiais!
Entramos naquele prédio e subimos por um elevador também de vidro
até a abóbada da torre. Subíamos em espiral, fiquei com medo de enjoar com
todas as voltas, mas chegamos antes de meu estômago me trair. Datani nos
guiou até a entrada da sala. A sala era como um laboratório gigante, o ar era
puro e o local era tão fresquinho que nem parecia que estávamos em um
ambiente fechado. Não havia caldeirões e livros antigos, tudo parecia
novinho em folha e parecia muito com um laboratório de química, com
exceção dos aparelhos gigantes que se espalhavam pelos cantos.
Um senhor pulou em nossa frente saindo de uma pilha do que
pareciam ser tecidos, tinha um jeito simpático e divertido no rosto e sua
aparência era mais divertida ainda. Ele possuía olhos laranja e pele azulada,
com os cabelos tipo um tufo de algodão em cima da cabeça. Quando nos viu,
se assustou, arrumou-se e ficou como um senhor normal, pele branca, cabelo
branco e olhos amarelos.
― Como o senhor fez isso? ― Perguntei, o vendo mudar de aparência
rapidamente sem usar nenhum tipo de magia.
― Ah, só porque sou velho, não significa que não consiga mais pular,
menininha! Minhas pernas são fortes como pernas de rã! ― Disse ele
flexionando e tencionando suas pernas. Eu ri.
― N-não! Quis dizer, mudar de aparência! ― Ele coçou a cabeça.
― Ué, é o que os metamorfos fazem! Posso mudar de aparência, de
forma e até me transformar em animais ou objetos se quiser!
― Incrível! ― Disse olhando fascinada enquanto ele mudava de
aparência. Quando ele viu que Arin estava atrás de mim, pigarreou e ficou
na aparência de um jovem bonito de cabelos brancos trançados e olhos
amarelos.
― Arin, flor das florestas! ― Disse-lhe beijando sua mão ― O que a
traz aqui? ― Arin o cumprimentou e mudou seu idioma para algum que
Aristes a entendesse sem que eu entendesse. Sua expressão mudou de
tranquila para preocupada enquanto Arin falava. Eles ficaram falando de um
jeito tenso por alguns instantes, por fim Aristes respirou fundo.
172
― Vou fazer os preparativos para abrir o portal, poderiam aguardar
na cidade? Peço para que retornem dentro de uma hora e estará tudo
pronto! ― Aristes sorriu para mim. ― Tem uma sorveteria na praça
principal com sabores vindos de toda Amantia, talvez você goste de tomar
alguns como lembrança daqui! ― Disse ele. ― Pode botar na minha conta!
― Ele se afastou, foi até um cilindro oco de vidro no meio da sala e abriu
uma porta nele.
Saí no encalço de Arin, descemos do prédio e seguimos até a praça que
Aristes falou. A sorveteria que ele havia dito era enorme e tinha tantos
sabores de sorvete que eu não podia contar. Cheguei perto de um freezer
gigante para escolher, mas Arin me arrastou para o outro lado rindo.
― Aquele lado ali são sabores vindos da Cidade das Cinzas.
― Hum?
― São salgados, por exemplo, tripas e órgãos! ― Quando ela disse isso,
eu devo ter parecido com um metamorfo, pois passei de verde para azul.
― Qual é seguro para mim, então? ― Perguntei.
― Aqui, todos desse lado vêm da floresta de Floresta de Górtia, Monte
Azul e Lótus Vale!
― Lótus Vale?
― Sim, e esse ― disse me mostrando um sorvete azul com pequenas
bolinhas amarelas ― é o favorito de Aeban.
― Eu quero provar esse! ― Disse sorrindo lembrando-me de Aeban,
eu sentia por ele um afeto muito grande. Acabei pegando uns cinco sabores
de sorvete e o favorito de Aeban em um potinho separado.
Eu o provei primeiro.
― É delicioso!
― Lavanda e sementes de Óris, uma flor doce que só cresce naquela
região.
― Essa bolinha tem sabor parecido com amora silvestre e mel! ―
Falei, era delicioso e eu nunca imaginei lavanda como um doce.

173
Ficamos ali tomando sorvete e conversando. Quando peguei um
último potinho de sorvete e voltei para a mesa ao ar livre na Praça, Arin
olhou para meu pote e riu.
― É sorvete de chocolate meio amargo com nozes? ― Ela perguntou
ainda sorrindo, apoiada em um dos cotovelos e descansando seu rosto com
a mão, lançando-me novamente aquele olhar maternal.
― É sim, é meu favorito! ― Disse enchendo a boca com aquele
delicioso sorvete.
― É o favorito de Ewren também! ― Um caroço voltou à minha
garganta e tive que lutar contra as lágrimas, havia feito um esforço tão
grande para mantê-lo longe dos meus pensamentos e ela o trouxe de volta
com uma coisa tão simples, nunca imaginaria Ewren tomando sorvete,
conversando e sorrindo normalmente.
― Desculpe ― disse ela olhando minha tristeza. ― Não imaginava que
ele fosse tão importante assim para você! ― Eu sorri tristemente.
― Eu não faço ideia de quando ele passou a ser tão importante assim
para mim... ― agora eu não conseguiria mais tomar um sorvete de chocolate
sem pensar nele.
― Ele se importa muito com você Leona! ― Ela afagou minha cabeça
enquanto falava ― se não fosse, ele jamais pediria para você ir para casa.
Aqui não é seguro para você! ― Eu não queria discutir. Eu sabia, ouvi as
palavras dele e senti sua frieza em cada uma delas quando ele disse que não
me queria aqui.
― Bom, está na hora, não é? ― Perguntei olhando em direção à torre
e vi aquele objeto parecido com um para raio se transformar em uma
plataforma gigante com um cilindro de vidro no meio. Aos poucos ela foi se
fechando até parecer com uma bolha de sabão gigante sobre a torre.
― Está sim! ― Disse ela. Nos levantamos e fomos novamente até a
torre, no caminho até lá, cada passo era tão doloroso que parecia que eu
pisava nos cacos de vidro retirados de meu coração.
― Aristes? Está feito? ― Perguntou Arin ao subir até a redoma de
vidro acima da cidade.

174
― Sim! ― Ele abriu uma porta no cilindro no meio da bolha. ― Entre
aqui, jovenzinha! ― Arin me abraçou e disse um “Adeus e não conte nada
disso a ninguém” baixinho em meu ouvido, Aristes segurou minha mão e me
guiou para dentro do cilindro que imediatamente se fechou, ele levantou um
dedo fazendo-me esperar e pegou um pequeno frasco de dentro de seu bolso.
Abriu novamente a porta e me entregou ― Beba! ― Eu bebi sem questionar.
― Vai fazer você voltar à sua forma humana normal enquanto estiver no
outro mundo, caso você volte algum dia, ele vai perder o efeito! ― Agradeci.
Eu estava sobre um espelho dentro daquele cilindro. Em volta da bolha,
subiram do chão quatro torres de metal com bolas douradas nas pontas e um
forte vento começou a soprar lá fora.
Aristes mexia em um enorme painel e Arin não tirava os olhos do
horizonte, falando com Aristes. Ele movimentava a mãos para ela.
A primeira torre de metal a minha esquerda começou a brilhar, em
cima dela apareceram nuvens de tempestade e um raio atingiu a torre,
fazendo-a lançar um feixe de luz em direção ao cilindro onde eu estava, no
topo do cilindro havia uma bola também de metal que quando atingida pelo
feixe, começou a ficar vermelha.
Uma a uma aconteceu a mesma coisa com as outras torres, até que a
bola em cima do cilindro que eu estava estivesse completamente vermelha.
O espelho embaixo de mim ficou com um fraco brilho e começou a se
distorcer. Fechei os olhos e desejei tanto que Ewren estivesse aqui para dizer
adeus.
Foi então que vi no horizonte um par de asas negras se aproximando.
Minhas mãos estavam abertas no vidro e meu coração parecia que ia
atravessá-lo de tanta emoção. Era Ewren, vinha voando rapidamente até
nós. Ele pousou perto do cilindro e colocou a mão no vidro, onde a minha
mão estava, apenas o vidro gelado nos separava.
― Até um dia ― disse ele dando um meio sorriso. Eu não consegui
suportar. Meus olhos encheram-se de lagrimas e meus pés tremeram sobre
a superfície mole do espelho.

175
― Você quebrou sua promessa... ― disse baixinho entre as lágrimas
encarando-o, tenho certeza de que ele me ouviu, pois desviou o olhar e
encarou Arin.
― De lembranças à sua mãe! ― Disse Aristes, olhei assustada para ele,
Ewren também e Arin bateu na testa num sinal de reprovação.
Foi então que senti uma forte dor em meus ossos e parecia que todas
as minhas juntas iriam se desmanchar, a superfície do espelho ficou líquida
e fui sugada pelo buraco que apareceu embaixo de mim. A última coisa que
vi foram os olhos prateados de Ewren enquanto caía no vazio novamente.

176
8

ui atirada para trás e bati em uma pilha de objetos duros,

F
endurecer.
fazendo-os cair em cima de mim. Levantei desajeitada e
me limpei de toda a poeira que havia caído sobre mim.
Olhei em volta cautelosamente, ainda não era nem meio
dia quando caí novamente na Terra. Olhei para minha
frente a tempo de ver o espelho pelo qual entrei em Amantia tremer e

Estava nos fundos do antiquário do vovô para quem vendi o espelho!


Levantei, corri para a frente da loja e notei que eu estava trancada aqui
dentro. Na porta da loja havia uma pequena plaquinha escrita “Estou
viajando, volto em um mês”.
Os muros dos fundos não eram tão altos, eu poderia pular com
facilidade, mas tive medo de alguém me ver. Sentei nos fundos de frente
para o espelho e aguardei a noite chegar para poder ir para casa. Meu reflexo
no espelho era o mesmo de quando parti, apenas as roupas e a pulseira de
Ami que estavam no meu braço me faziam ter a certeza de que não foi um
sonho. Enquanto esperava as horas passarem, eu colocava meus
pensamentos em ordem. Lembrei-me das últimas palavras de Aristes “Dê
lembranças à sua mãe” e um calafrio percorreu meu corpo, de onde ele a
conhecia? Fiquei por algumas horas quebrando a cabeça e tentando
imaginar, mas, mesmo que ele viajasse para cá, como ele saberia que eu era
sua filha? Só havia uma explicação para isso e eu não conseguia acreditar
que poderia ser verdade. A propósito, eu estava morrendo de fome a essa
altura.
177
Cochilei sentada ente aquele monte de entulhos e acordei com meu
celular tocando, peguei para atender e vi que era minha mãe.
― Alô? ― Disse inocentemente.
― Leona? Vai ficar morando na casa de Lucy para sempre? ― Disse
ela do outro lado da linha. Era tranquilizador escutar sua voz, mesmo que
fosse dando uma bronca.
― Estou indo mãe! Já já chego em casa! ― Disse limpando as lágrimas
do meu rosto.
― Estou te esperando para jantar! ― Disse ela e desligou. Me preparei
para pular o muro, mas aí veio um dilema em minha mente. O espelho! Eu
queria levá-lo, mas já tinha vendido para o velhinho! Se eu levasse, estaria
roubando-o. Pensei mais um pouco, então resolvi que iria levar comigo e no
outro dia iria tirar o dobro do dinheiro da minha poupança e colocar por
baixo da porta com um envelope e um bilhete ao dono do lugar.
Peguei minha calça de moletom e amarrei na borda do espelho para
descê-lo até o outro lado do muro sem o deixar cair e quebrar. Quando o
soltei no chão, pulei rapidamente o muro e fui caminhando em direção à
minha casa.
Chegando na frente do portão, senti cheiro de comida, meu estômago
roncou e eu entrei sorrindo. Mamãe estava na cozinha com Leonard
agarrado a ela e implorando para poder passar o fim de semana que vem na
casa de férias de um de seus amigos.
― Não! Já disse que não! Sossega menino! ― Disse ela o empurrando.
― Leona! ― Eu coloquei o espelho no chão e corri até ela.
― Mãe! Senti tanto a sua falta! ― Eu a abracei com força, queria sentir
o máximo do seu perfume e fiquei mexendo em seus longos cabelos
castanhos.
― Mal ficou dois dias fora e já ficou com tanta saudade assim? Estou
com medo de perguntar o que fizeram! ― Ela riu ― Vamos, vá se lavar para
jantar! Olhe seu cabelo cheio de teias de aranha! O que vocês estavam
fazendo? ― Estava toda empoeirada por causa da pilha de objetos que havia
aterrissado.

178
― Mexendo com coisas que não devíamos! ― Falei brincando.
Antes de subir as escadas olhei para ela de novo, sua aparência era tão
comum. “Não tem como ela ser uma maga, deve ter sido uma grande
confusão! ”
Peguei o espelho e subi as escadas para o meu quarto.
Minha cama estava forrada e o quarto estava todo limpinho e
arrumado, minha mãe deve ter faxinado tudo enquanto eu não estava. Corri
para o banho e fiquei lá quase meia hora, fazia tempo que não tomava um
banho tão bom assim.
Voltei para o quarto e tirei tudo da minha mochila. Peguei as joias que
havia comprado em Amantia e as escondi em uma caixa de sapatos, dentro
de uma tábua solta no assoalho embaixo da cama.
O espelho que Lórien me deu estava ali, olhei para sua superfície e
tentei engolir o caroço que se formou em minha garanta. Enrolei-o num
pano e coloquei em cima da caixa de sapato antes de botar a tábua e arrastar
a cama de volta para o lugar.
Tirei meu espelho antigo da parede e pendurei o de cristal no lugar
dele, havia ficado totalmente deslocado do resto da decoração, mas nem
liguei.
Tirei a toalha para me vestir e quando olhei minhas costas no espelho,
uma grande cicatriz rasgava minhas costas de fora a fora, passei a mão sobre
ela e lembrei de Ewren me salvando do vampiro logo depois de sairmos de
Alamoutim. Respirei fundo, não queria chorar! Meu telefone tocou tirando
minha mente do transe. ― Leo? ― Disse a voz que eu reconheceria em
qualquer mundo que estivesse.
― Lucy! Acabei de chegar em casa! ― Falei.
― Precisamos conversar amanhã na escola! Te acobertei por uma
noite e um dia inteiro! ― Ela riu ― Quero todos os detalhes!
― Certo, amanhã te conto! Agora vou Jantar ― disse desligando o
telefone e descendo as escadas correndo. Só haviam se passado quatorze
horas aqui desde que estive em Amantia, mas lá haviam se passado vinte e
oito dias.

179
Minha mãe havia feito minha comida favorita, frango frito com purê
de batatas. Comi até minha barriga estufar e bebi quase meia garrafa de
refrigerante.
― Que isso, filha? Parece que não come há um mês! ― Minha mãe me
olhava assustada.
― É muito boa a sua comida, mãe! ― Disse quase beijando o prato.
Leonard olhou para minha mãe e dela para mim novamente e riu.
― Vai ficar gorda! ― Eu engasguei com a sobremesa.
― Não enche! ― Disse como faria normalmente para não levantar
suspeitas. Minha vontade era de abraçá-lo também.
Deitei na minha cama e fiquei rolando nela, era tão macia! Não
demorei nada a pegar no sono.
Meu despertador tocou como sempre, fazendo-me pular da cama e ir
me arrumar para ir à escola. Coloquei um jeans confortável e uma blusa sem
mangas, pois fazia calor lá fora. Olhei o pequeno pingente em minha
cômoda, não sabia se iria funcionar fora de Amantia, mas o coloquei no
pescoço mesmo assim, pois já estava acostumada com ele lá.
Desci as escadas para tomar café e Leonard estava como sempre
agarrado em seu celular.
Engoli o café rapidamente, queria encontrar Lucy, dei um beijo em
minha mãe e saí correndo para a escola. Era tão estranho estar de volta em
casa, me sentia estranhamente deslocada, como se não pertencesse mais a
esse lugar, tudo que eu conhecia era pouco e existia muito mais, mas eu não
poderia contar a ninguém.
Talvez somente à Lucy, minha melhor amiga! Tenho certeza de que
ela não contaria a ninguém!
Passei as duas primeiras aulas fazendo as provas que perdi no dia
anterior (com uma falsa assinatura em um atestado médico, claro), depois
fiquei planejando como iria contar para Lucy, ela não acreditaria. Na
terceira aula fiquei de bobeira, não conseguia prestar atenção na chata
matéria de inglês no quadro. Quando o sinal tocou anunciando o intervalo,
corri para o pátio, onde Lucy acenava embaixo da árvore fazendo sinal que

180
havia guardado um lugar para mim no lugar de sempre, mesmo sendo as
únicas que sentávamos ali, o resto dos alunos ficava nos corredores dentro
da escola por causa do calor.
Sentei-me embaixo da árvore e Lucy me aguardava com um olhar
ansioso. Ela havia trazido lanches para nós duas.
― E aí? Com quem você saiu? O Fábio da sala dezesseis? Eu soube que
ele está interessado em você!
― Não, Lucy! Calma, muita calma! ― Respirei fundo ― Não é nada
disso que você está pensando! ― Então comecei a contar detalhe por detalhe
de toda a viagem e de tudo que tinha acontecido em Amantia, de Ewren, de
Lirien e Ami, tudo, cada detalhe. O sinal para o fim do intervalo tocou e não
entramos, permanecemos ali e continuei contando toda história para Lucy.
Depois de muito tempo falando, dei uma pausa para molhar a garganta
com o suco de pêssego que ela havia trazido.
― Não acredito! ― Disse ela me olhando séria.
― Acredite! ― Disse olhando no fundo dos olhos dela ― É a mais pura
verdade!
― Leona, acho que você ficou louca! Só pode! ― Ela parecia nervosa
― Isso não foi real! Você bateu a cabeça e se machucou, é isso! ― Então eu
tirei minha blusa e lhe mostrei a enorme cicatriz em minhas costas.
― IM-POS-SÍ-VEL! ― Ela ainda me olhava desconfiada. ― Você pode
ter machucado isso aí anteontem à noite!
― E ia estar curado desse jeito? Como uma cicatriz antiga? ― Lucy
pegou uma toalhinha, molhou e esfregou na cicatriz. ― Ai! Lucy! Ainda é
dolorida!
― Mas pode ser uma marca antiga!
― Lucy! Fomos à piscina juntas no sábado! Se essa cicatriz já estivesse
aí, você teria visto! ― Ela não acreditava. Lembrei da foto que tirei de Ewren
com o celular e de minha própria foto montada em Feroz. Mostrei para ela
e ela riu.
― Photoshop e imagem da internet! ― Disse ela ainda suspeitando de
mim. Então levantei e a puxei pelo braço. ― Venha, tive uma ideia! ― Fomos

181
até a quadra de esportes, tinha um vestiário com chuveiros na parte de trás
dele. Não tive dificuldades para usar um grampo e abrir o cadeado que
fechava o vestiário, entramos e Lucy acendeu as Luzes, então eu tirei o
pingente do pescoço e fiquei torcendo para meus poderes ainda
funcionarem aqui. Peguei o pingente com a mão esquerda e me concentrei,
senti o peso dele mudar e um calor em meu corpo. O espelho do vestiário
provou o que imaginei, minha aparência havia mudado! Lucy caiu sentada
no chão com a mão na boca e segurando um grito.
― Calma! ― Disse para ela. Ela tentou levantar apoiando-se no banco,
então, para provar a ela, transformei o banco em uma moto. Dessa vez,
mesmo com a mão na boca, saíram alguns gritinhos abafados. Fiz a moto
voltar a ser banco depois encolhi meu cajado de volta a pingente, voltando
à minha forma normal.
Lucy pulou em mim dando mais gritinhos.
― Não Acredito! Tenho uma amiga Maga de verdade! ― Ela não
parava de pular e surtar.
― Está Lucy, shh! ― Tentava conter o surto de Lucy antes que alguém
nos pegasse aqui e fossemos castigadas.
― E esse Ewren? ― Perguntou enquanto apagávamos as luzes e
saíamos do vestiário. Senti uma pontada no coração quando ela falou o nome
dele.
― O que tem ele? ― Perguntei disfarçando minha angustia
discretamente.
― Você gosta dele? ― Senti meu coração pular e meu rosto ficou
muito quente. ― Nem preciso de uma resposta! Seu rosto te denunciou! ―
Lucy riu.
― Nós somos incompatíveis, Lucy! E ele não gosta de mim.
― Se não gostasse, não teria ido se despedir, não acha? ― Ela sorria
arregalando aqueles olhos cor de caramelo para mim.
― Não, talvez ele tenha ido lá para pedir ao mago para fechar todos
os portais! ― Disse secamente, fazendo o possível para esquecê-lo de uma
vez.

182
― Sabe, para você montar um quebra-cabeças, você precisa de peças
diferentes. E quando você acha que uma peça é incompatível, você a gira e
ela encaixa perfeitamente onde você achou que ela não ia caber! ― Às vezes
eu tinha a certeza de que Lucy era uma velhinha presa no corpo de uma
adolescente.
Por ter matado as duas últimas aulas, estava na frente da escola alguns
minutos antes do sinal tocar. Minha mãe estava de carro lá na frente, o que
era estranho, pois ela nunca vinha na escola me buscar. Dei tchau à Lucy e
corri em Direção ao carro.
― Mãe? Está tudo bem? ― Ela tinha um olhar cauteloso, olhou em
volta e me fez um sinal para que eu entrasse no carro.
― Tudo bem! É que eu ia precisar de ajuda hoje na loja, então resolvi
te buscar para você ficar lá comigo! ― Ela sorriu, mas percebi que ela estava
muito tensa. Ainda olhava para os lados como se esperasse que alguém fosse
aparecer.
― Está tudo bem mesmo? ― Insisti.
― Sim... ― ela arrancou com o carro fazendo uma marca no chão do
asfalto e dirigiu em silêncio até a loja.
Ela entrou primeiro, olhou tudo, só depois veio até o carro e me deixou
entrar.
― Vem, preciso que você faça uns servicinhos para mim! ― Ela me
mostrou uma pilha de livros e caixas e mais caixas de objetos “novos” (mais
velharias que ela comprou). ― Preciso que você registre todos eles e faça
um inventário novo para os livros, tudo bem? ― Eu revirei os olhos.
― Mãe! Isso é muito chato! ― Gemi pegando um dos livros e olhando
sua capa desgastada.
― Ah! Sem reclamar! Ou você não vai mais para a casa da sua amiga
no fim de semana que vem.
Fiquei naquilo o dia inteiro, arrumando os livros nas estantes,
limpando os objetos e os colocando em lugares diferentes. Tinha que colocar
um código em cada livro, passar para o computador e colocar o preço da

183
tabela para só depois colocá-los na estante. Era cada livro mais estranho que
o outro.
No final do dia eu estava um caco, não de cansaço, mas de tédio.
Quando minha mãe me chamou para fechar a loja, já estava escurecendo.
― Vou te recompensar! ― Disse ela sorrindo. Fez uma ligação para
casa avisando que iria levar o jantar para meu padrasto e para Leonard.
― Aonde vamos? ― Perguntei curiosa.
― Você já vai ver! ― Entramos no carro e rodamos a cidade por mais
ou menos vinte minutos até parar em frente a um restaurante de massas.
― Rodízio de pizza? ― Perguntei, meus olhos se encheram de
lágrimas de alegria, para mim fazia mais de um mês que não comia uma
pizza!
Ficamos sentadas em uma mesa perto da vidraça, de onde podíamos
ver todo o movimento da rua.
O cheiro de pizza assando era espetacular! Meu estômago dava saltos
de alegria, no tempo que fiquei em Amantia não vi nada parecido com pizza
nos cardápios. Fiquei imaginando se Ewren iria gostar.
Ewren... será que iria conseguir tirá-lo da cabeça algum dia?
― O que ficaram fazendo ontem o dia inteiro? ― Minha mãe
perguntou tirando-me de meus devaneios.
― Hã? ― Não sabia o que dizer, fiquei imaginando se ela já tinha
ligado para Lucy e perguntado. ― Ficamos só passeando pelo shopping,
comprando bobagens! ― Disse.
― Gastou toda a mesada no shopping? ― “Não mãe, gastei toda minha
mesada em roupas, armas, poções, comida e pagando um mercenário para
me devolver para casa”. Queria poder responder isso.
― A maioria! ― Disse forrando meu estômago com o primeiro pedaço
de pizza de mussarela.
― E esse colar? Nunca vi você com ele! Comprou lá também? ― Ela
tinha a voz curiosa, porém, ao olhar seus olhos, vi um traço de terror neles,
porém desapareceu quase que instantaneamente.

184
― Foi um amigo que me deu! ― Eu peguei-o e coloquei para dentro
da blusa. Ela não desviou o olhar de onde o pingente fazia um volume
embaixo da minha blusa e me encarou por um segundo, tentei fazer o olhar
mais inocente possível e continuei mastigando a pizza e aceitando todos os
sabores que vinham nos oferecer.
Quando acabamos de jantar, minha mãe pegou duas pizzas grandes
bem embaladas e as levou para o carro.
Não sabia o que estava acontecendo com ela. Minha mãe nunca foi de
agir estranho assim!
Nos dois dias seguintes, foi a mesma coisa, de casa para escola, da
escola para a loja de minha mãe de carro, a única diferença foi a pequena
comemoração de minha mãe ao receber meu boletim na sexta à tarde e ver
que eu havia passado sem nenhuma nota ruim.
― Já está pensando em uma faculdade? ― Ela me perguntou no
caminho para casa de noite.
Eu ainda não havia pensado em nada. Estava me sentindo
estranhamente triste nesses últimos dias, como se houvesse um enorme
vazio em mim, como se nada me prendesse mais a esse mundo, havia
perdido o interesse em tudo aqui. Sentia falta de Amantia, de Lórien, de
Ewren... Afastei-me de meus pensamentos e a respondi.
― Hum, vou pensar bem durante as férias! ― Minha mãe sorriu. Pela
primeira vez em dias foi um sorriso alegre e descontraído.
Ao chegar em casa, vimos um bilhete na geladeira. Meu “padrasto” e
Leonard haviam saído antes de nós de casa. Eles nos esperariam dia vinte e
quatro de dezembro na casa da vovó em outra cidade.
― Por que eles foram antes de nós? ― Perguntei achando aquilo
muito mais estranho. Nós nunca viajávamos separados.
― Eu pedi para que eles fossem à frente, pois ainda precisamos acabar
o serviço na loja! ― Eu não acreditei! Iríamos ficar mais dez dias em casa
antes de viajar por causa da loja? Fiquei muito aborrecida.
Subi para tomar um banho enquanto minha mãe fazia o jantar. O dia
havia sido especialmente quente. Depois do banho fiquei sentada no chão do

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meu quarto olhando minhas joias de Amantia. O colar de cristais de
purificação parecia mais apagado que o normal e senti uma pequena dor no
fundo do peito. Minha mãe entrou no quarto sem bater, me assustando.
― Mãe! ― Disse virando rapidamente de costas para a caixa, enfiando
o colar e os brincos no meu bolso e empurrando-a para debaixo da cama.
― Vim te chamar para jantar! ― Disse ela tentando olhar por trás de
mim. Levantei lentamente e fui em direção à porta.
― Vamos então! ― Falei pegando-a pelo braço.
― Que espelho é esse? ― Perguntou ela olhando para o espelho portal
em minha parede.
― Uma senhora o deu para mim uns dias atrás, eu achei bonito e fiquei
com ele! ― Disse ingenuamente. Minha mãe chegou bem perto dele,
passando a mão por toda sua moldura.
Quando ela passou os olhos pela sua inscrição, seu rosto empalideceu.
― Mãe, o q... ― antes de eu terminar de dizer, ela se virou para mim,
me pegou pelos ombros e começou a me sacudir.
― QUEM LHE DEU ISSO, LEONA? ― Ela gritava ― QUEM O ENTREGOU
A VOCÊ?
― Mãe! ― Eu tentava dizer, mas ela não parava de me sacudir.
― VOCÊ PASSOU POR ELE ALGUMA VEZ? ― Meus olhos se
arregalaram. Ela sabia, então era mesmo verdade, ela era uma maga
também! Ela puxou a caixa debaixo da cama e a abriu, pegou o espelho de
Lórien e olhou para mim aterrorizada.
― ONDE VOCÊ CONSEGUIU ISSO?! FALE A VERDADE! ― Ela estava em
lágrimas. Antes que pudesse me explicar, ela pegou o espelho e desceu as
escadas, a vi saindo pela porta de trás e indo para o quintal, desci as escadas
correndo, ela os colocou no chão junto com as joias, entrou no quartinho de
ferramentas e veio com uma marreta nas mãos. Meu corpo congelou, antes
de ela acertar o espelho eu a agarrei e comecei a chorar e gritar. Consegui
derrubar a marreta de sua mão.
― NÃO MÃE! POR FAVOR! ― Ela me jogou para o lado, ao chão, e
pegou a marreta novamente.

186
Quando ela ergueu a marreta, a superfície do espelho brilhou fazendo
uma enorme ventania e uma sombra negra saiu do espelho, agarrando o pé
de minha mãe. Ela foi derrubada no chão e começou a ser arrastada para
dentro do espelho. Corri em sua direção e agarrei sua mão, fazendo toda a
força para puxá-la de volta, mas a sombra negra me puxou também.
Estava caindo novamente, pelo mesmo buraco brilhante só que com
algo nos arrastando. Quando vi o céu de Amantia, com aquela lua crescente
gigantesca e os traços no céu, meu coração deu um salto.
Uma gaiola enorme se fechou contra nós no ar, bati no chão duro da
gaiola, ficando tonta, a gaiola se dividiu e nos separou. As gaiolas voavam
em direção a uma torre escura. Minha mãe estava desesperada, gritava meu
nome e tentava me alcançar de qualquer jeito.
As gaiolas pararam e caíram dentro de um pátio entre três enormes
torres negras.
― Leona! ― Minha mãe esticou a mão para mim, mas as gaiolas
estavam separadas demais para isso.
Ela então rasgou a borda de seu vestido, começou a dar nós e a
cochichar coisas incompreensíveis. A princípio achei que ela estava ficando
louca.
― Mãe? ― Chamei baixinho.
― Prepare-se ― disse ela ― fique com o pingente na mão. Talvez só
tenhamos uma chance de sair daqui! ― Ela sabia de tudo? Minha cabeça
começou a girar.
Pude ouvir passos bem perto de nós. Olhei em volta, mas não
conseguia enxergar nada.
Ouvi uma voz profunda rindo. Um frio passou pela minha espinha
fazendo com que meu corpo ficasse inteiramente arrepiado. Apertei as
barras da gaiola e segurei firmemente o pingente em minha mão,
aguardando o sinal de minha mãe.
― Um gato selvagem e seu gatinho na mesma cajadada! ― A voz riu
novamente. Minha mãe chiou e o homem se aproximou até ficar a um palmo
da gaiola onde estava presa.

187
― Lupine e seu lindo filhotinho de sangue puro! ― Ele se abaixou em
minha frente. Era um homem alto, forte e de aparência desleixada, seu
cabelo longo e emaranhado caía por cima de seus ombros e seus olhos
amarelos me causaram uma onda de choque. Uma de suas orelhas estava
cortada. Ele enfiou a mão na grade da gaiola e agarrou meu cabelo, puxando-
me contra a grade.
― Vai ser uma satisfação, depois que ele tirar o que precisa de você,
eu uso e acabo com o que sobrar.
― Não vai não! ― Disse outra voz. ― Ele já prometeu dar ela para mim
depois! ― Disse a outra voz que eu reconheci, fazendo outra onda de pavor
percorrer meu corpo. Demétrius.
Minha respiração estava irregular e o pânico começou a me tomar. Eu
podia ouvir um rosnado da gaiola ao lado.
― CALEM A BOCA! NINGUÉM VAI TOCAR NELA! ― Minha mãe urrou,
fazendo-me pular de susto contra as grades.
Sua gaiola explodiu fazendo voar pedaços de metal retorcido para
todos os lados. Uma forte luz branca saiu dela fazendo Demétrius e Black
Jango se encolherem. Olhei para ela boquiaberta e com os olhos marejados.
Ela estava com um cajado vermelho em sua mão, seus cabelos estavam
prateados e brilhantes e caíam em ondas pelos seus ombros, em sua testa
havia uma marca de uma pequena orquídea roxa e em seu braço direito as
mesmas marcas que eu tinha, seus olhos estavam vermelhos.
― Imundos! Vocês não podem tocar em nós! ― Ela sacudiu o cajado e
fazendo os dois voarem para longe. O pedaço da roupa cheio de nós que ela
havia feito ainda a pouco foi jogado ao chão, quando ela encostou com o
cajado nele, um cavalo alado branco apareceu bem diante de nós. Ela pulou
para cima dele, fez com que a gaiola que eu estava se desmanchasse como
metal derretido e me puxou também. Quando alcançamos a altitude que
pudéssemos ver toda a torre, minha mãe soprou em direção às torres e um
fogo azul começou a consumir tudo ali.
― Mãe! ― Eu olhava para ela assustada. Minha mãe era mesmo uma
maga! Era dela que eu havia herdado os poderes!

188
― Sinto muito por isso estar acontecendo, Leona. ― Vi lágrimas
escorrerem pelo seu rosto.
― Por isso eu consegui abrir o portal? Por que herdei os poderes de
você?
― Quando você entrou aqui? ― Perguntou ela olhando para mim com
um olhar quase hostil.
― No dia em que fui para casa de Lucy, na verdade, caí aqui... ―
respondi cautelosamente, temendo que minha mãe tivesse um surto de
raiva e me jogasse de cima do cavalo.
― Então o poder que senti dias atrás vindo da sua escola era seu? ―
Ela parecia mais furiosa ainda.
― Estava mostrando para Lucy! ― Disse diminuindo tanto minha voz
que quase não pude escutá-la. Ela respirou fundo e tentou dizer com toda a
calma do mundo.
― Você estava mostrando seus poderem em um lugar público? ― Eu
me encolhi novamente.
― Desculpe. ― Murmurei ― Ei! A senhora que me deve explicações
aqui! ― Esbravejei me esticando para encará-la. Ela me perfurou com um
olhar, me encolhi novamente e fiquei quieta até ela resolver pousar.
Não reconhecia o lugar que ela pousou com o cavalo, assim que ele
tocou no chão, nós pulamos e ele desapareceu, voltando a ser o trapinho
com nós.
Era uma cidade flutuante. Andamos sorrateiramente até uma enorme
entrada de pedras, quando fui passar pelo portão, mamãe me arrastou pelo
canto do muro, onde puxando uma tocha que iluminava o caminho e abriu-
se uma passagem secreta para dentro do castelo.
― É assim? A senhora pode sair entrando de fininho em qualquer
lugar? ― Ela me olhou feio novamente e fez um sinal para que eu me calasse.
Quando saímos por outra passagem perto de um corredor estreito, foi
que reconheci o local. Era a fortaleza de Lótus Vale. Prendi a respiração,
estava ansiosa para rever Aeban! Minha mãe virou-se para mim, olhou em
meus olhos e disse.

189
― Quando foi que você cresceu tanto assim? ― Ela parecia assustada
ao me ver na luz.
― Era isso que a senhora tinha a me dizer? Jura que é com isso que
está preocupada agora? ― Ela balançou a cabeça.
― Olha, vamos conversar daqui a pouco. Mas preciso que você saiba
de uma coisa antes. ― Disse ela me olhando bem no fundo da alma ― Nagel
não é seu pai! ― Eu a encarei, revirei os olhos e suspirei.
― Mentira! Nunca teria desconfiado! ― Ela ficou nervosa com meu
pequeno surto sarcástico e olhou para os lados.
― Está pronta para conhecer seu pai de verdade? ― Meu coração deu
um salto. Meu pai estava em Lótus Vale? Fiz que sim com a cabeça. ― Então,
venha! ― Ela andou até uma grande porta com uma tapeçaria vermelha
bordada em ouro que pendia perfeitamente fazendo um arco sobre ela.
Ela bateu na porta e esperou. Escutamos uma cadeira se arrastando.
― Entre! ― Disse a voz estranhamente familiar lá de dentro. Mamãe
girou a maçaneta e entrou na sala de cabeça erguida. Aeban estava lá, de
costas para nós e guardando um livro volumoso em uma prateleira. Quando
ele se virou, seu rosto perdeu a cor.
― Lupine! ― Sua voz saiu rouca e espantada enquanto a olhava de
cima a baixo. Aeban andou rapidamente em nossa direção, a puxou pela
cintura e a beijou! Um daqueles beijos de cinema. “Mãe? ” Gritei
mentalmente “Quando foi que a senhora havia se tornado uma dona de casa
recatada e sem graça na Terra? ” Claro que não ousaria falar aquilo alto. Eu
prezava por minha vida, era mais seguro enfrentar os lobisomens à ira
daquela mulher!
Fiquei envergonhada, me afastei um pouco dos dois e pigarreei alto.
Aeban a soltou com um sorriso enorme no rosto.
― Achei que você estivesse morta! ― Disse ele abraçando-a de novo.
Minha mãe também sorria e ela estava tão feliz como nunca havia visto.
― Aeban, creio que já conheça sua filha, Leona! ― Eu me encolhi
novamente. Estava mais envergonhada que antes, mas isso pelo menos
explicava o grande afeto que sentia por ele.

190
Aeban olhava de mim para minha mãe e de volta para mim.
― Por isso achei a semelhança de vocês tão significativa e notei que
tinham uma marca igual! ― Disse ele colocando suas mãos no rosto. ― Por
que nunca me contou? Por que foi embora se estava grávida? ― Ele havia se
voltado para minha mãe. ― Você me privou de tantos momentos com ela!
Você sabia? ― Perguntou ele agora se dirigindo a mim.
― Acabei de descobrir. ― Murmurei corando e sentando-me em um
pequeno sofá no meio da sala.
― Eu precisava ir! ― Disse ela à Aeban sem enrolar. ― Quando
descobri que estava grávida, torci para ela nascer hibrida ou silfa, mas ela
nasceu completamente humana, não havia me livrado da maldição, apenas
passado adiante. ― Minha mãe sentou-se no sofá ao meu lado. ― Não seria
seguro para ela assim como não foi para mim!
― Eu teria lhe ajudado! Eu te amava mais que tudo e nunca teria
deixado você partir! ― Ele estava confuso e seus olhos demonstravam raiva
e tristeza ao mesmo tempo.
― Foi justamente por isso que eu me escondi, que fugi de você. Você
estava noivo, um casamento planejado por muitos anos, politicamente
perfeito.
― Mas eu nunca gostei dela... ― por fim ele se sentou também, agora
de frente para ela, encarando-a.
― Eu não podia arriscar! Ela era tudo de você que eu tinha e não queria
deixar que Arcadius tomasse conhecimento de sua existência!
― Não adiantou muito, não é?! Ela veio para cá e foi imediatamente
identificada por Black Jango, que bateu com a Língua nos dentes para ele! ―
De repente pude literalmente ouvir um estalo na cabeça de Aeban. ― Você
é minha filha! E deixei você andar por aí com Ewren? Ah se eu soubesse disso
naquele dia... ― Disse ele ficando vermelho. ― E ainda lhe dei o sangue de
Aswang!
― Ewren? Filho da Princesa Arin? ― Perguntou ela ― Por que deu
sangue de aswang para ela? O que aconteceu por aqui? ― Ela estava ficando
alterada.

191
― Mãe, essa é outra história, melhor deixar para depois! ― Disse
livrando a minha pele e a de Aeban também.
― Mas sim, é esse Ewren mesmo. ― Ele confirmou. Minha mãe olhou-
me como se eu tivesse andando com um delinquente. Ela tocou no meio da
minha testa, fazendo uma leve pressão com os dedos, as marcas verdes em
meu braço acenderam e pude ver um misto de alívio, mas ao mesmo tempo,
de tristeza em seu olhar. ― Ele estava a levando até a torre das nuvens por
ordem de Nena para ela poder voltar para casa!
― Agora não podemos voltar para casa, com certeza estará sendo
vigiada... ― disse tristemente ― e pensar que toda essa confusão foi porque
atravessei um espelho...
Minha mãe afagou minha cabeça.
― Não é sua culpa, nós deveríamos ter acabado com aquele mago há
séculos, quando tivemos a chance. ― Disse Aeban.
Minha mãe e meu... pai continuaram conversando, mas em outra
língua, parecida com um élfico, porém mais cantada.
Um soldado silfo entrou na sala pedindo desculpas por atrapalhar
nossa “reunião”, trazendo uma mensagem e saindo logo em seguida. Depois
de ler, Aeban mudou de expressão drasticamente.
― O que houve? ― Perguntou minha mãe se inclinando sobre ele para
ler o bilhete.
― Amantia está um caos! ― Aeban parecia desolado ― Várias cidades
pacíficas sendo saqueadas e muitos vilarejos pequenos de pescadores e
coletores então sendo destruídos.
― Por que a atual Sacerdotisa dos Ventos não faz nada? ― Perguntou
minha mãe o encarando.
― Tarsilis? Ela é quase inútil, é um fantoche dos Metamorfos! Ela não
usa os poderes que tem para manter a ordem e os elfos já não conseguem
mais lidar com a situação sozinhos! ― Ele estava tão nervoso que pude ver
suas veias saltando. Não era normal um Elemental do vento pacífico se
exaltar assim, ou era?

192
A porta do escritório se abriu abruptamente e duas mulheres
entraram.
― Aeban, precisamos fazer alguma coisa, está tudo saindo de ordem!
Vou ter que deixar Eirien intervir! ― Arin e Lórien estavam ali, bem na
minha frente. Lórien estava com Feroz no colo, ele se retorceu e pulou de
seu colo em minha direção, Lórien parecia abatida e triste. Quando ela nos
viu, soltou um gritinho histérico e virou o rosto de Arin em nossa direção.
Arin perdeu a cor, veio até onde estávamos e se ajoelhou perto de minha
mãe.
― Ah, minha queria amiga! Você voltou! ― Elas se abraçaram rindo.
Lórien pulou em cima de mim chorando, esmagando feroz em meu colo.
― Eu te chamei tantas vezes! Por tantos dias seguidos! Ele sentiu sua
falta também! ― Disse ela entre soluços.
― Sinto muito. ― Estava esfregando suas costas e acarinhando a
cabeça de feroz, que ronronava alegremente.
― Quase um ano e nenhuma notícia! Achei que você não gostava mais
de mim! ― Disse ela ainda soluçando.
― Desculpe, Lórien! Lá só se passaram cinco dias e nem mexi no
espelho com medo de alguém descobrir!
Aeban, Arin e minha mãe retomaram a conversa ignorando
completamente nossa presença, como eu não entendia nada, resolvi sair de
fininho com Lórien. Quando íamos saindo lentamente pela porta, Aeban nos
olhou e pigarreou.
― Não saiam dos Limites da fortaleza! ― Ele deu um olhar
significativo a Lórien. Ela acenou discretamente e virou-se me arrastando.
― Sim senhor! ― Respondemos ao mesmo tempo. Corremos pelos
corredores do castelo com Feroz em nosso encalço, passamos por vários
silfos que estavam trabalhando e fazendo guarda. Muitos simplesmente nos
ignoravam. Lórien entrou na cozinha, pegou dois pães doces cobertos de um
creme e guiou-me até uma torre acima da fortaleza.
O céu estava limpo, nem parecia que era de noite, a Lua, mesmo não
estando completamente cheia, fazia tudo ficar claro.

193
― Lórien? ― Ela estava comendo o pão distraída, olhando as estrelas.
Ela fez um som, entendi isso como se ela estivesse me escutando. ― O que
está acontecendo aqui? E você já sabia que eu era dessa tal família Arbarus?
― Perguntei dando uma mordida no pão que ela pegou para mim. Ela
suspirou.
― Suspeitava que fosse, Leona Arbarus, Ewren já sabia, ele ficou louco
para te mandar para casa com medo de você ser pega! Depois que você se
foi, boatos que a “filha da Sacerdotisa” foi vista por Amantia começaram a
circular, e então todos acabaram sabendo que a Sacerdotisa dos ventos
estava viva e em outro mundo do círculo dos doze. Antigamente, era sua
mãe que mantinha uma ordem quase perfeita em Amantia, ela tomou o lugar
da antiga Sacerdotisa logo depois que ficou grávida de você, e em parceria
com os elfos e silfos, ela mantinha tudo em ordem ― ela deu uma pausa para
comer mais ― Lupine era a representante dos humanos, ela era de uma
família nobre, bem-educada e de sangue puro, uma maga extremamente
poderosa que competia em poder até com os magos metamorfos!
― Não estou entendendo! ― Disse apertando Feroz contra meu rosto
fazendo-o espirrar frustrado.
― A sacerdotisa substituta é, como posso dizer... uma farsa, é uma
humana, mas não tem poder nenhum! Ela só estava no poder enquanto não
se sabia sobre o paradeiro de Lupine! Ela não faz nada pelo povo, é só
mandada pelos Metamorfos! Então quando te descobriram, descobriram
também que ela estava viva e que a Sacerdotisa substituta não era
necessária! ― Ela olhou para mim esperando que eu tivesse entendido.
― Desculpe...
― Nossa, Leona! Quando Ewren me disse que você era lerda, não
acreditei! ― Disse ela bufando. ― Sua mãe era uma Sacerdotisa, ela viajava
por Amantia, curava as pessoas, resolvia problemas políticos, era simpática
com todos e cuidava de tudo perfeitamente! A substituta dela é um enfeite!
Nunca fez nada, só fica na torre das nuvens e diz orar pela paz de Amantia e
quem cuidava do resto eram os elfos e silfos!
― Então esse caos todo é porque descobriram que ela estava viva, mas
não estava fazendo nada por eles?

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― Isso... E para variar, quem quer ter o poder sobre tudo, Arcadius,
está colocando lenha na fogueira através de outro mago idiota que ele
comanda. ― Um calafrio desceu pela minha espinha.
― Então as sombras carregadoras que foram nos buscar...?
― Sim, foi ele! Ele queria provar que vocês estavam vivas e que
abandonaram Amantia. Mas isso é só uma desculpa para ele pôr as mãos em
você! Ele disse que se tivesse vocês de volta à Amantia, poderia pôr tudo em
ordem novamente. Tendo o apoio do povo, é mais fácil ele conseguir,
qualquer um que te ver, vai querer entregá-la para ele! ― Senti uma forte
vertigem e sentei no terraço onde estávamos.
― Tudo culpa minha, Lórien. Se eu não tivesse pegado aquele
espelho... ― suspirei olhando Feroz se esfregando em meus pés.
― É outra coisa que você tem que saber, aquela velhinha que você
ajudou é a Moan, lembra daquela bruxa em Alamourtim? É uma bruxa que,
ao que me parece, só quer saber de dinheiro, ela vagava pelos mundos com
um grupo de bruxas procurando por vocês.
― Então ela descobriu quem eu era quando parei para ajudá-la? ―
Perguntei incrédula.
― Não, ela sabia muito antes disso, aquilo de velhinha precisando de
ajuda foi só a armadilha! ― Lórien sentou ao meu lado no chão e me puxou
para seu colo.
― Como descobriu isso? ― Perguntei.
― Ewren descobriu, ele escutou Moan falando sobre o dinheiro da sua
recompensa que Arcadius pagou a ela por ter atraído você para cá!
― E onde ele está agora? ― Estava ansiosa para vê-lo de novo.
― Ele foi capturado... ― disse ela baixando a cabeça e olhando triste
para feroz.
― O quê? ― Olhei para Lórien não conseguindo acreditar em suas
palavras, impossível de ele ser capturado, ele era muito forte e rápido
demais para que isso acontecesse. ― Como isso aconteceu?
― Depois que você foi enviada de volta ao seu mundo, Ewren resolveu
investigar sobre o paradeiro de Arcadius, ele queria acabar com eles para

195
que não tivessem a ideia de te procurar nos outros mundos e acabou
descobrindo que Black Jango e Demétrius estiveram na cidade e viram você
partir. Demétrius sabia para qual mundo você havia sido enviada, porque
você contou para ele de onde tinha vindo. Foi uns quatro meses depois que
você partiu, ele resolveu sair à caça dos dois! ― Ela suspirou de novo e
lágrimas rolaram pelos seus olhos. ― Moan e um grupo de bruxas o
prenderam em um lacre e o levaram.
― O que faremos Lórien?! ― Meu coração doía, ele havia sido pego
tentando cuidar de mim.
― Eu ainda não sei, mas acho que se acontecer o que estou pensando
que vai, nós duas teremos a chance de ir atrás dele!
― E o que você acha que vai acontecer? ― Perguntei. Ela sorriu, um
sorriso maldoso como o de Ewren.
Um guarda apareceu no topo da escada e gritou para nós:
― Senhoritas, o general quer vê-las agora! Por favor, entrem. ― Nos
levantamos e o seguimos, deixando aquele céu brilhante para trás e
escondendo com ele nossas palavras entre as luzes das estrelas.

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9

eban estava andando de um lado para o outro na sala e Arin

A e Lupine, minha mãe, estavam sentadas no sofá com um


semblante abatido.
Eles pareceram conversar por muito tempo
enquanto estivemos fora e parecia que uma eternidade
havia se passado dentro dessa sala. Quando viram que nós já havíamos
chegado, Aeban sentou em sua cadeira e olhou seriamente para nós.
― Lórien, Leona! ― Ele respirou fundo ― Nós três decidimos iniciar
uma viagem por Amantia, passar por todas as cidades, vilas, florestas e
pântanos habitados para tentar acalmar os ânimos, iremos explicar que por
um motivo maior, a Sacerdotisa resolveu criar a filha longe de Amantia, para
que ela crescesse sem riscos, e por isso só voltou depois da filha estar em
idade adulta! ― Disse ele olhando para mim ― O Sangue de Aswang que
você tomou para se curar meses atrás vai reforçar essa história, pois você
parece uma jovem adulta ― ele olhava para minha mãe como se esperasse
que a qualquer momento ela pudesse surtar e desistir do que quer que
estivessem tramando. Mas ela estava tão calma como sempre esteve antes
de tudo isso.
― Então nós vamos sair por aí para dizer que ela está viva e está de
volta e que vai ficar tudo bem? ― Perguntei.
― Não, nós três juntos com o exército élfico e o exército silfo vamos
viajar! Vocês duas vão ficar aqui seguras! ― Ele fez questão de ressaltar a
frase “ficar aqui”. Quando eu ia protestar, Lórien me acotovelou e fez um
gesto com a boca para que eu ficasse em silêncio.

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― Mãe? Tem certeza disso? Isso pode demorar muito! ― Falei.
― Algumas semanas apenas ― disse ela.
― Mas, será que ninguém vai reparar a falta de movimentação na
casa? Lá na terra? Nós não tínhamos saído ainda, e os vizinhos nos viram
entrar. ― Fiquei com medo de Nigel ter uma súbita vontade de voltar e não
nos ver lá. ― E se eles voltarem para casa e não nos verem lá? ― Perguntei.
Ela suspirou.
― Eu apaguei a mente deles quando os mandei ir à frente, você não
reparou, mas a casa já não tinha nada de nós lá, só seu quarto que ainda
estava do mesmo jeito, mas deixei uma magia programada para que ele se
desmanchasse no momento em que partíssemos, transformando o quarto
em um escritório.
― Mas, por quê? ― Estava de queixo caído e confusa.
― Não seria seguro para eles que se lembrassem de nós!
― Mas quando a senhora pensou nisso? ― Eu ainda não podia
acreditar.
― No momento em que senti uma forte presença mágica na sua
escola, percebi que a nossa segurança havia acabado, não fazia ideia de que
era você, passei anos esperando que isso acontecesse, e no fim, acabei me
acomodando e achando que nunca iriam nos encontrar! Mas quando eu senti
aquele poder, corri para você, achei que tivessem te encontrado e que não
chegaria a tempo de te proteger! E lá eu não poderia te proteger sozinha,
não mais. ― Corrigiu antes de Aeban perceber o que ela havia dito de errado.
― Se a senhora planejava voltar para cá, por que ia quebrar o espelho?
― Não fazia sentido, já que ele era um portal.
― Ele estava coberto com Magia negra! ― Disse ela. ― Queria abrir
um portal seguro para passarmos, eu iria te contar tudo antes, mas quando
vi, você já sabia de tudo.
― De quase tudo ― disse apontando discretamente para Aeban, que
sorriu. Ele se levantou, veio em minha direção e me deu um abraço.

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― Tem muito que eu preciso compensar, mas não agora, precisamos
ter a certeza de que estará segura, de que todos nós estaremos seguros! ―
Me perdi naquele abraço, era tão quente e terno.
― Quando vocês pretendem partir? ― Lórien perguntou.
― Assim que amanhecer! ― Respondeu Arin ― Na hora em que o
exército dos Elfos chegar aqui.
― Vocês têm que prometer que ficarão aqui, fora de perigo! ― Aeban
se dirigiu a mim e a Lórien.
― Prometemos! ― Dissemos segurando as mãos uma da outra e
minha mãe me abraçou.
― Vá descansar agora, você não dormiu bem nos últimos dias! ― Disse
ela.
― Tem um quarto pronto para vocês na torre sul! ― Disse Aeban
Saí da sala com Lórien, mas ao invés de irmos para o quarto que ficava
na torre, como Aeban havia dito, subimos uma escadaria escondida e nos
escondemos em uma salinha sobre a sala dele.
― O que quer aqui? ― Cochichei para Lórien.
― Olha lá! ― Ela apontou para a sacada do escritório de Aeban.
Ele e minha mãe estavam abraçados. Um abraço tão longo e apertado
que pareciam que nunca iriam se soltar. Se beijaram novamente, e outra e
outra vez, eu revirava os olhos e Lórien apertava as bochechas ficando
corada.
Por um momento pude ver o olhar dela, estava tão feliz! Nunca havia
visto aquela felicidade toda em seus olhos em nenhum momento em toda
minha vida. Seu sorriso era resplandecente e parecia que ela ia explodir de
tanta alegria.
― Lórien, nunca a vi tão feliz assim! ― Disse.
― É assim que você olha para meu irmão! ― Ela segurou uma
risadinha e meu rosto ficou quente.
― Não fale bobagens! Claro que não fico assim! ― Resmunguei
baixinho, ainda olhando meus pais na sacada. Era tudo tão surreal e era
difícil de acreditar em tudo que estava acontecendo, e mesmo com todas as

199
possibilidades de acontecer algo ruim, estava feliz, pois eu me encaixava
perfeitamente nesse mundo. É claro! Eu vim daqui, tinha que me sentir à
vontade mesmo! Ri comigo mesma. Ficamos ali por mais uns minutos
olhando os dois de mãos dadas na sacada e trocando carinhos. Quando nos
levantamos para sair, minha mãe se afastou de Aeban e abriu os braços. Ela
começou a cantar, e enquanto cantava, o vento soprava como se
respondesse ao seu canto. Era quase que hipnótico, minha pele ficou toda
arrepiada com sua voz, Lórien estava de olhos fechados e sorrindo.
― É por isso que é chamada de Sacerdotisa dos ventos! ― Disse Lórien
num sussurro ― Por que ela tem a habilidade de espantar as tristezas dos
outros!
Demoramos a achar a torre que Aeban falou, pois aquele lado da
fortaleza parecia um labirinto gigante.
Fiquei deitada na cama macia e quentinha daquele quarto olhando
para o teto, Feroz estava enrolado sobre meus pés e minha cabeça girava,
era muita informação para mim. Mas meu coração vagou, sonhando e
pensando em Ewren, onde ele estaria agora e se estaria, no mínimo, vivo e
bem.
Acordei com Lórien pulando em cima de mim.
― Venha logo! Eles já vão partir! ― Disse ela me arrastando para fora
da cama e me levando até a janela da torre. Ela abriu as enormes janelas,
estava tonta e a claridade fez eu querer me esconder atrás das cortinas.
Sentamos com as pernas para o lado de fora da sacada, a princípio imaginei
que estava ficando nublado de repente, pois sombras se espalharam por
todos os lados, quando esfreguei bem meus olhos, notei que não se tratavam
de nuvens, mas de um exército Alado se preparando para partir. Minha boca
só se fechou, pois Lórien fez isso por mim. Meus pais entraram no quarto
para se despedir, seguidos de Arin.
― Leona, faça o que fizer, não saia dessa fortaleza! ― Disse minha mãe
me abraçando e dando um beijo. Logo estaremos de volta!
― Não se preocupem, os melhores guerreiros estão aqui para proteger
vocês! ― Disse Aeban me fazendo um carinho na cabeça. ― Quando

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voltarmos, prometo compensar o tempo que perdemos de alguma maneira!
― Disse ele, a promessa era para mim e para minha mãe.
Arin e Lórien também se despediam, elas se abraçaram e Lórien sorriu,
mordendo os lábios. Eles se foram antes mesmo que eu pudesse pensar em
algo bonito para dizer.
Ficamos na janela olhando enquanto os exércitos alados partiam.
Assim que eles sumiram de vista, Lórien pegou um monte de bagagens
embaixo da cama, as mesmas que Ewren carregava comigo, e a Lupa das
fadas estava com ela também.
― O que você planeja fazer? ― Perguntei olhando ela conferir tudo,
encolher com a Lupa e colocar na sua bolsa tiracolo.
― Não vamos ficar paradas aqui esperando eles resolverem tudo, não
é? ― Disse ela sorrindo.
― Não faz meu tipo ficar escondida e obedecer. ― Sorri de volta.
Me arrumei rapidamente também e só tivemos que disfarçar quando
uma servente veio nos trazer o café.
― Eles vão perceber que saímos! ― Disse a ela ― Se avisarem Aeban
e minha mãe, estamos ferradas! ― Estava ficando preocupada.
― Já pensei em tudo! ― Ela retrucou pegando duas bonecas parecidas
com Barbies de porcelana de dentro da bolsa. Lórien veio até mim e cortou
alguns fios do meu cabelo, amarrou os meus no cabelo da boneca de cor mais
clara e alguns fios do seu próprio na boneca de pele bronzeada. Em seguida
furou o dedo, gotejou sangue na boneca e mandou que eu fizesse o mesmo.
Fiz.
― E agora? ― Questionei ainda observando as bonecas apreensiva,
pois nada havia acontecido. Lórien sorriu.
― Surge, et perambula terram et loquitur nobis! ― Lórien murmurou
um feitiço em latim, tive certeza de que era apenas para se exibir, pois a vi
usar magia antes sem recitar feitiços. Num piscar de olhos, as bonecas
cresceram e ficaram idênticas a nós, foi como me olhar num espelho, eu a
toquei e ela respondeu ao toque ficando vermelha e sorrindo.

201
― Viu? ― Disse Lórien dando uma gargalhada assustadora enquanto
brincava com uma mecha de cabelo da sua réplica. Ajudamos as bonecas a
se vestirem rapidamente.
― Sabem como agir? ― Perguntei, meu outro “eu” respondeu:
― É claro que sabemos! Não somos simples marionetes! Precisamos
ficar e agir como se nada tivesse acontecido.
― Isso! ― Disse Lórien ― Disfarcem, façam de tudo para parecer que
somos nós, mostrem preocupação, finjam que querem fugir para ajudar de
vez em quando, só para não levantar suspeitas! E se por um acaso o Abissal,
o Lobisomem ou aquele mago aparecerem aqui? ― Perguntou ela às
bonecas.
― Nós nos desmancharemos até que eles sumam! ― Disseram as duas
juntas.
― Perfeito! ― Exclamei.
― Vamos? ― Lórien chamou, abrindo uma bolha gigante na palma de
sua mão.
― Vamos. ― peguei Feroz e a bolsa. Entramos dentro da bolha que
rolou para fora da torre lentamente carregada pela brisa suave. Passamos
devagar por toda cidade para não correr o risco de perder o efeito de
invisibilidade da bolha, que era muito difícil de manter. Quando saímos dos
limites da cidade, Lórien relaxou e a bolha desceu até uma estrada estreita
pela qual Ewren e eu já havíamos passado juntos.
― Feroz? Pode nos ajudar agora? ― Pediu Lórien fazendo-lhe um
cafuné nas orelhas.
Ele bufou irritado, bateu suas patas no chão e cresceu. Montamos nele
e partimos.
Corremos por algumas horas montadas em Feroz até começarmos a
ficar cansadas e doloridas, ele parecia estar cansado também.
Estávamos seguindo por um caminho diferente do que havia passado
com Ewren e paramos à beira de um lago de águas cristalinas. Feroz caiu
perto da beira do lago e bebeu água deitado.

202
― Coitado! ― Disse Lórien afagando suas patas. Ele estava mesmo
cansado!
― E aí, o que vamos almoçar? ― Perguntei olhando em volta,
provavelmente não iríamos pescar. Lórien pegou um arco, uma flecha e a
disparou para uma direção qualquer. E sentou perto do lago também.
― É só esperar um pouco agora, não deve demorar! ― Ela riu olhando
na direção em que a flecha sumiu.
Fiquei deitada na grama esperando o que quer que fosse nosso almoço
chegar. Depois de alguns minutos, escutei um guincho e um som parecido
com madeiras quebrando, quando olhei para o lado, entre as árvores da
floresta, vi uma ave tipo um avestruz voando em nossa direção, mas parecia
estar pendurado por alguma coisa. Pulei quando ele parou flutuando a
poucos centímetros de mim. Era uma ave muito bonita, com penas coloridas
e bico longo, deu até pena de comer, mas a fome estava muito grande...
― Lórien? ― Eu estava assustada. Ela deu gargalhadas da minha cara
de espanto. A ave estava morta, sua flecha havia atravessado a ave e a trazido
até nós.
― Pisuri assado para o prato principal! ― Disse ela sorrindo. Seus
olhos mudaram de cor, ela moveu as mãos e a ave ficou limpa, ela pegou
alguns temperos dentro da mochila e passou naquela ave enorme, então fez
uma bola de fogo azul com as mãos e a atirou na ave, fazendo uma espécie
de redoma de fogo em volta dela.
Poucos segundos depois, estava pronta. O cheiro era incrível e parecia
cheiro de peru de natal recém-tirado do forno.
Lórien fez uma mesa aparecer das pedras do chão e sentamos para
comer.
― Viajar com você é bem mais fácil do que com Ewren! ― Disse depois
de comer um pedaço daquela carne deliciosa e Lórien riu.
― Você também consegue fazer isso! ― Eu olhei para ela com
estranheza.
― Ewren disse para eu não usar meus poderes, pois poderia atrair
coisas ruins, ainda mais porque não sei controlar direito!

203
― Bobagem! ― Disse ela me dando uma piscada ― Já atraímos tudo
de ruim que poderíamos atrair! Se você não souber usar seus poderes, como
vai se defender quando estiver sozinha? ― Ela havia chegado ao ponto que
sempre me inquietava.
― Eu sei! Queria aprender a lutar com uma espada também! E usar o
arco... ― fiquei imaginando-me utilizando a espada como ela usou no dia em
que me salvou de Demétrius.
― Posso te ensinar tudo isso! ― Disse ela dando outra mordida na
enorme coxa de Pisuri em sua mão.
― Sério? ― Me senti esperançosa, queria ser tão boa quanto ela e
minha mãe.
― Sim, até encontrarmos pistas do paradeiro de Ewren, vamos parar
mais cedo, antes do sol sumir completamente, para treinar.
― Lórien, sei que é cedo para dizer isso, mas eu te amo! ― Falei
brincando com ela.
― Eu sei! ― Ela riu ― Se não me amasse, eu te mataria! ― Disse ela
fazendo uma cara assustadora e depois rindo novamente. Ela levou o que
sobrou do Pisuri para Feroz, que praticamente engoliu o bicho inteiro.
Descansamos um pouco depois de comer deitadas na beira do lago.
― Lóri? ― Chamei ― Posso te chamar assim, né? ― Olhei para ela,
que estava deitada de barriga para cima com as pernas apoiadas em cima de
um galho baixo de uma árvore. Ela assentiu com a cabeça.
― Vou te chamar de Léo então!
― Por mim, tudo bem. – Dei de ombros. ― Você não acha que aqui
está tranquilo demais?
― Sim, por causa do exército que saiu voando naquela hora ― disse
ela olhando para o céu como se procurasse algum vestígio do enorme
exército alado que partiu de Lótus Vale de manhã. ― Eles espantaram a
maioria das criaturas para a parte mais escura da floresta e elas só devem
estar de volta ao anoitecer.
― Por que não vamos voando? ― Eu sabia que Ewren não podia voar
por que ele era um elfo negro, mas Lórien não era.

204
― Hum ― murmurou ― espiões... imagina se alguém nos visse
voando por aí e contasse a algum guarda das patrulhas? Nossas bonecas
estariam lá, mas até provarem que não somos nós voando por aí, a notícia já
teria chegado aos ouvidos errados ou aos nossos pais, aí estaríamos mortas
de qualquer maneira! ― Ela olhou de canto de olho para mim ― Eu
particularmente prefiro ser devorada por um gigante ao invés de assumir
que desobedeci às ordens de permanecer na fortaleza cuidando de você!
― Mas, e se nos verem andando?
― É mais fácil no chão, podemos nos camuflar, pois sentiríamos a
presença de alguém nos observando em volta. E Feroz detectaria qualquer
um se aproximando de nós, certo? ― Perguntou ela a ele, que bufou sem se
mover de sua pose toda largada ― No céu estaríamos vulneráveis a
quaisquer pares de olhos! ― Fazia sentido para mim.
― Aonde vamos primeiro, quero dizer, para procurar por ele? ―
Queria encontrar Ewren o mais rápido possível e me desculpar por ter ido
embora daquele jeito.
― Bom, quero ir ao porto da Besta Santa, ele foi falar com a capitã de
um navio pouco tempo depois que você partiu... ― meu sangue quase ferveu
ao me lembrar de Banshee. ― Leona! Que isso, acalme-se, o que houve? ―
Lórien me olhava assustada. O vento soprou e vi uma mecha prateada do
meu cabelo passar pelo meu rosto e um pequeno redemoinho de água surgiu
onde meu pé estava dentro do lago.
― Oh! Desculpe! ― Disse fazendo o possível para me acalmar. Lóri
deitou de bruços para me encarar.
― O que aconteceu naquele porto para você ficar assim tão brava? ―
Ela me encarou. Suspirei e contei sobre a travessia do Mar das Tormentas e
sobre Banshee.
Quando terminei de falar, Lórien deitou sobre os braços escondendo
parcialmente o rosto e deixando apenas os olhos à vista.
― Sinto muito em lhe dizer isso, Leona, mas meu irmão é um
pervertido! ― Ela disse com a boca escondida. ― O passado dele que o diga,
se você esperava que não fosse... ― Ela meneou a cabeça em sinal de
reprovação.
205
― O que me deu na cabeça para me apaixonar por alguém assim? ―
Perguntei me jogando para trás na grama.
― Rá! ― Ela estava de pé apontando um dedo para mim ― Finalmente
confessou!
Fiquei corada e joguei um pouco de água nela, tentando disfarçar o
quanto fiquei sem graça.
― Felizmente, tudo há conserto, e olhe pelo lado bom, quanto mais
experiência... ― Ela sorriu, movendo as sobrancelhas para cima e para baixo
com um olhar malicioso para mim. Meu rosto esquentou ainda mais.
― Então, vamos? ― Me levantei fingindo que nada havia acontecido,
obrigando-a a mudar de assunto.
― Agora mesmo. ― Ela sacudiu Feroz para que ele encolhesse e
pudéssemos carregá-lo.
― Posso tentar uma coisa? ― Perguntei pegando duas pedras dentro
do lago.
― Claro, fique à vontade. ― Ela fez um gesto para que eu continuasse
com o que planejava fazer.
Coloquei as pedras no chão e peguei meu cajado, me concentrei e
toquei nelas com a ponta dele. As pedras tremeram no chão e começaram a
crescer até virarem dois lobos gigantes.
― Lobos? ― Perguntou ela aproximando-se e testando-os para ter
certeza de que não desapareceriam.
― A princípio pensei em cavalos, mas lembrei que cavalos têm medo
de lobos e a palavra “Lobos” agarrou na minha mente. ― Disse
pensativamente e Lórien mexeu os ombros.
― Contanto que não nos derrubem ou queiram nos comer, está bom
também! ― Zombou ela montando em um deles e fiz o mesmo. Segurei no
pelo do lobo cinza gigante que estava montada e dei alguns pulinhos para
ter certeza que não desmancharia.
― Para o porto da Besta Santa! ― Ordenei quando percebi que estava
tudo certo, então os bichos saltaram e começaram a correr destrambelhados

206
floresta adentro, pulando, girando e dando pequenos chiliques. Lórien quase
caiu do lobo dela de tanto rir e parecia que estava montada em um touro.
― Leona! ― Gritou ela ― Tente focar seus olhos como se fossem os
olhos deles, se não, eles não funcionam direto. Não são animais de verdade!
Fiz um esforço, como se estivesse entrando na cabeça deles,
deslizando minha mente para aqueles corpos falsos.
― Faça seu poder traçar uma rota imaginária até o Porto! ― Gritou
ela novamente. Usei o máximo de concentração que pude, então finalmente
passei a enxergar como se tivesse saído do meu corpo e estivesse dentro dos
Lobos-pedra.
Uma linha dourada me guiava por uma trilha estreita na floresta.

Corremos durante um bom tempo até começar a escurecer, o sol


estava descendo no horizonte e um vento frio cortava entre os pelos dos
lobos que eu guiava. Era como se eu fizesse parte do corpo deles, ou melhor,
como se eu mesma fosse os lobos.
Corri mais devagar para escutar alguma sugestão de Lórien de onde
deveríamos parar.
― Leo, logo atrás daquele morro tem uma clareira. Podemos parar lá
para dormir, vai ser mais seguro que na floresta fechada. ― Ela explicou
mostrando o caminho.
Corri até lá e quando vi o grande espaço aberto no meio da floresta,
diminuí o ritmo até parar totalmente.
Quando cheguei ao centro da clareira, desabei. Os lobos voltaram a ser
pedras e caí deitada no chão, gemendo e me contorcendo.
― Lórien, socorro... ― Resmunguei ― todo meu corpo dói! ― Ela deu
mais algumas gargalhadas. Pelo visto eu seria motivo dos risos dela para o
resto de minha vida. Feroz subiu em cima de mim para lamber minha cara,
mas nem forças para afastá-lo eu tinha.
― Você usou seu poder por um longo tempo logo na primeira vez!
Estressa o corpo mesmo! Esse elixir vai fazer melhorar rapidinho. ― Disse
ela vindo até mim com um pequeno frasco com um liquido azul dentro.

207
― Por que não sentia dor enquanto corria então? ― Perguntei
levantando ligeiramente a cabeça para ela me dar o elixir. Era doce e tinha
gosto de chá de anis.
― Por que você transferiu sua mente para controlar os lobos e perdeu
a noção do que acontecia em seu corpo, isso pode ser um problema, com o
tempo vou te ensinar a dividir a atenção da mente para não deixar seu corpo
vulnerável. ― Ela me levantou, depois ergueu as mãos para cima e as bateu
como se estivesse batendo palmas, um som parecido com um assovio saiu
delas e uma bolha também apareceu, cobrindo toda a clareira até o chão.
― Por que você usa tantas bolhas? ― Perguntei olhando a gigante
bolha nos cobrir. Lórien olhou cheia de ternura para a bolha.
― Meu pai amava bolhas de sabão... ― seus olhos brilhavam enquanto
falava. ― A primeira magia que ele me ensinou a usar foi uma de fazer
bolhas com a umidade do ar. Então aprimorei quase todas as minhas magias
a terem o formato de bolhas, pois gostava de vê-lo sempre sorrindo!
Acredito que um dia ele vá voltar e eu vou cobrir o céu de Amantia com
bolhas coloridas! ― Disse ela.
Com um movimento que ela fez, armou todo o acampamento, com
direito a fogueira.
― Essa proteção que fiz é para nos tornar invisíveis e indetectáveis.
Por isso não posso usar a flecha de caça agora. ― Disse ela pegando uma
bolsa térmica para preparar o jantar. ― Como você usou toda a sua energia
e ainda não está bem recuperada, irei poupar a minha para qualquer coisa...
― disse ela olhando cautelosamente em volta.
Pouco depois vi uma lua cheia gigante surgir no céu.
― Oh-ow! ― Exclamei olhando para cima ― Lua cheia!
― Pois é! ― Ela parecia tão preocupada quanto eu. ― Minha magia de
proteção não funciona contra o olfato de lobisomens, vamos torcer para não
ter nenhum por perto!
Depois de jantar, entramos para a barraca. Lórien estava cautelosa.
― Acha que tem perigo por aqui? ― Perguntei sentindo meu coração
vacilar com o olhar preocupado de Lórien.

208
― Não sei, tenho um mau pressentimento sobre esse lugar ― disse ela
olhando para Feroz, que movia suas orelhas em todas as direções. Ele
também estava alerta.
― Tem mais daquele elixir aí? ― Perguntei.
― Sim, mas pode fazer mal tomar mais de um!
― Me dá! ― Pedi e Lórien me entregou o frasquinho. Bebi todo de uma
vez, no começo não senti tanta diferença, a não ser pela dor no corpo ter
sumido completamente. Depois veio uma enorme onda de choque pelo meu
corpo. Foi como tomar uma garrafa de dois litros de energético em uma
única golada.
Feroz Levantou a cabeça e escutamos um uivo não muito distantes de
nós.
― Droga! ― Bufou Lórien se levantando e saindo da barraca. ― Tinha
que ser primeiro dia de lua cheia! ― Saí da barraca atrás dela seguida por
Feroz. Ela fez todo o acampamento se encolher e voltar para dentro da bolsa,
tirou seus brincos e os segurou em mãos separadas, eles imediatamente se
transformaram em longas espadas curvadas e de aparência muito perigosa.
Peguei o arco que havia ficado com Ewren quando voltei para casa e
concentrei minha energia nele.
O uivo retornou, mais perto e seguido de muitos outros. Feroz
começou a rosnar.
― Droga, droga, droga! ― Lórien estava nervosa. Sua aparência
mudou novamente, ficando com aqueles enormes olhos vermelhos a mostra.
Feroz cresceu e eriçou o pelo.
― O que vamos fazer? ― Perguntei assustada.
― Matar quantos pudermos! Me dê cobertura, ok? ― Lórien parecia
uma guerreira agora, como se aquela criança que ria de mim mais cedo
tivesse ido embora.
Um grupo de aproximadamente dez lobisomens circulou a bolha
fazendo meu sangue congelar e um frio na barriga quase me deixou
paralisada. Sabia que eles não podiam nos ver, mas conseguiam sentir nosso
cheiro.

209
Corri os olhos por todos eles e para meu alívio, Black Jango não estava
entre eles.
Um dos lobisomens deu um passo à frente, atravessando a bolha, que
estourou com o seu toque, nos deixando a vista dos outros. Eles uivaram e
começaram a correr em nossa direção. Lórien então, como um borrão,
começou a correr e atacá-los numa velocidade assombrosa, ela era incrível
lutando! Sem esquecer que precisava lhe dar cobertura, atirei uma flecha
que passou de raspão na cabeça de um deles, o distraindo com o tiro, esse foi
pego em cheio por Feroz, que havia dobrado seu tamanho normal e parecia
mais um touro que um tigre.
Lórien lutava com perfeição, pulava e girava e os acertava em cheio,
decapitando-os quando o ângulo permitia, eles me ignoravam, pois não
representava ameaça imediata. Então três a atacaram ao mesmo tempo, ela
girou e feriu-os, mas não fatalmente, um deles pulou para mordê-la e minha
flecha atravessou sua cabeça.
― Boa pontaria! ― Disse ela matando os outros dois.
Os que ainda permaneciam vivos começaram a uivar.
― Estão chamando reforços! ― Lórien rosnou irritada.
― Vamos voar? ― Perguntei, quando olhei para o céu tive uma
surpresa nada agradável. Alguns animais metade homens e metade aves
voavam sobre nós.
― Lórien? ― Chamei, parecia que haviam injetado água gelada em
minha cabeça.
― Harpias! Ah, isso não pode piorar, pode? ― Quando ela falou isso,
mais lobisomens começaram a aparecer dentre as árvores, Lórien grunhiu
de forma assustadora para eles. ― Não brinco mais!
Então ela cravou as espadas no chão, fazendo uma nuvem de poeira
subir, e delas surgiram estacas de terra que atravessaram alguns dos
lobisomens que vinham até nós.
― Não vai adiantar! ― Ela gritou, usando magia para mantê-los longe.
― Tive uma ideia! ― Peguei rapidamente um dos brincos de cristal de
purificação que estava em minha orelha, então o joguei no chão ― Feroz,

210
encolha e pule em mim! ― Gritei puxando Lórien para cima de mim.
Levantei o cajado e imaginei o Porto da Besta Santa e Bati com toda força a
ponta do cajado no cristal, quando ele se esfarelou embaixo do cajado, um
círculo dourado apareceu em volta de nós e uma coluna de luz nos cobriu
até a cabeça, fazendo-me ficar tonta e cega.

Senti um baque quando caí sobre Lórien, e Feroz sobre nós duas. Não
conseguia ver nada, mas podia ouvir murmúrio de pessoas, passos e barulho
de rodas e sons da âncora de um navio.
― Leona! Como você fez isso? ― Lórien ficou estarrecida. Foi minha
vez de rir depois disso, pois não vi nem escutei mais nada.

211
10

bri os olhos lentamente e a minha vista ardia. Sentia muito

A
ver onde estava.
calor e estava deitada de bruços sobre algo muito quente e
sem roupas, mas senti que havia algo me cobrindo
parcialmente, pelo menos não estava completamente a
mostra. Esperei meus olhos se adaptarem à claridade para

Era uma enorme sala cheia de pedras e aos poucos reconheci o lugar.
Estava naquela sala de pedras quentes onde deixei Ewren se purificando
enquanto passeava pelo porto com Feroz. Tentei levantar, porém um par de
mãos me colocou de volta na grande pedra quente que estava deitada.
― Espere mocinha. Ainda não acabamos aqui! ― Disse o homem.
Fiquei vermelha não pelo calor, mas pela situação em que me encontrava.
― Sabia que te conhecia de algum lugar! ― Disse ele enquanto massageava
minhas costas. ― Você esteve aqui faz um bom tempo com um elfo, não é?
― S-Sim! Alodinio, não é? ― Perguntei
― Eu mesmo. ― Ele riu. Escutei alguém saindo da água e caminhando
até nós.
― Leona! Que bom que você já acordou! ― Disse Lórien abaixando-se
na minha frente para me encarar. Ela estava enrolada em uma toalha e tinha
seus cabelos presos num coque no alto da cabeça.
― O que aconteceu? ― Estava curiosa de como chegamos aqui tão
rápido.
― Você não lembra? ― Ela piscou incrédula ― você nos teleportou
para cá! ― Lembrei-me do cristal e do clarão de luz. ― Só vi sua mãe usar

212
uma magia como essa uma única vez e ela ficou desacordada durante dois
dias, é realmente impressionante!
― Teleportar? ― Quis saber.
― Não, teleporte é fácil quando se tem um nível um pouco mais
avançado! Mas teleportar outras pessoas e objetos é quase impossível para
iniciantes, poucos magos que conheci podiam fazer isso sem um bom tempo
de treino! ― Disse ela eufórica.
― Quanto tempo estamos aqui? ― Perguntei enquanto ainda era
amassada por Alodinio.
― Hm, desde ontem à noite! Você apagou por poucas horas,
comparado aos outros magos de nível inferior quando conseguem realizar
um teleporte. ― Disse ela olhando em volta com cautela. ― Talvez seja por
causa do poder no seu sangue! ― Cochichou.
― Ou talvez seja por causa dos dois frascos de elixir ― não consegui
conter o riso.
― É uma possibilidade! Teletransporte é uma magia muitíssimo
avançada e que requer uma grande quantidade de energia do corpo e da
mente. É muito desgastante para iniciantes! Não faço ideia de como você já
está acordada! É muita determinação para acharmos meu irmãozinho! ―
Disse ela brincando comigo. Pedi para Alodinio sair para poder me levantar,
Lórien pegou uma toalha para mim e fomos para o quarto que ela havia
conseguido para nós.
― Qual é nosso próximo passo? ― Me joguei na cama e fiquei
esperando, torcendo para Lórien ter um plano em sua cabeça. Ela sentou-se
muito séria e me encarou.
― Primeiro e mais importante ― disse ela com um olhar pensativo,
tirando um caderno de dentro da escrivaninha do quarto ― é pedirmos o
jantar! Porque estou para morrer de fome! ― Quase caí da cama, pois pensei
que ela fosse dizer algo sério.
― Está bem, e depois disso? ― Perguntei enquanto ela dava
instruções sobre nosso jantar a um jovem que aguardava na porta do quarto.

213
― Bom, depois iremos achar a tal Banshee, se ela que passou as
informações sobre vocês para Black J., Ewren deve ter vindo interrogá-la,
isso se não a matou, mas se ela estiver viva, deve ter alguma pista de para
onde ele possa ter ido.
― Certo. ― Não percebi que estava sentada estalando os dedos até ver
Lórien rindo de mim.
― Se Ewren não a matou, você vai, não é?
― Talvez uns tapas não façam mal a ela! ― Tentei não sorrir
maldosamente como Ewren e Lórien faziam.
― Ficou parecendo um gatinho frustrado fazendo essa cara, precisa
treinar mais! ― Zombou ela enquanto recebia a comida.

No meio da madrugada acordei desesperada, tinha acabado de ter um


pesadelo terrível, havíamos encontrado Ewren, mas ele estava assustador,
com olhos vermelhos, todo sujo de sangue e segurava a cabeça de uma
menina loira pelos cabelos na mão enquanto pisava sobre seu corpo no chão,
ele olhou diretamente para mim no sonho, deu um sorriso assustador,
psicótico e veio em minha direção.
Lórien pulou da cama dela para minha cama e ficou de frente para
mim, passando a mão em meus cabelos e cantando baixinho, meu coração
se acalmou, como se uma neblina varresse minha mente e fizesse eu me
esquecer do sonho, assim consegui dormir novamente.
Acordamos com os raios de Sirius entrando pela janela e um brilho
vermelho intenso que parecia uma chama. Lórien levantou, foi direto para
o banheiro e escutei o chuveiro ligar. Feroz foi atrás dela e ficou deitado na
porta vigiando-a.
― Feroz, é feio olhar mulheres no banheiro! ― Disse levantando-me
também, ele me olhou e depois saiu de mansinho da porta do banheiro,
pulando novamente na cama. Esperei minha vez de usar o banheiro.
Meu rosto estava amassado da cama e com marcas dos fios de cabelo
que grudaram nele. Fiquei embaixo do chuveiro gelado até ter despertado
completamente e isso demorou mais tempo do que de costume. Arrumamos

214
as coisas e descemos para tomar café e procurar pelo navio de Banshee no
porto. O ar estava seco e muito quente do lado de fora, isso me fez querer
desesperadamente um quarto com ar condicionado.
― Amanhã é dia de Sirius ― disse Lórien sem ânimo. ― Vai ficar pior
esse calor!
― Detesto calor demais também! ― Reclamei arrastando meus pés
atrás dela.
Andamos por toda a extensão do cais até avistar um navio na última
doca. Tinha velas vermelhas e uma sereia segurando duas espadas entalhada
na Proa do Navio.
― Lóri, é aquele! ― Disse apontando para o navio.
― Certeza?
― Tenho! ― Disse a puxando pelo braço e indo em direção ao navio.
Ele estava sendo carregado, sinal de que elas iriam zarpar em breve. Peguei
o cajado na mão e Lórien, suas espadas de aço e prata.
Subimos no navio determinadas e com as cabeças erguidas e sangue
nos olhos. As mulheres a bordo imediatamente me reconheceram e
empalideceram, algumas saíram correndo para o interior do navio. Feroz
ficou grande e parou bem atrás de nós, dando cobertura, mas elas estavam
apavoradas demais para reagir.
― Onde está Banshee? ― Perguntei. Nada de resposta. Estavam todas
em silêncio e olhando para nós. ― Não quero ter que perguntar novamente!
― Disse mais alto, batendo o cajado no convés e alterando minha aparência,
que a essa altura já estava muito fácil de fazer, era só eu ficar com uma
pontinha de raiva que eu mudava.
― Está lá dentro. ― Disse a mulher que me recordei ser Mag.
― Obrigada! ― Entramos na divisória da cabine da capitã com a
enfermaria do navio, Feroz ficou de guarda no portal para que ninguém
passasse dali. Eu sorri e senti um calor no meu corpo.
― Leona, você conseguiu ficar assustadora agora! ― Disse Lórien
rindo baixinho. Bati na porta da cabine e escutei um barulho, mas ninguém
veio abrir a porta.

215
Não queria ficar ali esperando a boa vontade de Banshee e chutei a
porta que se escancarou. Banshee deve ter sido avisada por alguém, pois
tentava inutilmente sair por uma das janelas do navio, porém seu quadril
avantajado não a permitiu passar por ela. Lórien revirou os olhos, andou até
ela e a puxou da janela, jogando-a no chão. Banshee mal caiu e já estava
chorando.
― Por favor! Não cortem meu bebê de novo! ― Dizia aos berros
abraçada em seu cabelo ruivo. ― A poção para fazê-lo crescer foi muito cara!
― Deveria estar mais preocupada com seu pescoço, sua imbecil! ―
Gritei, ela se encolheu no chão abraçando suas pernas e me olhando com
terror.
― Ewren veio aqui? ― Perguntei, ela sacudiu a cabeça freneticamente
dizendo que não.
― Talvez ela esteja com vontade de ter um novo visual com a cabeça
escalpelada! ― Disse Lórien erguendo a espada para ela.
― Está bem! Ele esteve aqui! ― Disse ela correndo os olhos de mim
para Lórien.
― O que ele queria? ― Perguntei
― Saber onde Arcadius, Black Jango e Demétrius se escondiam! ―
Disse ela limpando o nariz escorrendo.
― E? ― Lórien estava ficando sem paciência.
― Eu não sei! ― Gritou ela batendo com os pés no chão e Lórien fez
uma bola de fogo na palma da mão.
― Vamos fazer desse navio uma churrasqueira gigante, o que acha
irmã? ― Disse Lórien olhando para mim e piscando discretamente.
― Vai ser um belo almoço para Feroz! ― Menti segurando o riso.
― DROGA! DISSE QUE NÃO SEI! ― Disse Banshee aos prantos. ― O que
eu disse a ele foi a mesma coisa, só vi que eles pegaram um navio e foram
para o Oceano da tempestade! ― Disse ela.
Lórien a olhou feio.
― Não minta para mim! Não tem nada lá além de gelo! Nenhuma
cidade submersa, nada, apenas gelo!

216
― Tudo que o lobisomem me disse é que se eu precisasse deles, fosse
direto até onde o Oceano da Tempestade termina! Só isso! ― Banshee sentou
e em cima da mesa e colocou seus braços para trás. Desconfiei da sua posição
e joguei uma bola de gelo congelando a mesa e seus braços.
Lórien circulou a mesa. Havia uma arma escondida bem perto de onde
Banshee sentou.
― Jogando sujo? ― Ela riu cortando a arma no meio com sua espada
e fazendo Banshee gritar.
― Vai nos levar até lá! ― Eu disse.
― Você é louca? Mate-me se quiser, mas eu não levo meu navio para
lá! ― Ela gritou as palavras para mim. Lórien então descongelou seus braços,
a pegou pelos cabelos e a arrastou até o convés. Lórien chutou as pernas de
Banshee fazendo-a cair de joelhos no chão e ela tentava soltar as mãos de
Lórien do seu cabelo.
― Feroz? ― Ela assoviou.
― Droga! Parem com isso! Não posso ir para lá, tenho alguém que
depende de mim e não posso morrer naquelas águas! – Ela implorou. Mesmo
assim, Feroz veio lentamente até nós, como uma pantera que prepara o
cerco.
― Café da manhã para você! ― Lórien apontou Banshee, ignorando o
pedido da mulher, Feroz correu como se fosse dar o bote.
― ESTÁ BEM! ― Gritou ela. Eu a levantei e fiz aparecerem correntes
e grilhões em seus braços e pernas. A tripulação olhava espantada.
― Lórien? ― Ela leu meus pensamentos, ergueu os braços e uma grade
em forma de uma bolha imensa cercou o navio. ― Assim ninguém sai!
― Dê as ordens! Agora! ― Gritei para Banshee.
― Recolher âncora, soltar as amarras e a todo pano para Leste! ―
Gritou ela, a tripulação parecia assustada ― AGORA!
Todas as mulheres começaram a trabalhar imediatamente com as
amarras e velas do navio, ouvi a âncora sendo erguida e dei um breve sorriso.

217
― Espero que saibam o que estão fazendo. ― Disse Banshee nos
encarando com olhos furiosos. A levamos de volta para a cabine, Lórien fez
uma gaiola aparecer e colocou Banshee dentro.
Ficamos ali dentro da cabine o tempo todo. Mal saíamos para olhar a
situação e se a rota estava correta.
Foram quatro longos dias no navio. Era um clima pesado, cansativo e
Banshee parecia um cão bravo preso na coleira. Quando tentávamos dormir
ela nos acordava aos berros, mas toda vez que passava por minha cabeça
cortar a língua dela, Lórien me lembrava de que eu não podia me
transformar em um monstro, até ela mesma perder a paciência e deixar
Banshee desacordada com um soco no estômago. Lórien era má também!
Ao final do quarto dia, um barulho terrível vindo do convés nos tirou
da cabine.
― O que houve? ― Perguntei a Mag que estava agarrada a uma corda.
― Um raio! ― Respondeu ela assustada.
Um raio havia caído e perfurado o casco. A tripulação entrou em
desespero, mas Lórien rapidamente concertou o buraco. O tempo estava
feio, o céu estava negro e com nuvens pesadas, tão grandes que quase
podíamos tocá-las. As ondas eram tão altas quanto prédios.
― “Mar das Tormentas” “Oceano da tempestade”! Se o nome fosse
“Mar da tranquilidade” não estaria assim! ― Gritei para Lórien.
― Tem um “Mar da tranquilidade do outro lado de Mantum! ― Berrou
ela de volta ― Esse parece um passarinho cantando perto daquele!
Havia enormes rochas à nossa frente.
― Leona! Me ajuda agora, ok? ― Ela esticou a mão para mim. Eu a
segurei, então Lórien fez uma ventania vir do Norte ― quando eu disser,
você traz o vento do Oeste para nos jogar para a frente! ― Ela gritou.
Fomos jogadas para o lado, desviando completamente das rochas e
Mag desmaiou ao ver as rochas ficarem para trás.
― Agora! ― Berrou Lórien para mim. Apontei meu cajado para trás e
uma enorme onda acompanhada de vento arremessou o navio para frente.
Todas caímos no assoalho escorregadio com o baque e quando finalmente

218
minhas pernas pararam de tremer e consegui levantar e olhei para trás,
tinha uma perturbação bem no meio daquele mar e as rochas demarcavam
o local onde ela terminava, mas dentro do círculo de pedras uma tempestade
ainda acontecia. Das pedras para cá, não tinha nem sequer um vento,
continuava muito nublado, mas não havia mais vento. Lórien abriu suas
asas, voou alto em direção ao sul e voltou.
― É um círculo gigante! Uma espécie de armadilha ou barreira! ―
Disse ela sorrindo ― É incrível!
― Incrível e assustador! ― Retruquei. ― Bom trabalho! ― Rimos
juntas. Mag estava deitada no chão chorando.
― Eu nunca vi a morte tão de perto! ― Gritava ela e várias outras
mulheres da tripulação também choravam e se abraçavam.
A mulher que estava no mastro principal começou a berrar.
― TERRA! TERRA à VISTA! ― Corremos para a proa do navio para
poder olhar e meu estômago afundou. Não era exatamente terra, mas uma
geleira. Gigantesca! Para onde meus olhos olhavam não se via mais nada, só
gelo a perder de vista.
― É maior que a costa de Edro e Mantum juntas! ― Mag parecia mais
assustada com a geleira do que com a tempestade.
Chegamos bem perto da geleira, o máximo que o navio podia chegar,
era muito branco e meus olhos doíam com aquela claridade. Um bote foi
jogado ao mar para nos levar até a costa.
― Se forem direto ao Sul, chegarão à Mantum facilmente! ― Explicou
Lórien à tripulação do Navio.
Descemos até o bote e começamos a remar calmamente enquanto o
navio se virava lentamente. Banshee apareceu no convés e começou a gritar.
― Preparar canhões! ― Ela estava furiosa ― Vocês vão me pagar! ―
Gritava. A tripulação armou e preparou os canhões contra nós.
― Elas acham que vão nos matar com aquilo? ― Falei debochando e
Lórien riu.
― Elas acham que sim! ― Respondeu ela ficando de pé. ― Quer ver
um show de fogos?

219
― Acho que pode ser arriscado, Lórien! Não sabemos o que tem lá! ―
Lembrei-lhe apontando com o queixo para a geleira.
― Verdade! ― Ela ficou tristonha.
― FOGO! ― Gritou Banshee de dentro do navio e Lórien apenas
começou a cochichar perto da água. Palavras estranhas, não era élfico nem
silfo. Os canhões do navio não disparavam.
― O QUE ESTÃO ESPERANDO, IMBECIS! FOGO! ― Banshee usava todo
o ar de seus pulmões para berrar com a tripulação, que tentava atirar a todo
custo. Feroz se encolheu no bote e começou a tremer. Lórien me pegou no
colo e eu peguei Feroz, voamos rapidamente até a geleira onde pousamos e
ficamos olhando o navio. Feroz ainda chiava baixinho no meu colo.
― Que foi? ― Perguntei acariciando sua cabeça.
― Leona! Não vai querer perder o espetáculo, não é? ― Disse Lórien
apontando para o navio ― Eles já estão aqui! ― Disse rindo.
As águas próximas ao navio começaram a ondular e borbulhar e eu
podia ouvir os gritos da tripulação.
Uma coluna de água surgiu bem à frente do navio e de dentro dela saiu
um tentáculo com quase o dobro do tamanho do navio. Vários outros
tentáculos saíram da água arrebentando o navio e o arrastando aos
destroços para o fundo do mar. As águas em volta dos destroços se moveram
e começaram a ficar vermelhas. Meu corpo inteiro tremeu.
― Aquilo estava embaixo de nós o tempo todo? ― Perguntei olhando
os restos do navio sumindo nas águas.
― Estava nos seguindo desde o Mar das Tormentas! ― Disse ela
olhando para um ponto na água. ― Eram a nossa escolta.
― Escolta? ― Lórien apenas sorriu olhando para aquele mesmo lugar.
Segui seu olhar e vi dois pontos azuis brilhantes vindo rapidamente em
nossa direção. Lórien não se afastou nem perdeu o sorriso no rosto.
Amijad e Lirien apareceram bem próximos de onde estávamos e
acenaram para nós. Corri até eles.
Ami, Lirien! Como estão? O que foi aquilo? ― Perguntei.
― Agora estamos bem alimentados ― riu Lirien e Ami o acotovelou.

220
― Carne de mulher tem gosto meio amargo! ― Ela reclamou pondo a
língua para fora.
― Só para você! ― Retrucou Lirien.
― Gostou do nosso bichinho? ― Ami alegremente apontou o Kraken
divertindo-se com os destroços.
― Bichinho? Feroz é um bichinho! Aquilo não pode ser chamado de
bichinho! ― Eles riram.
― Tínhamos uma dívida com você e com aquele elfo rabugento! ―
Disse Ami. ― Dê lembranças a ele se o encontrarem com vida!
― E a capitã dos ventos nos devia uma também. ― Lirien olhava para
os destroços do navio com a cara amarrada.
― Muito obrigada! ― Agradeci.
― Se precisar, é só chamar! ― Ami me entregou uma concha enorme
e colorida. ― É só soprar e viremos buscar vocês! ― Disseram se afastando
e sumindo nas águas geladas, pelo visto, eles não se incomodavam com a
baixa temperatura. Agora o nosso problema era outro. O frio!
Não sabíamos para onde ir e nem por onde começar a procurar, era
tudo gelo até onde a vista podia alcançar. Lórien voou alto a procura de
algum vestígio de civilização.
― Leona, tem algo estranho para lá! ― Lórien pousou perto de mim.
― Um tipo de pirâmide!
― Então vamos para lá! ― Fiz minhas roupas normais virarem um
sobretudo de couro forrado com lã crua e com capuz e gola bem fofa. Lórien
fez o mesmo. Feroz parecia se divertir na neve, o frio só não nos incomodava
tanto, pois não havia vento algum.
Depois de meia hora caminhando, caí de joelhos na neve. Meus pés e
pernas estavam dormentes.
― Por que aqui está fazendo tanto frio? ― Perguntei olhando para o
céu, e lá estava minha resposta. Só Áries estava no céu, montamos em Feroz
para seguir adiante, seu corpo quente e peludo ajudou a trazer a sensação
de volta às minhas pernas.

221
Feroz parecia não se importar, corria conosco em cima dele sem
parecer que estava cansado ou ficando cansado.
― Ele é um tigre das montanhas de Edro ― disse Lórien enquanto
corríamos montadas em Feroz ― O frio o estimula, ele fica mais forte! Se ele
não pegar no sono, claro! Ele pode começar a hibernar a qualquer momento!
― Ela estava rindo e também não parecia se importar com o frio. Meu rosto
estava completamente congelado.
Andamos pelo que parecia ser uma eternidade sem chegar a lugar
nenhum, Lórien voava e tentava ver a pirâmide, ela estava sempre no
mesmo lugar, mas nunca chegávamos mesmo caminhando na direção
correta.
― Tem alguma coisa errada! ― Disse ela na última tentativa de ver a
direção. ― Feroz não consegue sentir cheiro de nada, e mesmo na direção
correta, nós nem mesmo chegamos mais perto! ― Olhei em volta, não havia
nada mesmo, nem um sinal de nada até onde a vista podia alcançar, olhei
para trás, também não tinha nada, não tinha nada.
― Lóri, as pegadas de Feroz sumiram! ― Falei descendo dele e me
ajoelhando no chão para ver bem de perto. Nada, só as marcas de meu joelho
quando levantei, dei um passo para trás e as minhas marcas na neve também
desapareceram.
― É uma ilusão! ― Lórien estava frustrada.
― Nós estamos há horas aqui e não escurece! E já estava anoitecendo
quando descemos do navio! ― Eu olhei para o céu e estava muito claro ainda.
― Como saímos dessa ilusão? ― Perguntei, Lórien cobriu a boca e ficou
sentada pensando.
― Temos que descobrir o limite da ilusão, normalmente é um círculo
ou um triângulo! ― Ela esticou a mão como se fosse tocar em algo.
― Como a gente acha isso? ― Perguntei.
― É um espessamento, tipo um fio gelatinoso, é difícil sentir ao passar
por ele! ― Ela parecia um cego tateando no escuro.
― Tive outra ideia ― peguei o cetro, fiz um risco no chão e levantei
uma onda de neve. Nada. Tentei outra vez e ainda nada.

222
― Faça a onda mais alta! ― Disse Lórien olhando para o alto. Bati no
chão com força dessa vez, uma onda enorme fez algo sacudir a alguns metros
acima de nós. ― Ali! Viu?
― Vi! E agora? ― Perguntei ansiosa observando aquela espécie de fio
transparente vibrar.
― Temos que fazer a barreira cair! ― Disse ela erguendo as mãos. A
neve em volta de nós começou a se juntar, fazendo uma bola do tamanho de
um carro. Ela ergueu a bola no céu, depois a arremessou contra a barreira
ilusória, mas nada aconteceu.
― Uma bola de neve para tentar quebrar magia? Sério? ― Lórien riu
e pontou para cima “Faça melhor” foi o que ela não precisou dizer. Não sabia
exatamente o que fazer, mas acumulei uma pequena quantidade de magia
nas mãos, imaginando que se tornassem lâminas para partir aquele fio,
então a arremessei contra ele. A luz foi absorvida pelo fio, fazendo com que
toda sua extensão brilhasse, mas também não adiantou. Lórien abriu a boca
para debochar, mas então, um som como de um trovão rompeu o silêncio e
o céu inteiro começou a estremecer. A barreira se quebrou como vidro e
começou a cair ao chão revelando uma paisagem magnífica.
Bem distante de nós, haviam montanhas cobertas de gelo, mas a
paisagem que nos cercava era de uma enorme praia com coqueiros e areia
branquinha. Tiramos os casacos rapidamente, aproveitando a brisa suave e
a maresia que nos beijava, a lua cheia deixava a paisagem ainda mais
encantadora.
― Agora podemos passar a noite aqui. ― Disse Lórien sorrindo e
olhando para o mar. ― Parabéns! – Ela piscou para mim.
― Lóri! Olhe para lá! ― Disse apontando para onde a tempestade
quase nos jogara contra as rochas, a tempestade estava se dissipando e
deixando o mar calmo. ― Onde estamos exatamente? ― Perguntei
― Era para o nome desse país ser Vintro, significa inverno. ― Ela
sentou na areia e olhou para o céu. As estrelas aqui brilhavam mais do que
em Edro e a Lua parecia maior também. ― Ele sempre foi o país do inverno
eterno, há muitos séculos um grupo de viajantes conseguiu passar pela
tempestade, mas tudo que encontraram foram quilômetros e mais
223
quilômetros de geleiras e neve. Não havia nenhum sinal de vida, mas eles
descreveram o lugar como constantes tempestades de neve.
― Mas é estranho não ter sinal de vida, não é? Os Yetis não vivem na
neve? Então se fosse real, deveria haver Yetis aqui!
― Pois é! Parece que essa barreira sempre esteve aqui! Agora, nós
vamos ter que olhar um pouco mais de perto para levar as informações
corretas para os governantes.
― Quem será que fez essa barreira? ― Perguntei enquanto preparava
o jantar.
― Não tenho certeza se foi Arcádius, ele é um dos magos mais antigos
de Alamourtim, o sonho dele pelo poder total se deu quando os elfos
começaram a tomar conta de tudo, ele queria ter o poder, o controle sobre
tudo por ser o ancião mais poderoso e influente do antigo conselheiro. Ele
só ficava abaixo do Rei.
― Ele achava que por ser mais velho podia mandar em tudo, é isso? ―
Lórien riu.
― Basicamente. O pior é que ele se tornou cruel depois de um tempo,
houve uma época em que ele foi bom, então do nada mudou, começou tudo
com rigor extremo, suas regras eram muito rígidas e se alguém as quebrava,
era punido cruelmente. Depois ele abriu uma escola de magia para magos
iniciantes, mas ninguém sabe com que propósito e até sua mãe foi aprendiz
dele! ― Disse Lórien deixando-me espantada.
― Amantia ainda tem um rei? ― Perguntei ignorando o que ela havia
dito sobre minha mãe.
― Claro! ― Disse ela sorrindo ― Rainha, para ser mais específica,
minha avó, Eirien! ― Ela riu de novo ― Vovó que escolheu o nome de
Ewren!
― Ia comentar que os nomes são parecidos. ― Brinquei. ― Ei! Então
você é sucessora do trono?
― A quinta, para ser exata. O Primeiro é o irmão de minha mãe,
Ruthar, depois vem Arin, minha mãe, depois Bargon, filho de Ruthar, depois

224
Ewren e eu, por último a filha de Bargon, Turiel! ― Ela me olhou
timidamente.
― Você é da família real? ― Minha voz saiu tremida e ela encolheu os
ombros
― Não tenho muitos amigos por isso, sempre achavam que as pessoas
vinham a mim por interesse, então comecei a esconder essa informação! ―
Ela deu um meio sorriso olhando para mim com um olhar de filhote pidão.
― Você é louca? ― Esbravejei ― O Mago jura vingança contra a
família real e você decide vir atrás dele?
― Ah! Achei que você estava com raiva de eu ser uma nobre! ― Ela
riu ― Não tenho medo dele! ― Disse estufando o peito.
― Deveria ter! ― Bufei. Ela pulou em cima de mim e ficou esfregando
meu rosto com as mãos até eu começar a sentir minha pele soltar.
― Você é tão fofinha! ― Ela apertou minhas bochechas ― É igual a
um gatinho indefeso, mas quer se preocupar com os outros! Falando em se
preocupar... ― disse ela ficando séria novamente e me encarando. ― Temos
que dar um jeito de você aprender a usar armas e tem que ser agora! Não
sabemos o que tem por aqui e preciso que você me dê cobertura o tempo
todo!
― Como vamos fazer isso? ― Perguntei ― Mal teremos tempo para
treinar!
― Queria te ensinar do jeito mais difícil para você criar suas próprias
habilidades, mas pelo jeito, vai ser do modo fácil! ― Lórien mudou sua
aparência. Além dos cabelos prateados, olhos vermelhos e as marcas de
maga no seu braço direito, tinha aquele pequeno brasão estranho em sua
testa com o formato de duas pequenas espadas atravessadas em um círculo
e o tamanho de uma moeda de um real.
― O que é isso em sua testa? ― Perguntei
― A marca da minha família ― disse ela fazendo um espelho surgir
da areia.
― É diferente da marca de sua mãe! ― Eu disse olhando bem de perto.

225
― É da família do meu pai, de uma linhagem de magos humanos, eu
carrego o símbolo dos magos, pois quando eu treinava com ele, escolhi
carregar o brasão de seu nome ― explicou ela ― Mude de forma você
também! ― Pediu Lórien ficando de frente para mim. Me concentrei, senti
uma onda de calor pelo meu corpo, vi meus cabelos prateados voando
suavemente com o vento e depois vi o brilho verde de minhas marcas.
― Por que estão verdes? ― Perguntei ― Da última vez estavam lilás!
― Depois que você não for uma maga pura, o brilho vai mudar para
lilás. Olhe sua testa ― disse ela erguendo o espelho para mim.
A pequena flor em minha testa era na verdade uma orquídea.
― Por que temos essas marcas? ― Estava sendo chata, perguntando
sem parar, mas ela explicava-me com toda paciência.
― Há muito tempo atrás não existiam essas marcas, não éramos
diferentes de qualquer outro ser de nossas raças, mas os magos e bruxos
mais espertos usavam seus poderes discretamente, sem os outros saberem
que eram magos, e faziam coisas erradas, e como não podiam ser
diferenciados de pessoas comuns enquanto usavam seus poderes, eles
raramente eram pegos ou pagavam por seus crimes! ― Ela olhava para suas
marcas carinhosamente ― Então um dia, cansada de ver as coisas ruins que
seus companheiros faziam com seus poderes, uma maga muito poderosa
usou todo seu poder para jogar um feitiço em todo o Círculo dos Doze, mas
seu feitiço não se restringiu só a magos, toda criatura que caminhasse por
duas pernas nos mundos, receberia uma marca para saberem quem eles são
de verdade!
― Quem era essa Maga? ― Perguntei
― Mayra... Ela gastou todos os seus poderes para marcar cada um
todos os mundos e todos os que nasceriam a partir daquele momento, cada
família teria sua própria marca gravada na pele, e toda vez que usassem seus
poderes, as marcas surgiriam.
― Então Ewren também é marcado? ― Lórien Sorriu.
― É sim, quase todos nós mudamos de aparência ao usar nossos
poderes, magos, elfos e silfos ficam com essas tatuagens espelhadas, como

226
ele virou um elfo negro, sua marca passou a ser seus olhos prateados e pele
cinzenta. Assim como todos aqui, quando estão em aparência humana, ficam
com alguma marca denunciando sua verdadeira natureza.
― Muito legal! ― Disse girando meu braço para poder olhar bem as
marcas nele.
Lórien então me puxou para bem perto dela e tocou sua testa na
minha. Parecia que nós havíamos misturado nossas mentes, uma quantidade
enorme de imagens apareceu diante de meus olhos eu os fechei, pois minha
cabeça começou a doer.
― O que você fez? ― Perguntei esfregando minha cabeça.
― Dividi minhas habilidades com você! ― Eu a olhei incrédula.
― Como assim?
― Meus conhecimentos e minhas habilidades de luta, eu passei para
você!
― Então você ficou mais fraca? ― Perguntei.
― Não! ― Ela riu ― Apenas te passei todo meu conhecimento sobre
lutas com armas. Seu corpo vai responder automaticamente quando você
precisar lutar, como se você já tivesse anos de experiência nisso! ― Lórien
me explicou e eu continuava a encarando confusa.
― Ugh! Levante! ― Ela resmungou pegando suas espadas. ― Faça
uma espada para você! ― Disse ela tirando uma barra de aço da armação da
barraca e jogando em minha direção. Olhei para aquela barra e tentei
transformá-la em uma espada bonita, mas só saiu uma espada reta, pequena,
sem fio e simples. Lórien revirou os olhos e a tomou de mim, ela girou a
espada nas mãos até ela ficar perfeita, longa, com o punho todo trabalhado
com as mesmas marcas do meu braço e o fio longo, fazendo uma curva leve.
― Obrigada ― sorri.
Lórien sem aviso me atacou com suas espadas, defendi girando meu
corpo para o lado e a atacando também, fazendo a espada passar a
centímetros de seu quadril. Ela sorriu. ― Nada mal, não é? ― Então ela
pulou por cima de mim me atacando por cima, me ajoelhei rapidamente
fazendo um bloqueio com a espada, a puxando pelo pé e a jogando no chão.

227
― Improviso? ― Perguntou ela surpresa ― Não te passei isso! ― Foi
minha vez de sorrir.
Ficamos testando minhas habilidades por mais um tempinho antes de
entrarmos na barraca para dormir. Enquanto estava deitava em minha
cama, fiquei observando Lórien dormir. Ela parecia uma criança às vezes,
em outras, parecia uma mulher adulta, segura e muito responsável, talvez
algum dia pudesse ser uma ótima rainha. Ela abriu os olhos e ficou me
encarando.
― Sem sono? ― Perguntou.
― Só sonhando acordada! Obrigada Lórien, por toda sua ajuda e pela
sua amizade também!
― Nem precisa agradecer. ― Seu sorriso foi tão encantador ― Um dia
eu faço você me pagar de algum modo. ― Ela soltou uma risada e a abafou
com o travesseiro.

Levantamos antes dos sóis nascerem e arrumamos tudo rapidamente


para partir.
― Viu Feroz? ― Perguntei olhando toda a extensão da praia e Lórien
sacudiu a cabeça.
Ficamos ali esperando ele voltar. Depois de algum tempo comecei a
ficar preocupada, ele não costumava se afastar tanto de nós. Quando ia sair
para procurá-lo, um reboliço no mar nos chamou a atenção. A cabeça e as
patas dianteiras de Feroz apareceram sobre a água e tinha algo preso em
seus dentes. À medida que ele saía da água, um peixe quase do seu tamanho
foi sendo arrastado por ele de dentro da água.
― Feroz! ― Chamamos, quando ele olhou para nós, o peixe escapou
de suas presas e começou a se debater em direção a água e Feroz começou a
bater as patas na areia tentando agarrá-lo a qualquer custo. Lórien fez o
peixe flutuar, Feroz trotou até nós e se sacudiu para secar o pelo.
― Ele trouxe café para nós. ― Disse Lórien estalando os dedos e
fazendo o peixe ficar limpo. Fizemos o mesmo procedimento com o peixe
como com ave há alguns dias. Temperamos e o assamos. Lórien fez um chá

228
de ervas para acompanhar e não era aquele horrível chá que Ewren e Nena
gostavam tanto.
Depois do café, Lórien voou novamente, fazendo uma análise do local.
― Parece que estamos no lugar certo. ― Disse ela ― No pé daquelas
montanhas de Gelo tem um castelo ou uma fortaleza!
― Então vamos! ― Disse esticando a mão para Lórien. Ela fechou as
asas e caiu de pé no chão. ― Não vamos voando? ― Perguntei olhando
tristemente para ela.
― Tem três vilas daqui até lá e não faço ideia do que vive nelas! ― Ela
parecia desanimada. ― Não podemos passar voando e muito menos sermos
descobertas antes do tempo!
― Tem razão.
― Teremos que contornar as vilas e passar por um campo colorido
que vi alguns quilômetros à frente ― disse ela desenhando um pequeno
mapa no chão.

Começamos a nossa caminhada novamente. Feroz trotava em volta de


nós, feliz com a refeição.
Caminhamos quase o dia inteiro, fazendo pequenas paradas para
descansar e comer. Ao entardecer chegamos a um campo enorme, ele era
completamente tomado por flores. Eram todos os tipos de flores! Os
perfumes delas se misturavam com a brisa fazendo voar um perfume doce e
inebriante em nossa direção.
Passamos devagar por aquele campo. Lórien colhia amostras de todas
as flores que dizia não conhecer e as descrevia num caderninho de couro.
Feroz parecia não gostar daquele cheiro, pois toda hora parava para
espirrar e esfregar as patas no nariz.
Passamos mais tempo ali do que pretendíamos. Começou a escurecer
e ainda estávamos na metade do campo, embora o perfume das flores fosse
maravilhoso, a essa altura eu já estava enjoada dele e com muita dor de
cabeça, Lórien parecia estar mal também.

229
Ela abriu uma bolha pequena em volta de nós e purificou o ar dentro
dela para que não sentíssemos mais o perfume, Feroz pareceu
imediatamente aliviado.
Montamos a barraca dentro da bolha, Lórien tirou uma bolsa térmica
bem pequena de dentro de uma bolsa maior e de dentro dela tirou um
pedaço razoável de carne e depois sanduíches.
― Feroz, encolha para comer! Hoje não tem muita fartura! O cheiro
das plantas espanta a maioria da caça desse lugar! ― Disse Lórien esfregando
suas orelhas.
Comi meu sanduíche e bebi uma xícara do chá de ervas novamente.
― Lóri? Por que você não bebe aquele chá amargo? ― Perguntei
enquanto ela me servia mais chá.
― Você gosta daquele chá? ― Perguntou ela e seu rosto se contorceu
em uma careta ― Aquilo é horrível!
― Também odeio aquele chá! Mas queria saber por que você não
toma. ― Ela me olhou como se eu fosse louca.
― É óbvio que é pelo gosto ruim! ― Fiquei envergonhada e ela riu.
― Léo, aquele chá é de uma árvore muito comum nas montanhas
escuras de Edro, é uma árvore doce, o chá é uma delícia! ― Foi a minha vez
de a olhar como se ela fosse louca.
― Como assim? Aquilo é horrível! É amargo, picante e tem cheiro
ruim! ― Lórien sacudiu a cabeça.
― Nós sentimos aquele gosto no chá! Ele é bom para qualquer um que
não seja mago ou metamorfo! Porque a maioria dos metamorfos são magos.
Nós sentimos aquele gosto, pois a árvore nasce com uma defesa contra
magos, porque antigamente elas eram usadas por inteiro pelos magos para
fazer uma base pastosa para emplastros e bálsamos. Elas eram muito
utilizadas e os magos não replantavam, destruindo muitas árvores e a
floresta, mesmo crescendo muito rápido, não davam conta! ― Ela fez uma
pausa, tomando outro gole de chá ― Apenas os humanos que usavam suas
cascas para tomar o chá, as replantavam e cuidavam delas. Então as Dríades
fizeram as árvores crescerem com uma defesa, se você for um mago e tentar

230
usar a árvore, ela simplesmente vira amarga e não cria mais a liga necessária
para a pasta.
― Mas eles não pediam para outras pessoas cortarem as árvores para
eles? ― Perguntei, pois seria essa a solução.
― Aí é que está! Eles começaram a fazer isso e as Dríades tomaram
medidas mais drásticas! Se você cortar a árvore, ela simplesmente vira pó!
― E a casca não serve para fazer essa pasta, não é?
― Não mesmo!
― Mas então, por que mesmo o chá sendo preparado por outra pessoa
ele continua amargo?
― Quando ele encosta na sua boca, muda o sabor! ― Disse ela
cruzando os braços ― A pirraça de uma Dríade é eterna!
― Agora fiquei curiosa sobre o sabor verdadeiro. ― Lórien riu.
― Nunca saberemos. ― Era muito divertido viajar com Lórien, ela
estava sempre sorrindo, mas sentia muita falta de Ewren.
Acordei no meio da madrugada novamente escutando um uivo. Mas
era um uivo sofrido e baixo. Lórien também se levantou atenta e seus olhos
vermelhos pareciam lâmpadas no escuro. Feroz levantou as orelhas e
bocejou, nos fazendo ter certeza de que não era algo perigoso. Mas o uivo
continuou nos impedindo de dormir novamente.
― Ele está chorando. ― Disse Lórien depois de algum tempo
escutando. ― Parece ser um lobo filhote, provavelmente foi abandonado
pela matilha. ― Ela ficou de pé, apressei-me em levantar também e segui-la.
Ela saiu da bolha de proteção, mantendo-a ali e Feroz ficou sentando
como se estivesse tomando conta do acampamento.
Seguimos entre as Flores até a beirada de um rio que passava por ali e
nem havíamos notado. Devia ter uns três metros de largura na parte em que
estávamos, mais para frente ele se estreitava e descia entre as pedras.
Na outra margem, sentado chorando entre as pedras, havia um
pequeno lobinho cinza. Quando nos viu, levantou a cabeça e começou a
rosnar baixinho.

231
Lórien atravessou o rio com facilidade, a correnteza não era forte e
muito menos era fundo. Ao atravessar e se aproximar do lobinho, ela se
abaixou e estendeu a mão para que ele pudesse cheirar, ele parecia confuso,
cheirou e depois uivou de novo choramingando.
― Lórien! ― Chamei ― As flores! ― Ele havia perdido a sensibilidade
por causa do pólen das flores. Ela então pegou o filhote no colo e atravessou
para esse lado.
Voltamos para dentro da bolha onde Feroz nos aguardava com
ansiedade, indo de um lado para o outro.
Quando colocamos o lobinho no chão, onde o ar estava limpo e sem
perfume de flores, ele espirrou várias vezes antes de crescer e ficar do
tamanho de um Waheela. Feroz também cresceu e o encarou. Então o lobo
enfiou o rabo entre as patas e se deitou no chão fazendo gracinhas.
Lórien ficou esfregando suas orelhas e ele a retribuiu com lambidas.
― Isso é um lobo mesmo? ― Perguntei.
― Parece ser domesticado. ― Disse ela o afagando mais.
O lobo entrou na barraca com Feroz, deitou na cama de Lórien e
dormiu. Como ela ficou sem sua cama, dormimos juntas com Feroz em
nossos pés.
Iríamos sair de madrugada de novo, levantamos antes da claridade do
dia e desmontamos o acampamento para partir, Lórien estourou a bolha,
quando ela estourou, uma pequena onda de vento fez as flores balançarem
com força e começarem a brilhar.
Dei um passo para trás, as flores tinham luzes fortes e de repente
milhares de pequenas bolinhas brilhantes voaram aos céus e nos circularam.
― Fadas! Uma colônia de fadas! ― Lórien estava encantada. ― Nunca
tinha visto tantas juntas! ― Uma pequena bolinha se aproximou de nós,
ficando a um palmo de nossos rostos. A bolinha tomou forma de uma
pessoinha com pequenas asas verdes, que mais pareciam duas folhas
agarradas em suas costas. Ela começou a falar em um idioma muito estranho,
falava baixinho e com uma voz fina e irritante e parecia zangada.

232
Lórien tentava falar com ela e usou vários idiomas, mas a fada parecia
não entender.
― Elas não entendem nenhum dos idiomas de Edro e Mantum. ―
Lórien parecia frustrada. A fadinha então caiu na gargalhada.
― Entendi todos os idiomas que você falou! Estava só te perturbando
um pouquinho! ― Fiquei com vontade de apertar aquela fada até fazer seus
olhos saltarem das órbitas por nos fazer perder tempo. Lórien e ela
conversaram por algum tempo na língua das fadas.
Lórien alguns minutos depois sacudiu a cabeça e murmurou baixinho
“Não sabem de nada, é um jardim isolado”.
― Peço desculpas por invadir a casa de vocês! Mas antes de irmos,
vocês podem nos dizer se existe alguma perturbação por aqui? ― Lórien se
desculpou.
― Faz muito tempo que pessoas pararam de aparecer aqui! ― Disse
ela ― Mas nas montanhas, de lá vem veneno trazido pelo rio algumas vezes
e mata todo nosso jardim! Aí são meses para ele se recuperar!
― Muito Obrigada! ― Disse ela às fadas ― Iremos fazer o possível para
o veneno não chegar mais aqui! Vamos seguir o rio. ― Disse ela para mim.
Feroz e o lobo nos seguiram trotando.
Lórien provou a água do rio e estava cristalina.
― Parece não estar contaminada! ― Disse analisando a cor e o cheiro
da água e Lórien concordou.
Fomos caminhando rio acima, andando sobre as pedras e observando
tudo ao redor para ter certeza de que não éramos seguidas.
Lórien catalogava qualquer coisa diferente que via e até agora nada de
ameaçador havia aparecido. O lobinho a seguia o tempo todo, quando ela
parava, ele sentava e ficava observando, quando andava, ele ia atrás e não
deixava espaço maior que dois passos.
Por volta de meio dia paramos para almoçar e entramos no rio para
tomar banho enquanto a flecha caçadora de Lórien rodava a procura de
alguma caça interessante que nos servisse de almoço. Um barulho estranho

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no mato próximo a margem do rio nos fez sair da água e ficar à espreita,
escondidas atrás de uma rocha vigiando.
Duas mulheres apareceram para pegar água. Elas tinham longos
cabelos negros trançados, pele cor de mel e olhos totalmente brancos. Elas
só estavam parcialmente cobertas com uma espécie de saia e em seus pulsos
tinham enormes pulseiras de metal.
― São Almas! ― Lórien falou baixinho.
― Almas? ― Perguntei começando a me arrepiar ― Não parecem
fantasmas para mim! ― Lórien teve que segurar o riso.
― Almas, Mulheres Selvagens! ― Explicou ela. Lórien levantou
devagar, tomando cuidado para não assustá-las e eu a segui. As mulheres nos
encararam assustadas e começaram a sussurrar.
― Vão embora! ― Elas gesticulavam para nos afastarmos. ―
Depressa, se não eles vão ver vocês!
― Eles quem? ― Perguntei olhando em volta, não havia mais
ninguém ali.
O chão de repente começou a tremer e tornamos a nos esconder atrás
das pedras para esperar aquilo chegar. Escutei o som de cavalos se
aproximando, as mulheres do outro lado do rio se ajoelharam e ficaram de
cabeça baixa. Um grupo de uns vinte centauros apareceu atrás delas,
começaram a gritar com elas e lhes dar chicotadas. Tranquei meus punhos.
― Leona! Fica calma! ― Disse Lórien num sussurro. ― Vamos ajudar
elas! Mas centauros são muito fortes e imunes à magia! Se formos até lá,
viraremos escravas deles também! ― Me senti horrível por ver as mulheres
serem arrastadas pelos cabelos e não poder fazer nada para impedir. Um dos
centauros ficou parado na margem do rio, seu cenho estava franzido e ele
parecia ligeiramente diferente dos outros, seu rosto era mais “humano” e
era um pouco mais baixo, sua metade cavalo era cinza, enquanto a dos
outros era marrom, e parecia ser bem mais jovem também.
Ele virou em nossa direção, assoviou alto e foi diminuindo o som aos
poucos. O lobo que havíamos encontrado apareceu correndo, nos derrubou
para fora da pedra e depois atravessou o rio em direção ao centauro que nos

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olhava ameaçadoramente, “ele vai chamar os outros! ” Pensei, mas ele
atravessou o rio e veio até nós. Nos levantamos rapidamente, com Feroz
crescido atrás de nós para podermos fugir. Ele esticou um braço musculoso
em nossa direção.
― Não fujam! Não vou fazer mal a vocês! ― O centauro tinha um
cabelo longo cinza e emaranhado preso por uma trança malfeita e olhos
castanhos.
― Não acredito que é você ― Lórien se esticou para frente para tocar
na mão do centauro, seus olhos estavam arregalados e ela parecia nervosa.
― Meu nome é Andros! Lembra-se de mim, Lóri? ― Ele perguntou a
Lórien. Ela não mudava a expressão, estava como uma pedra.
― Andros? ― Lórien empalideceu. ― Andros Peregrino? ― Fiquei
receosa, achei que Lórien fosse desmaiar a qualquer momento. ― Não pode
ser! Você estava morto! ― Ela sentou na beirada do rio e o encarou.
― Não fui morto, fui amaldiçoado por aquela Bruxa! ― Disse ele
chegando bem perto de nós. Eu me encolhi e continuei a encará-lo. Lórien
parecia ter entrado em estado de choque.
― Não pode ser... ― Disse ela numa voz tão baixa que foi difícil de
entender.
― Preciso de sua ajuda! Por favor! ― Ele a levantou do chão e beijou
suas mãos, ela ainda não tinha reação.
― Lórien? ― Chamei abanando seu rosto.
― Estou bem! ― Disse ela me dando uma rápida olhada. Seu olhar era
perturbado e confuso.
― Estou preso aqui há mais de quatro séculos! ― Disse ele apertando
as mãos dela, sua voz era de uma mistura de desespero com alívio por nós
estarmos aqui. ― Fiquei esperando algum navio, qualquer coisa, mas nunca
veio ninguém!
― Todos em Amantia acham que você morreu na expedição de
exploração desse continente, Andros! ― Ela disse encarando-o.
― Mas estou vivo! Os outros que estavam comigo morreram, mas eu
sobrevivi! ― Ele quase gritou as palavras ― Moan me transformou num

235
centauro por eu ter descoberto seus planos e dito que ia entregá-la para o
rei, para ser executada!
― Que planos? ― Perguntou Lórien o olhando com espanto. ― Moan
é uma simples bruxa! Não tem poder para isso! ― Disse ela confusa.
― Tem sim! Ela não é uma simples bruxa! Acho que ela é amante de
Arcadius! ― Lórien estava com a boca aberta e parecia muito mais assustada
que antes.
― Como... O que você descobriu? Que planos?
― Ela estava ajudando Arcadius a tentar controlar Amantia! E ela vigia
o círculo dos Doze, ela vai aos outros mundos procurando por qualquer coisa
que possa ajudá-lo em seu plano doentio. ― Andros olhou para os lados
como se esperasse ser surpreendido por alguém a qualquer momento.
― Explique melhor, detalhes! ― Pediu Lórien.
― Ela é uma Bruxa, mas é humana, ela ficou com os poderes das magas
que Arcadius assassinou para dar a ela e ter uma ajudante fiel! Ela queria dar
o sangue da filha de Lupine para Arcádius, mas como Lupine se foi, ela
decidiu dar a própria filha humana para ele, então ela invadia as casas das
vilas humanas que tinham magos nas linhagens das famílias e enfeitiçava os
homens para que dormissem com ela, para os solteiros ela aparecia como
uma virgem muito bela, e para os casados, aparecia como suas esposas e
quando engravidava, deixava as vilas. Mas para não ser descoberta, ela vinha
para as florestas dos Centauros e se dizia como uma divindade, ela acelerava
sua gestação usando feitiços e fazendo-as durarem apenas um mês. ― Ele
estava olhando para o nada, com horror estampado no olhar. Parecia que eu
sempre estava envolvida nas coisas ruins que aconteciam por aqui.
― Continue! ― Disse Lórien olhando discretamente para mim.
― Quando seus bebês nasciam, se eram meninos ela os levava para a
floresta escura e fechada e os entregava a um Lich, que em troca da criança,
aumentava seu poder. Quando era uma menina, ela fazia um ritual para
saber se eram magas ou não, quando não eram, ela as entregava aos cuidados
dos centauros, para que fossem suas escravas!

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― Então aquelas moças no rio agora a pouco... ― eu comecei a falar,
mas não consegui terminar a frase.
― Sim, são filhas da Moan! ― Disse ele tristemente ― Demorou muito
para ela descobrir que não importava quantas filhas ela tivesse, que nunca
teria um bebê igual, pois ela não carregava a maldição das Arbarus.
― Eu vou arrancar a cabeça dela! ― Disse Lórien. Pela primeira vez,
vi um olhar perverso nela.
― Quantos bebês ela teve? Ela teve alguma filha maga? ― Perguntei.
― Foram mais de cem bebês! ― Disse ele apertando os punhos. ― A
grande maioria eram meninos humanos, e ela teve uma filha maga, mas a
criança morreu poucas horas depois de nascer.
― Ainda bem! ― Disse Lórien ― Sinto muito por falar algo tão cruel,
mas a morte dela evitou a de muitas pessoas! ― Ele assentiu com a cabeça.
― Ela parecia que nunca ia desistir, nunca ia parar com aquilo. Até
que uma noite, uma mulher acordou no meio da noite e viu seu filho na casa,
ela não estava enfeitiçada, então viu a aparência real da bruxa montada em
cima do seu filho. A mulher a esfaqueou na barriga com uma faca de ferro
banhada em saliva de aswang. Só aí que ela parou.
― Mas quando foi exatamente que ela te transformou? Como você foi
pego?! ― Ela fazia um esforço para tentar voltar ao normal.
― Logo que cheguei com a expedição para explorar esse continente e
fazer o reconhecimento, fomos atacados por um Ymir, ele era maior do que
o Gigante Terminus. Esmagou quase todos com um único golpe. Eu não tinha
como enfrentá-lo, então me lancei ao vento para fugir. Alguns dias depois
que cheguei, Moan e Arcadius apareceram com um grupo de Lobisomens,
elfos negros e Trolls. Arcadius Fez uma pirâmide de vidro sobrevoar o
continente e dessa pirâmide saiu uma espécie de rede que cobriu tudo! Então
Moan começou a fazer suas barbaridades e eu a seguia, mas não conseguia
voltar a minha forma física, a barreira dele me impedia de usar meus
poderes. Fiquei durante todo o tempo como vento, mas um dia ela sentiu a
minha presença e transformou-me em centauro para que eu fosse obrigado
a viver com eles e ver tudo o que ela fazia sem poder fazer nada para
impedir.
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― Então foi Arcadius que fez aquela barreira que você quebrou! ―
Disse Lórien para mim.
― A barreira caiu? ― Ele arregalou os olhos para mim ― Você
derrubou a barreira? ― Sorri timidamente.
― Ela é a filha de Lupine... ― Lórien riu ― Perdão, não os apresentei!
― Leona, esse é Andros, Príncipe dos Silfos e... Meu noivo. ― Ela disse a
palavra noivo como se tentasse aceitar isso. ― Andros, essa é Leona, filha da
Sacerdotisa Lupine e de seu tio Aeban! ― Disse ela com um pequeno sorriso
de lado. Tio Aeban?
― Tio Aeban e a sacerdotisa? ― Ele parecia tão surpreso quanto eu,
mas eu estava surpresa por que além de um pai, agora eu tinha parentes
mágicos, estava ficando cada vez mais divertido.
― Sim, Aeban e Lupine! ― Ela riu. ― Lupine agora está com uma
caravana tentando restabelecer a paz em Amantia!
― O que houve por lá?! ― Ele perguntou
― Depois te conto, mas agora estamos com pressa, sabemos que meu
irmão foi capturado por Moan! Estamos tentando achá-lo!
― Eu vou ajudar vocês, mas preciso do meu corpo de volta! Podem
quebrar o feitiço dela? ― Ele perguntou esperançoso.
― Podemos tentar... ― disse Lórien. ― Leona, preciso de sua ajuda
agora! ― Ela pegou minha mão ― Preciso que você aumente meu poder para
que eu quebre o feitiço daquela monstra!
― O que eu tenho que fazer? ― Perguntei.
― Só precisa conectar seu poder com o meu! ― Disse ela
transformando-se. Fiz o mesmo e segurei firme sua mão. Lórien colocou a
mão sobre o peito nu de Andros e começou a cantar uma estranha melodia.
Uma forte luz saiu de sua mão e entrou no corpo dele. Lórien deu um suspiro
e desmaiou.
― Lórien! ― Gritei sacudindo-a.
― Ela está bem, só usou energia demais! ― Disse Andros, que
continuava como um centauro. De repente ele caiu no chão e começou a se

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contorcer urrando de dor. Quando ele parou de se mexer, o corpo de cavalo
foi dando lugar a pernas até ele parecer totalmente como um homem.
Lórien abriu os olhos e suspirou, seu olhar estava estranhamente
triste.
― Deu certo? ― Ela perguntou com uma voz fraca.
― Sim, ele está normal agora! ― Ela deu um sorriso amarelo e fechou
os olhos novamente. Olhei-o caído de bruços a nossa frente, estava nu, fiquei
vermelha e virei o rosto, fiz aparecerem roupas nele para que não visse nada
que não devia quando ele despertasse.
Quase meia hora depois ele acordou, o lobo começou a pular em volta
dele e ele se levantou sorrindo, sentou ao meu lado e pegou Lórien nos
braços. Ele acariciou seu rosto e a beijou, depois assoprou as mãos dela, o
sopro foi gelado e tive certeza de ver o ar que ele expeliu, brilhar. Ela
respirou fundo e acordou.
― Agora temos que encontrar Ewren! ― Disse ela se levantando e
virando para começar a andar, Andros sorriu maliciosamente, a puxou pelo
braço e a beijou novamente, ela endureceu por um momento, mas depois
cedeu, por um instante achei sua reação estranha, talvez já não gostasse
mais dele e pelo que vi quando ela chegou em sua casa...
― Gente! Por favor! ― Murmurei ― Ewren! ― Andros a soltou e
revirou os olhos.
― Eu sei! Vamos! ― Andros deu um comando ao lobo, que parou ao
lado deles abaixado. Ele montou no lobo com Lórien e eu, em Feroz. ― Ewren
deve estar na fortaleza que protege o castelo de Arcádius! Vamos lá! ― Ele
fez um som com a boca, o lobo e Feroz começaram a correr em direção às
Montanhas.

239
11

orremos sobre os animais até o anoitecer sem descanso.

C Estávamos muito próximos à fortaleza e seus muros


podiam ser vistos a distância contra a luz do Luar.
Montamos acampamento ali no meio da floresta
onde parecia ser mais seguro, pois à nossa frente havia um
enorme descampado até onde a fortaleza estava. Estava cansada e faminta,
corremos o dia todo sem parar e Feroz dormia profundamente dentro da
barraca.
Andros ergueu as mãos e fez uma barreira em volta de nós, ela ficou
circulando e se movendo lentamente.
― É uma barreira de vento, ela distorce o nosso cheiro e impede que
qualquer um lá fora possa nos ver aqui! ― Disse ele sorrindo.
Lórien fez uma fogueira aparecer e pouco depois sua flecha caçadora
voltou com uma ave enorme presa nela. Ficamos ali, comendo e
conversando. Enquanto Feroz e o lobo dormiam tranquilamente.
― Qual é o nome dele? ― Perguntei apontando para o lobo com o
queixo.
― Dela. É uma loba ― Ele olhou carinhosamente a loba dormindo. ―
É Neve, pois eu a encontrei num dia que caía uma forte nevasca aqui.
― É meio sem criatividade, não é? ― Disse Lórien debochando.
― É sim! Mas eu nunca fui bom para dar nome às coisas!
― Ewren disse a mesma coisa sobre o nome de Feroz! ― resmunguei
― Andros? Você pode se tornar vento, não é? Então por que não voou de
volta a Edro? ― Perguntei

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― Não é tão simples. Não posso me tornar vento em dias de
tempestade. Se o vento na tempestade for muito forte, eu posso me dividir
e morrer. E eu tinha uma missão aqui, tinha que explorar esse continente
que até então estava inacessível a nós.
― A tempestade? Mas ela desmanchou quando eu quebrei a barreira!
Então ela não apareceu aqui junto com a barreira?
― Não, aquilo é a proteção natural de Vintro, ela se renova se você a
desmanchar. Quanto a barreira, esse continente já deveria estar sendo usado
por Arcadius para experimentos, pois existem raças muito estranhas aqui,
que nunca ouvimos falar! Talvez a barreira seja para impedir que essas
criaturas escapem também. ― Ele estava pensativo.
― E você conseguiu explorar tudo? ― Perguntou Lórien
― Sim, cada centímetro desse lugar! ― Ele inchou o peito para dizer
que havia explorado tudo. ― Aquela montanha que está atrás da fortaleza é
um vulcão. A lava dentro dele é azul e se formam cristais de purificação
quase cem vezes mais fortes do que os cristais das árvores da vida.
― Cem vezes? ― Lórien se espantou ― Dá para purificar um elfo
negro com eles e transformá-lo de volta? ― Eu ia perguntar a mesma coisa.
― Não tenho certeza... ― disse ele ― Mas, sei que pode purificar um
imediatamente, acalmando seu coração. Também aumenta o poder de
magos, por isso a fortaleza de Arcádius está lá na montanha!
― Interessante... ― pensei em antes de ir embora pegar um cristal
daquele vulcão. ― É muito difícil encontrar esses cristais? ― Perguntei.
― Não, a parte de trás dele é cheia desses cristais, tão cheia que é
perigoso andar distraidamente por lá. Pode acabar se ferindo, pois eles são
muito afiados. Mas parecem fáceis de se lapidar! ― Andros continuou
falando, falava com gosto das descobertas dele nesse continente e parei de
prestar atenção alguns minutos mais tarde.

Depois que fomos nos deitar na barraca, esperei para ter certeza de
que Andros e Lórien dormiam profundamente e saí de fininho da barraca,
arrumei a mochila levando algo para comer, uma capa grossa que Lórien

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havia me emprestado enquanto estávamos no navio e uma garrafa d’água.
Chamei Feroz e ele parecia que sabia o que eu planejava fazer.
― Feroz? Temos que correr! Voltar antes que acordem! Está vendo
aquele vulcão? Temos que ir atrás dele sem sermos percebidos, se alguém
estiver guardando a fortaleza! ― Ele espirrou e bateu com as patas no chão,
ele correu muito mais rápido do que estava correndo durante o dia e mal
escutava o ruído de suas patas no chão e de seu pelo roçando em mim.
Passamos rapidamente por um local totalmente aberto, depois
continuamos a correr pela floresta. Por um breve momento achei que
tivesse visto uma sombra cortar o brilho da lua gigante acima de nós.
De repente Feroz deu uma freada brusca, derrubando-me de cima
dele ao chão. Saí rolando e bati em uma árvore com força. Meu ombro direito
começou a queimar. Tentei me levantar cuidadosamente, mas meu ombro
parecia que ia sair do lugar.
― Feroz! ― Disse baixinho com a voz tremida ― O que houve? ―
Perguntei olhando em volta e o procurando. Quando o vi, meu coração deu
um salto. Ele estava com as patas presas por grilhões de prata e chorava
baixinho olhando para mim assustado. Levantei-me e andei até ele com
dificuldade. Quando cheguei perto, ele bateu de leve com a cabeça em mim,
como se estivesse me empurrando.
― O que foi? ― Perguntei e ele olhava fixamente para um ponto atrás
de mim. Virei-me cuidadosamente, Demétrius estava parado em pé,
sorrindo a alguns palmos de mim.
― Olha o que eu achei! ― Disse ele zombando ― Um gatinho e uma
gatinha perdidos na floresta! ― Ele se aproximou lentamente, tentei pegar
meu cajado em meu pescoço, mas ele não estava lá. Devia ter arrebentado e
caído na queda. Eu não poderia correr, ele iria me alcançar facilmente e eu
nunca deixaria Feroz para trás.
Feroz tentou pular para atacar Demétrius, que já estava praticamente
ao meu lado, mas a corrente lhe deu um choque e ele caiu desacordado.
― Feroz! ― Gritei tentando tocar nele, mas Demétrius impediu,
puxando meu braço e derrubando-me no chão.

242
― Finalmente vou poder pegar minha recompensa, só preciso te levar
até lá! ― Disse ele apontando a fortaleza com o queixo do outro lado do
campo, bem distante de nós. ― Mas antes, sabia que aquela única gota do
seu sangue que provei me deixou com um poder bem maior? ― O sorriso
dele era assustador, eu queria fazer algo, mas ele estava prendendo meus
braços e não permitia que eu me movesse. ― Que foi? Está tão quietinha!
Quando te conheci, você não parava de falar! ― Ele riu novamente.
― Não tenho nada para falar com alguém como você! ― Gritei.
― O-oh! Arrogante como a mamãe, não é?
Demétrius me pegou pelo braço ferido e me levantou do chão,
fazendo-me prender um grito de dor, não ia dar esse gostinho a ele de me
ver gritar ou chorar. Ele soltou meu braço esquerdo e puxou a alça do meu
vestido, lambendo o local que as cascas afiadas da árvore haviam feito
pequenos cortes e a raiva me tomou. Não tinha meu cajado, mas podia lidar
com ele de alguma forma, concentrei o máximo da minha força e desejei que
fosse forte o suficiente, ele estava de cabeça baixa sobre mim, girei meu
corpo rapidamente e o aceitei no rosto com meu cotovelo, usando todas as
minhas forças. Ele foi arremessado por vários metros e vi o brilho prateado
do meu cabelo nas sombras da árvore na qual estava apoiada.
― Sua imbecil! ― Ele levantou furioso, seu rosto estava torto para o
lado e o maxilar havia deslocado, eu sorri debochando dele. Aparentemente
não precisava do cajado para invocar meus poderes. Senti as feridas no meu
ombro se fecharem lentamente. ― Você vai ter o que merece, e para ser
mais doloroso e divertido, não vai ser pela minha mão! ― Ele deu um assovio
agudo e alto, que fez minha cabeça girar.
― Você é ridículo e fraco! Se Ewren estivesse aqui, iria acabar com
você! ― Gritei. Demétrius olhou para mim e tentou sorrir com seu rosto
torto e sujo de sangue.
― Queria ficar para ver isso, mas tenho que fazer uma coisa mais
importante, afinal, você não veio sozinha, não é? ― Disse ele desaparecendo
em uma poça d’água. Lórien! Tentei levantar para ir até onde ela estava,
porém uma sombra sobre mim me fez congelar.

243
Escutei um som como se algo tivesse caído no meio das folhas secas no
chão da floresta. Era ele! Ewren estava parado atrás de mim, a menos de um
metro de distância. Meu coração saltou de felicidade, mas a felicidade sumiu
quase que instantaneamente.
Seus olhos estavam completamente vermelhos, sua pele estava cheia
de cortes e ferimentos, como se fossem feitos por chicotadas, seu cabelo
branco que era tão liso e brilhante estava feio, embolado e sujo, e havia
olheiras sob seus olhos.
― Ewren! O que fizeram com você? ― Minha garganta ficou apertada.
Tentei me aproximar, mas ele puxou suas adagas e mostrou os dentes para
mim.
― Me... mandaram te levar até a fortaleza... ― sua voz parecia
cansada, arrastada.
― Ewren! Não se lembra de mim? Não sabe quem sou? ― Perguntei.
― Você é quem eu tenho que levar para a fortaleza ― disse ele ― nem
que seja em pedaços! ― Ele pulou na minha direção com as adagas na mão.
Me joguei ao chão, rolando e desviando dele e corri, mas ele pulou e
aterrissou em minha frente.
― Coopere, não quero te levar em pedaços, porque seria um
desperdício! ― Disse ele pegando uma mecha do meu cabelo e levando à
boca. Senti todo meu corpo ficar frio e formigar. Fechei os olhos, eu não
queria feri-lo, ele já estava muito machucado, mas eu não tinha escolha. Bati
com o pé no chão, fazendo as raízes das árvores saltarem da terra e
formarem uma gaiola em volta dele. Corri até Feroz, que ainda estava
desacordado, as correntes de prata também me afetavam, quando as toquei,
levei um choque e meus poderes enfraqueceram instantaneamente, era
tudo que eu não precisava naquele momento, ficar mais fraca!
Escutei os galhos arrebentando e quando me virei, Ewren me pegou
pelo pescoço e me jogou no chão, senti meu corpo bater pesadamente em
cima dos pedaços das raízes partidas, fiquei tonta e sem ar e tentei me
levantar, mas não consegui, pois Ewren agachou sobre mim, me prendendo
ao chão com as pernas, ele arrebentou um pedaço da corrente de prata que
segurava Feroz, enrolou em minhas mãos e as puxou, encostando-as no chão
244
acima de minha cabeça, assim não poderia usar meus poderes, ele se apoiou
em sua mão livre e ficou com o rosto a centímetros do meu.
― Uma pena, mas eu não pretendo te levar inteira... ― ele disse rindo
e arrebentando a alça de meu vestido com a mão.
― Me solta! ― Comecei a gritar, tentando me soltar enquanto ele
forçava minhas pernas a se abrirem com seu joelho. ― Por favor, Ewren!
Não! ― Eu comecei a chorar, a me debater e a repetir “Não”, “Não”, “Não”!
― Nada me impede de fazer isso... ― Disse ele deslizando meu vestido
para baixo e tocando meu pescoço com seus lábios frios.
― Ewren! Pare, por favor! Você disse que ia me proteger, lembra?
Você me fez uma promessa! ― Minha voz saiu tremida e baixa. Ele riu e
apertou meus braços com força. Fiquei de olhos fechados chorando
baixinho, ele passou a mão pela minha cintura e depois colocou seu rosto
junto ao meu. Ele ficou ali por um momento antes de suspirar.
― Por favor, não chore, odeio te ver chorar, me deixa louco! ― Disse
ele se levantando, tirando-me do chão e me puxando para dentro de suas
asas abertas ― Não precisa chorar mais, não vou te fazer mal! ― Caí de seus
braços de joelhos no chão, chorando mais e me cobrindo com as mãos.
Ewren se ajoelhou em minha frente fechando as asas, seus olhos estavam
normais, com olheiras, mas normais, um olho azul e outro cinza.
Ele me cobriu com a capa que eu havia colocado na mochila. Eu ainda
estava em choque e fiquei sentada no chão com o rosto cheio de lágrimas
olhando desconfiada para ele. Ele ficou sentando de olhos fechados com uma
expressão dura, como se estivesse lutando internamente, seus punhos
estavam serrados e por um breve momento percebi que ele estava tentando
se conter.
― Aquela bruxa maldita! ―Ele esbravejou dando um soco no chão ―
Ela me enfeitiçou, apagando minha memória e me fazendo de escravo!
― Moan? ― Minha voz estava tremida. Ele fechou os olhos e passou a
mão na minha cabeça gentilmente, me fazendo encolher para longe dele. Foi
sem querer, meu corpo se moveu automaticamente e pude ver a tristeza em
seus olhos.

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― Sinto muito! ― Disse ele se levantando ― Vou voltar e cortar a
cabeça dela! ― A fênix em suas costas se mexeu e esticou as asas, fazendo
as asas de Ewren se abrirem.
― Não vá! ― Gritei tentando ficar de pé, desequilibrando e me
segurando nele. ― Lórien! Demétrius foi atrás dela!
― Ela está aqui?! ― Ele ficou ainda mais furioso.
― Ela me trouxe aqui... ― disse baixando a voz quando vi seu olhar de
reprovação e raiva.
― Por que vocês não estão juntas? ― Gritou ele indo até Feroz e
soltando as correntes. Amarrei a alça arrebentada do vestido e peguei Feroz
no colo quando ele encolheu, voamos e ficamos rodando por cima de onde
estava o acampamento até escutarmos um grito.
Ewren desceu rapidamente pousando no meio das árvores. Podíamos
escutar Lórien gritando, mas não víamos nada.
― Lórien! ― Gritei
― Leona! Me ajude! ― Ela gritou de dentro da bolha. Eu estava
tocando a bolha, pois a senti vibrar, peguei um galho qualquer no chão, o
visualizei sendo coberto com meu poder e acertei a bolha, fazendo-a
estourar.
Andros estava caído no chão, seus olhos estavam fechados e estava
ofegante. Lórien estava quase de joelhos na frente da barraca destruída,
fazendo um escudo com suas espadas, e Demétrius estava acertando elas
com as mãos vazias.
― Olhe o poder que seu sangue me deu! ― Riu ele loucamente e
arremessando Lórien longe com um golpe de sua mão.
― Lórien! ― Gritei indo até ela.
― Cuide dela que eu cuido dele! ― Disse Ewren para mim.
Lórien não estava gravemente ferida, mas estava desmaiada. Eu
precisava do meu colar urgente! Ewren e Demétrius estavam lutando,
percebi que Demétrius tinha grande vantagem sobre ele. Tentei ser o mais
rápida possível para que pudesse ajudá-lo. Peguei entre os destroços da

246
barraca a espada que Lórien havia feito para mim e moldei-a em um novo
cajado rapidamente, usando a pedra que Andros havia me mostrado.
Corri novamente até Lórien e usei o máximo da minha energia para
tentar curá-la. Deu certo e ela se levantou cambaleando.
― Por que ele está tão forte assim? ― Ela me olhava assustada.
― Ele tomou meu sangue! ― Lórien levou as mãos à boca.
― Ele vai matar meu irmão! ― Disse ela se levantando e correndo até
Andros, tentando curá-lo também.
Tentei chegar perto de Ewren e Demétrius, mas eles estavam em uma
luta feroz com as espadas.
― Agora, você nunca mais irá me ganhar! Vou transformar você em
uma pilha de ossos! ― Disse Demétrius jogando a espada no chão e pulando
numa velocidade assustadora em direção a Ewren.
Ewren tentou desviar, mas era tarde. Demétrius cravou as garras em
seu pescoço. Ewren se libertou com bastante esforço. Ele usava toda sua
força, porém parecia não causar dano algum a Demétrius.
Corri até os dois para tentar ajudar Ewren.
― Não se aproxime! ― Gritou Ewren ― Não quero que você se
machuque mais! ― Ele encostou as adagas fazendo as duas se unirem e
virarem uma única espada longa e cheia de pontas irregulares na lâmina.
― Mas Ewren... ― tentei falar, mas ele me interrompeu.
― Vá! ― Gritou ― Lórien, Andros, levem-na daqui agora! ― Vi um
brilho avermelhado em seus olhos novamente e meu coração apertou.
Lórien correu até mim, eu queria ficar e queria ajudar mesmo com medo
dele, não queria vê-lo ferido, não mais do que ele já estava! Andros me
puxou, tentei lutar para me soltar de seu aperto, mas ele jogou-me no ombro
com um movimento de sua mão e fez aparecer dois cavalos de vento, porém,
com o dobro do tamanho de cavalos de verdade. Andros jogou-me em cima
de um deles e montou, segurando-me com força para que não escapasse,
Lórien pegou Feroz rapidamente e corremos em direção à montanha com a
loba de Andros nos seguindo.
― Andros, me solta, por favor! ― Implorei enquanto me debatia.

247
― Nem pensar!
― Mas Andros! Ewren está em desvantagem! ― Gritei tentando
descer para voltar até ele.
― Todos nós estamos em desvantagem agora! ― Ele respondeu aos
berros ― Se você voltar, você morre! Ewren nem está limpo ainda! Vi os
olhos dele, não sei o que você fez, mas não faço ideia de como ele conseguiu
voltar ao normal durante um tempo!
― Vamos pegar alguns cristais lá na montanha! Vamos unir esses
cristais no cajado de Leona e acabar com aquele mestiço de uma vez por
todas! ― Gritou Lórien, pude ver de relance um olhar assustado dela para
Andros.
― Deixe-me sentar direito então! ― Gritei, minhas costelas estavam
quase esmagadas conta o cavalo de vento. Andros me deu um puxão e sentei
de lado, segurando-me no pescoço do animal. ― Eu perdi meu cajado
quando caí de Feroz. ― Disse ― O que vamos fazer? ― Lórien baixou os
olhos como se estivesse envergonhada e tirou uma fina corrente do pescoço.
― Meu cajado estava com você?
― Eu achei que se você não estivesse com ele, você não sairia do nosso
lado, não, desprotegida!
― Eu podia ter feito alguma coisa! ― Grunhi. ― Se eu estivesse
usando ele...
― Agora poderemos fazer! Só conseguir os cristais! ― Disse Andros
me interrompendo. Fiquei com muita raiva de Lórien, mas a raiva foi
substituída pelo desespero de não estar lá com Ewren. Queria que eles
andassem mais rápido, queria voltar e levar os cristais até Ewren, queria
salvá-lo de Demétrius. “Ewren, por favor, aguente” pedi em silêncio.
Estava demorando muito, parecia que nunca iríamos chegar! A
montanha estava bem ali na nossa frente, mas nunca a alcançávamos.
Quantas horas já haviam se passado? Duas, três?
― Aqui! ― Andros quebrou o silêncio apontando para uma fraca luz
azul que vinha da parte de trás da montanha, estávamos bem próximos
agora e pude ouvir o barulho do mar.

248
Contornamos rapidamente, antes de aparecer a encosta, a paisagem
foi tomada por uma forte luz azul em contraste com o mar escuro bem
abaixo de nós. Havia realmente milhares de cristais, de todos os tamanhos,
desci rapidamente e fui pegar o primeiro que vi.
― Espere! ― Gritou Andros.
― O que é?! ― Gritei jogando os braços para o alto ― Você vai esperar
Ewren morrer para fazer isso? ― Perguntei mostrando o cristal mais
próximo de mim.
― Não é isso! Eles são muito afiados, se você puxar com as mãos, vai
se cortar, e o corte desse cristal demora muito a estancar! ― Ele esticou a
mão e mal tocou no cristal, um enorme corte apareceu em sua palma,
fazendo uma linha de sangue escorrer. Então seria do modo difícil!
― Lórien! Meu cajado, por favor! ― Disse estendendo a mão. Ela o
pegou e andou cuidadosamente entre os cristais até mim, entregando-me o
colar com o pingente. O fiz crescer e tentei fazer o cristal se mover do chão.
Nada, tentei novamente, mas nenhum deles se movia.
― O que está acontecendo? ― Perguntei olhando para Andros. Ele
estava assustado e olhando em volta. Pegou um par de luvas grossas de
couro, mas nenhum cristal parecia ceder.
― Eu consegui puxar esse com tanta facilidade! ― Explicou ele ― Por
que não dá agora? ― Fiz um boneco de terra se levantar do chão e tentar
puxar os cristais, mas toda vez que ele tocava num cristal, esse mesmo ficava
negro e esfarelava. Não poderia fazer nada para ajudar Ewren?
― Você precisa ter uma boa intenção para retirá-los do chão! ― Uma
voz suave, mas ao mesmo tempo severa, havia dito aquilo, levantei-me
rapidamente procurando de onde vinha aquela voz.
Uma mulher estava sentada em um cristal gigante a alguns metros
acima de nós.
― Os cristais não saem do chão se você não tiver boas intenções! ―
Disse ela novamente, pulando de onde estava e pousando suavemente na
minha frente. Ela tinha olhos negros como a noite e pele tão branca como a
lua. Seus cabelos curtos brancos como a neve batiam suavemente em seu

249
rosto, soprados pela brisa. Ela era pequena, menor que eu, mas parecia ser
mais velha que a própria Amantia.
― Não estou entendendo! Então era para eles estarem soltos em
minhas mãos! ― Reclamei para ela.
― Suas intenções são as erradas! ― Ela disse.
― Não são! Eu quero usá-los para salvar alguém! ― Esbravejei com
ela. Ela não se alterava e continuava me olhar com aqueles grandes olhos
frios e expressão serena.
― Você quer salvar uma boa pessoa? Uma pessoa de coração nobre?
― Perguntou ela.
― Sim! ― Respondi.
― Por que mente para mim?
― Quem é você para dizer que estou mentindo? Eu quero salvar
alguém! Isso já não deveria bastar como uma boa intenção?
― Você está tentando salvar um monstro que acabou de tentar te
matar, por que quer salvá-lo de outro monstro?
― Leona? Ewren tentou te matar? ― Lórien estava com os olhos
cheios de lágrimas. Levantei a mão para ela num sinal para que não
interrompesse.
― Eu preciso ajudá-lo! Ele pode não ser uma pessoa perfeita, mas eu
devo minha vida a ele! Ele me salvou mais de uma vez!
― Um monstro não precisa ser salvo! ― Disse ela virando as costas
para mim.
― Não precisa! Mas eu quero salvá-lo e vou! ― Gritei, fazendo-a parar
e me encarar novamente.
― Por que você quer tanto ajudá-lo? ― Ela perguntou prendendo meu
rosto e olhando dentro de meus olhos, quase a senti tocar em minha alma.
― Por quê? ― Senti um nó na garganta ― Porque eu... eu o amo, não
faria sentido deixar alguém que eu amo morrer! ― Ela soltou meu rosto e
acariciou minha cabeça.
― Você não deveria amar um monstro! Em Amantia, nós matamos os
monstros e não os recompensamos com amor! ― Disse ela suavemente.
250
― Todos temos um monstro adormecido lá no fundo! Mas nos cabe a
decisão de libertá-los ou destruí-los, não é? ― Disse a ela. ― Eu preciso dar
a Ewren uma chance de destruir o seu monstro interior! ― Disse a ela.
― E se ele escolher não o fazer? ― Senti o olhar dela segurar na minha
alma. ― Teria coragem de acabar com ele? ― Meu estômago afundou.
― Nunca... ― ela sorriu presunçosamente ― Mas eu lutaria por ele,
eu iria até o fim do mundo se fosse preciso para tentar trazê-lo de volta, não
importa o tempo que isso levasse! ― Consegui tirar o sorriso do rosto dela.
― Você não precisa desses cristais para salvá-lo então! Você tem algo
bem mais forte do que toda essa montanha de cristais, mas se você escolher
dar isso a ele, e ele escolher libertar o monstro, nada mais irá detê-lo! ―
Disse ela, me entregando um saquinho cheio de cristais pequenos. ― Mas
você veio aqui por estes, pode levar alguns!
― Obrigada. ― Agradeci, lhe dando um abraço e virando de costas
para partir.
― Espere! ― Ela falou me chamando de volta, se aproximou de mim e
sussurrou ― Não espere seu poder chegar às mãos erradas para quebrar a
maldição que você carrega!
― Entendido! Como é seu nome? ― Perguntei.
― Eu sou Áries! ― Disse ela sorrindo.
― Áries? O mesmo nome do sol!
― Não o mesmo nome, o mesmo ser! ― Ela sorriu e desapareceu
diante de meus olhos.
― O mesmo ser? ― Ela era Áries? O sol?! Fiquei parada ali olhando
para o lugar onde Áries esteve. Ewren.
Feroz estava fraco demais para me carregar, então usei toda minha
concentração para tentar fazer um cavalo igual ao de Andros. O meu ficou
quase igual, só que de terra, montei e vi Lórien se aproximar de mim.
― Leona, é melhor não... ― eu a interrompi.
― Por favor, se não quiser ir, não vá, mas eu não vou deixar ele
sozinho lá! Eu preciso voltar! ― Ela acenou com a cabeça e fez um sinal para
Andros. Ele fez os cavalos de vento voltarem, corremos de volta à floresta

251
onde o deixamos lutando com Demétrius. Escutei uivos bem próximos e
quando me virei, pude ver dois lobisomens que corriam atrás de nós e
estavam quase nos alcançando.
― Deixa que eu lido com eles! ― Andros saltou de seu cavalo fazendo
redemoinhos prenderem os lobisomens ― vão na frente que alcanço vocês!
― Eu nem havia parado de correr e Lórien havia diminuído para olhar
Andros, mas voltou a correr comigo.
Não estava correndo o suficiente, queria ir mais rápido. “Serei seus
olhos, suas patas e seu coração”. Transferi parte da minha mente para
controlar a corrida de meu cavalo de terra e aumentei minha própria força
para correr mais rápido, deixando Lórien para trás. Não demorou nada para
alcançar a floresta. Apenas Neve, a loba, conseguira manter meu ritmo de
corrida, Feroz havia ficado para trás com Lórien.
Havia sinais de luta por toda a floresta, árvores quebradas, buracos e
muito sangue. Tive medo quando vi aquelas manchas de sangue.
― Neve, me ajude a achar eles! ― Disse descendo do cavalo e fazendo-
o se desmanchar, me senti exausta e com sono, mas não era a hora de me
sentir cansada. Ela andou em volta de mim, farejou e depois começou a
correr pela floresta devagar o suficiente para que eu pudesse acompanhá-la
até uma gruta no meio da floresta.
Por um instante meu coração parou de bater, Ewren estava bem perto
do riacho, caído e com o rosto no chão. Não via Demétrius em lugar nenhum.
Corri até ele e me ajoelhei ao seu lado, uma de suas adagas estava
atravessada em suas costelas. Ele respirava com dificuldades, mas estava
vivo. Tentei juntar o resto de minha energia para tentar curá-lo, mas não
conseguia, estava esgotada e mal mantinha os olhos abertos.
― Ewren... ― comecei a chorar, tirei a adaga dele e esguichou sangue
quando a puxei, então rasguei a barra do vestido e pressionei sobre o
ferimento. ― Lórien já está vindo, ela vai curar você! ― Eu o virei
cuidadosamente e coloquei sua cabeça sobre meus joelhos dobrados, ele
estava muito ferido e meus olhos se encheram de lágrimas. Acariciei sua
cabeça, por mais que eu tentasse, não conseguia fazer meu poder voltar. Ele
abriu os olhos, estavam vermelhos como antes e eram uma mistura de dor,

252
raiva e tristeza. Ele tentou se levantar, mas não o deixei se mover. Ele parecia
alto, dopado.
― Não queria que você me visse assim, destruído... ― sua voz estava
horrível, como se algo estivesse o impedindo de falar.
― Não se esforce muito! Espere ela curar você ― disse passando a mão
em seu cabelo.
― Me desculpe...
― Não tenho nada para desculpar! ― Disse tentando não começar a
chorar alto.
― Acho que não vou poder mais ficar de olho em você, não é? ― Ele
estava olhando para o alto. ― Eu preciso te contar uma coisa. ― Ele estava
se esforçando para tentar levantar de novo.
― Por favor, fique parado... ― Disse segurando-o no chão, mal
consegui enxergar Ewren em meu colo, pois as lágrimas embaçavam meus
olhos.
― Não me interrompa! ― Disse ele tossindo mais sangue. ― Eu sabia
no minuto em que eu a vi, que era com você que eu queria passar o resto da
vida, mas eu não merecia, então preferi me afastar, achei que seria melhor
para você até descobrir quem você era de verdade, aí eu tive esperança de
que você voltaria um dia quando estivesse tudo diferente... ― Ewren fechou
os olhos.
― Ewren! ― Gritei sacudindo-o. Ele tentou respirar sem tossir.
― Não grite! ― Ele tentou respirar fundo, mas não conseguiu ― Eu só
preciso que você saiba que eu nunca amei ninguém como eu amo você, e que
sinto muito por não ter dito antes... ― mal podia acreditar no que ouvi. Não
conseguia encontrar minha voz para falar nada, tinha acabado de descobrir
que eu tinha uma chance, mas que nunca poderia aproveitá-la.
Escutei um barulho na água atrás de mim, Demétrius estava de pé
sorrindo.
― Está na hora de ir. ― Disse ele puxando-me pelos cabelos. Ewren
estava desacordado.

253
― Não vai me levar a lugar nenhum! ― Gritei puxando seus dedos,
tentando abri-los e soltar meu cabelo.
― Vou te levar para a fortaleza! E depois que tirarem tudo o que
precisam de você, eu terei minha tão amada recompensa. ― Disse ele
sorrindo e mostrando aqueles dentes como agulhas iguais aos de Lirien.
― Por favor, me deixa despedir dele! ― Implorei. Demétrius olhou
para mim, então soltou meu cabelo. ― Ele vai morrer mesmo, seja rápida!
― Disse virando de costas para mim. Antes que pudesse tocar em Ewren,
uma bola de fogo acertou Demétrius, o atirando no chão.
― Leona, rápido! Cure ele! ― Lórien gritou, segurando outra enorme
bola de fogo nas mãos.
― Não consigo! ― Gritei segurando Ewren novamente.
― Você está fazendo isso errado! Lembre-se do que a mulher lhe disse
na montanha! ― Disse Andros correndo até Demétrius com sua espada em
punho. O que ela havia dito? Fechei os olhos para me lembrar de todas as
palavras de Áries. Minha cabeça estava pesada, sonolenta.
“Você não precisa desses cristais para salvá-lo então! Você tem algo
bem mais forte que toda essa montanha de cristais”
Era óbvio demais! Como eu não havia percebido! Peguei a adaga de
Ewren, fiz um corte na palma de minha mão e uma pequena poça de sangue
se formou.
― Não mesmo! ― Gritou Demétrius tentando me alcançar, porém foi
impedido por Neve e Feroz e foi atingido por outra bola de fogo de Lórien.
Não tinha como derramar o sangue em sua boca, então eu enchi minha
própria boca com o sangue e toquei em seus lábios com os meus, fazendo-o
fluir de mim para ele.
“Por favor, que ainda dê tempo”, pedi enquanto esfregava as mãos de
Ewren. Quase não sentia mais as batidas de seu coração.
Andros lutava com Demétrius, mas ele mal conseguia segurar os
ataques de Demétrius, quanto mais, atacar.
― Leona! ― Gritou Lórien para mim ― Minha mochila! Lembra-se da
floresta? O cerco dos lobisomens? Está na hora de fazer aquilo de novo! ―

254
Não queria me afastar de Ewren, olhei para Lórien e ela estava ferida, Feroz
mancava e Andros mal ficava de pé.
― Vou transformar todos vocês em cinzas! Não tô nem aí para o que
aquele mago idiota vai falar! ― Disse Demétrius saltando para longe de nós
e erguendo os braços. Um círculo de brasas apareceu em volta de nós.
Andros e Lórien correram até mim seguidos de Feroz e Neve.
― Ele vai nos explodir! Rápido, Leona! Por favor! ― Lórien me
entregou o frasco com a poção revigorante. Eu a tomei e senti minha energia
voltar imediatamente. No mesmo momento em que Andros fez uma bolha
de ar para nos proteger, uma imensa coluna de fogo que se estendia até o
céu se fechou acima de nós e nos acertou, só o que nos protegia era a bolha,
mas mesmo assim o calor era intenso.
― Não vou poder manter isso! O oxigênio está sendo consumido pelo
fogo! ― Andros estava abaixando as mãos. Peguei rapidamente um dos
cristais que Áries me deu e o joguei no chão, batendo com toda a força nele
com meu cajado e pensando em Lótus Vale.
Uma explosão aconteceu dentro daquela coluna de fogo no momento
em que a pedra explodiu, nos mandando para longe.
Caímos no pátio da fortaleza de Lótus Vale, estava quase
amanhecendo, as nuvens começavam a ficar rosadas no horizonte e o céu
clareava devagar. Olhei para meu lado, Ewren estava caído perto de mim,
parecia menos machucado que antes e a cor de seu rosto estava melhorando.
Lórien e Andros estavam desacordados também, Feroz e Neve cambaleavam
tentando se manter de pé.
Pelo menos havia conseguido tirar todos de lá antes que Demétrius
nos transformasse em churrasco. Rolei para o lado ficando de frente para
Ewren, toquei seu rosto e ele reagiu franzindo o cenho. Sorri lembrando-me
de cada palavra que ele disse. Rolei de barriga para cima novamente e fiquei
observando o céu por alguns segundos antes de sentir que iria desmaiar.
Um grupo de guardas nos cercou, a última coisa que vi antes de fechar
os olhos foram os rostos espantados de Aeban e minha mãe.

255
12

olei de lado na cama inspirando profundamente,

R espreguiçando-me, e fui interrompida por uma pontada de


dor no ombro. Abri os olhos e reconheci o local
imediatamente, era a enfermaria da fortaleza de Lótus
Vale. Coloquei-me sentada na cama para poder puxar as
cortinas do biombo e procurar por Ewren. Ele não estava ali, nem Lórien e
nem Andros. Estava sozinha, então me levantei e logo me encolhi, pois meu
ombro estava queimando ainda do machucado da casca da árvore.
Saí devagar, sem fazer barulho, os corredores estavam estranhamente
vazios e muito mais silenciosos do que de costume.
Fui andando até a sala de Aeban, entrei sorrateiramente, esperando os
encontrar na sacada. Ninguém ali também, será que havia acontecido algo
desde a hora em que nós chegamos? Fui até a torre onde fiquei com Lórien
antes de fugir para encontrar Ewren.
Abri a porta do quarto da torre, Ewren estava lá, em pé na sacada e de
costas para a porta, seu cabelo escuro estava trançado, ele usava apenas uma
calça preta e olhava o céu com uma expressão tranquila. Quando entrei, ele
se virou para mim, deu um meio sorriso e voltou a olhar para o céu. Fiquei
aliviada de o ver vivo e bem. Quando ele se virou para mim pude ver uma
marca em seu pulso esquerdo, parecia uma tatuagem de uma corrente
prateada que brilhava suavemente contra a luz dos sóis.
― Você está bem? ― Perguntei o observando, ele parecia muito calmo
para mim.
― Muito bem. ― Não falou mais nada, mas o silêncio era perturbador.

256
― Onde está todo mundo?
― Partiram para Górtia essa madrugada. Foram se encontrar com o
exército para invadir Vintro ― disse ele virando-se para me encarar ―
amanhã ao anoitecer eles estarão em Vintro e irão atrás de Arcádius.
― O quê? Foram sem nós? ― Perguntei.
― Você não pode ir a lugar algum! Aeban me deixou de guarda, você
não sai da fortaleza por nada, Leona. ― Disse ele rispidamente, Ewren estava
agindo de modo estranho. Quando ia perguntar o que havia acontecido,
Lórien e Andros entraram no quarto, Ewren quando os viu entrar, pulou da
sacada e voou para o outro lado da fortaleza, ficando sobre a torre norte.
― Vocês ficaram! ― Disse sorridente a Lórien que se aproximava de
mim. Ela me abraçou forte e ficou rindo.
― Obrigada!
― Pelo quê? Não fiz nada! Só arrumei problemas! ― Respondi
olhando-a tristemente.
― Como não fez nada? Você desobedeceu a seus pais para salvar meu
irmão, o salvou duas vezes e ainda salvou a todos nós daquele maluco no
último momento! ― Disse ela surpresa.
― Para começo de conversa, se eu não estivesse lá, ele não ficaria tão
forte e vocês não perderiam para ele! ― Retruquei.
― Ele já tinha provado seu sangue naquele dia em que fui te buscar na
descida da montanha perto da cidade de Arcádia, lembra?
― Sim, mas... ― Andros me interrompeu.
― Se você não tivesse ido, não teriam me encontrado e me resgatado,
correto? ― Ainda assim me sentia culpada, talvez por Ewren.
― Lórien, o que houve com ele? ― Ela e Andros se olharam ― Oh, por
favor, não me diga que ele ficou ofendido de eu ter salvado ele! ― Perguntei
ficando com um peso ainda maior na consciência.
― Não, Leona! Não é isso, é que ele e seus pais brigaram um bocado
ontem.
― Por quê? ― Perguntei.

257
― Porque Aeban tem a habilidade de ver as memórias das pessoas.
Enquanto nós estávamos desacordados, Aeban entrou nas nossas mentes
para tentar entender o que havia acontecido! ― Disse ele trocando outro
olhar com Lórien ― Ele entrou em nossas mentes para poder saber de tudo
antes que pudéssemos mentir e alterar o que havia acontecido... ― disse ele
baixando a voz. Meu estômago afundou e lembrei-me de Ewren com os olhos
vermelhos sobre mim... Tentei afastar a lembrança de minha cabeça. Se para
mim parecia meio que absurdo, imagine para eles.
― Droga! ― Resmunguei.
― Pois é! ― Disse Lórien ficando vermelha. ― Nós ouvimos enquanto
Aeban gritava com Ewren ― disse ela ― Tomamos umas broncas também!
Por não estar com você! ― Me senti mais culpada ainda, pois eu os havia
deixado para trás.
― Então Ewren está assim por causa de Aeban e minha mãe que
ficaram brigando com ele?
― Não, ele nem ligou muito para isso, na verdade. ― Respondeu
Lórien olhando discretamente para onde Ewren estava. ― Acontece que
agora ele está preso a você e ele não sabe como reagir a isso!
― Como assim, preso? ― Perguntei assustada e Andros riu.
― Calma! ― Disse ele ― Não é uma coisa ruim! Quando você deu seu
sangue a ele, de livre e espontânea vontade para curá-lo, você criou uma
ligação entre vocês!
― Me explique melhor! Minha cabeça vai dar um nó! ― Disse
sentando pesadamente na poltrona perto da janela. Lórien revirou os olhos.
― Tudo bem! Não é sua culpa por não entender! ― Disse Andros ―
Quando você deu seu sangue para ele, você cedeu a ele uma parte de você,
uma parte viva! Por ter feito isso, em troca ele teve que ceder algo a você
também! ― Explicou Andros, na cabeça dele, essa tinha sido a explicação
perfeita. Olhei para Lórien, ainda muito confusa.
― Ah, Leona! Ele virou seu guardião. Seu sangue fez uma ligação entre
vocês! Se acontecer algo com você, ele vai saber na hora! O elo criou uma
afinidade entre vocês!

258
― Um guardião? ― Perguntei ― então ele está se sentindo na
obrigação de cuidar de mim?
― Não! Ai, como é difícil te explicar as coisas! ― Lórien estava ficando
irritada e esfregava a cabeça ― Por ser um guardião ele não pode se afastar
de você, ele nem quis ir pra Vintro com os outros para poder ficar ao seu
lado! ― Abaixei a cabeça, mesmo tentando ajudar, será que fiz a escolhe
errada? Devia ter esperado Lórien curá-lo?
― Não se sinta culpada! Não havia outra maneira de salvá-lo naquele
momento. ― Andros tentou me confortar. ― Talvez nem houvesse outro
jeito!
― Tem como desfazer isso? ― Estava olhando fixamente para o local
onde Ewren estava sentado no alto da torre.
― Você tem que morrer para quebrar o laço com um guardião. ―
Andros respondeu secamente ― Você quer que eu te mate agora? ― Ele
olhou-me frustrado. ― Você faz coisas boas pelas pessoas e quer se sentir
mal e culpada? Já pensou como ele está se sentindo por ter te colocado em
risco? Por você ter se colocado em risco para tentar ajudá-lo? Ou por ele
mesmo quase ter te matado enquanto você tentava ajudá-lo? Você não está
atrapalhando ninguém, você não tem culpa de ser o que é, não é culpada de
ter um maluco tarado por poder atrás do seu sangue e muito menos tem o
direito de se sentir culpada pelas coisas erradas que acontecem! ― Ele
estava gritando e fiquei encolhida na poltrona ― Pare de se sentir mal por
ser o que você é e use isso ao seu favor ou então acabe com esse poder de
uma vez! ― Andros saiu pela porta batendo-a atrás dele. Lórien afagou
minha cabeça e seus olhos mostravam o quanto ela concordava com ele, mas
estava com receio de dizer e eu ficar magoada.
― Lórien, o que você sabe sobre essa maldição do meu sangue? ―
Perguntei ainda encolhida. Ela respirou fundo e se espremeu comigo na
poltrona.
― Pelo que soube por minha mãe, é uma maldição hereditária. ― Ela
explicou.
― Hereditária?

259
― Sim, ao que entendi, sua bisavó foi amaldiçoada por uma bruxa e a
maldição passa por todas as descendentes dela.
― Então esse sangue amaldiçoado se resume apenas a pessoas da
minha família? ― Perguntei.
― Todas as descendentes de sua bisavó, que sejam mulheres e magas,
herdaram essa maldição. ― Corrigiu ela.
― E você sabe o porquê disso?
― Não escutei essa parte da conversa ou não me lembro, Lupine quem
falou isso para minha mãe quando eu ainda era criança, eu ficava escutando
escondida as conversas delas. É melhor perguntar a ela. ― Disse Lórien
enquanto esfregava minhas costas carinhosamente.
― Sabe como quebrar a maldição, não é? ― Perguntei, Lórien
empalideceu e gritou para a porta.
― Já estou indo! Um momento! ― Ela ficou nervosa de repente. ―
Andros está me chamando lá da cozinha.
― Vá ficar com ele e peça desculpas por mim. ― Disse. Ela me deu um
sorrisinho de lado muito sem graça e saiu.
Fui para a sacada e fiquei olhando para onde Ewren estava. Ele olhou
em minha direção, porém me ignorou e continuou a olhar para cima.
― Quero ir para Vintro! ― Disse baixinho para mim mesma. Sentei
com as pernas para fora da sacada e Ewren me olhou novamente, quando
viu o que eu estava fazendo, veio para perto de mim.
― Você gosta de perigo, não é? ― Ele perguntou coçando a cabeça e
sentando-se ao meu lado.
― Sua falta de confiança em mim é perturbadora, sabia? ― Estava o
encarando. ― E aquelas palavras que você me disse lá em Vintro? ―
Perguntei mordendo a boca para tentar não sorrir. Ele franziu o cenho e me
deu um tapinha na cabeça.
― Estava delirando porque estava morrendo. ― Disse ele me olhando
de lado e eu comecei a rir. ― Qual é a graça? ― Perguntou ele, amarrando
mais ainda a cara.

260
― Eu imaginava que fosse isso mesmo! ― Dessa vez eu tinha certeza
que ele estava mentindo e não consegui conter um sorriso. Estiquei a mão
para tocar em seu pulso, onde a marca da corrente estava.
― Me desculpe... ― disse passando a mão sobre a marca.
― Não desculpo não, ninguém mandou você ir atrás de mim e se
arriscar tanto! ― Reprovou ele.
― Não foi isso que eu quis dizer! ― O encarei, era tão fácil me distrair
olhando aqueles olhos coloridos... quando foi que comecei a ficar tão boba
perto dele? Ele girou o pulso, olhando para a marca.
― Não é tão ruim. ― Disse ele olhando a marca também.
― Ewren, quero ir atrás deles em Vintro! Não quero que meus pais se
arrisquem sozinhos lá! ― Ewren começou a rir.
― Dois seres fantásticos, altamente capacitados e treinados e você
acha que eles precisam de você lá para distraí-los? Se você for, eles vão ficar
o tempo todo preocupados com você e vão se distrair, aí sim, eles estariam
em perigo!
― Demétrius! ― Só precisei de uma palavra para demonstrar minha
preocupação e Ewren tornou a colocar aquela expressão carrancuda no
rosto.
― Eles não podem derrotá-lo. ― Disse Ewren pensativo. ― Eu vou e
você fica aqui com Lórien!
― Não! Eu quero ir, eu posso ajudar! ― Protestei.
― Não, você não pode! Você cedeu muito da sua energia para mim e
ainda não se recuperou totalmente, fora que teleportou cinco pessoas de um
continente para outro! Nem pensar! ― Disse ele se preparando para sair.
― Você não pode se afastar de mim, lembra? ― Segurei o braço dele
― Eu quero ir junto, são meus pais!
― Você não vai, Leona! ― Gritou ele. O olhei fazendo meu melhor
olhar de “cachorrinho que caiu da mudança”. ― Não adianta me olhar
assim, não vou te levar! ― Ele se virou e começou a sair pela sacada, abriu
as asas e estava pronto para partir. ― Fique aí, eu não vou demorar!

261
― Se você não me levar, Lórien me leva! ― Dei minha cartada final.
Ele resmungou, encolheu os ombros, se virou e veio até mim, segurou meus
braços e me encarou.
― Por favor! Eu preciso que você fique aqui! ― Disse ele tocando
minha bochecha com o polegar. ― Não quero que você se machuque de
novo! Se você for, Arcadius vai fazer de tudo para pôr as mãos em você dessa
vez e eu não posso deixar! Então fique aqui, está bem? ― Pediu ele.
― Não fico! ― Bati o pé e Ewren sentou no chão com as mãos na
cabeça.
― Se soubesse o quanto você me irrita! ― Resmungou ele. ― Está
bem, eu te levo! Mas antes teremos que passar na minha casa para pegar
uma coisa.
― Está bem! ― Corri pelo quarto juntando rapidamente alguns itens
para levar, o saquinho de cristais que Áries me deu, meu pingente, o estojo
de poções e medicamentos e coloquei tudo na bolsa. ― Vamos? ― Ewren
bufou, me pegou no colo e saímos voando pela sacada da torre. Circulamos
rapidamente a cidade e mudamos de rota indo para o sul.
― A sua casa não fica para lá? ― Perguntei apontando para a direção
oposta.
― Lá é a casa de minha mãe. Minha casa fica no topo da Montanha
nublada. ― Explicou. Ele começou a subir, e bem a nossa frente uma
montanha cinzenta subia a perder de vista.
Ewren voava cada vez mais alto e era lindo ver Edro daqui de cima! Os
sóis brilhavam fortes até alcançarmos uma nuvem enorme. Entramos na
nuvem e pude sentir o ar ficar completamente diferente, era mais fresco,
como se eu estivesse passando por dentro de um corredor de algodão fino e
molhado.
Saímos do outro lado da nuvem, aqui em cima estava nublado e não
havia mais a luz dos sóis. Uma torre alta fixada no topo da montanha me
chamou a atenção, ela era fina e dava para ficarem, no máximo, duas pessoas
de pé dentro dela. E não havia porta nenhuma em sua base.

262
― Quase lá! ― Disse ele apontando para o topo com o queixo. A
altitude estava fazendo minha cabeça começar a doer. No topo da torre
havia uma base redonda gigante que desafiava perigosamente as leis da
física, Ewren parou em cima dela e me colocou no chão. Era bem maior do
que se via lá de baixo, era uma varanda bem grande e redonda em volta de
uma casa não muito grande, parecia uma casinha na árvore só que sem a
árvore.
Ewren entrou na frente e a porta estava destrancada, fiquei com
receio de entrar, então fiquei na varanda. Eu estava curiosa com aquela
varanda circulando a casa e comecei a andar por ela até chegar à parte de
trás. Era bem maior do que eu imaginava, na parte de trás tinha uma porta
de vidro de correr que pelo que vi, dava para uma cozinha.
Olhei para fora, tinha começado a ventar não muito forte, mas o
suficiente para levar as nuvens ao redor da casa para longe. Perdi o fôlego
quando as nuvens desapareceram por completo, pois parecia que estávamos
no Topo de Amantia. Podia ver tudo daqui, o mar, os vales e as cidades ao
redor. As florestas se estendiam por todos os lados parecendo um tapete
verde e os sóis brilhavam muito mais fortes com aquelas mandalas gigantes
aparecendo. Ewren abriu a porta de vidro e veio se apoiar no parapeito.
― É muito bonito aqui! ― Disse a ele. Seu cabelo ondulava com o
vento e o azul e prata de seus olhos pareciam mais vivos aqui. ― Não
podemos demorar! ― Disse por fim, lembrando-me de meus pais indo para
Vintro. Embora eles fossem muito fortes e habilidosos, não podia deixar de
me preocupar.
― Eu sei. ― Respondeu ele entrando novamente. Fui atrás dele para
olhar como era a casa, passei pela cozinha, estava arrumada e bem limpinha,
e o segui até um quarto, quando cheguei à porta e percebi que era seu
quarto, voltei para trás e fiquei na porta. Ele se virou para me olhar e riu.
― O que foi?
― Hm, nada! ― Disse me virando para o lado para tentar disfarçar a
cor vermelha no meu rosto. Devo ter ficado parecendo uma louca. Ele foi até
uma porta no outro lado do quarto e entrou, era um quarto grande, a
impressão que tive ao entrar, foi de ter entrado em uma floresta. A cama

263
grande era feita com troncos bem trabalhados e decorados com pequenos
cipós trançados, o dossel de madeira tinha uma cortina fina de linho verde
e tinha os mesmos detalhes da cama. Um pouco diferente para um quarto de
homem. Ele voltou com algo na mão e colocou em cima da cama.
― Lórien me deu essa casa pouco depois que você foi embora ― disse
ele enquanto desembrulhava o que havia colocado na cama.
― É bem bonita! ― Disse.
― Precisa de outra decoração, essa está a cara dela! ― Ele estava
olhando o dossel e fazendo uma careta.
― Eu gostei muito. ― Disse por fim. Quando ele terminou de tirar os
panos que cobriam o objeto, pude ver exatamente o que era. Uma espada
muito bonita, levemente curva, trabalhada com punho em jade e folhas
douradas na bainha, só a lâmina devia ser do tamanho do meu braço ou
maior.
― Que espada é essa? ― Perguntei chegando mais perto para ver
melhor, ele a pegou, colocou-a em minhas mãos e pude ver que ela era bem
leve.
― É um sabre de prata com punho de jade ― explicou ele ― mandei
fazer para, caso um dia você voltasse, poder se proteger melhor, ela não é
feita para um combate direto, pois a prata é frágil, foi feita para golpes
certeiros. Embora não precise dela por causa de seus poderes, mas é bom
garantir.
― Por que prata? ― Perguntei evitando tocar a lâmina.
― Lembra-se das correntes nos braços do lobisomem? ― Não tinha
como esquecer, elas o estavam queimando e consumindo sua pele. ― Você
pode usá-la contra lobisomens, vampiros e até contra mim se precisar! ―
Me incomodou pensar que poderia machucá-lo com isso.
― Eu podia ter matado você aquele dia na floresta em Vintro, e não
fiz. ― Disse encarando-o.
Ele puxou rapidamente sua própria espada e a brandiu em minha
direção. Instintivamente ergui o sabre de prata e a parei.

264
― Ficou maluco? ― Perguntei assustada, mas ele não ficou surpreso
com minha reação rápida.
― Lórien te passou as habilidades dela, não foi? ― Perguntou.
― Foi, quando chegamos à Vintro ela disse que eu precisava saber de
tudo rápido para poder ajudá-la em caso de problemas. ― Ewren suspirou.
― Pelo menos assim me sinto menos culpado de te levar de volta
àquele lugar. ― Ele pegou a espada de minha mão e a colocou de volta na
bainha.
― Não se preocupe, vai ficar tudo bem! ― Estava o confortando? Ele
suspirou e jogou a cabeça para trás.
― Isso está errado! ― Resmungou ― prometi a eles que cuidaria de
você lá, que não a deixaria se pôr em perigo!
― Não vou correr nenhum risco com você lá! ― Ele estava dando para
trás.
― Não seja ingênua! Se Arcádius conseguir te pegar dessa vez,
estaremos todos condenados... ― ele segurou minha mão com força e por
um momento havia me esquecido da maldição.
― Não vai acontecer nada demais dessa vez! Ninguém vai reclamar
com você de novo se não der nada errado! Não é? ― Disse tentando animá-
lo e ele me olhou surpreso.
― É com isso que você acha que estou preocupado? ― Disse ele, me
puxando para seus braços e me abraçando apertado. ― Não posso te perder!
― Meu coração começou a bater rápido demais, sentia o calor de seu corpo
e sua respiração em meu pescoço.
― Quando foi que você começou a ser assim comigo? ― Perguntei.
― Quando eu te vi desaparecer no portal e percebi que podia ser a
última vez que a veria. ― Respondeu me apertando ainda mais, sorri
discretamente para que ele não percebesse.
― Você poderia me ajudar a quebrar a maldição! ― Disse soltando-
me de seus braços para encará-lo. Ewren riu e passou a mão em sua cabeça.
― Se eu fizer isso, quando eles descobrirem, serei um elfo morto ―
disse ele referindo-se a meus pais.

265
― Você não quer me ajudar! ― Retruquei franzindo a testa.
― Você não faz a mínima ideia do que está falando! ― Disse ele
fechando os olhos e virando de costas para mim.
― Então, por que você não me ajuda?! ― Gritei frustrada.
― Você realmente não sabe o que é preciso fazer para anular o efeito
da maldição, não é? ― Perguntou ele me encarando novamente.
― Não sei! Ninguém quis me dizer! ― Respondi me sentando na cama
e olhando para o dossel. ― Me ajude a quebrar essa maldição! Por favor! ―
Pedi.
― Leona, não me peça isso! Vou te colocar em problemas se fizermos
isso! Todos vão notar a diferença em você! ― Respondeu ele se ajoelhando
em minha frente e segurando meu rosto entre suas mãos. Descansei meu
rosto nelas e o encarei novamente, para mim, só de estar ali com ele já
parecia bom demais para ser verdade.
― Então você prefere deixar eles me pegarem e usarem meu sangue
para controlar Amantia do que me ajudar a anular a maldição? ― Perguntei.
― Por que é isso que parece já que você se recusa a me ajudar... ― disse por
fim. Quando percebi que ele não ia falar mais nada, tentei me levantar da
cama, mas ele me impediu.
Ewren segurou meu rosto e me beijou, um beijo doce e gentil, seus
lábios eram macios sobre os meus, com uma mão ele segurou meus cabelos,
e com a outra em minha cintura, ele me puxou para cima dele no chão de
forma que fiquei sobre seu quadril, sussurrou em minha orelha “Tem
certeza? ” E se afastou um pouco de mim para poder me olhar nos olhos.
Segurou-me pela cintura, ergueu as costas do chão e me puxou mais para
perto dele, tocando meu pescoço com seu queixo.
Foi como se uma lâmpada tivesse acendido em minha mente. Oh! Por
isso que ninguém queria me dizer como que a maldição era quebrada?! Meu corpo
começou a tremer em reação ao seu toque e assenti com a cabeça. Ele então
puxou minha boca para a dele, com menos gentileza dessa vez, o beijo foi
ardente e senti sua língua passar em meus lábios, contornando-os
completamente, eu sentia meu sangue ferver. Segurei seus cabelos e o
apertei contra mim, ele reagiu ao meu toque apertando meu quadril e
266
passando sua mão livre pela minha cintura, descendo sua mão até minha
coxa e puxando meu vestido para cima. Ewren o tirou com um movimento
fluido e começou a beijar meu pescoço, descendo lentamente até meu
ombro, meus braços e meus pulsos, a cada toque de seus lábios, minha pele
formigava e o calor em meu corpo aumentava mais. Ele tirou-me do chão e
me deitou na cama, ficando por cima de mim e me beijando novamente, meu
corpo respondia a ele automaticamente, movendo-se quando sua língua
deslizou por meus lábios, descendo para meu queixo, meu pescoço... seus
dedos traçavam círculos em volta de meus seios, fazendo-me perder a
cabeça.
Nunca havia me sentido assim, eu o desejava tanto quanto ele a mim...
Quando sua mão desceu para entre minhas pernas, onde começou a fazer
círculos com o polegar. Gemi em sua boca arqueando o corpo para trás, senti
o sorriso em seus lábios quando segurou meu quadril, colando seu corpo no
meu, e minha mente se desfez quando ele me penetrou. Nós nos
encaixávamos perfeitamente e nos completávamos como se tivéssemos
nascido um para o outro, suas mãos fortes, porém muito gentis, desenhavam
todo meu corpo enquanto nos movíamos juntos, fazendo-me arrepiar cada
vez que ele me tocava. Desejava que aquele momento nunca tivesse um fim.
Senti um calor em meu braço esquerdo e logo depois senti que
queimava, mas não me importei. Cada movimento de Ewren fazia uma
corrente elétrica passar por mim até que me perdi em nós, não encontrando
mais os limites de meu próprio corpo.

Acordei deitada sobre o braço de Ewren, ele acariciava minhas costas


com sua mão livre, seus olhos estavam completamente prateados e ele
estava sério observando-me. Sorri timidamente encontrando seu olhar.
― Está tudo bem? ― Perguntei notando que ele ainda continuava
sério.
― Para mim está tudo ótimo, me diga você se está tudo bem! ― Ele
estava tenso.

267
― Estou... por quê? ― Perguntei erguendo a mão para tocar em seu
rosto. Prendi o ar, as marcas de mago em meu braço estavam lilás e
brilhantes iguais às de minha mãe, e não verdes como sempre. O cabelo que
caiu em meu rosto estava completamente prateado e meu coração batia
freneticamente.
― Por que estou assim? ― Perguntei sem tirar os olhos das marcas
brilhantes e lilás.
― Por que você não é mais uma maga pura. ― Respondeu ele
acariciando meu braço.
― Então todo mundo vai perceber a diferença... ― disse enquanto
minha voz diminuía até virar um sussurro.
― Eu disse que todos iriam notar, mas você nem me deu ouvidos! ―
Disse ele se levantando e alongando os braços, e notei que ele já estava
vestido.
― Quando foi que você se levantou que eu nem vi? ― Disse me
sentando na cama e sentindo uma leve vertigem.
― Hoje de madrugada ― respondeu ele observando-me de longe.
― De madrugada?
― Sim, são duas horas da tarde, saímos de Lótus Vale ontem e você
está dormindo desde aquela hora.
― Por que você não me acordou?! ― Reclamei e Ewren riu.
― Lórien, pode entrar! ― Disse ele, Lórien entrou no quarto e pulou
em cima de mim na cama.
― Leona! Achei que ele tivesse acabado com você! Não consegui te
acordar! ― Fiquei corada.
― Eu não tive culpa, ela que me seduziu! ― Disse Ewren saindo do
quarto.
― Aham! Como se você não quisesse, não é? ― Ela gritou em resposta.
― Ele foi me buscar lá em Lótus Vale!
― Por que eu não acordava? ― Perguntei assustada.
― A mudança, seu corpo mudou para a forma de um mago completo,
então você apagou para poder completar a nova energia.
268
― Entendi... ― respondi movendo a cabeça lentamente ― Lórien,
temos que ir! ― Ela estava em cima de mim.
― Só se for agora! ― Disse ela rindo e me puxando da cama. Quando
levantei, senti meu corpo meio mole, mas ao mesmo tempo leve como uma
pluma. Vesti-me rapidamente e fui para a cozinha onde Ewren estava
sentado tomando aquele chá horrível.
Lórien foi até a geladeira pegar alguma coisa para podermos comer.
― Então... como vamos conseguir um navio para ir até Vintro? ―
Perguntei. Ewren abriu um enorme sorriso e ergueu seu braço para mostrar
a marca da corrente.
― Lembra-se do que eu te falei sobre quem podia voar por qualquer
lugar?
― Sinceramente não me lembro! ― Disse tomando um gole de um
suco que Lórien serviu para mim.
― Agora sou um guardião e posso voar por qualquer lugar sem ser
incomodado. ― Explicou parecendo um pouco incomodado com minha falta
de memória.
Comemos rapidamente o lanche que Lórien havia preparado e voltei
ao quarto para pegar meu sabre e a bolsa, então subimos ao terraço da casa.
― Vamos! ― Disse Lórien abrindo suas enormes asas e voando, Ewren
pegou-me no colo para irmos e meu rosto ficou quente quando ele tocou em
mim. Ele mudou sua aparência e abriu suas asas, levantamos voo.
Alcançamos Lórien rapidamente, os dois voavam muito rápido e em
poucos minutos havíamos alcançado o porto e chegado ao mar das
tormentas.
Lórien fez um sinal para Ewren para que ele subisse mais.
― O que houve? ― Perguntei.
― Sereias ― respondeu ― tenho que ficar longe do alcance de suas
vozes.
Pouco tempo depois, uma nuvem transparente e estranha começou a
nos seguir, ela emparelhou conosco e Lórien chegou mais perto e fechou as

269
asas, caindo então sobre aquela nuvem. Andros se materializou em nossa
frente e segurou Lórien.
― Desistiu de ficar guardando a fortaleza? ― Perguntou Ewren a ele.
― Estava ficando entediado! ― Respondeu Andros fazendo uma
careta.
― Onde estão Feroz e Neve? ― Perguntei
― Os deixei junto com Espiral no jardim suspenso.
― Chegaremos a Vintro em três horas se mantivermos a velocidade
― disse Lórien agarrada a Andros, eles passaram a nossa frente e desceram
para perto das águas.
― Você nunca me disse que era filho de uma princesa! ― Iniciei uma
conversa, pois seu silêncio estava deixando-me ansiosa.
― Faz diferença para você? ― Ergueu uma sobrancelha.
― Na verdade, não... Só é bom saber, antes que eu pudesse falar
alguma grosseria a alguém! ― Ewren riu lembrando-se da minha falta de
modos.
― Você também nunca me disse que era filha da Sacerdotisa de
Amantia e muito menos, do general do segundo maior exército daqui. ―
Disse ele.
― Mas eu não sabia que minha mãe era uma maga e nem que Aeban
era meu pai!
― Eu não sou o orgulho da família, sabe... ― disse ele suspirando. ―
Então prefiro não ficar falando aos quatro ventos que sou neto de Eirien.
― Queria poder conhecê-la! ― Falei.
― Você vai, ela vai estar no casamento de Lórien semana que vem.
― Lórien vai casar? ― Perguntei espantada.
― Vai, Andros decidiu quando acordou em Lótus Vale.
― E aquele cara no portão da cidade? ― Perguntei. Ewren riu e fez
sinal para eu falar baixo.
― Todo mundo pensava que Andros estivesse morto ― respondeu ―
e Lórien não é muito de ficar sofrendo de luto.

270
― E você? ― Perguntei.
― Estive sozinho até agora. ― Respondeu ele e senti meu coração
apertar ― Ao que parece, estava esperando por você! ― Ele sorriu e foi
minha vez de franzir o cenho.
― Não esteve tão sozinho assim, há pouco tempo estava com Banshee!
― Seu sorriso sumiu e revirou os olhos.
― Ahh! Você me entendeu! Não estive em nenhum relacionamento
sério. ― Corei um pouco, tentando desviar minha mente de onde ela
começou a vagar. ― Já tinham me arranjado uma noiva, uma moça da Torre
das Nuvens, a filha mais velha de Aristes, eu podia ter ficado com ela, mas
não quis.
― Por que não?
― Além de ela ser metamorfa, o que significaria que ela poderia ser
feia e modificar sua aparência para parecer mais bonita do que é realmente.
― Isso importa para você? ― Ele riu alto.
― Claro que importa! Eu não gosto que as pessoas me enganem ou
mintam para mim.
― Ah, achei que fosse por outra coisa.
― Por ela ser feia? ― Ele riu novamente ― Também, além disso,
metamorfos tem o hábito de desaparecer por dias sem dar notícias e isso me
irrita.
― Eu poderia mudar minha aparência também! E o sangue de Aswang
me mudou muito... ― murmurei.
― Não pode não, o poder dos magos humanos é restrito nesse ponto,
eles não podem alterar sua aparência física!
― Voltando ao outro assunto, e Aeban?
― O que tem ele? ― Perguntou Ewren olhando-me com curiosidade.
― Quando foi que ele desistiu de esperar minha mãe voltar? ― Não
imaginei que Ewren fosse saber a resposta.
― Acho que nunca, ele viveu os últimos oitocentos e dezesseis anos
sozinho e acreditou na morte dela desde o minuto em que ela sumiu.
― Oitocentos Anos? ― Fiquei de boca aberta.
271
― Sim, ele não teve mais ninguém, pelo menos, não que eu saiba, ela
era o amor da vida dele. ― Ewren riu balançando a cabeça. ― Ainda é o amor
dele, enquanto brigava comigo na sala anteontem, ele nem tirava os olhos
dela. A curandeira do templo disse a ele que ela não havia sobrevivido a uma
complicação de um ferimento feito por um Aswang.
― Então essa curandeira mentiu para ele para encobrir a fuga de
minha mãe?
― Sim, para que ela pudesse criar você longe daqui...
― Que bom que eles estão juntos e felizes, tomara que isso não tenha
que acabar de novo! ― Se não fosse o problema com Arcádius, estaria me
sentindo totalmente completa e feliz. ― Mas, como você sabe que ele ficou
todo esse tempo esperando? ― Perguntei ― Você não passou todo tempo
em Lótus Vale, passou?
― Não, mas Arin sim. ― Respondeu ― Ela passava o tempo todo lá
com ele, a única pessoa que posso ter certeza de que sentiu mais falta de
Lupine aqui do que Aeban, foi ela.
― Elas são muito amigas, não é?
― São sim, sua mãe foi criada no templo da Sacerdotisa Dimesya, esse
templo fica no castelo da Cidade de Cristal... ― ele parou um momento,
franziu o cenho e cobriu o rosto com as mãos. ― Você talvez não acredite
no que estou prestes a dizer... ― ele riu e baixou a cabeça de olhos fechados
― eu peguei você no colo quando você tinha alguns dias de vida!
― O quê? ― Fiquei olhando para ele espantada.
― Foi depois de Emma morrer, fui até o templo de Dimesya na cidade
de Cristal para conversar com ela quando encontrei com sua mãe, ela estava
saindo do templo toda encapuzada e me pediu ajuda para chegar ao vale da
lua! ― Ele sorriu com a memória. ― Ela me entregou você enrolada em uma
manta, fiquei por quase quatro horas cuidando de você enquanto ela abria
um portal, quando ela finalmente o abriu e veio te pegar de mim, você
acordou e segurou meu cabelo! ― Disse ele rindo. Não conseguia abrir
minha boca para falar nada, mal podia acreditar que já estive naqueles
braços antes, apenas sorri.

272
― Onde fica essa Cidade de Cristal?
― Em cima de Alamoutim. Uma cidade flutuante, na verdade é apenas
o castelo.
― Nem vi isso. ― Disse, por vezes minha falta de atenção me pregava
peças.
― Mas você vai conhecer! ― Ele afirmou isso com tanta certeza que o
medo que eu tinha do que estava por vir, desapareceu.
Estava começando a escurecer quando avistamos a tempestade que
guardava Vintro.
― Lórien! ― Gritei ― A tempestade voltou! ― Nós havíamos a feito
desaparecer, por que ela havia voltado?
― Acho que ela foi refeita! ― Gritou ela em resposta. Antes de a
alcançarmos, Ewren e Andros pararam.
― Leona, você consegue fazê-la desaparecer? ― Perguntou Andros.
― Acho que sim... ― disse pegando um lenço do bolso da minha calça
e o transformando em uma águia gigante.
Pulei dos braços de Ewren para cima dela, ficando ajoelhada entre suas
asas. Entreguei a espada de prata para ele, para não haver risco.
― Cuidado! ― Ewren me alertou antes de eu voar rapidamente e
entrar nas nuvens negras, a águia voava instável, pois os ventos eram bem
fortes, prendi meus pés na águia, voei até o centro da tempestade e peguei
o cajado, mal o transformei e meus cabelos já estavam prateados e as marcas
lilás em meus braços brilhavam mais fortes do que antes. Ergui o cajado e o
girei no ar.
― Dissipem! ― Disse às nuvens. Assustei-me quando a pedra na ponta
do cajado mudou de forma, transformando-se em uma orquídea roxa de
cristal. Pela primeira vez senti a energia passando de mim para ele, fazendo-
o enviar uma onda de energia e uma forte ventaria que fez as nuvens se
espalharem e desaparecerem.
Ewren estava sorrindo e aplaudindo, Lórien estava de boca aberta e
Andros muito perplexo.

273
― Não acreditei que você iria conseguir! ― Disse Andros atordoado.
― Era uma tempestade manipulada! Não tinha como você conseguir dissipá-
la com seu nível de poder! ― Estava de costas para ele e quando me virei,
ele olhou assustado para a cor de minhas marcas e depois encarou Ewren.
― Ewren, Aeban vai matar você! ― Disse ele.
― Vai mesmo! ― Lórien riu. ― Se Aeban não matar, Lupine mata!
Alcançamos a praia antes de anoitecer completamente e havia quatro
grandes navios ancorados próximos a ela.
― Os navios dos elfos de Górtia! ― Disse Andros impressionado com
o tamanho das embarcações.
― Vamos parar para comer alguma coisa, aí iremos ao encontro do
exército. ― Disse Lórien tirando o arco das costas e disparando duas flechas.
Saí de perto deles, tirei minha bota e fui caminhar um pouco na areia.
Quando me afastei o suficiente deles, sentei na areia e fiquei
escondendo os pés, mexendo e esfregando as mãos e os pés nela. A sensação
daquela areia fria em contanto com minha pele me acalmava muito.
Não percebi que Ewren estava atrás de mim até que ele se sentou ao
meu lado e tirou uma mecha de cabelo que caíra em meu rosto.
― Estou com medo! ― Confessei.
― É normal ter medo, mas você não precisa ter, pois não vou deixar
ninguém te fazer mal. ― Disse, passando o braço em volta de mim e me
puxando para perto dele.
― Não estou preocupada com isso... ― disse timidamente ― Estou
com medo do que eles vão querer fazer com você! Viu a reação de Andros,
imagine a de minha mãe! ― Ewren deu uma gargalhada divertida. Era
maravilhoso vê-lo sorrir.
― Eu disse a você, mas agora já está feito e não tem como voltar atrás!
― Disse ele segurando meu rosto e me beijando, e num instante ele
conseguiu afastar todas as minhas preocupações.
― Vamos comer! ― Gritou Lórien. Ewren se levantou e me deu a mão
para que o seguisse.

274
13

eona, pode conjurar os lobos de terra? ― Pediu Lórien

L depois que saímos da areia da praia e conjurei quatro lobos


gigantes para montarmos.
― Três! ― Disse ela desmanchando um e montando
em outro comigo.
― Vou ficar dividindo energia com você para que você possa controlar
os lobos! ― Ela sentou atrás de mim e me segurou pela cintura. Fechei os
olhos e quando os abri, estava olhando pelos olhos dos lobos de terra.
Corríamos pela floresta, desviando rapidamente de qualquer
obstáculo e saltando, de vez enquanto ouvia Lórien reclamar que quase
derrubara meu corpo.
Atravessamos o campo das flores onde as fadinhas acenaram para nós
e nem pudemos devolver a saudação, pois estava correndo rápido demais.
Minha cabeça começou a doer e minha visão ficar turva. Parei
abruptamente quando alcançamos a floresta em que havia lutado com
Demétrius. Os lobos se desmancharam e caí de joelhos no chão, ofegando.
― Não precisava ter se esforçado tanto! ― Disse Lórien me erguendo
do chão e usando sua magia de cura em mim. Senti-me aliviada e minha
cabeça parou de doer.
― O exército está bem perto daqui! ― Disse Andros, chegando como
uma ventania e voltando a sua forma física.

275
― Vamos até eles? ― Perguntei.
Não houve tempo de resposta. Escutamos uivos e grunhidos muito
altos vindos do campo a nossa frente, Lórien e Ewren sacaram as espadas e
foram em direção aos sons e Andros voou por cima das árvores com uma
aljava de flechas e o arco de Lórien.
Corri entre as árvores até ver as luzes de bolas de fogo que flutuavam
acima dos soldados.
Centenas de lobisomens, trolls e centauros vinham de todas as
direções tentando nos cercar. Avistei minha mãe e Aeban pouco à frente do
exército, queria ficar o mais distante possível deles, então corri entre os
soldados até ficar perto de Ewren e Lórien, ao que pareciam, eles também os
estavam evitando.
A floresta começou a sacudir como um terremoto.
― Gigantes?! ― Lórien estremeceu.
Dois gigantes horríveis levantaram de dentro da floresta e começaram
a vir em nossa direção.
― Nosso objetivo não é lutar com eles, é acabar com Demétrius e Black
Jango para que eles possam lutar com mais facilidade contra aquelas bestas
que vem aí! ― Disse Ewren.
― O que devemos fazer? ― Perguntei.
― Ewren! Decida rápido! ― Disse Lórien apontando para onde minha
mãe estava ― Olhe. Ela vai levantar um escudo! ― Minha mãe havia erguido
as mãos, uma torre de luz azul apareceu no centro de onde estávamos, e
quando chegou bem alto nos céus, a torre começou a derramar um véu
fazendo uma cúpula começar a se moldar ao nosso redor.
Ewren me pegou nos braços e voou rapidamente para fora da barreira.
― Aeban nos viu... ― Ewren falou enquanto passávamos por cima da
cúpula.
Pousamos em uma torre em cima da fortaleza e antes de descer uma
escadaria exposta no alto da torre, pude ver os dois gigantes se aproximarem
da cúpula e começarem a bater na barreira. Cada ataque contra ela liberava
uma vibração tão poderosa que os lobisomens ao seu redor eram derrubados

276
e podíamos sentir daqui o deslocamento do vento. Apertei o braço de Ewren
assustada.
― Eles vão ficar bem! ― Disse.
Descemos as escadas cautelosamente. A escadaria acabava em um
estreito corredor muito escuro e eu mal conseguia enxergar o local. Ewren
por sua vez sabia exatamente para onde ir.
― Não me esqueci dos dias em que fiquei preso aqui! ― Disse ele. No
final do corredor tinha um grande salão, depois dele um jardim. Quando
chegamos ao jardim, ele parou e ficou olhando em volta e para o alto.
― O que foi? ― Perguntei, segurava o sabre firmemente em minha
mão, esperando o momento certo para usá-lo se fosse preciso.
― Tem algo errado, aqui ficava uma sala, Arcádius ficava nela o tempo
todo! ― Disse ele dando um passo para trás. ― Não consigo sentir a presença
de ninguém, só pode ser coisa dele! ― Rosnou ele. Olhei para o chão, estava
molhado, na verdade estava alagado e vi meu reflexo na água empoçada no
chão.
― Ewren... ― senti um arrepio na coluna.
― Demétrius está lá! Fique aqui! ― Disse correndo até um portão
grande de ferro que levava a outro pátio. Não queria ficar sozinha, mas podia
ser a minha chance de fazer algo por eles, entrei novamente na fortaleza e
fui procurar por Arcádius, entrei em todas as salas que encontrava, mas
estavam todas vazias.
Subi uma longa escadaria, parecia que nunca ia chegar ao fim, estava
escuro e a única luz que chegava aqui era da lua que entrava por pequenas
janelinhas ao longo da escadaria.
Quando subi os últimos degraus, deparei-me com um terraço do lado
oposto de onde Ewren e eu descemos. Andei pelas beiradas e vi Ewren
lutando com Demétrius no meio da fortaleza, havia mais dois lobisomens
com Demétrius e meu coração apertou, mas Ewren não parecia ter nenhuma
dificuldade em lidar com eles e se esquivava de ataques tranquilamente
como se estivesse apenas brincando e se divertindo. Do outro lado do muro
a batalha ainda estava acontecendo e várias outras criaturas haviam se

277
unido aos lobisomens e centauros e tentavam a qualquer custo impedir o
exército de avançar.
Minha mãe flutuava a alguns metros acima do exército, ela segurava
uma bola branca de vidro nas mãos e dela saia uma aura, como se fosse uma
poeira branca brilhante que caía sobre todos os soldados que estavam
lutando.
― Estava esperando por você! ― Disse uma voz gutural atrás de mim.
Virei rapidamente e vi que era Black Jango.
― Onde está Arcádius? ― Perguntei.
― Longe daqui! Ele sabia que vocês trariam um exército, então ele
fugiu como um covarde qualquer... ― disse ele dando um passo em minha
direção. Ergui o sabre de prata e ele deu uma gargalhada ― Abaixe isso
menininha, você não tem coragem o suficiente para usar ele! ― Posicionei-
me para atacar, ele não estava me levando a sério. Corri em sua direção e o
ataquei, mas ele era muito rápido e desviava de qualquer golpe que eu
tentava acertar, mesmo as habilidades que peguei de Lórien, não era o
suficiente contra ele.
― Nenhum de vocês tem velocidade suficiente para me atacar! ―
Disse ele avançando, me segurando pelos braços e batendo em minha mão
para derrubar o sabre.
― O que você vai ganhar ajudando ele? ― Gritei.
― Eu não quero nada que ele possa me oferecer! Não estou atrás de
você por causa dele, menina tola!
― Você também quer meu sangue? Quer ficar mais forte para poder
destruir mais vidas?! Não vai ter! ― Ergui as pernas o acertando no abdome
e conseguindo me soltar, ele caiu não muito longe, levantando-se
rapidamente.
Black Jango ficou furioso, soltou um uivo que me causou arrepios e
deu um soco no chão, fazendo parte do terraço desabar e meu sabre cair.
Estávamos separados por uma cratera e meu erro foi olhar para baixo, ele
pulou, praticamente voou, para trás de mim, pegou meu cabelo e me ergueu
do chão.

278
― Eu sempre consigo o que preciso! ― Disse ele esticando as garras
para mim.
― Não dessa vez! ― Disse, então mudei minha forma, as marcas lilás
se acenderam em meus braços e na minha testa, fazendo-o gritar irado.
― Vou fazer você se juntar àquela sua priminha! ― Gritou ele
jogando-me na cratera, consegui apenas transformar os entulhos em um
monte de folhas secas para amortecer a queda e me virei meio tonta. Fiquei
deitada no chão de barriga para cima e apalpei o chão até achar o sabre, vi o
momento em que ele saltou lá de cima em minha direção, só tive tempo para
erguer o sabre e o prender debaixo do meu braço com a lâmina para cima.
Black Jango caiu por cima de mim tentando evitar o sabre, ele usou as patas
para amortecer a queda, mas foi tarde demais, a ponta da lâmina perfurou
seu peito, ele se levantou urrando e puxou o sabre, jogando-o longe e
fazendo sangue espirrar em volta dele e respingar em mim. O corte em seu
peito parecia que estava fervendo e soltando bolhas de sangue.
Ele virou-se em minha direção novamente e veio, rolei para o lado e
me levantei para pegar a espada novamente. O Lobisomem parecia estar
ficando fraco e tonto e se ergueu com dificuldade.
Antes que ele pudesse me atacar novamente, peguei o sabre que
estava no chão todo manchado com o sangue de Black Jango e fui em sua
direção cuidadosamente. Ele se ergueu uivando novamente de modo que
parecia ser um alerta, de repente ele virou um humano e minhas mãos
tremeram, era o mesmo homem que eu havia sonhado um tempo atrás
quando estava indo para a cidade de Arcádia. Cabelo longo castanho de
aparência suja e desleixada e olhos negros como o breu.
― Eu... ― ele começou a dizer, esticando a mão em minha direção,
mas eu sabia o que tinha que fazer, apertei o punho do sabre e o cravei em
seu coração. ― Só queria voltar... a ser um humano... ouvi dizer sobre o
sangue que poderia acabar com minha maldição... ia levá-la para ele depois
de voltar ao normal... ― disse ele em suas últimas palavras e erguendo as
mãos para mim. Em seu peito começaram a aparecer bolhas como as de
queimaduras e ele caiu para trás com a boca parcialmente aberta e olhos
parados e dilatados.

279
Deixei a espada cair sentindo-me horrível e minhas mãos estavam
sujas com o sangue dele, caí de joelhos diante de seu corpo e gritei.
“Não queria ter que matar ninguém, não importa o monstro que
fosse”.
Ewren apareceu, ele trazia em sua mão um braço pendurado, ainda
escorrendo sangue, e parecia chocado ao me ver, olhou para a espada no
chão e depois para o corpo em minha frente. Ele deixou o braço cair no chão
e correu até mim.
― Você está bem? Está ferida? ― Perguntou, varrendo-me com os
olhos e procurando algo errado.
― Não estou ferida. ― Mas também não estava bem.
Ewren pareceu entender o que eu estava sentindo e me abraçou.
― Temos que ir lá fora ajudá-los! ― Disse, erguendo-me do chão e
pegando um sabre, ele o limpou e me entregou. Corremos pelos corredores
e salões desertos da fortaleza e o chão de pedra denunciava nossos passos
rápidos em direção à saída daquele lugar.
Saímos da fortaleza pelo portão da frente, ficando de frente para a
batalha, os lobisomens que estavam lá devem ter sentido o cheiro do sangue
de Black Jango em mim, pois eles pararam de atacar o exército e vieram em
minha direção.
― Droga! ― Ewren murmurou sacando sua espada novamente.
Segurei seu braço e o impedi.
― Não precisa! ― Ele me olhou como se eu tivesse ficado louca. Peguei
um dos cristais do vulcão que estava pendurado no saquinho em minha calça
e soltei-o no chão, peguei o cajado e o apertei com força. ― Eles não vão
mais nos atacar, eles só estão aqui por que não tiveram escolha! ― Disse.
Bati com o cajado no cristal fazendo-o explodir e uma forte luz roxa
varreu tudo que estava ao nosso redor, fazendo os lobisomens caírem ao
chão. Os centauros e outras criaturas que estavam com eles começaram a
fugir imediatamente em direção à floresta.

280
Quando a luz enfraqueceu, só havia homens ao nosso redor, eles
estavam caídos no chão, alguns tocando em seus rostos e outros rindo e se
abraçando.
― Você purificou todos eles? ― Ewren olhava-me espantado.
― Black Jango, antes de morrer, disse que só queria ser humano
novamente e que Arcádius tinha prometido isso a ele se ele me levasse. ―
Ewren acariciou o topo da minha cabeça com as pontas dos dedos.
Aeban e minha mãe vieram até nós e ela puxou-me de perto de Ewren
para me abraçar.
― Está tudo bem? Está machucada? ― Ela me apertava e me olhava
como Ewren havia feito, procurando por algo errado em mim, até que seus
olhos pousaram sobre a marca em minha testa. Ela sugou o ar e fez uma
careta, virou-se para Ewren e começou a gritar com ele.
― O que você fez?! ― Gritava ela, Aeban também se colocou entre nós
erguendo a espada para Ewren, que ergueu os braços em forma de rendição.
Respirei fundo.
― Ele não fez nada! Eu que insisti para ele quebrar a maldição! ―
Disse, minha mãe parou de gritar com ele e olhou para mim como um cão
raivoso.
― Você sabia como quebrar a maldição? ― Perguntou ela.
― Não fazia ideia! ― Respondi sinceramente, ela encarou Aeban e
depois voltou a gritar com Ewren.
― Como se você não quisesse, não é? Teve que se sacrificar por um
bem maior, não foi? ― Ela estava muito furiosa e revirei os olhos, já conhecia
isso, mesmo estando errada, ela gritaria até não poder mais e só depois
pediria desculpas. Aeban encarou Ewren, ele o encarou de volta e não
abaixou a cabeça, como se os dois se falassem mentalmente. Aeban guardou
a espada, virou-se para minha mãe e a segurou pelos ombros.
― Eu fiz a mesma coisa por você, com o mesmo objetivo. ― Disse ele
a abraçando. ― Só queria te manter segura! Ele fez o mesmo, embora eu não
aprove o comportamento deles! ― Disse ele olhando-me de cenho franzido.

281
Ela começou a discutir com os dois aos berros, como disse, não
importava se estava errada ou não, ela só queria explodir com alguém.
― Arcadius fugiu. ― Disse para que eles parassem de discutir.
― Nós sabemos! ― Disse Lórien chegando por trás de mim. ― Um dos
lobisomens disse isso antes que eu o matasse. ― Ela estava aborrecida. ―
Queria quebrar aquele mago de uma vez! ― Resmungou ela.
― Por que ele deixou um pequeno exército para nos impedir já que
havia fugido antes? ― Perguntei.
― Uma distração, ele queria tempo para tirar alguma coisa de dentro
do castelo. ― Respondeu um homem se aproximando de nós, era um dos
lobisomens.
― Tirar o que do castelo?
― Parecia uma pessoa... havia uma névoa negra em volta dela, então
não pudemos ver ao certo... ― respondeu ele se afastando lentamente ―
Espero ter ajudado, obrigada pequena sacerdotisa! ― Disse ele se curvando
em minha direção. Todos me olharam surpresos, Ewren foi o único que
notou meu nervosismo e tentou mudar o foco da conversa.
― Leona matou Black Jango. ― Falou Ewren segurando minha mão
ainda suja de sangue.
― O quê? ― Disseram Aeban e minha mãe juntos. Peguei o sabre de
prata e mostrei a eles.
― Sinto muito. ― Disse minha mãe baixinho e me abraçando ― Te
criei tão longe de tudo isso para te livrar dessas coisas, mas parece que isso
tudo a seguiu também! ― Deitei minha cabeça nela aconchegando-me em
seu calor.
― Está tudo bem... ― respondi baixinho. ― Eu gosto mais daqui. ―
Ela riu.
― Você é muito mais forte do que eu, nunca conseguiria purificar
tantos deles juntos. ― Disse olhando os homens que antes eram lobisomens.
Eles estavam se juntando aos homens do exército e ajudando a carregar os
corpos dos outros lobisomens mortos para dentro da fortaleza.

282
― Demétrius conseguiu escapar! ― Disse Ewren. ― Arranquei o braço
dele e quando ia arrancar sua cabeça, escutei Leona gritando, ele aproveitou
minha distração e sumiu nas poças de água do pátio! ― Disse ele frustrado.

Depois de terem terminado de recolher os corpos e colocado todos


juntos dentro da fortaleza, minha mãe ateou fogo ao castelo. Afastamo-nos
lentamente enquanto o fogo azul consumia tudo.
Chegamos à praia ao amanhecer para poder embarcar nos navios de
volta a Edro. Passei quase uma hora dentro de uma banheira para retirar
todos os vestígios de sangue em mim, pois ele parecia ter grudado em mim,
mesmo que eu esfregasse bastante a pele. Fiquei na cabine com minha mãe
e Aeban, deitada numa cama macia e quentinha, e apesar de meus olhos
estarem pesados, eu não queria dormir ainda.
Aeban sentou ao meu lado e acariciou minha cabeça.
― Você foi muito corajosa! ― Disse ele ― mas, devia ter ficado em
Lótus Vale! Não devia ter se arriscado assim!
― Faço parte desse mundo também, e se não fosse por nós, ninguém
precisaria ir lutar com Arcádius. ― Respondi. Lembrei-me de algo que Black
Jango disse antes de morrer e dei um pulo.
― Mãe? Que prima é essa que Black Jango falou que eu tinha? Que ele
matou?
― Prima? ― Ela parecia confusa. Aeban suspirou e pigarreou.
― Emma. ― Disse ele para nós ― filha de sua irmã Pytie. Foi Black
Jango que a matou! ― Disse ele.
― Mas ela disse que sua filha havia sido levada embora pelo pai! ―
Disse ela e Aeban sacudiu a cabeça.
― Ela entregou a filha para ele para tentar escondê-la, com medo de
ela ser caçada pela maldição do sangue. ― Explicou ― Mas quando ele
morreu, Emma foi para uma escola para magos, aquela escola que você
também estudou, ela também foi aluna de Arcádius depois que você saiu de
lá! ― Quando ele disse isso, o rosto de minha mãe perdeu a cor. ― Ele
descobriu o parentesco de vocês e ficou sabendo da maldição através de

283
Moan, que por mais coincidência que possa parecer, é filha de Veruza. ―
Disse ele.
― Mas ele não usou o sangue de Emma, usou? ― Ela perguntou.
― Não, ele descobriu que o sangue dela não era poderoso como o da
ramificação principal, mesmo assim, ele a mantinha no castelo para fazer
experimentos com o sangue dela, ela acabou descobrindo o que ele fazia e
tentou fugir para revelar o que ele planejava. Mas ao passar pelo portão do
castelo, um feitiço dele fez com que sua memória fosse apagada. ― Ele
sentou pesadamente na cadeira no canto da cabine para ficar de frente para
nós duas.
― Então, como soube quem era ela? ― Perguntei ― Quer dizer, se a
memória dela foi apagada...
― A memória não é apagada, é bloqueada, a pessoa dona das
memórias não tem mais acesso a elas, mas alguém que possa ler a mente
consegue enxergar qualquer memória, independentemente de a pessoa ter
conhecimento dela ou não. ― Explicou minha mãe.
― Meu erro foi não levá-la para a sacerdotisa também, eu a deixei com
um casal de humanos com um filho e pedi para que cuidassem dela como se
fosse filha deles, achei que seria mais seguro para ela numa vila de humanos
e que ali ninguém pensaria em procurá-la! De lá, fui direto te procurar para
quebrar a maldição antes que ele chegasse até você! ― Disse ele para minha
mãe.
O resto eu já sabia, pois tinha visto isso no sonho há um tempo atrás.
― Ewren a achou, e depois de um tempo casou com ela, ela teve sua
maldição quebrada também, então, quando Arcádius descobriu onde ela
estava, mandou Black Jango a matar! ― Por mais cruel e egoísta que isso
pudesse parecer, me doeu pensar que se ela ainda estivesse viva,
provavelmente não conheceria Ewren agora.
― Ele sabe que ela era minha prima? ― Perguntei.
― Não, nem sabia que ela era uma maga, eu bloqueei seus poderes
quando soube que ela havia perdido a memória, para ela não machucar
ninguém. ― Ele estava triste e arrependido. ― Se não tivesse feito isso...

284
― Não foi sua culpa ― eu disse. ― Não tem como cancelar essa
maldição de vez? Quero dizer, nunca mais aparecer nas descendentes da
nossa família?
― Não sabemos! ― Disse minha mãe frustrada. ― E não faço ideia de
onde começar a procurar por pistas para acabar com isso! E agora ainda tem
essa também de você com aquele... ― ela começou a murmurar baixinho e
parecia que estava xingando.
― Esquece isso! ― Disse tentando tirar o foco de mim. ― Vi Lórien
cancelar uma maldição de Andros só tocando nele, juntando com o meu
poder...
― Isso não é uma simples maldição de transformação, Leona! E como
assim, esquece isso? E se você tivesse ficado grávida? Faz parte da maldição
só nascerem mulheres na família! ― Agora sim ela estava furiosa.
― Lupine... ― Aeban a olhou feio e só então ela ficou quieta
novamente.
― Não quero mais você junto com ele! ― Disse ela cruzando os braços.
― Mãe! ― Protestei ― Não foi assim que a senhora me criou, lembra?
Liberdade total? Confiança? ― Meu coração havia disparado, não queria
nem pensar na possibilidade de me afastar dele novamente.
― Ela tem razão, Lupine, não vai adiantar nada você a impedir de ficar
perto dele, ainda mais agora que ele é guardião dela! Lembre-se que ele
também é filho de sua melhor amiga. Você não pode ficar assim com eles, vá
lá e converse com ele então! ― E foi isso que ela fez, saiu batendo o pé e
quase derrubando a porta da cabine atrás dela. Aeban estava sorrindo.
― Ela é muito teimosa! Tem sempre que estar com a razão! ―
Reclamei.
― É sua mãe, ela é assim mesmo. Você tem que entender, ela me
abandonou porque achava que seria melhor para você, que longe daqui ela
poderia te proteger, e agora ela está perdendo o controle de tudo e você está
saindo de baixo das asas dela.
― Eu sei... ― disse baixinho.

285
― Fique aqui e descanse! ― Disse ele se levantando e me dando um
beijo na testa. ― Vou conversar com eles também! ― Meu estômago
afundou, tive medo que ele fizesse algo a Ewren, ele percebeu meu
nervosismo e riu enquanto saía da cabine. Estava estranhamente tranquilo
se contarmos que havíamos acabado de sair de uma batalha.
Fiquei sozinha na cabine, tensa demais para dormir e cansada demais
para ficar acordada, fiquei rolando sobre a cama macia até conseguir pegar
no sono.
Acordei com o suave balanço do navio. Ewren estava sentado ao meu
lado numa cadeira, observando-me dormir, meu corpo estava
estranhamente quente e meu cabelo estava úmido. Sorri quando o vi ali.
Ele colocou sua mão em meu rosto e depois ficou mexendo em meus
cabelos.
― Tudo bem? ― Perguntei.
― Tudo ótimo! ― Disse ele me mostrando um largo sorriso. Lembrei
que meus pais haviam ido falar com ele e me sentei na cama.
― Eles não te fizeram nada, não é? ― Perguntei.
― Não! ― Respondeu rindo ― Eu os convenci a me deixar ficar com
você!
― Como? ― Eu não acreditava, devia estar sonhando ainda.
― Depois você vai saber! ― Respondeu passando os dedos
suavemente em meu ombro, ele tinha um olhar sedutor, então puxei seu
cabelo e o beijei. Ewren me afastou ainda sorrindo.
― O que foi?
― Você quer que eles arranquem minha cabeça, não é?
― Desculpe.
― Estamos quase chegando ao Porto da Besta Santa. ― Disse ele
respirando fundo e encostando-se à cadeira.
― O que vai ser agora? ― Perguntei ― Se meu sangue não serve mais
para Arcádius, o que ele vai tentar fazer?

286
― Vai arrumar algum outro jeito, há sempre outro jeito! ― Estremeci
ao pensar que ainda haveria mais. Ewren tirou a mão que estava em meus
cabelos e ficou sério.
― O que... ― quando ia lhe perguntar o porquê de ele ter mudado tão
rapidamente, minha mãe entrou na cabine.
― Andros está te procurando, Ewren. ― Disse ela secamente.
Ele se levantou e encarou minha mãe, depois deu um meio sorriso e
me beijou na frente dela. Senti-me quente demais e quase dormente com o
pânico que bateu em mim.
― Com licença ― disse ele saindo pela porta, antes dele a bater, virou-
se levemente e piscou mim.
Minha mãe bufou com raiva.
― É muito difícil aceitar isso! ― Disse ela sentando-se perto de mim.
― Ele é muito velho para você! ― Revirei os olhos.
― Mãe, nós temos mais alguma parente aqui que seja maga? ―
Perguntei, forçando-a a mudar de assunto.
Ela não percebeu que fiz aquilo de propósito.
― Tem sim, sua avó Mayra, minha irmã Pytia e Belve, irmã mais nova
de Emma... ela é três anos mais velha do que você.
― Então tenho uma prima de vinte anos aqui?
― Não, você tem uma prima de oitocentos e dezenove aqui!
― Então, como ela é três anos mais velha do que eu? ― Perguntei.
― Se nós não tivéssemos saído daqui você teria oitocentos e dezesseis
anos. ― Respondeu ― Ewren tem mil oitocentos e trinta anos, sabia? ―
Perguntou ela fazendo cara feia ― Ele e seu pai têm pouco menos de dez
anos de diferença! ― Ela havia ficado vermelha.
― Quanto isso daria na terra? ― Perguntei.
― Trinta e oito Anos! ― Ela disse isso como se fosse me convencer a
não ficar com ele.
― Não é tão velho assim! ― Respondi mordendo a boca para não rir e
ela respirou fundo.

287
― Não vou discutir com você porque seu pai me impediu de brigar
com você por isso, e como eu o privei de estar presente nas nossas vidas,
achei justo o deixar tomar as decisões de agora em diante! ― Meus olhos
brilharam com a possibilidade de ela não reclamar mais.
― Voltando ao assunto, essa prima Belve, ela é maga também? ―
Perguntei ― Será que é mais forte do que eu? ― Deixei a outra pergunta
escapar sem querer e minha mãe olhou-me surpresa.
― Não é mais forte, talvez mais habilidosa com suas magias, mas não,
mais forte.
― Por quê?
― Ela é filha de minha irmã mais nova. A maldição é mais forte nas
primogênitas.
― Mas eu sou mais nova que Belve... A senhora é gêmea? ― Perguntei.
― Minha mãe era a mais velha, eu sou a mais velha e você... ― disse
ela com uma expressão triste. ― Pytia e eu não somos idênticas, as únicas
idênticas eram Mayra e Ervie. ― Ela parecia distante ― tia Ervie perdeu suas
duas filhas ainda crianças, depois sumiu para o mundo das águas e nunca
mais ouvimos falar dela. Pytia teve duas filhas também, Emma e Anne, Anne
nasceu muito pequena durante um verão muito quente e não sobreviveu.
― Então a senhora foi a única da família que não teve gêmeas? ―
Perguntei, seus olhos já tristes se encheram de lágrimas.
― Era para o nome dela ser Serena, eu estava em Cristalis, no templo,
quando vocês resolveram nascer. Você nasceu rápido, era uma menina
grande e saudável, mas Serena não queria nascer, parece que ela sabia o
destino que teria que enfrentar... fiquei por horas tentando a fazer nascer e
acabei desmaiando de cansaço. Quando acordei algumas horas depois, só
tinha você em meus braços. ― Afaguei suas costas tentando confortá-la.
― Aeban sabe disso? ― Ela negou.
― É melhor nem saber... ― disse ela.
― Mãe, me conte direito, como foi que surgiu essa maldição?
― Sua bisavó Jocelinne era uma maga aprendiz, era muito bonita
assim como você, seu mestre era um Mago muito famoso, Jack, só que era

288
casado com uma bruxa muito ciumenta chamada Veruza. O professor de
Jocelinne acabou se apaixonando por ela, então quando Veruza descobriu,
ela ficou irada, disse que a morte era pouco para Jocelinne e amaldiçoou ela
e toda sua descendência, quando elas chegassem a idade da lua cheia seu
sangue iria dar poder a qualquer um que o tomasse e se tornariam imortais
até passar a maldição adiante, então elas seriam perseguidas para sempre, e
para a maldição nunca ter fim, só nasceriam meninas em nossa família. Com
raiva de Veruza ao descobrir o que ela tinha feito, Jack a baniu desse mundo.
― O que houve com Jocelinne?
― Ela começou a ser perseguida por todos os tipos de criaturas que
percebiam o poder que ela podia conceder a eles, Jack ficou com ela para que
a maldição fosse quebrada, mas apenas a passaram para frente, e passar a
maldição adiante é inevitável!
― Nós temos que pôr um fim a isso! ― Disse ― Nem que tenhamos
que andar pelos Doze Mundos atrás dessa Veruza e obrigá-la a desfazer a
maldição!
― Sim, é o que pretendo fazer. ― Disse ela limpando as lágrimas e
pondo-se de pé.
― Nós vamos fazer juntas! ― Falei lhe dando um abraço.
― Sim, prometo que iremos acabar com isso juntas! ― Ela suspirou e
senti seu alívio quando a abracei.

289
14

tracamos no Porto da Besta Santa ao entardecer. Os sóis

A desenhavam traços brilhantes na água até onde a vista


alcançava. Aeban dispensou o exército élfico que veio de
Górtia e libertou os homens que antes eram lobisomens.
Voamos para Lótus Vale e chegamos à cidade
flutuante pouco antes da meia-noite, eu estava exausta, e assim que
colocamos os pés na cidade, Ewren desapareceu. Fui procurar por Feroz e o
encontrei roubando comida na cozinha, peguei um prato para mim também
e subi para o quarto na torre.
Mal chegamos e Lórien já estava de partida.
― Nos vemos semana que vem na Cidade de Cristal, está? ― Ela
encheu meu rosto de beijos ― Deixei algumas roupas separadas no armário
para você! ― Disse ela enquanto saía.
― Eu vou estar lá para pegar o buquê. ― Respondi mesmo sem asaber
das tradições deles por aqui.
O quarto ficou em silêncio, só não estava mais triste sem Lórien, pois
sabia que iria voltar a vê-la em breve. Coloquei uma roupa de dormir e caí
na cama, colocando Feroz sobre minha barriga e coçando suas orelhas
macias até adormecer.

Era de madrugada quando acordei suando, com muito calor e sem ar.
Feroz havia crescido enquanto dormia e estava sobre mim quase me
esmagando. Saí debaixo dele com dificuldade e andei até a sacada para

290
tomar um ar. A brisa da noite me acertou em cheio, a lua gigante de Amantia
brilhava com tal intensidade no céu que parecia ser dia.
Senti uma mão em meu ombro e pulei de susto, abafando um grito
quando vi que se tratava apenas de Ewren. Ele estava agachado sobre o
parapeito da sacada, seus olhos prateados estavam brilhando contra a luz da
lua, seu cabelo estava trançado, balançando suavemente com o vento, e as
asas, parcialmente abertas.
― Quer me matar de susto? ― Murmurei tentando inutilmente fazer
meu coração se acalmar.
Ele sorriu para mim, fazendo todo o esforço de acalmar meu coração
ir por água abaixo.
― Você é muito assustada, sabia? Quero te mostrar uma coisa, vem!
― Disse ele me puxando para seu colo e levantando voo.
― Poderia me responder uma coisa que estou curiosa para saber desde
que vi você assim pela primeira vez? ― Ele franziu a testa e concordou com
a cabeça. ― Por que você tem asas? ― Perguntei ― Lórien eu até entendo,
pois é uma maga e poderia fazer aparecerem asas nela se ela quisesse! Mas
elfos não tem asas, não até onde eu sei...
― É exatamente isso! ― Ele respondeu ― Você conheceu Aristes,
lembra-se dele? Aquele mago metamorfo que te mandou para casa?
― Me lembro, o mago doidão, não é?
― Pois é! Ele criou uma poção com penas de fênix que, quando você a
toma, uma tatuagem de fênix aparece em suas costas, e quando
concentramos nossa energia nela, as asas dela se tornam parte do nosso
corpo e se abrem. Foi muito difícil controlá-las no começo, mas depois foi
como se tivesse nascido com elas.
― E como você conseguiu uma poção dessas?
― Foi na época que entrei para o exército para fazer parte da guarda
real, os que se encaixaram no perfil para ser da guarda receberam a poção
de Aristes. Eu fui um dos sortudos.
― Mas você não é da família real?

291
― Nada me impedia de entrar para a guarda mesmo assim, e eu não
ligava para esse título sem graça!
― E Lórien? E sua mãe? ― Perguntei.
― Lórien! Ela recriou a poção com penas de Chuia dourada e usou Arin
como cobaia! ― Ele riu ― Ela colocou a poção escondida no chá dela e
quando viu que funcionou, bebeu também.
― Ela é louquinha! ― Ri, ele concordou com um aceno.
Passamos voando por cima de uma clareira e começamos a descer,
pude escutar o som de água e pousamos em uma trilha de pedras brancas.
― Onde estamos? ― Perguntei.
― Já vai ver! ― Ele cobriu meus olhos com as mãos e caminhamos até
o barulho de água ficar mais forte.
Ewren tirou as mãos do meu rosto e as colocou em volta de mim.
Quando abri olhos, perdi o fôlego, eram duas cachoeiras que se juntavam em
uma enorme piscina natural, escavada por séculos de quedas daquelas
águas, as pedras que circulavam a piscina estavam distribuídas de uma
maneira que dividia as águas em cinco rios menores que corriam para
dentro da floresta, e bem no meio da piscina havia uma pedra plana e
parcialmente coberta pela água. A Lua fazia aquele pequeno paraíso brilhar.
― Ewren, é incrível! ― Sorri, me desembaracei de seus braços e
comecei a entrar lentamente na água. Não estava gelada como imaginei,
estava fria, quase morna na verdade.
Depois de alguns passos, ficou fundo demais para que eu pudesse ficar
em pé sem ter que ficar nas pontas dos dedos, então, mergulhei para molhar
minha cabeça que estava mais quente do que antes. Ewren entrou também
chegando bem perto, me pegou pela cintura e me virou para ele, encostando
minhas costas na pedra. Ele acariciou meu pescoço com a ponta do nariz,
depois o mordeu levemente e olhou dentro de meus olhos, quase como se
pudesse tocar minha alma, segurou minha mão onde as marcas brilhavam
levemente, beijou-a e entrelaçou seus dedos nos meus.
― Deste dia em diante, eu reivindico sua alma, sua força e seu corpo;
e prometo ser sua luz, sua espada, seu ombro amigo e seu guardião, não

292
importa o que aconteça, até o fim dos meus dias ― disse ele, antes que eu
pudesse entender o que ele quis dizer, seus lábios encontraram os meus, eu
não conseguia me acostumar com aquilo, e sempre que ele me tocava assim,
esperava acordar a qualquer momento de um sonho.
― Eu serei sempre sua! ― Respondi escondendo meu rosto em seu
peito, Ewren segurou meu queixo com a mão para olhar dentro dos meus
olhos e me beijou novamente com urgência, senti minha mão esquerda
arder levemente, mas não me importei de olhar, pois Ewren estava
prendendo minha atenção. Ele subiu na pedra e sentou-se na beirada que
ficava dentro da água, me puxando para seu colo, tirou minha roupa
lentamente e tirou meu cabelo molhado que cobria meu corpo, expondo-me
à luz da lua.
― Eu deveria parar aqui e te levar de volta! ― Disse ele dando um
sorriso meio de lado em conjunto com um olhar maldoso. Gemi baixinho.
― Você teria coragem para fazer isso? ― Minha voz estava trêmula e
ele riu.
― Nunca! ― Disse apertando-me contra seu corpo novamente e
deslizando sua mão pela minha coxa até minha cintura, dessa vez eu o beijei,
enrolei minha mão na sua trança e desenhando seus lábios com minha
língua, beijei seu pescoço e o mordi de leve. Sua respiração ficou alterada e
nos perdemos um no outro novamente. Ficamos juntos ali até o amanhecer,
num pequeno paraíso onde ninguém podia nos alcançar e onde o tempo
parecia ter parado para nós.

Estava deitada sobre Ewren e ele acariciava minhas costas com as


pontas dos dedos. Ele estava quente, em contraste com a água fria, fazendo
meu corpo inteiro se arrepiar. Sirius e Áries já se levantavam ao céu,
deixando aquele lugar ainda mais lindo.
― Temos que voltar. Sua mãe deve estar surtando a essa hora ― eu ri.
― Provavelmente! ― Dei um suspiro, levantando-me e vestindo
minha roupa. Senti uma tristeza ao me despedir silenciosamente desse
lugar.

293
Voamos de volta até a sacada de meu quarto na torre, ele me colocou
no chão, abri a porta e entrei seguida por ele.
Joguei-me na cama, mas estava sem sono, olhei minha mão onde havia
sentido queimar mais cedo, se unindo às marcas lilás em meu braço
esquerdo, havia uma fina linha dourada que serpenteava as costas de minha
mão e se enroscava em meu dedo anelar, formando uma pequena flor de lis
dourada em cima do dedo, achei até bem bonita, e como não parecia ser nada
estranho em comparação às que eu já possuía no braço e na testa, a ignorei.
― Não vai dormir? ― Perguntou Ewren olhando para a estante de
livros ao lado da janela. ― Não está com sono?
― Nem um pouco! ― Respondi ― Poderíamos fazer alguma coisa para
passar o tempo até a hora do almoço...
Ewren veio até mim com um livro na mão, pensei que ele iria sentar
para ler, mas ao invés disso, ele soltou o livro grosso e muito pesado em cima
de mim, fazendo quase todo o ar de meus pulmões ser expelido.
― O que... ― estava tentando recuperar o fôlego, tirando-o de cima
de mim.
― Você tem que ler isso até semana que vem!
― Que livro é esse? ― Perguntei tirando-o de cima de mim e olhando
sua capa antiga em couro com letras bem desenhadas.
― É um catálogo de Amantia, com descrição completa de todos os
seres existentes aqui, seus poderes, locais onde habitam... ― fiquei olhando
para ele de boca aberta.
― Você estava tão bonzinho comigo agora a pouco! ― Ele sorriu
maldosamente.
― Você é filha de duas pessoas importantes e influentes, usar a
desculpa de ter vivido longe de Amantia não vai ser aceita por muito tempo
pelas pessoas daqui! ― Meu estômago afundou.
― Vou pegar no sono no meio da leitura! ― Respondi indignada
olhando aquele livro enorme.
― Vou te ajudar! ― Disse ele sentando na poltrona ao lado da cama.

294
Enquanto eu lia, ele ficava em silêncio de olhos fechados, por vezes
achei que estava dormindo, e depois de alguns minutos de leitura, peguei no
sono de verdade.
Abri os olhos assustada com minha mãe arrastando-me para fora da
cama, como ela fazia quando eu não queria levantar para ir à escola. Ela me
levou para almoçar e depois para a biblioteca gigantesca da fortaleza, e nem
se eu tivesse dez vidas, poderia ler todos os livros que haviam ali. A
Biblioteca contava com livros e manuscritos vindos dos doze mundos, uma
coleção perfeita. Realmente teria que aprender tudo sobre Amantia em uma
semana.
Passei o resto da semana estudando sobre esse mundo o máximo que
podia. Aeban, quer dizer, meu pai me ensinava tudo que sabia, passava o dia
com ele no jardim suspenso estudando e treinando, ele me ensinava a usar
espadas duplas aproveitando um pouco do conhecimento que Lórien havia
me passado. Era divertido estar com ele, minha mãe por vezes vinha nos
inspecionar, ver se Aeban não estava sendo mole demais comigo e nos trazia
mais alegria, ela cantava e fazia toda a cidade vibrar com o vento que
respondia à sua voz. Sentia-me feliz de verdade pela primeira vez em toda
minha vida, completa, como se agora tudo estivesse em seu devido lugar.
Todas as preocupações haviam sumido por completo. Não havia visto Ewren
desde o dia em que fomos ao pequeno paraíso, estudava fervorosamente sem
descanso e sem saber aonde ele havia se metido.
No sábado de manhã, dia do casamento de Lórien, passei as primeiras
horas da manhã tentando me arrumar descentemente num vestido que
minha mãe havia mandado fazer para mim, ele era verde claro de um tecido
parecido com crepe, porém mais fino, com pequenos e delicados babados
nas alças e na barra, era até bonito, se não fosse o fato de que todos estariam
olhando com curiosidade para “a filha da Sacerdotisa desaparecida”, isso fez
minha cabeça girar, deixei meus cabelos soltos mesmo, usando apenas um
enfeite de flores verdes neles. Qualquer coisa, os usaria como um escudo
para esconder-me. Minha mãe havia me mandado acender minhas marcas
assim que chegasse à festa, para que todos tivessem a certeza de que era uma
maga “adulta” e confirmar a história que ela havia saído espalhando por

295
Amantia. Ewren entrou no quarto, estava vestido de forma elegante com
um traje preto e dourado e cabelo preso para trás num rabo de cavalo meio
solto, o que o deixava ainda mais charmoso.
― Onde esteve? ― Perguntei o olhando torto.
― Fui resolver uns assuntos em Monte Azul. ― Respondeu olhando
para mim dos pés à cabeça e levantando as sobrancelhas.
― Exagerado? ― Perguntei olhando para o vestido.
― Não, está muito bonito. ― Disse ele esticando a mão para mim e
mordendo a boca para não rir.
― O que é? ― Quis saber começando a ficar nervosa.
― Não é nada com você! Juro! Mas você vai ter uma enorme surpresa
no casamento e mal posso esperar para ver sua reação! ― Disse ele
estreitando os olhos para mim.
― Ótimo, conseguiu me deixar nervosa de vez! ― Meu estômago
embrulhou, saímos pela porta e descemos a longa escadaria até o pátio
principal, onde nos esperavam para partir.
Havia duas carruagens grandes esperando no pátio, eram muito
bonitas e pareciam que eram árvores transformadas em carruagens, elas me
lembravam o muro em volta da vila Safira, pois eram todas decoradas com
flores vivas e folhas verdes. Cada uma era puxada por seis cavalos de vento
bem maiores do que cavalos normais. Entramos em uma delas, meus pais
estavam na outra carruagem com mais duas pessoas que não conhecia e
agradeci por não entrar mais ninguém na carruagem conosco.
― Parece que vamos sozinhos. ― Ewren estava tão diferente do dia
em que o conheci, estava calmo e sereno, aproveitei que estava sozinha com
ele para tentar arrancar uma confissão, mas antes que pudesse dizer
qualquer coisa, ele disse bem devagar.
― Vai haver muita gente, gente importante e gente que só quer ter
uma oportunidade de fazer algo dar errado, então, haja o que houver, evite
sair de perto de nós! ― Seus olhos estavam sérios.

296
― Não pretendo sair de perto de você, alguém pode chegar e te roubar
de mim! ― Ele beijou minha mão esquerda e deu aquele sorriso estranho
que só dava quando conseguia provar que estava certo em algo.
― Você está me assustando, sabia? ― Estava desconfiada de que ele
iria aprontar alguma. Mas no casamento da própria irmã? Teria ele coragem
para fazer algo assim? Ewren permaneceu em silêncio o resto da viagem,
evitando minhas perguntas, o que mais me deixava apavorada era o brilho
perverso e ao mesmo tempo divertido em seu olhar.
Senti a carruagem fazer uma leve inclinação e passar por dentro de
uma sombra, olhei pela janelinha da carruagem e vi que estávamos
contornando uma coluna de nuvens, então os cavalos fizeram uma leve
inclinação, virando na direção daquelas nuvens em um ponto onde havia
uma luz brilhante, entramos ali e passamos deslizando suavemente por elas.
Não tinha uma vez em que eu olhasse para um novo lugar nesse
mundo, que não ficasse maravilhada com o que estava vendo.
A cidade era branca, com construções perfeitamente detalhadas e
prédios altos como os da Torre das Nuvens só que eram construções antigas,
e no topo de cada casa e de cada prédio havia um cristal de purificação azul,
lapidado conforme o estilo do local onde estava. Os sóis que atravessavam
as nuvens e encontravam aqueles cristais faziam espectros coloridos
brilharem por toda a cidade e as ruas brancas trançavam-se e se dividiam
como um gigantesco labirinto. As carruagens continuaram voando até
chegar ao motivo real dessa cidade se chamar “Cidade de Cristal”, um castelo
com o dobro do tamanho da fortaleza de Lótus Vale apareceu em nossa
frente, totalmente feito de cristais azuis de purificação.
― Aquele é o castelo da Rainha... ― Ewren falou baixinho perto de
mim ― Foi ali que você nasceu, é dentro desse castelo que fica o templo! ―
Não encontrava palavras para descrever como me sentia. O medo de acordar
no meu quarto e ser tudo um sonho se tornava maior a cada instante.
― É fantástico!
A carruagem pousou na frente do castelo, desembarquei lentamente,
observando e absorvendo cada detalhe para ter certeza que era real, meus
pais chegaram logo depois de nós. Havia centenas de “pessoas” de todas as
297
raças ali e todos nos cumprimentavam formalmente quando passávamos,
algumas pessoas vinham até mim para tentar apertar minha mão ou me
abraçar, mas pararam quando Ewren mudou sua aparência e deixou o punho
marcado pela corrente a mostra.
― Você é quase uma celebridade agora! ― Sussurrou enquanto
atravessávamos um salão para sair num jardim onde seria realizada a
cerimônia.
― Leona! ― Minha mãe estava ao meu lado movendo discretamente
a mão para que eu a olhasse, ela estava linda, usava um vestido cinza longo
que caía suavemente em seu corpo, suas marcas estavam brilhando e seus
cabelos prateados caíam em longos cachos em volta de sua cintura,
mostrando o quanto ela pertencia a esse mundo, ela não havia mudado nada
desde o momento em que nasci.
O jardim estava todo decorado com todos os tipos de flores que vimos
em Vintro e arcos de folhas douradas decoravam todo o jardim, fazendo um
caminho até onde havia um altar, os bancos faziam uma meia lua em volta
daquele altar e um caminho de folhas douradas e pequenas flores vermelhas
decorava o chão. O brilho do sol Áries no castelo fazia tudo parecer ainda
mais surreal.
― Leona! Suas marcas! ― Disse minha mãe tocando em sua testa
discretamente. Havia me esquecido completamente de mudar de aparência,
quando o fiz, ficando também com meus cabelos prateados e as marcas lilás
em meu braço e testa, houve um murmúrio, olhei de novo para minha mãe
e ela estava tentando disfarçar que estava tendo um ataque de pânico, saiu
discretamente com Aeban da vista das pessoas e fiz o mesmo com Ewren, ele
parecia estar se divertindo, pois não tirava o sorriso do rosto.
― Ewren, o que houve? Não estou entendendo!
― Já já! Fique calma! ― Olhei em direção a meus pais, Aeban a
segurava gentilmente com o rosto sem nenhuma expressão aparente, mas
nos olhava de vez em quando, enquanto minha mãe fulminava Ewren com o
olhar.
― Me diz logo o que está acontecendo Ewren! ― Falei entre os dentes,
parecendo um pouco mais ameaçadora do que de costume.
298
― O casamento vai começar! ― Disse ele me levando até um dos
muitos acentos das primeiras fileiras e nos sentamos lá. Não vi mais meus
pais depois que me sentei com Ewren. ― Existem dois tipos de casamentos
aqui, esse, com festa e gente chata desejando que você tropece e caia, e um
reservado, só ente duas pessoas que se amam. ― Disse ele baixinho para
mim ― Lórien é do tipo que gosta de se exibir! ― Revirei os olhos, isso eu já
havia reparado.
Uma música suave, com um som puro e agradável, começou a tocar,
Andros parecia que ia explodir de felicidade lá na frente. Virei-me para trás
para ver Lórien entrando deslumbrante. Ela estava usando um vestido longo
de seda e tinha seu cabelo trançado e todo decorado com pequenas presilhas
de ouro em forma de folhas. Elas prendiam um véu curto, porém muito
bonito. Lórien estava séria e diferente.
― As folhas douradas são o símbolo da Família Vertiggo, da família de
seu pai. ― Explicou ele para mim.
― Estranho como estamos todos conectados, não é?
― Todas as vidas são como uma teia de aranhas, elas se cruzam em
algum momento, pois todas juntas tem um propósito... ― ele deixou a frase
morrer enquanto o Sacerdote no altar começou a falar, não prestava atenção
no que ele dizia, pois tinha o costume de dormir em casamentos e não queria
perder esse. Depois de alguns minutos daquele homem falando, Andros e
Lórien viraram-se de frente um para o outro, eles entrelaçaram suas mãos,
então Andros começou a falar.
― Deste dia em diante, eu reivindico sua alma, sua força e seu corpo;
e prometo ser sua luz, sua espada, seu ombro amigo e seu guardião, não
importa o que aconteça, até o fim dos meus dias ― disse ele calmamente a
ela, que sorriu timidamente e respondeu.
― Serei o seu descanso, sua moradia e seu templo, serei para sempre
sua! ― Quando ela terminou de dizer, uma luz se acendeu em sua palma,
contornou sua mão e passou para a mão de Andros, quando a luz diminuiu,
vi que um pequeno laço dourado unia as mãos dos dois, ele serpenteou seus
dedos anelares e lá ficou a marca dourada de uma folha. Minha vista
começou a embaçar, fiquei tonta e meu coração disparou. Estava de cabeça

299
baixa olhando para a marca de uma flor de lis em meu anelar esquerdo.
Levantei meu rosto lentamente para olhar Ewren, ele estava olhando para
mim com aqueles olhos prateados e brilhantes e um sorriso divertido no
rosto.
― Ewren... ― fiz cada palavra sair lentamente e mais baixo do que eu
pude ― Você não fez isso... ― continuei encarando-o, enfrentando aquele
olhar.
― Fiz sim! ― Escutei um zumbido em meu ouvido e comecei a ter
dificuldade para respirar. Os convidados estavam se levantando para ir para
o outro lado do jardim até restarmos apenas Ewren e eu.
― Eu vou te matar! ― Consegui finalmente botar as palavras para
fora.
― Não vai não! ― Ele riu, agora abertamente, pois já não havia mais
perigo para ele. ― Como você acha que convenci seus pais a me deixarem
ficar com você?
― Eles concordaram com isso? ― Estava em choque ― Vou matá-los
também!
― Eles concordaram, só não especifiquei data e nem hora, então o fiz
na primeira oportunidade que tive, para poder ficar com você novamente
― disse calmamente ― Você não queria? ― Perguntou ele fazendo uma
expressão triste e decepcionada.
― Não é isso, Ewren! Eu nem sabia de nada, como você pode fazer algo
assim sem nem me dar uma chance de responder?
― Você me respondeu na hora e de forma correta! ― Nada fazia o
sorriso sair de seu rosto.
― Não é justo! ― Reclamei baixinho.
― Lembra-se na minha casa, quando me pediu para quebrar a
maldição? ― Sua expressão era tão serena que nem parecia ser o mesmo ―
Você não me deu a opção de dizer não, jogou a responsabilidade para cima
de mim, dizendo que se não o fizesse, você poderia morrer, lembra? ―
Ewren tocou meu rosto com sua mão, onde também estava gravada aquela
flor de lis, formando uma aliança dourada em seu dedo.

300
Sabia que ele estava errado e só queria achar uma justificativa, depois
de pensar um pouco melhor, respirei fundo e resolvi ficar feliz e carregar
aquele mesmo sorriso enquanto estivesse ao lado dele.

301
Epílogo:

Noite estava fria, mais do que esteve nos últimos dias. O

A casamento de Lórien foi um evento fantástico, e embora


não tenha conseguido ver Eirien, a avó de Ewren, fiquei
feliz de estar me adaptando lentamente ao meu novo
mundo.
― Haverá outras chances de conhecê-la! ― Ewren estava sério,
tentando não se mostrar muito amigável a um grupo de salamandras que
nos vigiavam de canto de olho e nos seguiam discretamente por todos os
lados dos jardins. Lórien e Andros partiram para a Lua de Mel enquanto
também partíamos de volta a Lótus Vale.
Estava calma e até feliz dentro da carruagem de volta, pois Ewren
havia pegado um pedaço generoso de bolo para ele mesmo, mas não o comeu
e o guardou para me dar depois.
― Tentando me comprar? ― Estiquei minha mão para pegar o prato
em seu colo.
― Não imaginava que poderia te comprar facilmente com doces,
agora que sei, vou usar a meu favor algumas vezes! ― Estava com aquele
olhar maldoso gravado no rosto, dei de ombros a sua provocação.
Ao chegarmos em Lótus Vale, Ewren foi chamado imediatamente a
sala de meu pai. Já imaginava que isso fosse acontecer depois de ter visto
minha mãe quase ter um ataque cardíaco durante o casamento de Lórien.
Podia escutar os gritos dela do meu quarto na torre.

302
― Feroz, sacerdotisa dos ventos, não é? Acho que a chamavam assim,
pois os quatro ventos escutam seus berros! ― Peguei-o de cima da cama e
afaguei sua cabeça. Ele espirrou e bateu suas pantufinhas de leve em meu
rosto, esperava que a fúria de Lupine, a Sacerdotisa de Amantia, se dissipasse
logo.
Fiquei quase uma semana sem ver Ewren novamente, não sei se foi
castigo pelo casamento escondido que nem eu sabia que estava acontecendo
ou se ele resolveu deixar as coisas se acalmarem.
Aeban passava a maior parte do tempo tentando convencer minha
mãe de que estava tudo bem e de que o perigo havia passado... por enquanto.
Numa noite que estava com insônia, caminhando pelos corredores escuros
e desertos da fortaleza, cheguei até uma escadaria e do alto dela vinha uma
forte claridade. Subi as escadas atraída pela luz como uma mariposa é
atraída até uma lâmpada incandescente.
Era um terraço não muito espaçoso acima da torre sul, andei devagar
até a beirada dela e me sentei no parapeito, sacudindo minhas pernas para
fora da torre. A lua nova quase não aparecia, pois estava cercada de muitas
estrelas e a mandala brilhava ainda mais forte sem a luz da lua para cobrir
seu brilho. A brisa suave fez meus cabelos castanhos claros voarem fazendo
ondas no céu. “Ainda bem que não os havia cortado mais curto”.
Fiquei completamente sozinha nos últimos dias. Ewren havia sumido
novamente, deixando-me presa na fortaleza, pois sabia que não me
atreveria a fazer alguma coisa com meus pais de olho em mim o tempo todo.
Porém, eles mal ficavam na fortaleza, iam para todos os lados em Amantia
resolver problemas e me faziam prometer que não sairia daqui.
O tédio era meu maior inimigo, pois nem Lórien eu tinha. Estava
casada com Ewren, mas minha mãe fez questão de me lembrar que ela
aplicaria as regras da terra a mim, enquanto não tivesse dezoito anos, não
poderia fazer nada sem a autorização deles. Para minha alegria e tristeza
dela, meu aniversário é dia seis de julho e faltava pouco mais de um mês para
esse dia. Pela primeira vez desde que tinha chegado aqui me sentia sozinha,
não estava triste, apenas frustrada por ter que ficar trancada no castelo

303
enquanto os outros estavam por aí. Meu sangue não era mais amaldiçoado,
então não tinha mais perigo para mim no momento.
Podia sentir um frio na espinha e sabia que aquilo indicava que ainda
não havia acabado, que algo estava apenas esperando por outra
oportunidade, por um momento de descuido e por um minuto de distração.
Lágrimas escorreram pelos cantos de meus olhos e naquele momento senti
um medo irracional de ficar só...
Uma sombra apareceu sob a luz da lua e meu coração pulou
alegremente, sabia que era ele, podia sentir sua presença toda vez que
chegava perto de mim. Enxuguei as lágrimas do rosto rapidamente e me
virei para vê-lo chegar e poder reclamar pelo tempo que havia me deixado
esperando. Ele estava ali, de asas abertas, e estendia sua mão para mim.
A peguei deliberadamente, ele me tirou do chão e voou sem dizer
nada. Fizemos a volta na fortaleza em direção ao sul e o trajeto até sua casa
no alto da torre foi diferente à noite. A mandala desenhava um rastro nas
nuvens até o alto da torre, fazendo-as parecer um painel pintado à mão.
Ewren não desceu na varanda circular como eu esperava, mas sim, no
terraço, ele me colocou sentada numa espreguiçadeira e sentou-se em
minha frente, beijou minhas mãos e sorriu para mim como se pedisse
desculpas.
― Estou de castigo até meu aniversário por sua causa, sabia? ― Disse
então, tentando não perder o foco com seus olhos.
― Você está de castigo, eu não, então o que eu quiser fazer,
independente de te envolver ou não, eu vou fazer! ― Respondeu dando uma
piscada para mim.
Deitei em seu colo e fiquei observando as estrelas daqui de cima,
Ewren levantou minhas mãos e traçou as marcas douradas com a ponta do
dedo. Ele carregava uma expressão meio triste em seu rosto enquanto
olhava para minhas mãos.
― Arrependido? ― Perguntei tentando entender o que se passava na
sua cabeça.

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― Nunca, não costumo me arrepender das coisas que faço, apenas me
arrependo das que deixo de fazer... E estar com você agora é uma das coisas
que não me arrependo.
Fechei os olhos e senti-me tranquila novamente, agora estava tudo no
lugar certo e não importa o que estivesse por vir, desde que ele ainda
estivesse ao meu lado, eu poderia enfrentar o que fosse, e faria de tudo para
achar um modo de desfazer aquela maldição para sempre dessa vez.
Levantei para lhe dar um beijo e ele segurou meu rosto entre suas
mãos.
― Para sempre sua! ― Disse-lhe beijando-o e ficando abraçada e
escondida em seus braços, desejando ficar ali para sempre.

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Meus mais sinceros
agradecimentos a:

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