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Crônica

As três pipas do vovô


Amanhã é dia de que? – Meus filhos perguntam, os três ao mesmo tempo.
- Amanhã é dia de vovô e vovó – Eu respondo.
Eles saem saltitantes pela casa brincando e gritando.
-EBA! Amanhã é dia de vovô.
Como é bom "ser" criança e esperar pela visita dos avós no "mingo" (Domingo, dia dos
avós). Uma semana eles vêem, outra nós vamos.
Neste dia, o vovô veio cheio de papéis, cola e tesoura. É dia de vovô e também de
churrasco. OBA!
A surpresa do dia. O Vovô faria pipas para as crianças. Depois do churrasco, o vovô
sentou, rodeado de seus trinetos para confeccionar as pipas. Sentados lá na garagem, ficaram a
tarde toda fazendo uma pipa, enquanto ele resgatava gostosas memórias de sua própria infância.
Uma tarde não seria suficiente para as três pipas. Mas a diversão já estava preparada. Só faltava
o vento!
Cadê o vento?
Naquela tarde muito quente de verão não tinha vento, mas não impediu que a turma se
divertisse da mesma forma. Foi preciso mais um domingo para o término das pipas. E o tão
esperado dia de vento apareceu, afinal. Munido das três pipas, dos trinetos e eu, com a câmera a
tira colo, vovô partiu para o que seria a nossa aventura dominical. Chegamos de mansinho
naquela praça no final da tarde. Havia crianças brincando de bola, casais tomando chimarrão,
crianças no balanço, outros exercitando-se. Talvez, chovesse. Talvez ventasse. Estava estranho.
A principio, nenhum vento, para a tristeza das crianças. O vovô meio desapontado olhava para as
nuvens. De repente, uma brisa o animou. Ele disse: 
- Olha o vento! – Correu para o carro e buscou as três pipas. 
Elas teimaram um pouco, mas subiram. Aos poucos as crianças pegaram o jeito. Corriam
pela grande praça, enquanto as pipas voavam chamando atenção do restante das pessoas. Aos
poucos outras crianças foram surgindo e querendo experimentar, crianças, talvez, sem um avô
maravilhoso como este que confeccionava pipas. 
De longe, sentada no banco eu registrava os momentos com todas as fotos que podia. Meu
pai ao lado dos netos e rodeado de crianças de todas as cores. Agradeci pelo momento tão
maravilhoso desfrutado ao lado de meu pai e meus filhos trigêmeos.
Uma brincadeira quase tão rara nas nossas praças de cidades grandes com pais e avôs
ocupados. Uma brincadeira gostosa num lindo final de tarde de verão coroada pelos raios de um
por de sol igualmente raro.
Como é bom "ter" crianças e viver toda esta alegria.
Por isso, não me canso de agradecer:
-Obrigada.Viva o Vovô com suas três pipas!

*Aline Dexheimer escreve também para o portal Desabafo deMãe: http://www.desabafodemae.com.br/


Site da autora:http://www.alinedexheimer.com.br/
Crônica
Tarde de domingo

Seis pratos sobre a pia. Cinco vazios, um ainda com lasanha à bolonhesa.
Um filho que não gosta de lasanha à bolonhesa. Zero filhos para tirar o resto da mesa.
Uma mãe de mãos ásperas, um pai de dedos ágeis. Um controle remoto. Zero
sobremesas. Quatro reclamações.
Um filho que não gosta de sobremesa.
Dez dedos indicadores, um controle remoto. Cinqüenta programas simultâneos na TV a
cabo. Cinco opiniões, dois safanões, um grito vindo da cozinha. Quatro silêncios e uma bateção
de porta.
Um filme, quatro sorrisos.
Um choro abafado no banheiro. Uma palavra doce de mãe.
Seis pratos lavados, doze talheres guardados, uma caçarola areada. Duas mãos em
repouso.
Cinco lugares ocupados. Uma poltrona vaga. Uma birrinha no canto da sala. Um colo. Duas
lágrimas já enxutas.
Um ressonar, dois ressonares, três... Cinco roncos.
Dois olhos bem abertos.
Um bico desse tamanho. 

Ana Paula Corradini é jornalista e escritora. 


Crônica: O melhor amigo
A mãe estava na sala, costurando. O menino abriu a porta da rua, meio ressabiado,
arriscou um passo para dentro e mediu cautelosamente a distância. Como a mãe não se voltasse
para vê-lo, deu uma corridinha em direção de seu quarto.
– Meu filho? – gritou ela.
– O que é – respondeu, com o ar mais natural que lhe foi possível.
– Que é que você está carregando aí?
Como podia ter visto alguma coisa, se nem levantara a cabeça? Sentindo-se perdido,tentou
ainda ganhar tempo.
– Eu? Nada…
– Está sim. Você entrou carregando uma coisa.
Pronto: estava descoberto. Não adiantava negar – o jeito era procurar comovê-la.Veio
caminhando desconsolado até a sala, mostrou à mãe o que estava carregando:
– Olha aí, mamãe: é um filhote…
Seus olhos súplices aguardavam a decisão.
– Um filhote? Onde é que você arranjou isso?
– Achei na rua. Tão bonitinho, não é, mamãe?
Sabia que não adiantava: ela já chamava o filhote de isso. Insistiu ainda:
– Deve estar com fome, olha só a carinha que ele faz.
– Trate de levar embora esse cachorro agora mesmo!
– Ah, mamãe… – já compondo uma cara de choro.
– Tem dez minutos para botar esse bicho na rua. Já disse que não quero animais aqui em
casa. Tanta coisa para cuidar, Deus me livre de ainda inventar uma amolação dessas.
O menino tentou enxugar uma lágrima, não havia lágrima. Voltou para o quarto,
emburrado:
A gente também não tem nenhum direito nesta casa – pensava. Um dia ainda faço um
estrago louco. Meu único amigo, enxotado desta maneira!
– Que diabo também, nesta casa tudo é proibido! – gritou, lá do quarto, e ficou
esperando a reação da mãe.
– Dez minutos – repetiu ela, com firmeza.
– Todo mundo tem cachorro, só eu que não tenho.
– Você não é todo mundo.
– Também, de hoje em diante eu não estudo mais, não vou mais ao colégio, não
faço mais nada.
– Veremos – limitou-se a mãe, de novo distraída com a sua costura.
– A senhora é ruim mesmo, não tem coração!
– Sua alma, sua palma.
Conhecia bem a mãe, sabia que não haveria apelo: tinha dez minutos para brincar com seu
novo amigo, e depois… ao fim de dez minutos, a voz da mãe, inexorável:
– Vamos, chega! Leva esse cachorro embora.
– Ah, mamãe, deixa! – choramingou ainda: – Meu melhor amigo, não tenho mais
ninguém nesta vida.
– E eu? Que bobagem é essa, você não tem sua mãe?
– Mãe e cachorro não é a mesma coisa.
– Deixa de conversa: obedece sua mãe.
Ele saiu, e seus olhos prometiam vingança. A mãe chegou a se preocupar: meninos nessa
idade, uma injustiça praticada e eles perdem a cabeça, um recalque, complexos, essa coisa.
– Pronto, mamãe!
E exibia-lhe uma nota de vinte e uma de dez: havia vendido seu melhor amigo por trinta
dinheiros.
– Eu devia ter pedido cinqüenta, tenho certeza que ele dava murmurou, pensativo.
Fernando Sabino

Crônica: O casalzinho

Na pré-escola o menininho e a menininha brincavam lá num canto, no recreio, debaixo da


goiabeira no parquinho, quando a professora ouviu seus gritinhos abafados (em pré-escola tudo é
assim pequenininho, menininho, gritinho e, geralmente a escola também é apertadinha numa
casa onde os quartos viraram salinhas de aula, a garagem virou bibliotequinha e o quintal,
parquinho onde a criançada brinca apertadinha).
Então a professora foi lá ver e eles estavam enganchados pela boca, pelos aparelhos
ortodônticos, os “ferrinhos”, como diz a criançada.
É sério: o menininho e menininha, os mais quietinhos da turma, os mais inocentes e
fofinhos, educados e meigos, estavam ali de gatinhas na areia, enganchados pela boa e olhando
para a professora como a suplicar ajuda, tia ajuda!
Aí alguém da turma viu e gritou:
- O Du e Dé tão se beijando!
Alvoroço é pouco, rebuliço também. Mas essas coisas são as tempestades, vem e vão, vão
e vem, não sem antes quebrar um monte coisas. Brinquedos, cadeiras, vasos, cabide, tudo foi de
roldão atrás duma professora levando a menininha, ainda enganchados – até que, na sala da
diretora, esta senhora arregalou os olhos e sentou estupefata enquanto as professoras deixavam
o casalzinho, na falta de lugar melhor, sobre a sua própria mesa!
Fecharam a porta deixando o tumulto lá fora. A menina chorava, o menininho gemia, de
olhos arregalados como a perguntar: vão me tirar disto ou vou ter de engolir as lágrimas dela?
Engancharam os ferrinhos, disse uma professora. Vamos chamar o dentista, disse outra. Aí
a diretora mostrou porque é diretora: abriu a gaveta, pegou uma bolsinha de couro, tirou um
alicatinho de manicure e se debruçou sobre o problema.
Quando conseguiu desenganchar os ferrinhos, esperou o casal de refazer, com água
açucarada e palavras doces, até que também docemente perguntou:
- Mas por que vocês se engancharam? Estavam se beijando?
O menininho fechou a cara, a menininha protestou, não estava beijando não. Aconteceu foi
que estavam brincando e...
- ... Ele pediu metade do meu chiclete, e eu falei que ele podia pegar da minha boca, que
eu tava com a mão cheia de areia!
- E eu também – o menino confirmou – Então fui pegar coma boca, ué!
E abriu o sorriso de metal.

Pellegrini, Domingos. Ladrão que rouba ladrão. São Paulo. Ática, 2002, p. 63 e 64.
Crônica: A turma
Eu também já tive uma turma, ou melhor, fiz parte de turma e sei como é importante em
certa idade essa entidade, a turma.
A gente é um ser racional, menos quando em turma. Existe, por exemplo, alguma razão
para um grupo de pessoas sentar todo dia numa escada ou meio-fio e passar horas
conversando?
Você pode falar a um filho, por exemplo, que refrigerantes engordam e chocolates dão
mais espinhas em quem já está na idade de espinhas. Ele nem ouvirá. Mas, se um dia a turma
resolver, ele passará a tomar só água com limão e pegará nojo de chocolate.
Você pode falar que cabelo tão comprido é incômodo, calorento, atrapalha, mas que nada,
ele te pedirá dinheiro para comprar mais xampu. Agora, se a turma resolver cortar careca, ele
aparecerá de repente careca no café de manhã e nem quererá falar do assunto — qual o
problema em cortar careca?
Você pode dizer que bossa nova é bom, e mostar jornais e revistas, provar que só “Garota
de Ipanema” já recebeu centenas de gravações em todo o mundo, mas ele aumentará o volume
do rock pauleira ou da tecno-bost. Até o dia em que alguém da turma aparece com um CD de
bossa nova e ele troca Axel Rose por Tom Jobim de um dia para o outro.
A turma tem modas, como quando resolvem todos arregaçar as barras das calças, que
usavam arrastando pelo chão.
A turma tem traumas, como quando o namoradinho de uma se apaixona pela namoradinha
de outro e...
A turma tem linguagem própria, uma variante local de um ramal regional da vertente
adolescente da língua.
A turma adora sentar na calçada e na praça e falar sobre o que viram em casa na
televisão.
A turma tem duplas de amigos e amigas mais chegados, e trios, e quartetos, que num
grande minueto anarquista se misturam as festas de aniversário.
Ninguém da turma dança até que alguém da turma começa a dança, aí dançam todos
trocando de par até acabarem dançando todos juntos como turma que são.
Um da turma se tatua, todos da turma querem se tatuar.
Um bota uma argola no nariz, os outros, para variar, botam no lábio, na sobrancelha e na
orelha e...
A turma é isso aí, cara, uma reunião diária de espinhas e inquietações, habilidades e
temperamentos, o baralho das personalidades se misturando, o jogo das informações e dos
sentimento rolando nas conversas sem fim, nas andanças sem cansaço, nas músicas
compartilhadas, no refri com três canudos e uma empadinha pra quatro.
Na turma pouco dá para todos, todo mundo divide, cada um contribui, a turma se une
partilhando e repartindo.
A turma ri como só na turma se ri.
A turma julga quando erramos.
A turma castiga com silêncios e ironias.
A turma te chama, te reprime, te liberta, te revela, te rebela, te maltrata, te orgulha, te ama,
e te envolve, te afasta e te atrai, mas a turma é assim porque a turma é turma.
Até o dia em que — disse a todos os meus filhos — cansamos de ter turma e passamos a
ser gente. E todos me disseram que sou um chato, mas o primogênito hoje já concorda: o tempo
da turma passa.
Mas, aqui entre nós, como dá saudade!
Pellegrini, Domingos. Ladrão que rouba ladrão. São Paulo. Ática, 2002, p. 46, 47 e 48.

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