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Mamãe nos aproximou.

Sentou Luísa no sofá da sala, colocou-me


com cuidado em seus pequenos bracinhos. — Tenha cuidado com a sua
irmãzinha. Ela alertou. Tia Clarice registrou o momento, minha irmã
não sorriu para câmera, apesar de terem incentivado. Mamãe ficou cha-
teada, mas eu estava chorando e precisava mamar.
Luísa saiu para brincar com o outro vestido um mais desgastado
e sem graça para pedalar com os amiguinhos.
Eu cresci numa casa cheia de mulheres. Minha avó que era viúva
mudara-se para a casa de minha mãe, recém-separada com uma filha.
Meses depois mamãe soube que estava grávida, meu pai não voltou
pra casa por isso, ele estava decidido a viver com a nova esposa, numa
casa maior e melhor que a nossa, num bairro mais distante também, tia
Clarice completava o time, era a irmã mais nova e quase uma filha para
a mamãe.
Tia Clarice era a figura da família, inventava brincadeiras das
quais me lembro até hoje, como no dia que fizemos um show para os
vizinhos imitando performances de vídeo clipes da época. Titia costu-
rou sozinha um figurino pra cada uma de nós, eu escolhi ser a Angélica
e Luísa, a Xuxa, obviamente a performance da minha irmã foi bem mais
aplaudida, ela era muito boa em tudo que fazia e ela fazia várias coisas,
além de ter a sorte de parecer com a mamãe. Luísa tinha os cabelos cla-
ros e ondulados de mamãe e também herdou seus olhos azuis.
Ela fazia parte do time de vôlei da escola. Fazia natação. E ainda
tirava boas notas na escola, sempre. Ela fazia tudo parecer muito fácil,
era sempre escolhida primeiro para as brincadeiras de rua, todos que-
riam Luísa no seu time, todos a queriam por perto. Eu era apenas Eu.
Uma negação em qualquer esporte e mamãe tentou quase todos.
Inscreveu-me nas aulas de natação, mas eu não consegui acompanhar
a minha turma, tinha medo demais de água, fazia um escândalo para
entrar na piscina, foram muitas tentativas até a professora sugerir a ma-
mãe que me desse um tempo e quando eu realmente estive interessada
voltasse as aulas, coisa que nunca aconteceu.
Tentamos o vôlei já que Luísa tinha tanta habilidade, talvez eu me
saísse bem, mas por mais que tentasse, eu nunca conseguia acertar as
instruções do treinador que sugeriu outra atividade para mim, tentamos
o judô e até mesmo o futebol, mas em nada eu me saia bem.
A única coisa em que me saía bem era cantando, pelo menos era
o que titia me dizia, ela pedia para eu cantar sempre, me ensinava novas
músicas e comprava novos LP’s que ouvíamos em nossa sala nos finais
de semana.
Eu cantava para tia Clarice quando ela estava com dores de cabe-
ça, ela sentia essas dores sempre, e nesses dias a casa ficava mais silen-
ciosa e mais escura também. — Silêncio meninas, a tia de vocês está
doente, nada de risadinhas ou correria pela casa! — Mamãe ordenava,
mas titia sempre me chamava e pedia pra eu cantar baixinho. Ela dizia
que minha voz a curava mais rápido. E eu acreditava nisso.
— Isso é uma bobagem sua idiota, eu vou dizer à mamãe que
você está fazendo barulho e atrapalhando a titia! Luísa beliscava meu
braço, até eu chorar. Em silêncio.
— Você é uma idiota, chorona e fracote!
Cresci ouvindo isso, e acreditei nisso também, eu era uma idiota.
Por mais esforço que mamãe fizesse, Luísa e eu não éramos uni-
das. Mamãe nos obrigava a ficar de mãos dadas sempre que uma nova
briga iniciava.
— Abrace sua irmã! — ela dizia.
— Mas eu não quero!
— Eu estou mandando Luísa, vocês são irmãs, precisam ser mais
unidas. — Luísa obedecia, embora seu abraço fosse mais frio que uma
pedra de gelo, ela não me envolvia em seus braços, se quer me tocava.
— Eu odeio você, sua idiota! — ela cochichava pra mim.
Era assim sempre que tínhamos que ir para a escola e mamãe nos
obrigava a atravessar a rua para chegar ao ponto de ônibus de mãos
dadas, Luísa segurava a minha mão até a esquina de casa, onde os olhos
de mamãe nos alcançavam, mas ao virar a esquina, ela me soltava e eu
tinha que correr para alcançar seus passos mais ligeiros e maiores.
— Não fala comigo aqui, finge que não me conhece.
Luísa não gostava que nos falássemos na escola. Herdei de titia
as dores de cabeça, elas começaram cedo, por volta de meus dez anos
de idade.
Na minha classe havia outras crianças com irmãos mais velhos,
uma delas, a Bianca, tinha um irmão na mesma sala que Luísa. Eles iam
e voltavam pra casa juntos, todos os dias o irmão de Bianca a pegava na
porta da sala trocava um abraço forte e faziam muitas brincadeiras jun-
tos. Todos os dias. Eles se davam bem, dava para notar que se amavam.
Bianca me dizia que o irmão a ajudava nos deveres de casa e a ensinava
a andar de skate nos fins de semana. Eu não podia sequer falar com a
minha irmã na frente de estranhos ali na escola.
Me sentia enjoada e constantemente tonta, vomitava o que ingeria
no almoço no caminho para a escola quase todos os dias, não segurava
nada no estômago. Nessas horas Luísa me xingava, tinha nojo do meu
vômito e reclava sempre que eu passava mal no ônibus.
Ela não gostava de cuidar de mim. Com o tempo aprendi a me vi-
rar, andava com os analgésicos dentro da bolsa, assim que eu começava
a passar mal, tomava os remédios. Aprendi a me segurar e procurar uma
lata de lixo, uma privada ou mesmo um saquinho que também carrega-
va na bolsa para vomitar, já não precisava que ninguém corresse para
limpar a sujeira nojenta que eu fazia.
Luísa começou a namorar, era um rapaz do time de futebol da
escola. Todo o dia, antes de irmos para casa ela, encontrava com o na-
morado na praça em frente à escola e eu aproveitava para fazer o dever
de casa.
— Não conte nada a mamãe, pirralha. Se ela perguntar por que
demoramos a chegar, diga que você passou mal na hora da saída. — era
assim todos os dias, até que um dia Luísa me avisou que íamos direto
para casa. — Nada de pracinha hoje!
— Por que, o que aconteceu?
— Não é da sua conta!
Descobri na aula de educação física dois dias depois o motivo. Vi
o namorado da minha irmã beijando outra garota em frente ao vestiário
feminino. Fiquei brava com ele, criei coragem e pisei com toda a minha
força num de seus pés.
Na saída da escola, Luísa me esperava com raiva. — Nunca mais
se meta na minha vida entendeu? O que deu na sua cabeça batendo nas
pessoas desse jeito?
— Eu te defendi.
— Não! Você só faz merda, Alice. Por sua causa aquele idiota está
achando que eu me importo com ele, que estou triste por ele...
— Mas você estava triste.
— Mas ele não precisava saber, sua idiota!
Ele não precisava saber que magoou a minha irmã. Eu fiz algo
errado batendo nele, embora tivesse muita raiva dele por tê-la feito cho-
rar. — Me desculpa. — Eu pedi, mas Luísa não me desculpou e não
falou mais comigo.
Naquele ano eu fiquei em recuperação em matemática pela pri-
meira vez. A professora sugeriu a mamãe que eu tivesse algumas aulas
particulares. — Eu não tenho dinheiro pra isso Alice, eu mal consigo
pagar a mensalidade da escola. Sua irmã é boa aluna, ela vai ajudar
você.
Luísa ficou muito brava com mamãe, disse que não tinha obriga-
ção de me ajudar, mas mamãe ameaçou de não pagar a taxa do passeio
da escola de final de ano. Era algo que ela queria muito, ela falava dessa
viagem há meses, fez minha avó comprar biquínis novos para o passeio
e tudo. — Você é uma burra mesmo, vai repetir de ano!
Eu tentava compreender a dinâmica das operações de matemáti-
ca, Luísa dizia que era algo muito fácil, eu que era burra. E talvez fosse
mesmo. Meus coleguinhas respondiam os exercícios com facilidade e
rapidez, eu sequer acompanhava o raciocínio da professora no quadro.
Estudei muito, mas não consegui a nota suficiente para passar de ano.
Mamãe ficou muito decepcionada comigo. Chorou quando busca-
mos o resultado final, me senti muito triste em fazer minha mãe chorar.
Titia me abraçou quando cheguei em casa. — Isso não é vergonha pra
ninguém Alice, ano que vem você vai conseguir.
então, vivia trancada no quarto ao telefone, em conversas sem fim.
Encontrei uma mochila embaixo da cama de Luísa, cheia de rou-
pas e algumas cédulas de dinheiro. Fui pega no flagra ao mexer em suas
coisas.
— Sua pirralha intrometida, eu vou te bater!
— Me desculpe, por favor. — Luísa me segurou pelos ombros,
me sacudindo com força, até me jogar com tudo perto da cama. Cai no
chão batendo a cabeça na beirada da cama de madeira. Chorei assustada
com a violência.
Mamãe subiu as escadas para saber o motivo dos gritos, me en-
controu no chão com as mãos na cabeça, me defendendo dos chutes
com que Luísa me golpeava. Mamãe teve trabalho para fazê-la parar,
empurrou Luísa para fora do quarto. — Você ficou louca menina?
— Eu vou matar essa garota idiota. — mamãe se chocou com as
palavras de Luísa, me ergueu do chão aos pratos e me abraçou. — Eu
odeio essa garota! Odeio! — Luísa não parava de gritar.
Mamãe bateu em seu rosto com força. O choque pelo tapa, fez
Luísa parar de gritar, minha mãe nunca bateu em nenhuma de nós, ape-
nas nos ameaçava. Ela chorou e se trancou no quarto mais uma vez.
Mamãe cuidou do meu machucado calada. Pediu para eu ficar
quieta enquanto ela iria conversar com minha irmã. Obedeci e liguei a
tevê da sala para assistir a novela mexicana que gostava de acompanhar.
Vovó nunca deixava assistir na sala, mas naquele dia ela não disse nada.
Mamãe gritou várias vezes até Luísa abrir a porta. Depois de mui-
to tempo ela abriu e desceu sem falar com a mamãe que gritava atrás
dela. Ela carregava a mochila que encontrei e mais algumas sacolas
cheias. — Aonde você pensa que vai, Luísa?
— Eu tô dando o fora dessa casa.
— Sobe agora e para de bobagem menina!
— Eu vou morar com meu namorado, a família dele é rica mãe!
— Luísa cuspia as palavras com raiva para mamãe. — A casa deles é
bacana, tem piscina , não é essa merda aqui.
Mamãe ergueu o braço para bater em Luísa mais uma vez, eu cor-
ri para pedir chorando que ela não fizesse aquilo. — Bate! Anda, pode
bater! — Luísa desafiava mamãe.
Vovó começou a sentir-se mal e pediu para que todos parassem de
gritar. Titia acudiu minha avó e minha mãe ficou indecisa entre ajudar a
mãe e resolver a situação com a filha.
Luísa sorria cinicamente enquanto Mamãe resolveu que ajudaria
minha avó e foi acudi-la na cozinha. Luísa pegou as sacolas do chão e
se dirigiu a porta. Corri para alcança-la e entrei na frente da porta. —
Sai da minha frente pirralha.
— Luísa, não faz isso, não vai embora. — Ela me empurrou da
porta e colocou a mão na maçaneta pronta para partir.
— Eu te amo! — falei no último instante.
Luísa fechou a cara e saiu batendo a porta com força. O quadri-
nho que vovó colocara para enfeitar a porta balançou e caiu. Peguei-o
do chão e as palavras impressas ali, me deixaram com o coração aperta-
do “Ter um lugar pra ir é um lar. Ter alguém para amar é família, ter os
dois é uma benção”. Luísa escolhera ir, escolheu deixar a nossa família
e o seu lar.
embora as dores de cabeça sempre voltassem.
Vovó se sentiu envergonhada de não ter preparado nada para
o bebê, mas estava feliz com o bisneto. Chegamos à maternidade no
centro da cidade, papai nos ofereceu uma carona e nos conduziu até o
apartamento que Luísa estava. Chegamos bem na hora que minha irmã
dormia, então decidimos conhecer o bebê primeiro no berçário.
Meu sobrinho.
Era o bebê mais lindo daquele lugar, era gorducho e loirinho
como Luísa e mamãe. A família do pai do bebê estava lá e nos tratou
muito bem, foram simpáticos conosco, tiramos fotografias e mamãe se-
gurou o bebê no colo, toda derretida. — Somos avós agora, Clara. Meu
pai disse o óbvio.
— Sim, somos. Ele é perfeito! — mamãe estava emocionada —
Minha filha tão jovem, já é mãe.
— Não se preocupe com isso, ela está sendo bem assistida. Eu
ouvi dizer que eles contrataram até uma enfermeira para ajudar e ela
não é tão mais velha do que você era quando nos casamos.
— Isso é verdade. — Mamãe concordou. Era a primeira vez que
via meus pais conversando com tanta tranquilidade e intimidade. Fo-
mos avisados que Luísa acordara e fomos para o quarto visitá-la.
Luísa nos recebeu sorrindo.
Vovó disse que ela tinha mudado e parecia uma mãe de verdade.
— Eu sou uma mãe de verdade, vovó.
— Para mim, ainda é uma criança. — Vovó sorriu cobrindo o
rosto e todos no quarto riram juntos.
Mamãe e Luísa se abraçaram e eu entreguei os presentes. Luísa
gostou especialmente da caixinha com as roupinhas de seu enxoval. —
Obrigada mamãe, obrigada por lembrar-se disso. E você pirralha, já
conheceu o seu sobrinho?
— Sim, ele parece um anjinho.
— Parece mesmo, ele nem chora muito sabia?
— E você sentiu muita dor?
— Sim, mas eu sou forte. — ela me disse piscando. A sogra de
Luísa, como ela se apresentou, sugeriu que a deixássemos descansar
mais um pouquinho. — Eu acredito que seja melhor para todos que
Luísa e o bebê se mudem para a nossa casa.
— Eu acho que não tem problema. — Concordou papai.
— Acho que Luísa deve escolher pra onde ir. — Disse mamãe,
mas Luísa optou mesmo que iria para a casa do namorado. Vovó ficou
visivelmente triste em não poder curtir muito o bisnetinho, mas todos
respeitaram a vontade de Luísa.
— Agora você já é uma mocinha, já é uma tia, assim como eu. —
Brincou tia Clarice na volta pra casa. Eu estava muito orgulhosa mesmo
de ser tia e feliz por Luísa.
— Pare de me corrigir o tempo toda, isso muito chato, Alice.
— Tudo bem, me desculpe.
Não demorou para que Valentina chamasse atenção dos garotos
mais velhos também, um deles, Gabriel, era da oitava série. Esse cha-
mou a atenção da minha amiga, embora ela sempre negasse. Mas ela
passou a querer caminhar sempre no corredor da sala de Gabriel e até
conversava com ele na hora saída algumas vezes.
Valentina era mais baixinha que eu, mas já tinha o corpo mais
desenvolvido, seus seios eram grandes e ela tinha curvas. Já tinha “fi-
cado mocinha” como mamãe dizia assim como outras tantas colegas de
sala. Eu escutava falar de menstruação, cólicas e absorventes sempre, e
minha vez nunca chegava.
— Vê se marca na roupa? — Valentina andava devagar poucos
passos a minha frente.
— Não da para perceber. — Eu mal podia esperar para chegar a
minha vez, fiz a minha tia comprar um pacote de absorvente para mim,
que carregava para cima e para baixo, conferia todas as manhãs, mas
nada acontecia.
— Por que você está com pressa, Alice? É tão bom ser criança.
— Mamãe perguntava quando eu fazia perguntas sobre o assunto.
— Mas eu não quero ser criança, mamãe.
— Vai demorar, se você puxar a nossa família, ainda vai esperar
mais um tempo. A de Luísa mesmo só desceu com treze aninhos.
— Que droga!
— Pare de bobagem e esqueça esse assunto, tudo tem a sua hora.
— Essa era a resposta padrão da minha mãe pra quase tudo.
Como explicar que todas as minhas colegas já tinham menstru-
ado, menos eu. Todas compravam sutiãs, usavam calcinhas de adulto,
menos eu. Todas já tinham beijado um garoto, menos eu. Quer dizer,
menos eu e Valentina.
Valentina jurava que era BV, ou boca virgem também, que nunca
tinha beijado um garoto antes, mas eu não entendia porque já que tantos
garotos gostavam dela. Queriam ficar com ela.
— Tem que ser alguém especial, não ter pressa. — Valentina se
defendia. Já eu mal podia esperar que um garoto me desse uma chance.
Um garoto em especial, Frederico. Fred.
— O que houve?
— Minha mãe veio comigo. Eu não saber o que fazer agora pra
encontrar Gabriel. — Pensei um pouco e decidi que a melhor opção era
fingir que iríamos a praça de alimentação do clube onde a festa estava
sendo realizada enquanto ela e Gabriel se escondiam para namorar.
— Você ser meu anjo!
Fred demorou um pouco a chegar, tirei varias fotografias com Va-
lentina, sua mãe tinha vindo equipada com duas câmeras. A quadrilha
foi anunciada. Gabriel se aproximou para levar Valentina para dançar,
eu já tinha perdido as esperanças do meu par aparecer, mas Fred chegou
encima da hora. Corremos para nos posicionar no local correto como
nos ensaios e nos apresentamos.
Eu estava encantada com o visual de Fred. Ele estava uma graci-
nha com as roupas típicas, um caipira, lindo. Tiramos mais fotografias
dessa vez para o álbum de Fred. Minha mãe não pôde comparecer, esta-
va se recuperando de um procedimento nos dentes. Valentina cochichou
anunciando que estava na hora de colocar nosso “plano” em prática.
Anunciamos que íamos até a praça de alimentação, fazer um lan-
che. Fred se ofereceu para ir junto. Eu não esperava por isso. Se estives-
se certa sobre os sentimentos dele por Valentina, ele ficaria muito triste
com o que estava prestes a acontecer.
Valentina quase entra em desespero, e sem jeito concordei que
Fred nos acompanhasse. Perto da fila do cachorro quente, Gabriel se
aproximou de nós, Valentina se despediu e os dois saíram de mãos da-
das, pareciam namorados.
— Eles estão na... namorando? — Perguntou Fred acompanhan-
do o casal com o olhar entristecido. Meu coração disparou, naquele
momento eu confirmava as minhas suspeitas, Fred estava gostando de
Valentina.
— Acho que não. — Respondi. Compramos um cachorro quente
para cada um e procuramos uma mesinha para comer. As mesas próxi-
mas estavam todas ocupadas, fomos obrigados a nos afastar um pouco
mais. De onde estávamos, porém, conseguíamos ver Valentina e Ga-
briel conversando.
Fred não conseguiu tirar os olhos do casal, não falou uma palavra
e nem tocou no sanduiche em suas mãos. Valentina encostou-se numa
mureta enquanto Gabriel cochichava em seu ouvido algo que parecia
interessante, pois ela sorria, desviei o olhar para observar Fred, ele pa-
recia cada vez mais triste, sem pensar segurei sua mão, ele me deu um
sorriso amarelo em resposta.
Quando levantei os olhos, Gabriel e Valentina se beijavam, pri-
meiro desajeitados, depois mais entregues e apaixonados. Fred também
reparou e se despediu de mim, vi-o se afastado ferido, sem dizer nada.
garantiu o apoio financeiro da mãe para a decoração e outros itens, ela
queria que a festa fosse perfeita. E foi.
Tudo estava lindo, meu vestido tinha sido presente de tia Clarice,
um longo que ficou muito bem. Luísa passou em casa para fazer meu
cabelo e maquiagem, me emprestou um de seus muitos pares de sapato.
Ela agora nos visitava com mais frequência, trazia meu sobrinho para
ficar com a minha mãe, que se transformava quando estava perto do
neto, virava uma criança gigante, correndo pela casa e até rolando no
chão para alegrar o menino.
Nós duas não éramos exatamente amigas, mas nos dávamos bem.
Luísa fez questão de me deixar de carro em frente ao clube onde acon-
teceria a festa, o mesmo que fui anos atrás para a festa junina, sorri com
a lembrança. Despedi-me da minha irmã e entrei na festa.
Como sempre, Fred chegara atrasado. Eu me divertia com Valen-
tina e Gisele na pista de dança, fazendo a coreografia de uma música
chiclete que tocara inúmeras vezes naquele ano. Dançamos muitas mú-
sicas até que me senti cansada e suada.
Fiz uma pausa para recuperar meu fôlego e curtir um pouco com
Fred. Ele estava lindo com terno e gravata borboleta. Valentina nos ar-
rastou para perto da turma, queria que saíssemos na fotografia oficial
para a escola.
Várias fotos depois, minhas bochechas doíam de tanto sorrir.
Sentei para comer alguma coisa que estava sendo servida no buffet. A
variedade era imensa e enquanto fazia meu prato, procurava por Fred,
não o achei em nenhum lugar, então voltei a nossa mesa e comi sozinha.
A festa estava animada, mas a ausência de Fred começou a me
incomodar. Tentei perguntar a alguns colegas, mas o volume da música
não permitia que entendessem uma palavra que eu dizia.
Sai da festa e andei um pouco no gramado, vários casais tiveram a
mesma ideia, o local virou uma espécie de “beijodromo”, só não podia
imaginar que um dos casais se beijando ali, seriam Valentina e Fred.
O choque da cena foi tão grande que talvez tenha perdido os sen-
tidos, só me lembro de estar cercada por alguns colegas que aguarda-
vam alguma cena patética como uma briga ou uma discussão. Uma
plateia para um show de horrores.
Fred se afastou em silêncio, sem nem tentar se explicar.
Não vi Valentina.
Sai do local da festa e andei por alguns quarteirões em estado
de choque. A carona para casa que a família de Fred me ofereceu, não
aconteceria mais. Eu não conseguia respirar direito, mas não consegui
chorar. Minha cabeça latejava com força, eu não conseguia enxergar
com nitidez.
Fui recebida em casa por mamãe e titia preocupadas, pra comple-
tar a minha tragédia entrei num ônibus sem nenhuma grana. Graças a
uma passageira consegui dinheiro para voltar pra casa. Tive medo e me
senti humilhada.
Dentro do quarto, pela primeira vez, chorei naquela noite.
A dor de cabeça aumentara substancialmente, vomitei no chão
do quarto, causando uma onda de repugnância por mim mesma. Eu era
uma idiota, as palavras que a minha irmã repetia, me voltaram à mente.
dia dos pais e assistíamos a um programa na tevê no domingo a tarde.
Algumas crianças faziam uma homenagem aos pais famosos. Senti um
aperto no peito que não conseguia explicar. Foi a primeira vez que senti
falta de uma relação com um pai.
Pai.
Como seria ter um pai?
Eu nunca iria saber. Dia dos pais passou a ser um dia horrível. Na
escola era um verdadeiro inferno, os preparativos para a festinha dos
pais era uma verdadeira tortura. Mamãe sempre insistiu que eu parti-
cipasse, ensaiasse as músicas melosas e até pagava a taxa extra para
a participação na festa e no presentinho dos pais, além de me forçar a
entregar o convite da escola, mas papai nunca foi.
Era absolutamente constrangedor e doloroso me apresentar para
ninguém na plateia. Foi quando comecei a imaginar um pai. Eu cantava
e sorria para meu pai imaginário.
Esse pai estava sempre ao meu lado. Ajudava com os deveres de
casa e até lia pra mim antes de dormir. Abraçava-me e me dava um beijo
carinhoso de “boa noite” antes de eu pegar no sono. Sentia-me amada
e protegida.
Com o tempo esse pai foi sumindo. Eu fui crescendo e deixando
de acreditar na sua existência, tomando cada vez mais consciência da
ausência do meu pai de verdade.
Luísa dizia que eu era uma chorona. — O papai só paga nossa
pensão, mas ele anda ganhando um dinheirão. Você tem que ver a casa
nova dele, dá de mil a zero na nossa.
— Eu gosto da nossa casa.
— Gosta porque é idiota. Aqui é uma bosta, longe de tudo, um
calor horroroso e esse bando de gente chata por perto. — Luísa fazia
uma careta olhando para nossas paredes com desprezo. — Na casa do
papai tem até suíte com banheira e tudo, ninguém precisa ficar brigando
pra entrar no banheiro, cada um tem o seu.
Luísa ia sempre à casa de Papai, eu sempre inventava uma des-
culpa ou simplesmente caia no berreiro. Ele não se importava e mamãe
com o tempo parou de insistir.
— Você sabia que a Marisa tem até closet?
— Closet? O que é isso?
— Você é uma burra mesmo, Alice. Você tinha que ver o quarto
da Letícia, você ia pirar com os brinquedos dela, sua bicicleta é nova
em folha e não essa porcaria enferrujada que você anda.
Letícia. Marisa. Papai.
Para mim eram como personagens, criaturas distantes e fictícias
das quais eu só ouvia falar.
gum dinheiro e alguns presentes de lá. — Você é muito boba Alice,
tinha que ir comigo arrancar dinheiro do papai. Ele sempre dá, se sente
culpado.
Nunca fui.
Quando Luísa saiu de casa, mudou-se para a casa de papai para a
tristeza de nossa mãe.
Passamos a nos encontrar mais vezes depois que o bebê de Luísa
nasceu, algumas vezes papai puxava assunto comigo, mas logo a con-
versa acabava.
Não tínhamos nada em comum.
Apesar de ser, claramente pai e filha com a semelhança física tra-
zida pelos genes, eu não reconhecia aquele homem como meu pai. Meu
pai era um estranho pra mim.
Com o passar do tempo essa distância só aumentou se transfor-
mando num abismo. Eu já não sentia desejo de ter um pai como na
infância.
Luísa continuou insistindo que eu deveria me aproximar de Papai
para tirar algum tipo de vantagem, um dinheiro a mais ou um presente
caro não iriam substituir o que eu já havia perdido.
No último ano da escola, foi o que mais me dediquei aos estudos.
Além da carga horária normal, havia as aulas extras no contraturno para
nos preparar para as provas e o temido vestibular.
Eu não fazia ideia de qual curso escolheria, mas a faculdade te-
ria que ser pública, estava fora de cogitação minha mãe arcar sozinha
com a mensalidade de uma faculdade, a pensão que meu pai pagava e
ajudava com as despesas era parte do passado. Ele já não era obrigado
a pagá-la por lei.
Uma vaga na faculdade pública e um emprego eram minhas me-
tas para o ano seguinte. A professora Celina, embora não fosse minha
professora de história naquele ano, me ajudou dando dicas sobre leitu-
ras interessantes e filmes que me ajudaram na minha preparação.
Eu sentiria saudade de nossas conversas e da amizade que cons-
truímos ao longo dos anos. A escola ofereceu uma feira vocacional
apresentando uma grande variedade de cursos e profissões. Acabei me
interessando muito pela publicidade, titia dizia que meus olhos brilha-
vam quando falava do curso.
Decidi não participar do baile de formatura da escola. Não tinha
feito amigos no ensino médio e não sentiria falta de ninguém ali, com
exceção da minha professora querida. Escrevi uma carta que entreguei
na última semana de aula, agradecendo a Celina por todos os livros,
conversas e principalmente por ter trazido a música para a minha vida.
— Seja muito feliz Alice, eu torço muito por você. — Celina pa-
recia emocionada quando me abraçou na entrada da porta dos profes-
sores. — Sejam quais forem suas escolhas, brilhe. Você é iluminada,
menina!
Iluminada.
Nunca tinha ouvido algo assim. Guardei as palavras da professora
na mente e no coração. No corredor os colegas se abraçaram muitos
emocionados e alguns aliviados com o final das aulas. Eu fazia parte do
segundo time.
Algumas pessoas pediram para que eu assinasse em seus unifor-
mes, uma delas foi Valentina. Quase não encontrei espaço para assinar,
pois ela já tinha reunido muitas assinaturas. Mas escolhi uma das man-
gas da camisa para deixar meu registro.
Usando a canetinha de tinta permanente que carregava na mochi-
la, escrevi a palavra “VACA”. Entreguei a Valentina que arregalou os
olhos ao ler minha “assinatura”, mostrei o dedo do meio e sai da escola.
Estava livre!
No lugar do baile de formatura, escolhi um jantar em casa. Ma-
mãe ficou um pouco decepcionada com minha negativa em participar
do baile, mas concordou com o jantar.
Vovó preparou um arroz de forno com frango e queijo que eu ado-
rava. Luísa trouxe meu sobrinho João e meu cunhado que não parava
de reclamar do calor em nossa casa. Papai apareceu acompanhado de
Letícia.
A garota parecia um graveto de tão magra.
aconteciam oficinas e mini cursos interessantes. Eu gostava de partici-
par desses eventos, além de contar como atividade extracurricular, que
era exigência do curso, era uma oportunidade de conhecer mais sobre
assuntos diversos.
Fiz uma inscrição em um mini curso de história da arte, esperava
encontrar o auditório vazio como sempre, mas estava lotado dessa vez.
Sentei na fileira do meio, próximo de um grupo que conversava anima-
damente, tão animados que não deixaram me concentrar. Resolvi trocar
de lugar e escolhi a última fileira. Bem mais silenciosa e vazia.
A palestra já havia começado quando o lugar a meu lado foi ocu-
pado. O rapaz atrasado e atrapalhado esbarrou em mim diversas vezes
até se acomodar na poltrona. — Foi mal, te machuquei?
— Shiu! — Odiava quando atrapalhavam o meu raciocínio, eu
tinha dificuldade de me concentrar e sabia que aquela intromissão ia me
custar caro. Concentração já era.
Minha atenção se voltou para a criatura ao meu lado, que não
parava de se mexer, derrubando e catando coisas pelo chão, revirei os
olhos. Aquela era a personificação do desastre.
Voltei a me concentrar com esforço. O palestrante falava dos
principais artistas da art pop, ilustrando com imagens a sua fala, adorei
o assunto e fiz uma nota mental de procurar mais sobre o assunto que
tudo tinha haver com a minha área.
Mas a criatura resolveu abrir um pacote de salgadinhos sem ne-
nhuma delicadeza e mastigar aquelas coisas nojentas com cheiro de vô-
mito. Me irritei de verdade, aquele tipo de comida fazia meu estômago
revirar, já podia sentir os efeitos daquele veneno.
— Da pra parar de comer essa porcaria? — Sussurrei.
— Mas eu estou com fome!
— Então faz silêncio!
Reparei melhor na criatura atrapalhada. Apesar das roupas largas,
de gosto um tanto duvidoso, ele era até bonitinho. Dizer que o cara era
bonitinho seria um pouco de despeito, ele era lindo de verdade e esse
atrapalho todo até era um pouco charmoso.
Mas o que estava dando em mim? Repreendi-me e voltei minha
atenção à palestra. No final enquanto guardava meu material o ser atra-
palhado sorriu para mim. Fechei a cara, o que só serviu para ele rir mais
abertamente. Odeio gente feliz!
— Você sabe onde tem uma coisa pra comer, uma coisa gostosa,
mas não muito cara...
— Tem um monte de lanchonetes no bloco aqui na frente.
— Você poderia vir comigo, é que eu não estudo aqui, só vim pela
palestra...
— Não, obrigada!
— Garanto que você está com fome, aceita vai?
Eu estava faminta. Meu estômago roncou para confirmar o meu
estado e me matar de vergonha. Dei de ombros. — Tudo bem!
O rapaz me acompanhou com a mochila pendurada num dos om-
bros e falando sem parar, já estava me arrependendo de aceitar o convite
quando chegamos a uma lanchonete. O movimento era grande naquele
horário. Tivemos dificuldade de encontrar uma mesa vaga.
O atrapalhado largou a mochila na mesa e saiu para comprar os
lanches. Só quando ele se afastou foi que lembrei que não disse o que
queria comer. Na verdade com a fome que estava comeria até pedra
temperada.
Ele voltou logo depois com duas latinhas refrigerantes e fatias de
pizza.
— Espero que você goste.
— Quem não gosta de pizza? — Falei mordendo um pedaço da
minha fatia. O molho suculento escorreu pelo meu rosto, o atrapalhado
me ofereceu um guardanapo de papel.
Conversamos sobre a palestra. Descobri que ele estudava Design
Gráfico. Comi a minha fatia de pizza depressa demais. — Você ainda tá
com fome, eu topo outra fatia e você?
E se nega uma fatia de pizza?
cardigã para o caso de esfriar. — Quem é o sortudo? Me conta tudo!
— É um cara que conheci na faculdade, nem uma palavra sobre
isso com a mamãe! — Titia cruzou os dedos beijando-os em sinal de
promessa.
— Quando chegar me acorda pra contar tudo.
Prometi que sim.
Terminei minha maquiagem no ônibus, se minha mãe estava sur-
tando por ter saído de casa sábado à noite, imagina se me visse maquia-
da?
Enviei uma mensagem de texto confirmando minha chegada. Em
pouco tempo Rafael apareceu para me resgatar na entrada.
— Você está tentando me seduzir, enfezadinha?
— Não mesmo!
— Que bom porque sou um cara difícil, vou logo avisando.
Sorri e segurei a mão que ele estendia. O lugar estava lotado,
tivemos dificuldade de entrar. Rafael me conduziu até uma mesa bem
localizada de frente a um palco. — Quer beber alguma coisa?
— Água!
— Estupidamente gelada?
— Por favor.
O local era cheio, mas agradável, muita gente interessante e con-
versa legal. Fiquei impressionada com a quantidade de amigos que Ra-
fael tinha, ele fez questão de me apresentar a todos. Na quinta pessoa
desisti de tentar decorar os nomes, apenas sorria e repetia meu nome.
No palco havia um rodízio de pessoas e bandas se apresentando,
alguns faziam covers de artistas e bandas famosas e outros ousavam
fazer um som mais autoral.
Rafael se afastou e surgiu em cima do palco para minha total sur-
presa. Ele tinha uma banda, uma banda de verdade!
— Boa noite pessoal. — Ele falou tentando aprumar a altura do
microfone no pedestal. Um grupo de garotas correram para perto do
palco gritando.
— Ele é tipo famoso ou algo assim? — Perguntei a um dos mui-
tos amigos que me foram apresentados e ainda sentava a meu lado.
— Não são famosos, mas podem ser porque eles são bons.
O som de microfonia impediu que a conversa prosseguisse, eu
tinha algumas perguntas a fazer, mas fui obrigada a parar a conversa e
tapar os ouvidos.
— Foi mal gente. — Rafael se desculpou. — Eu gostaria de de-
dicar essa música a uma garota especial que está aqui hoje. — Queria
me esconder embaixo da mesa ou atrás de alguém, mas não tive opção,
então sorri e bati palmas quando Rafael apontou para mim, chamando a
atenção de todos. — Essa é pra você, Enfezadinha.
A banda não era nem um pouco ruim, Rafael era afinado e tinha
carisma. A música falava sobre um rapaz encantado por um sorriso, que
só queria uma chance da pessoa amada. No final da música eu já tinha
uma certeza, estava me apaixonando.
A apresentadora da atração tentava descontrair fazendo perguntas
sobre a banda e cada integrante.
Notei que os meninos vestiam roupas mais descoladas e sorriam
para as câmeras. — Quem diria que esse rapaz ia ficar famoso? — Vovó
comentou apontando pra tevê, pedi pra ela fazer silêncio e aumentei o
volume do aparelho, vovó reclamou e voltou a atenção para as palavras
cruzadas que se tornaram seu mais novo hábito.
No final da música, a apresentadora iniciou uma entrevista com
Rafael, chamando-o de líder da banda do momento, sorri com aquela
definição. As perguntas de praxe, mas uma vez fez meu coração dispa-
rar, Rafael sorriu sem jeito do outro lado da tela, um close no rosto, eu
mal consegui ouvir a resposta de tanto nervosismo, foi a reação de vovó
que me fez acordar do transe.
— Ela é um pessoa incrível, que me fez amadurecer muito, com
certeza eu diria que é a mulher da minha vida! — Afirmava Rafael.
— Ele está falando de você filha! Falou da namorada! — Mamãe
sorriu empolgada. Mas algo estava errado, como ele poderia se declarar
dessa forma se nem minhas ligações atendia?
— Quem é essa sortuda? — A apresentadora provocou. Sem mui-
ta cerimônia, Rafael apontou para a plateia, as câmeras ficaram confu-
sas por um momento, meu coração se contraiu aquilo não podia ser real.
— Vem aqui querida! Vem aqui no palco!
Uma mulher se aproximou de Rafael e o beijou nos lábios, ele
parecia explodir de felicidade, eu não conseguia acreditar no que via.
— Ela é a mulher da minha vida. — ele continuava a falar abraça-
do a mulher que mais parecia uma estrela de cinema. — Ela me inspirou
para essa música tão especial e eu só tenho a agradecer, afinal minha
vida... nossas vidas mudaram, obrigada meu amor!
Como assim?
A inspiração da música?
Aquela mulher?
Ele não poderia estar fazendo isso comigo. Lágrimas pesadas co-
meçaram a embaçar a minha vista, a dor da decepção. A música que
havíamos feito juntos, uma lembrança feliz, ele havia estragado tudo.
Ele sequer citou meu nome.
Incentivado pelo apresentador, a banda cantou a música mais uma
vez, notei o que não havia visto da primeira vez, a autoria da música.
Rafael havia me descartado dessa parte também.
Um tremendo filho da puta, não me controlei e empurrei a tevê.
na universidade, em breve eu me veria livre daquele ambiente e minha
vida começaria de vez. Pelo menos era o que eu imaginava.
As festas de final de ano se aproximaram e passei a fazer horas
extras na loja, a D. Olga ficou contente com o meu esforço e disse que
eu tinha “jeito pra coisa”. Aceitei o elogio, mas esperava que ela esti-
vesse errada, aquele era um trabalho temporário para mim, enquanto
algo melhor não aparecia.
Em casa os mesmos preparativos, as mesmas discussões de sem-
pre. Luísa não queria passar a noite de natal conosco, preferia ir para
casa dos sogros, mamãe fingiu compreender, mas sentia-se magoada,
queria a filha e o neto com ela na noite de natal, cheguei a pegá-la en-
xugando algumas lágrimas. Fomos convidadas a passar o natal na casa
da família de meu cunhado.
Vovó ficou irredutível e não aceitou o convite, eu fiquei do seu
lado, nunca havia passado o natal longe de casa, eu gostava da nossa
casa, do nosso pinheiro com enfeites de 1,99, das luzes de led roxas que
titia havia trazido, do papai Noel de porcelana que vovó colocava aos
pés da pequena árvore. Mamãe, porém, estava triste e por ela acabamos
cedendo.
— Se é pra ir com essa cara, é melhor ficar Alice! — Luísa fora a
nossa casa com sacolas de roupas e sapatos novos. Queria garantir que
não a faríamos “passar vergonha”, aquilo me irritara, mas não estava
disposta a perder energia com as babaquices da minha irmã. Cedi mais
uma vez aos olhares de súplica da minha mãe e provei o vestido que ela
trouxera. Entrei no joguinho.
— Jura? É a única que tenho.
— Você entendeu o que eu falei. — Falou apontando as unhas
enormes para mim.
— Posso tirar essa coisa? Estou cansada, passei o dia inteiro em
pé no trabalho.
— Coitadinha de você! Que sacrifício! Ela está cansada, está de
coração partido... Estou morrendo de pena. — Luísa provocava.
— Sua dondoca idiota! Eu estou cagando pra sua festa metida a
besta e essas roupas.
— Se você estragar o meu natal, eu mato você Alice!
Mamãe entrou no quarto e pediu mais uma vez que nós parásse-
mos aquilo era importante para Luísa e nos éramos uma família e blá
blá blá. Eu estava cansada demais para continuar discutindo. Aceitei o
vestido e me tranquei no quarto. Ele não parecia nada comigo. Era jus-
to demais, decotado demais, parecia que tinha sido embalada a vácuo,
além de não conseguir me sentar sem revelar partes do corpo.
O que esperar de alguém que não te conhece e resolve comprar
uma roupa pra você? Um desastre!
No andar de baixo podia ouvir mais uma discussão iniciando,
dessa vez fora titia que não aprovara o modelo. — Você vai precisar de
um número maior, amanhã eu troco o vestido.
— De jeito nenhum! Eu sempre usei 36!
— Mas agora precisa de um 38 ou 40, não está fechando.
— Está me chamando de gorda?
— Eu sempre digo a vocês que parem de comer tanta besteira,
refrigerante, pão, biscoito... Daqui a pouco vocês estão rolando por essa
casa. — Revirei os olhos, uma dor começava a fazer minhas têmporas
latejarem, tranquei a porta. Até o natal, Luísa iria enlouquecer a família.
— Muito obrigada, D. Olga! Eu não sei o que dizer! — Falei
emocionada e a abracei. As outras funcionárias da loja não pareciam en-
ciumadas, me cumprimentaram e disseram que eu ficaria deslumbrante,
pediram para que eu tirasse muitas fotos para mostrar depois.
Agradeci a todas pelo carinho.
D. Olga me acompanhou até a saída da loja, como fazia com as
clientes mais especiais, me entregando a sacola na saída. — Você é uma
menina linda Alice, lembre-se que precisa se amar mais e o mundo será
seu. — Piscou os olhos para mim. Abracei-a mais uma vez e saí.
Nem podia me aguentar de tanta felicidade. Em casa vovó estava
as voltas com os preparativos para o almoço do dia de natal, a noite
passaríamos na casa dos sogros de Luísa, mas ela fazia questão de que
o almoço no dia de natal fosse na nossa casa, do nosso jeito.
Titia havia marcado cabeleireiro e manicure para ela e mamãe
e eu resolvi dormir, afinal, o sono é o melhor tratamento de beleza do
mundo. Acordei à tarde e faminta. Improvisei um lanche e voltei mi-
nhas atenções para minhas unhas, eu mesma, dei um jeito nelas e domei
meus cabelos.
Logo escureceu e minha casa virou uma loucura. Luísa ligava de
cinco em cinco minutos para nos apressar. Titia corria de um lado para
o outro. Concentrei-me nos meus cabelos, resolvi apelar para um tuto-
rial básico na internet e fiz o passo a passo de um coque frouxo natural.
Achei que o resultado ficou bastante satisfatório. Caprichei na maquia-
gem e pra finalizar o vestido, meu presente de natal.
Olhei-me no espelho e gostei do resultado, faltava apenas o brin-
co que pegaria emprestado de mamãe para finalizar o visual. Abri a
porta do quarto e titia já gritava por mim no andar de baixo. — Alice,
você tem que se apressar sua irmã disse que viriam nos buscar as sete
em ponto!
Mais um exagero de Luísa, pedir a um motorista que nos buscas-
se, poderíamos muito bem conseguir um táxi, ou não. Conseguir um
táxi na noite de natal não deveria ser uma tarefa fácil.
Coloquei os brincos e desci.
Titia, Mamãe e Vovó, discutiam alguma coisa e pararam para me
observar. Vovó parecia confusa, mas logo abriu um sorriso. Foi titia
quem quebrou o silêncio. — Meu Deus, Alice você está uma princesa!
— Minha filha que vestido é esse? Parece coisa de cinema! —
Mamãe completou.
— Eu ganhei de presente da dona da loja, dá pra acreditar? Eu
fiquei sem palavras, mas ela fez questão de me presentear.
— Esse vestido é incrível, você ficou deslumbrante nele! — Titia
me abraçou.
Mamãe ficou emocionada, disse que faria uns biscoitos como for-
ma de agradecimento a D. Olga. Titia olhava pra o relógio e parecia
ansiosa, decidi que seria uma boa hora para entregar os presentes, en-
quanto o tal o motorista não chegava.
Vovó recebeu seu presente e ficou comovida, me agradeceu mui-
to. Titia adorou a bolsa e meu deu um abraço apertado, mamãe como
previ, achou a blusa muito bonita e ficou muito feliz. Quarenta minutos
depois do horário combinado o motorista estacionou em frente de nossa
casa. Fui na parte da frente para não amarrotar o vestido. O motorista
explicou que o trânsito estava uma loucura e por isso se atrasou.
Luísa estava literalmente berrando ao telefone, quando decidi que
o colocaria no silencioso, a raiva dela não nos faria chegar mais cedo,
a final de contas.
Chegamos relativamente rápido ao destino. Tinha ido poucas ve-
zes aquela casa que era enorme, parecia que umas vinte pessoas mo-
ravam no seu interior, mas pelo que sabia apenas o casal, os sogros de
Luísa moravam lá desde que ela, o marido e meu sobrinho se mudaram
para um apartamento.
A casa estava iluminada, barulhenta, havia muitas pessoas ali, a
maioria nunca tinha visto na vida, começava a acreditar que a noite
seria chata, muito chata.
Luísa não estava em parte alguma da casa, atravessei a sala e en-
contrei meu sobrinho, estava lindo e muito elegante. Abraçamos-nos e
ele me empurrou para o andar de cima, queria exibir mais um dos seus
milhares de brinquedos. Eu o acompanhei.
Sentamos no chão enquanto ele me mostrava um carrinho de con-
trole remoto, parecia fascinado com o brinquedo, mas ainda não sabia
como controlá-lo. Tentei ajudá-lo e em pouco tempo conseguimos pe-
gar o jeito da coisa.
As crianças atualmente já nascem dominando controles, botões
e celulares. Fiquei lá dentro um bom tempo, me divertindo, até que
o menino decidiu mostrar as pessoas lá embaixo seu brinquedo novo.
Tentei acompanhá-lo, mas o vestido e os saltos não ajudaram. No andar
de baixo, a quantidade de pessoa tinha aumentado consideravelmente.
Demorei a encontrar minha família. Aceitei uma taça de champa-
nhe e fui para a piscina saborear o conteúdo da taça. Achei que encon-
traria muita gente, mas a noite estava fria e possivelmente afastou as
pessoas dali. Gostei da calma e do silêncio. Decidi ficar ali um pouco
mais. Sentei num sofá longo e elegante a beira da piscina, gente rica
sabe aproveitar a vida. Imaginei como seria ter uma piscina em casa nos
dias de calor, sem dúvidas seria maravilhoso.
— Não está com frio? — Me assustei com a voz e com a pergun-
ta, quase engasguei com o líquido que bebia. — Desculpe, não queria
assustar.
— Mas assustou, quem tá ai? — A voz vinha da parte oposta
da piscina, estava escuro não consegui enxergar o rosto, apenas uma
silhueta. O cara sorriu e contornou a piscina, se aproximando. Na me-
dida em que ele se aproximava a claridade revelava mais detalhes para
mim, ele era alto, na verdade parecia uma muralha. Alto e forte. O tipo
de cara que você para e olha. Para, olha e suspira até que tenha que se
lembrar como é respirar, pra ser mais exata.
— Desculpe. Eu estava sozinho aqui e vi você chegar, fiquei ob-
servando. — Falou e sorriu. Meu Deus do céu que sorriso! Não respon-
di nada, ele encarou como um incentivo e sentou-se ao meu lado, senti
o perfume e fiquei levemente tonta, tive que me controlar e levar ar aos
pulmões ou cairia dura em poucos segundos. — Tudo bem?
Ele notou?
Notou que estava perturbada? Que vergonha, como eu faria pra
desaparecer naquele momento? — Você está legal?
— Sim. — Disse finalmente. Ele sorriu e olhou para minhas mãos,
encostou de leve sua taça na minha, não havia reparado que carregava
uma, brindou.
— Feliz natal!
— Feliz natal. — repeti.
triões, brindando e se abraçando, tentei encontrar a minha família, mas
foi impossível. — Vamos nos servir?
— Mas já? Antes de todo mundo?
— E por que esperar? Eu estou com fome agora e você? —Sorri
e o acompanhei na pequena subversão. As opções eram muitas e meu
estômago roncava para todas elas.
Aquele era o maior peru que já vi numa mesa, mas além dele
havia pernil, carneiro, tender e uma infinidade de acompanhamentos
todos aparentemente deliciosos, enchi o prato não me importando em
ser elegante como dizia Luísa “Não encha o prato parece que você é
faminta” e estava mesmo.
Enzo me acompanhava e me indicou as poltronas embaixo da
enorme escada para comer. — Esse é meu lugar favorito, aqui ninguém
me perturba, no próximo ano, você já sabe nada de discursos, tem que
ir logo para o que interessa!
Sorri e me fartei. Não só parecia como tudo estava delicioso, a
carne do cordeiro desmanchava na boca e aquela salada de ingredientes
que desconhecia, era divina. Na certa vovó também adoraria.
— Castanhas! — Enzo olhou para meu prato e fez uma careta
engraada. — Como uma moça tão bonita pode gostar de algo tão horrí-
vel? — Ele tinha dito que eu era bonita? Sim. Ele havia dito e eu corei
envergonhada.
— Está uma delícia, você deveria dar uma chance às castanhas.
— Não sei... Ninguém nunca me convenceu a realizar essa faça-
nha.
— Abre a boca e fecha os olhos. — Falei séria. Enzo me encarou
por um momento tentando descobrir se a proposta era ou não pra valer.
— Isso é sério? — confirmei com a cabeça. — Tudo bem, o que
a gente não faz pra agradar uma mulher bonita. — Disse fechando os
olhos e abrindo a boca como pedi. Era a segunda vez que ele me elogia-
va naquela noite e ainda bem que estava com os olhos fechados, porque
eu corei violentamente com o segundo elogio. Sorri e peguei uma boa
porção da salada com castanhas portuguesas e servi na sua boca.
Enzo mastigou fazendo careta e engoliu, qual era a daquele cara?
A salada estava muito boa, sim! Ele abriu os olhos e fiquei na expecta-
tiva.
— E aí? Gostou?
— Surpreendentemente, sim. — Eu sorri vitoriosa! Na sala todos
se cumprimentavam desejando Feliz Natal, e brindando. Era meia noite
afinal.
— Feliz natal, Alice.
— Feliz natal! — Respondi.
— Agora é sua vez, fecha os olhos e abre a boca!
— Como assim? — Sorri e entrei na brincadeira, fechei os olhos,
abri a boca desconfiada. Esperei uma porção de algo amargo ou api-
mentado. Desejando que não fosse nada com pimenta. Enzo puxou meu
rosto e me beijou nos lábios, antes mesmo que eu entendesse o que
acontecia, sua língua já explorava minha boca num beijo delicioso.
— Que se dane! Eu não vou trocar de roupa!
— Eles são bem diferentes pra mim, e mesmo que fossem iguais,
isso acontece até em tapete vermelho do Oscar, não dá pra relaxar? —
Luísa tentou argumentar, me encarou em tom de ameaça. — Deixe sua
irmã em paz, é natal!
Luísa respirou fundo, vi que tentava se controlar, as veias em seu
pescoço pulsavam, ela estava irada, mas se conteve, deu meia volta e
saiu. Vi que Letícia assistia a tudo de longe também furiosa comigo.
Desejei sair dali, desejei a minha casa e era isso que eu faria. Caminhei
de volta para casa, Enzo interceptou meus passos, colocando-se a mi-
nha frente.
— Aonde você vai? — Ele perguntou um tanto aflito.
— Pra minha casa! Pra qualquer lugar longe daqui.
— Agora?
— Sim, sai da minha frente, por favor?
— Eu te levo.
— Pra onde?
— Pra onde você quiser ir. Mas que seja realmente bem longe.
— Eu não posso aceitar, é natal e você está com a sua família, eu
que não deveria ter vindo.
— De jeito nenhum eu deixo você sair daqui sozinha. — Sorri
com o gesto. Pensei em negar mais uma vez a oferta, mas lembrei-me
que não tinha trazido dinheiro, apenas maquiagem, o celular e as chaves
de casa na bolsa. Aonde eu iria tarde da noite, sem dinheiro e sozinha?
— Eu vou buscar minha bolsa. Disse e entrei correndo na casa, eu
precisava dar o fora dali e bem rápido.

Uma fina chuva começou a cair molhando o para brisas do carro.


Eu só poderia ter pirado, sair sem rumo, com um cara que tinha acabado
de conhecer em plena madrugada de natal, sem avisar a minha família e
brigada com minhas irmãs, não ia surtar, afinal não era pra tanto.
Enzo estacionou em frente a um prédio elegante, saiu rapidamen-
te para abrir a porta pra mim, olhei com mais atenção para o prédio,
era um hotel. — Dizem que a festa aqui é bem animada, sempre tive
vontade de fugir no natal, vamos?
— Esse tipo de festa não precisa de convite?
— Não se precisa de convites quando se tem amigos. — Ele disse
sorrindo. Entramos no lobby do hotel, era simplesmente luxuoso, com o
maior pé direito que já vi na vida, toda a fachada de vidro e um enorme
pinheiro no centro, Enzo pediu o meu braço e me conduziu a um salão
no andar de baixo. Uma moça, alta e esguia nos recepcionou.
Enzo apresentou-se, a moça digitou algumas palavras no tablet
que carregava nas mãos e nos desejou uma boa festa. Entramos no sa-
lão repleto de gente, uma mesa enorme de doces me chamou atenção.
Mas ele me conduziu até o outro lado da festa. Um jardim de inverno
exuberante separava o ambiente calmo no qual entramos de uma pista
de dança que fervia. Sorri com o som da música.
A pista era de led e exibia imagens tridimensionais, comecei a
mexer o corpo ao som da música eletrônica, não fazia meu gênero, mas
o som era contagiante, logo chegamos ao centro da pista e uma música
de ritmo latino que fazia sucesso no momento iniciou, as pessoas foram
à loucura, sem perceber fechei os olhos e balancei meu corpo me dei-
xando levar, Enzo me puxou para mais perto dele me conduzindo, en-
carei seu rosto e ele sorria tão gostoso que relaxei, curtindo o momento.
Não era uma boa dançarina, mas fui conduzida com maestria, es-
tava me divertindo. A música era sensual e nos aproximava. Senti aque-
le arrepio novamente quando ele deslizou a mão pelas minhas costas
colando mais ainda seu corpo no meu. Enzo encostou o rosto no meu
pescoço, beijando-o com carinho, a cada toque de seus lábios uma cor-
rente elétrica percorria meu corpo.
Beijamos-nos mais uma vez, o beijo dessa vez foi urgente, cheio
de desejos e promessas. Meu corpo pegava fogo, e eu só conseguia
puxá-lo para mais perto de mim e beijá-lo. Saímos da pista de dança
e trocamos beijos apaixonados no jardim de inverno. — Precisamos
sair daqui, vem comigo. — Eu sabia o que se passava na cabeça dele,
estávamos num hotel, hotel tem quartos e quartos tem cama. Tudo bem
que nem em sonhos eu poderia me hospedar num hotel daqueles, mas
dinheiro não parecia ser problema pra Enzo.
Voltamos ao lobby e ele se dirigiu a recepção, me beijando nos
lábios pediu para eu aguardar. Algo em mim gritava que estava fazendo
tudo errado. O que toda revista e site feminino costumam dizer pra não
fazer de cara mesmo? Ir pra cama num primeiro encontro.
Eu não era virgem nem nada, mas meu estômago começou re-
virar, eu só poderia estar louca. Fugir na noite de natal, com um des-
conhecido, acabar num hotel e ir pra cama com ele. “Alice, você está
louca, ainda dá tempo de inventar alguma coisa”, mas lá estava ele, com
um sorriso, vindo em minha direção. Puxou-me pelas mãos e entramos
no elevador.
O elevador era daqueles modernos com um painel cheio de bo-
tões, ele apertou alguns deles e então, o elevador subiu. Enquanto o
elevador nos conduzia, Enzo me abraçou por trás enlaçando os braços
enormes na minha cintura, dizia algumas coisas no meu ouvido enquan-
to me beijava no pescoço.
Quais eram as minhas dúvidas mesmo? Dar ou não no primeiro
encontro? Ninguém teria alguma dúvida se tivesse com um “desconhe-
cido” tão lindo como esses, nem mesmo quem escrevia aquelas revistas
e sites. O elevador abriu as portas e dei de cara com um corredor muito
bem decorado com quadros e vasos de flores belíssimos nos aparado-
res, se o corredor me impressionou, perdi o fôlego quando entramos na
suíte.
Parecia um cenário de filme.
Sem cerimônia, Enzo livrou-se do paletó, o mesmo que havia me
emprestado mais cedo. Puxou-me para um beijo mais quente e apaixo-
nado, como aquele cara beijava bem, minhas pernas estavam bambas de
tanto desejo, me agarrei a seu pescoço, buscando apoio, ele me abraçou
e senti que estava excitado, aquilo me deixou mais louca ainda.
Aquele vestido parecia ter se grudado a mim, eu só queria me
livrar dele o quanto antes, Enzo me ajudou e quando enfim me livrei
da peça, ele me encarou por um instante, parecia hipnotizado de tão
intenso que era seu olhar.
— O que você tá fazendo comigo? — Sorriu. O que eu estava
fazendo com ele? Ou que ele fazia comigo? Encarando-me ele soltou
meus cabelos que caíram em ondas até as minhas costas, voltamos a
nos beijar.
Enzo me ergueu nos braços e me levou até a enorme cama no cen-
tro do quarto, os lençóis macios cederam, puxei-o para mais perto de
mim, tentando me livrar, de suas peças de roupa, ele sorriu com a minha
urgência, aquele mesmo sorriso travesso que tinha visto mais cedo.
Fechei os olhos quando as carícias recomeçaram, ele explorava
meu corpo, beijando cada centímetro com devoção, eu repetia coisas
sem sentido, ele me olhou e eu implorei que ele me amasse. Encara-
mos-nos com intensidade, quando ele enfim me penetrou, eu gemi me
agarrando a seu corpo com força, que homem era aquele?
Movemos nossos corpos com paixão e me senti nas nuvens quan-
do cheguei ao orgasmo, ele não demorou a chegar ao seu ápice. Perma-
necemos calados próximos um do outro. Eu nunca havia sentindo algo
parecido, nem mesmo quando achei que estava apaixonada por Rafael.
Por que eu tinha que me lembrar daquele babaca, num momento como
aquele? Repreendi-me e encostei a cabeça no peito de Enzo.
Ouvi as batidas do seu coração se acalmarem, ainda batia forte,
ele se sentia como eu me sentia? Como se lesse meus pensamentos, ele
afastou as mechas dos meus cabelos e ergueu meu rosto, exibindo um
sorriso lindo, me olhando com paixão, me derreti.
— Alice. — Ele disse. Apenas o meu nome, mas com tanto ca-
rinho e desejo que não resisti, enlacei meus braços em seu pescoço e o
puxei para mais beijos e mais, mais coisas incríveis como a que havía-
mos acabado de fazer.
tão interessante quanto passar mais um tempo com uma mulher incrí-
vel, bonita, sexy e faminta.
— Convidadíssimo então. Acho que a minha avó vai surtar com
a sua presença.
— Que horas é o almoço?
— Meio dia ou uma hora, depende do tempo que o assado leva
pra ficar pronto. Por quê?
— Queria saber quanto tempo tínhamos. — Enzo sorriu com ma-
lícia, despertando todo tipo de sensações no meu corpo. Aquela onda
de emoção que me excitou no mesmo instante em que voltamos a nos
beijar. Sim, ainda tínhamos tempo até a hora do almoço.

A ansiedade me fez roer as unhas no caminho para casa. Uma


rápida olhada no celular deixou-me assustada com a quantidade de cha-
madas não atendidas, dezenas delas, à uma hora dessas minha mãe es-
tava surtando em casa, tentei relaxar repetindo a mim mesma que não
era pra tanto, quem nunca deu uma de louca uma vez na vida e saiu no
meio de uma festa, e meus motivos eram bem compreensíveis.
Nem reparei que já havia chegado, Enzo me despertou anuncian-
do a chegada.
— E então, vamos entrar? — Ele estendeu a mão para mim e
aceitei.
— Sim o almoço deve estar pronto e eu estou morrendo de fome.
— Disfarcei.
— Você não costuma trazer seus namorados em casa não é? —
Enzo tinha notado meu nervosismo, claro que sim, eu estava levemente
surtada. Droga! Mas espera um pouco... Ele disse namorado? Eu devo
ter feito uma cara de boba porque ele sorriu e continuou. — Bem, se
isso te tranquiliza, devo informa-la que faço sucesso com as sogras, elas
gostam de mim.
— Não seja tão convencido, e eu costumo trazer amigos aqui sim,
mas esteja preparado para um breve interrogatório.
Enzo fez uma cara de dor e levou as mãos ao coração. Tentei não
sorrir com aquela encenação, mas sem sucesso.
— Amigo?
— Amigo, anda logo, vamos enfrentar as feras. — Respirando
fundo abri a porta, Enzo segurou minha mão e sorriu triunfante, entrei
na sala e encontrei a casa estranhamente quieta. Imaginei uma surra de
perguntas e olhares reprovadores, mas sequer a mesa do almoço estava
posta.
— Alice! Graças a Deus você chegou! — Titia berrou no topo da
escada, bem, não era esse o tipo de recepção que imaginava. — Onde
você se meteu menina? Eu já estava preocupada, você sabe que eu sinto
cólica quando fico preocupada e... — Titia notou a presença de Enzo na
sala e ficou muda, corando levemente.
— Tia, este é o Enzo, e não precisa se preocupar, tá tudo bem de
verdade. — Tranquilizei-a.
— Ai, caramba! Entendi tudo, meu Deus, que homem é esse? —
Titia se aproximou de nós e me ignorando totalmente, cumprimentou
Enzo. Que vergonha.
Vovó e mamãe desceram em seguida e depois de alguns abraços e
milhares de perguntas que não consegui responder nem a metade delas,
os ânimos se acalmaram e o foco voltou a se concentrar em Enzo. Titia
ofereceu metade da despensa e comecei a colocar a mesa com ajuda de
vovó. — É seu namorado? — Ela perguntou curiosa.
— É um amigo, vovó.
— Um amigo muito bonito sem dúvidas um “tipão”. — Sorri com
a impressão que Enzo despertara nas mulheres da minha casa, talvez ele
tivesse razão em dizer que fazia sucesso com as sogras.
Luísa não demorou a chegar, ouvi sua voz e não deixei de revirar
os olhos, sempre atrasada. Eu estava no quarto decidindo que roupa
vestir para o almoço depois de um banho demorado, optei por um ves-
tido de estampa floral, meu dia merecia flores mesmo.
Sem bater na porta, Luísa entrou no quarto. — Precisamos con-
versar, só nos duas.
— Não estou afim. O almoço já vai ser servido e a vovó vai ficar
brava.
— Você é sonsa mesmo Alice, mas não me engana.
— Luísa, me deixa em paz. — Tentei sair do quarto, mas ela blo-
queou a saída, o confronto era inevitável. Luísa não tinha vindo para o
almoço de natal, ela tinha vindo me enfrentar. Estava fervendo de raiva.
— Tem noção do que você fez? Do que estão falando de você e da
nossa família? Como você teve coragem de se jogar pra cima do Enzo?
O que você planeja? Um golpe do baú? — Respirei fundo, para não
voar em Luísa naquele momento.
— Não me confunde Luísa, a interesseira da família não sou eu.
— Luísa veio pra cima de mim e eu a empurrei, ela desequilibrou nos
saltos altíssimos e caiu de bunda no chão. Mamãe entrou no quarto e
nos repreendeu.
— Depois terminamos a nossa conversinha. — Luísa ameaçou,
só consegui sorrir, nada ia estragar meu dia.
O almoço seguiu tranquilo e como previa estava tudo delicioso.
Não havia a pompa e o luxo da ceia da noite anterior, mas era tudo tão
gostoso. Não tinha tempero melhor que o da minha avó.
Enzo estava completamente à vontade, conversando com o pri-
mo e respondendo as milhares de perguntas sem noção da minha tia.
Ela estava completamente encantada. Mamãe ainda parecia tensa com
a discussão que presenciou entre Luísa e eu, mas disfarçava sorrindo
e brincando com o neto. Luísa me dirigiu olhares raivosos que foram
ignorados com sucesso.
Minha irmã tinha o péssimo hábito de achar que o mundo girava
a seu redor. Dessa vez não ia abaixar a minha cabeça.
Enzo se despediu e o acompanhei até a frente de casa onde havia
estacionado seu carro logo cedo. Trocamos telefones, eu tentei não ficar
ansiosa se ele ligaria para mim ou não, não me sentia pronta para esse
tipo de envolvimento, ainda estava machucada. Mas não tinha como ne-
gar que ele havia mexido comigo, bastava olhar para ele para meu cor-
po responder com uma infinidade de sensações, meu estômago parecia
ser invadido por borboletas agitadas, batendo as asas freneticamente.
— Não pense que vai se livrar de mim. — Enzo sorriu ao entrar
no carro. Tentei me controlar para não entrar naquele carro e não des-
grudar dele. Despedi-me, sentindo meu coração disparado, eu havia me
apaixonado novamente.
— Concordei e o beijei nos lábios.
As palavras de Rafael ecoaram em minha mente, como ele teve
a cara de pau de me oferecer uma parceria musical depois da canalhice
que aprontou? Eu não queria mais pensar nele, mas ainda sentia raiva.
A vontade de esganá-lo era mais forte do que eu.
Foi difícil me concentrar no trabalho naquela tarde, as horas se
arrastaram e o tédio tomou conta de mim, nenhum cliente cruzou as
portas da loja, arrumei as peças expostas na vitrine duas vezes, até a
hora da minha saída. Os olhos tensos de Enzo me perscrutaram, o que
me deixou incomodada.
— Vai me dizer o que aconteceu hoje no almoço?
— Não foi nada. — As rugas na testa de Enzo demonstraram que
aquela não foi a melhor resposta a dar, respirei fundo para voltar a res-
ponder. — Eu vou contar tudo.
— Estou esperando. — Enzo cruzou os braços ouvindo minhas
explicações. Contei tudo e nem me dei conta que tinha acumulado tanta
mágoa até começar a falar. — Você esta me dizendo que esse cara rou-
bou a sua música?
— Eu não tinha registrado.
— Mas tem os áudios do momento da composição? — Eu sabia
onde ele estava querendo chegar, claro que um processo contra Rafael
passou pela minha cabeça inúmeras vezes, na verdade, cada vez que
ouvia a música no rádio ou na tevê a ideia voltava com toda força.
— Tenho tudo salvo no meu celular, mas eu fiquei tão deprimida
que não tomei nenhuma atitude. — Justifiquei.
— Você sabe que se quiser pode contar comigo, não é minha área,
mas posso te orientar, indicar um colega.
— Eu preciso pensar sobre isso melhor, no momento eu quero
distância de tudo relacionado ao Rafael, inclusive a música.
— E o que ele queria com você afinal?
— Me propor uma parceria musical. — Enzo trincou o maxilar e
engoliu em seco. — Podemos não falar mais disso hoje? — Entendendo
meu pedido, Enzo me envolveu nos seus braços, inspirei fundo inalando
seu perfume que teve um efeito imediatamente tranquilizador sob mim.
— Mãe, nem todas as irmãs são unidas como você e a titia, quan-
do você vai colocar na cabeça que ter o mesmo sangue não significa ter
as mesmas afinidades?
— Depois falamos sobre isso. — ela cortou — Agora desça, não
é educado ter visitas em casa e ficar trancada no quarto.
Decidi que era melhor descer logo e acabar com aquele tipo de
clima. Fiquei feliz em ver meu sobrinho, João crescia mais a cada vez
que o via, mais um aniversário dele estava chegando e era esse o motivo
da visita da minha irmã, ela queria falar sobre os preparativos da festa
de aniversário do garoto. Não esperava a presença de Letícia, mas ela e
Luísa estavam cada vez mais próximas e unidas, ao que parece.
Todos os anos Luísa preparava uma enorme festa, cada vez mais
extravagante para o garoto, parecia que fazer a festa de aniversário mais
incrível e cara da cidade era uma competição da qual Luísa fazia ques-
tão de se destacar, reservar quartos num hotel luxuoso para uma festa
de pijama, fazer uma queima de fogos maior que muitas cidades fazem
na virada do ano estava na lista dos feitos da minha irmã. Meu cunhado
não parecia feliz quando o assunto eram os gastos das tais festas, mas
esse ano ele parecia bastante contente e empolgado.
Logo entendi os motivos de tanta alegria, empolgação e agitação,
Luísa estava grávida novamente. Ela havia tentado engravidar várias
vezes depois do nascimento de João sem sucesso, até começar a fazer
um tratamento com certeza muito caro para isso.
Minha mãe estava radiante, assim como minha avó, até mesmo
meu pai iria jantar em nossa casa naquela noite. Fiquei feliz com a
notícia, mas não pude deixar de me entristecer, afinal de contas, meus
planos para esta noite não incluíam um jantar em família. Enviei uma
mensagem para Enzo, explicando a situação, ele se convidou para o
jantar – comemoração - reunião familiar no mesmo instante.
Luísa não parava de falar sobre o que estava planejando para co-
memorar o aniversário de João o único “não radiante” com a notícia de
sua gravidez, Letícia estava irritantemente feliz, não aturava a intimida-
de dela dentro da minha casa, com a minha família, tentava não pensar
nela como uma intrusa, mas depois do último natal era bem difícil, e ela
parecia querer me provocar sempre.
A presença de Enzo piorou e muito a situação. Minha meio irmã
não parava de se oferecer para meu namorado, mesmo nossa relação
sendo de conhecimento de todos. Enzo a afastava educado e paciente-
mente. Eu tentava me controlar para não arrancar os cabelos da garota.
O jantar foi anunciado, tivemos que nos virar para acomodar tanta
gente na pequena mesa de jantar, alguns se sentaram no sofá da sala,
como meu pai sempre preferia fazer nessas ocasiões, parecia o dono
da casa, sentado no sofá de posse do controle remoto esperando ser
servido. Mais uma vez tive que utilizar todo meu autocontrole para não
surtar. — Você parece uma bomba prestes a explodir todos aqui dentro
a qualquer momento. — Enzo falou sorrindo. — Relaxa.
— Impossível, com as minhas irmãs aqui dentro. — Sorri.
— Eu tenho uma coisa pra te dizer que talvez te alegre.
— Sobre o processo?
— Ainda não, na verdade eu quero te fazer um convite. — Falou
sorrindo de um jeito que fazia minhas pernas se transformarem em ge-
latina.
— Estou aberta a convites.
— Que tal aproveitar o resto do final de semana na praia? Você
não precisa levar nada, é só fugir comigo por aquela porta, agora mes-
mo.
— Tentador, mas e o meu TCC? — Enzo franziu a testa em sinal
de frustração.
— Você vai mesmo me trocar pelo TCC?
— Não se trata disso eu... tudo bem, você tem razão, estou bem
adiantada na verdade, meu orientador não fez nenhuma observação ne-
gativa. Eu vou. — O rosto de Enzo se iluminou num sorriso.
— Vamos agora?
— Assim? Do nada? Preciso pegar minhas coisas.
— Você não vai precisar de nada, eu te garanto que terá tudo o
que você precisa. — Considerei a proposta um momento.
Seria interessante ver isso.
— Uma moeda por seus pensamentos. — Surpreendeu-me Enzo.
Ele carregava duas taças de vinho, sorriu ao me oferecer uma delas.
— Nem por um milhão. — Provoquei, sorvendo parte do líquido
adocicado da taça.
— Assim você me deixa curioso de verdade. — Colei meus lábios
nos dele, matando minha sede. A sede que só aumenta à medida que
minha língua explorava sua boca. Enzo me ergueu do solo sem grande
esforço me conduzindo até um enorme sofá que cedeu com nosso peso.
Fizemos amor ali mesmo.
Encostei minha cabeça em seu peito ouvindo as batidas acelera-
das do seu coração se acalmarem, enquanto ele acariciava meus cabe-
los, eu adorava aquela sensação, não pude deixar de sorrir. — Não vai
me dizer mesmo, o que se passa nessa cabecinha?
— Você. — Enzo sorriu satisfeito, não resisti em beijá-lo.
— Aquele violão ali, você trouxe por quê? — Tinha esquecido
da música. Eu queria muito que Enzo a ouvisse, não sei bem porque,
mas desde o momento em que a finalizei, só queria saber de uma única
opinião.
— Eu fiz uma música, eu quero que você ouça, mas seja sincero,
tudo bem?
— Você fez uma música pra mim? — Ele perguntou esperançoso.
—Não, você ficaria insuportável. — Brinquei. — Mas é mesmo
importante pra mim que você ouça. Seja sincero, se não gostar pode
falar.
— Serei sincero, prometo. — Segurei o violão um pouco nervosa.
Sentei-me numa poltrona ao lado do sofá em que Enzo ainda estava
preguiçosamente deitado.
Não gostava da minha voz e cantar na frente de alguém sempre
me gerou certa ansiedade, respirei fundo e comecei a dedilhar as notas,
minha voz saiu inicialmente trêmula, mas fechei os olhos e cantei. No
final os abri e esperei alguma reação de Enzo. Olhei-o em expectativa,
meu coração acelerado. — E ai, o que você achou?
— Eu estou apaixonado por você.
— É sério, me diz o que você achou. Está muito ruim?
— Você não entendeu. — Enzo levantou-se e se aproximou da
poltrona em que eu estava. — Você não faz ideia do quanto é incrível
Alice, isso que você acabou de fazer é incrível, eu estou apaixonado
por você.
Engoli em seco, eu não esperava uma declaração como essa, eu
não sabia o que dizer, meu rosto pegou fogo e provavelmente eu parecia
um pimentão vermelho, sem saber o que fazer, abri um sorriso. Enzo re-
tribuiu exibindo um sorriso lindo que fez meu coração dar uma vacila-
da, sim, eu compreendi o que ele dizia. E eu também estava apaixonada.
— Gostei muito da música, se é que tenha restado alguma dúvida,
e estou sendo sincero.
— Obrigada. Era muito importante pra mim.
— Você tem uma voz linda, por que não grava suas músicas? —
Soltei uma gargalhada nervosa, nunca me imaginaria em cima de um
palco, cantando para uma multidão me assistindo, nem sei se teria uma
multidão para me assistir. — Estou falando sério. Se você quiser posso
te apresentar a Stela, estudamos juntos na faculdade, mas o lance dela
sempre foi a música, hoje em dia ela administra uma gravadora peque-
na, mas que é bem conceituada, acho que suas músicas se encaixam no
estilo de artistas que ela costuma produzir.
Fiquei zonza instantaneamente com tanta informação, nunca pen-
sei em tirar minhas músicas da gaveta, muito menos em me expor num
palco. Definitivamente isso não fazia parte dos meus planos, nem con-
seguia me imaginar numa situação como esta.
— Vou pensar. — Respondi por fim.
— Pense o tempo que quiser, mas posso te pedir uma coisa, ago-
ra? —Ele sorriu maliciosamente, aquele sorriso que eu adorava.
— Claro que pode.
— Canta mais pra mim. — Como negar um pedido desses? Pe-
guei o violão mais uma vez e voltei a cantar.
Posso dizer que tive dias de princesa.
Nosso namoro se resumia a algumas trocas de mensagens pelo
aplicativo ou chamadas de vídeo. A intensidade do que eu sentia, en-
tretanto não diminuía, eu o amava com todas as minhas forças e disso
eu tinha certeza. Minhas mãos suavam e eu tentava me lembrar de tudo
que havia lido e estudado nos últimos meses.
Os professores que formavam a banca tomaram seus lugares e
eu me concentrei o máximo que pude, o auditório da faculdade estava
cheio de estudantes de vários períodos, visualizei o rosto da minha mãe
no meio do público e comecei a minha apresentação. Recebi a nota má-
xima de todos os avaliadores e um enorme alívio tomou conta de mim,
eu havia concluído uma etapa importante da minha vida.
Mamãe me abraçou orgulhosa.
— Minha filha, eu estou tão orgulhosa de você!
— E eu estou me sentindo aliviada, muito feliz também, muito
feliz!
O celular que havia esquecido no bolso de trás da calça vibrou.
Era Enzo. — Será que eu posso enfim encontrar a minha namorada?
— Ai me Deus, eu quero tanto te ver, eu estou tão feliz! Eu con-
segui a nota máxima, você acredita?
— Eu não esperava menos da minha namorada. — Não sei se era
a felicidade pelo que acabara de acontecer, a saudade ou a forma que ele
me disse aquilo, mas senti meu corpo inteiro se arrepiar.
Encontrei com o restante da família num jantar em casa feito com
muita insistência por minha mãe, eu realmente queria comemorar, po-
rém encarar minhas irmãs e meu pai era sempre constrangedor, apesar
de ser impossível resistir a uma lasanha preparada por minha avó.
Minha tia fez questão de comprar louças novas e estrea-las no
jantar. Recebi um abraço carinhoso do meu sobrinho e um nada amis-
toso de Luísa, levei um susto quando a vi, a sua barriga tinha quadru-
plicado de tamanho e ela já andava com dificuldade. — Acho isso um
exagero, Alice ainda não se formou.
Essa era minha irmã, chegou reclamando e não parou mais. Re-
clamou do calor, do volume da tevê, do perfume que eu usava e do fato
do marido não largar o celular. Letícia e meu pai mal me cumprimenta-
ram, ela parecia tão irritada quanto Luísa e meu pai queria mesmo ficar
em frente à tevê.
Enzo chegou carregando um enorme buquê de flores. Eu nunca
havia recebido flores, nem mesmo sabia o nome delas, mas fiquei emo-
cionada com seu gesto, mais feliz quando ele me colocou a par das no-
vidades do processo, uma audiência de conciliação estava marcada para
poucos dias e ao que parece, Rafael e a gravadora estavam dispostos
a entrar num acordo comigo. — Sugiro que você aceite, certas causas
podem demorar e se arrastar por anos.
— Eu quero que isso acabe logo.
— E os registros das suas outras composições, conseguiu fazer
como te orientei?
— Eu estou com tudo pronto pra dar entrada, agora que minhas
aulas terminaram e eu estou oficialmente livre do TCC, vou fazer ainda
essa semana.
O jantar foi servido e nunca comi uma lasanha tão saborosa na
minha vida, minha avó tinha as mãos abençoadas, eu queria muito cair
fora dali e quem sabe passar alguns dias na praia com Enzo como no
último jantar que rolou na minha casa, mas não foi possível. Ao invés
disso nos apertamos na minha cama de solteiro.
Sorri com a forma desajeitada que Enzo se acomodou na cama
que era nitidamente minúscula para ele. — Isso não vai dar certo, tem
certeza que quer ficar aqui essa noite?
— Certeza absoluta.
— Mas você vai ficar todo dolorido de manhã.
— Pra mim tá tudo perfeito, você está aqui. — Quase morri com
tanta fofura, mas sabia que ele estava sendo gentil, até eu com minha
estatura mediana sofria com meu colchão, imagine alguém com o dobro
do meu tamanho?
Mas assim como ele, não queria que ficássemos separados, na
verdade tudo o queria era ficar perto dele. — Eu tenho uma coisa pra
te contar.
— Espero que seja alguma coisa boa. — Enzo franziu a testa
passando a mão nos cabelos denunciando sua ansiedade. — Fala logo o
que é, pelo amor de Deus.
— Calma, eu vou te contar, mas me escuta até o fim, tudo bem?
— Eu já estava surtando, entretanto, concordei em ouvi-lo sem inter-
rupções.
Sem falar nada Enzo me mostrou o celular, demorei a entender o
que ele queria me dizer, ele passou o dedo na tela e apertou o play para o
vídeo. Era um vídeo meu cantando distraidamente usando a sua camisa
na casa de praia que visitamos naquele feriado prolongado. Os cabelos
soltos teimando em cobrir meus olhos, e eu sorrindo de olhos fechados
curtindo a música.
— O que isso significa?
— Você cantando. Eu gravei pra mim, pra curtir você mais um
pouco, você estava tão linda. — Ele falava encarando a pequena tela e
sorrindo. — Mas eu tomei a liberdade e espero que você não se ofenda.
— Comecei a dizer alguma coisa, mas ele me interrompeu me fazendo
recordar da minha promessa, ouvi-lo até o final sem interrupções. —
Você é simplesmente encantadora e eu claro não resisti. Quando encon-
trei Stela num restaurante por acaso, começamos a conversar e ela me
falava sobre esses fenômenos que aparecem na internet e viralizam e
citou a banda do seu ex-namorado como exemplo.
— Como assim, Stela é aquela sua amiga produtora?
— Ela não é só produtora, mas dona da gravadora e a senhorita
não pode me interromper. — Gesticulei que manteria minha boca bem
fechada e os ouvidos atentos, Enzo continuou com um sorriso divertido
no rosto. — Então a Stela citou que a banda carecia de novas compo-
sições ou seria esquecida em breve e citou a questão do processo e da
sua música que não pode ser executada pela banda por enquanto. Ela
então elogiou sua música e disse que a tal compositora desconhecida,
era mesmo muito talentosa, gostaria de ressaltar que ela disse “muito
talentosa”.
— Ai meu Deus, não me mata de curiosidade, conta tudo de uma
vez!
— Vou ignorar que você me interrompeu mais uma vez e dizer
que ela elogiou a minha namorada e claro que eu me senti um puta
sortudo e vaidoso, elenquei todas as qualidades da compositora “mui-
to talentosa”, linda e incrivelmente gostosa. — Enzo falava enquanto
beijava meu pescoço provocando uma série de arrepios no meu corpo
— Você disse isso?
— Sim e também mostrei o vídeo que fiz de você a ela.
— Você fez o quê? — Levantei da cama imediatamente, meu
coração batia freneticamente, Enzo também levantou e continuou seu
relato.
— Eu mostrei o vídeo e espero mesmo que você não fique abor-
recida, você está aborrecida comigo?
Pensei um pouco na pergunta e não, não estava nem um pouco
aborrecida, apenas surpresa. — Eu não estou aborrecida, eu juro.
— Tudo bem. — Enzo respirou fundo soltando o ar que havia
prendido aliviado. — Ela adorou a sua música, a sua voz e você. — Ele
disse de uma vez.
— O quê? Sentei na cama sentindo uma leve tontura.
— Ela quer te conhecer, na realidade isso aconteceu a mais ou
menos três semanas atrás e eu expliquei que no momento você não
poderia por causa da faculdade e tudo mais, ela está mesmo interessada
e não pela amizade que temos, ela quer muito te conhecer, conversar e
disse que tem algumas propostas a te fazer.
— Isso é uma loucura. Eu nunca pensei... Quer dizer já pensei a
muito tempo atrás em viver de música mas esse sonho era tão distante
pra mim quanto estamos distantes da lua.
— Mas os sonhos podem se realizar.
— Eu não sei o que dizer, eu estou tremendo.
— Você não precisa dizer nada agora, muito menos pensar nisso
nesse momento.
— Impossível, eu não vou nem conseguir dormir de tanta ansie-
dade, eu vou surtar.
Eu odiava despedidas, mas meu último dia de trabalho na loja foi
muito agradável, decidi que sairia da loja para procurar um emprego na
minha área e me dedicar um pouco à música também, Mamãe me achou
precipitada, mas decidi seguir meu coração.
Dona Olga sempre tão amável desejou-me muita sorte assim
como minhas colegas, recebi até mesmo presentes. Derrubei algumas
lágrimas ao sair pelo portão do shopping pela última vez, com aquele
sentimento de que outra etapa da minha vida se encerrava.
Passei alguns dias me dedicando com afinco a fazer absolutamen-
te nada, que sensação boa, não ter hora para acordar, não ter trabalhos
para entregar, metas para bater... Meu celular tocou me levantei espan-
tando a preguiça, era Enzo, o único capaz de me tirar de dentro de casa
no momento. — A Senhorita me daria a honra de sua companhia esta
noite? — Falou todo formal.
— Nossa quanta formalidade, o que você está aprontado? — Fi-
quei curiosa.
— Mulheres, tão ansiosas...
— Então tem alguma coisa afinal. Me conta logo, o que você está
aprontando Enzo?
— Agora mesmo que não vou contar. — Enzo gargalhou se diver-
tindo com a minha ansiedade. —Te pego às nove.
— Eu vou te matar.
— Eu te amo. — Meu coração disparou como sempre acontecia
quando ele me dizia isso, eu queria dizer que também o amava apesar
dele nunca cobrar, eu queria muito dizer, mas eu não conseguia.
— Ás nove está ótimo. — Queria me bater por isso.
— Até mais tarde.
Desliguei com o um nó na garganta.
O que tinha de errado comigo? Sentei na cama me sentindo es-
tranhamente cansada, me encarei no espelho pensando o que afinal me
impedia de dizer o que estava sentindo. Medo.
Medo de quê?
Mamãe interrompeu meus pensamentos, pedindo ajuda para pre-
parar o almoço. Enquanto eu lavava as folhas para preparar uma salada,
o telefone da casa tocou. Era Luísa anunciando que entrara em trabalho
de parto.
Correria.
Subi as escadas, me enfiando na primeira roupa que encontrei
limpa. Mamãe estava tão ansiosa que esquecera uma panela no fogão
queimando o que seria nosso almoço. Vovó quis vir conosco atrasando
a nossa saída. Quando enfim conseguimos um táxi já havia se passando
duas horas.
Chegamos à maternidade a tempo de encontrar Luísa surtando de
dor ou nervosismo. Decidi sair e andar um pouco, não havia nada que
eu pudesse fazer mesmo, achei melhor andar com o meu sobrinho que
parecia não entender nada do que estava acontecendo a sua volta. Sem-
pre esqueciam as crianças quando algo importante acontece.
Quantas vezes quando criança ficava de lado, apenas olhando os
adultos a minha volta?
— Titia eu posso pedir um sorvete?
— Será que vendem sorvete aqui?
— Deixa, por favor? — E que pessoa resiste a um pedido desses
vindo de uma coisinha tão fofa?
— Claro que sim, meu amor.
— A mamãe nunca deixa tomar sorvete antes do jantar. — Jan-
tar? Tomei um susto quando vi que já eram sete da noite. As horas
estavam voando e eu presa do outro lado da cidade. Liguei para Enzo,
já me sentindo nervosa, a chamada foi direto para a caixa postal para
meu desespero. Talvez se eu começasse a correr chegaria a tempo de
encontrá-lo. Despedi-me da minha família e corri para o ponto de táxi.
O trânsito não colaborou e a cada minuto dentro daquele carro, a an-
siedade aumentava. Não consegui enviar uma mensagem de texto na
correria esqueci também de recarregar o aparelho celular, pra completar
minha aparência não estava nada boa. Quando enfim consegui chegar
ao restaurante encontrei Enzo com uma cara nada boa sentado a mesa,
eu não sabia do tempo, mas sabia que estava atrasada no mínimo uma
hora e meia.
— Desculpa. — Consegui dizer ao me jogar na cadeira.
— Qual o incêndio que você precisou apagar?
— A Luísa tá na maternidade, eu sai correndo, o celular descarre-
gou. —Tive que parar de falar, pois a atenção de Enzo não estava mais
em mim, mas numa mulher estonteante com um belo sorriso no rosto
que se aproximava de nossa mesa.
— Ela chegou! — Enzo levantou-se todo cortês e ofereceu uma
cadeira a mulher que ainda sorria. — Desculpe eu não me apresentar,
meu bem...
— Alice essa é a Stela. — Enzo a cortou, fazendo a apresentação.
— Ela pacientemente te aguardou para que vocês fossem apresentadas.
— Desculpe, eu não sabia que você viria. — Lancei um olhar
inquiridor a Enzo que ignorou chamando o garçom, eu nunca tinha o
visto tão aborrecido.
— Não precisa se desculpar meu bem, com o trânsito maluco
dessa cidade quem consegue ser pontual? Além disso foi bom colocar a
conversa em dia com esse rabugento. — Ela dizia piscando o olho em
cumplicidade, sorri de volta. O garçom aproximou-se de nossa mesa e
depois dos pedidos, voltou com algumas bebidas, eu bebi o conteúdo do
copo de uma vez, a situação toda tinha me deixando tensa.
— A Stela queria te conhecer, como te disse, ela se interessou
pela sua música. — Enzo explicava ainda com a expressão aborrecida
no rosto.
— E eu não vou me estender, vou ser direta Alice. Eu me inte-
ressei sim pelo vídeo que Enzo me mostrou, claro que pra fazer uma
análise melhor eu teria que ouvir mais, saber mais de você, suas expe-
riências na música...
— São quase nulas. Eu guardo tudo na gaveta e tem muito tempo
que não canto em público.
— Eu quero te fazer um convite. — Stela abriu a bolsa e tirou de
lá um cartão. — Fique com meu cartão, quando se sentir a vontade me
liga e a gente combina uma passada sua lá no estúdio, que tal?
— Eu nunca estive num estúdio, eu não sou profissional.
— Isso com o tempo se molda meu bem, estamos sempre apren-
dendo. Fique com o cartão e não descarte o convite antes de considerá-
-lo, tudo bem?
— Eu vou.
Stela se despediu pouco tempo depois e um silêncio constrange-
dor pairou entre nós. — Quer uma carona de volta pra maternidade?
— Enzo disse enfim.
— Você vai ficar aborrecido comigo?
— Você tem noção do quanto uma pessoa como a Stela é ocupa-
da?
— Eu não sabia que ela viria
— E se soubesse não teria mudado nada, porque você larga tudo
por causa da sua irmã, ou da sua mãe, ou da sua avó...
— Chega! — Me levantei da mesa. Saí do restaurante, mas Enzo
me alcançou antes de conseguir entrar num táxi.
— Quer parar de se comportar como uma criança, Alice?
— Por que você tá me tratando assim?
— Eu quero que você entenda que está vivendo a vida de outras
pessoas. Toda essa loucura com suas irmãs, sua mãe, eu quero que você
viva Alice. — Comecei a chorar, as lágrimas começaram a cair e eu não
consegui mais controlá-las.
— Para com isso, por favor.
— Você quer que eu te leve até a maternidade?
— Não! Eu quero que você pare de me tratar desse jeito.
— É você que se trata assim, você que coloca sempre alguém a
sua frente, sua prioridade é tudo menos você mesma.
— Eu sei tá bom, eu sei dessa merda toda, eu sei que eu preciso
mudar. Eu sei.
— E esse comportamento não vai te ajudar. Você tem que ter o
controle da sua vida Alice. — Eu só conseguia chorar. Enzo me abraçou
e eu enfim consegui me acalmar. — Aonde você quer ir?
— Qualquer lugar.
Eu não conseguia, comer ou ficar parada, estava ansiosa demais.
Decidi ir até o apartamento de Luísa, Mamãe e Vovó estavam fazendo
plantão na casa da minha irmã desde que minha sobrinha nascera, a me-
nina era tão linda que conseguia compreender o apego daquelas duas.
Fui recebida pelo meu cunhado, a casa parecia muito cheia, es-
tranhei a movimentação, mas logo compreendi, era noite de comemo-
ração, minha sobrinha Maria Júlia completara um mês de vida. Espan-
tei-me como o tempo passara tão rápido. Minha irmã providenciou uma
festa para comemorar, já tinha visto muito desse tipo de festinha na
internet, os pais corujas comemoravam cada mês de vida de seus bebês,
reunindo a família e os amigos.
— Pensei que você tivesse esquecido, quase não viu sua sobri-
nha. Luísa falou ao me ver entrar. — Venha, vamos tirar uma foto, as
três irmãs e Maju.
Acompanhei Luísa até a sala de jantar que estava decorada com
muitos balões cor de rosa e ursinhos de pelúcia. A bebê tinha engorda-
do bastante e dormia alheia a movimentação a seu redor. Peguei minha
sobrinha no colo, ela estava sendo disputada entre as avós materna e
paterna, fiquei com dó e a coloquei no colo, querendo me instalar com
menina num lugar mais calmo e silencioso.
Surpreendi-me com a chegada de Enzo, meu coração deu um
salto quando o vi se aproximar, fazia duas semanas, mas parecia uma
eternidade. De repente me dei conta que a minha viagem representava
me afastar de Enzo, aquilo seria muito doloroso. — Eu tinha certeza
que ia te encontrar aqui. — Ele disse.
— Então você tem uma bola de cristal, porque nem eu sabia que
viria. —Brinquei.
— Qual o motivo de você ter me dado um bolo hoje no almo-
ço? — Ele foi direto. A neném choramingou um pouco no meu colo,
acomodei melhor a menina e comecei a nina-la. O balanço de leve a
acalmou e ela logo voltou a dormir. — Você leva jeito com criança.
—Você acha? — Ele assentiu. — Ela é linda, não é?
— Só têm mulheres bonitas na sua família, até hoje eu achava
você a mais bonita delas, mas acho que seu trono corre perigo agora. —
Sorri, eu estava completamente apaixonada por aquele homem.
Luísa nos interrompeu para a tal foto das irmãs. Letícia esta-
va visivelmente aborrecida ao meu lado, ela nunca me suportou, mas
quando Enzo estava por perto, tudo piorava.
A neném voltou a chorar e dessa vez não consegui acalmá-la,
sentia fome e com isso eu não poderia ajudar. Luísa pegou a menina no
colo , ela estava estranhamente calma e simpática, talvez a maternidade
havia conferido algum tipo de milagre na minha irmã.
Puxei Enzo para o segundo andar da cobertura, onde ficavam os
quartos, queria conversar com ele com mais calma. Achei o quarto do
meu sobrinho vazio e silencioso, perfeito. Não esperei mais e o beijei,
estava com muita saudade daquele beijo, daquele cheiro... Já começava
a sofrer também por antecipação,como seria difícil ficar longe dele.
— Eu preciso te contar uma coisa. — Falei abraçando-o.
— Não fala nada não, eu to com saudade. — Incrível como meu
corpo se arrepiava com aquela voz, era irresistível, mas eu precisava
falar. Com relutância me afastei de seus lábios.
— A Stela tem um plano, projeto, sei lá... Mas envolve uma
viagem.
— Que bom, e pra onde?
— Estados Unidos! Eu nem consigo acreditar! — Falei empol-
gada. — Não sei o que vai rolar exatamente, mas eu vou fazer algumas
aulas com caras incríveis que sempre fui fã, eu to muito feliz.
— E quanto tempo você vai passar por lá?
— Muito. Falei.
— Um mês?
— Dois anos. — Enzo me olhou com espanto. Parecia repetir
minhas palavras mentalmente. Eu também repetia para compreender o
que aquilo significava, era muito tempo, ele me esperaria?
— Uau... Eu não sei o que dizer. — Enzo sentou-se na beirada
da cama, parecia triste. Meu coração se partiu.
— É tanto tempo, eu sei. — Me agachei para encará-lo nos
e aquilo me angustiou. Eu tremia quando sentei na poltrona do avião,
uma mistura de medo e tristeza me fizeram chorar por horas. Peter me
ofereceu seu ombro e um calmante que me derrubou.
Peter ficou responsável pela minha adaptação em Boston. Meu
novo endereço era uma casa bem simpática em South End, que ficava
ao lado da faculdade onde eu estudaria. O bairro tinha uma área mais
residencial, com casas geminadas no estilo vitoriano. A cozinha peque-
na, mas bem funcional. O que mais gostei foi da minha suíte, a cama
era enorme, sempre sonhei em ter uma cama como aquela. Cortinas
pesadas cobriam uma janela que dava para a movimentada rua, adorei
tudo ali, principalmente porque não sentiria calor naquele lugar.
Nos primeiros dias eu ligava de cinco em cinco minutos para Pe-
ter, eu não conseguia me virar, estava insegura, chorava sozinha na sala,
já sentia saudades. Tornamos-nos amigos, confidentes, ele me lembrava
a todo instante o quanto aquela oportunidade era incrível e me impediu
de arrumar as malas muitas vezes e pegar o primeiro avião de volta pra
casa. Eu teria que agradecer a ele por isso, serei eternamente grata, por
cada conselho e cada risada que ele me arrancou.
Minha rotina era pesada, nas horas em que estava com a equipe
de Peter, aprendia tudo e mais um pouco sobre o que seria a tal “atitu-
de” que eu precisava. Aprendi passos de dança, aprendi a maquiar meu
rosto valorizando meus traços, reaprendi a falar, a andar e até mesmo a
sorrir. Isso tudo além de cansativo era muito chato, mas aparentemente
muito importante, algum tempo depois comecei a reconhecer que as
mudanças estavam me fazendo bem e deixei de reclamar das sessões
que chamava de “tortura”.
— Darling, já diria a rainha Bey, a beleza dói!
— Eu preciso mesmo andar com esses saltos? É sério, não sei
como você aguenta. — Sim, meu amigo não saia de cima do salto, até
quando estava em seu apartamento, eu desconfiava que até para dormir
ele não abria mão deles.
— Se você me perguntar isso mais uma vez eu vou te deixar sem
sobremesa, pra sempre, não brinca comigo garota!
O que eu gostava mesmo era das aulas na Berklee College of
Music, simplesmente uma das melhores escolas de música do mundo,
famosa pelos cursos e pela estrutura que oferecia. Eu ficaria lá por dois
anos numa parceria com uma faculdade no Brasil, assim que voltasse
pra lá daria continuação a meus estudos, já tinha decidido que não me
afastaria da música nunca mais.
Eu me transformava quando pisava naquele prédio. Stela, mexera
“seus pauzinhos” e eu cai ali de paraquedas, tentei absorver tudo que
podia, eu tinha aulas instrumentais, teóricas e práticas de banda, aquilo
era um verdadeiro sonho. Fiz alguns amigos, era impressionante como
a minha turma tinha pessoas tão jovens e talentosas, os únicos “velhi-
nhos” na turma, que tinham mais de vinte anos, éramos Will e eu. Eu
com vinte e quatro e ele com vinte e seis anos.
Will era brasileiro também, tinha cabelos volumosos, um tom de
pele eternamente bronzeado, era um excelente instrumentista, adorava
puxar papo comigo em português, pra matar as saudades, ouvíamos
muita música brasileira e discutíamos o tempo todo por qualquer coisa.
Mas sempre acabávamos voltando a nos falar naturalmente como se
nada tivesse acontecido.
Will tinha uma namorada, Ava, uma garota introvertida, baixinha,
porém bastante talentosa, tocamos algumas vezes juntos em várias noi-
tes frias na sala de casa ou em algum barzinho de algum dos inúmeros
conhecidos de Will, o cara parecia conhecer a cidade inteira, ou pelo
menos aqueles que interessavam em Fenway Kenmore.
O bairro era agitado com a presença de muitos estudantes, já que
havia muitas faculdades por ali e vários bares sempre movimentados.
Sentia falta de Enzo todos os dias, no começo nos falávamos to-
dos os dias no telefone, depois começamos a usar mais os aplicativos
de mensagem, Enzo chegou a ir me visitar em Boston. Quase cai dura
pra trás quando numa bela manhã eu abri a porta e dei de cara com ele.
Estava tão lindo, parecia mais forte e tinha mudado o corte de ca-
belo. Eu o beijei e ainda com a porta aberta começamos a nos despir, era
a primeira vez em meses que eu sentia seu cheiro, que eu podia tocá-lo.
Gostava daquele café, era um local frequentado por estudantes,
das diversas universidades da região. O local era agradável, com piso
em madeira e decoração moderna, e o principal acesso a internet.
Sentamos numa mesa com um estofado enorme em “L”, uma lu-
minária pendia do teto dando um clima mais intimista, aquele horário
o local estava bastante movimentado, um grupo de jovens discutia ani-
madamente numa mesa mais adiante com um notebook ligado, univer-
sitários. As pessoas estavam agitadas era dia de jogo do Red Sox. Will
chegou com as bebidas e um enorme sanduiche nas mãos, meu estôma-
go roncou quando vi a comida, ele notou meu olhar e me ofereceu um
sanduíche.
Tomei meu café enquanto aguardava meu sanduiche ficar pronto.
— Sobre o que quer conversar? — Ele perguntou entre uma mordida e
outra.
— Qualquer coisa? — Respondi.
— Do que você tem mais saudade do Brasil? Da comida... Da
família?
— Isso sempre, mas a comida eu me adapto rápido, minha avó diz
que eu sou boa de garfo e eu não posso discordar. Eu sinto falta dela. —
Will acenou concordando movendo os enormes cachos.
— E você deixou mais alguém lá? — Aquela pergunta me inquie-
tou, lembrei-me de Enzo e senti meu rosto queimando. Will notou meu
embaraço.
— Será que a gente pode falar de outra coisa?
— Claro! Que tal irmos ao jogo mais tarde? — Dei uma gargalha-
da. — É sério, do que você tá rindo?
— Eu não entendo nada de beisebol, é disso que eu ri.
— Quanto a isso, eu posso ajudar, vou te explicando tudo, você
é esperta, vai aprender logo. — Sorri, pensei em negar o convite mais
lembrei da minha tia e de sua listinha de coisas que eu precisava fazer
naquela viagem. A lista era bem interessante, ela citava a neve, comidas
e até um namorado americano. Acho que ir ao jogo de beisebol poderia
ser incluído na listinha.
Will comemorou, começou a digitar freneticamente, segundo ele
seria difícil conseguir dois ingressos em cima da hora, mas nada que os
contatos certos não garantissem. Alguns minutos depois eu já devorava
meu segundo sanduiche, quando Will anunciou que havia conseguido
os ingressos.
O jogo seria no início da noite. Então depois de jogar bastante
conversa fora nos dirigimos ao estádio. Um casal de amigos que Will
apresentou, mas que eu não guardei os nomes nos esperava com os
ingressos. Entramos no estádio acompanhando a multidão vermelha de
torcedores.
O Boston Red Sox era um time da liga americana de beisebol, eu
não entendia nada daquele esporte como disse, lembrei de ter visto um
filme com Jimmy Fallon e Drew Barrymore que o personagem era apai-
xonado pelo time, resolvi entrar no clima e tirar umas fotos, titia acharia
incrível tudo aquilo, “tão americano” como ela dizia.
A garota, Amber seu nome, eu descobri depois usava uma ca-
miseta com a frase “Me beije, eu sou uma fã do Red Sox” era muito
falante e animada, tentava me explicar as regras do jogo, mas não con-
segui assimilar muita coisa. Consegui compreender apenas o principal
objetivo que era pontuar batendo com um bastão em uma bola lançada,
uma rebatida e em seguida depois correr pelas quatro bases do campo.
A multidão apoiava o time, no terceiro innings, um intervalo de quinze
minutos, eu estava começando a me empolgar com aquele clima, claro
que as duas cervejas que tomei ajudaram bastante.
Fui surpreendida com a imagem de Will no enorme telão do es-
tádio, Amber e o namorado vibraram com aquilo, ele parecia constran-
gido, Amber me empurrou pra mais perto de Will, encarei o telão e vi
nossas imagens ali. — Ai cacete. — Eu podia não entender de beisebol,
mas eu sabia o que aquilo significava, já tinha assistido muitos filmes
na vida, era a tal da “Kiss cam”, as pessoas incentivaram e Will tomou
a atitude me puxando para um beijo.
mas eu não consegui suportar. — Chega! Minha cabeça vai explodir!
Ressaca.
Will se ofereceu para preparar o café da manhã, enquanto eu ten-
tava me livrar daquela sensação horrível no banho. Peter ainda discursa-
va sobre a minha falta de consideração, tinha esquecido completamente
do jantar em sua casa, ele havia me convidado para me apresentar um
“cara especial”, ele parecia bem alegrinho nos últimos tempos descon-
fiava que a pessoa era mesmo especial.
— Custava ter atendido as minhas ligações, eu pensei que fosse te
encontrar desmaiada aqui. — Me senti culpada.
— Foi mal, eu me empolguei ontem.
— Quem é esse cara?
— Um amigo da Berklee, brasileiro. Eu já te falei dele. — Peter
me encarou com aquele olhar de “você não me engana”, desviei do seu
olhar e o expulsei do banheiro para me vestir, ele não fez menção de
que sairia de lá, desisti e comecei a me vestir. — Para de me olhar desse
jeito.
— Sua vadia! — Peter sorriu me deu tampa na bunda, odiava
quando ele fazia aquilo, ele estava querendo me irritar. — Avisa da
próxima vez que trouxer um boy pra cá, eu quase enfartei, duas vezes
por sua causa!
— Não é nada disso que você tá pensando.
— Que frase clichê Darling! — Peter gargalhou e eu senti meu
rosto queimar. — Você acabou de se entregar agora.
— É sério, a gente só ficou conversando, cantando, eu acabei co-
chilando, sei lá... — Peter fez um sinal para que eu parasse de falar.
— Ele é bonito, parece um anjinho travesso com aqueles cachi-
nhos... Adorei!
Desisti de tentar me explicar a Peter, ele chegou a uma conclu-
são e não se convenceria do contrário. Sequei os cabelos quando Will
anunciou que o café da amanhã estava pronto. Meu queixo caiu quando
entrei na sala, ele tinha preparado um café da manhã de hotel num passe
de mágica. — Como você fez tudo isso?
— Comprei algumas coisas na delicatessen da esquina enquanto
você tava no banho, mas as panquecas e os ovos mexidos são obras
minhas.
Peter sussurrou um “fofo” quando Will virou de costas, revirei os
olhos e sentei-me a mesa. Peter e Will começaram a conversar como se
fossem amigos de infância, eu não aguentava essa cumplicidade mas-
culina, mas até que estava divertido aquele papo.
— Você não disse o que achou das minhas panquecas.
— Eu não vou te elogiar pra você não ficar se achando, não força.
— Will sorriu e enquanto eu lavava a louça, ele se despediu. O acompa-
nhei até a porta. — Obrigada mesmo, por tudo, eu gostei muito da noite
de ontem, quer dizer tirando o fato de ter ficado altinha — Will sorriu.
— Espero não ter dito muita bobagem.
— Você não precisa agradecer e foi tudo tranquilo não se preo-
cupe.
—Obrigada por ter me levado pra cama. — Peter fingiu ficar en-
gasgado e Will ficou constrangido. — Quer dizer, me desculpe... você
entendeu o que eu disse.
— Não foi nada, achei que você ia acordar dolorida se dormisse
no sofá, toda torta.
— Valeu. — Me inclinei para beijar seu rosto, lembrei do nosso
beijo, fiquei feliz dele não tocar no assunto.
— Toma um Advil. — Devo ter feito uma cara confusa, porque
ele explicou. — A dor de cabeça, vai melhorar.
— Claro, obrigada, de verdade. — Fechei a porta e Peter deu um
gritinho estridente, com certeza Will tinha escutado do lado de fora, não
adiantava discrição não era o forte de Peter mesmo.
acendeu em minha cabeça em alerta.
— Depois de tudo o que? — perguntei curiosa. Peter levantou-se
nervoso, parecia procurar as palavras para falar, eu tive certeza que ti-
nha algo muito errado. — Fala logo, o que você quer dizer com isso?
— Eu não tenho certeza de nada Darling, você conheceu a Stela,
sabe que ela não é do tipo que dá satisfações sobre o que faz e porque
faz, dá ordens e pronto! — Peter enrolava com o envelope na mão.
— Fala de uma vez! — Falei quase gritando.
— Você e eu sabemos que esse interesse todo da Stela em você, é
por causa da influência do seu ex.... — meu coração disparou, me senti
levemente enjoada, Peter esperava enquanto eu assimilava as palavras.
— Alguém tá investindo pesado em você Darling, o seu curso, suas
instalações aqui, roupas... Enfim, nunca tinha visto uma estrutura tão
grande.
Pedi para que ele parasse de falar, eu já havia entendido o que ele
insinuava. — Você tá querendo dizer que o Enzo tá me bancando aqui?
— Não tenho certeza de nada, eu disse! Não me olha desse jeito,
please!
— Não, isso faz muito sentido na verdade, não sei como isso não
se passou pela minha cabeça antes. — Eu sentia meu estômago embru-
lhar, podia vomitar a qualquer momento.
Sentei no sofá, tentando assimilar tudo aquilo. — Eu nunca en-
tendi tanto interesse da Stela por mim, eu nem sou tão boa assim...
— Para! Eu não admito que você se coloque pra baixo, Alice você
é incrível, e se a Stela entrou nessa, seja com patrocínio do seu ex ou
não, é porque você não é boa, meu bem, você é incrível!
— Eu preciso ouvir isso dela, ou melhor, dele! Eu não acredito
que fui enganada esse tempo todo. — Peter pensou um pouco pra falar.
— Acho que é besteira esse tipo de pudor Alice. Qual o problema
de receber ajuda? — Peter deu de ombros, abrindo o envelope. Engoli
em seco enquanto analisava sua expressão. — Acho que você surtou à
toa, Darling.
Peter estendeu o convite para mim, peguei com as mãos suadas de
nervosismo, analisei o convite. — Emílio Souza?
— Não faço ideia de quem seja, mas definitivamente não é seu
ex! —Peter sorria de maneira debochada pra mim. — Vou dar uma
olhada no Google, descobrir quem é o cara.
Corri para perto de Peter, com o olhar fixo na tela do celular, uns
segundos depois de digitar o nome do tal Emílio, uma série de páginas
surgiram na tela. Peter correu os olhos na tela e se afastou de mim. Au-
mentando a minha curiosidade, depois de alguns minutos naquilo ele
enfim disse alguma coisa. — O cara é podre de rico, Alice.
Tomei o celular das mãos de Peter e vi uma foto de um homem
elegante, com cerca de cinquenta anos, franzi a testa vendo as fotos em
que Letícia aparecia, li que o casal estava planejando o casamento do
ano. — O casamento do ano... — ecoou Peter ao meu lado. — O babado
vai ser forte mesmo, nós vamos, não é?
— Nem pensar!
— Nem pensar em perder um babado desses, e além do mais é
no final do ano e você já estará de volta ao Brasil, eu não perco isso por
nada! — Peter deu um gritinho típico de quando estava empolgado.
— Eu não vou nesse casamento. — Bufei em protesto.
— Você vai sim, e vai linda meu bem! — Decretou Peter, e eu
tinha escolha?
saído da minha mente.
— O Enzo tem alguma coisa a ver com isso? Stela eu preciso
saber. — Fui direta, estava ansiosa e Stela não gostava de rodeios. Ela
me pareceu bastante incomodada com a pergunta, confirmando minhas
suspeitas. — Por que ninguém me disse nada?
— E o que isso muda Alice? Não dá pra apenas aproveitar o mo-
mento, viver seu sonho?
— Eu tinha o direito de saber, me senti enganada. — Stela revirou
os olhos.
— Você é muito dramática e mimada! Quando o Enzo me pro-
curou com aquele vídeo seu, eu fui bem sincera como sempre fui com
ele, você tinha potencial, mas te preparar ia demandar tempo e muito
investimento e a gravadora não estava no momento de investimentos
inseguros — Stela tomou um gole do seu drink, visivelmente irritada
em ter que me dar explicações. — Então ele me sugeriu investir em
você, eu achei interessante a proposta, em troca dos meus toques, dos
meus contatos, se as coisas não deslanchassem eu não perderia nada e
se acontecessem eu sairia no lucro, por que não?
— Por que ele não me disse nada?
Stela deu de ombros.
— Vai ver ele te conhece bem o bastante e sacou que você criaria
algum problema, sei lá, isso você pergunta a ele. A minha parte eu fiz,
disponibilizando nada menos que o melhor a você, e olha só pra isso.
— Stela gesticulou mostrando o ambiente. — Olha só pra você garo-
ta, virou uma mulher! Pelo menos na aparência, agora desmancha essa
cara emburrada, aja como uma profissional e aproveite sua festa. Muito
trabalho te espera, tenho muitos planos.
Stela saiu dando a conversa por encerrada. Eu corri para o ba-
nheiro precisava respirar um pouco assimilando a informação, Enzo
estava mesmo por trás da minha ida para os Estados Unidos, dos meus
estudos numa das melhores instituições de música no mundo, por todas
as experiências incríveis que eu vivi naqueles meses, sentia-me zonza,
era o orgulho falando alto.
Levei um susto com a presença de Peter no banheiro feminino,
ele me olhou com reprovação e praticamente expulsou uma garota do
banheiro nos trancando lá dentro. — O que deu na sua cabeça, Alice?
Olhei-me no espelho, tinha passado um pouco de água no rosto,
para aliviar a tensão e o nervosismo, minha maquiagem tão bem feita
horas antes tinha ficado prejudicada. — Desculpa, eu precisava fazer
isso, mas eu consigo retocar.
— Você tem que parar de pedir desculpas o tempo todo, isso é
irritante Darling! Mas não estou falando da makeup estou falando de
você enfrentar a Boss, vai por mim a Stela não gosta desse tipo de abor-
dagem e se você faz merda, eu levo a culpa, entendeu?
— Des... — comecei a falar, mas interrompi. — Eu não vou fazer
mais isso, eu prometo! Só precisava confirmar que o Enzo... — Não
consegui terminar, senti vontade de chorar, minha garganta fechou.
— Você é caidinha por esse boy, Darling. — Peter bufou repa-
rando no meu rosto com mais calma. Fez-me sentar num puff preto que
estava no banheiro e depois de uma ligação uma maleta de maquiagem
surgiu como mágica no banheiro, e meu rosto voltou a se transformar
mais uma vez. — Promete que não vai surtar? — Peter me perguntou
mirando meu reflexo no espelho. Sorri prometendo a meu amigo e a
mim mesma que agiria com o profissionalismo que era necessário, eu
teria tantas coisas a dizer a Enzo, mas respirei fundo e engoli meu or-
gulho.
quando fui surpreendida com a chegada de Luísa que praticamente de-
sabou na cadeira a meu lado com uma taça de champanhe em uma das
mãos.
— Olha só a minha irmãzinha. — Ela me dirigiu um olhar cansa-
do, me examinando com mais atenção. — Você está linda, esse vestido
é perfeito.
— Obrigada, obra do Peter. — Sorri.
Luísa fechou os olhos esfregando as mãos nas têmporas. Parecia
não estar nada bem. — Está tudo bem? Quer que eu chame alguém?
— Não precisa, eu estou bem. Só estou um pouco enjoada. — Lu-
ísa sorriu alisando a barriga.
— Você está grávida? — Ela concordou bebendo o restante do
conteúdo da sua taça. — Você deveria estar bebendo?
Luísa deu de ombros, sorrindo com amargura. — Não tem proble-
ma, é só um pouquinho, nosso segredinho.
Ficamos em silêncio por um tempo.
— Tem certeza que está bem, eu posso chamar a mamãe ou outra
pessoa — ofereci. Luísa fez uma careta negando a minha oferta, servin-
do-se de mais uma taça de champanhe que um sorridente garçom nos
oferecia.
— Á nós! — Ela ergueu a taça e bebeu mais um gole da bebida.
Parecia triste e distante.
— Tem alguma coisa que eu possa fazer?
— Se você conseguir tirar meu marido dos braços da vagabunda
que ele faz questão de esfregar na minha cara, eu agradeço. — Foi a
minha vez de beber a champanhe, minha boca ficou seca. Luísa estava
triste, lutava contra as lágrimas, eu nunca tinha visto minha irmã daque-
le jeito. Já sabia que ela estava enfrentando problemas no casamento,
mas vê-la daquela forma era doloroso.
— Acho melhor você não beber mais, não é algo inteligente a se
fazer no seu estado. — Luísa sorriu sem humor, largou a taça na mesa.
A chegada dos noivos foi anunciada, em seguida uma música lenta co-
meçou a tocar e o casal abraçado começou a se balançar ao som da
música, queria estar errada, mas eu não conseguia identificar nenhuma
emoção ali, apesar da beleza do lugar, da festa, da música e das flores.
Como se lesse meus pensamentos, Luísa comentou ao meu lado:
— Nossa irmãzinha se deu bem, soube que o Emílio foi muito generoso
com ela no contrato nupcial.
Tentei não revirar os olhos para aquele comentário, a ideia de um
casamento por dinheiro e não por amor me embrulhava o estômago.
Papai agora dançava com Letícia parecia orgulhoso conduzindo a filha
mais nova pela pista. Luísa avistou algum conhecido e se despediu.
A pista de dança foi liberada para os convidados. Peter voltou a
se aproximar carregando duas taças de um drink que parecia colorido e
delicioso. Aceitei de imediato. — Onde você se enfiou mocinho?
— Vi de longe que você estava conversando com a sua irmã dia-
ba. — Sorri da forma como Peter a chamava, desde que me abri com
ele sobre as lembranças da minha infância. Brindamos. Eu sorria com
os comentários sobre os looks das convidadas da festa feitos por Peter,
quando minha outra irmã se aproximou.
Levantei-me para cumprimentá-la e desejar felicidades. Letícia
agradeceu corando. O esposo dela se aproximou sorridente, Letícia me
apresentou como sendo sua “irmã famosa”, antipatizei com o cara na
mesma hora.
— Olha só pra você, está casada. — Eu falei tentando quebrar o
silêncio constrangedor.
— E olha só você tão bonita e independente. — Ela sorriu. —
Esse tempo fora te fez muito bem, você voltou diferente.
— Obrigada, eu acho.
— Não precisa agradecer. — Letícia falou parecendo bem since-
ra. Eu acho que de nós três você sempre foi a mais determinada.
Luísa chegou acompanhada de um fotografo, parecia outra pes-
soa. — Até que enfim, encontrei as duas, que tal uma foto juntas? As
três irmãs?
— Por que não? — Perguntei sorrindo. Luísa se posicionou ao
lado esquerdo de Letícia, eu do lado direito, sorrimos para as lentes.
Deixei-me conduzir até a pista de dança e por Enzo que ao con-
trário de mim, sabia muito bem o que fazer. Conduzia-me ao som da
música, que iniciou com uma batida mais lenta e acelerava aos poucos,
uma lembrança da nossa primeira noite juntos me voltou à mente. Eu
queria terminar nos braços de Enzo assim como aconteceu naquela vez.
Enzo encostou sua testa na minha, eu podia sentir sua respiração,
não sabia quanto tempo mais iria manter minha sanidade e postura com
aquele joguinho que ele estava propondo. — Aceita dançar mais uma
música comigo?
— Eu queria fazer outra coisa e estar em outro lugar com você.
Fiz uma expressão impaciente.
— Quer fugir daqui?
— Quero muito, por favor! — Enzo sorriu e beijou meus lábios
num selinho rápido, me puxando por uma das mãos para fora da pista
de dança. — Esbarramos em Peter. — Você se machucou? — Perguntei.
— Não foi nada. — Ele disse sorrindo para nós dois. Peter e Enzo
cumprimentaram-se rapidamente, antes de me despedir do meu amigo.
— Não faça nada que eu não faria. — Peter falou baixinho me fazendo
rir.
Tentei andar rápido e acompanhar os passos largos e apressados
de Enzo, até onde os saltos e a calda do vestido longo me permitiram.
Beijamos-nos no estacionamento, Enzo deslizou as mãos pelas minhas
costas que o vestido deixava providencialmente a mostra, senti minha
pele se arrepiar.
Entrei no carro com a respiração ofegante, eu tinha urgência.
Enzo correspondia, enquanto dava partida no carro me encarou com
desejo e um sorriso cheio de promessas no rosto.
Tentei me concentrar em outras coisas durante o caminho, a cida-
de passava como um borrão, enquanto eu sentia o calor de uma enorme
fogueira que me queimava por dentro.
Enzo estacionou o carro em frente a um prédio luxuoso, depois
soube que se tratava de um apart-hotel onde ele estava residindo atual-
mente. Um simpático senhor nos recebeu com um sorriso na recepção.
Os beijos ficaram mais intensos enquanto aguardávamos a chega-
da do elevador. Notei os olhares curiosos do recepcionista e relutante
afastei-me de Enzo por um instante, sentindo uma espécie de vazio e
ansiedade.
Já no elevador, onde Enzo apertou o número onze, fui imprensada
na parede num beijo desesperado de desejo, agarrei-me a Enzo buscan-
do manter o equilíbrio. Assim que as portas se abriram para o único
apartamento na cobertura do prédio, Enzo me ergueu do chão, envolvi
minhas pernas em torno de sua cintura.
Nossas bocas não desgrudaram em nenhum instante, quando me
colocou no chão novamente me virou de costas, afastando com delica-
deza meus cabelos para depositar uma trilha de beijos quentes no meu
pescoço e por toda extensão das minhas costas, gemi em resposta, com
habilidade Enzo abriu o delicado zíper do vestido na lateral do meu
corpo. Ajudei a me livrar da peça que deslizou até meus pés.
Enzo continuou as carícias aproximando mais o corpo do meu,
pressionei suas coxas tão firmes por cima da calça que ele vestia. —
Como senti falta desse cheiro. — ele disse com uma voz rouca. Virei
até ficarmos de frente um pro outro. Eu estava queimando e o puxei
para um beijo, explorando com certa fúria sua boca com a minha língua,
sugando, mordendo seus lábios, eu ardia de desejo.
Não foi difícil me livrar das roupas de Enzo, ele sorria maravilha-
do com minha atitude ousada, a única coisa que eu queria era me en-
tregar a ele novamente, me encarando com toda a intensidade daquele
olhar, Enzo me conduziu até a superfície do extenso e macio sofá. Senti
o peso de seu corpo sobre o meu, deslizei minhas mãos percorrendo
a musculatura de seus braços, enquanto beijava seu pescoço e dizia o
quanto o queria, senti que ele estava arrepiado, Enzo me possuiu sem
aviso, arqueei meu corpo soltando um gemido forte. O beijo calou-me,
enquanto os nossos corpos se moviam. Se havia uma definição de para-
íso, só poderia ser aquele momento ali.
— Eu te amo. — Disse quando Enzo rolou para o meu lado de-
pois de chegar ao paraíso também.
Sorrindo ele pegou minhas mãos depositando um beijo. — Casa
comigo?
— Para de brincadeira.
— Eu não estou brincando, eu nunca falei tão sério na minha
vida. — Controlei o sorriso que teimava em surgir no meu rosto. —
Não pensa, só me diz sim, eu não consigo mais me imaginar vivendo
sem você, Alice. — Fechei os olhos tentando fugir da daquele par de
olhos intensos que me fitavam de volta. — Eu sinto que já perdemos
muito tempo.
— Você pareceu não perder tempo com a Letícia. — As palavras
saíram ríspidas e com tanta amargura que me arrependi de tê-las dito
imediatamente. Enzo não pareceu surpreso ao ouvi-las.
— Do que você tá falando? De um beijo roubado pela pessoa
mais imatura que conhecemos numa festa? Que por infelicidade alguém
registrou e compartilhou com uma legenda maldosa? — Fiquei sem
saber o que dizer, a verdade é que aquilo ainda me machucava.
— Foi por isso que você sumiu? Me afastou?
Senti uma lágrima escorrer pelo rosto, Enzo parecia ofendido ao
sondar meus olhos. — O que você queria que eu fizesse depois de ver
o que eu vi, você estava distante, sempre ocupado e de repente aquela
foto, eu sei que a Letícia sempre se ofereceu...
— Você sabe que ela é infantil e você sabe que eu nunca incentivei
as investidas dela. — Sim, ele nunca tinha dado abertura às tentativas
descaradas da minha irmãzinha. — E por isso você resolveu namorar o
seu colega de turma?
Senti uma pontada no coração, senti-me culpada. — Eu não na-
morei o Will. Quem te envenenou contra mim?
— Ninguém, eu só fiquei sabendo. — Ele falou irritado, passando
as mãos pelos cabelos curtos.
— Esqueci que você estava de olho no seu investimento. — Dei
ênfase à palavra investimento, mostrando meu descontentamento. —
Quando você ia me contar que bancou minha ida para os Estados Uni-
dos? — Enzo pareceu surpreso dessa vez.
— Desde quando você sabe?
— Acho que sempre desconfiei, mas a sua amiga Stela me con-
firmou. — Ele ficou em silêncio encarando o chão, com uma expressão
indecifrável. — Por que você mentiu pra mim?
— Eu não menti.
— Omitiu, deu no mesmo, me senti enganada da mesma forma.
—Desabafei.
— Eu não te contei para evitar esse tipo de reação, imaginei que
você talvez não aceitasse minha ajuda. Que droga Alice, por que esta-
mos discutindo? — Enzo se aproximou de mim me envolvendo num
abraço apertado, desesperado. — Eu não quero discutir, eu quero você
de volta, quero ficar com você. — Ele segurou meu rosto me obrigando
a encara-lo. — Eu nunca quis te magoar, foi a forma que encontrei de
você embarcar e aproveitar essa oportunidade, realizar seus sonhos, eu
nunca quis que a gente se afastasse.
Aquilo me desarmou. A proximidade que estávamos, a saudade, o
desejo, me deixaram completamente zonza e sem argumentos. A verda-
de é que eu estava com medo de voltar a me envolver e aquela conversa
de casamento tinha acordado todas as minhas inseguranças...
— Eu amo você. Você é a mulher da minha vida.
— Me pergunta de novo. — Enzo me olhou confuso. — Pergunta
outra vez. — Eu pedi.
Ele abriu um largo sorriso, me encarou com toda a intensidade
daquele olhar capaz de derrubar minhas defesas e afastar meus maiores
medos.
— Casa comigo?
Eu não imaginei que organizar um casamento fosse tão trabalho-
so, a verdade é que mesmo com a ajuda de Peter que tinha se tornado
meu melhor amigo eu praticamente surtei durante penosos oito meses.
Escolhemos uma cerimônia mais íntima, para desespero do meu
amigo, nunca tinha feito planos de me casar, mas os dias que passei com
Enzo na casa de praia de sua família, jamais saíram da minha memória
afetiva, escolhi aquele cenário para nossa união.
Peter fez questão de me presentear com um belo vestido, ele ha-
via se tornado um famoso estilista agora. Eu estava tão orgulhosa da
carreira de sucesso que ele havia trilhado... Orgulhosa também estava
de Will, ele havia chegado a me produzir assim como sonhamos anos
antes, mas agora trabalhava com nomes importantes da música.
Luísa e Letícia foram minhas madrinhas, fato que consideraria
impossível anos atrás, mas que agora tinha parecido uma decisão na-
tural.
Eu tinha ficado feliz quando Luísa aceitara meu convite, minha
irmã mais velha estava lutando contra a depressão há algum tempo,
logo depois que minha sobrinha mais nova nasceu, ela ficou muito aba-
tida, foi até o inferno, mas venceu o casamento falido e a desorientação,
encontrou a força necessária pra seguir em frente.
Letícia estava de volta ao Brasil depois de uma longa temporada
no exterior com o marido, ela sentia a necessidade de entrar em contato
com a família que segundo a mesma havia feito muita falta, tentava nos
aproximar o tempo todo.
Mirei no espelho minha imagem, dispensei com muito custo a
oferta de todos que quiseram me ajudar com os últimos retoques, minha
mente vagou até a lembrança da minha avó. Ela gostaria de me ver as-
sim, certamente estaria orgulhosa das mulheres da sua família.
Ela faleceu antes de presenciar muitas coisas boas na minha vida.
Um nó se formou na minha garganta. Afastei aqueles pensamentos e
me concentrei no presente. Peter tinha se superado desta vez, o vestido
moldara-se perfeitamente ao meu corpo, era rendado de alças finas, um
decote cavado nas costas e para arrematar uma elegante calda. Respirei
fundo até dar os braços a meu pai que me esperava na porta do quarto
que usei para me vestir, ele sorriu emocionado para mim.
O caminho da casa até o local da cerimônia era curto, mas a an-
siedade fez parecer maior.
— Pronta? — Meu pai perguntou.
— Sim.
Não podia imaginar a emoção que sentiria ao percorrer os poucos
passos até o altar, Enzo sorria me encorajando, os convidados sorri-
dentes tornaram-se um borrão. O perfume das rosas brancas que lade-
avam um gramado entrou pelas minhas narinas, o sol estava se pondo,
emoldurando a beleza daquele momento que estaria impresso na minha
mente para sempre. Meu corpo estremeceu, quando Enzo tomou a mi-
nha mão e depositou ali um cálido beijo.
— Preparado para o resto das nossas vidas? — Perguntei encaran-
do-o com um sorriso no rosto.
— Eu mal posso esperar para sermos felizes para sempre.
— Você não toma jeito mesmo, sempre tentando me conquistar...
— É o que pretendo fazer todos os dias.
Não restava nenhuma dúvidas quanto a isso.
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