Você está na página 1de 8

Estética e História da Arte | Prof.

Miguel Gally | Universidade de Brasília

Clara Amaral Faria Camelo - 190104490


Júlia de Oliveira Gadelha - 190090138
Gabriela Coelho Schenekenberg Guedes - 170058379

Crítica de Arte
Obra: ‘‘Can’t Help Myself’’, de Sun Yuan e Peng Yu
Museu Guggenheim de Nova York, 2016-2019.
Bienal de Veneza, 2019.

Sun Yuan e Peng Yu são artistas que vivem e trabalham em


colaboração em Pequim desde o final da década de 1990. Sun
e Peng são artistas conceituais contemporâneos cujo trabalho
tem reputação de ser conflituoso e provocativo. As obras de
Sun Yuan e Peng são conhecidas por não serem
convencionais e instigar poderosas reações físicas e
psicológicas ao espectador. Estes artistas incorporam
materiais orgânicos nas suas práticas, com o fim de desafiar
sistemas políticos e autoridade social, e criticar a sociedade
em geral. Sua obra mais famosa, "Can't Help Myself", tem
recebido destaque em exposições recentes.
Descrição da obra

A obra Can’t Help Myself, encomendada de Sun Yuan e Peng Yu pelo museu
Guggenheim de Nova York, se constitui em um robô industrial, majoritariamente
composto por aço inoxidável preso em uma grande caixa de acrílico. O braço
robótico tinha apenas uma tarefa: impedir que um líquido vermelho-escuro
viscoso, que mais se parece com sangue, escorresse pelos arredores, utilizando
sensores de reconhecimento visual e sistemas de software. Seu propósito consiste
em analisar a sociedade moderna, cada vez mais automatizada e dependente da
tecnologia, onde a relação das pessoas para com as máquinas está mudando em
níveis acelerados e onde os territórios são governados mecanicamente. Sua
performance se dá da seguinte maneira: o robô fica contido por paredes de acrílico
transparentes, onde precisa manter um fluido vermelho que se assemelha ao
sangue. Quando seus sensores detectam que o líquido está mais distante do que
deveria, o braço do robô o traz de volta para si freneticamente. Isso acaba por
deixar manchas no chão e respingos nas paredes.

Os artistas optaram por usar um robô para contemplar o desejo inicial de testar
algo que teria o potencial de substituir a vontade de um artista no processo de
criação e como isso poderia ser atingido usando uma máquina. O braço do robô, o
qual é tipicamente visto em fábricas de automóveis, foi modificado com o
acréscimo de uma pá personalizada em sua extremidade. Também, em parceria
com dois engenheiros de robótica, Sun Yuan e Peng Yu criaram trinta e dois
movimentos para serem reproduzidos pela máquina. Alguns dos nomes são
“scratch an itch” (coçar-se), “bow and shake” (curvar e sacudir) e “ass shake”
(sacudir a bunda), sendo possível ver a intenção dos artistas de animar uma
máquina.

Tais movimentos são performados, enquanto a tarefa de puxar o líquido para si é


interrompida, quando os sensores da máquina percebem que há pessoas ao redor.
Isso dá ao robô um caráter humano, o que gera um sentimento de empatia e
solidariedade dos espectadores. Em 2019, o robô começou a perder a rapidez com a
qual fazia suas tarefas, criando uma percepção de cansaço e desistência. Porém, é
dito em algumas fontes que essa fase não passou de um desligamento gradual da
máquina para que ela fosse levada a outra exposição. Ainda assim, esse episódio é
envolto em diversas teorias.

Presa em um espaço que acaba por assemelhar-se a uma gaiola, o robô parece
adquirir consciência e se transformar em uma espécie de vida que foi confinada.
A arte como campo aberto de interpretações
Crítica por Clara Amaral

A obra de Sun Yuan e Peng Yu, apesar de ter sido concebida com um propósito,
abriu um leque de diversas interpretações. Seguindo a linha dos artistas, que são
conhecidos por fazerem obras polêmicas e de forte impacto no público, Can’t Help
Myself é carregada em simbologia: o líquido, que parece sangue; os gestos, que se
assemelham ao de um ser humano; a diminuição do ritmo dos movimentos, que é
percebido como cansaço; o cômodo, que é visto como um espaço de
aprisionamento; entre outros. Tais elementos metafóricos atingem os espectadores
de tal forma que gera-se um sentimento de pena e empatia para com a máquina,
além dos mais variados questionamentos e pontos de vista sobre o significado da
obra.

Desses, os mais comuns são: a luta entre imigrantes e governos; cidadãos


submetidos a governos totalitários e impedidos de fugir; a dependência e a
subversão do homem à máquina e à tecnologia; o esgotamento da repetição da
mesma tarefa ou de juntar os próprios pedaços todo dia; a insignificância do
trabalhador e seu papel na sociedade capitalista; e a relação homem, redes sociais e
tempo. Além disso, a obra chegou a ser comparada com o mito de Sísifo,
personagem da mitologia grega que foi condenado à eternidade a carregar uma
pedra até o topo de uma montanha, de onde, toda vez, ela rolaria de volta até sua
base.

Todas essas possibilidades de interpretações são manifestações já naturais


provocadas no espectador de uma obra de arte, em maior ou menor grau. Uma coisa
que pode ter um tal significado para um indivíduo, pode ter um significado
completamente diferente para outro. Isso vem ao encontro da abordagem de
estética relacional, discutida por Nicolas Bourriaud. Segundo essa linha, a arte
contemporânea é uma experiência social e interativa que ocorre no campo das
relações humanas. Sem elas e sem a participação do público na arte, a experiência
estética não ocorre de maneira plena. Além disso, artistas contemporâneos
produzem suas artes objetivando causar reflexões sobre a sociedade.

Assim, as obras de arte contemporâneas não se concentram em objetos estáticos,


contemplativos, tradicionais e com um significado óbvio e completamente definido
pelos artistas. A obra de Sun Yuan e Peng Yu se encaixa na perspectiva de estética
relacional, já que se logra como arte-experiência por haver espaço para interação
humana consigo e flexibilidade e instigação à procura de significados. A máquina
só se consagra como arte porque há envolvimento e engajamento humano.
Segundo Bourriaud,
O sentido da obra nasce do movimento que liga os signos emitidos pelo artista, mas
também da colaboração dos indivíduos no espaço expositivo (BOURRIAUD, 1998, p.
114).

No contexto da arte contemporânea, onde a arte é, de certa maneira, mais mutável


e impalpável, a busca por sentido já se expande para além do instinto natural de
entendimento do desconhecido, entrando no campo do dever de esforçar-se para
criar algum significado. Bourriaud cita que “não sentir nada é não ter trabalhado o
suficiente”(BOURRIAUD, 1998, p. 113). Com todas as simbologias criadas por Sun e
Peng, a concepção de diversas interpretações, e muitas delas envolvendo o
emocional, foi consequência. Tal fato alinhou-se com a natureza dos artistas, os
quais objetivam um forte impacto no público.

A interpretação artística dependente do contexto de inserção do espectador


Crítica por Gabriela Schenekenberg

A obra de Sun Yuan e Peng Yu gerou forte comoção em janeiro de 2022 quando a
comparação dos vídeos do robô de 2016 e 2021, nas redes sociais, aparentava que
ele estava perdendo força, fazendo forte relação com o mundo humano atual
composto por pessoas exaustas, com burnout, que correm o dia todo e todos os dias
atrás de objetivos impostos pela grande massa midiática da sociedade. Vidas,
viagens, relacionamentos e famílias perfeitas expostas nessas mesmas redes
sociais onde circula o vídeo da obra em análise. Este é um ponto fundamental no
qual baseia-se a minha crítica: a normalização incessante de situações irreais
culminando na identificação e humanização de coisas não humanas, como o caso
do braço robótico da obra "Can't help myself".

Para mim, a minha primeira sensação ao observar a obra foi de agonia devido à
constante atividade do braço robótico em tentar conter algo que nunca será
contido. Foi imaginar a estafa e a irrealidade na tentativa de conter esse material,
de conter seu fluido, seu sangue. Eu então, como um membro da sociedade atual,
me identifiquei com a sensação de estar sempre buscando algo inalcançável, a
sensação de sempre estarmos nos contendo e nos segurando devido a padrões
impostos pela sociedade de como devemos nos comportar, agir e falar. É uma
representação física da sensação inacabável do trabalho de viver no mundo
contemporâneo, de sempre conter algo, melhorar algo, buscar alguma coisa em
alguma área, e que nunca é suficiente por não atingirmos os padrões sociais
impostos.

E por este motivo, a crítica de Arthur Danto está tão bem relacionada com essa obra
devido às suas argumentações, nas quais destaca a importância dos conceitos e
contextos do mundo atual na definição da arte contemporânea. Danto demonstra a
teoria do significado, afirmando que as obras possuem significados dependentes de
seu período histórico e cultural. Ele argumenta que o significado passou a ser mais
importante do que as características materiais ou estilísticas dos objetos, fator
estritamente representado na obra em questão com a utilização de um braço
robótico semelhante ao das empresas de montagem de carros. Este elemento não
apresenta importância material e muito menos estilística, mas é carregado de
significado e subjetividades, conforme a interpretação de cada observador. Danto
sugere que a obra seria interpretada de maneiras diferentes em épocas distintas,
deixando vividamente expresso que a arte não pode ser separada de seu significado
e contexto histórico e cultural. A arte é dependente da interpretação da sociedade
da época em que está inserida, como expresso por ele no trecho a seguir a respeito
de uma pintura, mas que se aplica aos outros tipos de arte:

“Não posso imaginar o que está por trás da pintura sem conhecer o seu
significado. O significado dela é filosófico, e internamente relacionado com
os observadores. Ela põe a vida deles em perspectiva”. (Danto, 2015, p.166)

Sendo assim a obra “Can’t help myself” atingiu com êxito o objetivo de uma obra
segundo a crítica de Danto, pois acima de todas as questões sua importância
interpretativa foi atingida com êxito ao incitar a análise subjetiva por parte de seus
espectadores, dependendo diretamente da época e contexto cultural em que estão
inseridos. Uma ótima experiência sobre essa obra seria expô-la em culturas
totalmente diferentes e destoantes das européias.

O trabalho repetitivo como uma metáfora para a vida moderna


Crítica por Júlia Gadelha

A interpretação da obra varia, mas há uma ênfase na associação simbólica entre a


vida do robô e a sociedade contemporânea, especialmente no contexto digital e
capitalista. Uma interpretação comum é a de que ela representa a natureza
repetitiva e inútil do trabalho. O braço robótico está constantemente se movendo,
mas nunca consegue completar sua tarefa. Isso pode ser visto como uma metáfora
para o trabalho humano, que muitas vezes é repetitivo e não recompensador.

A instalação provoca comparações entre a vida aparentemente triste e sem sentido


do robô com a alienação que muitas vezes acompanha o trabalho inútil na
sociedade. Sugere uma reflexão sobre a sociedade moderna, a inutilidade do
trabalho, e como isso afeta tanto humanos quanto máquinas. Por exemplo, o robô
pode ser visto como uma representação do trabalhador moderno, que está preso
em um ciclo de trabalho repetitivo e sem sentido. O líquido vermelho-escuro pode
ser visto como uma representação do tempo desperdiçado em um trabalho sem
propósito.
Outra interpretação possível é a de que a obra representa a violência e a opressão. O
líquido vermelho-escuro pode ser visto como uma representação do sangue das
vítimas da violência. O braço robótico pode ser visto como uma metáfora para o
poder opressor, que está constantemente tentando manter as pessoas sob controle.
Os próprios artistas afirmaram que a obra foi inspirada nas questões da migração e
da soberania. O braço robótico pode ser visto como uma metáfora para os governos
autoritários que tentam controlar as fronteiras e impedir as pessoas de as
cruzarem.

A multiplicidade de interpretações é viabilizada pela participação ativa do


espectador, que é instigado a interagir com a obra e construir significados pessoais,
alinhando-se à visão do artista e teórico Julio Plaza, a obra também pode ser
considerada uma manifestação da arte aberta. Plaza, que destaca a estética da
recepção, sugere que os atos de leitura e recepção podem gerar interpretações
diferenciadas, tornando o receptor um co-criador. Para Plaza, o autor não é o
proprietário de um único significado; a obra só se completa com a participação
ativa do espectador, que transcende seu papel de mero observador para se tornar
um elemento vital na criação de significado, colocando o receptor na função de
co-criador.

‘’Nos ambientes, é o corpo do espectador e não somente seu olhar que se inscreve na
obra. Na instalação, não é importante o objeto artístico clássico, fechado em si
mesmo, mas a confrontação dramática do ambiente com o espectador.’’
(Plaza, 1990, p. 14)

De acordo com Plaza, o primeiro grau de interatividade em uma obra aberta se


baseia na riqueza de sentidos gerados passivamente pela contemplação, e a obra
"Can't Help Myself" se enquadra nessa categoria, permitindo múltiplas
interpretações mesmo para espectadores que apenas a contemplam. A obra é um
espaço latente, que pode ser transformado pelo espectador, dependendo de sua
perspectiva.

Portanto, a obra "Can't Help Myself" é uma obra de arte interativa que convida o
público a refletir sobre temas como alienação, inutilidade do trabalho, migração,
vigilância, autoritarismo e o papel da tecnologia na sociedade contemporânea. As
múltiplas camadas de interpretação da obra são possíveis graças à participação
ativa do espectador, que é convidado a interagir com a obra e construir seu próprio
significado.
Referências

SUN YUAN, PENG YU. Disponível em:


<https://www.google.com/search?q=sun+yuan+e+peng+yu+&sca_esv=586281044
&rlz=1C1PNBB_enBR1051BR1051&sxsrf=AM9HkKkZvVe6esqzfZwuBwWYICjEK7yL
ng%3A1701262912949&ei=QDZnZe-zOdKO4dUPoKaTwAE&ved=0ahUKEwjv0-Gco
umCAxVSR7gEHSDTBBgQ4dUDCBA&uact=5&oq=sun+yuan+e+peng+yu+&gs_lp=
Egxnd3Mtd2l6LXNlcnAiE3N1biB5dWFuIGUgcGVuZyB5dSAyBBAjGCcyBRAAGIAEM
gYQABgWGB4yBhAAGBYYHjIGEAAYFhgeMgYQABgWGB4yBhAAGBYYHjIGEAAYFh
geMgYQABgWGB4yBhAAGBYYHkisB1AAWABwAHgBkAEAmAGRAaABkQGqAQMwL
jG4AQPIAQD4AQHiAwQYACBBiAYB&g\>

BLACK MONSTER MEDIA. Showcase Friday: Sun Yuan e Peng Yu. Disponível em:
<https://www.blackmonstermedia.com/showcase-friday-sun-yuan-e-peng-yu/>

IGN BRASIL. Nenhuma obra de arte jamais me afetou emocionalmente da mesma


maneira: conheça o robô que precisa sem parar. Disponível em:
<https://br.ign.com/tech/115333/news/nenhuma-obra-de-arte-jamais-me-afeto
u-emocionalmente-da-mesma-maneira-conheca-o-robo-que-precisa-sem\>

BOURRIAUD, Nicolas. Estética Relacional


ARTEFODA. Existencialismo. Disponível em:
<https://artefoda.wordpress.com/tag/existencialismo/>\

PLAZA, Julio. Arte e Interatividade. Disponível em:


<https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/7296849/mod_resource/content/1/PL
AZA_Julio_Arte_e_Interatividade_autor.pdf\>

Revista Valise. Disponível em:


<https://seer.ufrgs.br/RevistaValise/article/download/67789/4376\>

Ana Carolina de Felice. Título da Relatória de Julio Plaza. Disponível em:


<https://www.dropbox.com/home/TURMA%202%20TARDE/Relatorias?di=left_n
av_browse&preview=Relatoria+-+Julio+Plaza.pdf\>

Diggit Magazine. Disponível em:


<https://www.diggitmagazine.com/papers/can-t-help-myself-how-relatable-ro
bot-offers-critical-reflection-modern-society#:~:text=The%20artwork%20repre
sents%20the%20pain,be%20thought%2Dprovoking%20and%20confrontational.
\>
Infopedia. Disponível em:
<https://www.infopedia.pt/apoio/artigos/$mito-de-sisifo\>

Tales of Our Time - Sun Yuan, Peng Yu. Guggenheim. Disponível em:
<https://www.guggenheim.org/video/sun-yuan-peng-yu-tales-of-our-time\>

Robô dançarino do Guggenheim perde a alegria após 5 anos e comove redes sociais.
Gizmodo. Disponível em:
<https://gizmodo.uol.com.br/robo-dancarino-do-guggenheim-perde-a-alegria-
apos-5-anos-e-comove-redes-sociais/>

Renacha S. Batista. Relátoria de Arthur Danto. Disponível em:


<https://www.dropbox.com/scl/fo/z8j729qkpdnm234g64jmb/h/Relatorias?dl=0&
preview=RELATORIA+-+RENACHA+222020328+(TRES+MANEIRAS+DE+PENSAR+
SOBRE+A+ARTE).pdf&subfolder_nav_tracking=1>

DANTO, Arthur. Três maneiras de pensar sobre a arte. In: DANTO, Arthur. O abuso
da beleza: a estética e o conceito de arte. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes,
2015.

Você também pode gostar