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Universidade Federal de Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)

Roberto de Oliveira Serra Filho

Limonada, imagens, arte e emancipação

“Pegue meio litro de água, acrescente


220 gramas de açúcar, o suco de oito limões e raspas de
um limão. Passe a água para um recipiente e depois para
outro, várias vezes. Coe por um pano de prato limpo”.

RIO DE JANEIRO
2023
Em 2016, a diretora Beyoncé em associação com o canal de TV estadunidense HBO,
exibiu seu filme chamado “Lemonade” que, entre diferentes temáticas, se concentra em tecer
duras denúncias sobre a marginalização e a violência sofridas por pessoas pretas. Como
resultado, a artista recebeu algumas críticas negativas em relação ao tom político de sua obra.
No longa acompanhamos a figura dessa mulher negra que possui camadas, onde são
exploradas facetas de sua personalidade se mostrando frágil e transgressora. Essa mulher
transita entre cenários importantes para a cultura negra norte-americana. Chegando até a
Nova Orleans destruída pelo Furacão Katrina. Dessa forma, questionando e denunciando a
falta de responsabilidade das autoridades com os bairros negros da cidade que não foram
evacuados durante o desastre, diversos críticos indicam que o uso de “certas imagens” seria
apelativo, apenas com o intuito de choque. Mas, seriam as imagens e as artes, em geral, feitas
apenas para agradar e satisfazer esteticamente os olhos de quem as consome?
As imagens reveladas e impressas no papel ganharam bastante espaço na forma como
a sociedade e o indivíduo pensam sua própria subjetividade. Susan Sontag, em sua obra
“Sobre a Fotografia”, discute como a fotografia mudou a forma como entendemos o mundo.
Nele, a autora destaca o valor documental que a fotografia possui, porém revela também
como a mesma pode ser manipulada e alterada para, dessa forma, ganhar um novo
significado. A fotografia, portanto, não apenas seria um registro objetivo da realidade , como,
também, uma forma de arte que pode ser usada para transmitir uma mensagem ou uma ideia.
"As fotografias são uma forma de aprisionar a realidade... Não se pode
possuir a realidade, pode-se possuir imagens, não se pode possuir o presente, mas pode-se
possuir o passado." (SONTAG, 2004)
Sob esse prisma, é inegável que a fotografia enquanto arte possui um poder
transformador social e político. Walter Benjamin, em "Pequena História da Fotografia"
investiga a história da fotografia e seu impacto na sociedade. A partir de análises, chega à
conclusão de como a invenção da fotografia transformou a forma como percebemos e
representamos a realidade. Benjamin argumenta que “a fotografia tem uma capacidade única
de capturar momentos fugazes e preservá-los de forma tangível além de seu valor
documental”, mostrando as maneiras pelas quais ela pode ser manipulada para fins
políticos.(BENJAMIN, 1993)
Walter também se atentará para os aspectos físicos e materiais da fotografia e que
esses colaboram para a sua multiplicação, transformando-a numa espécie de arte democrática
em algum nível. O autor discorre sobre sua diferença com outros tipos de arte, como a pintura
e a escultura, mostrando como essas formas estão presas a habilidades manuais, criativas e ao
um conceito de “unidade”, enquanto a fotografia tem a capacidade de ser reproduzida por
uma infinidade de cópias.
Dessa forma, entendemos a penetração da fotografia enquanto arte que se propaga em
uma velocidade impressionante e que, por ter o valor documental atribuído a sua essência, se
pensada enquanto forma de comunicação, desempenha tal função com ótima desenvoltura,
podendo propagar ideias e pensamentos complexos. Deste modo ela é um bom meio para se
discutir e compartilhar ideais políticos.
Em suma, podemos entender que as imagens trazidas por Beyoncé em Lemonade não
só se validam enquanto recurso narrativo como, também, estão intrinsecamente ligadas a um
papel de emancipação político-social proposto pela autora. Isso pode ser observado em
diversos capítulos do filme, a exemplo disso, durante o capítulo “Ira” temos um fragmento do
discurso de Malcolm X "Who Taught You to Hate Yourself?" que funciona, não só como uma
forma de transmitir o sentimento da personagem principal, mas também possui um teor
político-social claro.
Nesse contexto, na obra “O Espectador Emancipado”, Rancière discute essa relação
entre arte, política e emancipação. Ele argumenta que a arte tem um potencial de desafiar as
estruturas de poder e de transformar a percepção que as pessoas têm do mundo. Nesse
sentido, o cinema tem um papel importante na política, pois permite a reprodução em massa
de imagens que podem ser utilizadas para desafiar as narrativas dominantes e promover
ideologias alternativas. O que acontece em “Lemonade” seria justamente isso, pois temos
imagens e a arte confrontando a narrativa predominante e além disso, buscando um novo foco
narrativo contando a história de pessoas antes ignoradas pela sociedade, durante o capítulo
“Reformação” no longa, somos apresentados a figuras de mulheres vestidas de branco
caminhando em uma fila sob o oceano, aludindo ao suicídio em massa de africanos
capturados em Igbo Landing, que escolheram se afogar em vez de uma vida de escravidão.
Além disso, o cinema pode ser utilizado como uma ferramenta de documentação de
manifestações políticas e de movimentos sociais, ajudando a preservar a memória coletiva e a
história das lutas políticas. Rancière então afirma que "a arte não é um objeto ou uma função,
mas uma forma de relação entre os seres e as coisas, uma forma de produzir e compartilhar
formas de visibilidade e de inteligibilidade do mundo e de si mesmo".(RANCIÈRE, 2012)
Portanto, podemos entender que o cinema, assim como outras formas de arte, tem uma forte
relação com a política, pois permite a produção e a disseminação de imagens que podem
desafiar as narrativas dominantes e promover a emancipação das pessoas. E o que Beyoncé
promove em seu longa está intrinsecamente ligado a esse conceito, já que temos o uso da arte
como ponto de partida para a criação de imagens e ideias críticas que confrontam às
narrativas hegemônicas, tendo em vista a emancipação e o empoderamento, isso pode ser
observado em momentos como no capítulo “Ressurreição”, onde a câmera é confrontada por
mulheres negras que seguram em suas mãos fotografias de seus filhos, maridos ou parentes
falecidos, muitas dessas mulheres foram imprescindíveis para a criação do movimento “Black
Lives Matter”, um movimento que busca destacar o racismo, a discriminação e a
desigualdade racial vivida por pessoas negras, que levou mais de quinze milhões de pessoas
às ruas em 2020.
A arte e o seu poder enquanto agente de mudança social também será um tópico
tocado por Alain Badiou, em sua obra “Pequeno Manual de Inestética" Alain oferece uma
perspectiva um pouco diferente sobre a relação entre arte e sociedade. Badiou desafia as
noções tradicionais de estética e propõe uma nova estrutura para a compreensão da arte. Ele
argumenta que “a verdadeira inestética é aquela que rompe com as convenções estéticas
dominantes, criando novas possibilidades para a arte e a sociedade”.(BADIOU, 1998) Badiou
incentiva os artistas a se envolverem em atos radicais de criação que desafiam a
categorização e provocam o pensamento. De certa forma podemos entender o “Lemonade”
como uma consequência desse pensamento de Badiou.
Assim, apesar de suas diferentes abordagens, tanto Benjamin quanto Badiou
enfatizam o poder sócio-político da arte e reconhecem que a arte não está separada do mundo
em que é criada, mas sim reflete e questiona-o, enquanto Benjamin explora a fotografia,
destacando o potencial das imagens para moldar a opinião pública e desafiar as narrativas
dominantes. Badiou em o "Pequeno Manual de Inestética" vai incentivar os artistas a usar
seu trabalho como meio de subverter e romper as estruturas de poder existentes.
Além disso, existe uma relação entre o tempo com a arte no filme “Lemonade”, essa
relação é retratada tanto na releitura de cenários antes escravocratas e que no filme são
reinterpretados e reimaginados como se não o fossem, além da passagem onde temos a
Beyoncé fazendo uma limonada seguindo a receita de sua avó, apresentando através da arte e
de forma sutil como a cultura de um povo antes marginalizado pode ser ressignificada e
reinterpretada com o passar do tempo. Nessa linha de raciocínio, Walter Benjamin vai
afirmar, dessa vez no ensaio “A Obra de Arte na Era de Sua Reprodutibilidade Técnica”, que
a arte pode transcender as restrições da temporalidade de várias maneiras. Benjamin discute
como a reprodução técnica, a fotografia e o cinema, afeta a experiência da arte e sua relação
com o tempo, ele vai dizer que “a reprodução técnica permite que a obra de arte seja
reproduzida e distribuída em massa, rompendo com a noção tradicional de autenticidade e
unicidade da obra de arte”.(BENJAMIN, 1985) Dessa forma, a obra de arte pode ser acessada
e apreciada em diferentes momentos e contextos, transcendendo as restrições da
temporalidade.
Nessa perspectiva, Benjamin argumenta que a reprodução técnica também altera a
forma como a obra de arte é recebida e interpretada. Por exemplo, a fotografia e o cinema
permitem que a arte seja experimentada de forma fragmentada e não linear, desafiando a ideia
de uma narrativa linear e estática, permitindo assim que a arte seja reinterpretada e
recontextualizada ao longo do tempo, criando novas possibilidades de significado e
interpretação. Portanto, a obra de Benjamin e seu conceito de reprodução técnica demonstram
como a arte pode transcender as restrições da temporalidade, permitindo que seja acessada,
apreciada e reinterpretada ao longo do tempo.
Logo, podemos observar como a arte explora e se expande diante das dimensões
social e política, dessa forma, entendemos a importância da arte em desafiar as normas
estabelecidas, documentar a história e moldar a opinião pública, além disso, caso pensemos a
arte a partir de uma simples receita de limonada, podemos destacar sua capacidade de
transcender as restrições temporais.
BIBLIOGRAFIA:

BADIOU, Alain. Pequeno Manual de Inestética. São Paulo: Estação Liberdade, 1998.

BENJAMIN, Walter. Pequena História da Fotografia. São Paulo: Editora Brasiliense,


1993.

BENJAMIN, Walter. A Obra de Arte na Era da Sua Reprodutibilidade Técnica.


Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985.

LEMONADE. Direção: Beyoncé Knowles. Produção de Parkwood Entertainment.


Estados Unidos: HBO, 2016. Streaming HBO Max.

RANCIÈRE, Jacques. O Espectador Emancipado. São Paulo: Editora WMF Martins


Fontes, 2012.

SONTAG, Susan. Sobre a Fotografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

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