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Este ensaio propõe fazer uma análise do ensaio de Catherine Russell intitulado de
Autoethnography: Journeys of the Self (1999), visando compreender o modo como a
ensaísta clarifica-nos para o conceito de autoetnografia. Assim, a partir da filmografia de
cineastas relativos à segunda metade do século XX como Jonas Mekas, Kildat Tahimik
ou Sadie Benning, pretende-se compreender que forma é que “o outro”, ou seja, figuras
que sempre foram vistas como marginais ao longo da história, e retratadas do mesmo
modo no cinema durante quase um século, usaram a sétima arte para contrapor esta visão
“unilateral”, e expressarem a sua própria identidade através de filmes autobiográficos,
ensaísticos e diarísticos.
ABSTRACT
É impossível negá-lo: a questão “como olhar para o outro (?)” é praticamente tão
antiga como a própria invenção do cinema. A interpelação surge desde logo gritante nos
objetos fílmicos relativos aos primórdios da sétima arte, num tempo em que o olhar dos
primeiros realizadores que produziram obras entre o final do século XIX e a primeira
década do século XX ainda não é claro, contudo, já existe uma ânsia pela procura do
“exótico”, e por uma tentativa de compreender uma realidade exterior àquela em que os
cineastas se inserem. Prova disso é que, após a primeira exibição de filmes em sala, em
1895, bastou um ano de experimentação do cinematografo em França para os irmãos
Lumière decidirem enviar técnicos como Felix Mesguish ou Alexandre Pomio para países
como a Turquia, Vietname, Estados Unidos da América, México ou Jerusalém. Em cada
um destes lugares, estes primeiros cineastas itenerantes produziram filmes onde, mesmo
sem voice over ou montagem, demonstram como o olhar ocidental se inscreve nas
diferentes expressões culturais que existem mundo fora.
Russell lembra-nos logo no início do seu texto que esta não é uma ideia totalmente
nova, já que o conceito nasce a partir de ensaístas como Michael Fisher, que utilizam o
termo autobiografia étnica para obras literárias que se caracterizam por serem um modelo
de excelência da etnografia pós-moderna, onde há uma atenção dada ao modo como o
autor se insere no texto, bem como aos diferentes modos de manipulação realizados pelas
estruturas de autoridade vigentes nas sociedades ocidentais. Este novo modo de
autobiografia será transposto, de igual forma, para o cinema e para o vídeo. Russell refere
no seu ensaio que “a autobiografia se torna etnográfica no ponto em que o realizador do
filme ou vídeo compreende que a sua história pessoal está implicada em processos
históricos mais vastos”. Esta história é, naturalmente, relativa a estes novos cineastas, que
não pertencem à elite hegemónica que até então podia fazer cinema, mas sim ao “outro”,
ou seja, à figura marginalizada, estrangeira e “exótica” que adquire agora possibilidade
de autorrepresentação. Assim, torna-se premente colocar a seguinte questão: como podem
estes novos cineastas construir um espelho cinematográfico, libertando-se dos
estereótipos que durante décadas foram percorrendo a história do cinema? E, também, de
que forma é que este cinema expressa a sua individualidade?
1
Citação retirada do seguinte artigo: https://www.cccb.org/en/activities/file/the-ethnographic-mirror-
cinema-anthropology-and-experimentation/237925
2 – Imagem do filme Guiné: Aspetos Industriais e Agrícolas (1929) de Augusto Seara.
Ora, esta visão do “outro” perpetuada pelo cinema, sabemo-lo bem, não existiu
apenas no contexto português. Até aos anos 70 do século XX, estas identidades
marginalizadas (não só os colonizados, mas também as outras identidades marginalizadas
já acima citadas) eram estereotipadas e excluídas dos grandes ecrãs de países
desenvolvidos como os Estado Unidos da América, Europa ou Rússia, não tendo direito
nem possibilidade de se autorrepresentarem no mesmo campo artístico. 2 Os filmes que
Russell invoca no seu ensaio, e a que chama de autoetnográficos, começam por ser uma
resposta a esta redoma ou não inclusão a que estas individualidades foram subjugadas.
2
Um dos excertos mais interessantes em Pele Negra, Máscaras Brancas de Franz Fanon é o momento em
que ele descreve uma ida ao cinema, onde ele refere que “o preto é um brinquedo nas mãos do branco;
então, para romper este círculo infernal, ele explode. É impossível ir ao cinema sem me encontrar. Eu
espero-me. No intervalo, mesmo antes do filme, espero-me. Os que estão à minha frente olham-me, espiam-
me, esperam-me. Um preto-lacaio vai aparecer. Tenho a cabeça às voltas.” FANON, 2017: 137.
que são indissociáveis de um contexto social e histórico específico, marcado por traumas
muito profundos. Ele usa a câmara não só para recordar, mas como um ato de resistência.
Tahimik, tal como Mekas, é outro dos realizadores que irá destacar a história do
seu país, fazendo-o, contudo, de um modo bastante diferente. Russell, a respeito do
cineasta filipino, sublinha no seu ensaio que os seus filmes são “feitos para o mercado
ocidental dos festivais de cinema, mas ele está muito consciente do seu papel de
informador nativo, jogando com a sua figura de modo a colocar em primeiro plano a
inautenticidade do espetador ocidental”. A primeira sequência de Perfumed Nightmare
(1977), a sua primeira obra, que é híbrida na sua forma por misturar elementos ficcionais
com documentais, é um bom exemplo deste ponto. Através da voice-over, Tahimik
descreve-nos uma ponte construída na aldeia onde viveu, e que atravessou várias vezes
ao longo da sua vida. No entanto, o cineasta está pouco preocupado em narrar as suas
memórias, mas sim em contextualizar-nos para a importância social e histórica desta
passagem. Ele conta-nos que a primeira tentativa de construção da travessia foi feita pelos
militares alemães, e que foi feita também uma outra posteriormente pelos soldados norte-
americanos, destacando o facto de ela hoje continuar a ser um caminho onde há cortejos
militares. Numa palavra, o que lhe interessa verdadeiramente é aquilo que esta ponte
representa para a sua comunidade: é metáfora perfeita da complexidade que existe entre
os países do designado “terceiro mundo” e o ocidente, um dos muitos símbolos de
ocupação militar invisíveis para a maioria das pessoas, que continuam a ter impacto nas
práticas comuns dos habitantes destes lugares invadidos. Através do cinema, reflete
acerca da sua liberdade, num país que continua ainda a “cicatrizar” de vários conflitos
militares.
3
A entrevista poderá ser vista no seguinte link: https://www.youtube.com/watch?v=DaVPhWviym0, no
minuto 13:00.
algo associado aos vídeos, à fotografia, e ao cinema”. Por outras palavras, importa-lhe
sublinhar as questões estéticas e formalmente disruptivas destes novos cineastas, que
devem ter tanta ou mais importância que as temáticas que os filmes abordam. São obras
de caráter ensaístico, com uma componente fortemente diarística, e que usam em muitos
casos uma montagem não-linear. Todas elas, de um modo ou de outro, quebram as noções
que havia até então de tempo fílmico, questionam o que é um plano ao dividirem-no no
mesmo quadro, interpelam-nos para a separação entre autor e espetador ao olharem
diretamente para a câmara e ao fazerem questões ao “contra-campo”, etc.
Sadie Benning é uma das cineastas citadas pela ensaísta que melhor exemplifica
esta disrupção estilística. Durante a sua adolescência e início da fase adulta, poucos anos
antes da chegada da internet, ela anteviu aquilo que seria banal ao realizar vários filmes
em sua casa, expondo o seu quotidiano, filmando com câmaras de brincar da Fisher Price
com pouquíssima resolução, fazendo montagens inusitadas para mostrar, por exemplo,
como é ser uma jovem homossexual nos E.U.A. Um excerto de A Place Called Lovely
(1991), descrito por Russell, é disso exemplo:
a cassete que fala mais explicitamente sobre a sua infância, abre com
alguns desenhos de crianças, sugerindo que a pixelvisão é o equivalente
tecnológico de um estilo primitivista de representação. A cassete foi feita
quando ela tinha dezoito anos e Benning assume a voz da infância,
identificando-se com as crianças americanas em geral. Fala-nos de um
colega de sete anos que lhe agarrou no cabelo e a perseguiu até um beco.
Ela riposta-lhe, dispara contra a câmara, mas uma nota rabiscada diz que
ela ainda estava assustada, e corta para um clip de Psycho.
Publicações:
AMIEL, Vincent. Estética da Montagem, Lisboa: Edições Texto & Grafia, 2016 CHION,
FANON, Frantz. Pele Negra, Máscaras Brancas, Lisboa: Letra Livre, 2017
Referências Online
Filmografia