Você está na página 1de 14

R V O

Andréa França
Crítica de cinema. Doutoranda em Comunicação pela UFRJ.

Liliane Heynemann
Crítica de literatura e cinema. Pesquisadora do Núcleo N – Imagem da
ECO/UFRJ. Doutora em Comunicação pela UFRJ.

Cinema Moderno no
Brasil de 1968

A
presente reflexão gentes nesse período, utilizan-
pretende centrar-se do o cineasta Glauber Rocha
nas questões susci- para pensar a violenta ruptura
tadas pelo cinema brasileiro dos com a explorada imagem do
anos de 1960/1970, tendo como Brasil cordial no cinema. No
horizonte o marco histórico de 1968. Op- segundo, “Um cinema antropofágico”,
tamos por um texto que ao incorporar Liliane Heynemann realiza uma análise
duas abordagens do mesmo tema propor- comparativa entre o cinema novo e o ci-
ciona leituras simultaneamente múltiplas nema marginal, cujo ponto nodal é a
e complementares. Desse modo, o mani- filiação à literatura modernista e o
festo de Glauber Rocha, que contém os agenciamento de enunciados coletivos de
pressupostos da estética cinemanovista, nacionalidade.
é o ponto de partida comum para produ-
zir um pensamento sobre o cinema do
A ESTÉTICA DA VIOLÊNCIA COMO

PEDAGOGIA

O
período, capaz de disseminar a inquietude
e ousadia que moveram sua criação. No texto-manifesto Uma estética
primeiro tópico, “A estética da violência da fome , escrito em 1965 a
como pedagogia”, Andréa França faz uma bordo de um avião entre Los
breve análise das forças estéticas emer- Angeles e Milão, lança os fundamentos

Acervo, Rio de Janeiro, v. 11, nº 1-2, pp. 87-100, jan/dez 1998 - pág.87
A C E

estéticos e políticos do cinema novo bra- teórico-crítica da cinematografia recente


sileiro. Se poucos anos antes, obras-pri- e incita a criação de um imaginário ver-
mas como Vidas secas (Nelson Pereira dos dadeiramente ‘nosso’. O entusiasmo do
Santos), Deus e o diabo na terra do sol início da década reflete-se na experiên-
(Glauber Rocha) e Os fuzis (Rui Guerra) cia de Cuba, onde Che Guevara e Fidel
já faziam parte do panorama Castro tornam-se os líderes imediatos e
cinemanovista, o manifesto de Glauber referência máxima na construção de uma
discute intensamente a história da Amé- outra civilização no cerne do capitalismo.
rica Latina — a situação primitiva de de-
Assim, a jovem geração do cinema novo
pendência cultural do Terceiro Mundo, de
empreende sua estratégia de guerrilha,
modo a formular uma síntese teórico-es-
sua lógica de resistência ao colonialismo
tética para esse novo momento do nosso
ianque, cujo sentido se faz no
cinema:
revezamento sistemático das funções que
De Aruanda a Vidas secas , o cinema envolvem a produção de um filme (pro-
novo narrou, descreveu, poetizou, dis- dução, distribuição e direção), e na ne-
cursou, analisou os temas da fome: cessidade concreta de “poucas pessoas
personagens comendo terra, comendo em pontos cruciais, (...) for mando uma
raízes, roubando para comer, persona- rede que potencializa esforços isolados”.2
gens sujas, feias, descarnadas (...) foi A idéia seria fomentar, no Brasil, um mo-
esta galeria de famintos que identificou vimento que integrasse política e estéti-
o cinema novo com o miserabilismo tão ca, cinema e revolução. Como démarche
condenado pelo governo e pela crítica dessa empreitada, produz-se uma troca
(...) o cinema novo não faz melodra- sistemática de correspondências que irão
mas. 1 mapear a própria geografia do cinema

Amplamente discutido, traduzido e reto- novo: “Glauber entre o Rio e a Bahia; Jo-

mado, esse texto-manifesto condiciona e aquim Pedro de Andrade na Europa; Pau-

é condicionado brutalmente pelo encami- lo César Sarraceni na Itália; Gustavo Dahl

nhamento da cultura, das artes e da polí- entre Roma e Paris; no Rio, Cacá Diegues,

tica no Brasil dos anos de 1960. Trata-se, Nelson Pereira dos Santos, Davi Neves,

sem dúvida, de uma contrapartida estéti- Leon Hirszman...”. 3

ca para o impasse da experiência históri-


Essa articulação obstinada entre pontos
ca brasileira. A miséria e a escassez de
isolados permite um circuito bastante in-
recursos transfor mam-se aqui em força
tegrado entre Europa, Rio de Janeiro e
revolucionária expressiva, para injetar a
Bahia, e promove a gênese de um acon-
questão social e a questão do povo no
tecimento internacional bastante sintoni-
cinema moder no brasileiro.
zado com o desejo de transformações
Glauber promove uma veemente análise políticas e estéticas do período.

pág.88, jan/dez 1998


R V O

De fato, a partir do surto industrial da desenvolvimentista. Durante a década de


década de 1950, implementa-se uma po- 1950 e o início dos anos de 1960, “bos-
lítica de investimentos vultosos na indús- sa-nova, teatro Arena, tropicalismo, cine-
tria cinematográfica e televisiva brasilei- ma novo e CPC da UNE eram tendências
ra, bem de acordo com o otimismo social que congregavam grupos de produtores
e técnico propalado. O curto e ‘pomposo’ culturais animados, se não por uma ide-
período de vida da produtora de filmes ologia de transformação do mundo, pelo
Vera Cruz, em São Paulo,4 é concomitante menos por uma vontade de mudança”.6
aos subsídios dados à emergente indús-
É dentro desse contexto que a idéia de
tria da televisão, cujo modelo neo-
‘cinema de autor’ ganha relevância. Para
iluminista implicou uma relação estreita
fazer frente ao cinema comercial, aos pa-
com as elites do país. 5
drões mercadológicos da linguagem con-
O cinema novo — e é importante regis- vencional — a imagem televisiva ainda
trar que sob esse coletivo identitário ha- não é problematizada —, o cinema novo
via propostas estéticas bem distintas — propõe “registrar o momento histórico,
recusa essa imagem de falsa moder niza- político e social da nossa era sem mistu-
ção associada ao impávido e retumbante rar tintas para agradar”.7 Nos textos de
‘milagre econômico’, e formula um espa- Glauber, percebe-se claramente que a
ço crítico distanciado da retórica postura de oposição à indústria do cine-

Cena de Macunaíma , de Joaquim Pedro de Andrade, 1971. Arquivo Nacional.

Acervo, Rio de Janeiro, v. 11, nº 1-2, pp. 87-100, jan/dez 1998 - pág.89
A C E

ma dominante é mais uma estratégia do ca saída digna para essa atividade. Um


que uma pragmática ingênua. A questão ano antes, Glauber escreve para o amigo
“como ‘comunicar’ o povo ao povo?” e cineasta Paulo César Sarraceni:
per meia, sintomaticamente, as discus-
“Tenho agora que escrever muito, por-
sões, as entrevistas, os manifestos, os
que esta crítica está demitida, falida,
artigos, as correspondências e a imagem.
aniquilada pela burrice. O Brasil é um

Certamente, o crítico e teórico francês país morto-vivo, onde poucos homens

Andre Bazin já havia afir mado que o ci- pensam e fazem (...). Não existe sufici-

nema é uma arte impura. E é como tal ente consciência crítica para que se faça

que o ‘cinema de autor’, no Brasil, pre- uma revolução”.10

tende consolidar-se, ou seja, “como uma Neste sentido, o cineasta vai empreender
indústria, com nova mentalidade, onde o um brutal e selvagem embate contra a
diretor teria liberdade de criação” e não imagem do Brasil cordial de Sérgio
como arte artesanal que “seria alienação Buarque, contra o cinema colonizado e
do ponto de vista sociopolítico”, pois, se- esteticamente cordial.
gundo Glauber, a segunda estaria “ligada
Glauber afir ma, dentro de uma lógica
a preconceitos culturais colonialistas do
impertinente, que “o autor é o maior res-
cinema americano ou europeu”. 8
ponsável pela verdade; sua estética é uma
Assim, o manifesto Uma estética da fome ética, sua mise-en-scène é uma política”.
impõe, explosivamente, uma estética de Mise-en-scène é uma noção que adquire
ruptura com o cinema tradicional estran- relevância a partir do contexto histórico
geiro, uma estética da violência que fun- da crítica francesa, dentro do movimento
daria um ‘nós’ radicalmente distinto do da “política dos autores”. 11 O cineasta,
‘eles’. De fato, a obra de Glauber é a que sintonizado com as propostas estéticas,
melhor sintetiza essa tônica de um corte as teorias e as críticas do cinema euro-
radical na estética colonizada e subdesen- peu, formula, com essa noção, a necessi-
volvida do cinema brasileiro. Sua crença dade de um corpo a corpo com o real,
impetuosa neste corte político-histórico com o Brasil não representado pelas ins-
é condição para fazer da crise uma peda- tituições políticas e audiovisuais. É inte-
gogia e uma estética da violência. Glauber ressante, nessa perspectiva, lembrar o fil-
é um “agente de ruptura e, como tal, é me O cangaceiro (Lima Barreto, 1953),
também um inventor de tradições”. 9 cuja premiação, em Cannes, como ‘me-
lhor filme de aventuras’ não deixa dúvi-
Na sua Revisão crítica , de 1963, ele vol-
das sobre a receita até então adotada.
ta-se angustiado para a memória do nos-
so cinema, tomado pela crença desespe- Assim, o cinema novo rejeita furiosamente
rada na reconstrução, na fundação de uma o cinema brasileiro existente — as chan-
nova tradição cinematográfica como úni- chadas, as comédias musicais —, de

pág.90, jan/dez 1998


R V O

modo a afirmar uma representação em ticos evidentes — sem dúvida, já é o ci-


crise e o desejo vigoroso de romper com nema marginal brasileiro avant la lettre .
o imaginário sucateado pelo filme estran-
Como já foi sublinhado em outros estu-
geiro-americano. O pensamento político
dos, o manifesto Uma estética da fome
e trágico da cultura, da religião e das ar-
é, de certo modo, profético com relação
tes caminha, lado a lado, entre a necessi-
aos rumos marginais que seguiria nosso
dade do corte radical com o passado e a
cinema no começo da década seguinte.13
necessidade de uma fundação renovado-
A postura nitidamente à margem do bom
ra das tradições. “É necessário dar o tiro
acabamento das fitas e a atração da
no sol...”.
câmera pelas situações aversivas, violen-
Em 1968, ou seja, depois de obras máxi- tas e sem justificativas, traduzem-se nas
mas como Barravento (1961), Deus e o próprias palavras de Glauber: Câncer “é
diabo na terra do sol (1964) e Terra em uma brincadeira de amigos”.
transe (1965), Glauber realiza o filme De fato, este filme, além de mostrar a
Câncer , uma experiência marginal, des- temática das drogas, do racismo, da vio-
cuidada e pouco analisada pelos teóricos lência sexual e psicológica, do vazio exis-
e críticos de cinema, salvo algumas exce- tencial das classes médias urbanas na
ções. 12
O que interessa, aqui, é de que relação com a favela, marca o início de
modo o cineasta, com esta fita, dá início uma interatividade cada vez maior do ci-
aos filmes de temática urbana, despren- neasta com a imagem. A câmera trans-
didos da expectativa da boa composição forma-se aqui num personagem que vê e
e descomprometidos de conteúdos polí- se afeta, ouve participante e também pro-

O diretor Julio Bressane em 1972. Arquivo Nacional.

Acervo, Rio de Janeiro, v. 11, nº 1-2, pp. 87-100, jan/dez 1998 - pág.91
A C E

voca. “Dr. Zelito, sua mãe pariu quarenta lência do carioca, no final dos anos de
filhos!”, grita, por trás da câmera, um di- 1960, sob a ditadura militar. Esse momen-
retor-personagem histriônico. “Cala a to do filme faz ecoar as primeiras ima-
boca, Glauber”, responde o ator-persona- gens de A grande cidade , do diretor Cacá
gem Zelito. Diegues (1966).

Câncer pontua, como foi bem destacado, Nos dois filmes percebe-se a proposta de
o começo do percurso glauberiano de criar situações urbanas improvisadas, em
abandono gradual da direção e do rotei- que ator e personagem — não é casual
ro, em prol de um ‘cinema ao vivo’, de que seja Pitanga nas duas fitas — se con-
um cinema de imagens diretas, de cenas fundem no processo de filmagem, de
de rua, hoje totalmente banalizadas pe- modo a interagir com o evento registra-
las reportagens de televisão. 14
Basta do. Em ambos, a cidade do Rio de Janei-
lembrar mo-nos do ator Antônio Pitanga, ro transforma-se num palco, onde o ato
ainda anônimo, caminhando aflito pelas de filmar está extremamente presente e
ruas do centro do Rio pedindo emprego conta com a participação do público que
aos transeuntes — trata-se de um docu- passa. No entanto, no filme de Cacá, esta
mento sobre a camaradagem e a benevo- participação é bastante passiva e aconte-

Cena do filme Os inconfidentes, de Joaquim Pedro de Andrade, com José Wilker no papel de Tiradentes,
1972. Arquivo Nacional.

pág.92, jan/dez 1998


R V O

ce somente no início. a presença sonora, ruidosa e agressiva do


cineasta na imagem.
No caso de Câncer , essa incitação ao im-
proviso está presente em cada situação “Mas o povo não entende, o povo vaia e
que compõe os 27 planos do filme (e cada apedreja, e eu fiz para o povo — imagine
plano dura 12 minutos, que é o tempo de que mito besta é o povo”, lastima Glauber.
capacidade dos chassis utilizados), e os Sem dúvida, imagem e escrita, em
conflitos que se engendram em cada uma Glauber, isto é, ‘cinema’ e ‘grafia’, são
delas não são jamais explicados ou com- permanentemente atravessados pelo vi-
preendidos. A atriz Odete Lara discorre olento desejo de reconstrução e
longamente sobre sua condição financei- renascimento. Se o povo não existe, é
ra instável, suas frustrações sexuais e pro- necessário fundá-lo na sua dor e barbárie,
fissionais, desejos mal compreendidos, criar uma fabulação comum capaz de for-
enfim, sobre a condição feminina. Discur- çar o insuportável até o seu limite. Esté-
sos de longa duração de personagem e tica da fome, estética da violência. A pe-
atriz imbricam-se sem distinção possível. dagogia de Glauber Rocha eleva a dor bra-
Hugo Carvana — cujo personagem é um sileira a uma incômoda positividade.
bandido bem relacionado — escuta a
amiga, dá respostas delirantes ao mes-
UM CINEMA ANTROPOFÁGICO

A
mo tempo que fuma um cigarro de maco- cena cultural brasileira do iní-
nha. Percebe-se claramente que tanto os cio da década de 1960 foi
atores como os personagens improvisam marcada pela eclosão de um
até a diluição total da obscura trama. movimento artístico de tamanha vitalida-
de — o cinema novo —, o qual só encon-
De fato, essa experiência radical de des-
tra paralelo na Semana de Arte Moderna
medida e estiramento do tempo, de aban-
de 1922, que inaugurou o modernismo
dono do roteiro, de negligência do espa-
no Brasil, cuja literatura e pressupostos
ço físico e do som, encontra ressonânci-
estéticos e políticos seriam atualizados
as tecno-históricas na novidade dos gra-
pela cinematografia nascente.
vadores de som acoplados diretamente às
câmeras leves, propulsores da Embora alguns autores situem
interatividade do registro como aconte- embrionariamente o cinema novo em
cimento. É a noção de tempo real, nasci- meados da década de 1950, com Rio, 40
da com a televisão, a empreender um graus, de Nelson Pereira dos Santos, 15 foi
outro modo de filmagem, um outro modo no período compreendido entre 1960 e
de pensar cinema no Brasil. A infindável 1975 que cineastas como Glauber Rocha,
e incômoda duração de cada plano adici- Joaquim Pedro de Andrade, Paulo César
ona mais realidade a um real por si só Sarraceni, Carlos Diegues e Leon
intolerável política e historicamente. Daí Hirszman, entre outros, realizaram com

Acervo, Rio de Janeiro, v. 11, nº 1-2, pp. 87-100, jan/dez 1998 - pág.93
A C E

seus filmes uma verdadeira revolução es- cia política imediata, uma ‘irrealidade’
tética na produção artística do país. messiânica e libertadora.

O termo ‘revolução’ não é usado aqui de Como na maioria dos movimentos artís-
forma arbitrária, mas pretende sugerir os ticos, a produção cinemanovista consti-
sentidos mais imediatos evocados por seu tuiu um universo para onde convergiram
enunciado: ‘vanguarda’, ‘história’, ‘utopia’, tanto a identidade de projetos como a
‘combate’, presentes no já mencionado diversidade entre os cineastas que a en-
texto-manifesto Uma estética da fome , gendraram. A própria obra de Glauber
que Glauber Rocha escreveu em 1965 e Rocha reúne essas instâncias, sendo um
apresentou em Gênova no Seminário do cinema profundamente autoral e ao mes-
Terceiro Mundo: mo tempo um lugar de atualização do
pensamento do cinema novo.
Onde exista um cineasta disposto a fil-

mar a verdade e a enfrentar os padrões As diferentes estratégias com que os ar-


hipócritas e policialescos da censura; aí tistas operaram o modelo estético-políti-
haverá um germe vivo do cinema novo. co desse pensamento construíram cine-
Onde exista um cineasta disposto a en- matografias que funcionaram, no recorte
frentar o comercialismo, a exploração, do projeto em que se inscreveram, como
a pornografia, o tecnicismo, aí haverá verdadeiras produções autônomas. É as-
um ger me do cinema novo. Onde exis- sim, por exemplo, que pode ser pensada
ta, enfim, um cineasta disposto a colo- a vigorosa obra de Joaquim Pedro de
car seu cinema a serviço das causas Andrade. Do filme-síntese modernista
importantes de seu tempo, aí haverá um Macunaíma (1969), passando por O pa-
ger me do cinema novo. 16 dre e a moça (1966) e Os inconfidentes
(1972), Joaquim Pedro revitalizou as re-
Em 1971, na Universidade de Columbia,
lações entre imagem literária e imagem
sob o impacto das medidas obscurantis-
fílmica, ironizou a tradição do filme his-
tas agenciadas pelo regime militar, que
tórico e, sobretudo, apresentou ao país
marcaram o ano de 1968 no Brasil — o
um complexo espelho de si, jamais
‘golpe dentro do golpe’ —, e após a reali-
totalizante ou apaziguador.
zação, em 1966, da obra-prima Terra em
transe , Glauber pronunciou, citando Jor- De fato, o recorrente tema da nacionali-
ge Luís Borges, o discurso A estética do dade, ponto nodal da produção literária
sonho. Nessa comunicação, a idéia de moder nista, é retomado com violência
uma estética da fome é radicalizada, as pelo cinema novo, algumas vezes de for-
origens negras e indígenas da América ma direta, através das adaptações, outras
Latina são erigidas como as únicas for- de forma alusiva, pela conversão de sua
ças desenvolvidas no continente, e a ‘arte poética em escrita fílmica. As ressonân-
revolucionária’ é postulada como potên- cias da literatura modernista no cinema

pág.94, jan/dez 1998


R V O

novo constituem um campo privilegiado formulado por André Parente:


de reflexão sobre o problema simultane-
Não havia realidade comum
amente arcaico e atual que vincula arte e
preexistente à obra de Glauber. Isto é,
política, levando-se em consideração a pas-
a realidade era inventada e reinventada
sagem literatura/cinema, que se manifesta
sem cessar, e, como num passe de
nos períodos de repressão política.
mágica, o mundo se tornava sua pró-
Podemos dizer, com alguma ironia, que o pria imagem. Nesse sentido, Glauber é
cinema novo manteve com o modernis- nosso Fellini. Quando vemos um filme
mo uma relação propriamente de Fellini, dizemo-nos “nós somos isso,
‘antropofágica’, de incorporação sem de- esse filme somos nós”. A realidade e o
voção, garantindo desse modo seu proje- cinema comparecem ao nosso encon-
to fundador. Oswald de Andrade disse que tro: tudo se coagula numa única reti-
“estamos comendo uma civilização, pois na.18
somos fortes e vingativos”, e Glauber, por
Ao trabalhar com a questão da nacionali-
sua vez, postulou uma “violência de fa-
dade através de imagens fílmicas, os di-
mintos” distante do “velho humanismo
retores do cinema novo operaram instân-
colonizador”. Glauber negou-se a falar de
cias que dizem respeito às
estética, pois “a plena vivência não pode
potencialidades do cinema, ao tipo espe-
sujeitar-se a conceitos”. Quase cinqüen-
cífico de recepção estética que o cinema
ta anos antes Oswald disse: “O contrape-
suscita, a problemas como individual/co-
so da originalidade nativa para inutilizar
letivo, real/ilusório. Pois a própria natu-
a adesão acadêmica. A reação contra to-
reza do filme, como nos ensina Rogério
das as indigestões de sabedoria. O me-
Luz, é paradoxal, proporcionando a “sus-
lhor de nossa tradição lírica. O melhor de
pensão provisória do conflito entre aspec-
nossa demonstração moderna”. 17
tos subjetivos e objetivos da experiência
A tentativa de traduzir o país em imagens, para criar entre eles uma ponte, um lu-
que mobilizou a literatura moder nista e gar por onde transitar”. 19
o cinema novo, revelou desde sempre sua
Tal como a idéia de nacionalidade, ‘inter-
possibilidade mais criadora: a de que o
minável’, simultaneamente fantasmática e
país pudesse se constituir nessas ima-
encarnada, em que vivenciamos um devir,
gens, nascendo e renascendo da arte que
assim é a percepção no cinema:
o inventa, sendo o trágico combate na
aridez de Deus e o diabo na terra do sol O espectador mantém-se no terreno do
ou a festa anárquica de Macunaíma. Esse indeterminado para experimentar algo

reconhecimento de si, dado por imagens que se localiza e se processa no limite


que desvelam mundos possíveis, sem re- entre o que lhe é exterior e o que inte-
duzi-los a enunciados-clichês, é assim gra sua vivência pessoal: a suspensão

Acervo, Rio de Janeiro, v. 11, nº 1-2, pp. 87-100, jan/dez 1998 - pág.95
A C E

dessa diferença é o que per mite que o Paulo Emílio Sales Gomes, José Carlos
filme seja objeto de uma experiência Avelar e Ismail Xavier, entre outros, ins-
atual. Nessa diferença, o indivíduo-es- tauraram um autêntico corpus paralelo re-
pectador é ou pode ser ‘processado’ lacionado à filmografia apresentada, e
como cine-sujeito, como sujeito comum com a qual mantiveram uma ligação pe-
de um devir cinematográfico. 20 culiar que chamaríamos de ‘tradução mi-
litante’, cuja influência ainda se faz pre-
Dessa forma, podemos pensar as expres-
sente na produção crítica mais recente.
sões do cinema nacional, em grande par-
te da filmografia em questão, como algo O ano de 1968 foi particularmente signi-
que, ao não ser concluído, faz emergir ficativo para o cinema nacional. Surgiram
uma verdade transitória, como é seu pró- filmes como Câncer , de Glauber Rocha,
prio objeto. Essa “força revolucionária a enquanto O dragão da maldade contra o
ser construída”, na bela for mulação de santo guerreiro, do mesmo diretor, come-
Gilles Deleuze, 21 ilumina a compreensão çava a ser realizado; foram filmados ain-
de um projeto que aglutinou com raro da Fome de amor, de Nelson Pereira dos
talento arte e política. Santos; Brasil ano 2000, de Valter Lima

No entanto, como já assinalamos, a Jr.; Macunaíma , de Joaquim Pedro de

multiplicidade estética produzida pelo ci- Andrade e Os herdeiros, de Cacá Diegues.

nema novo não se presta a análises Mas 1968 marca sobretudo a eclosão de

generalizantes. Cineastas como Rui Guer- uma cinematografia dissidente que iria

ra, Nelson Pereira dos Santos e Leon polemizar com o cinema novo, e cuja de-

Hirszman, para citar apenas alguns, soli- nominação é recusada por alguns auto-

citam leituras que levem em considera- res que questionam sua radicalidade, bem

ção a singularidade de suas produções. como sua especificidade. O cinema mar-

Essa perspectiva, de certa forma, foi a do ginal ou udigrudi , do qual Julio Bressane

próprio pensamento teórico que historiou e Rogério Sganzerla são os mais relevan-

o período, uma vez que a exemplo do pro- tes diretores, colocou em questão com

fundo vínculo entre a geração de cineas- grande vigor as idéias de experimentação,

tas e críticos franceses da Nouvelle va- transgressão e vanguarda. Como afirma

gue , juntamente com os Cahiers du Ismail Xavier:

cinéma, as cinematografias brasileiras das


A partir de filmes como Terra em tran-
décadas de 1960 e 1970 possuem como
se ou O bandido da luz ver melha, as
correlatos os textos que buscaram captu-
alegorias se fizeram expressões
rar suas imagens.
encadeadas, ou da crise da teleologia
Esses textos, escritos em parte pelos di- da história, ou de sua negação mais

retores do cinema novo, e por críticos de radical, marcando um corte frente a fi-

cinema como Jean-Claude Ber nardet, gurações anteriores da história, passa-

pág.96, jan/dez 1998


R V O

gem que encontrou seu termo final nas mos “a precisão formal, o rigor das cons-
expressões apocalípticas saídas da nova truções, do enquadre, da montagem, da
geração que rompeu com o cinema trilha sonora”. 23
novo no final da década (...) a perplexi- Tal como no cinema novo, a produção
dade e o sarcasmo se traduzem em es- marginal constitui uma multiplicidade
truturas agressivas (...) ao descartar a estética dentro da unidade do projeto.
feição programática do nacionalismo Além de Bressane, Sganzerla e Andrea
cinemanovista, a nova estética da vio- Tonacci, são considerados mar ginais os
lência traz o desconcerto e faz repen- cineastas Carlos Reichenbach, Artur
sar toda a experiência. 22 Omar, Luís Rosember g, João Trevisan,

Ainda nesse importante ensaio sobre ci- Osualdo Candeias, Ivan Cardoso, Neville

nema novo, cinema mar ginal e de Almeida, Antônio Calmon, José Mojica

tropicalismo, Ismail Xavier indica as prin- Marins e André Luís de Oliveira, entre

cipais características da escrita fílmica em outros.

Bressane e Andrea Tonacci — outro nome Uma ‘estética do lixo’, da ‘tela suja’,
a ser destacado no cinema marginal, au- comumente referida ao tropicalismo —
tor de Bang-bang, de 1970. Convivendo embora alguns diretores, na época, recu-
com a agressão e o sarcasmo, encontra- sassem essa relação —, daria ao cinema

Odete Lara e Hugo Carvana em O dragão da maldade contra o santo guerreiro , de Glauber Rocha.
Arquivo Nacional.

Acervo, Rio de Janeiro, v. 11, nº 1-2, pp. 87-100, jan/dez 1998 - pág.97
A C E

brasileiro filmes como Matou a família e marginais foram cinemanovistas na


foi ao cinema, O anjo nasceu, A família interface que mantiveram com a literatu-
do barulho, Memórias de um estrangula- ra modernista, com o problema de tradu-
dor de loiras, O rei do baralho , de Julio zir em imagens enunciados de nacionali-
Bressane; O bandido da luz ver melha, A dade, com o compromisso político que
mulher de todos, Copacabana mon sua estética anunciava. Mas tal como
amour , Sem essa aranha, de Rogério acontece com a literatura modernista, os
Sganzerla; A margem, de Osualdo grupos — mais do que ‘gerações’ — ope-
Candeias; Jardim das espumas, de Luís ram essas instâncias de formas muitas
Rosemberg; Nosferato no Brasil, de Ivan vezes antagônicas.
Cardoso, além de Câncer, de Glauber Ro-
O cinema novo é nitidamente mais ‘naci-
cha, filme geralmente incluído em mos-
onalista’, no sentido modernista do ter-
tras de cinema marginal — apesar de
mo, mais inscrito numa vertente ‘históri-
Glauber ter sido um dos grandes
ca’ do que o cinema marginal. A obses-
polemizadores com essa vertente cinema-
são formal e o escárnio como únicas pos-
tográfica, denominando-a “intentona
sibilidades, no entanto, não conduzem
udigrudista de 68”.
esse último a um impasse esteticista e
Alguns autores consideram que o cinema estéril, lugar em que desaguaram algu-
marginal radicalizou as propostas iniciais mas experiências da vanguarda desse sé-
do cinema novo, que teriam se diluído nos culo. Além das diferenças, a produção de
anos de 1970, sobretudo no que diz res- pensamento/imagem do cinema novo e do
peito aos esquemas de produção indepen- cinema marginal per manece, estabele-
dente — um ótimo exemplo é a produto- cendo em seu inesgotável repertório de
ra Belair, criada por Bressane e Sganzerla, sentido um presente extenso em que ain-
em 1970 —, e mesmo em termos de frag- da nos reconhecemos.
mentação da narrativa.
Filmografia

Na verdade, com sua recorrência, sempre


- O anjo nasceu, Julio Bressane, 1969
crítica, ao kitsch , à colagem, à ironia da
- Matou a família e foi ao cinema, Julio
citação ao cinema americano e, em alguns
Bressane, 1969
casos, ao universo trash da cultura, o ci-
nema marginal, por um lado, atualizou as - O bandido da luz ver melha, Rogério
aspirações da vanguarda histórica — ao Sganzerla, 1968
diluir as fronteiras entre ‘alta arte’ e ‘cul-
- C o p a c a b a n a , m o n a m o u r, R o g é r i o
tura de massa’ — 24 e, por outro, guardou
Sganzerla, 1970
a especificidade em relação às modalida-
des brasileiras de pensar artisticamente - Sem essa aranha , Rogério Sganzerla,
a nação. Isso significa que os diretores 1970

pág.98, jan/dez 1998


R V O

- Jardim das espumas, Luís Rosemberg, - Os inconfidentes , Joaquim Pedro de


1970 Andrade, 1972

- Bang-bang, Andrea Tonacci, 1967-1968 - Macunaíma, Joaquim Pedro de Andrade,


1969
- Câncer, Glauber Rocha, 1969
- Os fuzis , Rui Guerra, 1963
- Terra em transe, Glauber Rocha, 1967
- Os deuses e os mortos , Rui Guerra, 1970
- O dragão da maldade contra o santo
guerreiro, Glauber Rocha, 1969 - Como era gostoso meu francês, Nelson
Pereira dos Santos, 1971
- Deus e o diabo na terra do sol, Glauber
Rocha, 1964 - A margem , Osualdo Candeias, 1967

- Brasil ano 2000, Valter Lima Jr., 1968 - Nosferato no Brasil, Ivan Cardoso, 1971

N O T A S
1. Glauber Rocha, “Uma estética da fome”, Revista Civilização Brasileira , Rio de Janeiro, julho de
1965.
2. Ivana Bentes (org.), Glauber Rocha : cartas ao mundo, São Paulo, Companhia das Letras, 1997.
3. Idem, ibidem.
4. “O lema da Vera Cruz era produzir caro (...) mas não há dúvida de que, num sentido histórico, a
Vera Cruz precipitou a industrialização do cinema”. Ver Alex Vianny, Introdução ao cinema bra-
sileiro , Rio de Janeiro, Revan, 1993, p. 97.
5. Muniz Sodré, O monopólio da fala, Rio de Janeiro, Vozes, 1978.
6. Renato Ortiz, A moderna tradição brasileira, São Paulo, Brasiliense, 1991.
7. Glauber Rocha, Revisão crítica do cinema brasileiro , Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1963.
8. Idem, ibidem.
9. Ismail Xavier, “O cinema moder no brasileiro”, Revista Cinemais , nº 4, Rio de Janeiro, Ministério
da Cultura e Funarte, abril de 1997.
10. Ivana Bentes, op. cit., p. 178.
11. Para um estudo mais aprofundado do termo mise-en-scène , seu contexto teórico, estético e
político, ver Jean-Claude Bernadet, O autor no cinema , São Paulo, Brasiliense, 1994.
12. Entre outras, gostaria de destacar a pertinência e a atualidade da tese de doutorado, inédita,
de Maria Regina de Paula Mota, A épica eletrônica de Glauber : um estudo sobre cinema e tele-
visão, São Paulo, PUC, 1998. A autora analisa aqui a relação cinema-tevê, de modo a delinear
as novas concepções estéticas que nascem desta junção, utilizando, como objeto, a participa-
ção de Glauber no programa Abertura .
13. Fernão Ramos, Cinema marginal , São Paulo, Brasiliense, 1987.
14. Maria Regina de Paula Mota, op. cit.
15. Cf., por exemplo, Fer não Ramos, (org.), História do cinema brasileiro, São Paulo, Art Editora,
1987.
16. Glauber Rocha, “A estética da fome”, Retrospectiva Glauber Rocha , Rio de Janeiro, Tempo
Glauber/Embrafilme, 1987.

Acervo, Rio de Janeiro, v. 11, nº 1-2, pp. 87-100, jan/dez 1998 - pág.99
A C E

17. Oswald de Andrade, “Manifesto da poesia Pau-Brasil”, A utopia antropofágica, São Paulo, Edito-
ra Globo, 1990, p. 41.
18. André Parente, Ensaios sobre o cinema do simulacro : cinema existencial, cinema estrutural e
cinema brasileiro contemporâneo, Rio de Janeiro, Pazulin, 1998, p. 143.
19. Rogério Luz, “Cinema e psicanálise: a experiência ilusória”, em D. W. Winnicott, Experiência
clínica e experiência estética , Rio de Janeiro, Revinter, 1998, p. 241.
20. Rogério Luz, op.cit., p. 240.
21. Gilles Deleuze e Félix Guattari, Kafka: por uma literatura menor, Rio de Janeiro, Imago, 1977.
22. Ismail Xavier, Alegorias do subdesenvolvimento , São Paulo, Brasiliense, 1993.
23. Ismail Xavier, op.cit., p. 24.
24. Sobre as relações entre vanguarda histórica e modernismo, ver, por exemplo, Andreas Huyssen,
Memórias do modernismo , Rio de Janeiro, Editora UFRJ, 1997.

A B S T R A C T
This article presents the questions suscitated by the Brazilian cinema novo during the sixties and

the seventies, having as reference the historical year of 1968. Thus, the manifest of Glauber Rocha,

which contains the purposes of the cinemanovista esthetics, is the starting point to have an idea
about the cinema of that period.

In “The esthetics of the violence as pedagogy”, it is made a short analysis of the emergent esthetics
forces in this period. In the other topic, “An anthropophagical cinema”, it is formulated a comparative

analysis between the cinema novo and the cinema marginal .

R É S U M É
Cet article a pour but présenter les questions suscités par le cinema novo , pendant les décades de
1960 et 1970, en regardant comme référence l’année historique de 1968. Ainsi, le manifeste de

Glauber Rocha, qui contient les présuppositions de la esthétique cinemanovista , est le point de

départ pour l’étude du cinéma de cette époque.

Dans “La esthétique de la violence comme pédagogie”, on fait une briève analyse des forces qui y

émergent. Dans l’autre topique, “Un cinéma d’anthropophagie”, on fait une analyse comparative
entre le cinema novo et le cinema marginal .

pág.100, jan/dez 1998

Você também pode gostar