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ENTRE A LETRA E A TELA

Literatura, imprensa e cinema na América Latina


(1896-1932)
MIRIAM V. GÁRATE

ENTRE A LETRA E A TELA


Literatura, imprensa e cinema na
América Latina (1896-1932)
© Papéis Selvagens, 2017

Coordenação Editorial
Rafael Gutiérrez, María Elvira Díaz-Benítez,
Antonio Marcos Pereira

Capa
Martín Rodríguez

Imagem de Capa
“A vendedora de jornais”. Fotograma do filme Rien que les heures. 1926.
Direção de Alberto Cavalcanti.

Revisão
Bruno Goularte

Diagramação
Papéis Selvagens

Conselho Editorial
Alberto Giordano (UNR-Argentina) | Ana Cecilia Olmos (USP)
Elena Palmero González (UFRJ) | Gustavo Silveira Ribeiro (UFMG)
Jaime Arocha (UNAL-Colômbia) | Jeffrey Cedeño (PUJ-Bogotá)
Juan Pablo Villalobos (Escritor-México) | Luiz Fernando Dias Duarte (MN/UFRJ)
Maria Filomena Gregori (Unicamp) | Mônica Menezes (UFBA)

[2017]
Papéis Selvagens
papeisselvagens@gmail.com
papeisselvagens.com
Sumário

Introdução 7

Os escritores-cronistas vão ao cinematógrafo 17


Coordenadas de um gênero em ascensão 17
Primeiras viagens 21
Ceci (ne) tuera (pas) cela 41
Ceci (ne) réssuscitera (pas) cela 51

Os escritores-críticos se debruçam sobre o cinema 63


Primeiros balbucios: o cinema que viu Fósforo 64
Da letra como estímulo ao letreiro como obstáculo 77
Da “estética da ação” à estética da subjetivação 81
Um contraponto: Urbina versus Bodet 84

O retorno do pleito mimético 95


Uma escola do crime? Cinema, gênero policial, polícia 97
O contraponto: cinema e educação 101
Uma sala para elas 105
O outro lado do (mesmo) espelho: sedução e cinema 106
Notas para uma tipologia 111

Os “latinos” viajam a Hollywood 127


Viagens vividas (sonhadas) na escuridão 128
A ciranda dos estereotipos 134
Uma viagem, duas versões 136
Astros, figurantes e dublês 144
O regresso 151
Hollywood: novela da vida real 152
Fade in: à maneira de introdução 154
O largo da matriz de Cinelândia 158
Sistematização de uma linha de montagem 161
Fade out 169
Documentários de papel/Crônicas de celuloide 175
Refazendo um percurso 175
Palavra, tipografia, ilustração: interações 183
Repercussões de uma viagem insolente 192

Bibliografia 207
Introdução

Este livro reúne um conjunto de ensaios nos quais se retomam


e expandem questões acerca da relação literatura/imprensa/cinema
na América Latina de finais do século XIX e princípios do século XX,
que vêm me acompanhando há vários anos. Antes de considerar
as linhas de força que norteiam o trabalho, cabe fazer alguns
esclarecimentos sobre aquilo que deliberadamente se buscou evitar:
aproximar literatura e cinema a partir da problemática da adaptação.
Sem desconhecer a crescente sofisticação das reflexões conduzidas
nesse âmbito (limitadas, no passado, à avaliação de supostos graus de
fidelidade ou infidelidade na transposição), ou a precoce reconversão
do repertório literário à linguagem cinematográfica, optou-se por
abrir a indagação para outras formas de interação entre a letra e a
tela inscrevendo-as, de saída, em um horizonte cultural mais fluido
e mais vasto.
O recorte cronológico certamente favoreceu essa variação de
foco: as primeiras projeções do cinematógrafo Lumière, ocorridas
nas principais capitais da América Latina por volta de 1896-1897,
se inserem em um ambiente de modernização que abarca aspectos
urbanísticos, tecnológicos, costumes e consumo. A imprensa
periódica se apresenta como um espaço de mediação privilegiado
que simultaneamente registra e propulsa essas transformações ou
reage diante das mesmas. Os escritores do período, por sua vez,
mantêm uma estreita conexão com esse meio, já que é em jornais,
magazines e revistas que divulgam uma parcela significativa de
sua produção. Materialmente mais resistentes que o celuloide,
e socialmente mais assimilados à paisagem cultural quando do
surgimento do cinema, muitos impressos da época constituem um
testemunho, às vezes único, de modos de perceber, compreender e
reagir perante a irrupção do novo espetáculo. Um espetáculo que
nas três primeiras décadas de existência passa de atração (Gunning,
2006) integrada a outros entretenimentos, tais como feiras e
vaudevilles, à prática autônoma, com linguagens e propostas estéticas
diversas, ainda que uma delas, a estética hollywoodiana, já tivesse se
tornado hegemônica. Transcorrido esse período, o advento do som
coloca outras questões, reorganizando os termos da interação entre
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a palavra (em sua dupla feição oral e escrita) e a tela. Os ensaios


que integram este livro se detêm nesse limiar, concentrando-se no
denominado período silencioso.
O principal ponto de convergência do conjunto de textos
analisados e da leitura aqui proposta é dado pelo motivo da
viagem, presente tanto em crônicas que testemunham a chegada
do cinematógrafo à América Latina e o desenvolvimento do novo
espetáculo durante o início do século XX, quanto em ficções narrativas
que se trasladam à que se constituiria na Meca do cinema, ou em
escritos e filmes que retomam, mas simultaneamente reavaliam, a
tradicional peregrinação às metrópoles do velho continente.
O primeiro capítulo atesta até que ponto desde as primeiras
projeções, e por um longo período, a viagem se apresenta como
uma figuração idônea para representar as sensações e experiências
suscitadas pelo cinematógrafo e para refletir acerca das mesmas –
mas atesta simultaneamente até que ponto essa nova experiência se
vincula a outras práticas que a antecedem, a prenunciam ou coexistem
com ela, configurando uma teia de relações. Evidentemente, o
tópico da viagem possui uma longa história que, para não afastar-
se do tempo e das formas que interessam aqui, é possível reportar
aos guias, relatos ou artigos descritivos publicados em revistas e
magazines que proliferam ao longo do século XIX, visando à múltipla
função de instruir e de distrair um público leitor em expansão, de
aproximar geografias, realidades e hábitos distantes, e de acelerar
a circulação de mercadorias e viajantes cada vez mais céleres em
escala mundial. A crescente incorporação de ilustrações possibilitada
pelo desenvolvimento das técnicas de reprodução (inicialmente,
litografias, fotografias, depois), faz parte desse universo, no qual
a viagem em suas várias acepções e a cultura visual em expansão
se associam intimamente. Estampas, cartões-postais, panoramas,
lanternas mágicas, mas também avenidas, alamedas, parques,
confeitarias, bares, exposições e vitrines, integram uma paisagem
social modernizada à qual as capitais latino-americanas não são
alheias e em que se amalgamam a viagem do sujeito pelos espaços
públicos, a viagem de seu olhar, endereçado tanto aos outros quanto
às coisas, a viagem propiciada por entretenimentos ou espetáculos
específicos e também, é claro, as viagens efetivas em bondes, trens,
navios - não por acaso, imagens onipresentes nas primeiras vistas
Introdução | 9

cinematográficas.1 A crônica urbana, gênero volátil e versátil (Assis,


1859), palavra em viagem que se arroga a função de transportar a
literatura à imprensa cotidiana, adota com frequência um recurso
estruturador homólogo: o da retórica do passeio (Ramos, 2008). A
aceleração e a intensificação da experiência da viagem propiciada
pelas projeções fílmicas representa, portanto, o ponto alto de um
fenômeno mais abrangente. Nesse sentido, a abordagem aqui
proposta é solidária da concepção segundo a qual “a cultura moderna
foi ‘cinematográfica’ antes do cinema” e este “foi apenas um elemento
de uma variedade de novas formas de tecnologia, representação,
espetáculo, distração, consumismo, efemeridade, mobilidade e
entretenimento” (Charney e Schwartz, 2004, p. 20), fato que tornaria
o advento do cinema um processo até certo ponto “inevitável e
redundante” (Ibid., p. 20). Examinar os liames dessa experiência
com práticas prévias e/ou contemporâneas foi o propósito desse
ensaio, no qual se analisam algumas crônicas dos mexicanos Luis G.
Urbina, Manuel López Velarde, Ángel Efrén de Campo Valle, José Juan
Tablada, Enrique Chávarri e dos brasileiros Olavo Bilac e João do Rio,
entre outros.

O segundo capítulo explora alguns desdobramentos e
extensões dessa figura, que dá lugar às primeiras reflexões sobre o
teor da viagem proposta pelo cinema, em relação a outras formas
culturais preexistentes, em particular, o teatro e o romance. Que
especificidades, potencialidades, supostas limitações e eventuais
perigos enxergam os intelectuais do período no espetáculo
cinematográfico?
A leitura de um conjunto de textos que conformam uma
espécie de discurso protocrítico e prototeórico, principalmente
de autoria dos mexicanos Alfonso Reyes e Martín Luis Guzmán,
evidencia o vínculo intenso e ao mesmo tempo problemático que
se institui de início entre a cultura estabelecida, especialmente
a dramaturgia e a ficção literária, e um novo parceiro/rival que
avança à mesma velocidade dos meios de locomoção filmados nas
primeiras vistas. Em pouco mais de duas décadas, a linguagem
cinematográfica transparente (Xavier, 1984) se consolida e disputa

1
O termo vista é empregado na atualidade para denominar e catalogar as primeiras
fitas, caracterizadas inicialmente pela fixidez da câmera - que delega o efeito de
movimento na matéria filmada - e pelo plano único.
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com as outras artes a expressão de uma subjetividade inicialmente


reservada (imaginariamente reservada) à palavra. Em pouco mais
de vinte anos, a câmera se torna um “objeto pensante”, “sonha”,
“expressa uma psicologia”, como sustenta o mexicano Jaime Torres
Bodet em seu artigo sobre O último dos homens (1924), de Murnau,
sem ter necessidade de recorrer ao “palavrório” nem à “literatice”
representada pelas legendas (Torres Bodet, 1925-1926). O ensaio
acompanha as transformações dessa viagem que devém interior,
as primeiras formas de reflexão sobre a linguagem cinematográfica
feitas a partir de um horizonte literário de referência e o papel
desempenhado nesse processo pela instância da letra implicada nas
legendas ou intertítulos.
O terceiro capítulo enfoca os debates suscitados desde
cedo em torno ao papel social do espetáculo cinematográfico, em
decorrência de sua (suposta) força mimética. Escola do crime
econômico ou moral? Eficaz instrumento educativo e de formação?
Meio de evasão compensatório de restrições e tabus sociais?
Propulsor de mudanças na subjetividade e nos comportamentos? A
discussão não é inédita e tem um de seus antecedentes imediatos nas
polêmicas acerca do gênero romanesco. Mas as peculiaridades da
situação cinema (Mauerhofer, 1949), bem como o jogo de projeções/
identificações que parece promover no espectador, acirram o debate
sobre os efeitos do filme na vida, tal como antes ocorrera com o livro.
Inquietações, ressalvas, denúncias e alegações de defesa expressas
em diversas crônicas e notas jornalísticas publicadas no México, no
Chile, no Peru, no Brasil ou na Argentina das primeiras décadas do
século XX pontuam o panorama traçado. As aguafortes dedicadas ao
cinema, de autoria do escritor argentino Roberto Arlt, têm um lugar
de destaque nessa constelação.
O quarto capítulo retoma explicitamente o tópico da viagem,
mas a partir de um conjunto de narrativas ficcionais nas quais as
personagens se deslocam à Meca do cinema: Hollywood. Trata-
se de um dado significativo das letras latino-americanas dos anos
1920-1930, que corre paralelo à expansão da cinematografia
estadunidense, e que possibilita examinar uma série de motivos
comuns a esses relatos: o desvendamento das regras que vigoram
nos grandes estúdios; a descrição de pormenores técnicos e truques
de rodagem; o retrato de tipos que se consolidam por esses anos
(a flapper, o latino sedutor, o rastaquera); a relação mimética das
Introdução | 11

protagonistas com modelos propostos pelo cinema (aparência


física, atitudes, sentimentos); o enredo amoroso (também ele
estreitamente vinculado ao imaginário cinematográfico); o vínculo
afetivo espectador-estrela; o tema do dublê. A leitura encadeada de
quatro narrações serve a essa finalidade: “Una aventura de amor”,
conto publicado no Chile sob o pseudônimo de Boy; “Miss Dorothy
Phillips, mi esposa” (1919), conto do uruguaio Horacio Quiroga; Che
Ferrati, inventor (1923), novela do mexicano Carlos Noriega Hope
e Hollywood: novela da vida real (1932), romance do brasileiro
Olympio Guilherme.
Por fim, o quinto ensaio retoma a tríade imprensa/cinema/
viagem, mas agora sob o prisma de duas realizações experimentais ou
vanguardistas: Pathé-Baby, livro publicado por Antônio de Alcântara
Machado em 1926, com projeto gráfico e ilustrações de Paim Vieira
(parte de cujo material fora publicado previamente na forma de
crônicas de viagem no Jornal do Comércio, acrescido do subtítulo
Panoramas internacionais), e o filme de Alberto Cavalcanti Rien que
les heures (1926), espécie de crônica de celuloide na leitura aqui
proposta. A página do jornal como espaço de montagem, a (pseudo)
reportagem como recurso valorizado pela vanguarda e Pathé-Baby
como narrativa cinematográfica que “corre simultaneamente em
duas pistas” (Xavier, 2001, p. 62), por um lado; e a “fracassada”
sinfonia urbana de Cavalcanti (Grierson, 1932-1924) como
retomada de seções e motivos jornalísticos, por outro, são vistos
como interferências e trocas produtivas entre a letra e a tela, em um
movimento de mão dupla.
Sem dúvida, o último capítulo aponta em direção a um
corpus vanguardista que pode e deve vir a ser objeto de uma leitura
minuciosa, semelhante à desenvolvida nos capítulos precedentes.
Em lugar do exame de textos modernos porém ao mesmo tempo
tradicionais, que instituem uma relação solidária com a linguagem
cinematográfica transparente, o foco desse trabalho incidiria sobre
títulos como La señorita Etcétera (1923), El día más feliz de Charlot.
Cuento cinematográfico en cuatro escenas y un apeoteosis (1927) ou El
amor es así... Cuento cinematográfico (s/d), dos mexicanos Arqueles
Vela, Enrique González Rojo e Xavier Villaurrutia respectivamente,
os Cinco metros de poemas (1927), do peruano Carlos Oquendo
de Amat, ou as Memórias sentimentais de João Miramar (1924) e o
Serafim Ponte Grande (1933), do brasileiro Oswald de Andrade, para
12 | Miriam V. Gárate

mencionar apenas alguns. Fica registrado o aceno em direção a esse


trabalho futuro.
Algumas observações finais com respeito ao corpus
submetido a exame neste livro. De um lado, as escolhas foram
norteadas pelo critério da representatividade, pela apreensão
exemplar de percepções que se cristalizam em lócus consensuais,
em tensões ou núcleos de debate comuns à comunidade letrada.
Sem pressupor influências lineares decorrentes da circulação de
material impresso no sentido centros/periferias, polos de produção/
âmbitos de divulgação e de consumo, é evidente o ar de família que
perpassa os registros das primeiras projeções cinematográficas
nas mais diversas latitudes do planeta. Tanto em Paris como no
México ou em Montevidéu, esses primeiros contatos com as vistas
do cinematógrafo suscitam a impressão de estar diante de um
fragmento de vida (e de poder perpetuá-la pela projeção repetida).
L´ilusion de la vie réel, publicada na França em 30 de dezembro
de 1895 ou El cinematógrafo, publicado na capital mexicana em
23 de agosto de 1896, testemunham esse parentesco, da mesma
forma que as discussões em torno à relação cinema/teatro que se
perfilam à medida que o cinema ensaia uma linguagem própria.
Todavia, ao critério da representatividade se soma com frequência
o dos recursos expressivos empregados por cronistas e escritores
(ou melhor, o mais das vezes, por escritores-cronistas). Se os
textos mencionados formulam basicamente as mesmas ideias, se
ambos celebram o aperfeiçoamento do cinematógrafo em relação
a instrumentos óticos precedentes como o kinetoscópio, se ambos
salientam a dinamicidade das imagens projetadas e seu “tamanho
natural” como fatores de ilusão realista, a escrita do mexicano Luis G.
Urbina, munida do arsenal retórico-estilístico pré-modernista, ensaia
uma transposição da experiência vivida ao plano de uma palavra
que reivindica seu estatuto literário. O emprego bem-sucedido de
procedimentos próprios dessa tradição, que será posta em xeque
pelo advento do cinema, presidiu a escolha em várias ocasiões.
Outras vezes, é a sensibilidade na colocação, desde o horizonte da
cultura letrada, de questões a serem desenvolvidas em profundidade
por artífices e teóricos do cinema (é o caso de alguns artigos de
Fósforo, pseudônimo da dupla mexicana Alfonso Reyes/Martín Luis
Gusmán). Outras, ainda, a eleição decorre da possibilidade de esboçar
o itinerário de processos socioculturais, através de ficções narrativas
Introdução | 13

que circularam em meios com grande poder de penetração à época,


entre as camadas médias e populares.
Por último, se busca estabelecer aqui alguns liames entre
diversas áreas do continente. Os estudos voltados para as relações
entre cultura e cinema do período silencioso se expandiram, durante
os últimos anos, num ritmo acelerado na Argentina, no Chile, no
Brasil, e em menor medida, no Peru e no Uruguai. México possui uma
tradição consistente de pesquisas e de compilação de fontes primárias,
que vem desenvolvendo-se há muitas décadas. Pôr em diálogo
fragmentos desse corpus múltiplo, ainda fortemente ancorado em
critérios e delimitações nacionais, foi um dos objetivos, atitude não
inédita (cabe lembrar, por exemplo, a reunião de textos empreendida
por Jason Borge, em 2005), mas ainda assim, infrequente. A tentativa
não tem qualquer pretensão de completude ou exaustividade, no
sentido de se propor como mapeamento minucioso. Mas explica,
entre outras características do trabalho, as abundantes citações e
traduções, o recorrente emprego do comentário/digressão - “forma
mal integrada pelo discurso do saber”, nas palavras de Barthes
(1992, p. 46) -, como gesto de aproximação. Uma vontade de diálogo
que fala, um pouco, do itinerário de quem assina o livro.
Versões prévias dos ensaios foram publicadas em revistas e/
ou como capítulos de livros em México, Brasil, Chile e Argentina. A
informação encontra-se detalhada na bibliografia. Em todos os casos,
procedeu-se à reformulação dos mesmos, tendo em vista integrá-los
em uma unidade, expandir aspectos que por limitações de espaço
tinham sido insuficientemente desenvolvidos e reelaborar outros
que a passagem do tempo e das leituras foi exigindo paulatinamente.
Os escritores-cronistas vão ao cinematógrafo

Coordenadas de um gênero em ascensão

Em “Voláteis e versáteis. De variedades e folhetins se fez a


crônica”, Marlyse Meyer (1992) destaca a relação existente entre
essas formas escritas e o desenvolvimento do que caberia denominar
uma cultura do entretenimento.2 Reportando-se à matriz francesa,
Meyer acompanha as transformações ocorridas nesse âmbito preciso
da página do jornal que é o rez-de-chaussée (rodapé) ao longo das
primeiras décadas do século XIX, transformações às quais se refere
nos seguintes termos:

Aquele espaço vale-tudo suscita todas as formas e modalidades


de diversão escrita: nele contam-se piadas, se fala de crimes e
monstros, se propõem charadas, se oferecem receitas de cozinha
ou beleza; aberto às novidades, nele se criticam as últimas peças,
os livros recém saídos. E, numa época em que a ficção está na
crista da onda, é o espaço onde se pode treinar a narrativa, onde
se aceitam mestres ou noviços do gênero, curtas ou menos curtas
– adota-se a moda inglesa de publicação em série se houver mais
texto e menos coluna. Título geral desse pot-pourri: Varietés ou
Mélanges, ou Feuilleton. Mas este último, era antes um termo
genérico, designando essencialmente o espaço na geografia do
jornal e seu espírito. Com o tempo, o apelativo abrangente passa
a se diferenciar, alguns conteúdos se rotinizam, e o espaço do
folhetim oferece abrigo semanal a cada espécie: é o feuilleton

2
O vínculo indissociável entre a expansão da imprensa periódica – jornais diários,
revistas, magazines etc.– e uma cultura do lazer e da distração à qual se destina
um número crescente de produtos no contexto da modernidade tem sido objeto
de numerosos trabalhos. Destaco aqui, pela abordagem apurada do mesmo espaço-
tempo que constitui o ponto de partida de Marlyse Meyer (a França da Monarquia
de julho) e pelo foco em um gênero que guarda relação tanto com a crônica quanto
com o cinema dos primeiros tempos, o estudo de Margaret Cohen intitulado “A
literatura panorâmica e a invenção dos gêneros cotidianos” (2004). Para uma
visão introdutória e ampla do processo na sociedade norte-americana, Cf. o livro
de Neal Gabler Vida, o filme: como o entretenimento conquistou a realidade (1999),
esboço abrangente tanto do ponto de vista cronológico (do início do século XIX
até o presente) quanto das mídias (da imprensa escrita ao cinema, à televisão e à
internet).
18 | Miriam V. Gárate

dramatique (crítica de teatro), littéraire (resenha de livros),


varietés, etc. (Meyer, 1992, p. 97).

Em meados de 1830, o romance em série passa a prevalecer


no rodapé da primeira página, deslocando para as páginas interiores
várias das formas coexistentes no feuilleton inicial, entre elas a que
irá se perfilar como crônica. Saliente-se, todavia, que a diferenciação,
a estabilização parcial e a rotinização dessas espécies (e de outras)
no jornal não implicam a supressão da heterogeneidade que marca
desde as origens a imprensa cotidiana moderna: variedade e
variação se reinscrevem ora como alternância de sessões diversas,
ora como miniaturização e estilização da mélange no interior de uma
só espécie – será o caso da crônica, “novo animal” em formação ao
qual se refere criticamente o jovem Machado de Assis (1839-1908)
num texto de 1859 mencionado por Meyer, que convém citar por
extenso:

O folhetim [crônica], disse eu em outra parte, e, debaixo de outro


pseudônimo, nasceu do jornal, o folhetinista por consequência do
jornalista. [...] O folhetinista é a fusão admirável do útil e do fútil, o
parto curioso e singular do sério, consorciado com o frívolo. Estes
dois elementos, arredados como polos heterogêneos, como água e
fogo, casam-se perfeitamente na organização do novo animal. [...] O
folhetinista, na sociedade, ocupa o lugar do colibri na esfera vegetal:
salta, esvoaça, brinca, tremula, paira e espaneja-se sobre todos os
caules suculentos, todas as seivas vigorosas. Todo o mundo lhe
pertence; até mesmo a política (Assis, [1859] 1994, pp. 10-11).3

Aludindo agora ao contexto brasileiro, Meyer (1992) afirma


que, no artigo citado, Machado de Assis não está pensando no
folhetim-romance, o que resulta evidente, mas no mesmo gênero
textual que Astrojildo Pereira comenta (e admoesta) num prefácio a
Um passeio pela cidade do Rio de Janeiro (1862), de Joaquim Manuel
de Macedo (1820-1882) – compilação de textos jornalísticos sobre
a capital do Império –, acerca dos quais o próprio autor, em texto
endereçado aos leitores, sustenta:

3
Em todas as citações e referências, o ano expresso entre colchetes remete à data de
publicação originária dos textos, seguido da indicação do ano da edição consultada
para o presente trabalho, opção que visa restituir e destacar a cronologia dos
mesmos.
Os escritores-cronistas vão ao cinematógrafo | 19

Que fiz eu? Procurei amenizar a história, escrevendo-a com esse


tom brincalhão e às vezes epigramático que, segundo dizem, não lhe
assenta bem, mas de que o povo gosta; juntei à história verdadeira
os tais ligeiros romances, tradições inaceitáveis e lendas inventadas
para falar à imaginação e excitar a curiosidade do povo que lê, e que
eu desejo que leia meus Passeios (Macedo, [1862] 2004, p. 19).

A mobilidade do folhetinista-cronista, que Machado faz


comparecer sob a imagem do colibri, abarca todos os aspectos:
conteúdos (importantes ou irrelevantes, sérios ou frívolos), esferas
de representação (fatos verdadeiros ou imaginários, históricos ou
inventados), tons (do brincalhão e do epigramático ao sério). Haverá,
no entanto, na economia do gênero, certa combinatória que tenderá
a prevalecer: a dimensão imaginária estará geralmente articulada à
anedota e ao cenário verdadeiro; o fútil será o caminho comumente
escolhido para se endereçar ao útil ou significativo; o epigramático
ou satírico, o registro adotado para expressar o sério.
A definição desse lugar enunciativo como constitutivamente
móvel encontra-se em sintonia com um tipo de escrita que busca
“excitar a curiosidade” do leitor, conquistá-lo e, principalmente,
renovar a conquista, razão pelo qual não pode parar quieto. O motivo
do passeio convocado no título de Manoel de Macedo também é um
modo de satisfazer essa função. Importa, assim, reter ambas as
imagens, tanto naquilo que possuem em comum quanto em seus
matizes diferenciais. A imagem machadiana olha mais firmemente
em direção à dimensão volátil, nervosa, célere, instável, descontínua
(e, na ótica do autor, potencialmente superficial) do gênero em
formação; a de Macedo sugere uma dinâmica que propende a
suturar o descontínuo, inscrevendo-o numa ordem narrativa. Na
tensão que se instaura entre esses dois polos, se movimentará esse
gênero consubstancial à vida e ao cotidiano da cidade moderna.
Em seu devido momento, ambas as imagens também serão úteis
para refletir sobre alguns aspectos do cinematógrafo dos primeiros
tempos, sobre aspectos e formas da produção escrita em relação
explícita com o cinema e, inclusive, sobre alguns filmes. Mas por ora
torna-se necessário voltar à imprensa periódica e à nova espécie em
status nascendi.
20 | Miriam V. Gárate

***

Entre as últimas décadas do século XIX e primeiras décadas


do século XX, a América Latina passa por um violento processo de
modernização, cujo caráter compulsório e desigual não tardará em
se revelar, desencadeando contestações de teor diverso: da Revolta
de Canudos à Revolução Mexicana e, no interior desta, à Guerra dos
Cristeros; de agremiações sindicalistas e movimentos anarquistas a
lutas pela universalização do sufrágio ou pela abertura e expansão
das instituições de ensino. As principais capitais do continente
crescem num ritmo nunca antes visto e são objeto de importantes
intervenções: tombam-se bairros inteiros, erguem-se imponentes
prédios públicos e mansões privadas, redesenham-se ruas, abrem-se
avenidas – ao mesmo tempo, lotam-se cortiços com os contingentes
recém-chegados da periferia europeia ou das áreas rurais.
O modelo que rege as principais reformas, como é sabido,
é a Paris haussmanniana. Mais tarde, será o impulso vertical nova-
iorquino. A imprensa, partícipe fundamental das transformações em
curso, produto e mola propulsora de tais mudanças, passa por um
processo de reorganização que afeta tanto os sujeitos produtores
(setores letrados tradicionais e novos grupos intelectuais
emergentes) quanto os discursos produzidos. É nesse horizonte
que a nova espécie à qual se referia o jovem Machado de Assis cria
asas, ganha espaço e se torna uma prática importantíssima entre
os nomes mais expressivos do período: Manuel González Prada
(Peru, 1844-1918), José Martí (Cuba, 1853-1895), Manuel Gutiérrez
Nájera (México, 1859-1895), Luis G. Urbina (México, 1864-Espanha,
1934), Coelho Neto (Brasil, 1864-1934), Olavo Bilac (Brasil, 1865-
1918), Rubén Darío (Nicarágua, 1867-1916), Amado Nervo (México,
1870-Uruguai, 1919), José Juan Tablada (México, 1871-Estados
Unidos, 1945), Enrique Gómez Carrillo (Guatemala, 1873-França,
1927), João do Rio (Brasil, 1881-1921).
A modernização e a especialização da imprensa periódica
supõem o desenvolvimento e a estabilização de um novo tipo de
discurso, a notícia, de um novo profissional, o repórter, e implicam
uma reconfiguração do literário e do exercício da literatura no
interior do espaço jornalístico (Ramos, 2008). Nessa cena, a crônica
se constitui como um lugar intermediário no qual os escritores
integrados às leis do novo mercado exercem a literatura. De que
Os escritores-cronistas vão ao cinematógrafo | 21

forma? Sobrescrevendo (escrevendo sobre) as notícias que o próprio


jornal dá a ler (Ramos, 2008, pp. 117-123); adotando a retórica
da viagem ou do passeio (Ibid., pp. 146-154), ainda que não sejam
repórteres nem se desloquem a outros lugares; renarrativizando
(Ibid., p. 145) aquilo que simultaneamente se postula como
fragmentário: a cidade e o jornalismo modernizados.4 Convocar e ao
mesmo tempo distanciar-se do par repórter-notícia, de sua palavra
“não marcada”, satisfazer a exigência de atualidade, mas reprocessá-
la tendo em vista a produção de uma mais-valia estilística e sua
destinação a um consumo de luxo, associado à recreação: essa será a
tarefa assumida pelos escritores-cronistas do período.

Primeiras viagens

Em 23 de agosto de 1896, o jornal mexicano El Universal


publica uma crônica de Luis G. Urbina intitulada “El cinematógrafo”,
na qual o autor registra as impressões suscitadas pelas primeiras
projeções que tiveram lugar no Distrito Federal. Como é possível
constatar pela data, o aparelho recentemente inventado e os
operadores da empresa sediada em Lyon demoraram apenas alguns
meses para atravessar o Atlântico.5

4
A crítica especializada referente ao processo de profissionalização do escritor e
à modernização da imprensa na América Hispânica é abundantíssima. Destaco os
estudos de Aníbal González (1983), de Susana Rotker (1992) e muito especialmente
o de Julio Ramos (2008, primeira edição 1989), do qual foram tomadas as noções de
sobreescrita da notícia, retórica da viagem e renarrativização do fragmento como
traços estruturantes da crônica moderna. Em relação ao Brasil, Cinematógrafo das
letras (1987), de Flora Süssekind, continua sendo uma referência fundamental.
5
A primeira projeção pública e paga do cinematógrafo fabricado pelos irmãos
Lumière, considerada consensualmente como a data de nascimento do espetáculo
cinematográfico, ocorreu no Salon Indien, em Paris, em 28 de dezembro de 1895.
A chegada do cinematógrafo às principais cidades da América Latina dá-se quase
contemporaneamente: no México, em 6 de agosto de 1896, há uma primeira exibição
privada para Porfirio Díaz e sua família; em 14 de agosto, começam as exibições
públicas. No Rio de Janeiro, a primeira sessão pública data de 8 de julho de 1896.
Em Buenos Aires, em 18 de julho de 1896, se realiza a primeira projeção no Teatro
Odeón. Data do mesmo ano a primeira programação cinematográfica de Santiago de
Chile, ocorrida no Teatro Unión Central de Santiago. No caso de Lima, o vitascópio
Edison chega antes que o cinematógrafo Lumière em virtude da rota do Pacífico,
22 | Miriam V. Gárate

O texto se organiza à maneira de um passeio da “fantasia”,


através de diversos dispositivos óticos.6 Ponto de partida: a própria
literatura, cujos jogos imaginativos dialogavam havia tempo com
pinturas, espelhos, binóculos etc., e que comparecerá ao se fazer
menção ao conto de Erckmann e Chatrian intitulado La lunette
de Hans Schnaps (1859). Destino último: o aparelho Lumière,
“maravilha técnica” destinada a “entreter-nos com a reprodução da
vida” (Urbina). Estações intermediárias: a Exposição Imperial e o
quinetoscópio Edison.
Transcrevo o parágrafo inicial, enunciado a partir do típico
consórcio do frívolo e do sério, no cruzamento entre a notícia
mundana, o reclame e a matéria de divulgação:

O espetáculo da moda no México é o cinematógrafo. Sua aparição


tem comovido a capital, considerando, evidentemente, que a
capital se situa entre o bar-room de Peter Gay, na rua de Plateros,
e o Palácio Escandón, na rua de San Francisco. O novo aparelho foi
aqui o vencedor do quinetoscópio. Fez muito bem em se retirar,
em tempo, a exposição imperial. De momento não há olhos a
não ser para o cinematógrafo. Falarei um instante dele, já que é
preciso. Tem sobre seus rivais uma boa vantagem: não é preciso
ficar à espreita, detrás da lente, em postura incômoda, para captar
o que há além do cristal vivamente iluminado; não há necessidade
de se colocar pupilas postiças para ver o mundo do maravilhoso.
O novo invento dista muito da luneta de Hans Schnaps, espécie
de telescópio da felicidade, que fazia contemplar, a quem nele
grudava os olhos, todos os seus sonhos realizados, todas as suas
esperanças cumpridas, todas as suas aspirações satisfeitas, sua
felicidade, enfim, tal como a imaginação a tecera, alinhavando
as coisas reais com o fio de ouro da loucura. O quinetoscópio e a
exposição, sim, assemelham-se à luneta de Hans, o protagonista
do conto alsaciano. É necessário pôr espelhinhos à fantasia para
olhar. Está fechada a porta do encantamento. Mas a fantasia,
pequena traquinas, põe-se em pontas de pé para enxergar pelo

mais dinâmica. O primeiro aparelho é apresentado à sociedade peruana em 28 de


dezembro de 1896; o segundo, em 30 de janeiro de 1897. Para uma aproximação
ao tema, Cf., entre outros, Araujo (1981), Barrios Borón (1995), Bedoya (2009), Di
Chiara (1996), Noronha (1987), Reyes (1972; 1986) e Souza (2004).
6
Adoto a noção de dispositivos óticos do trabalho pioneiro de Max Milner (1986)
sobre as relações entre tais aparatos e a imaginação literária.
Os escritores-cronistas vão ao cinematógrafo | 23

olho da fechadura (Urbina, [1896] 1996, p. 53).7

Assumindo uma função simultaneamente mágica e especular,


a escrita-traquinas projeta sobre o papel uma coleção de imagens
que faziam parte da Exposição Imperial, materializando a primeira
das viagens encenadas no texto:

Quanto se diverte! Lá dentro está a China, com suas casas de torres


estranhas, que parecem abat-jours justapostos e que, no cristal
fosco do horizonte, fingem uma selva de pinheiros exóticos; lá está
o templo de Buda com seus bonzos barrigudos e melancólicos no
pórtico; lá está o Egito com suas planícies de terra seca amarela e
seu céu ardente, recortado à distância pelo leque de uma palmeira;
ou a ponta de uma pirâmide ou o caprichoso zigue-zague da
cordilheira da Líbia; lá estão os velhos países, as catedrais góticas,
eriçadas de agulhas, os bosques, úmidos e obscuros, com suas
intrincadas galerias e suas naves de galhos por onde a luz nunca
penetra, os lagos italianos, polidos e espelhados, com brilhos e
azuis de aço pavão real; lá estão os muros de rendas da Alhambra,
as ruínas do Coliseu, os castelos normandos, as mesquitas turcas, os
pátios andaluzes. E a fantasia faz uma rápida viagem, uma viagem
plena de peripécias e aventuras, para as Venezas das ilusões e as
Istambuis dos desejos, como dissera o poeta... (Ibid., pp. 53-54).8

7
Salvo indicação em contrário, as traduções do espanhol são todas de minha autoria.
8
No primeiro capítulo de Disolvencias. Literatura, cine y radio en México 1900-1950
(2005), Ángel Miquel faz referência à Exposición Imperial, empresa que popularizou
e difundiu espetáculos de lanterna mágica no México entre 1895 e 1900, destacando
que a maior parte das vistas fixas eram de locais emblemáticos de diversas partes
do mundo, fato que o crítico vincula acertadamente a uma vocação de registro
geográfico – o que estimulou, por sua vez, a percepção dessa experiência como
viagem, matriz organizadora da crônica de Urbina. De acordo com Miquel (2005, p.
17): “A associação do espetáculo com as viagens tinha claro parentesco com a que
procuravam outras fotografias que, graças aos progressos das artes gráficas a partir
dos anos setenta do século XIX, puderam imprimir-se sobre papel para dar origem,
entre outras, à produção industrial de cartões-postais e de cromos sobre caixas de
fósforos, bem como às primeiras etapas do fotojornalismo. As vistas estereoscópicas
e as primeiras fitas que retrataram diferentes países pertenciam a outros ramos da
mesma família. E parece evidente que os numerosos livros de viajantes aparecidos
durante a segunda metade do XIX, muitas vezes acompanhados de gravuras que
ilustravam suas descrições, prepararam a cena em que irromperam essas imagens”.
Essa trama de relações deve ser lembrada sempre, a fim de evitar construir um
marco de interpretação estanque, no qual vínculos dinâmicos e interações de
24 | Miriam V. Gárate

Reunidas no discurso-projeção, as palavras obedecem


simultaneamente a duas forças: a que as dinamiza mediante
uma enumeração que atravessa celeremente grandes distâncias,
transportando o olho-mente do leitor de uma latitude a outra; a
que as estabiliza por meio da descrição de um traço ‘fixo’,9 no qual
prevalece a dimensão arquitetônica. Nesse vaivém, se cava a falta a
ser evidenciada de imediato:

Mas, por muito traquinas e vivaz que seja, a fantasia não consegue
dar existência completa a suas visões, porque a todas elas falta o
signo característico da vida: o movimento. Não voam as pombas
da Praça de São Marcos, nem vibra a água na fonte monumental
de Viena, nem chega a atravessar a gôndola a Ponte dos Suspiros;
as ruas estão cheias de uma multidão imóvel; as procissões se
detêm; os rostos não olham com curiosidade como olham os que
vão retratar-se diante da câmera do fotógrafo; o mar não balança
os buques no canal de Kiev, o ar não sacode os estandartes; não
se ouve um grito, não se vira uma cabeça, não se agita uma mão.
Tudo o que se olha é verdadeiro e exato e bonito, mas está morto; é
um instante retido e petrificado. A câmera obscura o arrebatou ao
tempo e ao espaço e o estampou para sempre numa delgada placa
de cristal.

Fez com uma festa, com um desfile, com uma multidão o que o
naturalista faz com as borboletas: vai ao campo, as caça, as atravessa
com um alfinete e, com as asas abertas, as prende às folhas de
sua coleção. A menina curiosa viaja bem na exposição imperial;
mas necessita fazer evocações, fingir lances, resgatar memórias
para animar sua excursão. Convêm, às vezes, esse silêncio e essa
imobilidade com os lugares que ela visita: é preciso ficar mudo e
meditar no cemitério de Pisa, nas catacumbas de Roma e na rua dos
sepulcros em Pompeia. Mas, numa praça em Paris, numa fábrica
em Chicago, num passeio em Londres, desejaria a fantasia, a moça
exigente e visionária, escutar um pouco de ruído e ver outro pouco
de movimento (Ibid., p. 54).

mão dupla correm o risco de ser substituídos pela questão, errônea e estéril, das
precedências ou influências unidirecionais.
9
Emprego aspas duplas quando se trata de citações de terceiros retomadas
literalmente no corpo do trabalho e aspas simples para indicar usos figurados de
determinadas expressões ou eventuais ressalvas.
Os escritores-cronistas vão ao cinematógrafo | 25

Verbos de ação em consórcio com o líquido, o aéreo, os meios


de transporte, a massa servem para predicar, pelo viés da negação,
a Exposição Imperial: coleção de fotografias verdadeiras, porém
mortas, petrificadas, vivificadas por um instante graças aos lances
imaginários de quem as olha – ou de quem as evoca no discurso.
Bastaria inverter o signo de tudo o que aqui se apresenta precedido
de um “não” ou de um “mas” para se ter o repertório canônico das
primeiras vistas cinematográficas: águas balançando, pombas
voando, bandeiras ou estandartes flamejando, multidões andando
pela rua ou saindo das fábricas, desfiles e procissões. Mas antes de
chegar a destino, será necessário visitar outra estação intermediária
dessa série evolutiva – o quinetoscópio Edison:

Por isso, [a fantasia] corre ao quinetoscópio e assoma-se às lentes


do aparelho que parecem dois olhos fulgurantes e agarra os fones
de ouvido do fonógrafo e vê e ouve, e sonha a seu bel-prazer e frui.

Dentro da caixa de madeira sim que está a vida, rápida, elétrica,


que brilha e se apaga num instante, que passa diante do olhar como
um bólido pelo céu. Ouve-se uma estranha música de banjos e ao
mesmo tempo aparece, num fundo negro como o das magias de um
prestidigitador, uma mulher do Oriente, uma dançarina que baila,
que se agita, que dá voltas vertiginosamente. Bate o chão com o pé
e levanta um rumor, move as cadeiras com frenéticos tremores e se
ouve ranger o tecido de sua roupa; abre os lábios e se percebe seu
suspiro; algumas vozes remotas acompanham a dança extravagante
cantando melancolicamente [...] Apesar de sua violência, qualquer
cena impressiona e diverte. Entretanto, pedes ainda mais, fantasia
insaciável e insatisfeita. Pedes mais, porque a existência que simula
o quinetoscópio é falsa, como que emprestada, como de imitação;
não enxergas seres, como acreditavas, mas bonecos que vão e vêm,
te cumprimentam, dançam, fazem contorções e dão pulos, como
as marionnettes num teatro para crianças. Aqueles quadros foram
tomados da realidade, existiram [...] mas as figuras são pequenas,
se desvanecem, por átomos de segundo, no espaço, para voltar a
surgir do fundo opaco, e perdem, por isso mesmo, sua aparência
humana. Falta algo, algo para que fique contente a ilusão... Que falta,
meu Deus? (Ibid., p. 55).

Por um lado, o fator movimento insufla um plus de vida à


imagem, ilusão reforçada pela reprodução sonora do fonógrafo, um
26 | Miriam V. Gárate

aspecto que Urbina enfatiza, ou melhor, amplifica, conferindo-lhe


ares licenciosos: se ouve o ranger dos tecidos aderidos às cadeiras
da dançarina, se escuta o suspiro de seus lábios entreabertos, a
proximidade auditiva (tornada quase táctil) é extrema.10 Por outro,
as pequenas dimensões da imagem, a interferência das lentes e da
caixa de projeção reduzem o coeficiente de ilusão realista. Diminutas,
presas aos limites de uma exígua moldura, as marionetes do
quinetoscópio parecem pouco aptas para os jogos de contiguidade
entre campo/fora de campo que serão explorados sistematicamente
pelo cinematógrafo. Some-se a isso um aspecto não abordado
nessa crônica, mas que se tornará rapidamente matéria de muitas:
o caráter de espetáculo ‘privado’ do quinetoscópio, sua fruição
unipessoal, tolhe os espectadores do espetáculo paralelo e coletivo
que se desenvolve em volta, na sala, nas poltronas, entre uma e outra
fita. Por isso:

[...] a fantasia, cansada de buscar, entrou no salão do barão Bernard


e se pôs a olhar o cinematógrafo. Como disse no início, na nova
diversão de ótica não há necessidade de usar os óculos de Hans.
Basta entrar e sentar-se confortavelmente, diante do branco
quadrilátero que se abre no extremo da sala. Esperar: espera-se um
minuto, o indispensável para que a curiosidade acorde; tem ela o
sono muito leve, e é amiga e perseguidora de novidades e de modas.

Aos poucos se apagam as lâmpadas elétricas que, retorcidas,


fulguravam dentro de sua voluta de vidro e, no quadro alvo, uniforme
e limpo como uma página em branco, se apresenta de improviso uma
estampa, uma fotogravura, uma ilustração de revista, grande, do
tamanho natural e cujas duas silhuetas adquirem, evidentemente,
um relevo e uma vivacidade que não possuem no quinetoscópio. São
dois bebês sentados em sendas cadeiras, num jardim, um do lado do
outro, e que brincam e se arrebatam suas ninharias. O menor, que
não tem um ano, fica com raiva de que o outro, que apenas o dobra
em idade, abuse de sua força e lhe arranque das mãos o que ele
considerava nesse momento a coisa mais preciosa: uma colher. Por
uma colher se trava o combate, um combate cheio de acidentes e
pormenores variadíssimos. Vence a força como sempre e, enquanto

10
A parceria efetiva ou potencial dos aparelhos de projeção de imagens e o fonógrafo
é um leitmotiv que comparece em numerosos textos, como se poderá comprovar
mais adiante.
Os escritores-cronistas vão ao cinematógrafo | 27

o rapaz de vinte meses ri de mandíbula aberta por seu triunfo, o


de dez, convulso pelos soluços, levanta as mãos ao céu em sinal de
desespero e pedido de socorro. Não se ouve chorar este nem rir
aquele, mas os gestos e a mímica foram tomados com tal exatidão
que o sentimento de realidade se apodera do espectador e o domina
por inteiro. Está-se diante de um fragmento de vida, clara e singela,
sem pose, sem fingimentos, sem artifícios.

As crianças folgam, à vontade, sem preocupar-se de que ao


longe houvesse um aparelho retendo sem perder nem o mais
insignificante, nem o mais despercebido, nem o mais fútil dos
detalhes de seus jogos. É também muito rápida a fantasmagoria;
mas, que verdade, que precisão, que graça! Imaginem que estão
contemplando uma linda gravura e que, absortos pela atenção, veem
que o desenho ganha movimento; que o fundo ganha profundidade,
que o ambiente se enche de ar e de clareza e que as personagens
ganham corpo e se movem a seu bel-prazer, com existência própria,
despreocupadas da passagem que estavam representando e da
intenção do artista [...]

Pois o cinematógrafo é assim (Ibid., pp. 55-56).

Destaque-se, para efeitos de análise ulterior, a série quadro


alvo-papel em branco-estampa-fotogravura-ilustração de revista que
emoldura e situa, por analogia e diferença, tanto a nova experiência
a ser retratada (as primeiras projeções costumavam começar de fato
com imagens de lanterna mágica e/ou a exposição de fotogramas
fixos) quanto o teor da escrita que a representa (será o brasileiro João
do Rio quem enunciará explicitamente todos os termos da cultura
visual em voga para refletir sobre as características da crônica).
O leitor dos dias de hoje não tem dificuldade em identificar
uma das vistas canônicas dos irmãos Lumière, Querelle enfantine,
cujo traço mais significativo, ao ser apreendida pela escrita, é dado
pela imediata reconversão do episódio mínimo e trivial à legalidade
narrativa da aventura: “Por uma colher se trava o combate, um
combate cheio de acidentes e pormenores variadíssimos” (Ibid.,
p. 56). Desse e de outros pormenores se nutre a pena de Urbina
no intuito de oferecer ao leitor da época um sucedâneo textual
das vistas – e uma prova de sua destreza estilística, um espetáculo
feito de variedade lexical, adjetival, de profusão de comparações e
de metáforas, como poderá ser especialmente constatado em outro
28 | Miriam V. Gárate

fragmento da mesma crônica.


A despeito da ausência de som e da projeção acelerada – esta
última, um problema recorrente no período inicial em virtude da
operação manual do aparelho –, o tamanho das imagens, a nitidez de
gestos ínfimos e a profundidade de campo suscitam um “sentimento de
realidade” tão forte que o espectador tem a impressão de estar “diante
de um fragmento de vida, clara e singela, sem pose, sem fingimentos,
sem artifícios” (Ibid., p. 56).11 O fator ‘naturalidade’, aqui apontado,
terá uma longa fortuna nas futuras discussões acerca da dramaturgia
adequada ao novo veículo e das relações cinema/teatro.
À Querelle enfantine segue-se a projeção de uma segunda
vista:

Vê-se uma planície. Dois oficiais conversam. Parecem contentes.


O que está a cavalo começa a fumar; se despem. Fica somente o
campo... O que é aquilo que parece agitar-se na linha do horizonte?
Ah! Devem ser pinheiros da montanha. Mas, olhando fixo, qualquer

11
A unanimidade dessas impressões iniciais (bem como a eventual circulação
dos próprios escritos aqui comentados) pode ser constatada ao se confrontar
a crônica de Urbina com os que talvez sejam os primeiros registros da imprensa
sobre as projeções feitas no Salon Indien de Paris. Refiro-me às notas publicadas
em Le Radical, (“L’illusion de la vie réelle”) e em La Poste (“La mort cesserá d’être
absolue”) em 30/12/1895, em ambos os casos sem assinatura. A primeira delas
começa da seguinte forma: “Uma nova invenção, que é certamente uma das mais
curiosas de nossa época, e que será seguramente fértil, foi apresentada ontem à
noite, no número 14 do Boulevard de Capucines, diante de um público de sábios,
de professores e de fotógrafos. Trata-se da reprodução, por projeção, de cenas
vividas e fotografadas através de séries de tomadas instantâneas. Seja qual for a
cena assim tomada, seja qual for o número de personagens assim flagrados em suas
ações cotidianas, os revemos em tamanho natural, com as cores, a perspectiva, o
céu distante, as casas, as ruas, com toda a ilusão da vida real” (Banda; Moure orgs.,
[1895] 2008, p. 39, tradução minha). Quanto à segunda, se inicia desta maneira:
“Os senhores Lumière, pai e filhos, de Lyon, convidaram ontem à imprensa para
a inauguração de um espetáculo realmente estranho e novo. Eles instalaram seu
engenhoso aparelho no elegante subsolo do Grand Café, boulevard de Capucines.
Afigurem-se os senhores uma tela tão grande quanto possam imaginar, colocada no
fundo da sala. Essa tela é visível para a multidão. Sobre ela aparece uma projeção
fotográfica. Até aí nada de novo. Mas, de repente, a imagem, de tamanho natural ou
reduzida conforme a dimensão da cena, anima-se e ganha vida. É a porta de uma
fábrica que se abre, deixando sair um mar de trabalhadores e trabalhadoras de
bicicleta, cachorros que correm, carros. Isso tudo se agita e se expande. É a vida, é o
movimento flagrado ao vivo” (Ibid., p. 41, tradução minha).
Os escritores-cronistas vão ao cinematógrafo | 29

um diria que é a montanha que se aproxima. Verificar-se-á o


milagre bíblico? Não: é um bando de aves, ou uma nuvem de pó.
O vento costuma fazer essas travessuras nos campos desertos. E a
massa, indecisa e flutuante, como um monte de bruma correndo,
impulsionada pelo norte, ao rés do chão, se aproxima. De repente
a luz fere a bruma e surge um reflexo e, em seguida, vê-se brilhar
uma linha de fios de prata, e por fim descobre-se um contorno e se
adivinham, entre a poeira, as couraças, os cascos, as espadas e as
inquietas cabeças dos cavaleiros. Ah! É um batalhão de couraceiros
que a galope se aproxima pela planície banhada de sol.

Vem em direção a nós, se aproxima, distinguimos os uniformes,


os corpos, as luvas, as bridas, as crinas dos corcéis e, quando
acreditamos que seremos arrebatados pela bélica carreira daquele
exército triunfante, torna de um golpe a luz para nos salvar da
catástrofe (Ibid., p. 56).

“Bando de aves”, “nuvem de pó”, “monte de bruma correndo”,


“fios de prata brilhando”, “cascos”, “espadas” são alguns dos termos
dos quais se vale o cronista para renarrativizar na escrita a vista
assistida. O avance do batalhão é dado a ler como metamorfose de
imagens verbais, cujo conteúdo traz novamente à tona matérias
voláteis, fugidias, reverberações de luz; trata-se de uma viagem
que se efetiva na linguagem, no transporte de uma expressão a
outra. Como já acontecera com Querelle enfantine, o evento de curta
duração e de significado banal ganha ares de peripécia, implicando
dessa vez ainda mais o espectador, tornando-o contemporâneo e
copartícipe da fita projetada, fazendo-o experimentar um misto de
curiosidade e susto dado pela aproximação da matéria fílmica. Como
se sabe, o hipotético espanto das multidões diante de L’arrivée du
train faz parte do mito das origens do cinema. No texto de Urbina,
cabe à cavalgada de couraceiros assumir a função de abertura
e contiguidade em relação ao fora de campo, intensificando,
dessa maneira, o impacto perceptivo. Mas a ilusão de realidade
proporcionada pelo cinematógrafo revela-se imperfeita aos olhos do
escritor, em razão da falta de dois recursos que não tardarão em ser
incorporados:

A este novo aparelho, que tenciona, como seus rivais, entreter-nos


com a reprodução da vida, lhe falta algo também: falta-lhe a cor,
30 | Miriam V. Gárate

talvez com o tempo adquira o som. Em suas mãos está adquiri-lo.


Pode travar amizade com o fonógrafo e lhe pedir auxílio.

A fantasia, a curiosa sonhadora, quando volta de seu assombro


agradece à Ciência, à caluniada, a que Spencer diz ser a Gata
Borralheira. E ainda há quem sustente que a Ciência é árida! (Ibid.,
p.57).12

Não obstante o entusiasmo aqui manifesto pelo novo aparelho,


o cinematógrafo não ultrapassará nunca para o escritor mexicano
a condição de Gata Borralheira da cultura. Será “maravilha técnica”,
diversão, instrumento educativo endereçado aos pobres, quando
muito, embora à medida que o novo espetáculo ganhe espaço, sua
percepção dos riscos tenderá a prevalecer nitidamente em relação à
das vantagens, como poderá comprovar-se ao tratar de outras duas
crônicas posteriores: “El cine y el delito” (1915), “Escuela normal del
crimen: un discípulo aprovechado” (1926). Em 1928, às vésperas da
mudança que acarretaria uma transformação radical das linguagens
e estéticas desenvolvidas ao longo das três décadas de existência do
cinema silente, o cronista mexicano continuaria sentenciando em El
Universal que, “apesar de seus triunfos, o cinematógrafo jamais nutrirá
a cultura” “nem aperfeiçoará o espírito como o faz o livro” (Urbina, “El
cinematógrafo y la literatura”, [1928] 1996, p. 84). Evidentemente, não
se trata de uma voz isolada: o cinema instaura – como o fizera antes o
próprio jornal, a litogravura, a fotografia – um território conflituoso no
qual o intercâmbio, a troca e a importação coexistem com a disputa, o
traçado de fronteiras, a reivindicação de hierarquias e de qualidades
supostamente inerentes ao exercício desta ou daquela prática cultural.

12
Expectativa análoga é reportada por Andrés González Estevez (2014) ao se
referir ao artigo “El cinematógrafo”, publicado na edição de número 7 da revista
montevideana Los Debates em 1896. Nele o autor afirma: “Desta última curiosidade
científica de finais de século [...] o que mais surpreende [...] são os progressos que
possibilita e que desde já podemos vislumbrar. Com efeito, se ao cinematógrafo
atual se acrescentasse um cilindro fonográfico que fizesse coincidir os sons com
a vida real que nos é mostrada e se, por último, se conseguisse obter fotografias
a cor, ter-se-ia um quadro tão animado e perfeito da vida que poderíamos ter em
casa os sucessos do mundo como se os estivéssemos presenciando” (apud González
Estevez, 2014, p. 11).
Os escritores-cronistas vão ao cinematógrafo | 31

***

Uma década separa a crônica de Urbina, testemunho do


impacto inicial causado pelo novo entretenimento, da crônica de
Olavo Bilac, intitulada “Moléstia de época” e publicada na Gazeta de
notícias em 3 de novembro de 1907. Por coincidência, a data assinala
também a primeira década de Bilac à frente da seção previamente
assumida por Machado de Assis, romancista consagrado e autoridade
intelectual por volta de 1897, quando se efetiva a troca. Segundo
Antônio Dimas (1996, p. 11), a escolha desse substituto representava
uma “nova orientação para aquela seção do jornal, que dizia adeus à
ironia oblíqua e se entregava à mordacidade eventual”. Afirmação à
qual acrescenta, referindo-se à ausência de “um modelo homogêneo
de reflexão” na crônica bilaquiana, o seguinte:

Ao contrário de seu antecessor na Gazeta de Notícias, Bilac não


titubeava em opinar sobre os mais diversos assuntos. Para ele tudo
era assunto, tudo era motivo de atenção. Urbanização, saúde pública,
defesa do menor, escândalos políticos, ingerência da Igreja no Estado,
festas populares, carestia urbana, deficiência do transporte público,
violência sexual, política internacional, emancipação feminina,
lançamentos literários, penúrias do funcionalismo, crueldade
contra velhos, maus-tratos a animais, invasão da privacidade ou
ocorrências do momento (Ibid., pp. 15-16).

Cada vez mais versátil, o cronista se apossa de um sem-


fim de notícias que devolve, sobrescritas, ao jornal; cada vez mais
volátil, não titubeia em opinar sobre o que quer que seja, ciente que
está, de antemão, da efemeridade de seus comentários (entrega-
se à mordacidade eventual, recorrendo à expressão de Dimas). O
colibri, aquele novo animal mencionado por Machado de Assis em
1859, salta, esvoaça, brinca, tremula, paira e se espaneja mais e
mais: o mundo lhe pertence. Sintomaticamente, porém, em crônica
publicada na mesma Gazeta de Notícias em 7 de fevereiro de 1904,
Bilac propõe uma figuração da nova espécie que se vale da metáfora
mercantil, evidenciando dessa forma as mudanças ocorridas e o
estreitamento de laços entre os escritores e a imprensa modernizada:

Os cronistas são como os bufarinheiros, que levam dentro das


suas caixas rosários e alfinetes, fazendas e botões, sabonetes e
32 | Miriam V. Gárate

sapatos, louças e agulhas, imagens de santos e baralhos de cartas,


remédios para a alma e remédios para os calos, breves e pomadas,
elixires e dedais (Bilac, [1904] 1996, p. 9).

Salvaguardadas as especificidades de cada mídia, as


bugigangas carregadas pelo cronista e as fitas transportadas pelos
operadores da época possuem traços em comum: sua condição de
mercadoria, seu caráter heteróclito, a fugacidade de sua fruição.
Nos dez anos que distam a crônica do mexicano Luis G. Urbina
da crônica de Bilac, o cinematógrafo passa da condição de “máquina
milagrosa” ou “aparelho prodigioso” (duas expressões usadas pelo
próprio Bilac) à condição de suporte de um espetáculo que possui
ainda, por volta de 1907, as características do chamado cinema de
atrações: várias fitas breves, de índole ou gênero diverso (atualidades,
documentais, cômicos, sentimentais, históricos, religiosos), por vezes
em alternância com outros tipos de atração (lanternas mágicas,
apresentações teatrais ou líricas, de vaudeville, etc.).13 Embora o
termo tenha sido empregado por Tom Gunning (1986) para enfatizar
o caráter heteróclito e fortemente sensorial do cinema prévio à
consolidação do cinema narrativo de fôlego como modelo hegemônico,
percebe-se a sintonia existente entre a heterogeneidade do espetáculo
cinematográfico primitivo, a do jornal diário e, no interior deste, a
da crônica. Cada mídia possui suas especificidades; elas integram,
no entanto, um mesmo mundo, no qual à força do descontínuo e do
heteróclito se contrapõem estratégias de religação.
Nos dez anos transcorridos, embora muitos ainda o
considerassem uma “moléstia” ou inclusive uma “neurose” (o
título de Bilac dialoga com um artigo prévio publicado pelo médico
Humberto Gotuzzo, um dos tantos a examinar o novo espetáculo
sob o prisma das “psicopatias”), o cinema se tornou “mania” das
multidões, segundo a redefinição operada na própria crônica – numa
crônica que se escreve no presente, diante dos olhos do leitor:

Venho escrever esta “Crônica” depois de uma longa excursão.

13
Para uma abordagem abrangente dessas transformações, Cf. O primeiro cinema:
espetáculo, narração, domesticação (1995) de Flavia Cesarino Costa.
Os escritores-cronistas vão ao cinematógrafo | 33

Estou derreado, tenho dores nos rins e nas pernas, doem-me os


olhos de ter visto tanta coisa, dói-me o cérebro de haver pensado
tanto.

A minha viagem durou duas horas: entretanto, em tão escasso


tempo achei meio de ver meio mundo: estive em Paris, em Roma,
em Nova York, em Milão; vi Cristo nascer e morrer, desci ao fundo
de uma mina de carvão; estive ao lado de um faroleiro, no alto de
um farol, entre os uivos das ondas; assisti ao tumulto de uma greve
na França; vi o imperador Guilherme passar revista no exército
alemão na Westfália; vi Sansão ser seduzido e vencido por Dalila,
e sepultar-se sob as ruínas do templo derrocado... (Bilac, [1907]
1996, p. 195).

Se na Exposição Imperial ou no quinetoscópio o mundo


estava “lá dentro”, contido nos limites de uma caixa, aqui e agora não
restam dúvidas de que é o espectador quem está “dentro do filme”,
para enunciá-lo com a fórmula consagrada por um dos realizadores
e teóricos do cinema mais proeminentes do século XX: Béla Balázs
([1931] 1958, p. 20). A participação afetiva, que a linguagem fílmica
clássica passará a explorar muito cedo, ganha maior concretude e
concerne de forma direta ao sujeito sentado na poltrona, fenômeno
que se exprime por meio de seu envolvimento físico-sensorial:
“estou derreado”, “tenho dores nas pernas”, “estive”, “desci”. Mas a
escrita de Bilac não viaja em linha reta aos espaços-tempos-relatos
condensados e justapostos na passagem inicial. Depois dessa breve
sinopse antecipatória, afasta-se da tela, sai da sala e se dirige à rua:
oferece outra atração, em cujo interior intercalará várias outras.

Creio que já todos terão compreendido que esta longa viagem


foi... cinematográfica. Fui hoje arrastado por um conhecido a
quatro dos dezoito cinematógrafos que fazem atualmente a delícia
dos cariocas. Paguei o meu tributo à mania da época, e não me
arrependo – apesar de estar fatigado como se houvesse realmente
vagamundeado durante dous anos por terras e mares.

Dezoito cinematógrafos! Já foi feita a estatística. São dezoito e,


na polícia, aguardam despacho outros tantos requerimentos [...]
Só a Avenida possui quatro. E cada bairro da cidade possui pelo
menos um: há um na rua Larga de São Joaquim, outro no Passeio
público, outro em Botafogo, outro [...] É atualmente a ocupação dos
desocupados do Rio. E, como os desocupados do Rio são legião,
34 | Miriam V. Gárate

todos os cinematógrafos são freqüentados e dão dinheiro [...] (Ibid.,


pp. 196-197).

Mania análoga, embora mais generalizada ainda no que


tange ao espectro social da legião de frequentadores, fora retratada
em uma crônica quase contemporânea de José Juan Tablada, que
leva o título “Mexico sugestionado: el espectáculo de moda”, de
1906:

Enquanto a chuva castiga a metrópole com seus flagelos de cristal


e, nas estradas de ferro, faz desabar aterros originando catástrofes;
enquanto, oferecendo um deslumbrante asilo às reclusões
forçadas, no Teatro Abreu, a companhia de ópera com artistas
hors ligue e decorações de pompa inusitada, faz um chamado a
todos os entediados e a todos os aborrecidos, o público vai... ao
Cinematógrafo [...]

O magnata e o boêmio, o intelectual e o ingênuo; a dama


aristocrática e a modesta costureirinha; os patriarcas e os párvulos,
todo o México tem neste momento um estado de alma unânime,
absolutamente harmônico, indiscutivelmente igual... Todo mundo
vai ao Cinematógrafo e nesse espetáculo convergem todos os
espíritos [...] Das 6 p.m. em diante não pergunteis a ninguém onde
vai; todo mundo vai lá, ao Cinematógrafo! [...] Se necessitas, leitor,
o sacerdote para o caso in extremis, ou teu advogado, ou teu amigo
íntimo, não duvides um só instante e corre até a sala em penumbras
onde, recolhido e absorto, um público fervoroso, místico e extasiado
se inicia nos mistérios helênicos da triunfante civilização (Tablada,
[1906] 1992, pp. 45-47).

Junto com a difusão do novo espetáculo e de suas primeiras


formas, desponta, pois, um foco de interesse, um objeto de observação
e de disputa: o público. Mas antes de examinar algumas facetas dessa
questão convém retornar à crônica de Bilac: “Pois eu também fiz
hoje, neste sábado de Finados, a minha estreia de frequentador de
sessões cinematográficas. Fui matriculado nesse vício por um sujeito
que...” (Ibid., p. 197). Fiel à deriva cara ao gênero, o narrador encena
um passeio por quatro dos dezoito cinematógrafos, ciceroneado por
um sujeito que “mal conhece”, embora o conheça o bastante como
para considerá-lo o “tipo modelar do vadio carioca” e delinear sua
fisionomia:
Os escritores-cronistas vão ao cinematógrafo | 35

Há muitos vadios por aqui: mas nenhum é tão vadio como esse
que nasceu rico, foi criado com mimo, cresceu na ociosidade,
passou dez anos a cursar uma faculdade de direito, herdou
duas centenas de apólices, e só tem na vida um trabalho: o de ir
receber periodicamente os juros fartos e fáceis desse capital. É um
preguiçoso que sai da cama ao meio-dia, almoça às duas da tarde,
namora e passeia até as cinco [...] E de quando em quando, em
conversa, queixa-se da escassez de tempo (Ibid., p. 198).

Instaura-se, assim, uma alternância entre dois polos de


atração: o do itinerário pelas ruas e o diálogo mantido entre o
cronista e seu interlocutor, o que reflete intermitentemente aquilo
que é projetado pelas telas. Note-se, de passagem, a data em que
transcorre o episódio, o sábado de Finados, pretexto para a pretensa
folga excepcional do vadio consumado – “É um escândalo! Há no ano
51 domingos, 10 dias feriados, 25 santificados! Terra de vadios!...
Eu nunca tenho tempo disponível para divertimentos: mas hoje,
que hei de fazer para matar o dia de Finados?” (Ibid., p. 198) –,
mas, simultaneamente, indício de uma reconversão generalizada
à dinâmica do entretenimento e do consumo – “Venha! Temos
hoje toda a vida de Cristo em 30 quadros e mil metros de fita um
quilômetro do Novo Testamento! Desde o estábulo até o Calvário”
(Ibid., p. 197). No vaivém, na alternância dessas micro-histórias, se
esboça um contraponto que permite a Bilac exercer a mordacidade
eventual:

Sobre a tela tremia a vida dos mineiros de carvão no fundo da terra.


Agitando-se como toupeiras, aquelas estranhas figuras apareciam
de repente, surgindo de um buraco escuro, e desaparecendo logo em
outro buraco escuro [...] O meu iniciador no vício cinematográfico
olhava, mirava, admirava, embevecido, deliciado, enlevado. E, ao
mesmo tempo, num acesso de lirismo industrial, entoava um hino
ardente ao labor, à agitação, à febre, à vida intensa: “Veja o senhor!
Como é belo o trabalho! É a maior glória humana!” (Ibid., p. 199).

É com esse parceiro, adotando uma atitude simultaneamente


cúmplice e irônica, que o narrador percorre as quatro salas de
cinema – e, no interior de cada uma delas, viaja pela multiplicidade
de espaços, tempos e realidades justapostas (re-unidas) na
programação. Ou melhor, renarradas na crônica:
36 | Miriam V. Gárate

Quando me lembrei da ‘Crônica’ eram dez horas da noite... E aqui


estou a escrevê-la, derreado, tonto, moído [...] São mais de onze
horas... Já da tipografia vieram súplicas, pedidos, exigências,
protestos: “Os originais da ‘Crônica’?! Vêm ou não vêm esses
originais!” [...] E, às pressas, sem pesar palavras, escrevo, escrevo,
escrevo... (Ibid., pp. 200-201).

A corrida da escrita – tanto no sentido de aceleração interna


como de prova e concorrência com outras mídias – redigiria mais um
capítulo de sua história no período de ascensão do cinema. Não era o
primeiro; tampouco seria o último.

***

Se a crônica do mexicano Luis G. Urbina se concentra nas


imagens projetadas na tela pelo novo aparelho Lumière, “En el cine”,
de seu compatriota Ramón López Velarde (México, 1888-1921),
dá uma virada de cento e oitenta graus no intuito de focar o outro
lado da cena: a sala de cinema, o público frequentador, suas reações,
objeto de atenção equiparável, se não maior, à concedida às fitas. Em
relação a esses dois textos, complementares entre si, a crônica de
Bilac constitui uma abertura para o exterior, um espaço de fuga, mas
simultaneamente um retorno, considerando que as ruas são matéria
e fetiche privilegiado por vistas e fitas do cinema primitivo. De fato,
o fascínio de se ver estimulou muito cedo a convocação dos cidadãos
em diversos espaços públicos para efeitos de rodagem e imediata
exibição nos cinematógrafos locais, prática usual que gerou um
subgênero integrado às atualidades e aos documentários, embora
também se lançasse mão do recurso para tomadas exteriores de
filmes de ficção.14 A experiência histórica estimulará a imaginação
de mais de um cronista e/ou contista, suscitará mais de um relato,
como poderá ser constatado mais adiante.
Ramón López Velarde publica “En el cine” sob o pseudônimo

14
Sobre a instituição do hábito de se ir ao cinema no Rio de Janeiro desse período e
sobre o papel desempenhado pelas crônicas de Figueiredo Pimentel nesse contexto,
Cf. o segundo capítulo da tese de doutorado de Danielle Crepaldi Carvalho (2014,
pp. 77-100), desenvolvida sob minha orientação.
Os escritores-cronistas vão ao cinematógrafo | 37

de Tristán no El Eco de San Luis Potosí, em 22 de setembro de


1913. Trata-se do jornal de uma cidade distante quatrocentos
quilômetros da capital, de peso no contexto da colônia em virtude
da mineração, ativa e próspera durante o período independentista,
de tradição antiporfirista no passado recente. Trata-se ainda do
ano do assassinato do presidente Madero e do acirramento dos
conflitos entre diversos grupos no México da revolução, o que obriga
a mencionar, não obstante exceda em muito os limites deste capítulo,
uma série de questões: a importância do cinema documental como
instrumento de informação e de propaganda nesse contexto; a
importância da experiência adquirida por operadores/cameramen
– em especial, norte-americanos –, que filmarão as primeiras
conflagrações armadas no território mexicano e cuja competência
será reaproveitada de imediato na Primeira Guerra Mundial; o
despontar incipiente de tipos – o mexicano mau-caráter (flojo),
por exemplo –, que o cinema estadunidense passará a explorar
principalmente no western.15
Em busca do reconhecimento dos espetáculos socialmente
aceitos, a sala de cinema das primeiras décadas é uma prolongação
ou um reaproveitamento efetivo da arquitetura teatral, não obstante
sua questionável adequação do ponto de vista funcional. É uma
espécie de diagrama da cidade, que reproduz sua estratificação
socioeconômica, etária, de gênero, um espaço que, em um mesmo
gesto, reúne e hierarquiza, que congrega e segrega no âmbito do
entretenimento mais massivo que o Ocidente concebera até então:

O salão encerra uma apertada multidão. Embaixo, a elegância dos


personagens, dos almofadinhas e das damas importantes; os rostos
polidos das moças que buscam com olhares dissimulados seus
namorados e a inquietação das crianças ávidas em contemplar a
magia das projeções. Nos primeiros balcões, famílias de classe
média que, no descanso dominical, recompõem-se das fadigas da
semana. As galerias, ocupadas por uma multidão popular que, em
seu instinto de curiosidade primitiva, do tempo das cavernas, quer
divertir-se a preço ínfimo (López Velarde, [1913] 1997, p. 167).

15
Sobre esse conjunto de questões, Cf. especialmente, “Vivir de sueños”, el cine mudo
en México de 1896 a 1920, de Aurelio de los Reyes (1996), e “Documentales de las
revoluciones de México: 1911-1916”, de Ángel Miquel (2012).
38 | Miriam V. Gárate

É tendo em vista segmentos de fruição e de consumo


específicos para cada um dos setores congregados nessa “catedral
profana” (expressão utilizada pelo brasileiro João do Rio para se
referir aos novos cinematógrafos) que a programação se organiza,
principiando da seguinte forma:

A orquestra irrompe com uma valsa de simples compassos, o salão


some em penumbras e na tela sucedem-se quadros diversos: cenas
marinhas, desfiles medievais, episódios da galanteria moderna,
lances refinados e covardes de Salústio, idílio no campo, magias
infernais, revista Pathé... E sobre as cabeças atentas fulge, como
uma fita diáfana, o raio da projeção, enquanto se escuta o ruído
monótono do aparelho, como uma voz que dá ordens constantes às
imagens da tela (Ibid., p. 167).

Convém resgatar dois detalhes desse quadro inicial que dão


testemunho dos intercâmbios entre práticas de diversas esferas.
Assim como nas últimas décadas do século XIX, várias colunas da
imprensa periódica passam a denominar-se Lanterna mágica,
Binóculo, Kinetoscópio, Vitascópio etc., o cinema de princípios do
século XX se apropria de expressões tais como Revista ou Jornal –
o da casa Pathé (Journal Pathé) começa a ser produzido em 1908 e
se torna rapidamente famoso. Por outro lado, embora a menção à
“voz que dá ordens às imagens da tela” compareça aqui à maneira
de uma expressão figurada, é oportuno lembrar um personagem
importantíssimo do primeiro cinema: o operador-comentarista,
incumbido ora de relatar o que se vê, ora, com o surgimento dos
letreiros ou legendas, da leitura desses textos, se as características
do público o exigem. Nem totalmente um apresentador, como o que
possuem vários entretenimentos compostos de atrações (circo,
vaudeville etc.) nem totalmente (ou continuamente) um narrador,
o operador-comentarista introduz, no entanto, com sua presença
e com sua palavra, um princípio de continuidade, de re-união do
desconexo, além de facilitar especificamente a decodificação de fitas
‘pouco claras’. Na época em que escreve López Velarde, o papel do
operador-comentarista encontra-se em retrocesso (para o público
alfabetizado) e o das legendas em franco avanço, fazendo proliferar a
palavra escrita dentro do filme – fenômeno que, por sua vez, suscitará
controvérsias tanto entre cineastas como entre escritores-críticos.
Mas seu papel histórico como mediador e articulador não deve ser
Os escritores-cronistas vão ao cinematógrafo | 39

menosprezado; o operador-comentarista cumpre, a sua maneira,


uma função análoga à do cronista: a de renarrativizar parcialmente
o descontínuo e heterogêneo.16
Concluída a Revista Pathé, passa-se à projeção de outra fita:

Desenvolve-se uma conspiração tenebrosa da polícia contra uns


hábeis ladrões que usam fraque e passeiam de automóvel. São
ladrões inteligentes como um acadêmico e decididos como um
capitão esforçado. Intrigam sempre e matam quando é preciso.
Mas a polícia comete a crueldade de perseguir cavalheiros com
tão excelentes qualidades. Prepara armadilhas... e nunca são pegos
nelas. Fogem no trem, embarcam em portos distantes e ao chegar à
praia de destino caem, por fim, em poder da autoridade. O público
das galerias aplaude. Somente no cinema os misérrimos plebeus
ficam do lado da polícia... (Ibid., p. 167).

16
Outras práticas de codificação/decodificação integram esse universo de relações
tensas, porém intensas e fluidas, entre o visual, o verbal oral e o verbal escrito
que caracteriza o período. Nesse sentido, vale a pena transcrever uma passagem
da Historia del cine boliviano, de Alfonso Gumuncio Dargon, pois ela atesta, por
um lado, a prematura e ampla difusão do cinema de atrações, das ‘unidades’ que o
compõem e sua estabilidade até meados da década de 1910. De fato, a crônica de
López Velarde refere, no substancial, o mesmo padrão de programação citado por
Gumuncio Dargon, como o leitor poderá comprovar logo em seguida. Por outro lado,
a citação mostra o papel da imprensa não apenas como veículo de propaganda, mas
de decodificação antecipada do espetáculo: “Em 29 de setembro de 1905 é publicado
o primeiro programa do Biógrafo Paris na íntegra, num jornal boliviano, que incluía
na primeira parte ‘A tragédia instrutiva em oito quadros, representada mais de cem
noites seguidas nos teatros de Europa e de América’ denominada Romance de amor.
Convém mencionar os subtítulos dessas oito partes: 1) Seduzida, 2) Do trabalho ao
prazer, 3) Abandonada, 4) Morrendo de fome, 5) Carta aos pais, 6) Terrível expiação,
7) O hospital e 8) Perdão dos pais. Todo o argumento é dado aí, antecipadamente,
e supomos que fazia rolar muitas lágrimas. Mas como remédio para as lágrimas,
depois de um intervalo musical com o Gramofone Columbia e a ópera Aída, de Verdi,
pelo célebre Enrique Caruso, vinha a apresentação de vistas cômicas, entre elas, O
gato guloso, Um bom laxante, O estudante, Um rival de Santos Dummont e Ladrões de
ninhos. Todos eles filmes franceses. Quanto à segunda parte do programa, o jornal
destacava “o bonito drama histórico mexicano em sete quadros”, intitulado Vingança
índia ou índios Cowboys. Aqui também os diferentes quadros deixam supor todo o
argumento: 1) Índio espião castigado, 2) Saída da diligência, 3) Assalto à diligência,
4) O cachorro mensageiro, 5) Os raptores perseguidos, 6) Em poder dos índios e 7)
Liberação dos prisioneiros. Quantas milhares de fitas de cowboys inspiraram-se em
esquemas que parecem colados desta fita da primeiríssima história do cinema?”
(Gumuncio Dargon, 1983, p. 29).
40 | Miriam V. Gárate

A animadversão do cronista em relação aos “misérrimos


plebeus” é eloquente o bastante para dispensar comentários, mas
introduz de forma oblíqua alguns dados de interesse: a mobilidade
da identificação projetiva (da câmera, dos planos), que permite ao
espectador ‘ser’ alternativamente ladrão e autoridade; a importância
do motivo da perseguição no desenvolvimento de um recurso
fundamental para a linguagem cinematográfica clássica, a montagem
paralela alternada, e para alguns gêneros de êxito e de consolidação
precoce, especialmente o western e o policial.17
À atração endereçada às galerias superiores sucede “a fita
favorita das crianças”, protagonizada por animais: “Um par de gatos se
penduram no focinho de um pintinho de posse de uma metralhadora.
A alegria das crianças se traduz no estrépito de seu riso e as vozes
infantis flutuam no salão com timbres sonoros, como pregões de saúde
moral” (Ibid., p. 167). Em seguida, a última “porção do espetáculo”:

Não seria justo que a moça que veste sua primeira saia comprida,
que suporta o assédio do primeiro conquistador e que já sabe
esgrimir seu olhar como uma lança, ficasse sem sua porção do
espetáculo. Para ela é a fita espessa que se inicia no bosque espesso,
onde uma rústica rapariga tropeça uma tarde com um moço bem-
apessoado e milionário que lhe diz coisas amáveis e a leva ao país
da ilusão, a teatros suntuosos, a catedrais onde o mármore aninha
em esculturas semelhantes a fábulas, a bailes regionais em que a
luz banha as sedas... mas o moço se entedia logo, a pobre pombinha
chora, desenganada e contrita volta ao bosque paterno numa noite
inclemente e recebe a notícia de que sua mãe morreu de dor devido

17
Cabe lembrar que 1913 é o ano de lançamento de Fantômas, série de cinco filmes
dirigidos por Feuillade e produzidos pela Gaummont, baseados nos volumosos
exemplares publicados mensalmente por Pierre Souvestre e Marcel Allain a partir
de 1911, cujas edições teriam atingido uma tiragem de 600.000 exemplares na
França e sido traduzidas em vinte línguas, segundo Sadoul (1983, p. 167). O projeto
de filmar Fantômas inspirava-se em sucessos anteriores, como o seriado Nick
Carter, le roi de détectives (1908), dirigido por Victorin-Hypolyte Jasset e baseado,
por sua vez, em publicação homônima norte-americana de 1886, que, traduzida e
republicada na França, teve enorme sucesso no início do século XX. O México teria
sua própria série policial de grande repercussão em 1919: os doze episódios do
filme El automóvil gris, dirigidos por Enrique Rosas, Joaquín Coss e Juan Canals de
Homs e baseados numa série de delitos cometidos na capital mexicana durante
1915. As relações entre cinema, público (especialmente o oriundo das camadas
populares) e comportamento serão objeto de análise no terceiro capítulo.
Os escritores-cronistas vão ao cinematógrafo | 41

à sua ausência. E a moça da primeira saia comprida, ao concluir a


tarde e se acenderem as lâmpadas, tem nos olhos duas lágrimas e
uma expressão de sonho... (Ibid., pp. 167-168).

É desnecessário assinalar a longa tradição prévia de uma


fórmula que proverá um vastíssimo arsenal de fitas, entre elas, essa
espécie de Dame aux camélias à mexicana, intitulada Santa. Escrita
em 1903 por Federico Gamboa, foi rodada em versão silente em 1918
por Luis G. Peredo e refilmada em versão sonora em 1931 por Carlos
Moreno, com roteiro/adaptação de um escritor, cronista e crítico de
cinema cuja produção será examinada mais adiante, Carlos Noriega
Hope. O melodrama e suas variações constituirão outro grande polo de
produção do cinema clássico, tão popular como o western e o policial.
Aplausos, risos, lágrimas, “expressões de sonho”: signos
de uma participação afetiva cuja intensidade será potenciada pela
linguagem fílmica em formação, alimentando numerosos debates
sobre os desdobramentos da imitação, na vida, daquilo que se vê na
tela. Embora o olhar de López Velarde não transponha os limites da
sala, seu deambular dos filmes às galerias e às poltronas em busca de
‘correspondências’ acena em direção às ruas. Tampouco nesse caso
se tratava, a rigor, de uma discussão nova, mas a força da identificação
projetiva e o caráter massivo do novo espetáculo alteravam a escala
do eventual ‘contágio’ e seus efeitos. Sem abandonar seu lastro
‘realista’, o que principiara por ser uma viagem a outras geografias
vai se tornando uma viagem às possíveis outras geografias de si.

Ceci (ne) tuera (pas) cela

A aparição de novas práticas e produtos culturais associados


a novas tecnologias suscitou periodicamente reações variadas,
num espectro que costuma ir da exaltação eufórica à profecia
apocalíptica. Via de regra, o fascínio diante de um novo recurso ou de
uma “máquina milagrosa” alterna-se com a percepção das ameaças
que estes comportam para as práticas estabelecidas; via de regra,
ao estremecimento se segue uma fase de reacomodação, revertendo
em formas de hibridação e de intercâmbio entre o velho e o novo.
Embora menos habituais, contemporaneamente às manifestações
categóricas de encantamento ou de susto, é possível encontrar
42 | Miriam V. Gárate

respostas mais nuançadas e complexas. Não foi diferente com o


cinematógrafo, que, longe de configurar um marco zero, se insere na
trajetória das relações a um tempo estreitas e problemáticas entre
o campo da letra e o campo da imagem, constituindo uma espécie
de ‘capítulo final’ (provisório), cujo preâmbulo talvez esteja dado
pelos atritos no próprio âmbito da escrita durante o período de
modernização da imprensa que vem sendo examinado. Com efeito, ao
comentar o estímulo que representou o telégrafo para a conformação
desse novo objeto linguístico denominado notícia e desse novo tipo
de escritor chamado repórter, Julio Ramos (2008, p. 116) destaca
que o fenômeno tendeu a “problematizar a legitimidade das letras”
(a deslindar em seu interior aquilo que hoje entenderíamos como
“literatura”) no seio do jornalismo. E acrescenta:

À primeira vista, a antítese entre jornalismo e literatura poderia


parecer, hoje, um lugar comum. Na década de 80, no entanto,
essa diferenciação entre a literatura e o uso de uma linguagem
especificamente jornalística era relativamente nova. A antítese
registra a fragmentação das funções discursivas, pressupostas pelo
aparecimento do sujeito literário moderno: o “campo da fantasia”,
a “elegância das formas”. Ou seja, no sistema anterior, o intelectual
era um “propagandista” e o jornal, o lugar das letras, operando em
função da extensão da ordem da escrita. Porém, já na década de
80, aquela indiferenciação começa a ser questionada, na medida
em que as letras e a escrita exibem, em vários momentos, práticas
antagônicas, competindo por autoridade no interior de uma nova
divisão de trabalho sobre a língua (Ibid., p. 117).

Nesse contexto, poucos teriam sido os entusiastas de


primeira hora em relação aos efeitos da reorganização e da abertura
da imprensa (o crítico menciona como exceções o cubano José
Martí e o peruano Manuel González Prada). Assim, não obstante a
literatura de finais do século XIX tenha sido exercida e tenha circulado
intensamente nessa mídia, “os novos literatos, inclusive no jornal,
frequentemente autorrepresentavam seu discurso em oposição aos
usos da escrita que o jornalismo instituía” (Ibid., p. 118). Mais ainda,
habitualmente denunciavam o jornal como agente responsável por
uma suposta “crise” da literatura, à qual Justo Sierra, citado por
Ramos se refere nos seguintes termos: “O jornal [é o] assassino
do livro (o assassino de Notre Dame) que vai fazendo da literatura
Os escritores-cronistas vão ao cinematógrafo | 43

uma reportagem...” (Ibid. p. 118). Em três décadas, o enunciado de


Sierra seria virado pelo avesso e serviria para definir as qualidades
de Pathé-Baby (1926) na visão do antropofágico Oswald de Andrade,
quem redige o prefácio à publicação das crônicas de Alcântara
Machado na forma de livro, fato que reenvia uma vez mais ao vaivém
entre mudança e permanência e será objeto de uma análise detida
no último capítulo.18
Paisagem semelhante à desenhada por Ramos é traçada por
Renato Cordeiro Gomes (2008) ao examinar a relação entre novas
tecnologias e produção cultural no âmbito brasileiro de finais do
século XIX, contexto no qual salienta as reportagens feitas por João
do Rio a seus pares para a Gazeta de Notícias. De acordo com Gomes,
o pivô das reportagens realizadas em 1905 e compiladas dois anos
mais tarde no livro O momento literário é precisamente a indagação
sobre o papel benéfico ou prejudicial do jornalismo para a arte
literária:

Antenado com o diálogo muitas vezes tenso da mídia com as artes,


João do Rio busca ver como a mídia impressa, dominante naquela
época, tornava-se uma preocupação para esses escritores que,
conscientes do papel que o jornal vinha desempenhando, agora
aprimorado pelas novas técnicas, viam com alguma desconfiança
a influência incontornável do jornal na literatura. A maioria
desses escritores, é bom ressaltar, tinha estreita ligação com a
imprensa, em que escreviam (por isso, as respostas são muitas
vezes cautelosas), mas já é demonstrada, quase sempre, uma aguda
consciência das diferenças entre a alta cultura e a cultura de massa.
Uns vêem o jornal como uma oficina para a literatura, “um grande
bem: é mesmo o único meio do escritor se fazer ler”, como diz
Bilac (Rio 1907: 10); outros, como Filinto de Almeida, acham que
“nós todos [os escritores] somos um resultado do jornalismo, que

18
Cito, porém, antecipadamente, uma passagem do prefácio de Oswald de Andrade
que testemunha esse deslocamento do critério de valor a ser examinado mais
adiante. Sustenta Oswald: “Vc [Alcântara Machado] apossou-se sem espanto
temperatura ocasional cada gente cada país. Por todo seu livro concordância amável
realmente Europa gostosa ridícula. Pathé-Baby é reportagem. Como mudam os
tempos diria Marquez Maricá pensando João do Rio. De fato da tolice amável esse
seu malogrado amigo à segurança seu estilo seu modo acertar vão diversos séculos.
Brasil país milagres acrescentaria Marquez ignorando grande literatura nossa época
é reportagem” (Andrade, [1926] 1983, p. 13, itálicos meus).
44 | Miriam V. Gárate

criou a profissão, fez trabalhar, aclarou o espírito da língua, deu ao


Brasil os seus melhores prosadores” (idem: 29); outros condenam
a pressa; outros, ainda, opinam que a prática sincera de qualquer
arte reclama o homem integralmente; o jornal assim desvirtuaria o
genuíno artista (Gomes, 2008, p. 137).

Ora, se por volta de 1880 para o mexicano Justo Sierra o


jornal podia aparecer como o assassino do livro, para Olavo Bilac, em
finais do século XIX, “desenhistas, caricaturistas, ilustradores” e seus
prolongamentos na era da fotografia e do cinematógrafo podiam ser
imputados como responsáveis pela futura morte do cronista-escritor,
denúncia expressa em um artigo da Gazeta de Notícias, datado de 13
de janeiro de 1901, que leva o título de “Fotojornalismo”:

Vem perto o dia em que soará para os escritores a hora do


irreparável desastre e da derradeira desgraça. Nós, os rabiscadores
de artigos e notícias, já sentimos que nos falta o solo debaixo dos
pés... Um exército rival vem solapando os alicerces em que até agora
assentava a nossa supremacia: é o exército dos desenhistas, dos
caricaturistas e dos ilustradores. O lápis destronará a pena: Ceci
tuera cela.

O público tem pressa. A vida de hoje, vertiginosa e febril, não admite


leituras demoradas, nem reflexões profundas. A onda humana
galopa, numa espumarada bravia. Quem não se apressar com ela,
será arrebatado, esmagado, exterminado [...]

Já ninguém mais lê artigos. Todos os jornais abrem espaço às


ilustrações copiosas, que [***] pelos olhos da gente com uma
insistência assombrosa. As legendas são curtas e incisivas: toda
a explicação vem da gravura, que conta conflitos e mortes, casos
alegres e tristes.

É provável que o jornal-modelo do século XX seja um imenso


animatógrafo, por cuja tela vasta passem reproduzidos
instantaneamente, todos os incidentes da vida cotidiana (Bilac,
[1901] 1996, pp. 165-167).

Também nesse caso será possível ler o espelho invertido do


enunciado bilaquiano – dessa vez, na apresentação redigida por João
do Rio para seu Cinematógrafo das letras, compilação de crônicas
Os escritores-cronistas vão ao cinematógrafo | 45

publicadas entre 1904 e 1908. Mas se as palavras de João do Rio


farão comparecer um a um os termos aqui convocados, mudando seu
sentido e seu signo de valor, não é de todo improcedente sustentar que
o próprio Olavo Bilac encena a tentativa de adequação do escritor-
cronista aos novos tempos, às novas regras e às novas mídias no texto
de sua autoria supracitado. No lapso que vai de “Fotojornalismo”
a “Moléstia da época”, “a pena”, ameaçada pelo “lápis”, aprendeu a
se apressar, a fazer esboços rápidos, a usar expressões “curtas e
incisivas”. Evidentemente, tanto num caso quanto no outro se trata
de uma representação, de um teatro da palavra que não deve ser
levado totalmente a sério nem compreendido ao pé da letra, mas
tampouco menosprezado.
Transcrevo algumas passagens ilustrativas dessa mise-en-
scène mediante a qual se busca situar a própria prática e as práticas
concorrentes na virada do século. Em várias delas, se exprime um
misto de simpatia e de receio, quando não de preconceito evidente,
que tende a salvaguardar o prestígio da prática e do formato
anteriores àquela que se apresenta como nova.
O primeiro fragmento, citado por Júlio Ramos, evidencia a
relação ambígua de um dos defensores da imprensa moderna, como
já se destacou:

O próprio González Prada, antecipando alguns dos tópicos da crítica


da cultura de massas, que ainda hoje estimula boa parte da “alta”
produção intelectual, afirma: “Para a multidão que não pode ou não
quer se alimentar do livro, o jornal encerra a única nutrição cerebral
possível: milhares e milhares de homens aguardam seu jornal
diário, como um velho amigo, portador da notícia e do conselho.
Onde não consegue penetrar o volume, desliza suavemente a folha
[...] No entanto, o jornalismo não deixa de produzir enormes danos.
Difunde uma literatura de clichês ou fórmulas estereotipadas,
favorece a preguiça intelectual das multidões e mata, ou adormece,
as iniciativas individuais (González Prada, Nuestro Periodismo,
apud Ramos, 2008 p. 119).

As outras três citações referem-se especificamente ao cinema


e cobrem um amplo arco de tempo que vai das projeções iniciais (é
o caso da crônica de Amado Nervo, datada de 1899) ao período de
apogeu do cinema primitivo (representado pelo artigo do também
mexicano Efrén de Campo y Valle, de 1906) e encerra-se com o tardio
46 | Miriam V. Gárate

e reativo texto de José Juan Tablada (publicado em 1927). Sustenta


Amado Nervo, ao sair de uma sessão do Veriscópio, em “La semana”,
publicado em El mundo, (20/3/1899):

O espetáculo me sugeriu como será a história do futuro: não mais


livros; o fonógrafo guardará em sua urna escura as velhas vozes
extintas, o cinematógrafo reproduzirá as vidas prestigiosas e os
refletores elétricos erguerão novamente as figuras heroicas...
Nossos netos verão nossos generais na batalha... nossos intelectuais
no proscênio... [...] Oh! Se nós tivéssemos tido a possibilidade de
reconstruir dessa forma as épocas, se mercê a um mágico aparelho
tivéssemos podido ver o imenso desfile dos séculos! (Amado Nervo,
[1899] 1995, p. 90).

Ángel Efrén de Campo y Valle (“Va a comenzar la tanda”, El


imparcial, 14/10/1906), por sua vez, afirma:

Centenas de ricos se divertem nas salas pagas e centenas de


pessoas humildes peregrinam vindas de bairros afastados, para
fruir com essa simulação da vida, que é para os que não sabem ler,
romance abreviado, jornal, drama, comédia, comentados segundo
o ângulo facial [...] Se essa máquina se aperfeiçoar, o escritor, o
jornalista, os secretários de juizado se tornarão extravagantes
criações de fantasia (Campo y Valle, [1906]1995, p. 102).

Por último, o ditame categórico de Tablada (“La abeja de la


crítica y la tiple-jazz”, El Universal, 9/10/1927):

Em rigor, o cinema é apenas um jornal diário feito de figuras em


movimento e ilustrado com títulos breves. Como o jornal, possui
sessões científicas, humorísticas, anúncios, e atreve-se, inclusive, a
publicar, em raras ocasiões, o delicado poema de uma fita colorida.
Possui até o folhetim chocante, que são os filmes seriados. E seu
sucesso enorme, sua difusão mundial, decorre do fato de que
é um jornal que pode ser lido até pelos analfabetos e não se vê
limitado pelas barreiras do idioma, visto que se expressa em uma
língua que todo o mundo compreende [...] Procurar uma estética
superior no cinema é como procurá-la nos grandes jornais, onde
circunstancialmente é possível encontrar, como na tela, um Chaplin,
mas a rigor é uma norma alheia tanto ao cinema como ao jornal
e está subordinada a sua principal finalidade: a difusão entre as
Os escritores-cronistas vão ao cinematógrafo | 47

massas e a conquista do espírito público. A arte, tanto no cinema


como no jornal, não é uma arte de finalidade estética, mas uma
indústria que se vale da arte para finalidades especiais (Tablada,
[1927] 1992, pp. 53-54).

O alto índice de recorrência dessas (auto)figurações cruzadas


pode ser comprovado ao constatar mais uma vez sua presença em
uma crônica de Luis G. Urbina, praticamente contemporânea à de
Olavo Bilac, publicada no jornal El Imparcial em 14 de junho de 1908
– “Cinematógrafo de la vida”:

Diante da folha em branco, lápis na mão, entre indeciso e distraído,


pensava eu no tema deste efêmero escrito, que providencio
semana após semana [...] Rico em matéria de acontecimentos pode
considerar-se o conjunto de dias que começou na segunda-feira
e acabará no domingo. Sete dias com seus respectivos eventos
sensacionais. Mas eis que o tempo vai embora tão depressa, tão
agitadamente, que não perdura na memória e costuma ser devorado
pelo esquecimento. Todavia, nós, os pescadores de acontecimentos,
somos obrigados a lançar o anzol, no rio revolto, desde as margens
do oportunismo. A oportunidade é a primeira condição do
jornalismo. A existência é rápida como uma vista cinematográfica
[...] Novidades, sempre novidades. As vistas fixas são uma espécie de
entreato [...] Preenchem a tela enquanto se prepara outra fotografia
giratória. E uma revista é como uma vista fixa. Na alvura da folha, o
cronista retém um episódio da vida. Retém-no apenas um instante,
o suficiente para que os olhos repousem e o aparelho se prepare
para funcionar novamente (Urbina, [1908] 1996, p. 64).

Na ciranda das representações, mais especificamente, da


representação do ato de escrever, reencontram-se novamente
as analogias empregadas por Urbina na crônica de sua autoria
anteriormente examinada, mas agora ‘libertas’ de sua referência
literal ao cinematógrafo, porque o cinematógrafo é a “existência”
– e a palavra do cronista, um aparelho insuficientemente célere
em relação à multiplicidade fugidia que vê desfilar diante dos
olhos... ao ler o jornal, matéria-prima de seu discurso: “Como vinha
dizendo, estava indeciso em relação à escolha de um assunto da
semana. Pensava: o mais curioso, sem dúvida, é o julgamento de o
Tigre” (Ibid., p. 65). Escolhido o tema, o escritor passa em revista a
trajetória do Tigre, réu condenado à morte por uma série de delitos
48 | Miriam V. Gárate

(mais uma vez, deparamo-nos com o policial) e a atuação do júri,


menos preocupado com a justiça que com a notoriedade pública.
Mas o tempo do acontecimento, o da redação jornalística e o da
crônica parecem não andar à mesma velocidade, embora todos eles
acabem, afinal, sendo engolidos pelo único tempo reinante – o do
desaparecimento, o da substituição vertiginosa de uma surpresa por
outra:

Não tinha concluído ainda este artigo, quando um repórter veio me


dizer:

– O senhor ainda não acabou, mas o julgamento, sim...

Então, tomou-me por assalto a mesma ideia do início: é uma vista


sem interesse... A vista que eu retive por um minuto, para entreter os
olhos cansados, vai desaparecer. Já quase desapareceu. Fica, branca
e reluzente, a tela. Ninguém a observa mais. Todo o mundo vira o
rosto para outro lado. Logo em seguida a atenção se concentrará
em outra coisa. O futuro anuncia vistas novas. O cinematógrafo da
vida reserva-nos muitas surpresas (Ibid., 1996, pp. 66-67).

***

Rio de Janeiro, 1909. João do Rio publica Cinematógrafo,


crônicas cariocas, livro composto de matérias breves nas quais se
alternam a flânerie pelos redutos chics da cidade e por subúrbios
marginais, a crítica de costumes, de espetáculos à la mode e de
entretenimentos populares, a observação satírica sobre as falsas
notícias difundidas nos jornais ou sobre a atualidade política – mais
uma vez, uma re-união (religação) do heterogêneo.19
Cabe à apresentação estabelecer o protocolo de leitura
segundo o qual os textos são uma sucessão de fitas e recapitular a série

19
Baseando-se em informações constantes do trabalho de João Carlos Rodrigues
(João do Rio: catálogo bibliográfico. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura.
Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural, Divisão de Editoração,
1994), Danielle Crepaldi Carvalho (2014, p. 157) sustenta que “Cinematógrafo compila
um conjunto de crônicas que o escritor publicara nos jornais cariocas A Notícia e
Gazeta de Notícias entre 1904 e 1909, em séries cronísticas ou de modo avulso, com
os pseudônimos de “João do Rio” ou “Joe”. Apenas oito crônicas, de um total de 45 e de
um curto posfácio, são oriundas da sessão homônima e, ainda assim, de partes dela”.
Os escritores-cronistas vão ao cinematógrafo | 49

inteira de analogias que vêm sendo observadas até aqui, oferecendo


uma síntese da trajetória efetuada:

Uma fita, outra fita, mais outra... Não nos agrada a primeira?
Passemos à segunda. Não nos serve a segunda? Para diante então!
Há fitas cômicas, há fitas sérias, há melancólicas, picarescas,
fúnebres, alegres – algumas preparadas por atores notáveis para
dar a reprodução idealizada de qualquer fato, outras tomadas
nervosamente pelo operador, à passagem do fato. Umas curtas,
outras longas… Com pouco tens a agregação de vários fatos, a
história ao vivo, a vida da cidade numa sessão de cinematógrafo [...]
A crônica evolui para a cinematografia. Era reflexão e comentário, o
reverso desse sinistro animal de gênero indefinido a que chamam:
o artigo de fundo. Passou a desenho e a caricatura. Ultimamente
era fotografia retocada mas sem vida. Com o delírio apressado de
todos nós, é agora cinematográfica – um cinematógrafo das letras, o
romance da vida do operador no labirinto dos fatos, da vida alheia
e da fantasia – mas romance em que o operador é personagem
secundário arrastado na torrente dos acontecimentos (Rio, [1909]
2009, pp. 5-6).20

Como é possível observar, o que “Fotojornalismo”


apresentava sob o signo da ameaça e da concorrência se torna
aqui princípio ativo e paradigma de construção. É verdade que,
como oportunamente sublinhou Flora Süssekind (1987), o texto
de João do Rio se inscreve num horizonte predominantemente pré-
modernista no referente às estratégias de escrita e, nesse sentido,
não efetiva plenamente aquilo que antevê.21 É 1909, para a literatura

20
Transcrevo o epílogo que dá continuidade a essa encenação encerrando a sessão
de Cinematógrafo: “Ao leitor: E tu leste, e tu viste tantas fitas... Se gostaste de alguma,
fica sabendo que foram todas apanhadas ao natural e que mais não são senão os fatos
de um ano, as idéias de um ano, os comentários de um ano – o de 1908, apanhados
por um aparelho fantasista e que nem sempre apanhou o bom para poder sorrir à
vontade e que nunca chegou a muito mau para não fazer chorar. A sabedoria está no
meio termo da emoção. Vale” (Ibid., p. 272).
21
Afirma Süssekind (1987, pp. 47-48): “é como se o cronista (João do Rio) assistisse,
com certo deslumbramento, à constituição de um novo horizonte técnico e tentasse
imaginar relações possíveis com ele. E, da mesma maneira que sonha, numa
crônica de 1910, com um futuro “jornal Eletro Rápido”, projeta essa imagem de um
“cinematógrafo das letras” como sinônimo de uma literatura que operasse como
os modernos aparelhos de produção e reprodução de imagens técnicas. Diante
50 | Miriam V. Gárate

e para o cinema, ainda. Mas a série de figurações óticas propostas


no prefácio acena em direção a um novo estilo, anunciando as
crônicas urbanas que anos depois serão tramadas com palavras
ou com imagens fílmicas. Em ambos os casos, o “turbilhão dos
acontecimentos”, o fluir vário do tempo/movimento que instaura
a cidade e capta o “operador” serão submetidos a procedimentos
comparáveis (voltarei sobre essa questão). Ora, tão significativo
quanto o vislumbre das crônicas como fitas ou do conjunto
como uma sessão de cinema é a percepção do próprio cronista
como operador e, mais ainda, a percepção da “mente” como um
“cinematógrafo”. A “existência” (Urbina) e o sujeito são uma coisa só:

Ao demais, se a vida é um cinematógrafo colossal, cada homem tem


no crânio um cinematógrafo de que o operador é a imaginação.
Basta fechar os olhos e as fitas correm no cortical com uma
velocidade inacreditável. Tudo quanto o ser humano realizou, não
passa de uma reprodução ampliada da sua própria máquina e das
necessidades instintivas dessa máquina. O cinematógrafo é uma
delas (Rio, [1909] 2009, pp. 4-5).

Curiosamente próximo do postulado que Edgard Morin


desenvolveria anos mais tarde em seu clássico Le cinéma ou
l’homme imaginaire (1956), o cinematógrafo funciona, aqui, como
dispositivo que molda e expressa o sujeito, como figura de sua
constituição psíquica – indelevelmente marcada pela coexistência
de modernidade e arcaísmo, de acordo com o pensador francês;
caracterizada por uma percepção distraída e fragmentária em
sintonia com as transformações em curso, de acordo com a leitura
benjaminiana de Süssekind.22 Ao se avançar na representação da

dos novos maquinismos, a reação, meio no susto, numa primeira instância, é, pois,
de imitação. Não parece possível ainda a João do Rio reelaborar criticamente esse
influxo técnico. É possível somente uma espécie de flirt rápido com ele. Situação que
não seria, no entanto, exclusividade de Paulo Barreto (João do Rio) [...] Na verdade,
a maior parte dos autores da virada do século e dos anos 10-20 pareceu hesitar
diante do horizonte técnico em configuração. Sem chegar, no período, a estabelecer
em geral ligações mais perigosas, e com melhores resultados estéticos, com tais
artefatos modernos [...] Montagens e cortes passariam a invadir, de fato, a técnica
literária com a prosa modernista”.
22
Cito: “Cinematógrafo no crânio: com isso João do Rio parece representar o triunfo
de uma percepção distraída e fragmentária por parte de leitores e espectadores.
Os escritores-cronistas vão ao cinematógrafo | 51

vida subjetiva como um cinematógrafo, retorna, inesperadamente,


a “imaginação” – a “fantasia”, como a denominara Urbina no texto de
1896. Nem a luneta de Schnaps, nem a caixa de madeira, nem a sala
de projeção são necessárias: “basta fechar os olhos e as fitas correm
no cortical”.23

Ceci (ne) réssuscitera (pas) cela

Se, por um lado, a invenção do novo aparelho e a rápida


evolução do espetáculo que invertera para sempre o rumo
inicialmente previsto (lembre-se que nas origens do cinematógrafo
encontra-se a preocupação pela decomposição e pela análise
científica do movimento, não o interesse pela reprodução ilusória
de sua continuidade) tornou mais vívida a percepção do transcorrer
temporal e de sua efemeridade como correspondentes das novas

‘A recepção através da distração, que se observa crescentemente em todos os


domínios da arte e constituí o sintoma de transformações profundas nas estruturas
perceptivas’, afirmava Benjamin, ‘tem no cinema o seu cenário privilegiado’. João
do Rio, a seu modo, se deu conta dessas transformações. ‘Interessante aquela
fita, dizes. E dois minutos depois não te lembras mais’, lê-se no Cinematógrafo.
[...] o próprio cinematógrafo trabalharia com essa possibilidade de descarte,
com uma recepção desatenta, com a superfície [...] E o escritor carioca incorpora
justamente esse passar-sem-deixar-marca. O que se percebe, por exemplo, nos
seus personagens, quase-figurinos de revista, propositadamente sem fundo, só-
superfície...” (Süssekind, 1987, p. 46).
23
Uma variante introspectiva da associação proposta por João do Rio pode ser
encontrada num breve relato de Edmondo De Amicis, datado de 1907, que interessa
aqui pela eloquência de seu título: Cinematógrafo cerebrale – parte do volume
organizado por Banda e Moure (2008). Nele, o protagonista (Il Cavaliere) vê-se
diante do dilema de preencher três longas horas sozinho, no lar, enquanto a esposa e
as filhas vão ao teatro. A situação deflagra os devaneios desse “espectador” de si, que
“não pensava no que ele queria, mas nas coisas que era levado a pensar” (De Amicis,
[1907] 2008, p. 130) pela vontade autônoma de uma psique caracterizada como
“máquina”. A ênfase, nesse caso, incide menos no fator celeridade que na deriva
‘arbitrária’ das recordações, mas evidencia, por isso mesmo, o deslocamento das
marcas que resistem e retornam no sujeito em direção à esfera do inconsciente, cuja
teorização é quase contemporânea ao surgimento do cinema, diga-se de passagem.
Não por acaso, o princípio da associação livre (Freud) e o da montagem guardam
relação entre si; não por acaso, em ambos os casos reencontra-se o vaivém entre
fragmentação/descontinuidade e religação enquanto forças estruturantes.
52 | Miriam V. Gárate

condições de existência, simultaneamente, trouxe de volta o anseio


de materializar seu contrário, de arrebatar ao tempo o instante
vivido no passado mediante sua projeção repetida no presente.24
Como vem sendo salientado, para os espectadores iniciais
o novo aparelho representou um avanço indiscutível no que tange
à fidelidade da reprodução, suscitando manifestações entusiastas
acerca de seus possíveis usos na condição de registro, arquivo,
“história viva” – oxímoro que expressa a tensão e a coexistência de
temporalidades implicadas, da mesma forma que a locução “maravilha
técnica” punha em contato imaginários conflagrados. Vários fatores
contribuem para o triunfo dessa ilusão de realidade: em primeiro
lugar, o plus de analogia entre referente filmado e imagem fílmica
resultante da precisão, da proporção e, sobretudo, do dinamismo das
imagens, o que reforça, por sua vez, o lastro indiciário dos fotogramas;
em segundo lugar, a suposta imediação dessa representação
visual por comparação com outros sistemas de representação não
mecânicos, imediação que deve ser compreendida tanto em termos
de uma maior cercania perceptiva como de um acesso supostamente
mais ‘espontâneo’ ao que se vê, precisamente porque não mediado.
Coadunados, esses fatores reforçam o efeito de presença da imagem
projetada, alimentando a ilusão de uma coincidência transitória
entre o real e seu duplo (Morin, 1956), entre o presente (que
nunca esteve ali) e sua re-apresentação (Charney, 2004). O caráter
artificioso (entenda-se, construído) de uma ilusão que existe apenas
no espectador não pode ser menosprezado e se tornou matéria de
reflexão de alguns psicólogos pioneiros (Münsterberg, Mauerhofer),
dos próprios cineastas a partir dos anos 1920 (Pudovkin, Kuleshov,
Bálaz, Eisenstein), bem como de teóricos posteriores com posições
divergentes (Morin e Charney já mencionados, entre outros), que
servem para pôr em evidência aspectos e momentos discrepantes
da própria trajetória do cinema. Todavia, cabe afirmar que, para os
primeiros espectadores, nem a posição da câmera, nem a fixidez
dos fotogramas considerados individualmente, nem o intervalo (a
descontinuidade) que os separa foram fatores que prevaleceram

24
Sobre os paradoxos que pautam a projeção cinematográfica examinada sob o
prisma das tensões continuidade-descontinuidade, presente-passado, percepção-
cognição no contexto da modernidade, Cf. o ensaio de Leo Charney, “Num instante:
o cinema e a filosofia da modernidade” (2004), em sintonia com as considerações de
Süssekind (1987) anteriormente citadas.
Os escritores-cronistas vão ao cinematógrafo | 53

sobre o efeito de presença (momentânea, porém potente) e a ilusão


de realidade (artificial e artificiosa, porém eficaz).25 É deles que
decorre o poder hipnótico do cinema, sua assim chamada “magia”,
descrita com perspicácia por Tablada em outro trecho de “México
sugestionado”, a crônica de 1906 citada mais acima:

Um sortilégio imperioso, uma fascinação incontrastável e fatal


mantêm suspensos em êxtase todos os espectadores. Eu vi damas
muito smarts conversar na igreja durante a quaresma... vi-as no
teatro criticar outras damas, perfeitamente indiferentes ao que
acontecia no proscênio. Vi tudo isso, mas nunca vi ninguém afastar
os olhos da tela de projeção [...] toda a vida, todo o sonho, toda a
ilusão estão aí, no lugar místico e sombrio como uma catacumba
[...] os sucessos mais fugazes, estão ali imortalizados e perenes. A
vida tem se fixado, e esse fantasmático reflexo, essa humanidade
que gesticula sob o fulgor lunar de outro planeta, de um mundo de
sonho, de uma comarca de Wells, possui uma superioridade sobre
a vida porque é multíplice, porque não perece num instante, porque
pode repetir-se ao infinito (Tablada, [1906] 1992, p. 46, itálicos
meus).

Assim, desde as primeiras projeções, a nova maravilha


técnica trouxe de volta a fantasia de subtrair-se ao tempo mediante a
reiteração do instante, de dar vazão à irrealidade do desejo valendo-
se do realismo da imagem fílmica. “Tudo quanto o ser humano
realizou, não passa de uma reprodução ampliada da sua própria
máquina e das necessidades instintivas dessa máquina”, afirmara
João do Rio em Cinematógrafo das letras (p. 5). O homo faber (re)
encontrava o homo demens, nas palavras de Edgard Morin.
Cito uma passagem do prefácio redigido por Morin para a
reedição francesa de seu livro, na qual postula a coexistência do
par faber/demens, bem como explicita algumas das dualidades que
comporta em sua opinião o fenômeno cinematográfico:

25
Importa salientar que o realismo do espetáculo cinematográfico é indissociável do
processo de espetacularização da realidade, processo em andamento já em finais do
século XIX, que abarca outras manifestações culturais e da vida social do período.
Sobre o tema, Cf. o artigo de Vanessa Schwartz “O espectador cinematográfico antes
do aparato do cinema: o gosto do público pela realidade na Paris fim de século”
(2004).
54 | Miriam V. Gárate

Para mim, o cinema suscitava uma interrogação-chave de toda


filosofia e de toda antropologia: o que é isso que chamamos
consciência se pensarmos em sua atividade, e chamamos cérebro
se o concebemos como um órgão-máquina? Qual sua relação com a
realidade exterior, sendo que o que caracteriza o homo, não é tanto
que ele seja faber, fabricador de úteis, sapiens, racional e “realista”,
mas que seja também demens, produtor de fantasmas, mitos,
ideologias, magias? [...] no que tange ao cinema, o modo de pensar
dominante oculta a unidade complexa e complementar do real e do
imaginário, uma das noções necessariamente excluindo a outra. Da
mesma forma, esse modo de pensar dominante postula, sob a forma
de alternativas disjuntivas, aquilo que constitui a originalidade
do cinema, isto é, o fato de ser ao mesmo tempo arte e indústria,
fenômeno social e estético, fenômeno que reenvia ao mesmo tempo
à modernidade de nosso século e ao arcaísmo de nossos espíritos.
A segunda trilha a percorrer é, pois, a relação entre modernidade
e arcaísmo [...] No cinema, atualiza-se o encantamento arcaico do
universo dos duplos, dos fantasmas sobre a tela que nos possuem, nos
envolvem, vivem em nós, por nós... (Morin, 1977, pp. X-XII, tradução
e itálicos meus).26

O mecanismo que traria de volta a ilusória ressurreição dos


mortos ou, melhor, esse retorno dos mortos-vivos, não tardaria a ser
examinado sob um prisma inédito e paradoxal em relação à fantasia

26
A reflexão de Morin, nessa espécie de revezamento perspectivístico a partir da
qual se constitui, retoma de imediato a outra face da moeda. Embora neste capítulo
interesse privilegiar a vertente arcaísmo-ilusão-repetição-perpetuação, transcrevo
a continuação de seu ensaio, a fim de restituir o duplo movimento em jogo: “No
cinema, atualiza-se o encantamento arcaico do universo dos duplos, dos fantasmas
sobre a tela que nos possuem, nos envolvem, vivem em nós, por nós, nossa vida
não vivida, alimentando nossa vida vivida de sonhos, de desejos, de aspirações, de
normas; e todo esse arcaísmo ressuscita sob a ação totalmente moderna da técnica,
da indústria cinematográfica – e numa situação estética moderna. O que permanece
oculto, assim, é o essencial; vocês, nós, eu, sendo intensamente envolvidos,
possuídos, erotizados, exaltados, espantados, amando, sofrendo, gozando, odiando,
não deixamos de saber que estamos numa poltrona, contemplando um espetáculo
imaginário; vivemos o cinema num estado de dupla consciência. Ora, esse estado
de dupla consciência, mesmo se evidente, não é percebido, não é analisado, porque
o paradigma da disjunção nos proíbe conceber a unidade de duas consciências
antinômicas em um mesmo ser. O que se deve interrogar é precisamente esse
fenômeno surpreendente pelo qual a ilusão de realidade é inseparável da consciência
de que ela é realmente uma ilusão sem que essa consciência, no entanto, mate o
sentimento de realidade” (Ibid., pp. X-XII, tradução minha).
Os escritores-cronistas vão ao cinematógrafo | 55

que visa satisfazer: em Além do princípio do prazer (1920), a pulsão


de repetição será entendida por Freud como pulsão de morte, mas
simultaneamente vislumbrada como verdade última do desejo, dado
que, como afirmaria Max Milner (1982, p. 216) algumas décadas
mais tarde, “o desejo amoroso não sabe desejar outra coisa a não ser
a repetição”. Por ora, no entanto, importa salientar somente que o
desenvolvimento dos meios técnicos de reprodução foi de imediato
associado a uma potência mumificadora vinculada, por sua vez, à
esfera dos afetos.27
Várias crônicas, como as escritas pelos mexicanos Enrique
Chávarri e José Juan Tablada em 1896, ano inicial das exibições do
cinematógrafo Lumière nesse país, testemunham o fenômeno:

O dia, imaginem só, em que seja possível unir o cinematógrafo ao


fonógrafo, os mortos ressuscitarão, poderão ser evocados como nas
sessões espíritas, poderão ser chamados da eternidade e obrigados
a falar, a se mover, a voltar à vida; eles, que tão confortáveis devem
estar no país dos espectros [...] Cada qual poderá ter seus mortos
queridos gravados numa película fotográfica do sistema Lumière e
daí poderá projetá-los na tela branca por meio da lanterna mágica
e vê-los animar-se, ao mesmo tempo que o fonógrafo falará com
a mesma voz daqueles que se foram [...] O mundo avança, não há
dúvidas; estamos a caminho da imortalidade; já conservamos
a memória dos seres amados, não em estátuas jacentes, mas em
sombras impalpáveis que se movem e nos olham e sorriem e
ameaçam, meu Deus!, deixar a tela em que se desenham, para nos
dar um abraço (Chávarri, [1896] 1995, pp. 86-87).

Como não pensar no consolo que essa ilusão traz à dor causada
pela perda de um ser amado, retornado de novo para o mundo
por esse aparelho, ressuscitado, arrancado do esquecimento e da
morte, vivendo com a enérgica e eloquente vida do movimento e
da expressão. Sonho realizável para o homem importante que, em
vez de ter um álbum fotográfico, no qual as imagens empalidecem

27
Os termos “complexo de múmia”, “mumificação” e “embalsamamento” para
refletir sobre a fotografia e o cinema da perspectiva de um “aperfeiçoamento do
realismo plástico” foram cunhadas por André Bazin em seu clássico e iluminador
ensaio “Ontologia da imagem fotográfica”, de 1945, que certamente inspirou as
ideias desenvolvidas por Morin uma década mais tarde. Bazin (1983, p. 126) destaca
que, com o advento do cinema, “pela primeira vez, a imagem das coisas é também a
imagem da duração delas, como que uma múmia da mutação”.
56 | Miriam V. Gárate

como os cadáveres nos ataúdes, teria um cinematógrafo e, quando


quisesse viajar pelo passado e mergulhar na profunda vida da
recordação, contemplaria o andar pausado da mãe desaparecida,
os movimentos gentis da namorada morta e, enquanto isso, o
fonógrafo sussurraria em seu ouvido a abençoada entoação das
frases maternais ou o ritmo apaixonado das juras de amor (Tablada,
[1896] 1995, p. 96).28

Evidentemente, essa percepção da imagem fílmica abriu


caminho à possibilidade de revisitar e de atualizar um conjunto de
motivos literários oriundos das tradições gótica, fantástica, romântica
e tardo-romântica ou decadentista, agora em chave cinematográfica.
Espectros, geralmente femininos, serão vampirizados por um
novo aparelho que busca aperfeiçoar-se mais e mais no intuito de
materializar a utopia do “cinema total”29, espectros vampirizados

28
As notas publicadas em Le Radical (“L’illusion de la vie réelle”) e La Poste (“La
mort cesserá d´être absolue”), já comentadas, tinham expressado pouco antes
essa impressão comum aos primeiros espectadores. Na primeira delas, afirma-se:
“Já conseguíamos recolher e reproduzir a palavra; agora conseguimos recolher
e reproduzir a vida. Será possível, por exemplo, rever agindo os seres queridos
que perdemos há tempo” (Banda, Moure, [1895] 2008, p. 39, tradução minha). A
segunda, de forma análoga, sustenta: “Quando esses aparelhos sejam acessíveis ao
público; quando todo mundo possa fotografar os seres queridos, não imóveis, mas
com seus movimentos, suas ações, seus gestos familiares, com as palavras na ponta
da língua, a morte deixará de ser absoluta” (Ibid., p. 41, tradução minha).
29
A noção de “cinema total” costuma ser associada às teorizações de cunho
vanguardista, nas quais serve geralmente para postular a ideia do cinema como
arte de síntese que reúne elementos plástico-picturais, rítmico-musicais, líricos
etc. Entretanto, a mesma expressão foi empregada para referir-se a um cinema do
futuro capaz de envolver (e iludir) todos os sentidos do espectador, propiciando a
experiência de uma realidade virtual indistinguível da ‘real’. O ficcionista e ensaísta
René Barjavel, autor de Cinéma total: essai sur les formes futures du cinéma (1944)
e André Bazin, em seu artigo “O mito do cinema total” (1958), entre outros, foram
responsáveis pela formulação dessa segunda vertente do conceito, à qual se faz
referência aqui. No plano das precoces experimentações efetivas tendentes à
concretização desse objetivo, cabe lembrar os óculos tridimensionais testados pelos
irmãos Lumière e as telas curvas, a cujo respeito a revista chilena Zig-Zag (“El cine
estereoscópico”) se refere nos seguintes termos: “À fita em preto e branco seguiu-
se a colorizada; à muda, a sonora, e a esta, a falante; agora trata-se de obter a fita
em relevo, acerca da qual proferiu uma conferência o Dr. Couchond, quem durante
longos anos se especializou na matéria [...] A primeira dificuldade para atingir uma
visão fotográfica idêntica à que os objetos da natureza produzem na vista humana
consiste em obter imagens em superfície curva, em vez de plana. Como conseguir
Os escritores-cronistas vão ao cinematógrafo | 57

vampirizarão, por seu turno, espectadores desavisados ou


obsequentemente fetichistas. Um vasto leque, que vai do duplo
artificial mais ou menos perfeito ao dublê – modulação realista
e as mais das vezes pessimista do ‘mesmo’ tópico –, povoa uma
série de ficções dos anos 1920/1930 e adentra na década seguinte.
Em relação a esses desdobramentos ficcionais, algumas crônicas
publicadas em princípios do século XX também funcionam como
uma espécie de antecipação. Em “Un admirable sincronismo” (s/d),
Amado Nervo postula a hipótese da “perenidade do instante” graças
à ilusão-alucinação possibilitada pelo aparelho cinematográfico,
mas concretizada de fato e tão somente no aparelho psíquico do
espectador. Muito mais que o conto El vampiro (Horacio Quiroga,
1928), considerado por boa parte da crítica especializada um texto
precursor de La invención de Morel (Bioy Casares, 1940), as palavras
de Amado Nervo prefiguram literalmente a novela do narrador
argentino:

Todos os que testemunhamos há alguns anos o triunfo do


cinematógrafo nos fizemos a pergunta: quando se poderá unir de
alguma forma a esse admirável aparelho, outro mais admirável
ainda: o fonógrafo?... Pois bem, os aparelhos se uniram e, na outra
noite, em Madri, assisti aos experimentos de perfeição feitos com
um cinematógrafo e um gramofone [...]

Ouvimos com os olhos e com os ouvidos. Acrescentem-se a isso as


fitas colorizadas e teremos a realidade, a vida que passa diante de
nós, tal qual é ou, melhor dito, tal qual foi. A perenidade do instante
efêmero, obtida para os póstumos... O homem é agora imperecível,
graças ao sincronismo de dois aparelhos familiares. A morte foi
vencida! Seguiremos olhando e ouvindo os seres que admiramos
e que amamos, e será como se não se tivessem extinguido! Que
o fantasma se mova e fale graças ao sortilégio de uma fita e de
um disco, ou que fale e se mova graças a esse outro sortilégio da

isso? Poderíamos obtê-lo por meio da visão biocular, como a do estereoscópio [...]
Mas segundo o conferencista há outro meio infinitamente mais simples e prático
que o estereoscópico... e ele consiste em restituir à imagem plana o relevo que
perdeu ao ser impressa a fotografia. O Dr. Couchond, passando da teoria à prática,
fez o experimento diante do público [...] A tela do Dr. apresenta uma superfície curva
e, com efeito, essa superfície restitui à imagem fotográfica certo grau de relevo:
não atinge o estereoscópico, mas deixa de ser plana, possui dimensões e produz a
impressão de volume” ([1930] 2011, In: Bongers, Torrealva, Vergara, p. 196).
58 | Miriam V. Gárate

energia armazenada num corpo e que constitui a vida... tanto faz!


[...] Os mesmos sentidos que testemunharam a existência [dessa
pessoa], os mesmos sentidos graças aos quais existiu, de fato, para
nós, continuarão dando fé de que ela se move, sorri, gesticula, fala,
com a mesma unidade com que executava esses atos antes de virar
pó (Amado Nervo [s/d] 1997, p. 122-124).

Lugar de efetivação do milagre, o complexo sensorial-afetivo


do espectador insufla vida aos fantasmas (aos duplos) projetados na
tela – ou, mais precisamente, projeta neles seus desejos: tanto os que
se voltam para a ressurreição de seres amados e ‘não mais extintos’
por obra da repetição quanto os desejos que encontram nas imagens
espectrais da tela um âmbito propício à identificação, à possibilidade
de ser momentânea e vicariamente outro nesta vida e de mimetizar
as experiências desse(s) outro(s). O duplo cinematográfico se move,
de início, nessas direções antitéticas e complementares, às quais
a locução identificação projetiva busca dar forma: o espectador
empresta o próprio afeto, a própria ilusão aos espectros da tela, mas
simultaneamente se nutre das ilusões e dos desejos que os espectros
promovem; o dispositivo serve para reter o fugidio, mas ao mesmo
tempo para fugir do aqui e do agora rumo a outras latitudes do
espaço, do tempo, do ser.
Esse duplo viés já era legível na crônica de José Juan Tablada
supracitada, na qual a exaltação da potência mumificadora cede
lugar de imediato ao sortilégio da projeção ‘em si’, aos devaneios e
fantasias mundanos. Cito novamente “México sugestionado” (1906):

Um sortilégio imperioso, uma fascinação incontrastável e fatal


mantêm suspensos em êxtase todos os espectadores. Eu vi damas
muito smarts conversar na igreja durante a quaresma... vi-as no
teatro criticar outras damas, perfeitamente indiferentes ao que
acontecia no proscênio. Vi tudo isso, mas nunca vi ninguém afastar
os olhos da tela de projeção [...] toda a vida, todo o sonho, toda a
ilusão estão aí, no lugar místico e sombrio como uma catacumba
[...] os sucessos mais fugazes estão ali imortalizados e perenes. A
vida tem se fixado, e esse fantasmático reflexo, essa humanidade
que gesticula sob o fulgor lunar de outro planeta, de um mundo
de sonho, de uma comarca de Wells, possui uma superioridade
sobre a vida porque é multíplice, porque não perece num instante,
porque pode repetir-se ao infinito. A paisagem que te assombra,
ou o gesto e o sorriso da mulher que te cativa estão aí; os verás
Os escritores-cronistas vão ao cinematógrafo | 59

sempre que quiseres e quantas vezes o desejares. Ah, o sortilégio


é profundo e a sedução, incontrastável; o prodigioso sonho de ópio
está ao alcance de todas as fortunas. Aí está a fada sorridente e
todo-poderosa para o bebê que abre seus olhos e acredita nela; aí
estão as paisagens que nunca terias contemplado, oh, sonhador que
nunca sairás de teu canto; aí está a mulher ídolo, a Circe que nunca
terias encontrado, oh, poeta possuído por devaneios devoradores
e fastuosas quimeras, é tua a beldade que os magnatas disputam.
É tua, sacia-te, masca teu sonho, deixa tua alma macerar-se nessa
fascinação. Desposa-te ao fulgor de plenilúnio desta fantasmagoria,
sob a luz que irradia um astro morto sobre essa terra espectral. E
castamente, já que não podes fazer outra coisa, sacia-te de realismo.
O Cinematógrafo é o Zola do impossível (Ibid., pp. 46-47).

Zola do impossível: poucas fórmulas expressam com maior


acuidade a estética que pautaria o desenvolvimento do cinema
clássico durante as décadas subsequentes, bem como o estado de
“dupla consciência” que ela suscitaria no espectador –“fenômeno
surpreendente por meio do qual a ilusão de realidade é inseparável
da consciência de que ela é realmente uma ilusão, sem que essa
consciência, no entanto, mate o sentimento de realidade” (Morin,
1977, p. XII, tradução minha).
Os escritores-críticos se debruçam

sobre o cinema

A longa passagem de José Juan Tablada citada no capítulo


precedente congrega alguns motivos definidores da situação
cinema e da cinematografia clássica em formação, que passam a ser
matéria de reflexão e de debate nas décadas posteriores:30 a extrema
eficácia do novo espetáculo para envolver o espectador, capacidade
inicialmente mesurada através da comparação com o teatro; a
caracterização desse envolvimento em termos de transporte ou
de traslado imaginário a outra cena na qual se podem projetar e
satisfazer desejos; o tipo de verossimilhança proposto por essa cena
ilusória, definido pelo cronista mediante a referência a uma estética
literária (o naturalismo, de Émile Zola); sua qualidade supostamente
narcótica, estupefaciente, compensatória e substitutiva.
A crônica continuará sendo um dos veículos responsáveis
por encenar essas questões e o fará permanecendo fiel a seu estilo
preponderantemente narrativo. Os coetâneos de Tablada (os
modernistas hispano-americanos e os pré-modernistas brasileiros)
continuarão pronunciando-se e reivindicando com frequência
para si o pretendido papel de árbitros da cultura, incumbidos de
sancionar a condição artística ou antiartística da nova atração.
Todavia, no contexto da imprensa modernizada, as décadas de
1910-1920 veem surgir novos espaços, que despontam pouco a
pouco como lugar de um incipiente exercício crítico e prototeórico.
Trata-se das colunas destinadas à divulgação e ao comentário das
estreias cinematográficas, bem como das primeiras revistas de
cinema, fruto do esforço e dos interesses de profissionais do setor.
Embora muito superficiais ainda em suas abordagens, próximas, o
mais das vezes, do reclame e da sinopse de enredos, as seções “A arte
cinematográfica”, publicada pela revista brasileira Fon-Fon a partir
de 1909, e “Cinematografía”, da argentina Caras y Caretas, que tem

30
A expressão situação cinema foi proposta por Hugo Mauerhofer em 1949 para
se referir aos fatores copresentes na projeção de um filme que acarretam uma
mudança na consciência do espectador: isolamento do mundo exterior e de suas
fontes de estímulo, alteração das sensações de tempo e de espaço, passividade física.
64 | Miriam V. Gárate

início em 1911, constituem exemplos precoces, da mesma forma que


a aparição e efêmera vida das publicações Cinema (1912) e Excelsior
(1913) na Argentina ou O cinema (1912-1913) no Brasil e El Olympia
(1913) na Colômbia.
Evidentemente, o cinema é objeto de indagações que se
desenvolvem simultaneamente em múltiplas frentes: a psicologia
(embora praticamente ignorado por três décadas, o estudo de
Hugo Munsterberg data de 1916); a estética e a história da arte (as
conferências de Ricciotto Canudo são proferidas e publicadas ao
longo da década de 1910, culminando no Manifesto das sete artes, de
1921); a sociologia e o que hoje denominaríamos a crítica da cultura
(Emilie Altenloh dá a conhecer Para uma sociologia do cinema em
1914, Kracauer e Benjamin produzem entre meados dos anos 1920
e a década de 1930 seus principais escritos sobre o tema); a reflexão
dos próprios cineastas (David Griffith publica vários artigos entre
1916 e 1921, o primeiro livro de Béla Bálazs aparece em 1924; O
roteiro e sua teoria, de Pudovkin, é de 1926). Nesse sentido, o que se
visa aqui, por meio do comentário de algumas notas publicadas nas
seções cinematográficas da imprensa, é atentar para o modo como
alguns escritores buscaram aproximar-se do novo fenômeno. Para
tanto, recorre-se a seu horizonte de referência, a seu ‘vocabulário’,
às práticas que lhes eram familiares. Sem deixar de ser textos
circunstanciais, endereçados a um vasto público cujo gosto,
sensibilidade e consumo pretendiam orientar, são simultaneamente
o registro de um modo de ler os avanços do cinema que se tornaria
hegemônico: o cinema narrativo.

Primeiros balbucios: o cinema que viu Fósforo

Em finais de 1914, os percalços do processo revolucionário


mexicano conduzem os jovens ateneístas Alfonso Reyes (1889-
1951) e Martín Luis Guzmán (1887-1976) a um temporário exílio
madrilenho e ao exercício de uma atividade inédita para ambos:
a crítica cinematográfica.31 O produto desse trabalho foi dado a

31
Alfonso Reyes (1889-1959) e Martín Luis Guzmán (1887-1976) integram junto a
outros mexicanos como José Vasconcelos (1882-1959) e ao dominicano radicado no
México Pedro Henríquez Ureña (1884-1946), o grupo nucleado em torno do Ateneo
de la Juventud, associação cultural fundada em 1909 pela geração que sucedeu aos
Os escritores-críticos se debruçam sobre o cinema | 65

conhecer sob o pseudônimo comum de Fósforo em vários órgãos


de imprensa: primeiramente, na Revista España, fundada por José
Ortega y Gasset (outubro de 1915 a janeiro de 1916); posteriormente,
no jornal El Imparcial (junho e julho de 1916); por último, na
Revista General de la Casa Calleja (setembro de 1918).32 Embora seja
excessivo sustentar que as notas de Fósforo “inauguram a crítica
cinematográfica em língua espanhola”, como afirmam Daniel Banda
e José Moure (2008, p. 339) em sua antologia de escritos sobre o
tema, é inegável que essas notas se destacam da média e evidenciam
um esforço de reflexão diferenciado.
Na Explicación previa com a qual inauguram a coluna
intitulada “Frente a la pantalla”, em 28 de setembro de 1915, Reyes e
Guzmán sustentam:

Não se devem multiplicar os entes sem necessidade – reza um


velho princípio filosófico. Mas é conveniente criar aquilo que a vida
exige: uma nova literatura, uma nova crítica – a do cinematógrafo
– é indispensável. A indústria – que às vezes aproveita as artes,
apesar de tudo o que se diz em contrário – insuflou vitalidade ao
cinematógrafo salvando-o do risco de perecer esquecido, como
um mero passatempo fugaz. Na esperança de chegar a definir um
dia, mediante o registro da mímica, uma estética da civilização
contemporânea, acompanhemos, uma a uma, as novidades
cinematográficas, formulando tal ou qual princípio, quando

modernistas (pré-modernistas no Brasil). O Ateneo levou adiante, entre 1909 e 1914,


uma série de atividades orientadas à reforma educacional e à divulgação das artes e
das humanidades, em reação ao positivismo imperante durante o porfiriato. Ambos
os intelectuais participam de um primeiro momento do processo revolucionário.
Em 1913, Victoriano de la Huerta nomeia Alfonso Reyes secretário da Delegação
mexicana na França, mas um ano e meio depois Carranza assume o poder e exonera
todos os representantes do México no exterior. Reyes opta então por trasladar-se
à Espanha em função de seus contatos com a intelectualidade daquele país. No
que tange a Guzmán, que inicialmente adere à revolução de forma mais intensa,
incorporando-se às forças villistas, será precisamente a ascensão de Huerta o fato
que motivará primeiramente sua viagem a Nova York e logo depois à Espanha. Por
volta de 1915, Reyes e Guzmán se reúnem em Madri. Ángel Miquel (1996, p. 30)
considera que os textos de ambos “representam a passagem do cronista de cinema
ao crítico cinematográfico no meio intelectual mexicano”.
32
Sob o título de El cine que vio Fósforo (2003), Manuel González Casanova recopilou
os artigos analisados nesta seção. As citações presentes no trabalho pertencem a
essa edição.
66 | Miriam V. Gárate

acreditemos tê-lo descoberto.

Por outra parte, toda arte produz artigos comerciais, objetos


de compra e venda, e quem paga é o público. Convém, pois, aos
interesses deste, que a nova arte cinematográfica seja vigiada de
perto pela crítica.

Até agora as impressões jornalísticas sobre o cinema se reduzem –


com raríssimas exceções – a discursos sentimentais, discursos aos
quais tanto se presta o drama cinematográfico […] Ensaiemos, pois,
uma nova interpretação dos filmes (Reyes, Guzmán, [1915] 2003.
p. 125).

O texto parte de um duplo diagnóstico, em função do qual se


define o programa de atuação: por um lado, assume-se com clareza
a condição industrial do cinema, mas não se faz disso um óbice para
seu desenvolvimento artístico; ao contrário, se reconhece a parceria
como necessária e proveitosa. De fato, o caráter inescapavelmente
mercantil da indústria cinematográfica e o público massivo ao
qual esta endereça seus produtos serão motivo de uma discussão
recorrente ao longo das primeiras décadas, marcadas pelo
contraponto entretenimento versus arte.33 Por outro lado, reprovam-
se a precariedade e a insuficiência dos discursos em circulação,
tornando necessária a existência de uma crítica diferenciada, capaz
de desempenhar simultaneamente funções informativas, avaliativas,
formativas e heurísticas, já que a elucidação dos “princípios” reitores

33
Expressão bem-humorada e perspicaz do misto de atração e reticência
experimentado pelos setores tradicionais diante do cinema é o artigo do uruguaio
Horacio Quiroga intitulado “Los intelectuales y el cine”, publicado em 1922 na
revista Atlántida. Cito o parágrafo inicial: “Os intelectuais são pessoas que via
de regra desprezam o cinema. Conhecem de memória, desde janeiro, o elenco e
o programa das companhias teatrais, de primeira e de sétima qualidade. Mas do
cinema não falam jamais; e se ouvem um pobre homem falar dele, sorriem com
desdém, sem desgrudar os lábios. Não é o caso de averiguar se, em matéria de
cinema, aplica-se aos intelectuais o conhecido aforismo de estética, segundo o qual
todos os wagnerianos assobiam sem cessar trechos das óperas de Verdi. Talvez o
intelectual frequente furtivamente os solitários cinemas de seu bairro; mas não
confessará jamais sua debilidade por um espetáculo do qual sua cozinheira gosta
tanto como ele, e o filho da cozinheira tanto como ambos juntos” (Quiroga, [1922]
1997, pp. 286-287). Essa tensão, ainda presente nos anos 1920, como atesta, entre
outros, o artigo de Quiroga, perpassa a crítica de Reyes e Guzmán, não obstante
prevaleça um olhar positivo.
Os escritores-críticos se debruçam sobre o cinema | 67

da estética cinematográfica faz parte dos propósitos assumidos.


Tendo em vista a definição de tais princípios, os artigos de Fósforo
instituem dois termos de comparação: o teatro, marcado pelo signo
da incompatibilidade com a nova arte; o romance de aventuras e o
folhetim, marcados pela afinidade e pelo parentesco.
Em relação ao primeiro aspecto, prevalecerá o consenso
segundo o qual cinema e teatro exigem competências interpretativas
distintas, se não antinômicas, uma constatação que servirá tanto para
alçar o cinema à condição de espetáculo com regras e necessidades
próprias – postura adotada por Reyes e Guzmán – quanto, na ala mais
conservadora, para rebaixá-lo com respeito à cena. Embora essa
abordagem centrada na dramaturgia também predomine nas notas
dos escritores mexicanos, como se poderá ver mais adiante, ao dar
início à colaboração com o periódico El Imparcial (1/6/1916), eles
publicam uma matéria cujo foco de atenção desloca-se principalmente
para as condições de recepção de ambos os espetáculos.
Reiterando em primeiro termo o “valor estético” do cinema,
num preâmbulo parcialmente semelhante ao já citado, se introduz a
oposição entre este e a cena teatral:

Algumas pessoas ainda negam valor estético [ao cinema] porque


“não gostam do cinema”; como se a pintura deixasse de ser arte
porque há pintores ruins. Vemos no cinema uma nova possibilidade
de emoções, e isso basta. Importa-nos mais o que ele promete do
que o que já realizou, e esperamos pelo dia em que se dissociem
definitivamente o cinema e o teatro (Reyes; Guzmán [1916] 2003,
p. 155).

É no intuito de contribuir para essa dissociação definitiva,


que Reyes e Guzmán se debruçam sobre as condições da mise-en-
scène e sobre os efeitos suscitados no espectador por essas duas
“artes mistas”, nas quais confluem espaço e tempo:34

Estamos, do ponto de vista prático, mais longe do cinema que do


teatro. Aquela parte de emoção social que sempre acompanha as

34
Os críticos recorrem à figura de Stevenson para estabelecer a distinção entre artes
do tempo (música, literatura), do espaço (pintura, escultura, dança, pantomima) e
mistas (teatro), incluindo o cinema na última categoria, mas diferenciando-o do
teatro por ser uma forma de “arte silenciosa”.
68 | Miriam V. Gárate

representações teatrais (o calor da própria presença humana)


desaparece no cinema e as personagens se apresentam a nós como
meras entidades visuais. Mais realista, o teatro é por isso mesmo
mais traiçoeiro: a ideia de que há em cena um homem fingindo um
caráter distinto do seu é provocada mais facilmente pelo teatro que
pelo cinema, e por isso uma fita ruim é sempre mais tolerável que
uma representação ruim [...]

De outro ponto de vista, o cinema resulta-nos mais próximo que o


teatro. O espetáculo – falando em termos práticos – fica à mesma
distância de nossos olhos que da objetiva da câmera, e esta pode
alcançar uma proximidade em relação ao objeto que nunca se dá
no teatro. Inclusive na vida cotidiana – pouco exercitados como
estamos na visão analítica das coisas –, temos poucas ocasiões de
seguir, tão de perto como no cinema, o movimento de uma chave
na fechadura ou de uma mão que escreve. Por isso consideramos
nociva a introdução de certos convencionalismos de movimento
que podem ser tolerados na distância da cena teatral, mas não na
proximidade da tela. Menciono um exemplo: o hábito de traçar
linhas retas para fingir que se escreve uma carta. Talvez essa
proximidade do objeto explique por que o drama cinematográfico
pode, muito mais que o teatro, alcançar a “criação da máscara”, a
relação fixa entre um rosto, uma gesticulação especial e um estado
de ânimo ou um temperamento determinados (Ibid., pp. 155-156).

A argumentação proposta atenta para mais de um paradoxo


associado aos eixos proximidade/distância, realidade/ilusão.
O coeficiente de realidade do teatro se vincula a sua dimensão
performática e à copresença efetiva dos corpos num mesmo espaço
convencionalmente legislado: no cenário, os atores; na plateia, o
público. É desse estar aí, empiricamente juntos, que a cena extrai
sua força, mas é também em decorrência disso que pode ver
comprometida sua eficácia. Uma interpretação pouco arrebatadora,
um olhar que se desvia do palco à procura de alguém sentado no
camarote ou na plateia interrompem o feitiço – “Eu vi damas muito
smarts... no teatro criticar outras damas, perfeitamente indiferentes
ao que acontecia no proscênio” (Tablada, [1906] 1992, p. 46). Por
outro lado, a copresença efetiva da representação e do público se dá
a uma distância constante, sujeita a variações mínimas: o espectador
pode usufruir da posição privilegiada de um camarote ou de uma
poltrona que distem menos do proscênio; pode, quando muito,
Os escritores-críticos se debruçam sobre o cinema | 69

aproximar parcialmente algum detalhe da cena mediante o auxílio de


uma luneta (não por acaso, motivo temático associado aos primeiros
close-ups do cinema primitivo, o que remete uma vez mais ao caráter
fluido de práticas em contato, a seu comércio, interação, pilhagem).
A situação se inverte quando nos deslocamos da representação
teatral para o cinema: a materialidade do representado se enfraquece,
nem os atores nem a cenografia estão fisicamente lá; ali há somente
luzes e sombras em movimento, espectros, “meras entidades
visuais”. Trata-se, portanto, de uma situação menos imediata, menos
tangível, inclusive ‘menos realista’ quando se adota como critério o
complexo perceptivo que rege a vida cotidiana. Entretanto, a objetiva
da câmera carrega o visto para perto do espectador e transporta o
espectador para perto do visto como nenhuma mise-en-scène o fizera
até então. É por meio desse artifício que se cria a ilusão da imediação,
que se consuma o sortilégio: “Eu vi damas muito smarts... no teatro
criticar outras damas, perfeitamente indiferentes ao que acontecia
no proscênio. Vi tudo isso, mas nunca vi ninguém afastar os olhos da
tela de projeção... toda a vida, todo o sonho, toda a ilusão estão aí”
(Tablada, [1906] 1992, p. 47).
Sem dúvida, hoje parece simples associar o efeito de
proximidade apontado por Reyes e Guzmán aos movimentos de
câmera, aos enquadramentos, à montagem, e ver em seus exemplos
alguns planos médios ou de detalhe típicos da cinematografia clássica:
a chave entrando na fechadura, a mão escrevendo. Mas o emprego
sistemático desses procedimentos demorou algum tempo para se
consolidar (e, inclusive, se naturalizar).35 Daí os críticos mexicanos
frisarem os “convencionalismos de movimento” toleráveis no palco,
mas inaceitáveis no cinema, que exige convenções adequadas à
redução e à variação da distância operada pela objetiva. Daí eles
evocarem a capacidade da câmera para instaurar uma relação
sensível e imediata entre “um rosto ou um gesto” e um “estado de
alma”. A fixidez da antiga máscara grega se dinamiza e muda a escala
de seus traços; desponta pouco a pouco uma nova dramaturgia (a
rigor, uma microdramaturgia) associada ao close-up.

35
Possivelmente com alguma dose de exagero, mas também de verdade, Griffith
evocaria em um artigo de 1921, publicado na revista The Mentor, a condenação da
qual fora objeto ao propor pela primeira vez “um plano no qual somente se mostrava
o rosto da personagem”, reação adversa partilhada por produtores e espectadores,
segundo ele (Griffith, [1921]. In: Banda, Moure, 2011, pp. 38-41).
70 | Miriam V. Gárate

No âmbito das teorizações cinematográficas, o realizador


Béla Bálazs insistiria em diversos escritos sobre a variabilidade
e a supressão da distância como a autêntica criação e verdadeira
‘viagem’ promovida pelo cinema. Assim, em sua Estética do filme, de
1931, ele afirma:

Quais os elementos mercê dos quais o filme se torna uma linguagem


particular? Esses elementos são: o primeiro plano, o enquadramento,
a montagem. A grande proximidade com que o primeiro plano nos
permite ver as coisas, torna-as inteiramente dessemelhantes da
maneira como as vemos na realidade [...] Não há dúvida de que o
filme revelou um mundo que até então permanecera ignorado dos
nossos olhos. O ambiente visual do homem e sua relação com ele.
Ambiente e paisagem, o rosto das coisas, o movimento das massas,
a expressão secreta de um mudo destino. Mas no curso de sua
evolução, o filme nem sempre apresentou novidades de conteúdo.
Trouxe qualquer coisa de essencial: aboliu a distância fixa do
espectador; aquela distância que, até então, fora característica das
artes visuais. No cinema o espectador não fica fora do mundo da
arte que está circunscrito no quadro ou no palco (Bálazs, [1931]
1958, pp. 19-20).36

***

Paralelamente às considerações sobre as diferenças entre


teatro e cinema e aos pronunciamentos em prol de seu divórcio, surge
nos escritos de Fósforo o motivo da afinidade entre o cinema e outra

36
A ideia é reiterada com algumas modificações no capítulo intitulado “A câmera
criativa” de seu livro Teoria do cinema: natureza e evolução de uma nova arte
(Balázs, 1945, pp. 84-85): “É verdade que a câmera cinematográfica revelou
mundos novos, até então escondidos de nós: como a alma dos objetos, o ritmo das
multidões, a linguagem secreta das coisas mudas. Tudo isso proporcionou apenas
um novo conhecimento, novos temas, novos assuntos, novo material. Uma novidade
historicamente mais importante e decisiva foi o fato de que o cinema não mostrava
outras coisas, e sim as mesmas coisas, só que de forma diferente: no cinema,
a distância permanente da obra desaparece gradualmente da consciência do
espectador e, com isso, desaparece também aquela distância interior que, até agora,
fazia parte da experiência da arte. No cinema, a câmera carrega o espectador para
dentro mesmo do filme. Vemos tudo como se fosse do interior, e estamos rodeados
pelos personagens”.
Os escritores-críticos se debruçam sobre o cinema | 71

forma da cultura estabelecida: o romance. No primeiro caso, trata-se


de uma tópica que ganha força a partir dos anos de 1910 e que será
comum tanto à maior parte da incipiente crítica cinematográfica
praticada em jornais e revistas de grande tiragem como aos manifestos
e às publicações vanguardistas (basta lembrar, nesse sentido, a
oposição Sarah Bernard/Pérola White presente no primeiro número
da Klaxon). No segundo caso, trata-se de uma proposição menos
unânime, visto que a continuidade e o desdobramento, no cinema,
das formas narrativas tradicionais serão questionados por vários
grupos de vanguarda, favorecendo associações com outras esferas
artísticas (ainda dentro do âmbito literário, com a poesia; fora deste,
com a pintura, a música e a dança). Mas se deve considerar que os
textos aqui comentados são contemporâneos ao desenvolvimento
da cinematografia clássica, cuja primeira realização plena costuma
ser vinculada à estreia de The Birth of a Nation (O Nascimento de
uma Nação, 1915), de David Griffith, e que alcançaria uma de suas
maiores expressões com Sunrise (Aurora, 1927), de Murnau. São
contemporâneos e, em grande medida, solidários em relação a
essa linguagem, bem como à sensibilidade do vasto público cujas
preferências buscam orientar, mas de modo algum contestar. As
experimentações fílmicas do Expressionismo – fortemente influído
pelo teatro homônimo e objeto de um intenso reaproveitamento
classicizante por parte de Hollywood, o que atesta o caráter tático
e provisório dos deslindes aqui propostos –, as fitas futuristas,
dadaístas ou surrealistas são manifestações endereçadas a outros
interlocutores e que datam, em muitos casos, de uma fase posterior.
A ‘operação casada’ pela qual se afasta o cinema do teatro e
se aproxima este do romance de aventuras pode ser lida numa nota
de Reyes e Guzmán intitulada “El actor cinematográfico” (Revista
España, 18/9/1915), na qual se tecem considerações a partir da
reprise de um filme protagonizado por atores da Comédie Française:

A reapresentação de Le roi de l’ar (Pathé) na semana passada


no Royalty é um acontecimento que se presta a comentários. A
fita é das mais seletas: bom argumento, bons atores (da Comédie
Française), cenários luxuosos. Entretanto, logo se percebe que
a vista não é dos dias de hoje: parece uma comédia habilmente
adaptada ao cinematógrafo, mas não uma criação cinematográfica
[...] Que significação possui, nas grandes fitas atuais, a mera
participação de comediantes distinguidos? Por muito bons que eles
72 | Miriam V. Gárate

sejam, não conseguem improvisar o traço característico dos atores


formados nas necessidades do cinematógrafo. Entre o cinema e
o teatro há uma distância enorme. O primeiro se aproxima de tal
modo à verdade física das coisas, que de seu âmago brotaram, em
carne e osso, as personagens imaginárias dos livros de aventura.
O D’Artagnan que vemos na tela supera em muito o D’Artagnan
descolorido das adaptações cênicas e se parece imensamente
ao D’Artagnan romanesco; deste último, possui não somente o
engenho e o aceno, possui a ação, a capacidade física de ação.
Como o D’Artagnan do romance, é capaz de pôr uma faísca ardente
na orelha de sua cavalgadura, e dominando os saltos do bruto
enlouquecido, salvar a vida de seus dois amigos. Da mesma forma
que nos relatos de Julio Verne, o elefante do cinematógrafo ajuda
seu amo na luta, se apodera do agressor e o lança ao abismo [...]
A escola do ator dramático, orientada a outros fins, é alheia a esse
reino de músculos e de força combinados com os matizes mais sutis
da mímica (Reyes, Guzmán, [1915] 2003, p.133).37

Complementar em relação às ideias expressas na nota acima


é um segundo artigo, intitulado “El cine y el folletín” (Revista España,
25/11/1915). Nele, os críticos sustentam:

O cinematógrafo, como entretenimento popular – ou seja, como


recriação ao alcance de todos e que satisfaz o gosto da maior
parte das classes sociais – não é comparável a nenhum outro
entretenimento da vida moderna [...] Se quisermos encontrar algo
cuja função se aproxime parcialmente à do cinema e que, como

37
Tudo indica que Reyes e Guzmán se referem ao filme de Ferdinand Zecca e
René Leprince lançado em 1913 pela Pathé: Le roi de l’aire. Embora a maioria dos
empreendimentos de Zecca não se inscrevam em sentido estrito na vertente dos
chamados “films d’art”, convém lembrar a fundação da sociedade cinematográfica
homônima, em 1908, precisamente a pedido dos sócios administradores da Comédie
Française, empreendimento do qual coparticipa a Pathé Frères. A iniciativa reflete
o esforço por parte de alguns setores tradicionais por conceder legitimidade ao
cinema como manifestação cultural, mediante a adaptação de peças reconhecidas
e a participação de atores renomados. A aposta na colaboração vantajosa entre
o cinema (cujos argumentos e recursos pareciam ter entrado em um impasse)
e o teatro (afetado pela popularidade do primeiro) redundaria em fitas como
L’assassinat du duc de Guise, primeiro título lançado pela Film d’Art em finais
de 1908, com uma hora e meia de duração. Não obstante o ‘fracasso’ do projeto,
que se esgotaria em poucos anos, os films d’art são responsáveis pelas primeiras
‘superproduções’ cinematográficas.
Os escritores-críticos se debruçam sobre o cinema | 73

este, tenha a virtude de produzir estados de ânimo gerais, temos


de buscá-lo no campo literário e nas regiões mais humildes: o
encontraremos no folhetim, no qual havia, como no cinematógrafo
– embora em quantidade mínima –, esse elemento no qual descansa
toda obra de arte que evoca o viver humano: a estética inerente à
ação. Como se fizessem parte de um mesmo edifício – e isto não é
uma irreverência –, é possível alinhar monumentos da ação, bons
e ruins: as epopeias de todos os tempos, nossa epopeia, nossos
romances, o folhetim (Reyes, Guzmán, [1915] 2003, p. 135).

As relações de diferença e semelhança se assentam em


critérios ambíguos e instáveis, servindo ora para separar, ora
para estabelecer continuidades. De um lado, teatro e cinema são
manifestações que possuem em comum o emprego de cenários e de
atores, bem como a representação de histórias através de ações e
de gestos (aos quais se soma, no primeiro caso, a voz; no segundo,
o letreiro, que passa a ser incluído com regularidade na década de
1910). Fisicamente presentes no palco ou projetados na tela graças
a um jogo de luzes e sombras, esses elementos conferem um estatuto
plástico a ambos os espetáculos – muito mais plástico, a princípio,
que a concatenação de letras/palavras em que consiste a ficção
romanesca. Mas, na relação teatro-cinema, a comum presença do
fator visual, ao invés de aproximar, exacerba as discrepâncias: os
recursos da mise-en-scène dramática se revelam pobres e limitados
diante das locações naturais ou das apuradas produções de estúdio;
as convenções interpretativas da cena, artificiais, destituídas do
“traço de improvisação” necessário.38

38
O excerto de uma entrevista concedida por Adela Carboné para El Mundo
Cinematográfico e transcrita por Reyes e Guzmán na coluna de 1/6/1916 a que já se
fez referência atesta essa discrepância, mas sob a ótica dos intérpretes de formação
teatral que incursionam no cinema e de suas dificuldades de adaptação ao novo
meio: “Os atores no cinema – Tomamos de El Mundo Cinematográfico as seguintes
palavras da atriz Adela Carboné, que trabalhou em “Flor de Arroyo”: “Nós, os atores
de comédia, ensaiamos muitos dias, e cada vez que se ensaia o papel, a situação
vai nos sugerindo infinitos detalhes e inúmeros procedimentos para a obtenção do
melhor resultado. Mas na cena muda ensaia-se no momento de executar [o filme].
E, além disso, há algo assustador: a redução do cenário, o chamado “campo”, que
não dá liberdade para se movimentar, que é motivo de preocupação constante e
tenaz [...]. É isso o que mais limita as faculdades do ator” (Reyes, Gusmán, [1916]
2003, p. 150). A proximidade da câmera é vista aqui como um obstáculo que tolhe
74 | Miriam V. Gárate

A distinção esboçada nesses artigos é uma perspectiva que só


se torna possível com o amadurecimento da sintaxe cinematográfica
clássica e com o advento de um novo tipo de representação, que
suplanta tanto a dramaturgia imperante no cinema italiano (de
grande sucesso não apenas na Europa, mas em toda a América
até meados dos anos 1910), como no cinema francês, interessado
no aburguesamento do novo espetáculo mediante a importação
de repertórios e intérpretes teatrais renomados. Nesse sentido,
a avaliação de Fósforo, sem ser falsa, é antes de tudo sintomática:
expressa a transição para um novo padrão interpretativo que passa
a ser considerado ‘inerente’ à linguagem fílmica, concomitante
à ascensão da cinematografia norte-americana; evidencia a
obsolescência de uma dramaturgia amplamente praticada nas
primeiras décadas do século XX, inclusive pelo Griffith dos primeiros
tempos, mas que devêm antítese do cinema em função da crescente
autonomia da câmera, do aumento exponencial da montagem
invisível e dos sets californianos. Ismail Xavier (1984) resume com
precisão as principais características do naturalismo hollywoodiano
em ascensão, no capítulo três de O discurso cinematográfico: a
opacidade e a transparência:

O sistema consolidado depois de 1914, principalmente nos Estados


Unidos, ao lado da aplicação sistemática dos princípios da montagem
invisível, elaborou com cuidado o mundo a ser observado através
da “janela” do cinema. Desenvolveu um estilo tendente a controlar
tudo, de acordo com a concepção do objeto cinematográfico como
um produto de fábrica. Deste modo, reuniu três elementos básicos
para produzir o específico efeito naturalista:

- a decupagem clássica, apta a produzir o ilusionismo e deflagrar o


mecanismo de identificação;

- a elaboração de um método de interpretação dos atores dentro


de princípios naturalistas, emoldurado por uma preferência pela
filmagem em estúdios, com cenários também constituídos de
acordo com princípios naturalistas;

- a escolha de histórias pertencentes a gêneros narrativos bastante

a movimentação do ator; o “improviso”, como um fator que prejudica o resultado ao


invés de beneficiá-lo.
Os escritores-críticos se debruçam sobre o cinema | 75

estratificados em suas convenções de leitura fácil e de popularidade


comprovada por uma larga tradição: o melodrama, as aventuras,
estórias fantásticas etc.

Tudo neste sistema caminha em direção ao controle total da


realidade criada pelas imagens – tudo composto, cronometrado e
previsto. Ao mesmo tempo, tudo aponta para a invisibilidade dos
meios de produção desta realidade. Em todos os níveis, a palavra de
ordem é “parecer verdadeiro”; montar um sistema de representação
que procura anular a sua presença como trabalho de representação
(Xavier, 1984, p. 31).

Desse conjunto de traços, a serem retomados em vários


momentos deste trabalho, interessa destacar por ora o imperativo
da “desteatralização”, processo correlato à conformação do star
system, segundo Edgard Morin (1989).39 Trata-se de um sistema
que será esquadrinhado em seus mínimos detalhes pelo ator, crítico
cinematográfico, cineasta e escritor brasileiro Olympio Guilherme em
Hollywood, novela da vida real, romance (memorialístico) publicado
em 1932, a ser examinado mais adiante. O que desponta nos escritos
de Fósforo como ‘naturalidade’ nascente e fortemente valorizada se
transformará, no texto de Guilherme, em seu ‘contrário’, cedendo
lugar a uma representação generalizada e fluida na qual as fronteiras
entre os sets e a ‘vida’ de astros e estrelas se tornarão indiscerníveis.

39
Refletindo sobre os fenômenos implicados na conformação do star system, Edgard
Morin (1989, pp. 83-88) se refere à “desteatralização” do desempenho dramático
nos seguintes termos: “é na medida em que o ator de cinema não é o ator teatral
que a estrela se torna possível [...] A arte ostentatória do ator é substituída pela
arte ostentatória da câmera e da montagem [...] O cinema destrói a ênfase (teatral),
ou seja, uma parte própria da técnica da representação. O cinema não se limita a
promover a ‘desteatralização’ da representação; tende também a atrofiar essa
representação. O ator de teatro, apesar de seu desempenho ser determinado
previamente durante os ensaios, fica mais ou menos entregue a si mesmo quando
está no palco. O ator de cinema é frequentemente dirigido em planos fragmentados;
ele segue as marcas de giz feitas pelo operador, usa a voz segundo as instruções
do engenheiro de som, imita a mímica do diretor. Essa disciplina automatiza [...]
Nessas condições peculiares de fragmentação e de automatização, o cinema pode
exigir atores de qualidade, capazes de imprimir uma identidade a seus personagens
mesmo privados do apoio da plateia e da energia proporcionada pela continuidade
da representação e pela unidade do papel. [...] A representação do ator de cinema se
baseia numa dialética particular. Pede-se aos atores: ‘seja natural’, e o natural torna-
se de certa forma a única técnica a ser ensinada”.
76 | Miriam V. Gárate

Mas convém não se antecipar e voltar novamente às relações teatro/


cinema/romance propostas nos artigos supracitados.
Teatro e cinema são espetáculos híbridos, em cujo interior, a
palavra – proferida em um caso, escrita/projetada mediante letreiros
no outro – possui um uso, um alcance e uma função muito diversos.
A expressividade e a força da situação dramática se materializam
nos parlamentos, na prosódia, na entoação, na voz; em boa medida,
é nessa instância que o teatro ocorre, que a ação “se encarna”, para
recorrer à expressão de Fósforo, embora se trate de uma dimensão
que coexiste e interage com os aspectos plástico-visuais da
encenação. No cinema, em contrapartida, eventos e expressividade
“encarnam” exclusivamente na imagem, no fluxo dos movimentos,
no “reino dos músculos” e nas “sutilezas da mímica”, ao passo que o
letreiro é apenas um elemento de contextualização ou de enlace – ou
melhor, deveria sê-lo, como se constatará de imediato.
Por comparação com o teatro e com o cinema, o coeficiente
plástico da narrativa escrita é simultaneamente mais ‘imaterial’,
mais difuso e mais livre (aparentemente mais livre por ser mais
‘imaterial’ e difuso). À margem das restrições concretas que a mise-
en-scène supõe, o imaginário/imaginado se ‘realiza’, aí, unicamente
através das palavras “que correm no cortical” do leitor: por isso, uma
alocução breve pode transportá-lo de imediato a outras paragens e
episódios (enquanto isso...); o uso de elipses pode acelerar o ritmo
da trama, o emprego de catálises pode promover o suspense; por
isso, os lances mais surpreendentes só precisam se submeter às
convenções genéricas para ‘existir’. E, quanto mais “humilde” o
gênero em questão, mais pródigo em matéria de aventuras, mais
atrelado à dimensão da peripécia. Não por acaso se menciona o
folhetim: Dumas, Verne, o elefante que lança para longe o adversário
com sua tromba, a cavalgada impetuosa mediante a qual os outros
mosqueteiros são resgatados. A fisicalidade que se atribui ao
romance, sua potencialidade cinética, reside nesse aspecto, no
privilégio concedido à ação (embora se trate, em certo sentido,
de uma fisicalidade mais evanescente e indeterminada ainda que
a teatral). Se o D’Artagnan da tela parece “brotar” da personagem
do livro e assemelhar-se muito mais a ele que suas “descoloridas
adaptações cênicas,” isso não se deve a uma genuína analogia de
origem nem de natureza semiótica (o que não deve fazer esquecer,
não obstante, a longeva parceria letra impressa/ilustração), mas ao
Os escritores-críticos se debruçam sobre o cinema | 77

emprego de recursos aptos para reconverter em imagens um amplo


espectro de lances e incidentes: trucagens, montagens que geram um
revezamento constante de cenários, variedade de enquadramentos e
de planos-sequência animam os espectros do imaginário romanesco
insuflando-lhes vida sob o signo da ação. A postulação dessa
continuidade (imaginária) por parte dos escritores mexicanos
implica conceber o cinema como imensa usina de aventuras. Em
meados de 1910, quando eles escrevem suas notas, essa usina
começava a ter um endereço preferencial: Hollywoodland.40

Da letra como estímulo ao letreiro como obstáculo

Se a letra provê ao cinema durante as primeiras décadas um


repertório pronto, previamente testado e conhecido por uma parte
do público (narrativas policiais, sentimentais, históricas), bem como

40
À época em que se publica o artigo que vem sendo examinado, a indústria
cinematográfica já havia lançado ao menos duas versões do romance de Dumas:
I tre moschettier (1909), filme italiano de Mario Caserini, e Les trois mousquetaires
(1912), dos franceses André Calmettes e Henri Pouctal. A nota de Fósforo, porém,
não alude a nenhuma delas, motivo pelo qual a evocação do folhetim deve ser
compreendida como signo de uma classe de textos e de sua suposta afinidade com
a tela. Transcorrida quase uma década, surgiriam duas novas versões do romance
no mesmo ano: Les trois mousquetaires (França, 1921), de Henri Diamant-Berger,
em 12 episódios, e The three musketeers (Estados Unidos, 1921), de Fred Niblo,
com o célebre Douglas Fairbanks. Na década de 1920, Reyes e Guzmán tinham
abandonado a crítica cinematográfica, mas a ordem de questões levantadas em seus
artigos continuava fazendo parte da agenda de discussões, como atestam as notas
publicadas na Argentina por ocasião desses lançamentos quase simultâneos, de
autoria de Narciso Robledal (“Los tres mosqueteros”, Caras y Caretas, 17/6/1922),
e de Horacio Quiroga (“Los seis mosqueteros”, Atlántida, 15/6/1922). Robledal
defende o seriado francês em nome da fidelidade deste à “realidade imaginativa”
fantasiada pelo leitor do romance e condena o filme norte-americano em virtude do
caráter estereotipado (entenda-se, decididamente hollywoodiano) do D’Artagnan
de Fairbanks. Quiroga, por sua vez, critica a “falta de poder evocativo” da versão
francesa e a perda de interesse dramático, em razão da multiplicação de incidentes
nímios, com o objetivo de prolongar a duração das fitas. Para além da valoração
divergente – e do amadurecimento do contraste cinema europeu/cinema norte-
americano, já consolidado nos anos de 1920 –, interessa sublinhar certo consenso
em torno da adaptabilidade/materialização (bem-sucedida ou não) do imaginário
romanesco por parte do cinema. Sobre essa questão, Cf. o livro de Gerardo Ferreira
e Andrés González Estévez (2014) acerca da crítica cinematográfica de Quiroga e
seu contexto, em especial as páginas 48 a 52.
78 | Miriam V. Gárate

procedimentos estruturais consolidados (o formato seriado, oriundo


do folhetim, é um deles), sua projeção efetiva no âmbito da tela, a
real fisicalidade da letra, por assim dizer, desempenhou funções
contraditórias. Em um primeiro momento, a entrada da palavra escrita
sob a forma de letreiros contribuiu para dilatar a extensão dos filmes,
incorporando elementos de transição espaçotemporais e sínteses
retrospectivas ou explicativas, o que representou um ganho tanto
em termos de complexidade como de legibilidade e decodificação da
trama. Não obstante, o que inicialmente surgira como procedimento
subordinado aos imperativos da ação e da interpretação invadiu
rapidamente o domínio da imagem, acarretando um tolhimento do
cinético e, como consequência, o repúdio generalizado dos letreiros.
Entre os muitos artigos que se pronunciam contra seu uso,
um deles, de autoria de Fósforo, mostra-se de especial interesse por
insistir sobre o papel da literatura como estímulo para a imaginação
fílmica, mas simultaneamente condenar a ‘literatice’ introduzida
pelo letreiro. Trata-se de uma nota sobre a adaptação de Cuore
(Coração, 1886), de Edmondo De Amicis, publicada em El Imparcial
(10/6/1916):

O cinema costuma aproveitar assuntos da literatura, e quase


não existe filme em que não seja possível identificar fontes
mais ou menos folhetinescas [...] Os episódios de Coração, de
Edmondo De Amicis, foram filmados com pouca fortuna. Na
fita intitulada Dos apeninos aos Alpes as fotografias se sucedem,
como outras tantas ilustrações do texto: as personagens quase
não agem e se limitam a aparecer e desaparecer. De forma que
o mais importante são os letreiros que nos vão contando a
história. E o letreiro é o inimigo do cinema (Reyes, Guzmán,
[1916] 2003, pp. 159-160).41

41
Em uma crítica aos seriados italianos, publicada no jornal mexicano El Imparcial
de 10/5/1916, Jean Humblot reitera o desprezo pela intromissão de uma palavra
que gera “contos ilustrados” em vez de filmes, conforme sustentam Reyes e Guzmán
na nota acima citada. Desta vez, o alvo são as adaptações de D’Annunzio, quem,
aproveitando seu prestígio na esfera literária, ingressa precocemente no mercado
cinematográfico não só vendendo os direitos de suas obras, mas redigindo letreiros:
“Outro defeito [do filme] é o excesso e a má redação dos letreiros, nos quais sequer
aparece a pretensiosa frase d’annunziana, que se adapta tanto ao cinema como a
Cristo se adaptam um par de pistolas” (Humblot, [1916] 1997, p. 213).
Os escritores-críticos se debruçam sobre o cinema | 79

Apesar do avanço em direção a uma linguagem


cinematográfica ‘autônoma’, dissociada do teatro e progressivamente
apta para representar não só ações exteriores como estados subjetivos
(questão a ser tratada em breve), ainda em meados dos anos 1920,
as problemáticas que vêm sendo comentadas continuarão em pauta.
No primeiro artigo de uma trilogia redigida pelo uruguaio Horacio
Quiroga para a revista El Hogar, publicada em 1927 sob o título
de “Teatro y cine” (partes I, II, III), o escritor historia as origens, as
transformações e os ‘descaminhos’ do novo espetáculo, denunciando
a presença de práticas já consideradas obsoletas à época, mas de
maneira alguma extintas:

Quando o cinema surgiu, viu-se nele uma simples modificação ou


sucedâneo da cena teatral. E se teve a certeza de que jamais se
afastaria das normas artísticas criadas e estilizadas pelo teatro.

As primeiras projeções foram, com efeito, um simples arremedo das


representações teatrais: breves situações de conflito, historietas
dramáticas com personagens de outras épocas sobre um pano de
fundo fortemente sentimental. Por veloz que fosse a ação que nos
oferecia a tela, ela continha, embora já disformes, os elementos
totais de um drama. Os letreiros não existiam. Aqueles episódios
participavam da pantomima, cuja identidade com o cinema, mudo
por essência, foi para os homens da época um dogma, do qual jamais
se poderia afastar a tela; e participavam, também, em mínima
escala, do teatro, cuja palavra e expressão enfática não tinham a
coragem de adotar ainda.

Depois de alguns anos, o cinema deu um grande passo adiante


na composição de suas historietas. Aumentaram os incidentes;
criaram-se os letreiros, o que permitia morigerar os gestos e os
trejeitos a que a mímica recorre para dizer que aqui, ali, acima,
embaixo ou dentro de nosso coração acontece alguma coisa.

Se quanto à técnica o progresso foi evidente, como arte, o cinema


deu um passo atrás. Transformou-se num veículo de histórias
tolamente literárias, fragmentariamente relatadas pelos letreiros
e comentadas, parágrafo a parágrafo, por manequins de expressão
exagerada e terrível, que faziam grandes esforços para mostrar que
estavam dominados pela ira, pelo terror, pelo ciúme ou pela paixão
convulsiva. Era o tempo, que ainda não passou para algumas fitas
de procedência latina, em que os galãs, para fazer compreensível
80 | Miriam V. Gárate

um letreiro que dizia claramente: “E sentiu acender em seu peito


uma paixão vulcânica por aquela mulher”, abriam muito os grandes
olhos arregalados, fechavam bem os lábios e levavam ambas as
mãos ao peito, que subia e descia com inaudita violência (Quiroga,
[1927] 1997, pp. 177-178).

Perda de dinamismo, gestualidade excessiva, pleonasmo na


relação letreiro/imagem – que se torna um “comentário” redundante
com respeito ao primeiro – confluem na crítica de Quiroga.
No campo dos pronunciamentos oriundos da vanguarda, a
postura não seria distinta no tocante a esse aspecto, como ilustra
o texto publicado no número seis da revista Klaxon (15/10/1922):

O cinema realiza a vida no que esta apresenta de movimento e


simultaneidade visual.

Diferencia-se pois muito do teatro em cuja base está a observação


subjetiva e a palavra. O cinema é mudo. E quanto mais prescindir da
palavra escrita mais se confinará ao seu papel e aos seus meios de
construção artística. Segue-se daí que tanto mais cinemática será
a obra de arte cinematográfica quanto mais se livrar da palavra,
que é grafia imóvel. As cenas, por si, devem possuir a clareza
demonstrativa da ação; e esta, por si, revelar todas as minúcias dos
caracteres e o dinamismo trágico do fato sem que o artista criador
se sirva de palavras que esclareçam o espectador. A fita que além da
indicação inicial das personagens não tivesse mais dizer elucidativo
nenhum, seria eminentemente artística e, ao menos nesse sentido,
uma obra-prima (Klaxon, 1922, p. 14).42

De fato, obras-primas que atendessem à expectativa aqui


colocada não tardariam a chegar. Dariam, inclusive, um passo a
mais: trariam para dentro da tela a “observação subjetiva”, sem
necessidade de recorrer a um único letreiro.

42
Para uma leitura do cinema em Klaxon, Cf. Stefano (2000). Para uma abordagem
comparativa entre Klaxon e a revista argentina de vanguarda Martín Fierro, Cf.
Gárate (2007).
Os escritores-críticos se debruçam sobre o cinema | 81

Da “estética da ação” à estética da subjetivação

O desenvolvimento da linguagem cinematográfica durante


as décadas iniciais do século XX suscitou reações contraditórias
por parte dos intelectuais vinculados às manifestações culturais
consolidadas: atração, mas também receio; reconhecimento de suas
conquistas e potencialidades, mas ao mesmo tempo demarcação
de fronteiras passíveis de serem ou não franqueadas, conforme a
natureza de um olhar que ora vê o cinema como eventual parceiro
e até modelo a imitar, ora como adversário e concorrente perigoso.
Os escritos que vêm sendo examinados fazem parte dessa paisagem
e contribuem, simultaneamente, para moldá-la. Nesse sentido, sem
ignorar as injunções próprias à materialidade de cada uma das
práticas envolvidas (o palco, a folha impressa, os fotogramas), nem
sua trajetória peculiar (o teatro possui uma longuíssima história,
a imprensa se encontra solidamente estabelecida, o cinema é um
recém-chegado que evolui de forma veloz e atende um vasto público
provindo principalmente das camadas médias e baixas), vale afirmar
que tanto as ênfases e as omissões presentes nesse conjunto de
textos como o teor das correlações propostas expressam, sobretudo,
uma negociação. Isso explica a simpatia inicial perante a “maravilha
técnica” chamada cinematógrafo e a recorrente visão do cinema como
instrumento de popularização da cultura, em especial proveitoso
para os setores humildes, mas também as ressalvas, quando não
a aberta objeção, ao reconhecimento de seu estatuto artístico por
parte dos setores tradicionais. Isso permite entender que, a partir
de um dado momento, se enxergue no cinema uma “estética da ação”
plena e ímpar, mas se resguardem os movimentos da interioridade
como territórios apropriados ao exercício de outras artes.
Uma das últimas notas publicadas por Reyes e Guzmán, que
merece ser citada por extenso, permite acompanhar as discussões
travadas em torno do segundo aspecto. A nota se intitula “La última
evolución del cine” (Revista General de la Casa Calleja, 1/9/1918)
e retoma a distinção teatro/cinema a partir do comentário de um
terceiro artigo:

Brander Matthews, professor de literatura dramática da


Universidade de Columbia, comentava recentemente em The
North American Review certas palavras de Howells, quem do
ponto de vista do autor dramático, via no cinema uma ameaça
82 | Miriam V. Gárate

para o teatro e lamentava os progressos do drama ótico.

“O cinematógrafo tem um poder e um alcance prodigiosos –


dizia Howells –; não há nada que não consiga levar a cabo, com
exceção de satisfazer o gosto e consolar o espírito”. E Brander
Matthews o tranquilizava, dizendo que o cinema não pode ser
uma verdadeira ameaça para o teatro, porque aquele se dedica aos
olhos, ao conflito físico e ao efeito pictórico, enquanto este opera
com o conflito psicológico, a criação de caracteres, e se endereça
sobretudo à inteligência. Até tal ponto – acrescenta –, que se alguma
consequência teve para o teatro a aparição do cinema, foi uma
consequência salutar: a de purificar o nobre cenário da tragédia de
toda bugiganga grotesca ou de toda obra de tipo melodramático,
que sim convêm particularmente ao cinema [...]

Howells, o autor dramático, vê no cinema o que o artista manual nos


procedimentos da indústria mecânica, o que o barbeiro na Gillette
[...] o antigo professor universitário não pode menos que desconfiar
das novidades não sancionadas pela tradição e não catalogadas
pelos Manuais.

Mas o mais “grave” é que o cinema ameaça atacar o teatro


precisamente em seu próprio terreno; ou melhor, no terreno que
Brander Matthews acredita ser exclusivo do teatro: a criação de
caracteres, a análise psicológica (Reyes, Guzmán, [1918] 2003, pp.
189-190).

A seguir, os escritores ponderam dessa perspectiva a


cinematografia de diversos países. Uma vez mais, as fitas italianas
serão invocadas como contraexemplo em razão dos excessos de seus
intérpretes. O cinema setentrional da Nordijk e o cinema francês
recente são considerados “evoluções truncadas” pela guerra, um
fator que contribuiu de modo decisivo para o desenvolvimento do
cinema norte-americano tanto pela crise da indústria europeia do
setor, como pela migração de realizadores e técnicos importantes
aos Estados Unidos – país do qual provém, sustentam Reyes e
Guzmán, “a última palavra” na matéria, não obstante o “abuso de
filmes detetivescos, de lutas, fugas e mortes, incêndios e naufrágios,
carros e hidroplanos” (Ibid., p. 191). A estética da ação pura parece
ter chegado a um estado de provisório esgotamento:
Os escritores-críticos se debruçam sobre o cinema | 83

Mas eis que Maurice Tourner, grande criador de filmes cuja última
obra importante é The Blue Bird,43 anuncia a evolução do cinema: a
mímica, como a técnica, já desenvolveu fortemente o drama físico
de sobressaltos; agora pode se internar no drama lento e contido,
interior. O atleta começa por se exercitar em levantar pesos com
um único impulso; pouco a pouco aprende a levantá-los com
essa lentidão que arrebata o público. A proximidade do cinema
– impossível num cenário – permite obter recursos mímicos
inconcebíveis do mais mínimo pestanejar; e a alucinação objetiva
do cinema, que não se pode equiparar ao teatro, consegue produzir
relações sutilíssimas de sensibilidade entre uma fisionomia e um
caráter. A fotografia de uma fechadura, de duas mãos entrelaçadas
que escondem um objeto e de um braço que sai de uma cortina
poupam uma quantidade de explicações que a mímica teatral
necessita, da mesma forma que as necessita a denominada música
descritiva (Ibid., pp. 189-191).

Cabe recuperar aqui uma vez mais as afirmações de Béla


Balázs anteriormente citadas. Sem dispor de um vocabulário
específico, Reyes e Guzmán atentam, porém, para os mesmos
aspectos definidos pelo realizador e teórico húngaro em sua Estética
do filme como característicos do cinema:

Quais os elementos mercê dos quais o filme se torna uma


linguagem particular? Esses elementos são: o primeiro plano, o
enquadramento, a montagem. A grande proximidade com que o
primeiro plano nos permite ver as coisas, torna-as inteiramente
dessemelhantes da maneira como as vemos na realidade (Bálazs,
[1931] 1958, p.19).

Por enquanto, interessa menos a montagem, efetivamente


referida nas últimas frases dos escritores mexicanos e vista como
fator fundamental na economia da sintaxe fílmica, que o destaque
dado ao close-up como mola propulsora de uma “microdramaturgia”

43
Maurice Tourner (França, 1876-1961). Ilustrador, desenhista, ator, torna-se
diretor de cinema por volta de 1913. Desloca-se aos Estados Unidos inicialmente
para trabalhar a serviço da francesa Éclair, depois da World Pictures e mais tarde
torna-se produtor independente. Quando Reyes e Guzmán escrevem o artigo, é
considerado um dos melhores cineastas da época. Pai do também diretor Jacques
Tourner (França, 1904-1977), cuja carreira transcorreu principalmente em
Hollywood.
84 | Miriam V. Gárate

e índice da consolidação de um “pensamento ótico”, para recorrer


novamente às palavras do cineasta húngaro (O homem visível, 1923).
Os músculos do “atleta” (impossível não reparar em um vocabulário
que remete a outra prática também em franca ascensão: o esporte)
cedem lugar ao “mínimo pestanejar” como tradução visual de um
drama “lento, contido, interior”. A “observação subjetiva”, cuja
primazia seria ainda atribuída à esfera teatral, no artigo da Klaxon,
ganha terreno na linguagem cinematográfica e se materializa como
“alucinação (da) objetiva”.

Um contraponto: Urbina versus Bodet

Duas notas jornalísticas cronologicamente pouco distantes


entre si, mas significativamente distintas, ilustram a diversidade
de percepções e posturas existentes no campo letrado perante
os avanços do cinema. A primeira delas pertence a Luis G. Urbina,
inicialmente encantado com a “maravilha técnica”, porém renitente
até o fim – a nota data de 1928 e o escritor está com sessenta e tantos
anos de idade –, a conceder-lhe capacidades e direitos equiparáveis
aos da literatura ou do drama. A segunda é de seu compatriota Jaime
Torres Bodet (México, 1902-1974), um intelectual mais jovem – mais
jovem, inclusive, que a dupla Reyes/Guzmán –, que nasce e cresce a
par do novo espetáculo, amigo íntimo de uma das stars mexicanas do
star system hollywoodiano: Dolores del Río, na qual se teria inspirado
para escrever o romance Estrella de día (1933). Em ambos os casos,
o uso frequente de locuções figuradas para instaurar oposições e
seu caráter acomodatício testemunham o teor conjuntural desses
escritos, seu lábil rigor conceitual, mas, simultaneamente, deixam
transparecer a seriedade de uma disputa que implica ceder ou
compartilhar territórios, funções e, eventualmente, admitir derrotas.
Em “El cinematógrafo y la literatura” (El Universal,
24/6/1928), Urbina retoma algumas das questões apontadas até
aqui, cotejando as propriedades da “descrição gráfica” (entenda-se,
cinematográfica) com as da “descrição literária”, em um contexto
marcado pela evasão dos escritores em direção à imagem, visto
que estes estariam, na opinião do autor, “deixando de usar os
procedimentos verbais” e substituindo-os pelos “visuais”. Partindo
desse diagnóstico, afirma:
Os escritores-críticos se debruçam sobre o cinema | 85

A descrição gráfica leva indiscutíveis vantagens sobre a descrição


literária. De forma que o mundo das coisas é absolutamente
subjugado. A vida exterior, com suas perspectivas, suas luzes e
movimentos, se manifesta sem esforço, com absoluta fidelidade.
A imaginação não tem necessidade de fazer – como diante da
página de um livro – trabalho algum de reconstituição. A retina se
encarrega, como na existência real, de levar ao cérebro as imagens
recolhidas na tela onde se projeta a vertiginosa e maravilhosa fita
fotográfica [...]

Mas eis que tudo quanto se esclarece quando se trata do mundo


exterior, se desvanece e se perde em relação ao mundo interior.

O cinematógrafo não tem psicologia ou a possui em quantidade


embrionária e difusa. O cinematógrafo é mudo. A natureza que
reproduz, fala; mas nós não a escutamos. Somos, diante dela,
um público de surdos. A vida, assim, carece de uma suprema
fórmula de expressão: o som. A atividade dos olhos é grande e,
ao mesmo tempo, é absoluta a inatividade dos ouvidos. De forma
que a imaginação, coagida a substituir os materiais auditivos pelos
visuais, empreende um trabalho excitante, um trabalho de atenção,
de penetração, melhor dizendo, de adivinhação. E com elementos
externos, [a imaginação] tenta esboçar um universo espiritual
(Urbina, [1928] 1996, pp. 83-85).

Tardiamente, Urbina continua pautando-se por uma


hierarquia que permanece incólume. Seu encantamento inicial,
apresentado no capítulo anterior, sua prematura simpatia para com o
cinematógrafo como passatempo e veículo de instrução das camadas
pobres, não afetam a ordem que distingue a esfera da cultura, com
letras maiúsculas, de seus subprodutos simplificados.44 De um lado,
a apreensão fiel da vida exterior, o cinema como espelho insuperável
do mundo físico. Mas reconhecer a supremacia da imagem fílmica
nessa esfera e referendar a distância que separa o concreto do
abstrato, o espontâneo do elaborado, o material do espiritual,
são uma coisa só. O elogio é tão explícito quanto dúbio, visto que
a “desvantagem” da descrição literária não lesa seriamente nem o

44
Duas crônicas de Urbina, intituladas respectivamente “La vuelta del cinematógrafo”
(El Mundo Ilustrado, 9/12/1906) e “Los ricos y los cinematógrafos” (El Imparcial,
22/10/1907), dão testemunho dessa separação infranqueável entre alta cultura e
cultura popular precocemente delineada pelo escritor e que ele manterá até o fim.
86 | Miriam V. Gárate

código escrito nem o leitor; acena para a sofisticação de ambos. A


tradução dos grafos em imagens mentais é uma operação complexa
(e, por complexa, implicitamente valorizada); complexa, porém não
impossível. Em contrapartida, a subjugação do mundo físico pelo
cinematógrafo “se manifesta sem esforço” – nem da câmera nem
do espectador, de acordo com essa versão naturalizada, na qual o
fenômeno fílmico é concebido como reprodução. A superioridade,
nesse caso, é proporcional ao caráter simples e direto da viagem
tela/retina/cérebro, à ausência de um “trabalho de reconstituição”
que, ao se debruçar sobre a outra metade em disputa, é julgado
pouco menos que impossível. Com efeito, desafiado a ‘encarnar’ a
intimidade do sujeito, sua psicologia, sua vida interior, o cinema se
revela uma pantomima rudimentar destituída de recursos, porque
destituída de palavras: “emudece”, enquanto a ‘natureza’ do que é
desafiado a representar, “fala”.
Se interessa destacar esse conjunto de expressões é, em
primeiro lugar, porque elas acenam em direção ao que de fato está
prestes a nascer: o cinema falado, fenômeno que reordenará uma
vez mais, e não sem dificuldades, idas e voltas, avanços e recuos,
os termos do debate (entre outras razões, porque o cinema levará
um bom tempo depois de começar a falar para aprender a calar
novamente e para que o dito não seja mero pleonasmo com respeito
àquilo que a imagem mostra e/ou sugere, como acontecera antes com
os letreiros). Mas interessa fundamentalmente porque as mesmas
expressões ressurgem, ‘invertidas’, na nota de Jaime Torres Bodet.
Para Urbina, o cinema é inapto para ‘dizer’ esferas de experiência que
competem, por natureza, ao domínio da palavra; para Torres Bodet,
o cinema vinha ‘falando’ demasiado para dizer demasiado pouco
e finalmente se emancipa, conquista por fim autonomia e estatura
artística graças ao aperfeiçoamento de uma linguagem própria que
prescinde da literatura, do letreiro, das palavras. Na concepção
limitada e limitante de Urbina (Ibid., p. 85), “apesar de seus triunfos,
o cinematógrafo jamais nutrirá a cultura nem aperfeiçoará o espírito
como o faz o livro” – isso embora a crônica se encerre com uma típica
boutade do gênero: com o cronista indo ao cinema. Para Torres Bodet,
“as artes têm sua Bastilha e Emil Janning acaba de apoderar-se dela”.
Os escritores-críticos se debruçam sobre o cinema | 87

***

A extensa nota sobre o filme Der letze Mann (O último homem


ou A última gargalhada, 1924) faz parte das colaborações redigidas
por Jaime Torres Bodet entre 1925 e 1926 para a coluna de crítica
cinematográfica “La cinta de plata”, da Revista de Revistas, publicadas
sob o pseudônimo de Celuloide.45 Como se sabe, a singular proeza
dessa fita de Murnau46 consiste em não recorrer a um único letreiro
durante os quase noventa minutos nos quais apresenta as agruras
de um porteiro de hotel removido de seu posto de trabalho às
vésperas do casamento da filha. A partir de então, o protagonista
passa a cuidar da higiene dos lavatórios do Hotel Atlantis, situação
que tenta ocultar, em vão, da vizinhança e da nova família política.
A extrema mobilidade da câmera, pródiga em plongées, contra-
plongées, travellings e panorâmicas a despeito do peso e do volume
dos equipamentos da época; o uso sistemático de close-ups que
traduzem o estado anímico do personagem e incutem valor
conotativo a objetos do cenário ou do figurino; a eficaz utilização
de fusões e outras trucagens com o mesmo propósito; a iluminação
altamente dramática, o ritmo da montagem e também, é claro, o
desempenho de Janning fazem de O último homem uma obra ímpar
do cinema silente clássico – em certo sentido, a única deveras ‘muda’.
Ao menos, até o epílogo, que transforma o desenlace disfórico,
originariamente previsto, no happy end inverossímil imposto pelos
produtores a Murnau. A derradeira gargalhada à que faz referência
o título com o qual o filme circulou em toda a América enfatiza esse
final improvável, que transforma o ex-porteiro humilhado em um
bem-humorado milionário. O único intertítulo do filme serve para

45
Luis Mario Schneider compilou esse conjunto de textos, não datados
individualmente, no livro que leva o título homônimo à coluna: La cinta de plata
(1986). As citações correspondem a essa edição.
46
Friedrich Wilhelm Murnau (Alemanha, 1888 - Estados Unidos, 1931) dispensa
apresentações. Assinale-se apenas que o impacto causado especialmente por
A última gargalhada (1924) e por Fausto (1926), ambos ainda produzidos na
Alemanha, o conduzirá aos Estados Unidos, onde rodará outras tantas obras-primas:
Sunrise (Aurora, 1927), Four devils (Quatro demônios, 1928), City girl (A garota da
cidade, 1930) e, em colaboração com Robert Flaherty, Tabu, a story of the south seas
(1931), filme experimental, misto de documentário e ficção, sonorizado embora não
falado.
88 | Miriam V. Gárate

introduzir nos últimos minutos de projeção esse segundo desfecho.47


O artigo de Torres Bodet (La última risa. Una paradoja: el
cinematógrafo mudo) inicia-se anunciando essa novidade de índole
técnica e considerando-a como signo do abandono da condição de
“apêndice ilustrado do romance”, que pautara o desenvolvimento
do cinema até então, na opinião do escritor. Ao invés de constituir
um obstáculo intransponível, a ‘mudez’ se torna aqui um anseio, um
ponto de chegada:

Há alguns dias anunciou-se um filme de Emil Jannings com o


estímulo desta novidade que era o desideratum do cinematógrafo: a
ausência absoluta de letreiros.

O interesse do cinematógrafo em lograr esse triunfo não se inspirou


num pueril desejo de habilidade técnica, ainda que, analisando bem
os problemas de estética universal, existe pouca coisa na arte que
não tenha sido, no princípio, um pequeno e difícil jogo de técnica.

Alguma coisa mais substancial se agitava, não obstante, sob esse


anseio de silêncio, e era o descobrir a essência e liberdade de uma
arte que viveu, até agora, do mistério combinado da luz e da sombra,
da mescla da literatura – anguloso esqueleto cerebral – e da pintura
–música silenciosa das formas puras. Enquanto o cinema necessitar
da literatura – boa? ruim? simplesmente medíocre? – dos letreiros,
será um apêndice ilustrado, certamente muito rico, mas só um
apêndice, do romance. Até hoje o cinematógrafo se havia resignado
a essa situação e havia encontrado o modo mais decoroso de fazê-
lo aperfeiçoando, junto com seu estilo, a graça pitoresca de sua
psicologia e a decorativa riqueza de sua paisagem exterior. Mas o
estável está em conflito com a vida [...] As artes têm sua Bastilha
e Emil Jannings acaba de apoderar-se dela. Não somente Jannings.
Seria injusto não reverenciar igualmente o diretor e o fotógrafo
(Torres Bodet, [1925-1926], 1986, pp. 175-176).

47
Sujeito a variações de acordo com a cópia que se consulte e o idioma de destino,
o conteúdo do intertítulo é aproximadamente o seguinte: “Aqui a nossa história
deveria realmente terminar, mas na vida do nosso velho homem haveria pouco mais
a ver... além da morte. O autor teve pena dele e providenciou um epílogo totalmente
improvável. Uma Herança Sensacional. Lembrar-se-á que o Sr. A. G. Money, o famoso
milionário, morreu subitamente alguns dias atrás, enquanto lavava suas mãos no
lavatório do Atlantic Hotel. Seu testamento declara que a pessoa que o tiver nos
braços na hora de sua morte deve herdar sua fortuna. O sortudo beneficiado é o
atendente de toilette, que trabalha no térreo do Atlantic Hotel”.
Os escritores-críticos se debruçam sobre o cinema | 89

Apesar do destaque concedido a Jannings nas primeiras


linhas, a menção ao diretor e ao fotógrafo, Karl Freund, testemunha
um deslocamento da atenção em direção à câmera, que ganha
força no item subsequente do artigo. Seu título revela às claras
essa transferência do centro de gravidade: Uma invenção, a câmera
que pensa. É, com efeito, muito mais dela que da interpretação
que se faz depender a redução da distância entre o espectador e a
matéria representada; são as transformações no uso da câmera que
possibilitam experimentar de perto (ou, melhor, de dentro) o drama
cinematográfico e, ao alcançar esse grau de participação afetiva,
dispensar “explicações, antecedentes, diálogos”, o palavrório, enfim,
que punha freio a seu desenvolvimento autônomo.

Até agora a câmera animou as personagens imóveis do letreiro.


Mas isso, que representou a superação de uma dificuldade no
passado, deixou de ser interessante. Aquilo que urge é unir mais
diretamente os resultados da fotografia e de nosso espírito: tornar
a câmera um objeto pensante como o roseau faible et pensant de
que falava Pascal.

Suprimidos os nomes e os antecedentes particulares das


personagens, desaparece o interesse do diálogo, que simulava o
tremor sintético da tragédia, sem que as figuras da tela percam nem
um ápice de seu interesse vital. Ao contrário, por uma lei de justa
compensação, o interesse aumenta em um grau imprevisível.

Já não somos simples espectadores de um drama, mas os integrantes


de uma ação que vivemos diretamente.

De que servia, na verdade, todo esse fardo de fitas “faladas”?


Nomes! História!... Distância pura, reflexo dessa obsessão do
desenvolvimento sucessivo (Ibid., p. 176).

A perspectiva móvel instaurada pela multiplicação de


enquadramentos e pela montagem de planos permite circular com
extrema fluidez entre exterior/interior, passado/presente/futuro,
realidade/devaneio, dá forma a um “pensamento ótico” que se
mostra capaz de franquear, inclusive, a última Bastilha, de penetrar
no subconsciente do protagonista do filme, como salienta Torres
Bodet na seção intitulada Da importância de sonhar:
90 | Miriam V. Gárate

As cenas mais perfeitas de A última gargalhada são precisamente


aquelas em que a personagem central sonha reconquistar a força
perdida e, com ela, a honrosa situação que ocupara durante anos
no hotel Atlantic. Há aí uma fusão do subconsciente vivo e do plano
oblíquo do sonho que é um admirável triunfo de exatidão e de
psicologia (Ibid., p. 177).48

Não obstante o emprego metafórico, “fusões” e “planos


oblíquos” nomeiam ao mesmo tempo procedimentos técnicos
conduzidos com maestria por Murnau/Freund nessa sequência
em que o álcool deforma a realidade, a torna difusa e cambaleante,
cedendo lugar a fantasias reparadoras. O antigo porteiro vê-se a
si mesmo (e nós com ele) transportando a toda velocidade (em
projeção acelerada) malas pesadíssimas, com uma única mão.
O espectador se embriaga com ele, sente o chão e as paredes se
mexerem com ele, sonha com ele, acorda zonzo com ele e não carece
da mínima explicação. Não por acaso, o filme valeu a Murnau o
convite de Hollywood, onde rodaria Sunrise: a song of two humans
(Aurora, 1927). A cinematografia clássica do período silente havia

48
Cabe citar mais uma vez as palavras de Béla Balázs em virtude do nítido contraste
que instauram com a postura de Urbina (em que pese o uso de dicotomias análogas:
escrita/imagem, abstrato/concreto), bem como da sintonia expressa com respeito
à percepção de Torres Bodet: “A descoberta da imprensa tornou ilegível, pouco a
pouco, a face dos homens. Tanta coisa poderia ser depreendida do papel, que o
método de transmissão de significado pela expressão facial caiu em desuso [...] O
espírito visual transformou-se então num espírito legível, e a cultura visual numa
cultura de conceitos [...] no momento, uma nova descoberta, uma nova máquina,
trabalha no sentido de devolver, à atenção dos homens, uma cultura visual, e dar-
lhes novas faces. [...] O não falar não significa que não se tenha nada a dizer. Aqueles
que não falam podem estar transbordando de emoções que podem ser expressas
através de formas e imagens, gestos e feições. O homem da cultura visual usa
tais recursos não em substituição às palavras... Os gestos do homem visual não
são feitos para transmitir conceitos que possam ser expressos por palavras, mas
sim as experiências interiores, emoções não racionais que ficariam ainda sem
expressão quando tudo o que pudesse ser dito fosse dito... O que aparece na face
e na expressão facial é uma experiência espiritual visualizada imediatamente sem
a mediação de palavras [...] No momento, o cinema está prestes a abrir um novo
caminho para a nossa cultura. Milhões de pessoas frequentam os cinemas todas
as noites e unicamente através da visão vivenciam acontecimentos, personagens,
emoções, estados de espírito e até pensamentos, sem a necessidade de muitas
palavras... A humanidade está aprendendo a linguagem rica e colorida do gesto... O
homem tornou-se novamente visível” (Balázs, [1931] 1958, pp. 78-79).
Os escritores-críticos se debruçam sobre o cinema | 91

conquistado de fato a máxima liberdade concebível no contexto


de uma estética da transparência. Houve escritores que souberam
enxergá-la.
O retorno do pleito mimético

Ao acompanhar, nos capítulos precedentes, o olhar lançado


por alguns escritores sobre a linguagem fílmica em processo de
consolidação, tangenciou-se com frequência uma questão que
deve tornar-se agora objeto de exame: a força mimética do cinema
clássico e sua eventual incidência, prejudicial ou benéfica, no
âmbito da vida social.
A vastidão e a complexidade de questões associadas à
mimese exigem que se delimitem os principais usos do termo para a
abordagem aqui proposta. Por um lado, ele remete à ‘fidelidade’ da
imagem fílmica e seu hipotético caráter reprodutor ou duplicador
de uma realidade externa. Observou-se, no entanto, que o lastro
referencial é apenas um dos traços da imagem registrada no celuloide
e que diversas intervenções realizadas desde muito cedo reverteram
na constituição de uma linguagem cinematográfica particular, que
tende a reforçar a impressão de comunicabilidade entre campo/
fora de campo, bem como a camuflar a descontinuidade entre planos
ou sequências – uma linguagem, em suma, orientada a invisibilizar
e naturalizar seus artifícios, favorecendo dessa forma a integração
do espectador na outra cena/realidade projetada na tela. Para a
consecução de tal efeito, esses procedimentos vinculados a uma
estética da transparência (Xavier, 1984) associam-se às condições de
percepção próprias da situação cinema (Mauerhofer, 1949), situação
caracterizada pela copresença dos três fatores já mencionados:
isolamento do mundo exterior e de suas fontes de estímulo,
alteração das sensações de tempo e de espaço, passividade física.49

49
Recapitulando as reações suscitadas ao permanecer em um âmbito tão isolado
quanto possível de estímulos visuais e auditivos externos, condição sine qua non
da situação cinema para Mauerhofer ([1949] 1983, pp. 376-377), o autor refere-
se aos efeitos desencadeados por tal isolamento nos seguintes termos: “alteração
na sensação de tempo, no sentido de um retardamento do curso normal dos
acontecimentos”, cujos efeitos “podem ser agrupados sob o denominador comum:
a sensação de tédio (caracterizada pela falta de “algo acontecendo” e que denota
o vazio da pessoa entediada”); alteração da sensação de espaço, no sentido de “a
iluminação insuficiente tornar a forma dos objetos menos definida, dando à
imaginação maior liberdade de interpretar o mundo que nos cerca. Quanto menor
a capacidade do olho humano de distinguir com clareza a forma real dos objetos,
96 | Miriam V. Gárate

Passividade, isolamento e alteração espaçotemporal aliam-se à


‘presença’ e à ‘veracidade’ da imagem cinematográfica para propiciar
uma experiência que se constitui como cancelamento provisório da
realidade imediata e como deslocamento (viagem) a uma realidade
paralela, cuja ilusão é mais contundente que a proporcionada pelas
representações teatral ou literária.
A eficácia da representação fílmica e a ‘facilidade’ com a qual
promove a identificação projetiva do espectador (variante subjetiva
e interiorizada da imitatio) conduzem à outra grande questão
implicada na mímese, a saber, sua função ou suas funções: experiência
destinada a prover um sucedâneo imaginário e, com isso, um alívio
emocional? Experiência que, ao invés de apaziguar o espectador,
o insta a imitar, na vida, aquilo que vê na tela? Ora uma coisa, ora
a outra? Como se pode perceber, as inquietações suscitadas pelo
novo espetáculo reenviam à problemática duradoura das relações
arte/vida e, em sentido mais amplo, das interações existentes entre
práticas simbólicas/comportamento/mundo. O valor socialmente
atribuído ao conteúdo da imitação ‘substitutiva’ ou ‘indutora’ do
desejo mais uma vez resultará decisivo na hora de fazer pender o fiel
da balança em uma ou em outra direção e de atribuir, por sua vez, um
valor benéfico ou pernicioso à representação fílmica.
Reportando-nos a um dos antecedentes significativos para
a presente indagação, caberia afirmar que o cinema repõe, de
modo exacerbado, uma polêmica suscitada pelo gênero romanesco
durante seu surgimento, sua ascensão e consolidação, processo ao
longo do qual os debates sobre as interferências existentes entre as
esferas da imaginação, da ficção e do real, do desejado, do sonhado

maior o papel desempenhado pela imaginação [...] Essa modificação da sensação


de espaço anula parcialmente a barreira entre a consciência e o inconsciente [...]
Os efeitos psicológicos da sensação modificada de tempo e espaço – i.e., o tédio
incipiente e a exacerbação da atividade da imaginação – desempenham papéis
decisivos na situação cinema. Ao se fazer a escuridão dentro do cinema, essas
mudanças psicológicas são acionadas. O filme na tela vem de encontro tanto ao
tédio incipiente como à imaginação exaltada, servindo de alívio para o espectador,
que adentra uma realidade diferente, a do filme”. No que diz respeito à passividade,
por último, Mauerhofer (Ibid., pp. 377-378) afirma: “a rapidez com que se instalam
esses efeitos é propiciada por outro elemento essencial da situação cinema, a
saber, o estado passivo do espectador [...] o espectador espera pelo filme em total
passividade e receptividade – condição esta que gera uma afinidade psicológica
entre a situação cinema e o estado do sono”.
O retorno do pleito mimético | 97

e do vivido tiveram-no como protagonista assíduo. No que tange


ao cinema, a discussão envolverá periodicamente um elemento
mediador que também serviu de pré-texto à escrita de mais de
um romance: a notícia ou os faits divers extraídos do jornal. Do
Robinson Crusoe, (1719) de Defoe, entre os exemplares iniciais, a O
vermelho e o negro (1830), de Stendhal, ou Madame Bovary (1856),
de Flaubert, entre suas expressões maduras, o romance se valeu do
episódio estampado nas páginas da imprensa a título de inspiração
e deu destaque ao “desejo mimético” (Girard, 1972) como mola
impulsionadora da ação das personagens. A representação da cena
da leitura desempenhou um papel central nessa dinâmica: Julien
Sorel lendo as memórias de Napoleão e adotando-o como modelo
para a vida; Ema Bovary devorando os folhetins românticos que a
impelem a agir à semelhança de suas heroínas. Transposto à situação
cinema, esse viés da mímese volta mais uma vez à tona.

Uma escola do crime? Cinema, gênero policial, polícia

Em 7 de novembro de 1915, publica-se no periódico El


Heraldo de Cuba “El cine y el delito”, do escritor mexicano Luis G.
Urbina. O texto retoma uma notícia recente – trata-se de uma petição
feita pela polícia de Cienfuegos – no intuito de avaliar a importância
do cinema como “escola do crime”, expressão-título de outra crônica
posterior, na qual o autor comenta, por sua vez, o assassinato de um
taxista (“Escuela normal del crimen, un discípulo aprovechado”, El
Universal, 17/1/1926). Transcrevo os parágrafos iniciais do texto de
1915:

A Delegacia de Cienfuegos, em Piedad, encaminhou ao senhor


prefeito um memorial muito interessante. Nele pede às autoridades
que proíbam aos menores de idade a entrada nos cinematógrafos,
quando os filmes exibidos sejam dramas policiais e passionais.
Porque, segundo afirma essa instituição, surgem diariamente, e em
toda a República, múltiplos casos de delinquência infantil.

Exagera-se um pouco, talvez, ao atribuir ao admirável aparelho da


fotografia em movimento a responsabilidade absoluta no aumento
da criminalidade dos meninos cubanos. Aqui, como em qualquer
outro lugar, esse fenômeno revela um mórbido estado social, cujos
núcleos devem combater-se no ambiente familiar. No mais profundo
98 | Miriam V. Gárate

das agrupações civilizadas, movimentam-se correntes ocultas,


ondas mortas, águas impuras do crime. Escondido em sua toca,
à espreita, está o lobo humano. E ali estão também seus filhotes,
prontos para a aprendizagem [...]. Para além dos mistérios da
herança, mas colaborando com suas leis fatais, o exemplo constante
do mal vai pouco a pouco afeiçoando essas crianças desventuradas
à preguiça [...] Desde cedo brincam de ladrão [...] imitam os homens
com perspicácia não isenta, às vezes, de candor [...]

Sim, a imitação é a sedução, é a preparação, é a educação. A


casa é, em muitas ocasiões, a escola do crime. E da casa à rua
há sucessivas estações de contágio. Uma delas é a que o boletim
policial assinala: o cinematógrafo. Bernard Shaw considera que
o cinema, regulamentado em todos os lugares, normatizou uma
moral adaptável a todos os meios, obrigou todas as fábulas fílmicas
a apresentar a virtude triunfante e a castigar o vício, falseando,
assim, a vida, e produzindo obras mentirosas. Eis o que me dizia
um amigo, noites passadas.

Mas tal prejuízo, se é que ele existe – o qual seria discutível –, é


provavelmente menor que o assinalado pelo Memorial de Piedad.
Com efeito: ao desenvolver-se a ação de um drama policial, se
trava o combate, a luta, a morte, entre Sherlock e Fantômas, entre
o detetive e o bandido, entre a sociedade e o insociável, entre o
Bem e o Mal. As autoridades obrigam a que triunfe o Bem. Mas
as peripécias, os incidentes, as aventuras mostram, ensinam
a audácia e o engenho com que o Mal se defende; ensinam os
infernais projetos, as diabólicas combinações, os sutis enganos, as
prodigiosas redes para caçar incautos, as incríveis artimanhas para
ocultar infâmias, as mil e três maneiras de escamotear o delito e de
ensaiar a prestidigitação do assassinato.

E se do policial passamos ao passional, a acusação se torna mais


justificada ainda (Urbina, [1915] 1996, pp. 72-73).

Deixo momentaneamente de lado a questão passional, já que


ao tratar dessa variante do delito Urbina colocará outra faceta do
problema, que exige por si só uma observação minuciosa. Por ora,
interessa sublinhar o gesto pelo qual se atribui uma preponderância
causal e uma precedência cronológica ao “mórbido estado social” a ser
combatido, mas também a importância simultaneamente concedida
às “estações de contágio”. Em consonância com ideários da época,
O retorno do pleito mimético | 99

determinismo biológico e influência do meio se complementam:


hereditariedade, família, brincadeira, cinema.
O cinema não é considerado, pois, como a origem do mal
- origem na qual o autor situa uma realidade que extravasa os
filmes e que os responsáveis por estes, como se verá de imediato,
reiteradamente alegam, quando muito, retratar, mas não criar. Seu
caráter nocivo tampouco decorre dos desenlaces mentirosos que
a censura, metamorfoseada em convenção dominante do gênero,
regulamenta na expectativa de ‘corrigir’ a vida - ao preço de falseá-la,
na opinião de Bernard Show, cujas palavras lembram a justificativa
de mais de um romancista interpelado por tribunais ao longo do
século XIX.50 O efeito pernicioso do novo espetáculo reside na
vivacidade das peripécias que mostram (ensinam) os meios e modos
de delinquir, “nos infernais projetos, nas diabólicas combinações,
nos sutis enganos” que aguilhoam o desejo mimético, fechando um
círculo interativo que reenvia da sala escura à vida, e desta à notícia
impressa, como se esclarece ainda mais na crônica redigida uma
década depois. Nela, à descrição pormenorizada das maquinações
que culminaram na morte de um taxista, iludido por um falso
passageiro, se segue esta consideração:

O garoto confessou o crime, sem embaraço, cinicamente. Come


bem, dorme bem e narra bem sua curta e aventureira existência.
O juiz incumbiu-se de recolher dados, notícias e papéis, e de
retificar ou ratificar a novela desse imaginoso delinquente. Fugindo
da casa dos pais, em La Coruña, se dedicou a correr o mundo e
virou caloteiro que ia embora sem pagar, vendedor-viajante de
produtos inventados e talvez frequentador de vícios repugnantes
e antinaturais. Um terrível degenerado, um precoce candidato ao
presídio.

Mas, segundo se averiguou, a essa inapropriada floração do mal, em


uma alma que não acabou ainda de sair da infância, a essa lesma do
crime contida num casulo ainda não aberto de todo, contribuiu, de
maneira fundamental, uma cândida diversão moderna: o cinema. O
moleque está apaixonado pela arte fílmica. E sua afeição é tamanha

50
Em relação às discussões sobre censura cinematográfica a princípios do século XX
na América Latina, Cf. a documentação compilada no item “Censuras” de Archivos
iletrados. Escritos sobre cine en Chile: 1908-1940 (Bongers, Torrealva, Vergara, orgs.,
2011, pp. 55-99). Alguns dos textos serão examinados mais adiante.
100 | Miriam V. Gárate

que, de espectador assíduo, pretendeu passar a ator, a herói do


filme (Urbina, [1926] 1996, p. 78).

A matéria publicada na revista La Película, de Buenos Aires,


que leva o título de “Moralidad, criminología... Lo de siempre. La Razón
contra el cinematógrafo” (20/5/1919), complementa e elucida essa
disputa, na qual as partes implicadas não deixam de se perguntar
quem imita a quem, no intuito de negociar responsabilidades. Nela
se transcreve um breve artigo publicado no jornal argentino La
Razón. Seguindo a mesma linha de raciocínio do relatório policial
comentado por Urbina, mas extremando-a, o jornal imputa uma boa
dose de culpa ao cinema por dois assaltos recentes. Afirma o artigo
de La Razón:

Os dois fatos têm toda a aparência dos dramas policiais dos


cinematógrafos. Todos os detalhes, sem omitir um só, parecem saídos
da tela. A preparação do crime, a violência, o automóvel esperando
[...] Todos os que leram o relato verídico do assalto concordam em
sustentar que sua origem provém das arrepiantes cenas dos filmes
norte-americanos, que aperfeiçoaram a representação do crime
mudo e teatral.

A influência perniciosa dessas fitas se faz sentir em todos os


profissionais do delito. Eles, com certeza, devem ir ao cinema para
ter aula de como se mata e de como se assalta e de como se rouba
e de como se foge. Seria bom que a polícia pensasse um pouco
no assunto. Não acreditamos que a fita torne melhores ou piores
os criminosos, mas sim acreditamos que lhes fornece lições e os
prepara para o delito, dado que a exibição cinematográfica estimula
e exalta a imaginação (La Razón, 1919, p. 5).

Ocorre que La película, uma das primeiras revistas cinéfilas


da Argentina,51 é uma iniciativa de distribuidores e trabalhadores do
setor cinematográfico, motivo pelo qual a defesa diante das acusações
feitas pelo La Razón se faz invertendo os termos da fórmula:

Embora se trate de uma questão sobre a qual é quase anacrônico


falar... gostaríamos de lembrar algumas verdades. Em primeiro

51
Sobre as primeiras publicações especializadas na divulgação e na crítica de cinema
na Argentina, Cf. Broitman e Samela (2002).
O retorno do pleito mimético | 101

lugar, se existe tão eminente semelhança entre o crime da rua


Newvery e as cenas dos filmes policiais, por que afirmar que
aqueles são reprodução dos últimos e não o contrário? A essência
da arte cinematográfica é reproduzir a realidade, a natureza e a vida
tal como elas se apresentam e é claro que, ao filmar cenas criminais,
os autores e diretores recorreram à realidade e encontraram essa
realidade muito perto... na crônica policial dos jornais importantes,
como La Razón. Suponhamos que no dia de amanhã uma empresa
argentina pretenda filmar a cena de um assalto: que material
melhor que a crônica que o ilustrado jornal vespertino faz do
crime? [...] Além disso, as fitas policiais são produto direto dos
romances policias que tanta fama adquiriram na última metade
do século passado. Os filmadores não fizeram outra coisa que
acompanhar o gosto público: Sherlock Holmes, Arsenio Lupin, etc.,
passaram do folhetim dos grandes jornais para a tela de projeção.
É essa a realidade das coisas e somente espíritos pouco equânimes
podem querer culpar acópia pelos defeitos do original. O filme
copia às vezes a realidade da vida em seus aspectos criminosos; se
isso desgosta as pessoas pusilânimes, suprimam o crime – mas o
espelho... não há por quê (Ibid, p. 5).

De fato, a “suposição” do articulista seria corroborada por


mais de um filme latino-americano de sucesso do período silente: no
México, os doze episódios de El automóvil gris, já mencionados (1919,
direção de Enrique Rosas Joaquín Coss e Juan Canals de Homs); no
Brasil, A tragédia da rua dos Andradas (1911, produção de Eduardo
Hirtz), O crime de Paula Matos (1913, direção de Paulino Botelho)
ou O crime da mala (1928, direção de Francisco Madrigano). Nesses
casos, dentre outros, aproveita-se como matéria-prima notícias
policiais de grande impacto e de ampla cobertura junto à imprensa
da época.

O contraponto: cinema e educação


Na contramão, mas operando com os mesmos pressupostos
de base, numerosos textos das primeiras décadas do século XX fazem
o elogio do cinema como veículo de instrução, de formação moral e
como escola do bom gosto. Em linhas gerais, eles priorizam o mesmo
segmento de público visado nas discussões sobre o gênero policial:
o infantojuvenil. Não poucas vezes, porém, na medida em que a
102 | Miriam V. Gárate

ênfase se desloca para o cinema como meio facilitador e acelerador


da aprendizagem, em função das oposições imagem-escrita às que
já se fez referência nos capítulos precedentes, as considerações se
estendem a um público mais vasto. A baixa frequentação e a escassa
familiaridade com a cultura do livro por parte de amplos setores da
população encontrariam um substituto eficaz nesse “moderníssimo
livro impresso em gelatina” (Perez Órdenes, 1915) que é o filme.
Retomando a fórmula da citação acima, caberia afirmar que é
precisamente a qualidade de “espelho” da imagem cinematográfica
aquilo que a torna particularmente apta no marco de propostas que
valorizam a ‘instrução pelo olhar’.
“El cine en la escuela: sus apologistas”, de Horacio Quiroga
(Caras y Caretas, n. 1116, 21/2/1920), ilustra tanto os pressupostos
como os objetivos que orientam essa tendência. Depois de invocar
autoridades políticas e educativas francesas, que se teriam
pronunciado em favor do potencial pedagógico do cinema, o escritor
afirma:

Trata-se de uma confluência crescente de forças para lutar por


uma coisa tão evidente e simples como é fazer ver ao aluno o que
nos esforçamos, desde que o mundo é mundo, em imaginar com a
leitura. Enquanto o movimento da ação não esteve ao nosso alcance,
nada mais legítimo que descrever com a pena essa ação para o
estudante [...] Mas hoje a situação é distinta [...] não há livro didático
nem professor que valha, em relação ao milhão de coisas que é
necessário ver para compreender, o que vale um modestíssimo e
silencioso filme, que é o reflexo vivo das ações do homem (Quiroga,
[1920] 1997, pp. 75-76).52

52
A contrapartida complementar da postura expressa por Quiroga pode ser lida em
uma crônica de Olavo Bilac, “Nova carta de ABC”, publicada no Correio Paulistano em
19/1/1908, que atenta precocemente para os efeitos cruzados na relação imagem-
letra, mas, acima de tudo, para o fator desejo, sobre o qual será preciso voltar, como
disparador de processos variados que podem orientar-se tanto em uma quanto
na outra direção, e em relação aos quais o suposto fator dificuldade não resulta
determinante. De fato, ao se valer de um exemplo que vai na contracorrente (o de
um garoto que aprende a ler a causa de sua paixão pelo cinema), Bilac desmente a
visão pedagógica que dará o tom nas reflexões sobre o tema: “A Gazeta de Notícias
conta hoje o caso de um menino de seis anos que, por um prodígio de atenção e de
vontade, aprendeu a ler por si mesmo, só com o estudo pertinaz e constante dos
programas do cinematógrafo. O pequeno sabia que tal ou qual fita tinha o título de
Casamento do Diabo ou de História de um avarento, ou de Apuros de um barbeiro.
O retorno do pleito mimético | 103

Na mesma linha de pensamento de Quiroga, a Cine Gaceta


do Chile torna explícita a vigência do dulce et utile horaciano em
relação ao cinematógrafo, em uma nota de 1917, “El cinematógrafo
y la escuela”, muito provavelmente redigida por seu diretor, Augusto
Pérez Órdenes (o texto é assinado com a inicial P). Antes de fazer uma
descrição pormenorizada do método de ensino baseado na projeção
de fitas, implementado por Antonieta G. de Renaud em uma escola
pública de Buenos Aires, o articulista sustenta:

[...] entre os prodígios da civilização contemporânea aplicáveis à


educação, o cinematógrafo ocupa lugar de destaque. Se o ensino
moderno, especialmente no ciclo fundamental e médio, baseia-se em
métodos visuais e gráficos e em estimular a atividade e o julgamento
do educando, nenhum invento é mais adequado que o cinematógrafo
para conferir à aprendizagem o caráter intuitivo e compreensível [...]
O cinematógrafo, com efeito, torna amenos e interessantes os cursos
de geografia, de história, de ciências naturais e de moral prática,
reproduzindo na tela projeções vivas de cenas relacionadas com o
conteúdo que o professor explica. Uma lição de zoologia, fazendo
desfilar diante dos olhos dos alunos os animais dos quais se fala
[...] a apologia da virtude, a título de comentário de um ato louvável
realizado pela personagem de uma fita romanesca são, sem dúvida,
lições que o cérebro infantil aprende logo e nunca olvida (Pérez
Órdenes, [1917]. In: Bongers, Torrealva, Vergara, 2011, p. 34).53

Mostravam-lhe no programa as linhas em que vinham publicados esses títulos;


e a forma especial de cada palavra se lhe gravava imediatamente no cérebro. No
fim de um mês, já ele estava senhor de alguns cem ou 150 vocábulos; e, por um
trabalho de análise, começou a conhecer especialmente cada uma das letras [...]
O caso é digno de registro e comentário, mas não é espantoso nem fenomenal. A
paixão opera milagres” (Bilac, [1908] 1996, pp. 202-203). Entretanto, a potencial
desmentida acaba cedendo lugar à comum exaltação do novo meio como “escola
de ensino intuitivo”, o que torna possível considerar a crônica como contrapartida e
complemento simultaneamente: “Voltemos, porém, ao caso do menino. Abençoados
sejam os cinematógrafos, já que a paixão pode substituir o mestre-escola! Em
um país como o nosso, que conta na sua população (horror inconfessável) 70%
de analfabetos, tudo quanto possa concorrer para remediar essa desgraça deve
ser acolhido com entusiasmo. Esperemos que haja muitos casos como o deste
menino! E já que os governos não se decidem a gastar com a instrução do povo
ao menos metade do dinheiro que gastam com outras cousas – apelemos para os
cinematógrafos, transformados em escolas de ensino intuitivo! Todos os caminhos
levam a Roma” (Ibid., p. 205).
53
Acerca de um dos projetos de cinema educativo de maior envergadura no âmbito
104 | Miriam V. Gárate

Como acontece em várias outras notas, as considerações


anteriores deslizam do filme educativo stricto sensu, que caberia
associar principalmente aos formatos do documentário, ao âmbito
mais difuso e complexo do cinema comercial de entretenimento,
representado aqui pela fita romanesca utilizada para efeitos de
formação moral. Se em relação ao primeiro as manifestações em favor
da troca de livros, mapas e ilustrações fixas por “projeções vivas” são
unânimes, com respeito ao segundo, a situação é mais complicada
e suscita pronunciamentos específicos sobre a aceitabilidade ou a
nocividade de tal ou qual espécie para o público em foco. “El cine y
los niños”, de Lucila Azagra, publicado na revista chilena La semana
cinematográfica (20/6/1918), exemplifica essas tensões bem como
atesta a crescente hegemonia do etos fabricado por Hollywood.
Polemizando com um artigo precedente, o texto retoma a discussão
sobre uma das formas problemáticas por excelência, o policial, para
concluir fazendo a apologia do filme de aventuras made in USA:

[...] o filme policial, por sua natureza, trata sempre de crimes e


de criminosos que, embora perseguidos pela justiça e finalmente
castigados, deixam na alma da criança uma má impressão e em seu
cérebro um germe de perturbação moral, que convêm evitar [...]

Diferente é o caso das fitas de aventuras, e sobretudo das norte-


americanas de aventura seriadas [...] O filme norte-americano de
aventuras tem um grande valor educativo e moral. E dizemos as
norte-americanas, porque os ianques são mais cuidadosos que
os europeus desse ponto de vista. Em seus filmes, as crianças
encontram exemplos salutares de energia, de valor, de atividade,
e se habituam a ver triunfar a iniciativa, a serenidade, a honradez
(Azagra [1918]. In: Bongers, Torrealva, Vergara, 2011, p. 39).

Com variações, o vaivém entre imitação do real e modelo


dado à imitação continua operando.

latino-americano dos anos 1920, o empreendido no México pela Secretaria de


Educação Pública, a cargo de Vasconcelos, conjuntamente com a Secretaria de
Agricultura, Cf. Reyes (1993), em especial as páginas 130-172.
O retorno do pleito mimético | 105

Uma sala para elas

Ao lado do público infantojuvenil e objeto de preocupações


análogas, as mulheres constituem o contingente de espectadores mais
numeroso a ser instruído e salvaguardado, como se verá em breve.
A iniciativa referida pelo historiador do cinema peruano
Ricardo Bedoya (2009) pode ser útil como espaço de transição que
permite pôr em evidência tanto o que irmana esses segmentos como
aquilo que os distingue. Em comum, o fato de ambos serem alvo de
projetos educativos e normativos; diferenciando-os, o papel ativo
desempenhado por agrupações femininas (em geral, de extração
católica) no exercício dessas funções disciplinares, embora sejam
também mulheres as protagonistas dos ‘desvios’ e dos ‘delitos’ que
se pretende inibir.
Comentando a fugaz experiência da abertura de uma sala em
Lima destinada a mulheres e crianças, Ricardo Bedoya (2009, p. 85)
afirma:

As maiores exigências de moralidade em relação ao espetáculo


provinham dos círculos femininos que, por sua vez, contavam-
se entre os mais assíduos ao espetáculo. Em 1914, houve uma
interessante experiência de gestão feminina de uma sala de cinema.
Inaugurou-se o cinema Fémina, com a finalidade de oferecer
“a seu público, especialmente feminino e infantil, fitas amenas,
engraçadas, interessantes e instrutivas...” (El Comercio, 25 de maio
de 1915, apud Bedoya, 2009, p.85).

A seguir, Bedoya transcreve outra passagem do artigo


publicado pelo jornal limenho El Comercio, que testemunha uma
total sintonia de propósitos e de critérios seletivos em relação ao
texto já citado da Cine Gazeta:

Tivemos a oportunidade de conversar com uma das organizadoras


do Cinema Fémina, e nos manifestou que a empresa se propõe,
sobretudo, oferecer filmes que deleitem o público por sua
beleza artística e que, ao mesmo tempo, o instruam. Por isso as
viagens, as tournées artísticas pelas diversas regiões do globo, as
reconstituições históricas e literárias fazem parte do estoque de
fitas já encomendadas. Também, vez por outra, desfilarão pela tela
do Cinema Fémina temas científicos de palpitante interesse e de
fácil compreensão (Ibid., p.85).
106 | Miriam V. Gárate

Dificuldades econômicas e a “falta de fitas adequadas a


seus objetivos” (Bedoya, 2009, p. 85) determinariam o fechamento
da sala em poucos meses. A indústria cinematográfica, no entanto,
estava longe de ser um mau negócio ou de ter interrompido sua
célere cadeia de produção. O ‘inadequado’ se revelava mais atraente.

O outro lado do (mesmo) espelho: sedução e cinema

Retorno à crônica de Urbina, datada de 1915, e à outra


vertente do “delito” à qual se faz menção:

E se do policial nos deslocamos para o passional a acusação é mais


justificada ainda. Nada que subjugue tanto quanto o desbordar
extraordinário dos ímpetos da paixão e da força. O amor ciumento,
o aborrecimento enfurecido, a meditada vingança, interessam
mais do que repugnam. Os abismos são apavorantes, mas atraem
[...] Os olhos ficam grudados, hipnotizados [...] E acontece, então,
que as adormecidas inclinações e maldades despertam dentro
de alguns espíritos obscuros que, diante do quadro iluminado
da tela, sentem-se convidados a realizar os possíveis episódios e
a transportá-los da imaginação à vida. Para certa classe de almas
fantasiosas e sugestionáveis, o drama policial e o passional são
incentivos (Urbina, [1915] 1996, p. 73-74).

Não obstante o texto permaneça dentro de certo nível de


generalidade e não chegue a abordar explicitamente questões
de gênero, a referência ao drama passional implica, per se, um
deslocamento do foco em direção às mulheres, “almas fantasiosas
e sugestionáveis” por excelência, quando não “espíritos obscuros” e
propensos à “maldade” (Ibid., p. 74). Sua onipresença em uma trama
rica em variações que atualizam estereótipos (seduzida ou sedutora,
esposa traída ou vamp), a multiplicação das cenas da transgressão
(a tela, a sala escura, a rua, o lar) e a intensificação do trânsito entre
as esferas do imaginário e do real darão a tônica com respeito a essa
vertente do ‘delito’, a cujo redor se desenvolve um vasto corpus de
crônicas e de narrativas de ficção. A figura masculina, evidentemente,
participa do drama e o coprotagoniza.
Embora enraizado em processos sociohistóricos que
remetem tanto à ordem das transformações quanto das permanências
naquilo que tange à condição feminina em diversas esferas (mercado
O retorno do pleito mimético | 107

de trabalho, comportamento nos espaços públicos e na vida


doméstica, hábitos de consumo etc.), o deslocamento apontado se
vincula concomitantemente a um desenvolvimento ‘interno’ da
linguagem cinematográfica clássica, de seus procedimentos e de
suas espécies mais importantes. Viu-se, com efeito, que a trajetória
desenhada pela evolução de alguns recursos fílmicos (montagem
naturalizada, uso expressivo do close-up, multiplicação de ângulos
e de planos no interior de uma mesma sequência) é correlata da
passagem do “drama físico de sobressaltos” para o “drama interior”,
conforme as palavras dos mexicanos Reyes e Guzmán – um drama
interior que permanece indissociável, evidentemente, de suas
manifestações gestuais, epidérmicas, corpóreas. De maneira alguma,
é possível estabelecer um vínculo linear entre o aprimoramento
dos recursos mencionados e a ascensão de determinadas variantes
cinematográficas. Fenômenos mais amplos precisam ser levados
em conta – entre eles, o avanço dos grandes estúdios, solidário
da consolidação do star system e de um extenso conglomerado de
produtos destinados ao público espectador, que vão de revistas de
fofocas sobre a vida das estrelas (outra vertente do ‘drama interior’)
à maquiagem. Todavia, é possível apontar a convergência desses
fatores heterogêneos como propulsores do drama sentimental e de
sua contrapartida otimista, a comédia romântica (cujas repercussões
‘na vida’ se mostrarão bastante dúbias, como se verá).54
De uma ótica estreita e estritamente moralista, “La evolución
del biógrafo, según las ideas de Manelik”, publicado no primeiro
número de La semana cinematográfica de Chile (9/5/1918),
apresenta uma sinopse desse processo:

Nos seus primeiros tempos, o biógrafo era algo delicioso. A gente


via os campos, os trigais, as serranias, as pastagens e os potreiros.
Não havia nada mais encantador, e até dava vontade de ser cavalo.

Depois, o cinema enveredou para o cômico e começaram as


quebradeiras de louça, de móveis, as correrias e as rasteiras aos

54
Em As estrelas: mito e sedução no cinema (1969), Edgard Morin mostra o vínculo
indissociável existente entre ascensão sociológica das classes populares no
século XX, aburguesamento do imaginário cinematográfico e desenvolvimento do
star system. Para o período focado neste trabalho, a primeira parte do livro é de
particular interesse (“A época das estrelas”, pp. 5-95). A questão será retomada no
próximo capítulo.
108 | Miriam V. Gárate

guardiões da ordem pública. Isso já não era tão bonito, mas era
sadio.

Em seguida, vieram os crimes, e o biógrafo ensinou ao povo o


roubo e o assassinato de alta escola, dando a conhecer métodos
aperfeiçoados para abrir um cofre forte ou para despachar o
próximo sem deixar traços.

Até aí, vá lá, que seja, mas as coisas desandaram totalmente


quando apareceram as mulheres de bonita cara e bonitas formas
e se apropriaram do biógrafo. A Bertini, a Robinne, a Menichelli,
desalojaram da cena muda o Conan Doyle e o Arsenio Lupin. Os
diretores artísticos, por sua vez, apropriaram-se dessas senhoras
e lhes tiraram o corpete e as roupas interiores e as fizeram atuar
em panos menores. Quanto ao argumento para suas piruetas,
essas “senhoras” os tomaram de Zola, Balzac, Copée, Victor Hugo e
outros degenerados. Esse é o biógrafo hoje (s/a [1918] In: Bongers,
Torrealva, Vergara orgs., 2011, p. 74-75).

A projeção de comportamentos ‘licenciosos’, que não tardam


em tornar-se leitmotiv, lança sua sombra sobre a sala e acirra a
virulência do contágio. Da fita à poltrona, e desta, outra vez, às
páginas da imprensa, o caminho parece curto e a circulação, assídua.
A crônica do brasileiro Lima Barreto intitulada “Amor,
cinema e telefone” (Careta, 24/1/1920) serve de ilustração dos
vasos comunicantes entre a sedução vista e a sedução vivida
(frequentemente, enquanto se vê uma fita). Nela são atacados em
igual medida a cinematografia estadunidense, a sensibilidade
do público frequentador e o telefone, “outro aparato moderno
medianeiro de amores ilícitos e criminosos” (Barreto, [1920] 2004,
p. 106).

[...] todas essas fitas americanas são brutas histórias de raptos,


com salteadores, ignóbeis fantasias de uma pobreza de invenção de
causar pena, quando não são melodramas idiotas que deviam fazer
chorar as criadas de servir há quantos anos passados.

Apesar disso tudo, é na assistência delas que nasce muito amor


condenado. O cadastro policial registra isso com muita fidelidade e
freqüência. “Foi”, diz uma raptada, “no Cinema X que conheci F. Ele
me acompanhou, até”.
O retorno do pleito mimético | 109

Ela omite alguma coisa que houve antes do acompanhamento. Tem


um apelido náutico...

Ainda outro dia, no inquérito a que a polícia procedeu, sobre aquela


tragédia conjugal da Rua Juparanã, veio saber-se que a esposa
culpada conhecera o seu sedutor no Cinemaz.

O amor, ao que parece, é como o mundo, nasce das trevas; e o cinema


não funciona à luz do sol, nem à da eletricidade (Ibid., pp. 106-107).

Os comentários de Lima Barreto são suscitados por uma


proposta de intervenção legislativa e de atuação policial em um
âmbito até então sob a égide exclusiva da Liga pela Moralidade,
instituição autoincumbida de julgar as fitas projetadas no Rio. O
escritor celebra a iniciativa, condizente com sua visão do “amor”
como “causador” e “parte primacial, de todos os crimes, violentos ou
não” (Ibid., p. 106) – donde a necessidade de inibir “instrumentos” e
“aparelhos” que propalem sua ação. Mas para além (ou melhor, aquém)
dos eventuais ilícitos representados nos filmes, explicitamente
rebaixados à condição de “melodramas idiotas”, as observações
reportam ao que acontece nas “trevas”, na escuridão da sala.
Assim, restituídos à arena social em que se concretizam, os fatores
envolvidos na situação cinema revelam outra feição: ao isolamento
visual e sonoro com respeito aos estímulos externos é necessário
somar essa outra fonte de estímulos dada pela contiguidade dos
corpos na penumbra; à ideia de transporte (e, eventualmente, de
‘alienação’) a uma realidade imaginária, a do filme, se deve acrescer
um estado de dupla consciência que possibilita transitar entre a
tela e o ambiente material, concreto e próximo, no qual se efetiva
a projeção – ora essas realidades se complementam, interagem, se
reforçam, ora se dissociam fazendo prevalecer uma sobre a outra.
O peso concedido a cada uma dessas forças e o papel assumido pelo
sujeito (essencialmente móvel e variável) se relacionam com o setor
ao qual pertence e com suas circunstâncias: homem ou mulher,
jovem ou adulto/a, solteiro/a, noivo/a ou casado/a, satisfeito/a ou
insatisfeito/a com a vida conjugal, pragmático/a ou fantasioso/a,
realizado/a ou frustrado/a nos vários âmbitos da existência,
sozinho/a ou acompanhado/a (e de quem) na situação cinema.
A seguir serão apresentados alguns textos representativos
dos principais subgrupos e de suas respectivas posturas. Mas antes
110 | Miriam V. Gárate

é oportuno concluir esta seção com uma amostra bem-humorada


e irônica, que constitui uma espécie de ‘grau zero’ ou neutro na
abordagem da questão cinema-delito (o que não deve ser tomado
por sinônimo de omissão do horizonte em que essa problemática se
enraíza, nem das variáveis em jogo).
Quase contemporaneamente à publicação de “Amor, cinema
e telefone” e também motivado pela implantação de um órgão de
censura, Francisco Zamora (1890-1985), nicaraguense radicado
no México que desenvolveu uma intensa atividade como jornalista
econômico e cronista cultural, dá a conhecer a crônica intitulada “El
cine y la moralidad” (El Universal, 1/9/1919), compilada por Garrido
no volume Luz y sombra: los inicios del cine en la prensa de la ciudad
de México (1997):

Sou um espectador de cinematógrafo singelo. Jamais, que eu lembre,


ocorreu-me dividir as fitas em morais e imorais, nem suspeitei
que pudesse imputar-se, por exemplo, a ineptidão da polícia e a
perícia dos malfeitores à influência funesta do cinema. Assisto aos
filmes projetados no cinema de meu bairro comendo amendoins
e com simplicidade de coração. Meu conceito da moralidade não
se inquieta nem pela eficácia com que Fantomas delinquia, nem
pelas complicações passionais e carnais com que beija a senhora
Menicelli.

Mas eis que nem todos têm minha indiferença diante do pecado
cinematográfico. Fiquei sabendo, com horror, que por culpa de Lydia
Borelli há atualmente garotas que se desvelam tentando inventar
beijos novos para surpreender o namorado, e soube também que
Os mistérios de Nova Iorque incorreram no pecado de provocar
emulações dos malandros dos subúrbios. Isso me espantou.

Por sorte, a autoridade, paternal e oportuna, inventou o remédio:


qualificará e autorizará as fitas, antes de permitir que sejam
projetadas. Haverá, pois, Catões burocráticos, que no mistério
das salas especialmente preparadas para tanto, contemplarão
severamente as atitudes de Francesca Bertini, a fim de resolver
depois a árdua questão de sua moralidade. E como estarão sozinhos
e sem música, serão severíssimos!

Porque o conceito da moral varia de modo sensível segundo a


companhia e a música. Os mesmos censores sisudos que, do lado
de uma dama, e ao ritmo ondulante de um danzón voluptuoso,
O retorno do pleito mimético | 111

consideravam inocentes os ósculos em três tempos, na fria


impassibilidade de seu trabalho oficial pretenderão obrigar Theda
Bara a abraçar com um único braço.

Só de pensar no assunto, entedio-me antecipadamente. Serão


projetadas unicamente fitas com ensinamento, triunfos insossos
da virtude sobre o mal, mais insossos ainda. Os assistentes terão
que sentar-se com as mãos apoiadas nos próprios joelhos e olhar
somente para frente. A luz da sala não será desligada. Os músicos
tocarão melodias escolares e se produzirá uma fuga do público
cinéfilo em direção à amoralidade bucólica dos jardins noturnos,
encabeçada pelos censores das fitas.

Eu, enquanto isso, continuarei assistindo, entre amendoim e


amendoim, sem que meu pulso se altere, os filmes que passam no
cinema de meu bairro (Zamora, [1919] 1997, pp. 328-329).

Notas para uma tipologia

O motivo do homem que vai à caça da mulher comparece


desde cedo em várias crônicas urbanas, retratando aquém da tela
uma atenção intermitente em sintonia com o cinema de atrações.
No prefácio a Cinematógrafo das letras, de 1909, João do Rio flagra a
concomitância de peripécias que se desenvolvem em paralelo:

O pano, a sala escura, uma projeção, o operador tocando a manivela


e aí temos as ruas, miseráveis, políticos, atrizes, loucuras, pagodes,
agonias, divórcios, fomes, festas, triunfos, derrotas, um bando
de gente, uma torrente humana – que apenas deixa indicados os
gestos e passa leve sem deixar marca...

– Interessante aquela fita, dizes. E dois minutos depois não te


lembras mais.

– Viste a fita passada?

– Não, aproveitei-a para beijar a mão daquela senhora que não


conheço.

E pronto. Não há mal nenhum no caso. Isto é, no beijo talvez possa


haver porque o beijo tem uma grande importância relativa (Rio,
[1909] 2009, p. 5).
112 | Miriam V. Gárate

Atento o suficiente como para reparar em uma fita


interessante, mas distraído o bastante como para esquecê-la
dois minutos depois, trocar de cena e fixar agora a atenção na
desconhecida ao lado (uma démi-passante momentaneamente
refém/emancipada na escuridão), conquista efêmera, que por sua
vez será esquecida alguns minutos mais tarde: é esse o espectador
do Cinematógrafo. De um lado, o trecho evidencia a manutenção
de uma distância e de uma independência relativas entre âmbitos,
que podem divergir e inclusive contrastar: “miseráveis, políticos...
agonias, divórcios, fomes” desfilam na fita/crônica de João do Rio –
e ao mesmo tempo dá-se um beijo. De outro lado, o isolamento e a
penumbra não suprimem a consciência dos protocolos de conduta
que vigoram no exterior – tornam esses aspectos do dispositivo um
salvo-conduto, ele também efêmero, que transgrede as normas da
‘vida’ (da moral) na sala.
Observações que atentam para um espectador análogo
podem ser lidas em uma crônica peruana publicada por El joven
(pseudônimo) no jornal La Prensa de Lima, em 2/1/1912 e também
compilada por Bedoya. Esboça-se aí uma tipologia dos setores
afeiçoados aos diversos gêneros fílmicos (policiais, cômicos etc.)
para concluir sustentando:

[...] estão, por último, os que tudo aceitam, os espectadores


múltiplos, que riem com as fitas cômicas, se enternecem com
as emocionantes ou se sobressaltam com as policiais. Para eles,
o gênero é o que menos importa. O que lhes interessa é que o
programa seja longo, que as fitas tenham muita duração para não
ter que passar a cada instante da escuridão à luz e, acima de tudo,
interessa-lhes ter um lugar do lado dela. Vão ao cinema unicamente
porque vão elas ([1912] apud Bedoya, 2009, p. 79).

De fato, à medida que o cinema se expande e se torna


socialmente aceito, “elas” passam a se constituir nas espectadoras
mais assíduas – mas estão longe de compor um grupo homogêneo.
No outro extremo do homem à caça da mulher, situa-se a
mulher casada tão observadora das normas como ciente da monotonia
de sua existência e das razões aceitas ou interditas para cada um dos
sexos. A dissociação relativa de esferas também se verifica neste
caso, só que às avessas, por assim dizer: nem a vida conjugal e
doméstica ‘tal qual ela é’ nem as experiências concretamente tidas
O retorno do pleito mimético | 113

nesse espaço-tempo demarcado pela sala e pela projeção se veem


alteradas por aquilo que se vê na tela. A comédia romântica serve
como compensação imaginária e substitutiva ao enfado real, sem
que se perca a consciência da dupla legalidade em vigor nem se
transgridam as regras imperantes: corretamente sentadas em suas
poltronas, as senhoras; diante delas, o entretenimento paliativo, a
fita de amor.
O argentino Roberto Arlt (Buenos Aires,1900-1942), que
redigiu numerosas águas-fortes urbanas, cede a palavra a uma dessas
senhoras em “El cine y las costumbres” (El Mundo, 16/12/1931):55

Uma senhora– Arlt, você vai ao cinema?

Eu (Arlt) – Muito raramente.

A senhora – Por quê?

Eu – As fitas de amor me aborrecem.

A senhora – Faz alguns dias li uma estatística em um jornal matutino.


Sabe quantos cinemas há neste país? Dois mil e duzentos.

Eu – Diabo! E todos funcionando?

A senhora – Sim. E todos passando fitas de amor.

Eu – Pois é, é a grande mercadoria [...]

A senhora – Eu tenho notado que entre o elemento feminino que


concorre ao cinema há muitas senhoras e demasiadas moças. Que
as moças se interessem pelo amor é lógico; e pelo amor com os
beijos que mostram no cinema, mais lógico ainda; mas que uma
mulher casada se sinta atraída pelo cinema me parece um pouco
inexplicável.

Eu – Acontece que as mulheres casadas, depois de casar se


aborrecem profundamente e percebem a bobagem que fizeram.

55
Sob o título de Aguafuertes porteñas, Roberto Arlt deu a conhecer entre 1928 e
1933 uma série de crônicas no jornal El Mundo. Segundo reza a lenda, o periódico
duplicava a tiragem nos dias em que seus textos se publicavam. O título da coluna
remete ao caráter plástico-expressionista das personagens e dos episódios
representados. Os textos foram reunidos em livro em 1933 e a ele sucederam outras
compilações: Aguafuertes españolas (1936), Nuevas aguafuertes porteñas (1960) etc.
114 | Miriam V. Gárate

A senhora – Não concordo, você está errado. A mulher não se


aborrece pelo casamento em si, o que a aborrece e provoca nela
uma espécie de mal-estar subterrâneo é a monotonia da vida
matrimonial [...]

Eu – É provável.

A senhora – Há mais uma questão ainda. Os homens, quando


se entediam da esposa, têm uma alternativa mais ou menos
confortável: se apaixonar por outra. O homem tem uma facilidade
especial para ser infiel. Para as mulheres, que somos de carne e
osso como vocês, não é tão fácil se apaixonar, mas sim se aborrecer.
E substituímos o amor... pelo cinema.

Eu – Pois é, e o notável é o seguinte: nenhum marido, ou quase


nenhum, sente ciúmes de um fantasma de celuloide.

A senhora – É mesmo, consideram-no uma brincadeira sem


importância.

Eu – É isso aí.

A senhora – Por outro lado, as mulheres são suficientemente


prudentes para não apregoar que tal ou qual artista as entusiasma
demais da conta. Algumas são tão astutas que se referem a seu
artista preferido como o “antipático” (Arlt, [1931] 1997, pp. 80-81).

Como costuma acontecer no discurso artltiano, a hipocrisia


– uma forma de consciência antecipada da postura do outro – passa
a regrar a dinâmica do “jogo sem importância”, que mostra ser ao
mesmo tempo uma solução pragmática diante da estreita margem
de ação concedida à mulher pela moral reinante. “Insensivelmente”,
porém, o jogo ganha contornos sérios ao exacerbar a percepção
das discrepâncias entre a vida “vulgar” idealizada na tela e a
mediocridade da existência. O remédio se torna veneno e a comédia
sentimental mais adocicada pode devir fonte de amargura:

A senhora – [...] Mas eu queria chegar nisto, no inconformismo.


Insensivelmente, o cinema está criando uma atmosfera de
inconformismo entre as mulheres e nos seres de ambos os sexos.
O cinema sempre representa o êxito, a beleza, a elegância, o amor,
a liberdade; o cinema, quase sempre, idealiza o vulgar (é claro de
que um modo falso), mas de tal forma que, hoje, os livros escritos
O retorno do pleito mimético | 115

para inquietar as pessoas produzem menos resultado que uma fita.


Uma fita de amor com uma datilógrafa que se torna milionária,
arrebatada por uma grande paixão, amargura mais a vida de uma
mulher que cem livros de teoria que não lerá jamais.

Eu – Que dialética, senhora! (Ibid., pp. 81-82).

O recuo estratégico posto em cena no diálogo chama a


atenção para um aspecto pouco considerado pelas crônicas e
artigos examinados até o momento: aquém (e além) do eventual
contágio, da eventual imitação, dos eventuais resultados, o cinema
ilumina sua diferença em relação à vida ordinária, alimentando o
descontentamento. O “inconformismo” deve ser entendido nessa
dupla acepção, que torna o projetado na tela potencialmente uma
crítica do que é, embora também um possível engodo (não por acaso,
Arlt ‘põe ao alcance’ da datilógrafa, para infelicidade da jovem mulher
que provavelmente também o seja, esses dois grandes fetiches
denominados fortuna e amor). É esse o duplo viés perscrutado
pelo escritor, cujo olhar flagra ora o germe da insatisfação prenhe
de consequências para a modificação dos costumes, ora a possível
alienação num mimetismo inócuo e as mais das vezes ridículo. De um
lado, conforme apostrofa a senhora do diálogo já citado, as “muitas
senhoras casadas, muito tranquilas, que ao cabo de um ano de ir ao
cinema, olham o esposo como que dizendo: ‘Ramón Novarro fuma
com mais elegância que você’” (Ibid., p. 82). Em outras palavras: o
descontentamento capaz de aquietar-se com alguma dose mínima
de devaneio ou com o recurso ao autoengano – oportunistamente
capitalizado, via de regra, pelos espertos de plantão. A respeitável
e insofrível dona de casa de “Me parezco a Greta Garbo” (El mundo,
8/2/1932) ou a mocinha frequentadora de cursos de declamação
de bairro, imaginados como trampolim para Jólibud (“Mamá, quiero
ser artista”, El mundo, 16/7/1930), pertencem a esse grupo.56 Do

56
A água-forte “Me parezco a Greta Garbo” se desenvolve em torno à típica situação
de desentendimento entre a esposa fã de cinema e o marido indiferente. Transcrevo
algumas passagens: “Ela – Você tinha que ver a Greta Garbo hoje. Ela estava linda!
Eu, bocejando, exclamo – Ah é? Que bom! Ela – Por que você não vem uma noite
dessas vê-la atuar? Eu – A criatura me cansa [...]. Além disso, o cinema me aborrece.
Ela – Por quê? Eu– Me diga, você se interessa por meus tratados de engenharia?
[...] Minha mulher fecha a boca e continua a olhar-se no espelho. Estou convencido
de que neste momento ela procura algo em sua expressão que a convença de que é
116 | Miriam V. Gárate

outro lado, as moças que, “ao cabo de um ano de ir ao cinema”, diante


de “reflexões de ordem hipócrita-moral, respondem: essas são
besteiras” (Ibid., p. 82). São elas que integram o grupo das potenciais
desestabilizadoras da hipocrisia reinante e dos costumes instituídos.
É com elas que se conclui o diálogo entre a senhora e Roberto Arlt:

A senhora – Conheci moças que ao cabo de um ano de ir ao


cinema, quando alguém fazia reflexões de ordem hipócrita-moral,
respondiam “essas são besteiras”.

Eu – Ótimo!

A senhora – Não ria, que estou falando a verdade.

Eu – Acredito, acredito. E que consequências a senhora deduz?

A senhora – Deduzo que as meninas que nascem hoje, daqui a


quinze anos vão rir nas barbas de seus pais, quando eles venham
com certa classe de conselhos. O que o senhor acha?

Eu – Acho que é uma pena não ter nascido hoje. A senhora tem
razão, mas qual o ganho de termos a razão, ou a verdade, quando
sejamos velhos? (Ibid., p. 82).

Outro texto quase contemporâneo do anterior apresenta


uma versão menos jocosa das tensões suscitadas pelo descompasso

parecida a Greta Garbo [...] Eu – Para que você se olha tanto no espelho? Você está
linda [...] Minha mulher fecha a boca por outros dez minutos e, de repente... solta
o definitivo: – Você já viu que neste cantinho do queixo me pareço a Greta Garbo?
É uma da madrugada! Ainda bem que a minha mulher decidiu cismar com Greta
Garbo” (Arlt, [1932] 1997, pp. 86-88).
Quanto a “Mamá, quiero ser artista”, a crônica apresenta o diálogo mantido
entre Arlt e uma senhora que o convida a sua casa para que testemunhe os dotes
atorais da filha: “Você chega na casa de uma dessas moças e aos quinze minutos
começa a ladainha. A mãe – Por que você não declama, menina? A menina (que não
é nenhuma menina) – Mas mãe... O visitante – Declame, senhorita... Deixe ver se
lembro... (todo visitante, mesmo que seja quitandeiro, lembra de algum verso, nem
que seja o que se inicia com ‘Salve! Lindo pendão da esperança’.) A mãe – Ela vai para
Jólibud. O visitante (cá entre nós, o visitante é muito burro) – Então isso quer dizer
que ela vai ser artista? A mãe – Menina, por que não faz para o senhor o papel de
Dolores del Río em “Las sombras blancas”? O visitante (semiapavorado, ao constatar
que o assunto é sério) – Não precisa. Basta olhar o rosto dela para perceber que vai
se tornar uma grande artista” (Arlt, [1930] 1997, pp. 56-7).
O retorno do pleito mimético | 117

entre aquilo que “o cinema naturaliza e o que a sociedade reprova”


(Fontana, 2009, p. 65): “El cine y estos pueblitos” (El mundo,
30/8/1933). O texto integra um conjunto de águas-fortes fluviais
redigidas por ocasião de uma viagem aos estados litorâneos da
Argentina e se inicia destacando o ambiente monótono e opressivo
em que transcorre a vida nas pequeníssimas cidades do interior.
Andando pelas ruas de uma delas, Arlt se depara com o cartaz do filme
Hay que casar al príncipe.57 Previsivelmente, o primeiro comentário
diante do romance cor-de-rosa sugerido pelo título é depreciativo:
“Não vi a fita, mas imagino que é espantosamente ruim”. Entretanto,
o cronista fixa de imediato sua atenção na imagem estampada no
cartaz:

Como ia dizendo, o cartaz não me estremece pelo título, mas por


sua síntese apaixonada: duas bocas de distinto sexo, acopladas
em um beijo ardente e trabalhoso [...] Essa fita se assemelha a um
cartucho de dinamite posto numa catedral. Insisto: não por seu
conteúdo, mas pelos sentimentos inquietos que está destinado a
despertar [...] E não se trata desta fita em especial, mas da sede de
paixões que a cinematografia em seu conjunto provoca, desperta e
agudiza nestas cidadezinhas, criando à margem da vida rotineira
problemas que só têm possibilidade de solução nas vastas cidades,
onde as expansões da personalidade fogem ao controle familiar.
(Arlt, [1933] 1997, pp. 108-109).

Outras águas-fortes sobre o tema e a própria ficção arltiana


mostram que a emancipação com respeito à moral pequeno-
burguesa tampouco era um dado tão corriqueiro nas grandes urbes.
Mas as condições de vida da cidade pequena extremam o contraste.
Transposto a uma nova escala em virtude do poder de difusão do
cinema (o autor chega inclusive a fazer uma breve menção ao
rádio, a essa outra mídia em avanço à época), ressurge o motivo do
bovarismo:

Lamento não poder imaginar qual será o estado de espírito de uma


espectadora destas paragens que, depois de identificar-se com a
“heroína” do filme, sai à rua e tropeça com este ermo [...] Imaginem

57
Hay que casar al príncipe: filme de 1931 dirigido pelo finlandês Lewis Seiler,
protagonizado pelo ator mexicano José Mojica e pela atriz espanhola Conchita
Montenegro.
118 | Miriam V. Gárate

vocês: Nova Iorque representada durante uma hora na tela do “Cine


La Paz”, Berlim, em La Paz, Mônaco, em La Paz, Paris, em La Paz,
Buenos Aires, em La Paz.

A fita, diabo tentador, exibe no último canto timorato as audácias


das remotas cidades, as diversões sentimentais que se permitem as
outras moças. Aqui se reproduz o suplício de Tântalo. Satisfações
tanto mais cobiçadas quanto menos possível é realizá-las. O filme
passa, mas a ardente poeira suspensa das imagens permanece
aderida às consciências de homens e mulheres dando voltas em
seus espíritos. Eu penso nessas moças cujos anseios não podem
satisfazer-se dentro do estreito marco em que se movimentam...
e me pergunto: quantas futuras madames Bovaris respiram aqui?
Quantas existências amarguradas podem contar-se metro a metro,
nestas ruas? [...]

Não tenho nenhuma dúvida de que o cinema está criando as formas


de uma nova psicologia no interior. Que resultado isso trará? Não
sei, mas tenho certeza de que são muitas as moças que em uma
tarde de domingo, nessas cidades de província, ao saírem do
cinema, dizem para si:

– Não é possível continuar vivendo desse jeito, é necessário mudar


(Ibid., pp. 109-111).

Arlt não minimiza em momento algum a força inibitória da


sociedade, nem a perversão atrelada à dialética de mostrar/dar a
desejar e simultaneamente coibir o sujeito de realizar o desejado.
As eventuais repercussões emancipatórias do cinema sobre os
costumes não são um dado de natureza nem um fenômeno garantido,
embora o cinema possa de fato constituir a médio prazo um estímulo
para o afrouxamento da ordem “hipócrita-moral” (expressões
quase sinônimas em seu discurso) e para o estabelecimento de
relações mais abertas entre os sexos. Assim, o destino avistado
pelo escritor para esse contingente de madames Bovary, mas,
sobretudo, de mademoiselles, de jovens interioranas ou suburbanas,
permanece indeterminado e variável. Não necessariamente, nem
sempre, a acomodação; não fatalmente o arsênico; por vezes,
o descontentamento que insta à revolta e à transformação de
magnitude e efeitos diversos.
O retorno do pleito mimético | 119

***
Quando se publicam as águas-fortes acima comentadas,58o
bovarismo juvenil associado às camadas médias e populares não
constitui um fenômeno inédito: é um leitmotiv consolidado do qual se
podem encontrar registros prévios em diversas crônicas e artigos de
outros intelectuais, bem como desdobramentos na ficção narrativa.
Em suas manifestações mais brandas e superficiais, ele comparece
como adoção da moda e das maneiras propostas pelo complexo
cinema clássico-star system: roupas, corte de cabelo, acessórios,
maquiagem, modo de gesticular, de fumar, de beijar o namorado
(identificado por um instante com um Ramón Novarro, um Rodolfo
Valentino ou um Adolphe Menjou).59 Em sua vertente extrema, o
fenômeno se manifesta não só como desejo de levar uma vida análoga
à do filme, mas de transformar-se ipsis litteris em uma estrela – única
‘garantia’, em meio a um processo de crescente espetacularização da
vida, promovido pelo star system, de materializar a ilusão.
Embora o fenômeno se espalhe por todo o continente, a
proximidade do México com os sets californianos e seus estreitos
laços histórico-culturais com o vizinho do Norte tornam o país
particularmente sensível a esse tipo de empreitada. Dolores del
Río (1904-1983), invocada pela progenitora de “Mamá, quiero ser
artista”, é um ícone nesse sentido. Oriunda de uma abastada família
de fazendeiros de Durango, educada em instituições prestigiosas
do México, da Espanha e da França, dotada de um belo rosto e de
uma bela voz (o que lhe permitiu superar com sucesso a transição
do cinema mudo ao cinema falado), estreou em Hollywood em
1925, onde rodou mais de trinta filmes até 1940, tornando-se uma
celebridade internacional. Sua trajetória, extraordinária sob vários
pontos de vista, serviu de estímulo aos anseios de muitas jovens.
O crítico de cinema e ficcionista mexicano Carlos Noriega
Hope apresenta um testemunho relativamente precoce das
proporções alcançadas por essa nova expressão do bovarismo
em uma de suas colaborações para El Universal, assinada com

58
Os textos de Arlt citados neste capítulo foram publicados entre 1930 e 1933. O
conjunto de escritos posteriormente reunidos em Notas sobre el cinematógrafo
abarca o período 1928-1936.
59
Sobre algumas narrativas latino-americanas vinculadas a esse tema, Cf. Gárate
(2011).
120 | Miriam V. Gárate

o pseudônimo de Silvestre Bonnard: “Vanidad de vanidades”


(18/11/1919). Imediatamente prévia a sua passagem por Los
Angeles como repórter do jornal, a nota anuncia um motivo que será
retomado tanto nas crônicas produzidas ao longo da viagem como,
posteriormente, em seus relatos:

“Prezado Senhor, peço encarecidamente que me envie uma lista


completa de todos os estúdios cinematográficos existentes em Los
Angeles, porque pretendo entrar em contato com eles para tratar de
assuntos particulares. Cordialmente, Carmen L”. Matematicamente,
o carteiro me entrega todos os dias dois ou três envelopes... Esses
envelopes contêm missivas idênticas à que acabo de inserir no
princípio destas linhas. Compreendem os senhores, leitores
piedosos, o objeto dessas tímidas correspondências? Nossas
jovens da classe média sonham com a tela. Vejo-as nos cinemas
de bairro seguir com os olhos ávidos as personagens de qualquer
filme que se projeta, acompanhá-las com uma secreta amargura,
com um desejo irrefreável de imitá-las, com uma inveja apenas
materializada no fulgor das pupilas e na indiferença à conversa
do namorado que se encontra a seu lado. Elas querem fugir de sua
esmagadora mediocridade, querem abandonar para sempre o livro
de taquigrafia, o expediente, a máquina de escrever, o namorado
chato que lê Vargas Vila, e correr mundo para viver a vida intensa
das fitas. [...] Por isso me procuram, enquanto mentor desconhecido
que as levará pela mão até os enormes estúdios de Los Angeles. Na
verdade eu não deveria responder essas cartas porque alimento
uma esperança que não deve existir: os estúdios são herméticos
e só chegam até eles os consagrados, depois de lutas terríveis. Eu
deveria falar a essas jovens da quase absoluta impossibilidade
de serem admitidas no cinema, deveria contar a elas que em Los
Angeles existem mais de cinco mil garotas bonitas como elas, que
não têm chance nenhuma e que quase morrem de fome à beira de
Chaplin, que ganha milhões, de Mary Pickford, que recebe centenas
de milhares. Eu queria contar todas essas coisas, mas não posso.
Em vez disso, remeto-lhes sempre a lista que me pedem. Mas, desta
tribuna, dirijo-me sinceramente a vocês: Carmen, Josefina, Maria,
Enriqueta, Esperança, daqui lhes sugiro que abandonem num canto
da habitação o desejo que as inquieta, que esqueçam o cinema, que
é uma miragem fatal (Noriega Hope, [1919] 1992, pp. 175-177).


O retorno do pleito mimético | 121

Ainda que associado principalmente ao público feminino


jovem de extração popular, o bovarismo terá um correspondente
masculino: o “pobre-diabo” (autocaracterização do protagonista
de um conto de Horacio Quiroga), geralmente funcionário público,
bancário ou comercial, que sonha conquistar uma estrela ou
arriscar sorte nos sets hollywoodianos. Nesse universo, em que
constantemente se confundem o simulacro e a realidade, ressurgirá
o motivo do duplo transfigurado em dublê. Nesse lugar, que sintetiza
os anseios e as expectativas de muitos, confluirão estadunidenses,
mexicanos e outros latino-americanos de diversas latitudes, como se
poderá constatar no quarto capítulo.

***

Parente próximo da senhora de “El cine y las costumbres” é


o homem que se endereça a Arlt em outra água-forte (“El cine y los
cesantes”, El Mundo, 24/7/1932) nos seguintes termos:

Outro dia, um senhor me diz indignado:

– Todo mundo fala dos desempregados, mas veja só que curioso.


Se você dá uma volta pelos cinemas da rua Triunvirato, por Boedo,
Flores, Belgrano, descobrirá diante da entrada dos cinematógrafos
filas de vadios que fazem hora para entrar, porque por vinte
centavos assistem três sessões, das três às seis da tarde. O que a
gente devia fazer é dar-lhes uma surra (Arlt, [1932] 1997, p. 89).

O comentário, tão ou mais severo em relação à esfera do


trabalho que o da senhora de bons costumes com respeito à moral
das moças, serve de estímulo para explorar o drama do homem
dispensado pelo chefe e acossado pela família. Desfilam, assim, diante
do leitor, a reiterada visita ao escritório do amigo com contatos,
visita mais uma vez inútil – “Olha, ainda não tenho novidades. Me
aguarde alguns dias” (Ibid., p. 90) –; a antevisão da cena cotidiana no
lar – “O homem conhece de memória a topografia de sua casa. Sabe
de cor a pergunta que lhe farão sua esposa, sua irmã e sua mãe: - E
aí, tem alguma novidade?” (Ibid., p. 90); a agonia que representa um
novo intervalo de espera – “Não, não há novidades... mas me garantiu
que semana que vem”... É tão longe a semana que vem!... Outros sete
122 | Miriam V. Gárate

dias com as mãos no bolso, de folga forçada, entre quatro paredes”


(Ibid., p. 90-91). A despeito da tentativa de “não pensar”, a cada passo
assomam perspectivas mais obscuras: contas pendentes, provedores
dando ultimatos. O homem desacelera a marcha:

Que fazer? Como resolver o problema? Já enviou pelo menos cem


cartas se oferecendo para qualquer coisa e ninguém respondeu...
exceção feita de um senhor que inventou uma máquina rara e
necessita um sócio capitalista.

E, de repente, diante de seus olhos reluz o cartaz azul, amarelo


canário, verde imperador, de um cinema. Vinte centavos o ingresso.
Aventuras de X. O beijo da moribunda. O manco misterioso. A
menina do Far West. Três sessões por vinte centavos. Três horas de
esquecimento e ilusão.

Soa a campainha do vestíbulo [...] O desempregado pensa na cara


de sua mulher, nas intermináveis horas da tarde. Onde? Em que
lugar do Universo é possível comprar por preço mais barato o
esquecimento? Três horas. O sujeito se endereça ao guichê e apalpa
suas moedas. Afinal, custa mais caro entrar num café. Custa mais
caro o ônibus para ir tomar chimarrão na casa daquele amigo
distante (Ibid., p. 92).

De fato, também para os homens assombrados por um


cotidiano adverso, a sala escura pode constituir uma evasão
provisória.
Resta listar um último personagem da tipologia arltiana:
o fotogênico (“¿Soy fotogénico?”, El Mundo, 7/8/1928), correlato
masculino da aspirante a estrela retratada em “Mamá, quiero ser
artista”:

O fotogênico é, via de regra, um admirador de Rodolfo Valentino.


Eu entendo perfeitamente que as mulheres gostem de Rodolfo [...]
Mas que um homem passe os dias e as noites diante do espelho
franzindo os lábios e alçando as sobrancelhas para se parecer com
Rodolfo... faça-me o favor!

Basta olhar as coleções fotográficas que esses “valentinistas”


enviam às revistas que organizam o concurso: Sou ou não sou
O retorno do pleito mimético | 123

fotogênico? É para morrer de rir (Arlt, [1928] 1997, p. 40).60

À semelhança da protagonista de “Mamá, quiero ser artista”, a


espécie em foco apresenta uma dupla faceta. De um lado, o fotogênico
(ou a fotogênica) costuma ser o parasita da família que evidencia ‘por
vias tortas’ seu inconformismo em relação às condições materiais
do grupo de pertença, sintoma de uma mudança de expectativas
que afeta às novas gerações. “Compreendo o impulso desse pai,
honrado pedreiro ou marceneiro, que tem vontade de pegar uma
estaca e quebrá-la nas costas do fotogênico” (Ibid., p. 43), afirma
o cronista, da mesma forma que patenteia sua indignação perante
“essas mulheres que deveriam estar encerando os pisos” em vez de
frequentar a “Universidade do kitsch” (Ibid., pp. 50-51). De outro
lado, o fotogênico costuma ser a vítima de golpistas que traficam
com sua ilusão:

Durante algum tempo o grêmio dos fotogênicos não teve quem os


explorasse – até que os fura-vidas perceberam que a cidade tinha
sido tomada por um novo chilique que podia ser um negócio da
China e apareceu a clássica, a novíssima, a bela invenção do fura-
vidas: “Quer ser ator? Venha a nossa academia. Garantimos um
emprego de quinhentos dólares semanais” (Ibid., p. 43).

60
A disseminação desse tipo de concursos na América Latina, geralmente
promovidos pelas grandes produtoras norte-americanas a fim de consolidar sua
penetração no mercado, é um dado histórico relevante. Isabella Goulart (2012)
examina o “Concurso de Beleza Fotogênica Feminina e Varonil” realizado em 1926-
1927 pela Fox. O processo, que visava à seleção de um casal de atores para integrar
o casting do estúdio em Hollywood, teria envolvido três países: Chile, Argentina e
Brasil. De acordo com informações levantadas por Goulart: “Segundo Cinearte, ‘no
concurso da Fox, de toda a América do Sul, foi só o Brasil que enviou artistas [a
carioca Lia Torá e o paulista Olympio Guilherme]’. (Questionário. Cinearte, Rio de
Janeiro, v. 2, n. 83, p. 24, 28 set. 1927). A Cigarra afirmava que ‘os escolhidos foram
uma senhorita chilena e duas figuras brasileiras’. (Dois brasileiros na Cinelândia. A
Cigarra, São Paulo, ano XV, n. 306, 1ª quinzena ago. 1927). A trajetória de Olympio
Guilherme, candidato premiado que foi sucessivamente ator, repórter, cineasta e
escritor, será abordada no próximo capítulo.
124 | Miriam V. Gárate

Outros textos do escritor fariam o retrato dessas academias


onde “se enganam os ilusos” que teimam em chegar a Hollywood
(“Las ‘Academias’ cinematográficas”, El Mundo, 30/6/1931). É para
lá que embarcam os sonhadores – na realidade e na ficção.
Os “latinos” viajam a Hollywood

A presença de relatos que tematizam a viagem a Hollywood


é um dado significativo das letras latino-americanas dos anos 1920-
1930, que corre paralelo à expansão da cinematografia estadunidense
e dos pilares em que se fundamenta seu esquema de produção,
publicidade e distribuição em escala planetária. “Una aventura de
amor” (La semana cinematográfica, Santiago, 23/5/1918), publicado
no Chile sob o pseudônimo de Boy; “Miss Dorothy Phillips, mi
esposa” (La novela del día, Buenos Aires, 14/2/1919), do uruguaio
Horacio Quiroga; Che Ferrati, inventor (1923), do mexicano Carlos
Noriega Hope, ou Hollywood: novela da vida real (1932), do brasileiro
Olympio Guilherme, são narrativas que se estruturam ao redor
desse motivo, assim como de uma série de outros tópicos comuns: o
desvendamento das regras que vigoram nos grandes estúdios, bem
como de pormenores técnicos e truques de rodagem; o retrato de
tipos que se consolidam por esses anos (a flapper, o latino sedutor,
o rastaquera); a relação mimética das personagens com modelos
propostos pelo cinema (aparência física, atitudes, sentimentos); o
enredo amoroso (também ele estreitamente vinculado ao imaginário
cinematográfico, o que resulta no entrelaçamento e no revezamento
constantes dos registros da ‘vida’ e do ‘filme’); o vínculo afetivo
espectador-estrela; o tema do dublê.
Talvez não seja coincidência que o happy end se torne cada
vez mais unhappy à medida que a viagem deixa de ser um sonho
(dos protagonistas dos textos e de seus autores empíricos, no plano
fictício e no registro da experiência). Ou que o par pobre-diabo
sedutor/estrela seduzida ceda lugar à proliferação de figurantes, às
voltas com um cotidiano cada vez mais difícil (na “novela da vida
real” evocada por Olympio Guilherme, muitos extras passam fome
em Hollywood).
Nos escritos aqui focados, o arco de tempo, que se estende
de finais da década de 1910 ao início dos anos 1930, corresponde à
passagem da comédia sentimental ao drama de viés coletivo, processo
inverso à evolução do próprio cinema norte-americano, cuja produção
maciça se esforça para travestir os efeitos da crise deflagrada em
1929 com enredos leves e otimistas. Os títulos dos textos expressam,
128 | Miriam V. Gárate

até certo ponto, essa trajetória disfórica: “Una aventura de amor” e


“Miss Dorothy Phillips, mi esposa” antecipam o desenlace venturoso
e seu corolário oficial, o casamento – uma aventura que se desfaz ao
despertar, visto que em ambos os casos se trata de um sonho, e se
refaz na escrita, dado que em ambos o relato do sonho é a escrita do
conto. Recorrendo a um freudismo superficial, caberia afirmar que
a representação onírica é um modo de materializar o desejo, mas
que ela atesta, simultaneamente, sua impossibilidade factual. Em
contrapartida, Hollywood: novela da vida real, acena de início para o
caráter enganoso da fábrica de ilusões – mas a denúncia da falsificação
é inseparável da experiência vivida por quem não se limitou a ir até
lá apenas em sonhos. Não obstante a opacidade do título, Che Ferrati,
inventor participa desta última visão.
Por outro lado, características menos vinculadas à dimensão
da peripécia geram outras conexões entre os componentes do corpus:
a imbricação de crítica cinematográfica e ficção narrativa é uma
delas e comparece no conto de Quiroga, na novela de Noriega Hope e
no romance de Guilherme; a utilização de procedimentos tendentes
a conferir à escrita uma estrutura e um dinamismo cinemático é
outra e, em que pese a onipresença do cinema como tema, somente
o conto de Quiroga e o romance de Guilherme possuem algumas
marcas estilísticas dessa ordem. A seguir, propõe-se uma leitura
desse conjunto textual.

Viagens vividas (sonhadas) na escuridão

Como se assinalou nos capítulos precedentes, os fatores


envolvidos na situação cinema (passividade, isolamento, alteração
espaçotemporal) aliam-se ao efeito de presença da linguagem
cinematográfica transparente para propiciar uma experiência que
se constitui como cancelamento provisório da realidade imediata
e como deslocamento (viagem) a uma realidade paralela. A relação
dessas duas realidades, bem como a lógica de sua alternância
incitaram a postular desde relativamente cedo uma analogia com o
par vigília/sonho. Abolindo temporariamente a dimensão diurna e as
limitações que esta impõe, a sala escura oferece ao espectador uma
tela na qual se projetam (e ele projeta) fantasias compensatórias, em
Os “latinos” viajam a Hollywood | 129

uma espécie de ‘sonho acordado’.61 Como também se pôde constatar,


esse dispositivo e o ambiente social no qual opera são delineados em
vários artigos e crônicas das primeiras décadas do século XX, que
traçam o perfil de um público-alvo constituído predominantemente
por donas de casa, moças suburbanas e funcionários de baixo escalão.
Trata-se de uma tipologia que medra e se multiplica na literatura
veiculada por publicações populares do período, reencenando no
âmbito da letra o jogo identificatório-projetivo proposto pela tela.
Guillermo Grant, narrador-protagonista de “Miss Dorothy
Phillips, mi esposa” (1919), assim como de outros contos de tema
cinematográfico de autoria de Quiroga, oferece um retrato eloquente
do “pobre-diabo” cinéfilo na autocaracterização que dá inicio à
narrativa:

Eu pertenço ao grupo dos pobres-diabos que saem do cinematógrafo


noite após noite apaixonados por uma estrela. Meu nome é
Guillermo Grant, tenho trinta e um anos, sou alto, magro e moreno
– como quadra, para efeitos de exportação, a um sul-americano.
Vivo em uma situação modesta e tenho boa saúde. Vou levando a
vida sem reclamar demasiado, pouco descontente de minha sorte,
contanto que possa contemplar de frente um par de lindos olhos
todo o tempo que desejar [...] Sendo como sou, compreende-se
muito bem que o surgimento do cinematógrafo tenha sido para
mim o começo de uma nova era, pela qual conto as noites em que
saí meio zonzo e pálido do cinema [...]

Nas fases ruins, cheguei a viver duas vidas distintas: uma durante
o dia, no escritório e no ambiente normal de Buenos Aires, a outra,
de noite, que se prolonga até o amanhecer. Porque eu sonho, sonho
sempre (Quiroga, [1919] 1996, pp. 436-438).

Os parágrafos citados instauram a ambiguidade que permeia


o enredo e que somente se resolve no derradeiro desenlace, já que
a rigor o conto põe em cena dois finais sucessivos. De um lado, a
história é conduzida até o último momento como se fosse ‘real’,

61
O caráter conduzido e pré-fabricado dessa representação que compartilha alguns
traços com a situação onírica foi objeto de reflexão por parte de diversos teóricos
do cinema, entre os quais cabe destacar, além do trabalho pioneiro de Mauerhofer,
já mencionado, os ensaios de Jean-Louis Baudry (1970) e de Christian Metz (1979),
cujas abordagens se inserem em um contexto perpassado pela psicanálise lacaniana.
130 | Miriam V. Gárate

como se pertencesse à dimensão diurna. Segundo essa convenção


de leitura, que o texto convida a assumir até o epílogo, Grant queima
suas magras economias, vai a Hollywood, simula ser um abastado
cinéfilo, conquista Dorothy Phillips, revela mais tarde sua verdadeira
condição, é perdoado pela estrela e, às vésperas do casamento,
cogita escrever um roteiro baseando-se na aventura vivida. De outro
lado, o epílogo que sucede a esse happy end declara o teor onírico
da história, obrigando a sua redefinição retrospectiva: ao invés de
aventura real, peripécia sonhada; em vez de roteiro de um filme
futuro, matéria de um escrito já lido:

Mas isto é um sonho. Tintim por tintim, como acabo de contá-lo foi
sonhado... Não sobra outra coisa para o resto de meus dias que uma
profunda emoção e o pobre paliativo de remeter a Dolly o relato
– como farei logo em seguida – com esta dedicatória: “À senhora
Dorothy Phillips, rogando-lhe que perdoe as impertinências deste
sonho, muito doce para o autor” (Ibid., p. 463).

O autor da dedicatória (e do conto)? Difícil determiná-lo de


forma unívoca. É fato que o narrador-protagonista de “Miss Dorothy”
se assume até o final como sujeito da enunciação – além do que
ressurgirá em relatos futuros (“El espectro”, de 1921, “El vampiro”,
de 1927) precisamente na condição de escritor de roteiros e ensaios
cinematográficos. Mas nada obsta atribuir o epílogo ao próprio
Horacio Quiroga, quem assinou diversas notas sobre cinema com o
pseudônimo de “O esposo de Dorothy Phillips”.62

62
A produção do escritor Horacio Quiroga vinculada à arte cinematográfica
compreende textos críticos e ensaísticos publicados nas revistas El Hogar (duas notas
no ano de 1918 e várias colaborações de junho de 1927 a junho de 1928), Caras y
Caretas (colaborações regulares de dezembro de 1919 a julho de 1920), Atlântida
(publicações de maio a dezembro de 1922, ademais de uma entrevista ao próprio
Quiroga em dezembro de 1927) e no jornal La Nación (duas notas, entre maio e agosto
de 1931). Esse valioso material foi compilado por Gastón Gallo (1996) e recentemente
enriquecido por Ferreira e González Estévez (2014) com alguns escritos não recolhidos
naquele primeiro volume. Por outro lado, Quiroga redigiu um roteiro intitulado La
jangada (baseado em dois contos de sua autoria: “Una bofetada” e “Los mensú”) e
quatro narrativas de ficção: “Miss Dorothy Phillips, mi esposa” (1919), “El espectro”
(1921), “El puritano” (1926) e “El vampiro” (1927). O roteiro integra a compilação
realizada por Gallo; as narrativas fazem parte da edição de Todos los cuentos (1996).
O envolvimento do escritor com o cinema o levou a participar também da iniciativa
(frustrada) de criação de uma Academia Normal de Cinematografia em Buenos Aires.
Os “latinos” viajam a Hollywood | 131

Duplicidade análoga organiza “Una aventura de amor”


(1918), publicado alguns meses antes no Chile. Neste caso, porém,
a frase que desenha a situação inicial explicita de saída o desejo
do narrador por Carmel Myers e o estatuto escrito da confissão,
abertamente endereçada ao público: “Começarei fazendo uma
confissão a minhas leitoras: estou terrivelmente apaixonado por
Carmel Myers” (Boy, [1918]. In: Bongers, Torrealva, Vergara orgs.,
2011, p. 380). Na origem do desejo, previsivelmente, a estreia de um
filme; na sequência, a perseguição deflagrada por um espetáculo que
faculta – e insta – repetir a satisfação: “na noite seguinte, e todas as
noites em que foi projetada, fui de novo ver a fita”, “depois de alguns
dias, a fita foi a Valparaíso”, “eu fui atrás dela”, “um dia levaram a
fita a Buenos Aires... e eu não tinha grana para segui-la” (Ibid., p.
380). A perseguição à Carmel Myers feita de luz e sombra é trocada
de imediato pela viagem a Hollywood e pela sedução da estrela de
carne e osso, desfecho redimensionado mais uma vez pelo último
enunciado: “E, para concluir, devo fazer outra confissão a minhas
leitoras: isso tudo sonhei em apenas uma noite, depois de assistir As
sereias do mar” (Ibid., p. 384).
Talvez não seja arbitrário vincular o duplo regime que molda
a estrutura de ambos os contos ao progressivo “aburguesamento”
do imaginário cinematográfico apontado por Edgard Morin (1989),
fenômeno solidário, por sua vez, do avanço do psicologismo e do
happy end na produção fílmica dos anos 1920-1930.63 De fato, o

63
Em relação a esse processo, o teórico sustenta: “Espetáculo plebeu em sua origem,
o cinema se tinha apropriado dos temas do folhetim popular e do melodrama,
nos quais se encontram em estado quase fantástico os arquétipos originais do
imaginário: acasos providenciais, a magia do duplo, aventuras extraordinárias
[...] O realismo, o psicologismo, o happy end e o humor revelam precisamente
a transformação burguesa desse imaginário. As projeções-identificações que
caracterizam a personalidade no estágio burguês tendem a aproximar o imaginário
e o real, que procuram alimentar-se um do outro. O imaginário burguês aproxima-
se do real ao multiplicar os sinais de verossimilhança e credibilidade. Atenua as
estruturas melodramáticas para substituí-las por intrigas que se esforçam por
ser plausíveis. Daí o que se chama de “realismo”. Os componentes do realismo já
não são o acaso, a “possessão” do herói por uma força oculta, mas as motivações
psicológicas. O mesmo movimento que aproxima o imaginário do real aproxima
o real do imaginário. Em outras palavras: a vida da alma se amplia, se enriquece,
se hipertrofia mesmo, no interior da individualidade burguesa. O amor, fenômeno
da alma que mistura de maneira mais íntima nossas projeções-identificações
imaginárias e nossa vida real, ganha mais importância. É dentro desse quadro que
132 | Miriam V. Gárate

par regime diurno/regime onírico pode ser entendido como uma


tentativa de satisfazer a demanda de “realismo” pelo viés psicológico
que representa o estado de dormência, sem renunciar às reviravoltas
“fantásticas” de uma fase precedente caracterizada pelo predomínio
de aventuras extraordinárias. A ambivalência do narrado não
denega o cotidiano ingrato. Convida a uma satisfação ilusória (e
simultaneamente a desvenda), mediante a representação de uma
experiência familiar e a atualização de um motivo antiquíssimo: o da
dialética sonhar/despertar.
Convém voltar ao conto de Quiroga e às digressões iniciais
feitas pelo “pobre-diabo”, “alto, delgado e moreno”, no qual é fácil
identificar um tipo cinematográfico prestes a cristalizar-se: o latino.
Alternando com os parágrafos citados, Grant intercala reflexões
muito próximas às desenvolvidas pelos pioneiros da teoria do cinema
e à produção crítico-ensaística do próprio Quiroga. Desfilam, assim,
diante do leitor, considerações sobre a relação olhar/expressividade/
beleza (objeto da nota intitulada “Griffith y las miradas expresivas”,
de 1920) ou sobre o vínculo entre desejo erótico, tempo de exposição
do objeto e proximidade ilusória da imagem projetada.64 Pontuando

se desenvolve o romantismo burguês” (Morin, 1989, p. 11).


64
Cotejando a discrepância entre a existência cotidiana e a situação espectatorial
à luz dessas variáveis, o narrador-protagonista afirma: “Os pintores odeiam o
cinematógrafo porque dizem que a luz vibra infinitamente mais que em suas telas.
O ideal, segundo esses pobres artistas, seria pintar quadros cinematográficos.
Compreendo-os. Mas não sei se eles compreenderão a vibração que estremece um
pobre mortal, dos pés à cabeça, quando uma lindíssima garota mostra por uma hora
inteira sua própria vibração ao alcance da boca. Porque não se deve esquecer que
são contadíssimas as vezes que temos a chance, na vida, de ver tão de perto uma
mulher como na tela. O andar de uma bela garota ao nosso lado constitui uma das
poucas coisas pelas quais vale a pena demorar o passo, detê-lo, virar a cabeça –
e perdê-la. Não abundam essas pequenas felicidades. Ora: quanto vale esse fugaz
deslumbramento diante da vertigem torturante, implacável, de ter a noite toda, a
dez centímetros, os olhos de Mildred Harrys? A dez, a cinco centímetros! […] quando
uma estrela abre o paraíso de seus olhos, da vasta sala, da guerra europeia e do éter
sideral não sobra nada; resta apenas o profundo éden melancólico que vive no olhar
de Miriam Cooper [...] Há homens que se apaixonaram por um retrato e outros que
perderam para sempre a razão por uma mulher que nunca conheceram. Quanto a
mim, tudo o que eu poderia perder – inclusive a vergonha – me pareceria pouco,
se ao final da aventura Marion Davies – por exemplo – me fosse concedida como
esposa” (Ibid., pp. 437-438). Para uma análise mais detalhada dessas questões, Cf.,
Gárate (2005, 2007, 2008).
Os “latinos” viajam a Hollywood | 133

essas observações gerais, parênteses autobiográficos modulam as


mesmas questões no plano da experiência vivida pelo protagonista,
levando-o à determinação de casar com uma estrela de cinema. A
partir de então, os desdobramentos da peripécia podem ser lidos
como as etapas de pré-produção e de rodagem de um filme. A
escolha da futura esposa dentre quatro possíveis (Miriam Cooper,
Dorothy Phillips, Brownie Vernon, Grace Cunard) é um sucedâneo do
casting feminino, ao qual se segue o do papel masculino, assumido
por Grant, cujas funções se revelam plurais e versáteis: roteirista,
responsável pela seleção de atores, ator e/ou farsante, dependendo
da perspectiva adotada. A viagem a Los Angeles é relatada em cenas
curtas e ágeis, nas quais desponta um traço recorrente: a alternância
entre ilusionismo e desvendamento da arquitetura da ilusão. Trata-
se de um vaivém que afeta diversas situações: ora pode evidenciar a
escassa beleza natural de uma star – “as estrelas, de dia, têm manchas
e rugas” (Ibid., p. 444) –; ora desnuda os pormenores de um close-up
em que o ator declara sua paixão a uma vassoura:

Às dez em ponto estava nos estúdios da Universal. A influência de meu


amigo me permitiu ficar do lado do diretor de cena, imediatamente
embaixo das câmeras, de modo que pude acompanhar, minuto a
minuto, a filmagem de vários quadros.

Não creio que existam muitas coisas mais artificiais e incongruentes


que as cenas de interior de um filme. E o mais surpreendente é
que os atores consigam expressar com naturalidade uma emoção
qualquer, diante da comparsa de sujeitos plantados a um metro de
seus olhos, observando.

No teatro, a quinze ou trinta metros do público, concebo que um


ator, cuja namorada está junto dele no palco, possa expressar
mais ou menos bem um amor fingido. Mas no estúdio, quando as
tomadas são de detalhe, o cenário desaparece totalmente. Nesses
casos, o ator permanece quieto e sozinho, enquanto a câmera vai
se aproximando de seu rosto, até tocá-lo, quase, e o diretor grita:

– Olha para cá... Ela foi embora, entende? Você acredita que a perdeu.
Olhe para ela com melancolia... Mais! Isso não é melancolia!... Agora
sim está bom... Luz! E enquanto os focos inundam, até cegá-lo, o
rosto do infeliz, ele permanece olhando com ar de apaixonado uma
vassoura, diante do rosto aborrecido do diretor.
134 | Miriam V. Gárate

[…] Admiráveis, todavia, esses seres que nos apresentam, depois,


na totalidade do filme, uma caracterização por vezes extremamente
forte.

E diga-se de passagem: todo o conceito latino do cinema vale


menos que um humilde filme ianque de dez centavos. Aquele é pura
afetação, ao passo que neste costuma-se encontrar com frequência
a primeira condição das obras de arte, como das cartas de amor: a
sinceridade, que é a verdade de expressão interna e externa (Ibid.,
pp. 449-450).

Como acontece em diversos momentos da narrativa, o plano


da anedota desliza para o comentário crítico.

A ciranda dos estereótipos

Transcorridos vários dias em Los Angeles, os progressos


de Grant e seu plano de conquista são bastante modestos: a
intermediação de um produtor, perante o qual ele se apresenta como
diretor de uma fan magazine, rende alguns almoços com a equipe
do filme protagonizado por Dorothy; a empatia com Stowell, o astro
masculino da rodagem em andamento, deflagra um processo de
identificação que se tornará mais adiante fusão e troca de papéis.
Finalmente, dá-se a oportunidade de uma primeira aproximação à
Phillips e ocorre o seguinte diálogo:

– [Dorothy Phillips a Guillermo Grant] Fica muito bem esse sotaque


em você. Conheço muitos mexicanos que falam nossa língua, mas
você não parece... Não é a mesma coisa.

– Você é escritor? – disse Stowell.

– Não – respondi eu [...]

– É o que pensava – reforçou Phillips [...]

– E você, escreve? – virei-me para ela.

– Não, leio às vezes, quando dá tempo... Conheço bastante, para ser


mulher, o que se escreve na América do Sul. Minha avó era do Texas.
Leio em espanhol, mas não falo.
Os “latinos” viajam a Hollywood | 135

– E você gosta?

– Do quê?

– Da literatura latina da América.

Ela sorriu.

– Sinceramente? Não.

– E da literatura da Argentina?

– Em particular? Sei lá... É tão parecido tudo... tudo é tão mexicano!


(Ibid., p. 452).

O clichê da ianque inculta desponta, assim, como contrafigura


do latino. Escárnio da ‘vítima’ endereçado a um imaginário que o
reduz e que confunde sistematicamente o gaucho com o charro ou
Buenos Aires com o México – especialmente com o México, país a
um tempo vizinho e distante da Meca hollywoodiana, espaço de
maior contato e de maior atrito, como se comprovará mais adiante.
Superada a fase dos primeiros diálogos e do flirt inicial, a
comédia se endereça para o clímax: a cena da declaração amorosa.
Nos parágrafos anteriores, assinalou-se a progressiva identificação
de Grant com o protagonista da fita em processo de filmagem.
Nada mais compreensível, portanto, que, como prolongamento
dessa lógica especular, o flerte ‘real’ adote o paradigma do cinema:

Exatamente como em um filme, estava o automóvel detido na


calçada [...] Era o mesmo banco de pedra, que eu conhecia bem,
onde ela, Dorothy Phillips, estava esperando. E Stowell... Mas não,
não era Stowell, era eu mesmo que me aproximava; eu, com a alma
tremendo nos lábios, desejoso de cair a seus pés [...]

Então, de uma olhadela, abarquei a paisagem crepuscular, que


corria aos lados do automóvel.

– Estamos fazendo um filme – lhe disse – Continuemos (Ibid., pp.


455-456).

As voltas e reviravoltas dessa comédia ligeira seguem o script


previsto: esquivanças fingidas por parte de Dolly, perseverança por
136 | Miriam V. Gárate

parte de Grant, romance entre ambos, arrependimento do pobre-


diabo e confissão de sua verdadeira identidade, indignação de
Phillips, reconciliação, casamento iminente. À beira do desenlace,
a seguinte sugestão de Burns, produtor experiente e cicerone do
protagonista:

– Grant, ponha ordem no filme que viveu com Dolly, tal como foi,
reforçando a cena do bar. O final já está pronto. Vou lhe sugerir
algumas outras cenas e, quando estiver pronto, enderece o roteiro
à Blue Bird. O pagamento? Sei lá, mas talvez lhe alcance para um
passeio por Buenos Aires com Dolly, a quem terá que devolver para
a próxima temporada de filmagens, porque O’Hara o mataria (Ibid.,
p. 463).

É precisamente na iminência desse happy end sancionado


como lei do gênero que se produz o despertar inserido à maneira
de epílogo. A experiência vivida (como um filme), que se tornaria
roteiro, torna-se sonho, que se torna conto: o conto que já lemos. Na
construção desse jogo en abyme destaca-se o emprego de um recurso
gráfico: a linha corrida de pontos, uma marca que ‘corta’ a cena
possibilitando a passagem à seguinte sem transições nem delongas,
porém sem perda de legibilidade. O procedimento, aliado à prosa
ágil e à inserção de motivos plásticos codificados por Hollywood
(do passeio em automóvel ao beijo sensual), imprime uma feição
cinematográfica ao relato.

Uma viagem, duas versões

Em dezembro de 1919, meses depois da publicação de


“Miss Dorothy Phillips, mi esposa”, o mexicano Carlos Noriega Hope
(1896-1945) viaja a Los Angeles enviado por El Universal, jornal
em que assumira, desde inícios daquele ano, a coluna de crônica
cinematográfica em substituição a Rafael Pérez Taylor. As impressões
desse “repórter curioso”, segundo palavras do próprio autor, foram
publicadas inicialmente no semanário El Universal Ilustrado e
reunidas logo depois em El mundo de las sombras, el cine por fuera y
por dentro (1921). Trata-se, segundo Ángel Miquel (1995, p. 83), do
primeiro livro inteiramente dedicado à nova arte naquele país – e
certamente um dos primeiros na América Latina.
Os “latinos” viajam a Hollywood | 137

A iniciativa do semanário se inscreve em um conjunto mais


vasto de ações que testemunhavam o avanço da cinematografia
estadunidense e tendiam a instituir um imaginário participativo
em relação ao mundo dos estúdios, bem como à vida de astros e
estrelas.65 Nessa conjuntura, o jovem jornalista, veemente defensor
da “naturalidade expressiva” e do “realismo ambiente” das fitas
norte-americanas, se traslada à capital do cinema com o objetivo de
examiná-la “por dentro” e de comunicar suas impressões a um leitor
cada vez mais sedento de notícias sobre Hollywood.66

65
Aurelio de los Reyes (1993, p. 52) refere alguns indicadores dessa fase de
transição ao mencionar a realização de uma série de concursos ao longo de 1920
destinados a escolher a “melhor fita” (El Heraldo de México) ou a “atriz favorita”
do público (El Universal Ilustrado). No concernente às fitas, os três primeiros
lugares corresponderam ainda a melodramas italianos e o quarto, a um filme de
Mary Pickford; em relação às atrizes, o primeiro lugar coube a Francesca Bertini;
o segundo, a Mabel Norman; o terceiro, a Pearl White e o quarto, a Pina Menichelli.
Mas o provisório equilíbrio expresso nesses resultados, decorrentes em boa medida,
como assinala o historiador, do próprio vaivém dos lançamentos, já havia começado
a pender irreversivelmente em favor do cinema estadunidense e do complexo
sistema de produção, promoção e consumo a ele atrelado: “Califórnia testemunhara
a febre do ouro em meados do século XIX, no século XX testemunhava a ‘febre do
cinematógrafo’, propiciando a história da vertiginosa ascensão e queda social através
do cinema. Os mexicanos começaram a acreditar nessa quimera do ouro, nessa nova
terra prometida. Miragem alimentada pela imprensa, cujas páginas começaram a
difundir a moda norte-americana e impor o ideal de beleza emanado de Hollywood:
Você tem rosto de estrela? [...] qualquer jovem que ambicione ser uma Mary
Pickford pode determinar por meio desta fórmula se é das poucas mulheres cujas
feições possuem a medida fotográfica standard (de um “T”) (El Universal Ilustrado,
27/5/1920)” (Ibid., p. 56).
66
Embora em 1920 o studio system e o star system não tivessem atingido ainda seu
apogeu, os componentes fundamentais dessas estruturas já haviam sido delineados
e estavam em pleno desenvolvimento. A existência de uma complexa rede de
informação e de publicidade é um de seus aspectos constitutivos: “Na época em que
reinava o star system, isto é, até os anos 50, 500 jornalistas estavam estabelecidos
em Hollywood para alimentar o mundo com informações, fofocas e confidências
sobre as estrelas. Em seu livro America at the movies, Margaret Throp estima que
partiam diariamente de Hollywood 100 mil palavras, o que tornava a cidade a
terceira maior fonte de informações dos Estados Unidos, depois de Washington
e Nova York. Hoje em dia, as fotografias das estrelas continuam a aparecer em
primeiro plano em jornais e revistas. Sua vida privada é pública, sua vida pública
é publicitária, sua vida na tela é surreal, sua vida real é mítica” (Morin, 1989, p.
XV). Mais recentemente, na mesma direção, Goulart (2011, p. 12) afirma: “Segundo
David Marshall (2010), as estrelas são ‘produções do eu’ dependentes de uma
138 | Miriam V. Gárate

***

Convém assinalar alguns traços das crônicas e das


entrevistas, com o objetivo de examinar posteriormente a relação
instaurada entre elas e o discurso das narrativas ficcionais de tema
cinematográfico, entre as quais cabe mencionar “El viejo amigo”
(1923), “El honor del ridículo” (1923) e Che Ferrati, inventor (1923),
novela de Noriega Hope que será objeto de uma representação teatral
em 1924.67 O primeiro aspecto a ser salientado se vincula aos tópicos
presentes na moldura e no núcleo principal da série de crônicas; o
segundo se relaciona com o formato e o tom que prevalecem nesse
núcleo principal; o último atenta para expressões recorrentes nas
falas dos entrevistados, nas quais ecoa uma conjuntura de atritos e
de negociações entre o México e os Estados Unidos.
O marco inicial das crônicas é dado pelo relato da viagem a
Hollywood, cidade na qual Noriega Hope permanece cerca de sessenta
dias. O translado em um moderníssimo trem e o impacto causado por
admiráveis “hotéis cidades” são as primeiras experiências descritas,
às quais sucedem as impressões de sua visita ao estúdio de Thomas
H. Ince, acompanhado pelo amigo e compatriota Manuel Ojeda, que
faz as vezes de um cicerone durante sua estada:68

cultura midiática poderosa e extremamente elaborada. A essência do fenômeno


está em suas imagens que precisam ser construídas, não apenas pelos estúdios,
mas também pelas entrevistas, biografias, fofocas e publicações na imprensa. O
termo “fama” implica que o público possua uma imagem de um indivíduo e os meios
de comunicação de massa desempenham um papel central para que uma pessoa
‘privada’ seja transformada em figura ‘pública’”. A atuação como repórteres em Los
Angeles do mexicano Noriega Hope e do brasileiro Olympio Guilherme deve ser
compreendida nesse contexto, da mesma forma que as entrevistas realizadas em
1928, para Caras y Caretas, pela correspondente e atriz Mary Clay, “conhecida como
a ‘Mary Pickford’ de Argentina, e cujo pseudônimo passou a ser Mirra Rayo, ao ser
absorvida pela indústria hollywoodiana” (Cf. Ferreira; González Estévez, 2014, p.
83). A publicação forjada por Guillermo Grant, da qual alega ser diretor ao chegar
aos Estados Unidos, ficcionaliza essa prática em ascensão.
67
Além de seu trabalho constante como crítico cinematográfico e de sua produção
de contos, Noriega Hope realizou um filme, rodado em 1921 e estreado em 1923:
La gran notícia, também conhecido como Los chicos de la prensa. Produziu, ademais,
alguns roteiros, entre os quais se destaca o da primeira versão sonora de Santa,
filme baseado no romance homônimo de Federico Gamboa, cuja estreia deu-se em
1931.
68
No item que leva o título “Mexicanos en Hollywood”, Aurelio de los Reyes (1993,
Os “latinos” viajam a Hollywood | 139

O carro chegou às portas da Golwdyng e timidamente fui detrás


de meu amável cicerone até a sala de informações. Nunca antes
em minha vida vi um espetáculo mais desolador, mais odioso e
mais horrível [...] Na sala de espera à qual me refiro havia – sem
exagero algum – pelo menos trinta moças distribuídas em cadeiras
e poltronas. Entrei e fiquei extasiado [...] Todas aguardavam algo.
Olhei Ojeda e, com enorme curiosidade, lhe perguntei:

– Manuel, essas moças são estrelas?

– Não são estrelas; são “figurantes” que esperam pacientemente,


talvez uma hora, talvez um dia ou uma semana, que alguém utilize
os seus serviços no estúdio [...] Nesta cidade de setecentas mil
almas existem mais de dez mil figurantes (Noriega Hope, 1921, pp.
22-23).

Entretanto, essa primeira imagem será substituída de


imediato por outra. Ao adentrar no set, a dimensão sombria do
mundo hollywoodiano se desvanece e volta a prevalecer a ilusão, a
“terra de maravilhas”, os sonhos materializados em papier maché:

Tudo o que escreva agora será um débil reflexo do que vi porque

pp. 54-55) comenta: “Começou a falar-se com insistência dos mexicanos que
tentavam em Hollywood uma carreira cinematográfica. De Manuel Ojeda – que
levava vários anos por lá e interpretara papéis menores em várias fitas, além de ser
correspondente cinematográfico de El Universal –, disseram que havia sido nomeado
presidente da Peruvian Film Company de Lima, onde iria ‘a fim de produzir [...]
fotodramas sobre costumes e tradições locais’ (“Los cines-artistas mexicanos en el
extranjero”. El Universal, 20/06/1920). José Vasconcelos concedeu a Elena Sánchez
Valenzuela, atriz de Santa e de La llaga, a bolsa que solicitara para estudar cinema
em Hollywood; ela seria, ademais, correspondente de El Demócrata. William Duncan
afirmou em uma entrevista que tinha predileção pelos trabalhadores mexicanos
de cinema, ‘gente de fácil compreensão e de valor temerário’ [...] Sobressaíram-se
Fernando Elizondo e Beatriz Domínguez; desta última, se exibiu o seriado de dezoito
episódios em trinta e seis partes intitulado Las calaveras del terror (1920); ela
morreria em Hollywood, meses depois de dançar com Rodolfo Valentino o famoso
tango de The Four horsemen of the Apocalypse. Fernando Elizondo monopolizou
a atenção porque passou de humilde funcionário de ferrovia a ‘primeira estrela
mexicana no firmamento de Hollywood’. Foi ao México para contar sua história e
exibir suas fitas”. O panorama traçado pelo historiador interessa não somente por
caracterizar o contexto em que ocorre a visita de Noriega, mas a presença, nesse
horizonte histórico, de um fenômeno que será retomado em sua ficção: o dos
mexicanos em busca de sucesso e de celebridade em Hollywood.
140 | Miriam V. Gárate

sou impotente para descrever essa terra de maravilha, esse lugar


de conto de fadas. Basta dizer que ao sair me conduziram para
as diversas construções provisórias ou “sets”, erguidos para a
confecção das últimas fitas... Meu Deus! Estava numa rua artificial
rodeado de prédios artificiais, com bondes elétricos (ou pelo menos
isso me parecia) artificiais! Tinha acreditado na realidade dessa
rua e, no fim, tudo era de cartão e de papier maché... E convenci-
me ainda mais ao virar uma esquina e topar com outra rua... Era
uma rua da antiga Inglaterra e eu me senti, nesses momentos,
Oliver Twist a caminho do hospício. Mas viramos uma esquina e se
ofereceram à minha visão uma choupana caindo aos pedaços, uns
barracos, os restos de um barco... Este set – disse Ojeda sorrindo –
representa uma ilha selvagem, a “Ilha do Tesouro” [...] Oh poetas,
artistas, literatos! Por desgraça vocês não conhecem um Studio
[...] Aqui se reproduzem, sem telões, ao ar livre, todas as paisagens
criadas pela imaginação do escritor; pela primeira vez na história,
as fantasias dos poetas e os voos imaginativos dos romancistas
podem ser mostrados, reais e tangíveis, graças ao cinematógrafo
(Ibid., pp. 24-25).69

69
Contrastando com a celebração eufórica dos sets como lugar de convergência de
espaços-tempos-ilusões heteróclitos, Krakauer apresenta, em um artigo publicado
no Frankfurter Zeitung em 28/1/1926, uma visão decididamente soturna da
cidade-estúdio da UFA, em Neubalsberg. A ênfase, desta vez, incide sobre o caráter
deformador e a arbitrariedade das relações instauradas entre os fragmentos
espaçotemporais reconstituídos e reinventados nos sets: “Em meio a Grunewald
há uma área cercada onde só é permitida a entrada depois de passar por vários
vigias. É um deserto no oásis. As naturalidades do lado de fora – árvores de madeira,
lagos com água, cidades que são habitáveis – perderam seu direito no interior de
suas fronteiras. O mundo certamente aí reaparece, sim, todo o macrocosmo surge
reunido nesta nova Arca de Noé: mas as coisas que aí se encontram não pertencem
à realidade. São cópias e bonecos que foram arrancados do tempo e estão
confusamente misturados. Permanecem estaticamente imóveis; pela frente cheios
de significação e, por trás, nulidades vazias. Um sonho ruim se aproxima de objetos
que foram extirpados do mundo material [...] Para poder desfilar no filme, o mundo
é decomposto em pedaços na cidade do cinema. Suas correlações são suspensas,
suas dimensões transformadas à vontade, suas potências mitológicas tornam-se
diversão. Assemelha-se a um brinquedo de criança que se monta numa caixa de
papelão. A demolição dos conteúdos do mundo é radical e, mesmo que não seja mais
que aparência, não é nada negligenciável. Os heróis da Antiguidade já fazem parte
dos livros de leitura escolares. Ruínas do universo estão armazenadas no galpão de
apetrechos, exemplares-testemunhos de todas as épocas, povos e estilos” (Krakauer,
[1926] 2009, pp. 303-304).
Os “latinos” viajam a Hollywood | 141

A primeira crônica de Viaje al mundo de las sombras conclui


com uma entrevista a Mabel Normand, anunciando o tom das que
se seguem: o foco incidirá, a partir daí, nas estrelas, nos astros e nos
cineastas de renome. O incidente do início, que se abria à possibilidade
de mostrar outras facetas da vida hollywoodiana, é abandonado em
benefício de uma sucessão de minibiografias marcadas pela escalada
e pela permanência no reduzido grupo dos eleitos. Desfilam, dessa
forma, Charles Chaplin, William Hart, Al St. John, Eddie Polo, Allan
Dwan, Tony Moreno, May Allison, Douglas Fairbanks, Max Linder,
Mack Sennett, Jack Dempsey, Clara Kimball Young.
Interessa observar a sistematicidade com que esses astros
e estrelas expressam sua simpatia pelo país de origem do repórter.
Mabel Norman se faz fotografar com Ojeda e Carlos Noriega Hope
“para enviar a fotografia ao México”, lugar onde vivera e do qual diz
guardar gratíssimas lembranças (Ibid., p. 32); Miss Frederics registra
sua satisfação por estar rodando uma fita ambientada naquele país,
na qual “os mexicanos não serão os eternos bandidos” de sempre
(Ibid., pp. 37-38); William Hart está à procura de “uma boa história
baseada em assuntos mexicanos, em que se mostrem as nobres
qualidades desse país” (Ibid., p. 52); Douglas Fairbanks manifesta
seu desejo de rodar no México uma fita de tema histórico (Ibid., p.
59). Eddie Polo, Tony Moreno, Charles Chaplin, May Allison, todos
se referem em algum momento à nação vizinha – um importante
mercado consumidor, sem dúvida, mas também um território com
o qual os desentendimentos e altercados, tanto no plano político
como no plano das representações simbólicas, vinham sendo uma
constante. A assiduidade do gesto testemunha essa conjuntura
específica.70

70
Desde o início da revolução, as relações entre México e Estados Unidos foram
marcadas por conflitos de diversa índole. Entre eles, cabe destacar os decorrentes do
não reconhecimento das autoridades mexicanas de turno por seu vizinho do Norte
e os vinculados a interesses econômicos, em especial os das empresas petroleiras
norte-americanas. Com o propósito de combater a contrapropaganda ianque,
o governo do general Obregón (1921) promove uma série de ações orientadas à
divulgação de uma imagem positiva do México no exterior (filmes documentais,
conferências etc.). Segundo Aurelio de los Reyes (1993, p. 177), o período coincide
com o crescimento do país como mercado consumidor de filmes estadunidenses
(o México se torna o mercado mais importante da América Latina, deslocando a
Argentina e o Brasil, no decorrer de 1921). Nesse cenário, ciente da força que lhe
conferem a paulatina pacificação interna e a abertura do mercado cinematográfico
142 | Miriam V. Gárate

Por fim, arrematando a viagem do repórter, uma anedota que


retoma o episódio do primeiro dia em Los Angeles. Horas antes de
partir, Noriega Hope visita outra vez Mabel Norman e esta lhe pede
que entreviste uma moça:

– Mister Mex – diz Mabel – não vá embora sem entrevistar uma


moça. Quero que escreva no México alguma coisa sobre ela. Não
importa que sejam somente umas linhas [...]

– Senhor, eu queria contar-lhe minha história porque preciso de um


pouco de publicidade.

Devo explicar esta frase. A publicidade nos studios norte-


americanos mede-se milimetricamente. As atrizes consagradas
“ganham” artigos e mais artigos que se distribuem em todos os
jornais americanos, mas as que começam não recebem uma só
linha dos escrevinhadores, e como metade do sucesso depende do
papel impresso, elas não têm oportunidades de galgar até o topo.
Por isso pedem ansiosamente publicidade como uma esmola [...]

– Sou a única atriz que veio a pé de Seattle a Los Angeles, com o único
objetivo de se dedicar ao cinema. Tinha dinheiro para a passagem,
mas preferi caminhar com o objetivo de chamar a atenção e de

mexicano, Obregón decide adotar medidas contra os produtores de fitas que


denigrem a imagem nacional. Em 1922, o governo envia uma primeira circular ao
cônsul mexicano em Nova York, repassada depois a outros cônsules, autorizando-os
a denunciar na Secretaria de Relações Exteriores aquelas fitas que considerassem
ofensivas. No mesmo ano, Her Husband’s Trade Mark (1922), com Gloria Swanson,
suscita a cólera do governo mexicano (o filme, provavelmente rodado no México,
mostrava a irrupção de uma gangue de ladrões mexicanos na residência da
protagonista, com o intuito de violá-la). Apesar do telegrama enviado por Players-
Lasky notificando a retirada de circulação do filme, o conflito se acirra. De fato, Lasky
muda alguns letreiros, mas continua distribuindo a fita. Em abril de 1922, Obregón
proíbe a entrada no país de todas as fitas da Paramount até que Her Husband’s
Trade Mark seja retirada de circulação em nível mundial. São proibidas também
durante esse período diversas fitas das produtoras Aywon Films e Metro Pictures.
As altercações continuam até pelo menos 1923, mas geram simultaneamente uma
série de ações e de gestos que visam paliar a situação: viagens de astros e estrelas
ao México, promessas de esforços no sentido de retratar de forma fiel e favorável o
país, reuniões entre produtores estadunidenses e representantes governamentais
mexicanos etc. As recorrentes manifestações de simpatia registradas nas crônicas
de Noriega Hope devem ser compreendidas nesse contexto. Sobre essa questão, Cf.
Reyes (1993, pp. 98-208).
Os “latinos” viajam a Hollywood | 143

obter “um pouco de publicidade” nos jornais. Meu nome é Ruby e


ganho sete dólares ao dia (Ibid., pp. 130-131).

Vê-se até que ponto Guillermo Grant acertava ao principiar


seu plano de conquista fingindo ser o diretor de uma luxuosa fan
magazine. Afinal, “metade do sucesso” de uma estrela “depende do
papel impresso”. Dorothy Phillips, Mabel Norman, a figurante Ruby
sabem-no perfeitamente.

***

Ao regressar a seu país de origem, Noriega Hope escreve


várias narrativas de tema cinematográfico, publicadas na imprensa
periódica e reeditadas mais tarde em dois livros: La inútil curiosidad
(1923) e Miss Patsy y otros relatos (sem data). De alguma forma, a
viagem continua. O veículo, agora, é a folha de papel, espaço no qual
se realiza uma série de operações com respeito à matéria-prima
das crônicas. Por um lado, operações de resgate e de importação,
visto que anedotas como a anteriormente citada migram para as
ficções. Por outro lado, operações transformadoras que alteram
pesos e proporções, modificando o estatuto do narrado. O incidente
“horrendo”, mas passageiro no discurso do repórter, se torna o núcleo
de textos focados naqueles que habitam a periferia do star system: o
que era a margem nas crônicas devém centro na ficção. Che Ferrati,
inventor, de 1923, ocupa um lugar de destaque nesse conjunto.
A novela possui uma estrutura bastante próxima à da comédia
de confusões, mas recorre à comicidade com o propósito de alertar
aos sonhadores incautos (sob esse ponto de vista, a ficção também
dá continuidade à crônica publicada em El Universal e assinada
pelo autor com o pseudônimo de Silvestre Bonnard: “Vanidad de
vanidades”). Para atingir tal objetivo, Noriega Hope recorre a um
motivo literário de longa tradição: o duplo.
Com duas modulações fundamentais, a saber, de um lado, a
‘fantástica’ e, de outro, a ‘realista’, o tópico do duplo se faz presente
em vários relatos da época. A primeira delas retoma e desenvolve
em chave tecnológica os motivos do desejo amoroso, do ímpeto
prometeico, do anseio de imortalidade e do sacrifício do original
em benefício de sua réplica, dentre outros. Nessa linhagem de
144 | Miriam V. Gárate

textos, o aparelho cinematográfico e/ou os seres fantasmáticos


que ele engendra costumam vampirizar ora os originais filmados,
ora o espectador enfeitiçado, quando não ambos, conduzindo-os
à morte. “El espectro” (1921), “El puritano” (1926) e “El vampiro”
(1927), do uruguaio Horacio Quiroga, ou o romance XYZ (1934), do
peruano Clemente Palma, pertencem a esse grupo. Quanto à linha
de desenvolvimento ‘realista’ do motivo, a ser abordada de imediato,
ela se materializa no tema do dublê cinematográfico stricto sensu e
em formas mais brandas de imitação de figuras do star system. Neste
caso, o conflito migra para a conspurcação da identidade do dublê,
cuja existência vê-se alienada e progressivamente sugada pelo astro
ou pela estrela que deve substituir. Além de Che Ferrati, inventor e
de Hollywood, novela da vida real, aqui examinados, cabe mencionar
“El hombre que se parecía a Adolfo Menjou” (1929), da peruana
María Wiesse, e “Estrella doble” (1935), do mexicano José Martínez
Sotomayor. Evidentemente, a divisão não é tão nítida nem taxativa e
há vasos comunicantes entre ambas as vertentes.

Astros, figurantes e dublês

Tão pobre-diabo como o argentino Guillermo Grant é


o mexicano Federico Granados, jovem ator recém-chegado a
Hollywood com “quinhentos dólares no bolso” e “um capital de
ilusões” (Noriega Hope, 1923, p. 17) ao se iniciar a novela. De fato, na
cronologia que marca a transição de um relato a outro, coincidente
com a expansão da indústria cinematográfica norte-americana
em escala mundial, a cifra dos pobres-diabos que anseiam ‘levar
uma vida de filme’ amplia-se vertiginosamente. Em seu círculo
distante, abarca o público das mais remotas latitudes; em seu círculo
próximo, quase em sua esfera interna, abrange a comparsa de girls
interioranas e de figurantes latino-americanos que se deslocam para
Los Angeles com pouquíssimo dinheiro, mas muitas expectativas. O
olhar do Noriega Hope ficcionista é particularmente sensível a esse
universo situado nas bordas de um sistema também captado por
Quiroga e por Boy, embora de outro ângulo. Quiroga e Boy olham em
direção ao espectador comum que está longe da Meca e se contenta
com sonhar ao sair da sala escura; Noriega Hope foca o destino dos
Os “latinos” viajam a Hollywood | 145

que, impulsionados pelo sonho, se transladam à capital do cinema e


eternizam sua espera nos sets “vestindo-se um dia de cowboy e outro
de cidadão romano” (Ibid., p. 25).
Logo após chegar a Los Angeles, Federico Granados cruza
com uma garota parecida à figurante da entrevista já citada: Hazel
Van Buren. A moça confessa ter confundido o mexicano com um
“fantasmón71 do cinema, cuja popularidade causava estragos
nos corações standard de todas as flappers” (Ibid., p. 16). Hazel,
evidentemente, é uma flapper dentre muitas.72 O incidente tem
por função pôr em cena um indício do que virá, pois Granados
se assemelha deveras a um astro que se tornará ipsis litteris um
fantasmón ao morrer em plena rodagem, e ao qual ele substituirá,
primeiro nessa fita inacabada e depois em outra e em outra mais,
até transformar-se num dublê permanente. Mas o episódio também
serve para dar início a um jogo de sedução no qual as personagens
assumem atitudes que imitam e duplicam as da tela, já que é na sala
escura onde todas elas aprenderam seus papéis: os da vida ‘sonhada’
e os da vida ‘real’, impossível discerni-los. Isso favorece uma profusa
circulação de clichês aparentados com os da ficção quiroguiana. O
primeiro deles esboça-se por ocasião do equívoco do qual é objeto o
protagonista:

Ela [Hazel Van Buren] o confundira! E, portanto, ao saber que era


mexicano, fez um gesto de desgosto [...] Não voltou a sorrir até que
Federico Granados mostrou seus dentes brancos e sua boca sensual,
com um sorriso amável, de bom nativo. Hazel, então, imaginou de
imediato um romance a la Mary Roberts Rinehart, ao pensar que
Federico tinha sangue espanhol “como Tony Moreno”. Podia ser

71
O termo é usado como sinônimo de astro ou de personalidade muito conhecida,
mas evoca essa significação segunda a partir de uma condição primeira da imagem
cinematográfica: a condição ilusória, espectral, fantasmagórica.
72
A expressão remete a um novo tipo feminino que se populariza graças a
filmes, revistas e publicidades durante a década de 1920 e no qual se combinam
moda, consumo, atitudes de certa ordem: vestidos curtos, cabelo à la garçonne,
maquiagem evidente, gosto pelo jazz, consumo de cigarros e de álcool, desprezo
pelo comportamento considerado ‘decente’ na época etc. Geralmente, a imitação
desse modelo e um misto de admiração e desejo pelos astros masculinos de sucesso
andam de mãos dadas, fazendo das flappers o principal contingente dos fã-clubes e
as principais compradoras das fan magazines, dois fenômenos em desenvolvimento
no período.
146 | Miriam V. Gárate

um bom “herói da vida real”, porque havia nascido entre touradas,


flores, sol ardente e estocadas nas ruas...

Federico ia protestar contra esse falso conceito. Espanha não era


a Spain sonhada pelas meninas loiras e os produtores de cinema
[...] Mas sua malícia o fez pensar nas ideias reinantes nos Estados
Unidos, que fazem do “latino” um personagem de outro mundo,
fantástico, insuperável como apaixonado ardoroso (Ibid., p. 16).

O estereótipo do latino ardoroso renderá frutos a Granados,


assim como antes rendera frutos a Guillermo Grant, pois a moça
nutrirá em poucos dias por seu Freddy uma “pequena paixão
romântica” (Ibid., p. 17). Na passagem do sonho do primeiro à vida
do segundo, porém, a conquista de uma estrela por um pobre-diabo
sul-americano se torna “paixão standard” entre figurantes que
ambicionam devir stars.
Se Granados desempenha com eficácia seu papel de “jovem
mexican”, o mesmo pode-se dizer da moça norte-americana, uma
flapper que posa de girl inocente aos olhos de seu “dear Freddy”
e que corporifica, ademais, o arquétipo da infinita incultura em
relação a quase tudo e, em especial, a South America.73 Amplificados,
com traços caricaturais fortes, retornam os clichês do diálogo
entre Guillermo Grant e Dorothy Phillips.74 Por último, a terceira

73
O uso de palavras ou expressões inglesas destacadas em itálico é muito frequente
no relato e evidencia o esforço de construção de um imaginário linguístico acorde
com o universo representado.
74
“Uma dessas noites, sempre iguais, Hazel estava mais loquaz que de costume.
– Tenho tanta fome! – exclamava entre bocado e bocado. Fizeram-nos ficar
quatro horas no set, ao ar livre, dançando e berrando como se fôssemos doidas. É
um filme sobre a Revolução Francesa, e acho que aparece um senhor com um nome
extravagante: Ribespirre ou algo semelhante. O grave é que dançamos seminuas,
cobertas apenas com uns panos coloridos e um boné estranho... Ouvi que o diretor
nos chamava de sans-culottes... Que significa isso, Freddy?
Freddy, imutável, recordou todo seu Michelet e [...] deu vazão a sua
eloquência de uma forma agressiva para os clientes silenciosos, que começaram a
observá-lo com longos olhares bovinos.
– Dear... Não fales tanto: você parece Bill Sunday – interrompeu Hazel,
alarmada [...] Mas sua intuição feminina lhe fez compreender, com apenas olhar o
rosto de Granados, que havia matado uma ilusão... E acrescentou docemente.
– Quantas coisas você sabe, Freddy!... E eu que achava que no México
ninguém sabia ler...” (Ibid., p. 20).
Os “latinos” viajam a Hollywood | 147

personagem importante dessa galeria é Ferrati, o argentino que


dá título à narrativa: figurante no passado, inventor de um set em
miniatura que faz poupar cem mil dólares a Superb Picture depois,
diretor artístico do estúdio na atualidade. Artífice de truques
geradores de ilusão e de dividendos, o argentino desempenhará um
papel-chave na trama.

***

Quando Federico Granados conhece Ferrati, este está


envolvido em uma nova invenção: uma pomada que pode ser
modelada sobre os rostos; uma segunda pele, capaz de mascarar e
suplantar a ‘original’. A morte inesperada do astro francês Henri Le
Goffic, ao qual o mexicano se assemelha fisicamente, provê a ocasião
de experimentar o novo truque. Perplexo, sem entender do que se
trata, Granados é arrancado do estúdio no qual se encontra “vestido
com sua eterna roupa de muçulmano” e é conduzido por Ferrati até
o escritório de um famoso diretor: Roy Margram.

Ali, com a maior seriedade do mundo, Ferrati asseverou a Roy


Margram que o turco que trazia pelo braço não era um muçulmano...
mas Henri Le Goffic, que, segundo um telegrama recente, morrera
de forma repentina em um vilarejo da montanha. A funesta notícia
caíra no studio como uma bomba [...] Poucas pessoas sabem o
que significa para uma empresa cinematográfica a morte de uma
estrela. Milhares, ou talvez milhões, investidos em atores, em sets,
em cenário e mise en scène perdem-se irreversivelmente [...] Ferrati,
ao saber da notícia, teve uma grande ideia. Ele salvaria a Superb
Pictures pondo em prática sua última invenção [...] Ferrati correu
em busca de Federico e, depois, diante do grupo de magnatas,
expôs claramente suas ideias. A morte de Henri Le Goffic já não era
irreparável. Henri Le Goffic poderia reencarnar em outra pessoa
que tivesse grande semelhança física com o defunto ator francês.
Porque Ferrati ia reproduzir, no rosto do substituto, o rosto de
Henri Le Goffic. Modelaria as mesmas feições até conseguir uma
“duplicação” e para tanto contava com a “Ferratine”, a nova pasta
obtida em suas experiências (Ibid., pp. 32-33).

Num primeiro momento, a pomada parece ter vindo para


satisfazer as expectativas de todos: do diretor do filme interrompido,
que anseia concluí-lo; dos empresários e do próprio Ferrati, ávidos
148 | Miriam V. Gárate

pelo lucro; das fãs, desejosas de ver mais uma vez seu astro na
tela e fora dela; de Granados, ansioso por abandonar a condição
de figurante anônimo e que enxerga o papel como uma chance de
demonstrar sua destreza interpretativa. Entretanto, a situação se
revela menos simples do que parecia à primeira vista. De um lado,
a substituição convincente de Le Goffic prova o valor de Granados
como intérprete; de outro, o deflaciona sob o peso que possui a
imagem pública da figura suplantada. A substituição demonstra
que a celebridade é um produto fabricado e fabricável, mas mostra,
ao mesmo tempo, que o valor de mercado difere segundo o tipo de
mercadoria. Existem as mercadorias de luxo (astros e estrelas) e as
mercadorias ordinárias (figurantes e dublês). Existem os originais
e as cópias. Ninguém é inerentemente isto ou aquilo. A posição no
tabuleiro decorre de múltiplos fatores e é essencialmente móvel: a
estrela de hoje pode devir o figurante de amanhã; o desconhecido
pode ser beneficiado por um lance de sorte.75 O dublê, todavia, parece
condenado a replicar indefinidamente o fantasma que imita. Embora
vestir a pele de uma personagem fictícia ou dessa produção do eu
não menos inventada que é o astro sejam operações equiparáveis, a
lógica de um modelo que se fundamenta no caráter intercambiável
de suas peças e simultaneamente em sua hipotética singularidade
proíbe o ‘reconhecimento’ do dublê, sob pena de depreciação da

75
Regina Goulart (2011) comenta nos seguintes termos esse caráter aleatório, no qual
se sustentam em boa medida as esperanças e as expectativas do indivíduo comum:
“Quando o som surgiu em 1927 e configurou-se o sistema de fábrica de Hollywood,
as estrelas passaram a ser diretamente compreendidas como mercadorias, passíveis
de ser manufaturadas. Leo Rosten, um investigador do mundo hollywoodiano,
que delineia em sua obra características dessa máquina, é informativo, explícito:
É difícil ver como um segmento substancial da população americana pode não ter
esperanças, ainda que fragilmente, de estar entre os abençoados cuja mão mágica
de Hollywood puxa da obscuridade [...] Seus talentos [de uma imaginária pessoa
comum] podem ser sombrios, suas feições comuns, sua inteligência insípida.
Ainda assim, quão plausível é para ela considerar, “pode acontecer comigo” [...] Ela
sabe quão facilmente os especialistas em maquiagem escondem as sardas de Joan
Crawford ou Myrna Loy [...] Ela sabe que Norma Shearer é estrábica [...] Ela leu sobre
como as palavras começadas com “r” são retiradas dos roteiros de Kay Francis. [Ela]
é baixa? Eles podem fotografá-la sobre um caixote. Ela é gorda? Eles a colocam numa
dieta. Ela é magra? Eles a engordam. [Ela] sabe atuar? Bem! Hedy Lamarr sabe?
Eles a ensinarão [...] Diretores, roteiristas e produtores brilhantes se dedicarão
solenemente à exploração de seus talentos ocultos” (Rosten apud Basinger (2007)
apud Goulart, p. 21).
Os “latinos” viajam a Hollywood | 149

celebridade.76 As peripécias de Granados servem para patentear


os paradoxos desse sistema, cujos tentáculos se alastram muito
além do espaço-tempo da rodagem. Com efeito, outro dos aspectos
explorados pela narrativa, vinculado ao anterior, é a imbricação
estreita entre vida pública e vida privada na qual se apoia o star
system, fenômeno que comporta a progressiva confiscação do sujeito
pela máscara assumida nas mais diversas esferas, obrigando o
mexicano a interpretar sua personagem dentro e fora dos sets. Se,
como sustenta Morin (1989, p. XV) a propósito das estrelas, “sua
vida privada é pública, sua vida pública é publicitária, sua vida na

76
“Nos primeiros dias, a ‘duplicação’ estimulou sua curiosidade e seu humor. Ver-
se rodeado de várias centenas de figurantes, respeitado por uma multidão de
fotógrafos, o fazia sorrir por dentro. Um pobre-diabo de cinco dólares semanais
transformado num senhor! Ninguém percebera a mistificação [...] Roy Margram, de
sua poltrona, admirava-se diante da versatilidade e da expressão de Granados:
– Bendito seja Deus! A morte de Le Goffic me enche de um impiedoso gozo,
porque acabamos achando um Le Goffic superior [...]
– Você me enche de alegria, Mr. Margram. E espero que, uma vez acabada
esta fita, acabaremos com Le Goffic e eu poderei trabalhar, finalmente, com minha
alma e com meu corpo.
– Você está enganado, meu pobre amigo. Pelo resto da vida você terá que
ser Le Goffic, pois do contrário não seria mais que um simples figurante.
Granados sentiu que o mundo dava voltas ao seu redor. Era um boneco, um
fantoche [...]
– Mr. Margram, me salve. Eu tenho talento, eu posso tornar-me célebre.
Margram, comovido, respondeu:
– Não sonhe. Você morreu e, caso se esforce em ressuscitar, os milhões da
Superb Pictures voltarão a afundá-lo no túmulo [...]
Os diretores entraram de repente.
– Mr. Le Goffic – permita-me que o chamemos dessa forma –, viemos
parabenizá-lo e tratar de uns enfadonhos assuntos financeiros. Seu sucesso foi
enorme e não é justo que continuemos pagando um salário de cinco dólares diários.
Consideramos justo fazer um contrato confidencial... por cento e cinquenta dólares
semanais.
Granados deu um pulo, vermelho de indignação.
– Vocês acham que ignoro qual era o salário de Le Goffic? Três mil e
quinhentos dólares semanais! E eu, que sou o próprio artista, vou receber cento e
cinquenta!
Os produtores se surpreenderam. Como que ele era o próprio artista? Le
Goffic é que era um artista, com muito réclame, um verdadeiro astro, ao passo que
‘o senhor’ fora até há poucos dias um simples figurante... Como ia ser o mesmo?
Claro que não era. A discussão se fez interminável, até que por fim convieram em
conceder a Granados seiscentos dólares semanais” (Ibid., 1923, pp. 36-38).
150 | Miriam V. Gárate

tela é surreal, sua vida real é mítica”, a vida de Granados ilustra à


perfeição essa premissa. Ele não somente terá que desempenhar seu
papel perante a imprensa e em múltiplos eventos sociais, mas a que
fora, até então, sua vida privada, sua existência “real”, será engolida
e fulminada pelo mito.
Forçado a vestir cada dia por mais horas a pele de Le Goffic,
Granados se refugia no único espaço próprio que lhe resta: sua
relação com Hazel Van Buren, que desconhece a tramoia. Assim,
entre uma encenação e outra, o mexicano mitiga seus “anseios de
individualização” pensando que, ao menos para sua girl, ele não
precisa fantasiar-se (ora, ele não se fantasiara de início de latino
ardoroso?) e que inclusive a chave de sua felicidade talvez resida
em lhe revelar o segredo. Mas subitamente é assaltado por um
temor: “E se Hazel se apaixonasse mais por ‘seu’ Henry Le Goffic
que por seu próprio eu?” (Ibid., p. 40). Desnecessário dizer que o
mau pressentimento se concretiza de imediato: flapper sensível ao
imaginário hollywoodiano, Hazel se desinteressa pelo parceiro e
vira fã de Le Goffic. Um dia qualquer, cruza com seu astro favorito
no Sunset Boulevard, se aproxima, lhe endereça “um sorriso canalha
e insinuante” e, ao voltar à casa, escreve uma missiva sugerindo um
encontro. O único âmbito em que Granados acreditava ser alguém,
ser ‘ele mesmo’ para o outro, vê-se usurpado pelo ídolo, por um
fantasma ao qual ele empresta vida ao dublar. Sem perspectivas,
‘traído’, exilado de si a maior parte do tempo, Granados pensa em pôr
fim a sua vida e comunica a decisão a Ferrati, que busca dissuadi-lo
com seu habitual utilitarismo:

– Acalme-se, Federico. Você tem dinheiro, glória, em suma, tudo o


que é possível ambicionar. Você já não é mais Federico Granados e
sim Henri Le Goffic? Que baboseira é essa! [...] Dá na mesma uma
coisa ou outra, tolo. Afinal, ninguém sabe o que seremos o dia de
amanhã, no túmulo; que importa, então, ser outra coisa em vida?
(Ibid., p. 40).

– Matar-se por uma mulher? [...] Não, senhor! Devia expulsar a


pontapés a flapper e depois era necessário lutar contra si mesmo,
até conseguir que Le Goffic fosse inferior a Federico Granados.
Simples luta espiritual que terminaria, finalmente, com o knock-out
do intruso. Que ganhava com o suicídio? Desaparecer do mundo no
exato instante em que ia virar milionário (Ibid., p. 45).
Os “latinos” viajam a Hollywood | 151

Pelo viés da comédia, o texto encena a vacuidade do eu, a


ciranda das máscaras; através de Ferrati, apresenta seu corolário
cínico-pragmático.

O regresso

Demovido de sua ideia e após remeter os dividendos à


terrinha de origem (onde não falta a mãe doente, em conformidade
com mais um clichê), o protagonista opta pelo retorno:

Federico Granados deixava Los Angeles para trás [...] Apalpou


suas notas... e o simples contato com aqueles milhares de dólares
infundiram-lhe uma tranquila confiança no porvir. México, seu
México, era muito grande. Alguma coisa conseguiria fazer em sua
terrinha, sem necessidade de trocar de rosto ou de alma. E, pela
primeira vez, ao cabo de vários meses, Granados teve a sensação de
que Le Goffic morrera (Ibid., p. 49).

Ao partir a Los Angeles, quinhentos dólares no bolso e um


capital de ilusões; ao regressar ao México, alguns milhares de dólares
penosamente obtidos e nenhuma esperança em relação a Hollywood.
Reescrita da viagem prévia do repórter, a viagem fictícia de Federico
Granados altera pesos, medidas, muda o foco: as atribulações dos
pobres-diabos, dos figurantes e dublês devêm protagonistas.
Os personagens de Miss Dorothy Phillips e Una aventura de
amor acordam no derradeiro instante e transmudam o sonho feliz
em ficção escrita. Federico Granados ‘acorda’ do pesadelo em que
se transformou sua vida e volta à pátria. Nos contos de Quiroga e de
Boy, a recodificação da aventura como sonho introduz um coeficiente
‘realista’, mas mantém ao mesmo tempo relativamente intacto o
paraíso onírico; Noriega Hope desmantela a “terra de maravilhas”
ao torná-la experiência efetiva. O deslocamento – entendido como
concretização da viagem e como prevalência do regime diurno na
ficção – assinala uma inflexão disfórica no modo de representar o
mundo hollywoodiano e, simultaneamente, um aceno nacional-
regionalista. Uma década mais tarde, o cinema sonoro daria
testemunho dessa virada. O melodrama e, sobretudo, a comédia
ranchera se tornariam as principais manifestações da fase áurea do
cinema mexicano. Lindas moças camponesas, mariachis, canções,
152 | Miriam V. Gárate

fazendas de gado ou de henequén povoam esse universo fílmico, cuja


certidão de nascimento costuma ser associada a Allá en el rancho
grande (1935), de Fernando de Fuentes. Outros clichês surgiam em
substituição aos precedentes.77

Hollywood: novela da vida real

Em agosto de 1927, é o jornalista paulistano Olympio


Guilherme quem chega a Los Angeles, nutrindo expectativas
semelhantes às de Federico Granados. Embora Guilherme viesse
colaborando com alguns órgãos de imprensa e tenha passado a
escrever ulteriormente desde Hollywood para a revista Cinearte,78
sua viagem é resultado da premiação num concurso de beleza
promovido pela Fox Film, que, de acordo com Goulart (2012),
envolveu três países da América do sul – Chile, Argentina e Brasil – e
teve vários meses de duração.79 O processo que se delineava quando

77
Fernando de Fuentes (1894-1958) se inicia no cinema como assistente de
direção do primeiro filme sonoro mexicano baseado, como já se indicou, em um
melodrama de Federico Gamboa roteirizado por Carlos Noriega Hope: Santa (1931).
Rapidamente se torna diretor e realiza dois filmes clássicos, que focam os conflitos
do período revolucionário: El compadre Mendoza (1933) e ¡Vámonos con Pancho
Villa! (1935). Mas abandona esse universo e estreia no ano seguinte Allá en el rancho
grande (1936), considerado primeiro expoente acabado da comédia ranchera.
Ruralismo idílico, humor, personagens estereotipadas e folclorismo dão o tom de
uma fórmula que obteve grande sucesso no mercado nacional e internacional até
o fim dos anos 1940. A recusa do ‘mexicano’ cunhado pelo cinema estadunidense
cede lugar a figurações não menos artificiais e redutoras, embora mais ‘afáveis’ e,
frequentemente, passadistas.
78
Sobre Cinearte, Cf., entre outros, Steinberg (1991) e Campelo (2005).
79
No artigo de Goulart (2012, p. 23) já mencionado, a autora insere o concurso numa
estratégia mais vasta de expansão da Fox, à qual se refere nos seguintes termos: “O
biênio 1926-1927 foi determinante para a Fox Film. De acordo com Todd McCarthy
(1997), sob a administração do vice-presidente Winfield Sheehan, o estúdio de
William Fox caminhava neste período para níveis de produção sem precedente, num
esforço para se tornar uma potência dominante na indústria cinematográfica. Seu
projeto de expansão envolveu a aquisição de cadeias inteiras de salas de cinema de
primeira linha, os direitos do processo de sonorização de filmes comercializados
como Movietone2, o aperfeiçoamento de um efeito de tela de 70 mm (o Fox
Grandeur), o reforço do quadro de diretores (entre eles, nomes como o prestigiado
F. W. Murnau e um Howard Hawks em início de carreira), operações nos estúdios da
costa oeste em Los Angeles e Beverly Hills, além de um investimento em produções
Os “latinos” viajam a Hollywood | 153

o repórter mexicano publica suas notas jornalísticas se consolida e


ganha proporções continentais um quinquênio mais tarde. Filmes,
publicações em espanhol e em português que replicam a matriz
da fan magazine norte-americana mais importante, a Photoplay,
publicidade dos mais variados artigos veiculada nesses meios
impressos e, paulatinamente, no rádio, sorteios desses artigos entre
leitores e ouvintes, configuram uma rede da qual fazem parte os
concursos para seleção de beldades, aptas a inserir-se num contexto
de expansão do mercado conquistado pelos grandes estúdios e de
transição do cinema silente para o falado.
Esta última mudança, de cunho tecnológico, interessa por
acarretar transformações no sistema de produção e, em consequência,
na esfera laboral. De um lado, o advento do som direto representa
uma oportunidade para uma minoria de intérpretes latinos ou de
outras procedências, durante o curto período em que alguns estúdios
produzem várias versões do mesmo filme destinadas a comunidades
linguísticas específicas e protagonizadas por elencos delas oriundos.
De outro, o destino do contingente mais numeroso estará associado
a uma atividade ‘menos nobre’ e de escasso reconhecimento: a
dublagem, procedimento adotado quando, a partir de 1930, surge a
possibilidade de gravar o som em estúdio, de forma independente, e
de ajustá-lo à imagem. A permanência de Guilherme em Los Angeles,
entre 1927 e 1930, coincide com essa fase de transição, na qual o
cinema falado dá seus primeiros passos e o cinema silente, tendo
alcançado a plena maturidade, começa a refluir. Daí a renovada
expectativa de alguns latinos em relação a Hollywood e à chance que
hipoteticamente representam as fitas faladas; daí também a presença
de um motivo ausente nos textos considerados até o momento: o da
sincronização, variante do dublê no registro sonoro.
Ao mesmo tempo, vários dos tópicos recorrentes no corpus
examinado ressurgem mais uma vez: a corte de figurantes se amplia,
sendo constituída, de início, por Lucio Aranha – protagonista e

mais sofisticadas e épicos históricos. Ademais, no contexto dos planos de expansão


da Fox, houve uma investida na América do Sul, com a realização do Concurso de
Beleza Fotogênica Feminina e Varonil, que prometia selecionar um casal de atores
para integrar o casting do estúdio em Hollywood, no Chile, na Argentina e no Brasil.
Após várias etapas, os escolhidos foram Lisa Torá (pseudônimo de Horacio Corrêa
D’Avila) e Olympio Guilherme”. Sobre a política de latin stars no Brasil durante o
período, Cf. Goulart (2011).
154 | Miriam V. Gárate

alter ego do próprio Guilherme –, Pietro Vicentini – “napolitano do


Belenzinho e decano dos extras brasileiros” (Guilherme, 1932, p. 17)
–, o argentino Nicanor Gutiérrez e o franco-egípcio Rubén Irarah.
O ambiente de instabilidade laboral e de precariedade material se
acentua, torna-se fome disfarçada mas frequente, penúria para pagar
a cada mês o aluguel. O fenômeno do mimetismo e sua manifestação
sob a forma do dublê proliferam ad nauseam: o cachorro da
república na qual moram os jovens aspirantes a atores é dublê de
Rin-Tin-Tin – e seus latidos serão dublados/sincronizados por
Vicentini e Lucio Aranha; Vera, a coprotagonista feminina do enredo,
é dublê de Greta Garbo; Dr. Ivan Socolov é “dublê de Jesus”; Chaplin,
Talmadge possuem seus dublês. Assim, cabe afirmar que vários dos
motivos disfóricos presentes em Che Ferrati, inventor se expandem e
intensificam nesta “novela da vida real”, sobre cujo estatuto convém
deter-se um instante.

Fade in: à maneira de introdução

Se em “Miss Dorothy Phillips, mi esposa” Horacio Quiroga


lançava mão do recurso gráfico da linha corrida de pontos como
sucedâneo do corte/montagem invisível, Guilherme importa no
prefácio de Hollywood: novela da vida real um vocabulário que
se torna cada vez mais frequente na produção escrita do período:
de um lado, opta pela expressão fade in para intitular as palavras
preliminares, propondo dessa forma que se enxergue esse discurso
de abertura à semelhança das imagens surgidas gradualmente até
alcançar sua luminosidade e definição normais. De outro, a primeira
frase do fade in sugere uma correspondência entre o ingresso do
leitor no texto e do espectador na sala:

Este livro é um retrato. Talvez haja quem duvide. É por isso mesmo,
esperando discordâncias de opiniões, que, nesta salinha de espera,
onde o leitor tira o capote, pendura o chapéu e o guarda-chuva, eu
venho informá-lo de que este livro é um retrato (Ibid., p. 7).

À época, o procedimento já tendia a constituir um lugar-


comum e havia sido empregado, entre outros, pelo chileno Vicente
Huidobro, em seu Cagliostro, novela-film (1921/1924), cujo prólogo
se iniciava desta forma: “Suponha o leitor que não comprou este livro
Os “latinos” viajam a Hollywood | 155

em uma livraria, senão que comprou um bilhete de cinema. Assim,


pois, leitor, você não está saindo da livraria, mas entrando na sala”
(Huidobro, 1997, s/n).80
Entretanto, embora o texto de Guilherme se anuncie sob o
signo da plasticidade e da analogia livro/sessão de cinema, o peso
do prefácio recai sobretudo na autenticidade da imagem oferecida
ao leitor – trata-se de um “retrato sem retoques nem manipulações”
(Ibid., p. 7). Essa ênfase na veracidade, por contraposição ao artifício
(naturalizado) imperante na produção de estúdios, encontra um
primeiro ponto de ancoragem na evocação de uma lembrança pessoal.
O fade in/introdução ganha um viés autobiográfico: maravilhado
durante a infância pela fotografia, o autor teria passado horas a fio
olhando os retratistas do Jardim da Luz e ouvindo as reclamações
dos clientes que discordavam do resultado, precisamente em razão
da falta de estilização, da “sinceridade” e da “fidelidade dura” da
máquina (Ibid., p. 7). Correlativamente:

Para o leitor acostumado a ver Hollywood pintada pelas tintas


miraculosas de todos os artistas, uma Hollywood cheia de viço e sol
[...] este retrato parecerá uma caricatura grotesca [...] É que o leitor
ainda não viu uma fotografia desta madama tirada sem os filtros
suaves que lhe atenuam as rugas, sem as emulsões pancromáticas
que lhe adoçam as sombras [...]

O leitor habituou-se a ver uma Hollywood de revista cinematográfica,


uma Hollywood descuidada e boa, às vezes leviana [...] eternamente
risonha, que embolsa salários de 10.000 dólares por semana, que
se divorcia duas vezes por ano e impõe ao mundo inteiro, com a
mesma facilidade, tanto os costumes por que se devem pautar
como os figurinos da próxima estação.

É a Hollywood das estrelas, a Hollywood endomingada, espartilhada


e perfumada [...] sinônimo da felicidade em apoteose furta-cor de
festa de arraial (Ibid., 1932, pp. 9-10).

Contra essa falsificação, que lembra a fictícia revista editada


por Grant ou as notas jornalísticas de Noriega Hope para El Universal
Ilustrado, propõe-se aqui um retrato fidedigno, sem maquiagem nem

Sobre a correspondência livro/sessão de cinema nesse texto do escritor chileno e


80

em Pathé-Baby (1926), do brasileiro Alcântara Machado, Cf. Gárate (2014).


156 | Miriam V. Gárate

filtros, que afirma alinhavar “fatos autênticos”:

Essa Hollywood ditosa não a conheço eu, mísero fotógrafo [...] a


Hollywood que posou diante da minha caixa quadrada era uma
matrona [...] trajada sem gosto, abraçada a um pão do tamanho de
uma bola de futebol.

Esta senhora não morava em Beverly Hills nem ocupava o cabeçalho


dos jornais: mourejava no cinema como numa fábrica [...]

Este livro é um retrato porque os fatos aqui relatados são autênticos


– apenas unidos, aqui e acolá, pela imperícia de meu engenho (Ibid,.
pp. 10-12).

De fato, não era a primeira vez que o “mísero fotógrafo”


se debruçava sobre sua caixa quadrada e propunha um misto de
testemunho pessoal e de registro histórico. Três anos antes de dar a
conhecer esse retrato escrito, inteiramente desiludido, com escassos
recursos financeiros e técnicos, Guilherme produziu, dirigiu e
protagonizou uma fita semiautobiográfica sobre as agruras de um
ator latino-americano em Hollywood, na qual teria inserido imagens
diretas captadas nas ruas: Fome (1929).
De acordo com uma reportagem feita a Olympio Guilherme e
publicada na revista Cinearte, tendo em vista uma iminente estreia
que, presumivelmente, não chegaria a acontecer (“Fome vem ai”; 19
de junho de 1929), o roteiro de Fome seria uma adaptação do romance
Scandall, escrito pelo próprio Guilherme para a revista Script, de
Nova York, em 1928. A entrevista destaca a singularidade do filme
com respeito ao cinema industrial norte-americano, singularidade
associada (mais uma vez) à adoção de uma estética “realista”:

- Em que difere Fome de todas as películas americanas?

- Fome é a primeira película produzida, até hoje, baseada inteiramente


no estilo realista. Todas as cenas foram cinematografadas com as
câmaras escondidas. Em outras palavras: Fome foi cinematografada
às escondidas do público que nela representa (Cinearte, 19 de junho
de 1929, p.6).

Essa característica é reforçada quando o entrevistador,


depois de aludir a um possível vínculo entre Fome e Potenkim
(1925), bem como de indagar os motivos pelos quais se trata de uma
Os “latinos” viajam a Hollywood | 157

produção independente (“Porque ninguém teria tido a coragem…”),


coloca a pergunta pela escolha do diretor de fotografia:

- Por quê foi dirigida por George W. Richter, um alemão?

- Mr. G.W. Richter, da UFA, é o único homem cuja extraordinária


paciência e conhecimentos técnicos poderiam produzir Fome. Mr.
Richter, por uma coincidência estranha, confessou à reportagem
que o entrevistou que na vida real já sofreu fome e alguns dos
vexames de Fome - tal como Knut Hasmun, autor do famoso livro
que venceu o prêmio Nobel… (Ibid., p. 32).

Na ciranda sem fim das imitações, os retratos produzidos por


Guilherme alegam privilegiar a arte que imita a vida. Tudo indica que
a novela da “vida real” publicada em 1932 deva ser lida em paralelo
com esse filme prévio e “inteiramente baseado no estilo realista”, a
fim de estabelecer correlações.81

81
O filme de Olympio Guilherme é dado como perdido, embora a escassa bibliografia
existente sobre o ator, realizador, cronista e escritor faça menção à fita (Borge, 2007;
Oliveira, 2011). O catálogo da Cinemateca Brasileira registra um documento fílmico
e a descrição de outro a partir de fonte escrita, envolvendo Guilherme em ambos
os casos como ator: “1) Curta-metragem silencioso. Gênero: Documentário. Título:
Chegada a New York de Lia Torá e Olympio Guilherme. Ano: 1927; produção: Brasil
Fox. Sinopse: Cenas dos seus (de Guilherme e Lia Torá) tests no Brasil, outras tiradas
no Studio e jardim de Paulo Benedetti, alguns enxertos de filmagens em que eles não
estão, trechos da ‘formidável’ recepção em New York e cenas naturais: de trens e da
Quinta Avenida (Cinearte, 07.03.1929); 2) Filme de ficção. Título original: Making
the grade. Ano: 1928; cidade: Hollywood; país: U.S.; produção: Fox; direção: Alfred
e Green. Os atores brasileiros Lia Torá e Olympio Guilherme constam dos créditos
do elenco”. A recente publicação da coluna de crítica cinematográfica de O Estado
de São Paulo, a cargo do escritor Guilherme de Almeida entre 1926 e 1942, ratifica
a suspeita de que Fome não chegaria a ser estrada no Brasil. Seis meses depois da
reportagem realizada por Cinearte, Almeida reproduz em sua coluna passagens
de uma nota elogiosa do filme de Guilherme, redigida pelo cubano Alfredo Ruíz,
para La Opinión, de Havana, em 5 de dezembro de 1929. A coluna de Almeida se
encerra anunciando o provável retorno de Guilherme a Brasil e seus planes futuros,
que tampouco se concretizariam: “Entrevistado por um jornalista de Chicago,
Olympio Guilherme revelou intenções de regressar à sua pátria e produzir filmes
caracteristicamente brasileiros. Está presentemente estudando com detalhes
as possibilidades da obra de Euclides da Cunha, Os sertões, e acredita que sua
adaptação cinematográfica constituirá um monumento ao sertanejo do Norte do
Brasil” (Almeida, [1929] 2016, p. 280).
158 | Miriam V. Gárate

O Largo da Matriz de Cinelândia

Como se assinalou, vários motivos presentes na narrativa de


Noriega Hope aparecem também no texto de Guilherme, mas se diria
que se no primeiro caso esses motivos se estruturam à medida que
a trama evolui, configurando os elementos ao mesmo tempo ‘novos’
e os fatores dinâmicos do enredo, no segundo caso eles se perfilam
como traços definidores do status quo, como horizonte generalizado
e ponto de arranque da intriga. Isso traduziria o desenvolvimento do
sistema de produção de estúdios ao qual ambos os textos se reportam,
fenômeno que se encontra em um estado avançado de evolução na
passagem de 1920 para 1930 – mas que não será imune aos efeitos
do crash financeiro de 1929, apesar da relativa prosperidade do
setor. Daí o início in media res do romance brasileiro, que começa
apresentando uma cena tornada rotineira na vida do protagonista
Lucio Aranha e de muitos extras: a espera.

– Allô! A Sra quer fazer esta ligação ou não? Estou esperando há


mais de meia hora! Estava falando com a Fox... Lucio Aranha havia
recebido um chamado direto do Studio. Subitamente a comunicação
fora cortada.

– Na garagem da esquina há um telefone! Vá correndo!

– Mas é preciso pagar!

– Não faz mal. Também, que diabo! É um chamado direto (Ibid., p.


13).

Como se afirma pouco depois, em Hollywood “às seis horas


recrudesce o serviço dos telefones do Central Casting” (Ibid., p. 15),
pois os estúdios fecham o expediente e “quinze mil “extras” ficam de
receptor em punho” ouvindo “centenas de vozinhas femininas”, que
“cortam como lancetas” a súplica de um dia de trabalho, dizendo:
“nothing ... nothing ... nothing” (Ibid., p. 15). Também “às seis horas,
sendo possível, Hollywood senta-se à mesa e come” (Ibid. p. 15). Não
o “jantar de restaurante”, da ordem da exceção, mas “a jantinha feita
em casa, coisa requentada, às vezes fria, às vezes mesmo insuficiente”
(Ibid., p. 15). É esse clima de privações e penúrias que o leitor é
convidado a olhar de perto; são as peripécias que visam driblar esse
destino, via de regra imodificável, que ele acompanhará por mais
Os “latinos” viajam a Hollywood | 159

de trezentas páginas. Na representação desse universo, destaca-se


a presença de um motivo que molda a realidade hollywoodiana: o
burburinho, a fofoca, o rumor que se torna de imediato ‘notícia’. Essa
Hollywood maledicente e, ao mesmo tempo, provinciana também
entra em atividade intensa às seis:

Às seis horas da tarde, Hollywood transfigura-se. Perde aquela


aparência enganadora de cidade, de centro importante, e torna
ao que realmente é, sem os efeitos encantadores da luz diurna:
uma vila do interior, engalanada para a kermesse da Matriz [...] O
(Sunset) Boulevard é o Largo da Matriz de Cinelandia. O resto da
cidade está às escuras, mal iluminado, triste [...] É a hora predileta
e favorável do escândalo, dos comentários de esquina, do cochicho
segredado com as mãos espalmadas sobre a boca. Repórteres
vindos dos quatro cantos da terra ficam de atalaia [...] quando
chega a Highlan, sete quarteirões distante do seu ponto de origem,
é escândalo grosso, escândalo de primeira página. No dia seguinte,
como dinamite, explode ruidosamente pelo mundo inteiro, na
consagração da letra de forma (Ibid., pp. 14-15).

A letra de forma havia conduzido Noriega Hope a Los Angeles


em 1919, quando a malha publicitária indissociável da lógica de
produção de estúdios acelerava seu ritmo de expansão; para a letra
de forma, Federico Granados era obrigado a desempenhar seu papel
de Le Goffic fora da tela. Uma década mais tarde, a dinâmica de um
modelo inconcebível sem a existência desse produto secundário
(apesar de principalíssimo), que constitui a vida privada (embora
pública e publicitária) de celebridades, convoca repórteres dos
quatro cantos do planeta. Lucio Aranha é um deles ao chegar a
Hollywood, dois anos antes do telefonema interrompido que abre
o romance apresentando-o, agora, como aspirante a ator; Olympio
Guilherme foi repórter de forma intermitente durante seus três anos
de permanência na capital do cinema.82

82
Na metade do primeiro capítulo, o narrador faz um retrospecto biográfico de Lucio
Aranha, que parece ter pontos de contato com a vida do próprio autor: filho único
do Major Barbosa Aranha e de Dona Etelvina, Lucio cresce rodeado de cuidados
excessivos na fazenda familiar. Ao morrer o pai, é internado no colégio São Luiz,
de São Paulo, onde recebe uma educação “antiquada”. Aos vinte anos, ingressa na
Faculdade de Direito e trava relação com um “tipo boêmio”: “as leis e disciplinas
aprendidas em seis anos [...] quebrou-as em uma semana” (Ibid,, p. 25). Tendo
160 | Miriam V. Gárate

Essa trama paralela, arquitetada em letra de forma,


comporta uma dupla vida ou representação generalizadas, autêntico
centro de gravidade do livro e motor de numerosas peripécias. Seja
porque se aspira a sair da massa anônima de figurantes (para o qual
a circulação nessa rua de papel revela ser decisiva); seja porque se
deve alimentar a fama preservando determinada aparência de vida
(discreta e séria ou devassa, dependerá do tipo assumido); aqueles
que existem ou são candidatos a fazê-lo precisam existir tanto no
celuloide quanto na imprensa. Duas publicações fictícias trazem
para dentro do relato o universo dos pasquins que proliferam na
Cinelândia: A Gralha, cuja coluna intitulada “Bem-te-vi” é conduzida
pela intrigante Katy; O Monóculo e seu mordaz redator Orestes, à
frente da seção “Olho-de-Vidro”:

A Gralha era o jornal dos “extras”; circulava entre a massa das


“atmosferas” do cinema; O Monóculo, mais importante, com
tiragem orçando pelos cinco mil e pico, era lido pelos tipos, classe
mais elevada, já estabelecida, com um certo ar de importância.
A linguagem era a mesma; os escândalos eram forjados com a
mesma bisbilhotice [...] A única diferença entre os dois pasquins
era a seguinte: A Gralha custava apenas cinco centavos; o Monóculo
vendia-se a sete (Ibid., p. 141).

A sorte de Lucio Aranha se dirime entre uma fofoca publicada


n’A Gralha e uma entrevista concedida a’O Monóculo – entre uma e
outra, o extra galga à condição de tipo e se torna um gigolô.

mudado seu estilo de vida, Lucio começa a colaborar na coluna social do Jornal da
Noite (o texto faz menção à amizade com jornalistas como Brito Broca), depois na
seção cinematográfica do mesmo jornal e de algumas revistas, “interessando-se pela
vida das estrelas, ao ponto de estudar inglês para poder compreender os escândalos
do Motion Pictures Magazine, Movieland e outras publicações de Cinelândia” (Ibid.,
p. 26). Rapidamente, se torna um cronista de cinema conhecido e recebe a proposta
de ir a Hollywood como representante da revista Cinefilme, do Rio, variante fictícia
de Cinearte, para a qual Guilherme colaborou. Ao fascínio inicial com a cidade e ao
trabalho regular como cronista e repórter, se segue a crise deflagrada pela falência
da Cinefilme apenas um mês e meio após chegar. É nesse contexto que o protagonista
se inscreve na Central Casting e passa a morar na “república” de brasileiros, onde
leva dois anos ao se iniciar a história. Embora as relações de Aranha com a mídia
impressa sejam representadas sob o signo do conflito e se denunciem as falácias
que esta veicula, seus vínculos com o meio serão estreitos e decididamente
contraditórios ao longo do romance.
Os “latinos” viajam a Hollywood | 161

Sistematização de uma linha de montagem

O primeiro capítulo do romance gira em torno à apresentação


do protagonista e de algumas personagens secundárias, traçando
sobre elas breves sinopses biográficas, em alternância com duas
comunicações telefônicas que ocorrem no presente da história.
Esses aspectos se complementam e, como se indicou, retratam um
panorama inicial de desânimo, tornado rotineiro: Vicentini, amigo
de Lucio e fundador da república na qual ambos residem, leva nove
anos na cidade. Há tempo que trabalha como empregado em uma
barbearia, segredo conhecido somente pelos íntimos, já que “para o
resto de Hollywood ele passava sendo como um rapaz de recursos”
(Ibid., p. 17). Ruben Irara mora faz um ano na cidade e após tentar,
sem sucesso, ser roteirista, dedica-se a sincronizar filmes franceses.
Lucio Aranha perdeu o emprego que o levara até Los Angeles em
virtude da falência da revista Cinefilme e tenta, sem sorte, há dois
anos, a carreira de ator, enquanto sincroniza/dubla comédias caninas
por quinze dólares ao dia.
As duas ligações intercaladas a esses painéis biográficos
parecem instaurar uma perspectiva de mudança: James Rayan,
assistente de casting da Fox, convoca o protagonista para fazer
uma prova; o cachorro da república é contratado para ser um
“segundo Rin-Tin-Tin”, garantindo, assim, “o futuro” do grupo (Ibid.,
p. 18). Ocorre que o “futuro” são as refeições da semana e que a
tão ansiada prova de Lucio Aranha resulta ser um fiasco a mais: de
terno alugado, o brasileiro se dirige ao estúdio; lá permanece horas
a fio para acabar fazendo um teste fotográfico trajado de palhaço.
A longa espera serve para introduzir no enredo a coprotagonista
feminina, uma nova encarnação do motivo do dublê e dos quid pro
quo hollywoodianos sobre ‘o latino-americano’.83 Num primeiro

83
As primeiras palavras trocadas entre os dois personagens são estas: “– O seu
sotaque é estrangeiro...
– Do Brasil... A grande atriz sueca franziu a testa numa expressão
indefinível; – Brasil...; – Na América do Sul – acrescentou Lucio com uma pontinha
de despeito; –Ah! Sim, Buenos Aires! Muito romântico, muito romântico. Então o
senhor trabalha nos filmes espanhóis? Lucio não sabia espanhol. Explicou que no
Brasil não se fala espanhol, mas português, uma língua muito bonita, muito doce”
(Ibid., pp. 39-40).
O motivo se repete mais adiante, ao se relatar a entrevista concedida por
162 | Miriam V. Gárate

momento, Lucio acredita estar diante de Greta Garbo. Dias depois, ele
reencontra Vera, apresentada agora com todas as letras como dublê.
O diálogo entre ambos abre espaço a uma série de considerações
sobre as incumbências desse substituto do original:

Quando Greta Garbo trabalhava, o studio empregava a sua dublê


para os longs-shots e os preparativos dos efeitos de luz. Então,
trajando vestidos idênticos, Vera ficava no lugar em que a estrela
ia representar, enquanto os eletricistas e cameramen compunham
o quadro da cena. A estrela não precisava fatigar-se. Quando tudo
estivesse pronto, então Greta Garbo, em pessoa, ocupava o mesmo
sítio onde momentos antes, Vera posara (Ibid., p. 53).

Assim, o evento deflagrado por um acidente fortuito na


narrativa de Noriega Hope torna-se agora um recurso sistemático,
que visa reduzir tanto o tempo quanto os custos de fabricação. A
inserção do(s) dublê(s) na linha de produção se rotiniza e se expande.
Em consonância com essa prática de otimização, emerge no livro de
Guilherme outro motivo já comentado. Sua retomada, uma vez mais,
dá-se segundo a lógica da intensificação e do rebaixamento. Sem
vestígios do encantamento manifestado pelo repórter mexicano,
o set, aqui, assemelha-se a um “hangar”. O imaginário da terra de
maravilhas cede lugar ao pandemônio fabril:

A desordem extraordinária que reina dentro desses barracões é


indescritível. Por toda parte só se vêem refletores e cabos elétricos
[...] O calor das luzes sufoca e irrita; ouve-se um bater contínuo de
martelos automáticos e o zunir monótono dos aerógrafos; o olfato
se corrompe com o cheiro nauseabundo dos secantes e das tintas;
a vista se anuvia com o pó que se levanta das ruínas dos sets já
utilizados (Ibid., pp. 60-61).

O mapeamento desse modo de produção em série completa-


se, muito mais à frente, com considerações sobre a função dos tipos:

Chaplin a um jornalista brasileiro chamado Motta: “– Discutindo a importância do


mercado latino, referi-me ao Brasil. E que me responde o homenzinho (Chaplin),
naturalmente pensando que me fazia um grande favor?: – Oh sim, o Brasil! Pode o
senhor dizer aos seus leitores que um dia eu pretendo produzir um filme em Buenos
Aires, uma história de toureiros, com señoritas de peineta bailando la jota, enfim,
coisa regional, bem brasileira” (Ibid., p. 229).
Os “latinos” viajam a Hollywood | 163

Os diretores não querem atores, querem tipos [...] A formação de


tipos foi o primeiro passo para a estandarização do cinema [...] O tipo
não é um simples extra. No plano cinemático, o extra é a “atmosfera”
e está, quase sempre, out of focus. O tipo é a figura intermediária [...]
Economicamente, a maior vantagem do tipo é a de não precisar de
muitos metros de filme que lhe definam a caracterização – porque
o público já o conhece de sobra (Ibid., pp. 121-122).

A intriga dessa novela da vida hollywoodiana envereda nessa


direção, rumo à fabricação de um tipo para o extra brasileiro.

***

Pouco depois do primeiro encontro entre Lucio e Vera, a


rodagem de uma sequência com mil e duzentos extras volta a reuni-
los. A aproximação crescente entre ambos ao longo da filmagem
conduz o par a Malibu, uma das praias que, ao cair da noite, ficam
lotadas da “América que ama dentro do automóvel” (Ibid., p. 85).
Mas o inocente passeio é flagrado e difamado na coluna “Bem-te-
vi”, suscitando um pequeno escândalo. Para apaziguar o brasileiro,
a responsável da gazeta aciona alguns contatos e, a partir de então,
ele se torna um extra assíduo. Embora a curto prazo o fantasma
da fome desapareça, a situação não deixa de ser insatisfatória.
Auxiliado pela colunista, pelos amigos e por Vera, Lucio tenta
galgar um degrau e transformar-se em um tipo – segundo sua
própria definição, o tipo “secretário de embaixada” (Ibid., p. 119);
de acordo com uma versão menos eufemística, o tipo gigolô.84
Ora, se o processo apontado em relação à trajetória de Federico
Granados implicava a progressiva invasão do papel assumido
inicialmente na tela, no âmbito da vida, aqui, a interpretação do
papel que se aspira representar no cinema principia pela adoção
da máscara, ao atravessar a porta da república. Semelhante no que
tange à circulação e à contaminação entre um domínio e o outro,

84
“– O que Lucio quer dizer com Secretário de embaixada é isto: um tipo moço,
elegante, insinuante, com um bigodinho insolente, muito cortez e flexível, que beija
a mão a todas as mulheres, batendo os saltos dos sapatos, usa pulseira de grilhões
de ouro e a complicada indumentária de um... - ... Gigolô – rematou Xexé” (Ibid., p.
120).
164 | Miriam V. Gárate

o fenômeno se apresenta agora invertendo a lógica causal e a


sequência temporal:

Lucio gastou todas as economias que havia reunido nos poucos


dias de trabalho na aquisição do imprescindível guarda-roupa de
gigolô [...] Proibido de sair à “paisana”, Lucio começou a entrar na
pele do seu tipo. Custava-lhe enfrentar a multidão do Boulevard.
Nas esquinas de Vine Street e Highlind, percebia os comentários
maliciosos dos que o conheceram na miséria e o viam, agora, da
noite para o dia, estabelecer-se como tipo.

Não podendo trabalhar imediatamente no cinema, pois seu tipo não


era suficientemente conhecido, Bob e Katy, com muito empenho,
esforçavam-se para que ele tomasse parte no grupo de entretainers
de um cabarezinho de segunda ordem, lá para as bandas de Beverly-
Hills, onde ele pudesse dançar dois ou três tangos por noite (Ibid.,
1932, p. 123).

As exigências de uma narrativa longa como a de Guilherme,


que se estende por mais de trezentas páginas, favorecem a
multiplicação de incidentes ligados à fabricação do gigolô, bem como
à expansão do regime de dupla vida, a quase todos os envolvidos no
enredo: a atuação no cabaré conduz Lucio a prolongar seu papel para
além do palco em que se apresenta cada noite e substituir o suposto
amante de uma estrela em declínio: Anne Porter. Esta, por sua vez,
encena em público o papel da libertina que troca regularmente de
parceiros, via de regra, mais jovens, na tentativa de adiar o iminente
colapso de sua carreira (mas leva, intramuros, uma vida recolhida,
solitária, exemplar). Dulce, a parceira de dança de Lucio Aranha no
cabaré, depois de ter ensaiado sem sucesso ao chegar a Hollywood
o tipo da “jovem virgem”, interpreta agora o tipo da vamp, em uma
aposta paralela à do protagonista masculino. Transformada em uma
representação contínua, de fronteiras fluidas, sem início nem fim, a
vida como espetáculo (a espetacularização da vida) é a realidade última
de Hollywood. Se a letra de forma é um dos principais suportes que lhe
confere materialidade, outra prática, em franca expansão no período,
também revela ser fundamental: o turismo. No início do século XX,
João do Rio referia-se às salas de cinema como “catedrais profanas”; na
passagem dos anos 1920 para os anos 1930, os mais variados cantos
da fábrica de sonhos tornam-se objeto de peregrinação em massa.
Os “latinos” viajam a Hollywood | 165

Duas cenas do livro mostram esse estado de coisas. A primeira


dá-se precisamente quando o Lucio/gigolô estreia no cabaré e o
narrador se demora em uma minuciosa descrição do ambiente e das
características da programação:

Antes da meia-noite, durante o verão, o Pum-Pum apresentava


“espetáculos familiares”, dedicados exclusivamente aos turistas
de Cinelândia, rebanhos vindos de todos os pontos dos Estados
Unidos, escoltados por cicerones com voz de disco gramofônico.
Esses guias inventavam informações em voz baixa:

– Aquela moça alta, de olhos grandes, sentada à direita do diretor


Clarence Brown, é Joan Crawford... O seu vestido, importação
direta de Paris, foi desenhado por Doré e, só na Alfândega, pagou
duzentos e quarenta e cinco dólares de direitos... O brilhante do
dedo indicador da mão esquerda foi um presente de Clark Gable e
custou a bagatela de vinte e cinco mil dólares...

Às vezes a moça alta de olhos grandes era dublê de Mary Smith


(que comia de graça no cabaré com a condição de aparecer todas
as noites), o rapaz a seu lado, um modesto pagador do Banco da
Itália, o vestidinho uma criação dos armazéns da May Company e o
famoso brilhante, apenas um pedaço de cristal de rocha (Ibid, pp.
126-127).

A segunda cena irrompe em pleno interlúdio sentimental.


Lucio e Vera acabam de assistir à missa de sétimo dia do ex-marido da
dublê, a quem esta continuou vinculada por laços de afeto e gratidão
apesar do divórcio, ocorrido há muito tempo. Ambos caminham
pelas ruelas do cemitério hollywoodiano quando, repentinamente, a
multidão toma o local por assalto:

Nisto a quietude do jardim deserto foi quebrada pelo alarido de


uma centena de turistas que, guiados pelo indefectível cicerone de
chapéu de lona, invadiram numa algazarra de colegiais estouvados
o pequeno gramado à volta da estátua de Valentino [...] Uma
verdadeira bateria de kodaks fotografou o monumento em todos os
ângulos concebíveis (Ibid., p. 221).

A referência ao latin lover de maior popularidade entre as


fileiras femininas não é casual. Rodolfo Valentino iniciara sua carreira
166 | Miriam V. Gárate

precisamente como dançarino de tangos e saíra do anonimato graças


à célebre sequência de The four hoursemen of the Apocalypse (Os
quatro cavaleiros do Apocalipse, 1921); sua vida pessoal foi matéria
de fofocas de todo teor; seu funeral, em 1926, tornou-se objeto de
uma megaoperação publicitária que envolveu as costas Leste e Oeste
dos Estados Unidos, com direito a crises histéricas de sua suposta
amante, a star Pola Negri, e de uma multidão de fãs. Trata-se de um
protótipo (na acepção industrial do termo) vastamente replicado,
como o demonstra a água-forte de Arlt; trata-se de um ícone que
cristaliza a mitologia hollywoodiana.
Outra faceta apresentada no livro vincula-se à
estandardização imposta pelos grandes estúdios à estrutura dos
roteiros, ferrenhamente ditada pelo interesse econômico e pelo
puritanismo reinante (cuja máxima expressão, o código Hays, data
de 1930, embora sua aplicação rígida só se tenha dado a partir de
1934). Mais uma vez, a trajetória do protagonista serve para traçar o
retrato dessa lógica de produção. Após atuar por um breve período
como gigolô de Anne Carter, Lucio tenta sorte como roteirista; não
obstante sua falta de experiência no métier, os mexericos sobre o
romance com a atriz abrem-lhe as portas de um estúdio, onde entra
alertado de antemão por seu mentor acerca da tendência que está na
moda: “Hollywood atravessa no momento por um ciclo de bandidos”
(Ibid., p. 245). Mas a cotação do gênero cai por terra num piscar
de olhos em virtude de um telegrama vindo da Broadway. Em alta,
agora, outra vez, a trama de “traição e adultério”. Se de saída a(s)
fórmula(s) favorita(s) carrega(m) as marca(s) do lugar-comum,
as injunções prévias à elaboração do roteiro propriamente dito
transformam-na ainda mais em um produto pré-fabricado: o peso
hegemônico da publicidade obriga a escolha antecipada de títulos,
invertendo a ordem do processo criativo;85 as estatísticas decidem

85
“Arthur Kelly (produtor): – Como o Sr. sabe, o nosso studio, como todos os
demais, faz em Janeiro publicidade dos filmes que serão produzidos durante o ano.
Entretanto, nem sempre temos à mão histórias apropriadas. Para que a propaganda
da futura distribuição nada sofra com esse inconveniente (reduzindo os contratos
dos exibidores), somos obrigados a anunciar nomes de filmes que ainda estão
por escrever e por contratar o respectivo elenco. Naturalmente escolhemos bons
títulos, nomes bem sonantes, de bilheteria: ‘Alma de mulher’, ‘O pecado de amar’,
‘Leito nupcial’, ‘Fruto proibido’, etc. etc. Mais tarde, então, de acordo com o título e
o elenco anunciado, escrevemos as histórias, as histórias cujos nomes já o mundo
inteiro conhece pela nossa valente publicidade” (Ibid., pp. 247-248).
Os “latinos” viajam a Hollywood | 167

quais são os protagonistas de maior apelo, impondo-os de antemão;86


a censura molda e formata sequências inteiras muito antes de serem
rodadas.87 O resultado desse conjunto de intervenções é um roteiro
que não parece em nada com a proposta inicial de Aranha e que
resulta idêntico a muitos outros já existentes: “aos poucos a versão
de Os três amantes sugerida por Lucio foi mudando de aspecto [...] e
tão radicais foram as alterações que, ao anoitecer, ele não sabia do
que se tratava” (Ibid. p. 257). Previsível, melodramático, edificante, o
script definitivo de Fatal dilema é uma réplica de numerosos filmes já
rodados no passado e, com ligeiras variantes, ainda hoje.88

86
“Lucio começou a história [...]– Trata-se de um jovem advogado que... – Advogado?
Interrompeu Kelly. E por que um advogado? – Advogado ou médico, não tem
importância! Podia ser um engenheiro! – Pois tem muita importância, meu caro
senhor! De acordo com as últimas estatísticas, há nos Estados Unidos cerca de
148.000 médicos, 124.575 advogados e somente 123.343 engenheiros! Nós
precisamos interessar à maioria! O seu galã precisa ser um médico” (Ibid., p. 252).
87
“(Lucio) – nessa noite, o amante de Constance, Ivan Lebedeff, entra sorrateiramente
em casa dela e a encontra em flagrante nos braços de outro amante, Cornelio
Skeef! [...] – O Sr. diz – “encontra nos braços”: mas onde estavam eles? No sofá, no
caramanchão, na cama? Como o Sr. sabe, há uma diferença colossal! – Estavam na
cama, na casa dela – informou Lucio decididamente. – Bem, neste caso a cama não
pode aparecer na tela. É fácil: medium shot do amante N. 1; close up da noiva; meio
corpo do amante N. 2; corpo inteiro do amante N. 1. Close up da noiva – cut – reação
dos rivais” (Ibid., p. 253).
88
Transcrevo o final do capítulo XI, no qual se lê a versão definitiva do roteiro: “Foi
Kelly quem leu com voz fadigada o resultado da conferência memorável: – ‘Um
médico, já velhote (Lebedeff caracterizado) tem uma noiva (a Bellet), que se casa
porque assim o querem seus pais. Um antigo namorado da rapariga (Conrad Nagel),
que vivia numa vila do interior, vem à cidade e o velho amor renasce mais romântico
do que nunca. Entretanto, o rapazote, sem recursos, não se atreve a pedir a mão da
moça, que é rica e pertence à alta roda. Ela, porém, está disposta a tudo: ‘o teu amor
e uma cabana!’ Ele, então, começa a estudar medicina, a progredir, a lutar como um
forte. E ela, como um Jacob bíblico, esperando firme, inabalável no propósito de se
casar com o seu príncipe encantado. Vai senão quando, o médico, o velho, que na
Escola de Medicina é lente do rapaz, marca a data do casamento. Isto, assim, de
improviso, quase mata a desgraçada de dor! Então, abandonando família e fortuna,
ela corre à casa do estudante pobre e diz: ‘Fujamos, meu amor! Mas fugir como?
Para onde? E depois? Fora chove torrencialmente... E os dois amantes já estão para
tomar um auto e desaparecer quando, subitamente, alguém bate à porta. Qual não é
a surpresa de ambos ao verem entrar o velho médico nos braços de dois ‘chauffeurs’,
com a cabeça partida num acidente de automóvel. Fatal dilema! Cumpridor de
seus deveres o jovem estudante ordena o imediato transporte do ferido para o
hospital mais próximo e sem perda de tempo opera o rival, salvando-o de morte
168 | Miriam V. Gárate

Beleza fotogênica de um concurso da Fox, repórter da falida


revista Cinefilme, extra, tipo/gigolô no cabaré e em várias exibições
públicas junto a uma star em declínio, roteirista por um dia e,
finalmente, funcionário do Departamento de Publicidade da RMO
ao chegar o outono. O episódio encerra a trajetória hollywoodiana
de Lucio Aranha e, por meio dele, vem completar o retrato das
principais engrenagens dessa fábrica de sonhos. A gestão dos sets
(o espaço-tempo das rodagens), a produção de dublês e de tipos, os
critérios que norteiam a elaboração de roteiros foram apresentados
pelo narrador sob o signo da mercantilização. Previsivelmente, a
manifestação exacerbada desse sistema no qual tudo devém produto
vendável e se submete à lei do máximo lucro possível dá-se no
âmbito publicitário – daí a equiparação por parte do diretor da RMO
entre artistas e automóveis: “Em se tratando de publicidade Faber
considerava os artistas como automóveis, estabelecendo hierarquias
interessantíssimas. Um ator de valor era um Rolls-Royce; um extra,
um Austin; as qualidades dos artistas eram peças de um motor” (Ibid.,
p. 260). Entretanto (mas como demonstração, precisamente, da
possibilidade de alçar o que quer que seja à condição de mercadoria),
“uma estrela é um produto” diferente da “aspirina”, visto que “não se
trata de um artigo de primeira necessidade” (Ibid., p. 261) – daí o
papel fundamental da “arte do reclame”, que Faber exalta. Ciente da
expansão desse mercado originariamente ‘secundário’ em relação
ao filme, que não tem parado de crescer até hoje, o diretor da RMO
propõe uma inversão na hierarquia dos produtos cinematográficos:

[...] o nosso produto não é o filme, a película que sai daqui


enlatada como marmelada: o nosso artigo é a estrela! Nós não
vendemos dramas – vendemos estrelas! Para comprar a nossa
mercadoria, então, o público paga a entrada do cinema e vê
a fita de celulóide que a fotografou. O filme é mau, a história
é velha, a direção é um fracasso? Não importa. A estrela está
lá, em close-up, perfeita, autêntica, insubstituível. O filme é o
meio: a estrela, o fim (Ibid., pp. 262).

certa! Sabedor de toda a verdade, o velho professor abraça comovidamente os dois


namorados e os abençoa, sorrindo como um pai! E como o capelão do hospital fora
chamado para ministrar os últimos sacramentos ao moribundo, os jovens se casam
ali mesmo, no quarto da enfermaria, tendo como padrinho o velho professor” (Ibid.,
pp. 258-259).
Os “latinos” viajam a Hollywood | 169

Distintos, mas estreitamente interligados, constituindo uma


vasta rede, os produtos da indústria cinematográfica estadunidense
parecem pautar-se por um idêntico misto de artifício e naturalidade.
Como a linguagem dos filmes fabricados pelos grandes estúdios,
o Departamento publicitário deve produzir discursos falsos-
verdadeiros:

Explicou que de qualquer maneira o Departamento precisava


mentir, enganar, ludibriar; mas tinha que fazer tudo a socapa, com
arte, como se a notícia fosse natural e espontânea, quase necessária,
quase útil a quem a lê.

– Naturalmente – prosseguiu Faber pachorrentamente – o


escândalo pessoal é sempre preferido porque é a forma mais lógica,
mais simples e eficiente de publicidade. O caso de divórcio, o crime,
a enfermidade, tudo aqui é tratado carinhosamente, com manhas
de comerciante. Mas é tão raro um bom escândalo! (Ibid., p. 262).

De outra perspectiva, a partir de outro lugar, o leitor é


remetido novamente às cenas iniciais do livro, ao Largo da Matriz de
Cinelândia, ao fluxo permanente de burburinhos e escândalos, ao ir
e vir da vida privada à vida pública e desta à publicitária, ao trânsito
constante entre o cinema e a letra de forma.

Fade out

Como se assinalou, o livro de Olympio Guilherme relata os


diferentes percalços de Lucio Aranha no intuito de traçar um retrato
pormenorizado e “sem retoques” da “vida real” em Hollywood,
mas é também um romance sentimental imerso nesse mundo. De
um lado, a só presença dessa trama atesta o caráter inescapável de
convenções que de modo algum são uma invenção hollywoodiana,
embora tenham encontrado aí um solo propício no qual medrar:
a primeira aproximação fortuita e marcante, a existência de um
segredo em torno do passado da mulher amada, os quid pro quo
decorrentes do ciúme, o amor puro e casto a despeito da impureza do
ambiente são, entre outros, motivos folhetinescos e melodramáticos
atualizados pelo par Lucio/Vera. De outro lado, evidencia-se um
170 | Miriam V. Gárate

esforço em desromantizar parcialmente esses leitmotiv, integrando-


os ao clima de desalento que tinge as experiências narradas. Ora,
se o desmascaramento das regras do jogo, nos sets e fora deles,
conduz o enredo precisamente a uma solução dos conflitos no plano
sentimental – e, à semelhança da novela de Noriega Hope, à alternativa
do regresso à “terrinha” –, o último lance da história torce mais uma
vez o rumo.89 Com efeito, tomada a decisão de abandonar os Estados
Unidos e de começar uma vida a dois no Brasil, surge a oportunidade
que Vera aguardou em vão durante anos: assumir um papel como
intérprete autônoma e não mais como dublê. O dilema resolve-se
em favor da fábrica de sonhos e Lucio Aranha parte sozinho. O leitor
assiste à cena tendo a impressão de que, a despeito do ímpeto anti-
hollywoodiano, Guilherme rende tributo ao que renega:

O trem deu um arranco, as molas perras dos carros rangeram; os


freios de ar comprimido silvaram, como um bando de moleques
vaiando; e, resfolegando com seu pulmão de ferro, o trem deslizou,
lentamente, envolvendo a estação em rolos pardos de fumaça...

FADE OUT (Ibid., p. 315).

89
Voltar à pátria e ouvir os apelos da mãe (sinédoque afetiva desta) é um gesto comum
às narrativas do mexicano e do brasileiro, que ao longo do romance recebe mais
de uma carta da progenitora conclamando-o à retomada da vida entre as “paredes
caiadas da fazenda familiar”. Sem que se pretenda estabelecer uma relação direta
entre fenômenos distantes e distintos, interessa sublinhar, porém, o parentesco
desse aceno nacional-regionalista que, no caso de Guilherme, encontra expressão no
projeto já mencionado de adaptação cinematográfica de Os sertões, ao qual Sheila
Schvarzman (2012, p. 97) se refere nos seguintes termos: “A primeira menção ao
texto de Os sertões (no cinema) consiste numa proposta de adaptação a ser realizada
por Olímpio Guilherme – brasileiro selecionado num concurso promovido pela Fox
no Rio de Janeiro, em 1928, para atuar nas versões de filmes sonoros latinos em
Hollywood. Não tendo sido por lá aproveitado para muita coisa além de algumas
pontas, aparece em 1930 em Cinearte (23/04/1930) – revista que militava pela
existência de um cinema brasileiro –, propondo a adaptação do grande texto. Aqui
é nítido o apelo a Os sertões como forma de reconhecimento e enobrecimento da
atividade cinematográfica por parte desse ator/realizador relegado ao ostracismo
em Hollywood e em busca do resgate através do grande esforço que representaria
a adaptação de Os sertões. Assim como sua carreira nos EUA, no entanto, também
esse filme não vingou. A primeira efetiva realização fílmica sobre o tema de que
temos notícia por meio de documentação é o docudrama Euclides da Cunha 1866-
1909, dirigido por Humberto Mauro em 1944, para o Instituto Nacional de Cinema
Educativo”.
Os “latinos” viajam a Hollywood | 171

Não somente a imagem se esfumaça, fechando o fade in/


fade out que marca os limiares do livro à maneira de um filme;
seu conteúdo remete a um dos fetiches cinematográficos por
antonomásia: a estação, as nuvens de vapor que envolvem o trem, o
encontro, o reencontro, a despedida ou a partida solitária. Inclusive
quando se trata de um unhappy end, o imaginário hollywoodiano
ganha a partida.
Documentários de papel/Crônicas de celuloide

Refazendo um percurso

Como se constatou no primeiro capítulo, durante as


últimas décadas do século XIX e inícios do século XX, os escritores
latino-americanos instauram uma relação estreita e conflituosa
com a imprensa modernizada, que tem na crônica uma de suas
manifestações mais expressivas. É na crônica (ainda que não só)
que a literatura se exerce e pleiteia um espaço, valendo-se dos
procedimentos apontados por Julio Ramos (2008): sobrescrita das
notícias dadas a ler no jornal-diário (produção de uma mais-valia
estilística a partir desse hipotético grau neutro da linguagem que é o
discurso noticioso); renarrativização (inserção dos ‘fatos’ noticiados
dos quais se vale o cronista em um relato, religando, assim, o que se
apresenta fragmentado e descontínuo no espaço do jornal); retórica
do passeio (encenação de um sucedâneo dos deslocamentos do
repórter aos locais dos eventos).
Ao adotar a retórica do passeio ou da viagem, a crônica põe
em cena um sujeito enunciativo em movimento e busca retratar a
diversidade de estímulos do entorno urbano em transformação,
disputando, dessa forma, a atenção do leitor moderno. Mas procura
simultaneamente legitimar-se como prática literária “no interior
de uma nova divisão de trabalho sobre a língua” (Ramos, 2008, p.
117), por meio de estratégias que aludem – porém divergem e se
distanciam dela – à dicção jornalística.
As primeiras projeções do cinematógrafo propiciam uma
relação ‘triangulada’ que envolverá, a partir de então, imprensa,
crônica e cinema, e cuja interação se expressa, por um lado, no
desenvolvimento precoce de ‘gêneros’ cinematográficos como as
Atualidades, a Cine-revista ou o Cine-jornal e, por outro, na adoção
de títulos tais como Kinetoscópio, Cinematógrafo, Vitascópio ou
Cinema da vida, por parte de numerosas colunas cronísticas. Se as
Atualidades e os Cine-jornais podem ser considerados uma espécie
de correlato fílmico do discurso noticioso e compartilham com este
sua função informativa, a crônica, gênero forte do período em que
pesem os conflitos comentados, tende a tornar-se um cinematógrafo
176 | Miriam V. Gárate

das letras que lança luz sobre a vida da cidade. Na composição dessa
série de fitas/textos, comparecem de modo recorrente as estratégias
assinaladas por Ramos.
Precursoras na adoção desse paradigma cinematográfico,
como também já se indicou, são as crônicas reunidas e publicadas
por João do Rio em 1909, cujo prefácio convém citar mais uma vez:

Uma fita, outra fita, mais outra [...] Com pouco tens a agregação
de vários fatos, a história ao vivo, a vida da cidade numa sessão
de cinematógrafo [...] A crônica evolui para a cinematografia. Era
reflexão e comentário, o reverso desse sinistro animal de gênero
indefinido a que chamam: o artigo de fundo. Passou a desenho e
a caricatura. Ultimamente era fotografia retocada mas sem vida.
Com o delírio apressado de todos nós, é agora cinematográfica –
um cinematógrafo das letras, o romance da vida do operador no
labirinto dos fatos, da vida alheia e da fantasia – mas romance em
que o operador é personagem secundário arrastado na torrente
dos acontecimentos (Rio, [1909] 2009, p. 5).

Todavia, aderindo às observações de Flora Süssekind,


considerou-se no capítulo inicial que as possibilidades vislumbradas
pelo escritor carioca não se efetivam plenamente nessa obra, como
tampouco na produção de seus contemporâneos, conforme se
explicita no trecho a seguir da referida ensaísta:

[...] é como se o cronista [João do Rio] assistisse, com certo


deslumbramento, à constituição de um novo horizonte técnico e
tentasse imaginar relações possíveis com ele. E, da mesma maneira
que sonha, numa crônica de 1910, com um futuro “jornal Eletro
Rápido”, projeta essa imagem de um “cinematógrafo das letras”
como sinônimo de uma literatura que operasse como os modernos
aparelhos de produção e reprodução de imagens técnicas. Diante
dos novos maquinismos, a reação, meio no susto, numa primeira
instância, é, pois, de imitação. Não parece possível ainda a João
do Rio reelaborar criticamente esse influxo técnico. É possível
somente uma espécie de flirt rápido com ele. Situação que não
seria, no entanto, exclusividade de Paulo Barreto [João do Rio]
[...] Na verdade, a maior parte dos autores da virada do século e
dos anos 10-20 pareceu hesitar diante do horizonte técnico em
configuração. Sem chegar, no período, a estabelecer em geral
ligações mais perigosas, e com melhores resultados estéticos, com
Documentários de papel/Crônicas de celuloide | 177

tais artefatos modernos [...] Montagens e cortes passariam a invadir,


de fato, a técnica literária com a prosa modernista (Süssekind,1987,
pp. 47-48).

Ainda que moderno, o cinematógrafo das letras entrevisto


por João do Rio não ganha a forma de um artefato vanguardista. Em
outras palavras: não se efetiva segundo uma poética da montagem
visível e contrastante (ao invés de invisível e fluida), nem concede
um papel central ao corte ostensivo e à descontinuidade evidenciada
(ao invés de escamoteados), nem aposta na linguagem sintética,
‘seca’, ‘objetiva’. Mas tais ‘restrições’ não afetam exclusivamente o
campo da palavra escrita. Como o trajeto percorrido nos capítulos
intermediários deste trabalho procurou mostrar, não se deve esquecer
que, transcorridos os primeiros anos de vida do cinematógrafo como
espetáculo/sucessão de atrações, o formato hegemônico proposto ao
espectador será o da viagem induzida (conduzida) pela narração –
por um tipo de narração que, embora se valha de inúmeros recursos
para maximizar a dinamicidade e os poderes da linguagem fílmica,
é solidário do princípio da identificação projetiva, das formas
tradicionais, da estética da transparência. Daí ter manifestado
em algum momento que o cinema dominante assumiria no século
XX o relevo do papel exercido pela literatura no século XIX e se
transformaria em uma máquina de contar histórias – causa, dentre
outras, da associação frequente com o romance folhetinesco durante
suas primeiras décadas de vida. A afirmação pode ser estendida
aos gêneros fílmicos tradicionais concebidos como máquinas de
informar, educar e doutrinar, dado o caráter indiscernível das
funções propagandísticas e pedagógicas dos gêneros noticiosos.
Assim, tanto as relações de “imitação” como a ausência ou a presença
de operações estéticas “perigosas” e o eventual radicalismo ou
moderação de tais operações, em uma e outra mídia, exigem ser
dirimidas a cada vez, atentando para as singularidades do corpus em
foco. O presente capítulo busca indagar esses aspectos tendo como
horizonte de análise duas produções vanguardistas que lançam luz
sobre a vida das cidades, das transformações da crônica como gênero
e das metamorfoses do próprio cinema: o livro Pathé-Baby (1926),
de Antônio de Alcântara Machado (1901-1935), e o filme Rien que les
heures (1926), de Alberto Cavalcanti (1897-1982).
178 | Miriam V. Gárate

***

Um processo de reformulação comparável ao de


Cinematógrafo, de João do Rio, define a trajetória de Pathé-Baby:
da coluna cronística que coexiste com outras colunas e sessões na
página da imprensa periódica à seleção e ao sequenciamento das
crônicas publicadas na forma de livro – espécie de religação de
segundo grau que, neste caso, se articula às ilustrações e à tipografia
especialmente projetadas para o volume unitário. Assim, antes de
adentrar nas particularidades estético-verbais e plásticas do texto
definitivo, convém revisar alguns pormenores envolvidos nessa
passagem, bem como avaliar os nexos existentes entre as crônicas
jornalísticas e os contos-crônicas publicados à mesma época, no
mesmo meio, pelo escritor paulistano.
Segundo Cecília de Lara (1982, p. 11), Pathé-Baby foi
inicialmente divulgado no Jornal do Comércio “na forma de
narrativas de episódios de viagem”, publicadas entre 29 de abril e
22 de novembro de 1925. O livro é lançado poucos meses depois, em
fevereiro de 1926. Alcântara Machado vinha colaborando na coluna
de crítica teatral do periódico quando, por ocasião de sua viagem à
Europa, o diretor do jornal, Mario Guastini, sugere o envio de escritos
anunciados da seguinte maneira: “Do Velho Mundo... AM enviará para
esta folha correspondências semanais que constituirão uma delícia
para nossos leitores” (Guastini apud Lara, 1982, p. 11). De fato, como
sustenta a organizadora responsável pela edição fac-similar, a nota
não provê esclarecimentos sobre o gênero da colaboração. Todavia,
ao se referir à publicação de Pathé-Baby em livro, Guastini (apud
Lara, 1982, p. 12, itálicos meus) teria relatado alguns fatos relativos
às circunstâncias de sua elaboração nestes termos: “ao se afastar de
sua atividade crítica habitual [teatral], A de A M comprometeu-se a
enviar para o Jornal do Comércio crônicas semanais”. Essas crônicas
apareceram no jornal sob o título de Pathé-Baby, impresso em tipos
chamativos de grande tamanho, acrescido do subtítulo Panoramas
internacionais. “Com essa dupla repetição, o leitor deve ter se
habituado à série de episódios variados de viagem, localizando-os
facilmente na página”, sustenta Lara (Ibid., p.17); uma página, ela
frisa, que “em nada prenuncia a montagem gráfica –cinematográfica
– que tanto marcou a edição do livro” (Ibid., p.14). Ora, não obstante
seja correto atentar para a ausência, nessa primeira versão, do
Documentários de papel/Crônicas de celuloide | 179

sofisticado projeto plástico que caracterizaria o livro, cabe indagar


em que medida a própria página do jornal constitui per se um espaço
de montagem gráfica/cinematográfica, que pré-forma e instrui a
prática do escritor e que será capitalizada na confecção do volume.
No tocante à presença do cinema, ela é inscrita duplamente
de saída: o título relaciona as crônicas de viagem à marca da
filmadora doméstica de maior difusão no período, produzida a partir
de 1922, sob o lema publicitário Le cinema chez soi (“o cinema na sua
casa”); o subtítulo as vincula a uma coluna da imprensa abundante
e rapidamente replicada pelo cinematógrafo: os panoramas
(evidentemente, a imprensa tinha importado, por sua vez, um termo
oriundo das artes plásticas, que dera lugar a numerosos espetáculos
óticos nos séculos XVIII e XIX, reforçando novamente a ideia de
trocas e de interações ‘sem fim’). A esse respeito, Lara registra em
outra passagem de seus comentários a presença genésica do cinema
implicada na adoção de título e subtítulo, embora menoscabe seu
papel diante da importância concedida aos procedimentos verbais
dominantes no livro – mas também presentes, vale observar, na
versão jornalística prévia –, bem como desestime a materialidade
desse primeiro veículo de publicação:

A montagem da obra, jogando em elementos do universo do


cinema, encontra sua gênese a partir do nome que A de A M deu
aos episódios – Pathé-Baby, panoramas internacionais, como se
fosse uma reportagem cinematográfica sobre os locais que visitou.
Mas, nada significaria essa ligeira sugestão – nascida do nome da
máquina de filmar – se não houvesse a impregnação na própria
maneira de captar a realidade, reconstituída em flashes, que
valorizam os detalhes visuais – e pelos procedimentos de estilo –
visando à economia significativa com eliminação sistemática do
supérfluo, do discursivo, preferindo a construção em blocos que se
unem ou se afastam sem liames aparentes: como uma montagem
de objetos de perfis bem delineados, sem meios-tons, de transição.
Dizer que a construção da obra Pathé-Baby tal como foi realizada
é decorrência do título, reiterada pelas palavras de Oswald de
Andrade, Pathé-Baby é “cinema com cheiro” ou Pathé-Baby é
“reportagem”, realmente nada explica. Pois na obra que publicara a
seguir, em 1927, Brás, Bexiga e Barra Funda, Antonio de Alcântara
Machado dirá que não se trata de livro, mas se trata de jornal. E no
entanto essa idéia não se faz visível de modo como se deu em Pathé-
Baby (Ibid., p. 22).
180 | Miriam V. Gárate

Afirmar que a estrutura de Pathé-Baby seja “decorrência” do


título constituiria, com efeito, uma simplificação ingênua (na qual
o próprio Oswald de Andrade não chega a incorrer); sustentar, sem
mais, que se trata de “reportagem”, realmente explica pouco ou nada.
Mas repensar os traços do livro apontados pela comentadora à luz
da imprensa concebida como espaço de montagem (tanto discursiva
quanto gráfica) e das sintonias existentes entre a imprensa e as
políticas de montagem praticadas pelos gêneros cinematográficos
em disputa no período, pode clarear alguns aspectos dessas
interações trianguladas. Da mesma forma, examinar os usos e as
apropriações da dicção jornalística (da “reportagem”) na prosa
literária de Alcântara Machado pode contribuir para divisar liames
entre as crônicas e os contos-crônicas.
Nesse sentido, outra observação feita por Cecília de Lara
é de interesse para a leitura aqui proposta: a crítica lembra que,
por ocasião da viagem à Europa, além de já vir atuando na crítica
de espetáculos do periódico, Alcântara Machado “havia também se
iniciado, primeiro em tímidas incursões, depois já com mão firme,
no campo em que se realizaria como escritor: o das pequenas
composições entre conto e crônica, retratando tipos populares da
cidade de São Paulo” (Ibid., p. 13, itálicos meus). Anterior à viagem é
a publicação na página literária do Jornal de Comércio de dois relatos
não recolhidos posteriormente em livro (“Cirilo” e “Virgens loucas”)
e de outros três que passariam a integrar Brás, Bexiga e Barra Funda
(1927). São eles “Gaetaninho”, “Lisseta” e “Carmela”. Ao publicar
este último, já se faz menção a um “possível livro de contos ítalo-
paulistas”, que será anunciado à maneira de reclame publicitário no
programa-índice de Pathé-Baby.

Ao que parece, em Antônio de Alcântara Machado se esboçava a


idéia de ir compondo aos poucos o livro que anuncia timidamente
em Carmela. Com a viagem [...] interrompe esse tipo de produção.
E de tal forma os episódios de viagem ganham corpo que aparecem
em livro antes dos outros anunciados, marcando a estréia de
Antônio Alcântara Machado como escritor. Mas, na própria abertura
de Pathé-Baby vem anunciada a próxima publicação de Brás, Bexiga
e Barra Funda, agora com o título definitivo. Ao retornar da Europa,
inicia a colaboração em rodapé – Cavaquinho, onde apareceram
entre outras composições duas versões iniciais de futuros contos
de Laranja da China.
Documentários de papel/Crônicas de celuloide | 181

Logo, os episódios que constituem Pathé-Baby cortam a elaboração


dos contos de Brás, Bexiga e Barra Funda e Laranja da China. Assim,
o livro de estréia de Antônio Alcântara Machado nasceu de um fato
circunstancial – a viagem à Europa –, pois ao regressar retoma a
linha anterior sobre tipos ítalo-paulistas ou brasileiros, de modo
geral (Ibid., p. 14).

Talvez a materialidade do jornal, em sua dupla feição gráfica


e retórica, em seu desenho e sua dicção, inspire alguns aspectos
comuns à arquitetura de ambos os livros; talvez sua relação possa ser
entendida menos como interrupção que como processo. Para além
das inegáveis peculiaridades presentes nas “notícias” ítalo-paulistas
(termo escolhido pelo autor como subtítulo de Brás, Bexiga e Barra
Funda), uma ‘poética da reportagem’, cujo sentido é elucidado pelo
próprio Alcântara Machado, coaduna contos e crônicas.

***

Em que medida o espaço heterogêneo da página jornalística


(a coexistência de múltiplas colunas, de conteúdo e teor diverso),
bem como o estilo ‘seco’ e ‘cortante’ associado ao discurso noticioso
servem de inspiração à linguagem cronístico-narrativa praticada
por Alcântara Machado? Em que medida esse novo estilo se
expressa paralelamente no cinema, sob a forma de uma filmografia
‘documental’ que mantém laços com as Atualidades ou os Panoramas
clássicos, mas se afasta deles e os submete a um trabalho?
Analisando o tratamento dado à matéria de Brás, Bexiga e
Barra Funda (mas a apreciação pode e deve ser estendida ao tipo
de representação proposta em Pathé-Baby), Luís Toledo Machado
(1970, p. 71) recorre à expressão “técnica documental” para
referir-se a uma concepção literária que, sensível ao prosaísmo do
mundo, teria se aproximado da matéria jornalística “não só quanto
ao fundo, forma e estilo”, como teria retirado dessa matéria os
“elementos básicos de sua própria realização”. A título de prova, o
crítico transcreve uma passagem de um dos textos de Cavaquinho e
saxofone, na qual Alcântara Machado sustenta:

Numa época (é a nossa) em que a literatura cada vez mais se preocupa


com o caso interior, o jornal acaba sendo o único comentário do que
se passa fora dos homens. O romance hoje em dia narra o indivíduo.
182 | Miriam V. Gárate

Os indivíduos são assunto de imprensa. O aprofundamento do


conhecimento de que fala Daniel-Rops está matando o fato na obra
literária. Mesmo no teatro quase que já não acontece mais nada.
A vida é sentida, pesada, decomposta, analisada, explicada. Ou se
assiste à elaboração ou então à repercussão íntima das atitudes,
dos gestos, das idéias. Não se vê por assim dizer o homem em ação.
Vivendo solto no mundo. Heróis agora a gente só encontra no jornal.
Os dramas absurdos que antigamente a obra de ficção armava, o
jornal registra depois da polícia. O romancista está espiando para
dentro, bem no fundo. A vida que vive na luz é o repórter o único a
fixar. Fixar por um minuto. No jornal ela continua e se transforma,
nasce dia, morre dia, como sucede cá fora. Ele é sempre o que vai
acontecendo.

Por isso mesmo a obra literária de movimento é confundida com a


reportagem [...] Porque ver e contar é hoje função de repórter [...]

Hoje é bastante abrir o jornal. É a vida. É até o tumulto da vida. O


detalhe bem banal e o fantástico se misturando. Na terceira coluna
da terceira página o italiano Pisani experimenta um avião de
trezentos passageiros. Na quarta coluna o José Maria mata a Maria
José por causa de um gato, na quinta o presidente da sociedade
agrícola expõe os problemas que assoberbam a cultura do algodão,
na sexta o estivador se joga no mar com uma pedra pendurada no
pescoço, na sétima os espetáculos da Companhia Gandaia atraem
todas as noites enorme público. Maravilha. A vida não pára. É o
Manhattan Transfer de John dos Passos (Machado, 1940, pp. 379-
380 apud Machado, 1970, pp. 74-75).

Deflação do caso interior em benefício do que se passa fora


dos homens, do fato, da ação, da mistura do banal com o fantástico,
do cômico-caricatural com o trágico. Uma coluna, outra coluna,
mais outra; a vida que se transforma dia a dia: é nisso que consiste
o jornal; é por isso que “a obra literária de movimento é confundida
(embora não se equipare) com uma reportagem” jornalística. Com
intensidades diversas, esse princípio construtivo molda os contos-
crônicas e as crônicas de Alcântara Machado.90 Preservadas as

90
Cito as observações de Luís Toledo Machado (1970, pp. 63-71) acerca de Brás,
Bexiga e Barra Funda por considerá-las pertinentes em relação ao conjunto da
produção do autor em foco: “sua posição [de Antônio Alcântara Machado] é a de
um observador colocado ‘fora’ do espetáculo e a forma de tratamento do tema o
Documentários de papel/Crônicas de celuloide | 183

especificidades de cada meio, o mesmo princípio construtivo vale


para o cinema de vanguarda em sua vertente ‘documental’ e, muito
especialmente, para o gênero das denominadas sinfonias urbanas:
um plano, outro plano, mais outro, a vida que se transforma dia a dia.

Palavra, tipografia, ilustração: interações

Em fevereiro de 1926, uma seleção parcialmente revista


das crônicas publicadas com antecedência no Jornal do Comércio é
relançada como livro. Incumbido do projeto gráfico e das ilustrações,
Antonio Paim Vieira (1895-1988);91 responsável pelo prefácio,
Oswald de Andrade (1890-1954).
Desde o início, a capa (Figura 1), a primeira página (Figura
2) e o Programa/índice (Figura 3) instauram um pacto análogo ao
proposto pelo chileno Vicente Huidobro em seu Cagliostro, Novela-

documentário [...] Intencionalmente, A de A M escolheu a técnica documental para


a reprodução ou recriação do fenômeno paulistano. Não se tratava, porém, de uma
imposição decorrente do tema de suas narrativas, pois tinha o nosso autor concepção
definida e definitiva acerca da literatura, especificamente da novelística, a qual, pela
sua própria natureza ‘prosaica’, não poderia continuar dentro da solução ‘poética’.
Firmava, assim, o conceito da novelística documental, da novela-reportagem que,
tributária do Realismo, surgia com Blaise Cendrars (L’Or e Rhum), John dos Passos
(ManhattanTransfer) e estava destinada a reaparecer com êxito nesta década de
60, com Truman Capote”. Interessa salientar o caráter eminentemente tático desse
“realismo” (com respeito a opções estéticas precedentes) e sua dimensão não
natural nem neutra: o “tratamento documental” e “o observador colocado “fora” do
espetáculo” não suprimem o sujeito; transferem a ênfase para a organização dos
materiais ‘registrados’ (cortes, combinações associativas, etc.).
91
Maria Débora Gigli Buonano (2010, p. 5) traça o seguinte perfil de Paim Vieira:
“pintor, ilustrador, ceramista e professor de arte decorativa e de história da arte. Com
temas nacionalistas como animais, plantas, índios e o carnaval, e como ilustrador de
diversas revistas e livros brasileiros, introduziu o Art Nouveau e, principalmente,
as linhas arrojadas do Art Deco, produzindo, assim, uma nova linguagem para as
capas de revistas. Sem dúvida, Paim é um artista importante para o processo de
modernização da sociedade paulistana. Embora tenha inicialmente discordado da
Semana de Arte Moderna de 1922 é notória a sua contribuição para o design de
capas de revistas. Sua criação tipográfica dialogava com as imagens estilizadas e
estabelecia uma nova composição para as capas de revista e livros da época. Na
década de 20 muitos eram os periódicos que circulavam em São Paulo [...] Paim
ilustrou, entre outras, a Revista Novíssima e a revista Ariel”.
184 | Miriam V. Gárate

filme (“Suponha, leitor, que não comprou este livro em uma livraria,
mas que comprou um bilhete para entrar no cinematógrafo”),
procedimento retomado posteriormente, entre outros, por Olympio
Guilherme, em Hollywood: novela da vida real (1932), como se viu.

Figura 1 Figura 2

Figura 3

No caso de Alcântara Machado, o pacto é instituído em um


primeiro momento a partir da dimensão plástica e tipográfica, que
projeta o título na tela e dá a ver (e ‘ouvir’) a orquestra na metade
inferior da página (Figura 1), depois faz vibrar a campainha do
vestíbulo convidando os espectadores a ingressar na sala (Figura 2);
e logo distribui o folheto do programa a ser assistido (Figura 3). Mas
o pacto é redobrado de imediato no registro verbal: as crônicas se
subdividem em partes, como consta do Programa/índice; cada uma
dessas partes ou episódios, como são denominados no corpo das
Documentários de papel/Crônicas de celuloide | 185

crônicas, recebe um tratamento que aproxima os enunciados dos


letreiros fílmicos (ou das manchetes e dos subtítulos da imprensa,
com as quais os letreiros aprenderam, quando o fizeram, a concisão).
Fórmulas breves situam no espaço e no tempo (Meia-noite, Boulevard
des Capucines), sintetizam ações (Ida, Volta), suscitam curiosidade
(O lusitano do compartimento vermelho).
Ingresso e programa na mão, o espectador entra na sala
e, enquanto espera o início da sessão, lê a ouverture (prefácio) de
Oswald de Andrade. Se o primeiro pacto (o primeiro limiar) instaura o
espetáculo cinematográfico como horizonte de recepção, a ouverture
sanciona o gênero ao qual a obra pertence e referenda sua qualidade.
É aí que surge a fórmula oswaldiana, cujo alvo é menos prover uma
definição estrita que afirmar um valor. Para Oswald de Andrade,
Alcântara Machado é membro da geração “mais desenvolta, segura
e perigosa” que veio depois da “Philips modernista”; seu Pathé-Baby
“esgota a literatura de viagem” (“culpa sua ter esgotado literatura
viagens esse cinema com cheiro que é Pathé-Baby”); “é reportagem”
– e “grande literatura nossa época é reportagem”.92
Concluída a ouverture, prorrompe a orquestra e se põe

92
Cito a ouverture/prefácio: “Em 1913 quando você usava óculos calças curtas
acompanhando próceres eleições municipais havia bruta vela Praça Antonio Prado
acesa dia noite preocupação geral era saber quando apagaria [...] Nossa literatura
essa época também teve velas dentro redomas. Depois cintilou a Philips modernista
donde resultou sua geração mais desenvolta mais segura mais perigosa [...] Culpa
sua ter esgotado literatura viagens esse cinema com cheiro que é Pathé-Baby.
Excepciono variante Paulo Prado em prometida viagem Europa dará esclarecimentos
nossa falta de civilização. Só ele capaz. Quanto literatura transatlântica sem fios
definitivamente armada Pathé-Baby. Até agora brasileiro escritor vindo Europa
limitava-se fazer papel Hans Staden artilheiro Bertioga caiu preso Tupinambás
século 16 apavorado antropofagia aconselhava não comerem gente. Morubichaba
respondia: – Não amole é gostoso. Nós idêntico sermão diante cocaína tourada nu
artístico. Você apossou-se sem espanto temperatura ocasional cada gente cada país.
Por todo seu livro concordância amável realmente Europa gostosa ridícula. Pathé-
Baby é reportagem. Como mudam os tempos diria Marquez Maricá pensando João
do Rio. De fato da tolice amável esse seu malogrado amigo à segurança seu estilo
seu modo acertar vão diversos séculos. Brasil país milagres acrescentaria Marquez
ignorando grande literatura nossa época é reportagem” (Andrade, [1926] 1982, pp.
10-13). A sintaxe ostensivamente telegráfica contrapõe figurações que reportam
à velha e à nova literatura: as velas na redoma vs. a lâmpada Philips, a viagem
reverente vs. a antropofágica e “sem fios”. A apelação à tipologia da reportagem faz
parte desse contraponto essencialmente tático.
186 | Miriam V. Gárate

a rodar a primeira fita: “Puerto de la Luz é o vestíbulo arenoso.


Comprometedor. A cidade, que o mar e a montanha limitam,
fica distante. MODERE UD LA MARCHA HASTA 15 kls por hora”
(“Las Palmas; 1. Apresentação”, Machado [1926] 1982, p. 19).
O espetáculo proposto ao longo de mais de duzentas páginas
convoca o cinematográfico em vários níveis. No referente à escrita,
evidenciando seu alto grau de penetração na vida cotidiana e no
imaginário social, o cinema comparece como motivo temático: “Pela
Galleria Vittorio Emanuele Milão gira. Italianas lindas. A qualquer
hora. Alugáveis ou não. Olhos de tragédia. Atitudes cinematográficas
de mulher fatal” (“Milão: 1. Compêndio urbano”. Ibid., p. 87); “Como
essas figurinhas que a cinematografia norte-americana faz sair do
fundo de uma taça ou de uma pupila, de dentro do piano pulam dois
sertanejos repinicando violas” (“Milão, 2. Derrota brasileira”. Ibid.,
p. 88); “Cimbaue, Giotto e discípulos enchem a Chiesa Superiore.
A monotonia da arte conseguida. Nem um tico mal feito. Enjoa até.
A cripta, sim, é uma indecência estupenda do século XIX. – Sembra
la salla d’aspetto di um cinematografo” (“Assis”. Ibid., p. 162).
Ocasionalmente, os motivos da cidade como set e dos percalços da
rodagem também se fazem presentes:

Nos jardins verdes do Alcázar, a Paramount Pictures fabrica uma


película árabe. Nas janelas do Pabellón de Carlos V sultanas de pele
loira e olheiras azuis fumam Ariston.

Entre as colunas de mármore branco, o diretor toma chá e morde o


cachimbo. Albornozes. Sandálias, Punhais. Véus.

Para duas objetivas, a favorita trai o sultão de barbaças com o jovem


sheik. Mas o espião entra.

O diretor berra:

– No!

O espião entra de novo.

– No!

O espião entra pela terceira vez.

– No!
Documentários de papel/Crônicas de celuloide | 187

O eunuco do serralho é pai da heroína, que nasceu em Chicago.

O sultão, a um lado, foxtrotea e canta:

I want to be…

O espião entra pela quarta vez

– Yes! (“Sevilha, 2. Cinematografia”. Ibid., pp. 190-191).93

Mas o cinema constitui, sobretudo, um paradigma de


composição tendente a modelar cada enunciado como sucedâneo de
uma tomada ou plano e a organizar a sucessão de planos/enunciados
segundo a lógica da montagem visível, evidente, contrastiva:

Trilhos, trilhos, trilhos. Discos verdes, discos vermelhos. Lanternas.


Sinais. Avisos. Letreiros. Trens parados. Trilhos. Postes. Guindastes.
Locomotivas fumegantes. Arrabaldes tranquilos. Automóveis.
Estações pequeninas de nomes enormes. Fumaça. Trilhos. Rapidez
do trem que voa. Ruído. (“De Cherbourg a Paris: 4: chiuú!”. Ibid., p.
43).

Como é possível constatar, a justaposição paratática de


sintagmas nominais, sua brevidade, a repetição sucessiva e a alternada
de alguns deles (vias) buscam propiciar um efeito análogo ao da
sucessão de planos curtos, tentam criar um ritmo verbal- imagético
que a montagem acelerada das sinfonias urbanas vanguardistas
perseguirá no plano estritamente fílmico. Basta pensar no início de
Berlim, a sinfonia de uma grande cidade (1927), de Walter Ruttmann,
para advertir as semelhanças.
Na realização desse ‘documentário’, o cronista/viajante/
escritor/cameraman circula com sua Pathé-Baby e escreve/
filma as tomadas ‘do natural’ (d’après nature), segundo expressão
consagrada na época. O estúdio, a cenografia artificial e artificiosa,
a maquiagem de seres e de objetos são abolidos em benefício da
captação ‘direta’. O estilo ‘não marcado’ se torna um significante de
base tanto para a nova arte cinematográfica como para a literária.

93
A cena sevilhana certamente alude aos filmes estrelados pelo star Rodolfo
Valentino: The sheik (O xeque, 1921) e The son of the sheik (O filho do xeque, 1926),
rodados precisamente pela Paramount. O segundo estreou em 1926, pouco depois
da morte do ator.
188 | Miriam V. Gárate

Daí o elogio professado a Alcântara Machado e a sua prosa: trata-


se de um escritor que “não enfeita”, que escreve sem literatura.94
Evidentemente, a marca ou o significante do trabalho artístico não
desapareceu; transferiu-se da sobreescrita pré-modernista (da
sintaxe complexa, do luxo lexical, do “enfeite”) para uma estética do
prosaísmo, da observação, da expressão coloquial e despojada. Mas
transferiu-se especialmente para o trabalho realizado com o corte,
com a subtração (uma espécie de ‘subescrita’?), para a justaposição/
montagem que se processa entre as palavras95.
A essas operações no âmbito verbal soma-se uma montagem
alternada entre escrita e ilustração, dando lugar a uma narrativa
dupla (ou tripla) que, de acordo com Valêncio Xavier (2001, p.
62), “corre simultaneamente em duas pistas”: o filme escrito por
Alcântara Machado e o ilustrado por Paim Vieira, que por sua vez
se bifurca no desenho-fita projetado na tela (metade superior da
página) e no desenho-relato acerca das peripécias da orquestra,
cujos executantes vão desertando da sessão um após outro (metade
inferior da página).

94
Vejam-se os seguintes comentários por ocasião do lançamento de Brás, Bexiga
e Barra Funda: “O Sr. Alcântara Machado é um singular temperamento de escritor.
Com uma sensibilidade pura, com um agudo espírito de observação anda pela vida
com uns grandes olhos de ‘Kodak’ fixando com exatidão as coisas que encontra no
seu caminho. Não deforma nem enfeita. Fixa as pessoas e as coisas como elas são.
Mas, alma sempre comovida e às vezes também irônica diante dos espetáculos da
vida [...] São Paulo está todo nos contos do Sr. Alcântara Machado. Direto, simples,
claro, o Sr. Alcântara Machado é uma exceção entre nossos prosadores. Escreve sem
literatura” (O Jornal, Rio de Janeiro, 3 de julho de 1927, s/a; apud. Machado,1983,
Obras, pp. 279-280).
95
Referindo-se ao manifesto de Klaxon e ao interesse dos novos escritores pelo
cinema, Ismail Xavier (1978, p. 143) afirma: “A preocupação com o fenômeno
cinematográfico não ficará reduzida aos elogios do manifesto. Exceção feita do
número quatro, em todos os outros haverá matéria sobre cinema. Os líderes da
renovação literária terão nele um elemento motivador de discussões e críticas,
chegando a colocá-lo como um referencial útil na explicação de Oswald em
Os condenados... O modelo de organização dos filmes é utilizado como matriz
para, de forma sintética, caracterizar um estilo literário marcado pelo uso do
“subentendimento”, como diriam os teóricos do cinema da época. A segmentação da
narração em “sequências”, sem preocupação pela continuidade e pelas transições
que alongam o texto, o tratamento de cada “cena” pela sucessão de detalhes e pela
economia de referências, eram o que permitia a aproximação”. As afirmações de
Xavier são plenamente aplicáveis à escrita de Alcântara Machado.
Documentários de papel/Crônicas de celuloide | 189

O desenho-fita projeta sobre a parte superior da página uma


espécie de síntese visual, antecipando dessa forma o filme escrito.
Nesse caso, ilustração e palavras olham desde suas materialidades
específicas em direção às ‘mesmas’ imagens, oferecem-nas
alternativamente para que o olho-mente do leitor as veja/leia. É o
que ocorre, por exemplo, com o apertado e multifacetado desenho
relativo a Paris (Figura 4), que compendia um conjunto de motivos
presentes em diversas passagens da “super especial película de
grande metragem” (Programa) escrita:

Place de l’Etoile. Em torno do Arco do Triunfo magotes de automóveis


giram. As avenidas são doze bocas de asfalto que comem gente e
veículos, vomitam gente e veículos. Insaciáveis. Ruído. Pó (“1. A
flama da saudade”. Ibid., p. 49).

A tabuleta diz: JAVA. Estrepitosamente a orquestra toca La Belote.


Música saltitante, tremelicante. Cinquenta, cem, duzentos pares
(“2. O baile do magic-city”. Ibid., pp. 50-51).

O francês gordo, suando felicidade, esfrega os bigodes no rosto


besuntado da magricela. Imprudência de francês gordo. Bufando
como uma Mallet, a mulher de roxo o enfrenta e o esbofeteia. Ao
estalo segue-se a descompostura berrada: -Tu ne t’imaginais pas de
me rencontrer, hein, salaud? (“3. Meia-noite, boulevarddescapucines”.
Ibid., pp. 54-55).

Num muro, fronteiro ao baile, cartazes coloridos falam da crise


da vida, das eleições municipais, dos atentados comunistas. Um é
tremendo: conclamam os padeiros. Truculentamente: OUVRIERS
BOULANGERS! NOUS ALLONS FAIRE APPEL À VOTRE COLÈRE! (“4.
Meia-noite, ruest. Honoré”. Ibid., pp. 56-57).96

96
A maior parte dos ícones do urbano consideradas até agora constituem um
repertório comum a muitos textos, documentais cinematográficos (tanto tradicionais
como experimentais) e ao cinema ficcional do período: o trânsito, os veículos, a
multidão de passantes, os entretenimentos populares (férias e parques de diversões
ao ar livre, bailes, o próprio cinema), comparecem na sinfonia de Rutmann e em suas
‘congêneres’ sul-americanas (São Paulo, a sinfonia da metrópole (1929), de Rodolfo
Lustig e Adalberto Kemeny, Santiago (1933), de Armando Rojas Castro), em Rien
que les heures, de Cavalcanti ou em Aurora, de Murnau, entre outros. Em todos esses
filmes, como também em Pathé-Baby, os néons publicitários fazem parte inelutável
desse repertório imagético: “Anúncios luminosos põem brilhos de palco na fachada
190 | Miriam V. Gárate

Figura 4

No referente ao desenho-relato sobre as peripécias da


orquestra, tramado na metade inferior da série de ilustrações
(Figuras 5, 6, 7), ele dá a ver outra narrativa paralela e simultânea
que reforça o pacto instaurado – o leitor/espectador entrou na sala
de cinema ao virar a capa – mas, por isso mesmo, porque a orquestra
reforça o protocolo da ‘sessão’ cinematográfica, ‘restitui’ um viés de
continuidade e ‘religa’ as crônicas do (no) livro. Em um sentido ao
mesmo tempo complementar e divergente, as ilustrações incitam a
‘desviar’ o olhar da tela e seguir os avatares da comédia que aí se
desenvolve.

cinzenta dos prédios” (Paris, 3. meia-noite, boulevard dêscapucines. Ibid., p. 54);


“anúncios luminosos, galgando os prédios policromos, despencando dos últimos
andares, travessos, rodando, piscando, ágeis, desaparecendo à direita, surgindo à
esquerda, subindo, descendo, indo, vindo, LEARN LANGUAGE AT BERLITZ! MAZA
WATTEE TEA, DO YOU COMPOSE? BOVRIL, MONICO, põem na tela desigual da
multidão que não para pinceladas de Léger e Delaunay, vermelhas, azuis e verdes,
depois de novo verdes, azuis e vermelhas. (“Londres, 1. Charincross”. Ibid., p.78)
Documentários de papel/Crônicas de celuloide | 191

Figura 5 Figura 6 Figura 7

Essa diagramação complexa nos fala de um leitor/espectador


familiarizado com as diversas manifestações da cultura visual
em ascensão, capaz de circular com fluidez entre vários códigos e
convenções: no alto, ilustrações que procedem por aglomeração
e sobreposição, a experimentação vanguardista; embaixo, o traço
geométrico e moderno, porém atrelado à narrativa humorística ‘linear’.
Feito o primeiro esboço de aproximação à estrutura discursiva
e gráfico-cinematográfica de Pathé-Baby, torna-se necessário voltar
sobre o conteúdo dos ‘planos’ projetados pelas crônicas, pois eles
convidam a flanar por paisagens sociais heterogêneas: a Paris chic
e cosmopolita do Boulevard des Capucines, com seus cafés que
adentram na calçada – “Barulhento, internacional, colorido, o Café
de la Paix, prolonga-se até o meio da calçada” (Ibid., p. 54) –, e a da
prostituição que medra em volta – “A mercadoria dos bordéis da
vizinhança percorre o Boulevard. Há de tudo, para todos os vícios,
para todas as bolsas. Apoiada em muletas, uma aleijada (há de tudo,
para todos os vícios) obstinadamente vai e vem. O rosto é lindo. O
olhar é um convite desesperado” (Ibid., p. 54). A Paris que congrega
em torno ao Arco do Triunfo duas “costureirinhas que tagarelam. A
família que vai bocejar nos bancos do Bois. Um maneta que vende
alfinetes” (Ibid., p. 49), e a das fêtes foraines à margem do Sena,
onde as “mulheres dos operários distribuem cêntimos pelos filhos”;
“Alegria de pobres. Montada nos cavalos do Carrousel” (Ibid., p.58).
A dos “atentados comunistas” e a “Dinamite verbal”,“(OUVRIERS
BOULLANGERS! NOUS ALLONS FAIRE APPEL...” (Ibid., p. 57). A
Paris da “Exposition de Arts Décoratifs et Industriels Modernes, de
árvores cubistas” e a da Maison de Glaces adjacente: “a multidão
torce o nariz diante dos pavilhões ricos, e vai divertir-se no Parc des
192 | Miriam V. Gárate

Attractions [...] – Allons voir la Maison des Glaces. Na sala octogonal,


os espelhos deformam as figuras. Engordam. Emagrecem. Entortam.
Caricaturam” (Ibid., p. 59).
A viagem às grandes metrópoles do Ocidente, marcada ao
longo do século XIX e inícios do século XX pela atitude reverencial,
tendia a “enfeitar” e homogeneizar aquilo que dava a ver. Agora
flagram-se outras facetas – muito especialmente, neste caso, de
capitais como Lisboa ou Roma, objeto de “maus-tratos”. Mostram-se
o baixo, o feio, o inconveniente, o obscenamente mercantil. Desfere-
se uma ironia constante.97 Essa feição da crônica/reportagem/
documentário também é nova: “Por todo seu livro concordância
amável realmente Europa gostosa ridícula” (Andrade, Ibid., p. 10).

Repercussões de uma viagem insolente

A seleção de críticas que acompanha a edição fac-similar


de Pathé-Baby permite observar até que ponto o primeiro
contexto de recepção atentou, ora como defeito, ora como mérito,
ora como um misto de ambos, para o conjunto de características
que vêm sendo apontadas e as articulou frequentemente em torno
ao peculiar tratamento dado ao motivo da viagem. Assim, uma
nota publicada sem assinatura no Correio Paulistano, em 25 de
fevereiro de 1926 (imediatamente após o lançamento de Pathé-

97
Sirvam como exemplo as seguintes passagens sobre Lisboa: “Lama no Tejo. Manhã
horrível de céu cinzento. Chuvinha fina que cai. Frio. Vento. A lancha pula nas vagas:
sobe, desce, desce, sobe. Uma bola de borracha saltando. – Ainda levamos muito
tempo para alcançar a terra? – Eu sei lá! A cusparada completa a resposta amável.
Em fim, Porto da Desinfecção. Merece desinfecção urgente. Imundo” (Ibid., p.29).
“Na rua 24 de julho há assustadoras lagunas de água barrenta. Ovarinas também,
aos grupos. Vendedores ambulantes. Tamancos barulhentos. Um mercado infecto.
Descomunais pés descalços. Saias pelos joelhos. Calças arregaçadas. Verdureiras.
Sujeitos de gorro, capa espanhola e guarda-chuva. A estátua do Duque da Terceira.
Depois de outras, a rua do Ouro. Joalherias. Bancos. Prédios idosos” (Ibid., p.30). “O
pregão dos garotos enche as arcadas encardidas do Terreiro do Paço: – Canetas a
quinze tostões! Piúgas a cinco tostões! A sobrecasaca conselheiral dos estudantes
usa uma capa de irmandade por cima. A rua Áurea é a vergonha do nome.
Tatá&Sousa. Imundice e abandono. A avenida da Liberdade. Desleixo e buracos. SÃO
PORTUGUESES OS CHOCOLATES DA FÁBRICA SUISSA” (Ibid., p.35).
Documentários de papel/Crônicas de celuloide | 193

Baby, portanto), sentencia em tom admonitório:

Cada página do livro é uma cena cinematográfica que se desenrola


com rapidez [...] É pena que o A repita as imagens a todo instante,
achando que todos os caminhos são riscos de lápis, riscos de giz, etc.
Pena é também que os seus olhos só tivessem fotografado o que as
cidades maravilhosas da civilização européia apresentam de pouco
recomendável e de menos estético. Neste particular, o livro todo
denota mau gosto. Não há viajante que se enleve, de preferência,
pelos trechos escusos, pelos becos mal iluminados, pelos traços
inferiores das paisagens urbanas, que teve oportunidade de
observar [...] A tela cinematográfica de suas observações de viagem
é um sucessivo pintalgar de defeitos, de cacoetes morais e físicos,
de aleijões arquitetônicos [...]

O estilo é o mesmo que conhecemos, nos livros de outros escritores


modernistas. Trechos breves e justapostos. Palavras soltas. Frases
curtas e incisivas. Abundância exageradíssima de pontos finais.
Maiúsculas abolidas. Influência visível de Mario de Andrade e de
Oswald de Andrade (s/a., [1926] apud Machado,1982, p. 51).

Um dia antes, em 24 de fevereiro, o Jornal do Comércio


transcrevia um artigo precisamente de autoria de Mario de Andrade,
publicado originariamente no dia 20 daquele mês no Jornal de
São Paulo. No texto se ponderam as reações adversas provocadas
pelos “maus-tratos” dispensados a Portugal em Pathé-Baby, ponto
de partida para a definição de uma escrita à qual Mario recusa o
estatuto de reportagem, embora reivindique seu teor “realista”
e “objetivo”, o qual remete, uma vez mais, à ‘confusão’ entre uma
técnica literária que se apropria e transforma modos e usos da
reportagem e a reportagem jornalística tout court (caso se decida
acreditar momentaneamente na neutralidade descritiva desse
gênero). Poderia afirmar-se que Mario de Andrade identifica as
operações de seleção e associação como lugar de incidência de uma
subjetividade que organiza o material – os “dados da paisagem”– e,
ao organizá-los, evidentemente, os modifica, imprimindo-lhes uma
tonalidade singular:

Sobre PB, do nosso companheiro A de A M, Mario de Andrade


escreveu no S Paulo Jornal a 20 de corrente:
194 | Miriam V. Gárate

“Uma consequência do valor é despertar atitudes decididas. Pró ou


contra. Já encontrei muita gente indignada com este livro e mesmo
um lusíada estrilando ferocíssimo por causa da impertinência
leviana e serelepe com que A de Alcântara Machado maltratara
Portugal.

Esta frase resume o que de mais importante encontro na


personalidade demonstrada em Pathé-Baby de A de A. M,
“maltratou” Portugal. Não descreveu nem revelou. Estas viagens
apesar de todo o realismo delas estão no pólo oposto ao da
reportagem. É impossível conhecer Londres ou Lucca por Pathé-
Baby. O autor só empregou o pouco de realidade objetiva delas
que concordava com a realidade subjetiva, o sentimento que estas
cidades provocaram nele [...] Pathé-Baby é fortemente objetivo. A
de A M. vê os países pelo sentimento que despertam nele, porém,
esse estado transitório de sentimento é descrito pelos dados que
a paisagem e a vida ambiente lhe concedem. Um realismo cru,
sintético apesar de redundante” (Andrade [1926] apud Machado,
1982, p. 55).98

O artigo avança alternando ressalvas e elogios. Por um


lado, celebra-se “a simultaneidade bem composta de sensações e
idéias”; por outro, objeta-se a perseverança “na arte-cocktail, arte-
caviar, propositiva, que tem sido a mais abundante manifestação

98
Vaivém análogo com respeito aos polos objetivo/subjetivo e suas implicações para
atribuir ou negar a Pathé-Baby a condição de reportagem lê-se em carta enviada
por Ronald de Carvalho a Alcântara Machado, transcrita pelo Jornal do Comércio
em nota de 30/3/1926 (p. 54): “A propósito de seu livro PB, o nosso companheiro
de trabalho AM recebeu de R de C, sem dúvida uma das figuras mais empolgantes
da moderna literatura brasileira, a seguinte carta: ‘Rio, 26 de março. Meu caro
Alcântara Machado. Você criou a poesia do cartaz no Brasil. Pathé-Baby está acima
do cinema. Transcende o movimento do cinema, porque tem volume aéreo, tem
desenvolvimento lírico, tem todos os tons puros que exprimem os dados do real. O
Oswald não tem razão. Pathé-Baby não é reportagem [...] Reportagem é descrição.
Pathé-Baby é um estilo. Você construiu-o na sensação direta com a difícil inteligência
da sensação direta. Reportagem é transcrição [...] Pathé-Baby é uma concentração
de entusiasmos, com sabor de vida, sem literatura”. Repare-se na reiteração do
elogio expresso na nota de O Jornal, já mencionada, a propósito de Brás, Bexiga
e Barra Funda: “Direto, simples, claro, o Sr. Alcântara Machado é uma exceção
entre nossos prosadores. Escreve sem literatura”. Tanto a oposição reportagem/
não reportagem como a oposição com literatura/sem literatura revelam a função
conjuntural dessas categorias, que pouco significam ‘intrinsecamente’, e buscam
antes de tudo dar nome a um novo estilo.
Documentários de papel/Crônicas de celuloide | 195

do modernismo por enquanto” (Ibid., p. 56). Todavia, o saldo geral


é positivo e augura-se ao jovem estreante um futuro promissor:
“Pathé-Baby é livro excelente cheio da vitalidade dominadora do seu
autor. Soco seco, musculoso de modernismo na pasmaceira literária
nossa. Baby que principia com essa musculatura, é muito provável
que dê um Benedito. Talvez Dempsey” (Ibid., p.56).
Um terceiro artigo, que integra os Estudos de Alceu Amoroso
Lima (1927, p. 52) compilado na edição fac-similar, torna a insistir
na tópica da viagem irreverente e caricatural: “Paul Morand renovou
o golpe de vista cosmopolita [...] fez a caricatura do mundo [...] Foi
também uma caricatura da Europa, que nos traçou o Sr. Alcântara
Machado, neste livro de viagem, delicioso de vida, de golpe de vista
rápido e incisivo”. Apesar de “encantador sob muitos aspectos”, o
texto suscita certa reserva por parte de Amoroso Lima em função da
adequação ou inadequação do tratamento irônico-modernolátrico
no tocante à matéria focada e, sobretudo, da generalização irrestrita
desse procedimento. Assim, ao passo que “a cena do Arco do Triunfo”,
escrita “em pontas” e com “estilete”, lhe parece “perfeita”, os trechos
sobre Roma lhe afiguram “chatos” e “irritantes”:

Querendo reagir contra os “baedeckeristas”, que viajam à Itália nas


folhas dos guias, com admirações tarifadas e paradas em frente aos
quadros, de acordo com o maior ou menor número de asteriscos
[...] caiu por vezes o Sr. Alcântara Machado no extremo oposto,
carregando na sua caricatura e cansando pela monotonia da
irreverência [...] Essa preocupação de ser bem moderno, mesmo em
pleno prestígio florentino ou romano, é que levou o Sr. Alcântara
Machado a ansiar pelo cubismo de Fernand Léger ao sair dos Uffizi
e a escrever uma página absolutamente chata e mesmo irritante
sobre Roma. Mas quando pega um tema moderno (por vezes,
mesmo um antigo, como na excelente página sobre Assis), então,
sim, é de primeira ordem (Lima, [1927] apud Machado, 1982 p. 53).

Quase três décadas depois, Brito Broca faz um balanço que


ressitua a irreverência de Alcântara Machado no horizonte geral
do Modernismo brasileiro, adjudicando-lhe um duplo papel: o da
mudança na maneira de encarar a Europa e o da guinada nacionalista,
expressa no título do artigo de Broca (“Nosso céu tem mais estrelas”,
A Gazeta, São Paulo, 11/2/1958), que retoma a moralidade/epílogo
de Pathé-Baby – o qual recupera, por sua vez, Gonçalves Dias e sua
196 | Miriam V. Gárate

“Canção do exílio”. Embora extensa, a passagem em que Brito Broca


aborda a questão merece ser citada:

[...] esse livro [Pathé-Baby] desempenhou um importante papel no


Modernismo, não só do ponto de vista literário – por ter constituído
a primeira demonstração da prosa modernista – como do ponto de
vista da vida literária – por ter marcado uma posição nova em nossa
maneira de encarar a Europa. Antes, escritores brasileiros, quando
iam à Europa, escreviam quase somente sobre Paris e era sempre
em tom de panegírico que o faziam. A de A M não se preocupou
apenas com Paris, visitou outros países, outras capitais e cidades,
e em lugar de se mostrar deslumbrado, de exaltá-las, procurou
ao contrário incidir nos aspectos caricaturais e desfavoráveis.
Diríamos que ele foi realista, enquanto em nossa literatura de
viagem vinha prevalecendo, até então, um verdadeiro romantismo,
se não houvesse, por vezes, nesse realismo acentuado “parti-
pris”. Os viajantes anteriores, com poucas exceções, como Nabuco
e Nestor Vitor, ficavam na superfície, em sua visão iluminada e
decorativa da Europa; Antônio de Alcântara Machado não saiu
também da superfície [...] mas apresentou o reverso da medalha.

É preciso considerar que, em 1925, quando A de A Machado partiu


para a Europa, não se haviam definido ainda, com precisão, as
correntes nacionalistas do Modernismo. Se já lançara Oswald
de Andrade o grito da “Poesia Pau-Brasil”, essa poesia com um
sentido propriamente primitivista, preconizando um “estado de
inocência”, a volta a Pero Vaz Caminha, inspirava-se diretamente
nos movimentos de vanguarda europeus. Oswald confessava
mesmo que fora na Place Clichy, umbigo do mundo, que descobrira
a nova estética. Depois de 1922 dera-se uma verdadeira debandada
de modernistas para Paris. E todos procuravam utilizar-se,
mais ou menos, da experiência européia, nas pesquisas em que
se empenhavam. Até essa época, portanto, ninguém julgava
necessário desdenhar a Europa para ser modernista. Daí o espírito
essencialmente revolucionário dos “filmes” de A de A M [...]

Ao publicar o livro em 1926 [...] Antônio de Alcântara Machado


reproduziu na última página, como moral da fábula, estes versos
da “Canção do exílio”, de Gonçalves Dias. Curioso paradoxo: o
realismo revolucionário do modernismo iria justificar-se pelo
lirismo de um dos nossos mais típicos românticos. Pois é preciso
reconhecer: desde o romantismo nunca mais nos tínhamos sentido
exilados na Europa e o “1900” foi justamente o período em que
Documentários de papel/Crônicas de celuloide | 197

vivíamos melhor, lá do que aqui e em que o regresso ao Brasil é


que constituía, na realidade, um exílio para muita gente. Antônio
de Alcântara Machado revertera a nostalgia de Gonçalves Dias
numa atitude polêmica, iniciando a ofensiva contra a Europa, que
iria desencadear-se de 1926 em diante, e teria sua vanguarda na
contracorrente verde-amarela (Broca, [1958] apud Machado,1982,
pp. 57-58).

Os desdobramentos dessa atitude polêmica na produção
escrita do próprio Alcântara Machado permanecem em grande
medida incógnitos, em razão de sua morte precoce. Mas a guinada
verde-amarela, tanto a do movimento homônimo como a mais vasta
do Modernismo, tinha sido deflagrada. E Pathé-Baby foi uma peça-
chave nessa reorientação.
Contemporaneamente à publicação de Pathé-Baby, outro
brasileiro, que residia havia anos no “umbigo do mundo” e mantinha
laços estreitos com a primeira vanguarda cinematográfica francesa,
empreendia sua própria viagem. Uma viagem de proporções em
aparência mais modestas; uma incursão ao dia de uma metrópole
que ‘é nenhuma’, embora valha por todas. Talvez, porque desde cedo
sua existência transcorreu de ‘exílio’ em ‘exílio’, foi relativamente
imune aos gorjeios de cá e de lá, mas ao mesmo tempo sensível às
margens de lá, de cá e de além.

***

1926. Alberto Cavalcanti (1897-1982) realiza Rien que les
heures. Trata-se, na opinião de John Grierson (1898-1972), de
99

99
Alberto de Almeida Cavalcanti nasce no Rio de Janeiro em 1897 e é enviado ainda
muito jovem a Genebra pelo pai, para estudar Direito. Abandona rapidamente o
curso e reorienta seus estudos para a Arquitetura, da qual também desiste. Muda-se
a Paris aos 18 anos. A partir de 1922, Cavalcanti participa de diversas experiências
associadas à primeira vanguarda cinematográfica francesa: assistente de Marcel
L’Herbier em Résurrection (1922) e Feu Mathias Pascal (1924-1925); roteirista
de L’inondation (1923) de Louis Delluc e montador de Voyage au Congo (1925-
1926) de Marc Allégret; diretor de Le train sans yeux (1922), com roteiro baseado
no romance homônimo de Delluc, de 1919. Todavia, a estreia desse filme somente
ocorrerá em 1929, motivo pelo qual Rien que les heures costuma ser considerada
sua primeira realização (Valentinetti, 1995, pp. 12-21). Em 1927, Cavalcanti se
desloca à Inglaterra e passa a trabalhar com um dos principais nomes da escola de
198 | Miriam V. Gárate

um dos primeiros documentários urbanos que ensaiaram uma


composição sinfônica.100 Como se assinalou no início deste capítulo,
registros fílmicos urbanos não constituem um dado inédito.
Nasceram contemporaneamente às primeiras vistas captadas pelo
cinematógrafo e medraram nas Atualidades cinematográficas e
primeiros Cinejornais. Mas Rien que les heures – precedido por esse
hino do imaginário moderno que é Manhatta (1921), de Strand e
Sheeler, seguido de imediato por Berlim, a sinfonia de uma grande
cidade (1927), de Walter Ruttmann, e um pouco mais tarde por O
homem da câmera (1929), de Dziga Vertov – é produto de outra
conjuntura no que tange ao desenvolvimento do cinema como
espetáculo, como produção cultural, como linguagem artística. Se
as vistas e as atualidades do período inicial assumem para si uma
mescla de incumbências informativo-propagandísticas e formativo-
pedagógicas solidárias ao ideário positivista modernizador;
se podem ser consideradas sucedâneos fílmicos desse artefato
chamado notícia, os novos documentários se inserem no contexto das
vanguardas. O resgate da imagem ‘direta’ ou da ‘técnica documental’,
nesse caso, associa-se intimamente à busca de novas formas e gêneros
capazes de se contrapor a um modelo já hegemônico em meados dos
anos 1920, a sua lógica de produção, ao star system e aos grandes
estúdios dos quais é inseparável, a sua estética e a sua moral, àquilo
que se consolidou como sua manifestação dominante: o cinema

documentário clássico, John Grierson, permanecendo na Film United GPO por sete
anos, envolvido em diversos projetos e exercendo múltiplas funções. Em 1940, se
transfere para a Ealing Studios. Em 1949, retorna ao Brasil e participa da organização
da Companhia Cinematográfica Vera Cruz, tornando-se produtor geral da empresa.
Em 1951, abandona a Vera Cruz, depois de ter produzido Caiçara (1950) e Terra é
sempre terra (1951), deixando inconcluso um terceiro filme: Ângela. Em 1952, dirige
Simão, o caolho (1952) para a Cinematográfica Maristela, de São Paulo, adquirida
pouco depois por Cavalcanti e um grupo de investidores. A antiga Maristela muda
seu nome para Kino. Como diretor-geral da Kino, Cavalcanti realiza O canto do mar
(1953) – refilmagem de En Rade (1927) – e Mulher de verdade (1954). O fracasso
desses filmes e a impossibilidade de honrar as prestações decorrentes da aquisição
da Kino conduzem Cavalcanti uma vez mais a Europa, onde permanece por quase três
décadas participando de produções em diversos países. Morre em Paris em 1982.
100
O uso extensivo do termo adotado por Ruttmann no título de seu filme para referir-
se a um conjunto de produções de características a princípio análogas aparece
cedo nos escritos de John Grierson (por volta de 1932-1934). Mais recentemente,
Vicente Sánchez-Biosca (2007) adota a denominação “fantasia urbana” para tratar
do mesmo conjunto.
Documentários de papel/Crônicas de celuloide | 199

narrativo de ficção, herdeiro, em grande medida, do melodrama


e do folhetim. Daí o repúdio às matrizes teatrais e romanescas, o
abandono total ou parcial dos atores profissionais, da mise-en-scène,
a fragmentação ou a deflação do relato, a supressão dos letreiros
– inteiramente ausentes ou reduzidos a sua mínima expressão,
embora lhes seja atribuída com frequência uma função capital: ser
porta-vozes explícitos de um programa. Se o marco instituído em
livros como Cinematógrafo ou Pathé-Baby se orientava para um fora
de campo alertando o leitor sobre seus vínculos com o espetáculo
cinematográfico e sobre a adoção do cinema como modelo, o marco,
aqui, visa instaurar, em primeira instância, um campo próprio, pois
quer definir os atributos de uma linguagem ‘especificamente’ fílmica
(especificidade tensionada de início pela indexicalidade inerente às
imagens captadas pelo operador, evidentemente).
Cabe transcrever os seis primeiros intertítulos de Rien que les
heures, responsáveis pela formulação de uma espécie de manifesto
que será retomado no segmento final do filme (intertítulos 26 e 27):

1- Este filme não conta uma história. É tão somente uma sucessão
de impressões sobre o tempo que passa e não pretende ser a síntese
de nenhuma cidade.

2- Todas as cidades seriam iguais se seus monumentos não as


distinguissem. (Planos da Torre Eiffel, da Porta de Brandemburgo
etc., seguidos da imagem de um rombo).
3- Não à vida mundana e elegante. (Plano de mulheres vestidas
à moda e com luxo, reunindo-se numa escadaria. A imagem se
congela para logo metamorfosear-se num cartaz publicitário
violentamente rasgado por uma mão. Plano de pequenos pedaços
de papel, resultado da destruição do cartaz. Parecem folhas – de
árvores – esparsas no chão).

4- (Mas) A vida cotidiana dos humildes, dos marginados. (Um carro,


por sobreimpressão, se metamorfoseia numa carroça a tração
animal, em cuja frente vai um homem. A carroça está repleta de
grandes sacos. Provavelmente se trata de um catador de lixo.
Novamente, imagem de um rombo).

5- Os pintores de toda classe veem a cidade. (Primeiríssimo plano de


um olho. Sucessão de pinturas – sobre algumas delas, a câmera faz
um travelling – ao qual se segue um fotograma com as assinaturas
200 | Miriam V. Gárate

de Matisse, Signac, Chagall, Bonnard, Vouillard, Utrillo, Graz


etc., realizadores das pinturas projetadas. Plano com múltiplas
bandeiras em miniatura de diversos países. Plano (trucado) de
olhos multiplicados ocupando a totalidade da tela).

6- Mas somente uma sucessão de imagens pode restituir-nos a


vida. (Primeiro plano de um relógio marcando 24 horas/13horas;
depois 12/1 hora. Plano do sol despontando entre nuvens. Plano
em plongée de um prédio, numa ruazinha estreita. Um vulto negro
caminha pela rua).101

Nem relação (religação), nem síntese. Nem a ilusão


de continuidade e transparência promovida pela montagem
clássica, que escamoteia seus cortes subordinando-os às linhas
de força de um relato conducente a um fim, nem a copresença e a
condensação estáticas das artes visuais (notoriamente se trata de
una caracterização falsa e redutora, mas proponho aceitá-la por um
momento). Nem história, nem pintura. Tão somente uma sucessão
de impressões, uma série de imagens em movimento que visam
restituir a vida no que ela tem de instável, dinâmica, heteróclita,
uma sucessão de imagens tendentes a formalizar o transcorrer das
horas em uma grande cidade que poderia ser ‘qualquer uma’ no
referente a seus polos extremos e ao contraponto instaurado: a vida
elegante e mundana, a dos marginalizados (déclassés no original),
matéria privilegiada, ainda que não única, da visão do cineasta. O
espaço-tempo da urbe e os sujeitos que aí circulam se tornam alvo
da objetiva e objeto de montagem. A tarefa assumida explicita sua
não completude:

26- Podemos fixar um ponto no espaço, imobilizar um momento no


tempo… (Plano de um globo terráqueo girando rapidamente. Plano
próximo focando o setor correspondente a França/Paris, que se
funde com uma imagem do Arco do Triunfo, ao que se segue um
primeiro plano do relógio e depois de uma mãe com sua filha.

101
No filme de Dziga Vertov (1929), aos créditos inicias se segue esta advertência:
“Atenção, espectadores: esta é uma experiência em comunicação cinemática
realizada a partir de eventos reais. Sem o auxílio de intertítulos. Sem o auxílio de
uma história. Sem o auxílio do teatro. Este trabalho experimental quer criar uma
verdadeira linguagem cinematográfica internacional baseada na absoluta separação
com respeito à linguagem teatral e literária”.
Documentários de papel/Crônicas de celuloide | 201

Novamente o globo terráqueo, agora enfocando Pequim, seguido


de fotos e cartões postais orientais. Plano de um casal, correndo.
No fundo, pinturas).

27- Mas o espaço e o tempo, ambos, fogem à nossa possessão. (Globo


girando vertiginosamente, imagens cartográficas balançando:
Pequim, Paris, o continente americano. Primeiro plano das agulhas
de um relógio em projeção acelerada. A tela/campo do relógio
se fragmenta em subcampos, contendo imagens/cenas diversas.
Novamente, as agulhas do relógio. Fusão de planos de carros, ruas,
prédios. Imagem do rombo inicial. FIM).

Como a mente-câmera e o regime de percepções do


qual são solidárias, essas fitas se furtam, programaticamente, às
representações totalizantes. Apresentam fragmentos fugidios,
instáveis, não integráveis numa direção unívoca. Mas isso significa
que se renunciou a traçar itinerários? Suprimiu-se realmente toda
feição narrativa? Não é possível conceber Rien que les heures e
várias outras sinfonias ou fantasias cinematográficas do período
como correlatos cinematográficos da crônica? Antes de esboçar uma
resposta, faz-se necessário um breve desvio.

***

Durante as primeiras décadas posteriores à irrupção do


cinematógrafo, enquanto o cinema se consolida como espetáculo,
consolida seus procedimentos e pleiteia um lugar no espaço da
‘cultura’, a transposição de um repertório literário legitimado ou
conhecido é moeda corrente. Também são moeda corrente, como
pôde ser constatado no segundo capítulo, as críticas endereçadas
a essa estratégia, em especial à adaptação de peças teatrais. Mas, à
medida que a linguagem fílmica elabora um conjunto de recursos e
uma sintaxe ‘independentes’ (e a prescindência de letreiros é um dos
sintomas dessa autonomia), a crítica e a teoria nascentes consagram-
se à tarefa de definir seu lugar específico. Entretanto, desde as
primeiras reflexões, a constituição do próprio campo vê-se obrigada
a recorrer a seu exterior: arte nova, ‘outra’, mas ao mesmo tempo
de síntese, soma das precedentes, sétima arte, segundo a expressão
202 | Miriam V. Gárate

já canônica de Ricciotto Canudo, um dos intelectuais pioneiros em


matéria de teorização sobre o discurso cinematográfico.102
Em meados dos anos 1920 e no âmbito das experiências
vanguardistas aqui referidas, a busca do lugar próprio continuará
sendo nomeada (invocada) sob o signo do alheio e se manifestará
como fuga em direção a figurações associadas à esfera do musical
(o cinema como sinfonia de imagens), do coreográfico (o cinema
como dança de luzes e sombras), do poético (o cinema como
lírica visual). As referências musicais e coreográficas expressam a
prerrogativa concedida à montagem como operação estritamente
cinematográfica: tempo e ritmo/extensão dos planos concatenados
são responsáveis pelo caráter da composição, por suas mudanças de
intensidade, seu pathos, pelas sensações suscitadas. A bandeira de
uma lírica visual será alçada tanto para reivindicar a poeticidade/
fotogenia das imagens diretas, em oposição à estética do estúdio,
como para distender ou subverter as imposições do relato clássico,
graças ao uso de diversos procedimentos (contraponto ou fusão
de planos não convencionais, metáforas, montagens de atrações
etc.). Ora, nesses documentários mais ou menos sinfônicos, mais
ou menos líricos, o transcurso de um dia instaura uma espécie de
moldura; em todos eles, comparece a sequência amanhecer/manhã/
meio-dia/tarde/noite. Ainda que supostamente se tenha renunciado
a ‘contar uma história’, a mera existência dessa matriz institui um
vetor que orienta o andamento e a expressão dos múltiplos planos
orquestrados em cada uma das partes. À (re)união do heterogêneo
operada pelo cronista em cada um de seus textos, e depois impressa
ao conjunto de crônicas arquitetadas como uma sessão de cinema/
livro, responde (e corresponde) a estruturação desses filmes como
percurso por rien que les heures/nada mais que-apenas as horas, no
espaço urbano. A retórica do passeio pelo dia na cidade renarrativiza,
portanto, essas realizações, nas quais também se pode ler uma
sobreescrita ou reinscrição da notícia e do jornal.

102
Em seus primeiros escritos, Canudo concebe o cinema como um “teatro
cinematográfico”, para depois suplantar essa noção pela de “arte plástica em
movimento” e, posteriormente, pela de fusão das artes do tempo e do espaço. Essa
reflexão, que se desenvolve ao longo da década de 1910, culmina no célebre Manifeste
de sept arts, de 1921, reelaboração de ideias esboçadas em alguns textos anteriores.
Documentários de papel/Crônicas de celuloide | 203

***

Dentre as personagens que atravessam Rien que les heures,


que seguem trilhas paralelas, tangenciam-se ou entrecruzam-se,
destacam-se três figuras femininas. Nos três casos, trata-se de uma
mise-en-scène que visa integrar-se às tomadas diretas e ao mesmo
tempo integrá-las entre si, conferindo alguma unidade ao que anos
depois Cavalcanti (1953, p. 70) qualificaria como uma espécie
de documentário romanesco. A expressão híbrida remete a uma
duplicidade estrutural. A rejeição da história expressa no letreiro se
modaliza (se matiza) em virtude da presença dessas figuras que, ao
sulcar as horas em várias direções, urdem uma trama entrecortada,
aberta, múltipla, composta por vários fios, mas não por isso ausente.
A primeira delas é a velha maltrapilha vista do alto
ao principiar Rien que les heures, uma figura que reaparece
intermitentemente, mas com regularidade – vulto cansado,
familiar e distante, anônimo apesar da paulatina aproximação que
organiza as tomadas, já que, ainda no primeiríssimo plano que a
mostra ao fim do filme, seu rosto permanecerá oculto, velado pelos
cabelos em desordem. A segunda é a jovem (La fille) que surge ao
“Amanhecer”, quando um letreiro anuncia os “Primeiros trabalhos”
e que, ao se aproximar – tanto da câmera como do operário que
atravessa a calçada carregando uma cesta –, irá se revelar como
prostituta. Rejeitada (um close capta de perto seu ar de frustração
e de abatimento), passará a integrar mais tarde o contingente das
“pessoas (que) se esforçam para esquecer o desemprego”, como reza
outro intertítulo. A terceira mulher é uma vendedora de jornais que
irrompe ao anoitecer (Le soir), quando, como sustenta o letreiro que
precede sua primeira aparição, “o trabalho se interrompe: agora é o
tempo do descanso e da diversão”. Não para ela, que precisamente
inicia sua jornada e sai para vender periódicos pelas avenidas da
cidade: France soir, L’intransigeant, La presse. A sequência mostra
um travelling en arrière que acompanha o avanço da jovem mulher
num ritmo cada vez mais frenético e cede lugar a uma montagem
alternada: os cabeçalhos e manchetes dos jornais, em primeiro
plano, giram como um carrossel; a jornaleira avança apregoando as
notícias do dia.
204 | Miriam V. Gárate

Figura 8 (a velha) Figura 9 (a jovem)

Figura 10 (a vendedora de jornais)

O jogo instaurado pela presença dessas peças-chave da rua


– jogo entendido tanto em sua acepção mecânica quanto lúdica,
concebido como ‘desajuste’ introduzido pela representação e como
simulação livre, mas elucidativa – exigiria um exame demorado
que excede o propósito deste estudo. Assinalo tão somente que
as figuras da mendiga, da prostituta e da jornaleira implicam per
se um descompasso em relação à ordem temporal pautada pelo
ideologema do trabalho, bem como embaralham a organização
do espaço na bipartição privado/público. Não é impossível que
a introdução e o privilégio dessas peças situadas nas bordas, nas
margens, mas de modo algum fora do campo da dinâmica societária,
sejam parcialmente responsáveis pelo “insucesso” que Grierson
(1932-1924 [1995], p. 145) atribui ao filme de Cavalcanti no que
diz respeito à “sensação de marcha necessária ao gênero sinfonia”,
efeito que sim teria sido plenamente atingido no filme de Ruttmann.
Para além da “insuficiência no domínio da arte da montagem” (Ibid.,
Documentários de papel/Crônicas de celuloide | 205

p. 145) e da distância evidente entre uma produção modestíssima


como a de Cavalcanti e a megaprodução de Berlim, a sinfonia de uma
grande cidade, seria necessário ensaiar outras razões para enxergar
as diferenças. Olhada de um certo ângulo, a “marcha” ruttmanniana,
de indiscutível destreza formal e técnica, talvez seja mais orgânica
e mais solidária em relação ao tempo-espaço instituído pela
modernidade compulsória que o descompassado Rien que les heures;
talvez o desajuste constitua um sintoma (legível com diferentes
graus e intensidades cá, lá e além), não necessariamente um defeito.
Faz-se necessário voltar, para concluir, à sequência final do
filme de Cavalcanti protagonizada pela jornaleira e à reinscrição
deslocada de uma zona do periódico que essa sequência supõe.
Terminada a tarefa, a jovem empreende o regresso. Envereda,
como a maior parte das imagens do filme, para o subúrbio. O plano
a mostra caminhando um pouco distraída e cansada, quando de
repente um homem lhe fecha a passagem: o roubo, a resistência
(um close da boca aberta convida a escutar seu grito inaudível), o
assassinato; tudo aparece concatenado numa sucessão rápida. A
jornaleira jaz numa rua estreita. Ironicamente, dois policiais que
fazem a ronda habitual lançam um olhar desatento sobre a área,
não enxergam nada de estranho e partem em suas bicicletas. O
breve drama a que o espectador acaba de assistir torna-se matéria
(literalmente, corpo) de uma notícia a ser estampada no jornal do dia
prestes a ser publicado – e que desta vez a mulher não apregoará.
Essa tematização de um segmento inerente à imprensa moderna – a
seção de policiais – também promove um jogo, um deslocamento de
ângulo e de foco: reescreve a notícia a partir de um lugar que mescla
a informação, o viés narrativo (a tradição folhetinesca), o olhar do
operador. Talvez não seja casual que precisamente nos anos 1920 o
documentário dê testemunho de um progressivo desenvolvimento
da consciência autoral, indiciado na crescente preocupação, antes
inexistente, por consignar o nome do cineasta nos créditos. Embora
não se equipare à câmera stylo reivindicada pela nouvelle vague dos
anos 1960, a primeira nouvelle vague documentaire (Jeancolas, 1989,
p. 20), sabe-se longe da linguagem supostamente neutra, impessoal
e não marcada do Cinejornal, sabe estar realizando um exercício de
estilo com a matéria que lhe provê a cidade e que o operador revê.
Rien que les heures: uma crônica de celuloide?
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City Girl (A garota da cidade). 1930. Direção: Friedich Wilhem


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Der Letze Mann (O último Homem e/ou A última gargalhada).


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El compadre Mendoza. 1933. Direção: Fernando de Fuentes.

El automóvil gris. 1919. Direção: Enrique Rosas, Joaquín Coss


y Juan Canals de Homs.

En Rade. 1927. Direção: Alberto Cavalcanti.

Faustus.1926. Direção: Friedich Wilhem Murnau.

Feu Mathias Pascal. 1924-1925. Direção: Marcel L´Herbier

Four Devils (Quatro demônios). 1928. Direção: Friedich


Wilhem Murnau.

Fantômas (I a V). 1913-1914. Direção, Louis Feuillade.

I tre moschettier. 1909. Direção: Mario Caserini.

Hay que casar al príncipe. 1931. Direção: Lewis Seiler.

Her Husband´s Trade Mark. 1922. Direção: Sam Wood

L´Assassinat Du duc de Guise. 1908.  Direção : André Calmettes


e Charles Le Bargy.
224 | Miriam V. Gárate

Les Trois Mousquetaires. 1912. Direção: André


Calmettes e Henri Pouctal.

Le train sans yeux. 1922. Direção: Alberto Cavalcanti.

Les trois Mousquetaires (12 episódios). 1921. Direção: Henri


Diamant-Berger.

Le roi de l´aire. 1913. Direção: Ferdinand Zecca e René


Leprince.

L´inondation. 1923. Direção: Louis Delluc.

L´arrivée d´un train à La Ciotat. 1895. Querelle enfantine


(1896); Le 6e bataillon de chaseurs alpins (1897). Vistas do catálogo
dos Irmãos Lumières

Manhatta. 1921. Direção: Paul Strand e Charles Sheeler.

Mulher de Verdade. 1954. Direção: Alberto Cavalcanti.

Nick Carter, Le roi de détectives. 1908. Direção: Victorin-


Hypolyte Jasset.

O Canto do Mar. 1953. Direção: Alberto Cavalcanti.

O crime da mala. 1928. Direção: Francisco Madrigano.

O crime de Paula Matos. 1913. Direção: Paulino Botelho.

O homem da câmera. 1929. Direção: Dziga Vertov.

Résurrection. 1922. Direção: Marcel L´Herbier

Potemkin (O couraçado Potemkin). 1925. Direção: Serguei


Eisenstein.

Rien que les heures. 1926. Direção: Alberto Cavalcanti.

Santa. 1931. Direção: Fernando de Fuentes.

Santiago. 1933. Direção: Armando Rojas Castro


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São Paulo, a sinfonia da metrópole. 1929. Direção: Rodolfo


Lustig e Adalberto Kemeny,

La gran noticia. 1923. Direção: Carlos Noriega Hope.

Simão o caolho. 1952. Direção: Alberto Cavalcanti.

Sunrise. A Song of Two Humans (Aurora). 1927. Direção:


Friedich Wilhem Murnau.

Tabu, a story of the south seas (Tabu). 1931. Direção: Friedich


Wilhem Murnau em colaboração com Robert Flaherty.

Terra é sempre terra. 1951. Direção: Tom Pyne.

The birth of a nation (O nascimento de uma nação). 1915.


Direção: David Griffith.

The Four horsemen of the Apocalypse (Os Quatro Cavaleiros


do Apocalipse). 1921. Direção: Rex Ingram

The sheik (O xeque/Paixão de bárbaro). 1921. Direção:


George Meldorf. Produção: Players-Lasky.

The son of the sheik (O filho do xeque). 1926. Direção: George


Fitzmaurice. Produção: United Artist.

The Three Musketeers. 1921. Direção: Fred Niblo.

Vámonos con Pancho Villa! 1935. Direção: Fernando de


Fuentes.

Voyage au Congo. 1925-1926. Direção: Marc Allégret.


Coleção Stoner

O trabalho universitário talvez poucas vezes tenha sido tão bem


retratado quanto no “campus novel” Stoner, de John Williams;
nele, somos apresentados à trajetória de vida do protagonista
que dá título à obra, desde suas origens humildes até o final de
sua jornada de muitos anos como um acadêmico de literatura,
passando pelas vicissitudes do cotidiano institucional, da do-
cência e da pesquisa. Buscamos homenagear esse personagem
no título de nossa coleção devotada a contemplar o trabalho
acadêmico realizado com integridade e excelência - a tese, a dis-
sertação, a coletânea de ensaios - em suas variadas dimensões.

Títulos publicados

O samba é fogo. O povo e a força do Samba de Véio da Ilha do


Massangano
Márcia Nóbrega

Meninas más, mulheres nuas. As máquinas literárias de Adelai-


de Carraro e Cassandra Rios
Pedro Amaral

Entre a letra e a tela. Literatura, imprensa e cinema na América


Latina (1896-1932)
Miriam V. Gárate
Formato 16 x 23
Tipologia: Cambria
Papel: Pólen Soft 80 g/m2 (miolo)
Supremo 250 g/m2 (capa)
Impresso pela gráfica J. Sholna

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