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Coordenação Editorial
Rafael Gutiérrez, María Elvira Díaz-Benítez,
Antonio Marcos Pereira
Capa
Martín Rodríguez
Imagem de Capa
“A vendedora de jornais”. Fotograma do filme Rien que les heures. 1926.
Direção de Alberto Cavalcanti.
Revisão
Bruno Goularte
Diagramação
Papéis Selvagens
Conselho Editorial
Alberto Giordano (UNR-Argentina) | Ana Cecilia Olmos (USP)
Elena Palmero González (UFRJ) | Gustavo Silveira Ribeiro (UFMG)
Jaime Arocha (UNAL-Colômbia) | Jeffrey Cedeño (PUJ-Bogotá)
Juan Pablo Villalobos (Escritor-México) | Luiz Fernando Dias Duarte (MN/UFRJ)
Maria Filomena Gregori (Unicamp) | Mônica Menezes (UFBA)
[2017]
Papéis Selvagens
papeisselvagens@gmail.com
papeisselvagens.com
Sumário
Introdução 7
Bibliografia 207
Introdução
1
O termo vista é empregado na atualidade para denominar e catalogar as primeiras
fitas, caracterizadas inicialmente pela fixidez da câmera - que delega o efeito de
movimento na matéria filmada - e pelo plano único.
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2
O vínculo indissociável entre a expansão da imprensa periódica – jornais diários,
revistas, magazines etc.– e uma cultura do lazer e da distração à qual se destina
um número crescente de produtos no contexto da modernidade tem sido objeto
de numerosos trabalhos. Destaco aqui, pela abordagem apurada do mesmo espaço-
tempo que constitui o ponto de partida de Marlyse Meyer (a França da Monarquia
de julho) e pelo foco em um gênero que guarda relação tanto com a crônica quanto
com o cinema dos primeiros tempos, o estudo de Margaret Cohen intitulado “A
literatura panorâmica e a invenção dos gêneros cotidianos” (2004). Para uma
visão introdutória e ampla do processo na sociedade norte-americana, Cf. o livro
de Neal Gabler Vida, o filme: como o entretenimento conquistou a realidade (1999),
esboço abrangente tanto do ponto de vista cronológico (do início do século XIX
até o presente) quanto das mídias (da imprensa escrita ao cinema, à televisão e à
internet).
18 | Miriam V. Gárate
3
Em todas as citações e referências, o ano expresso entre colchetes remete à data de
publicação originária dos textos, seguido da indicação do ano da edição consultada
para o presente trabalho, opção que visa restituir e destacar a cronologia dos
mesmos.
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***
Primeiras viagens
4
A crítica especializada referente ao processo de profissionalização do escritor e
à modernização da imprensa na América Hispânica é abundantíssima. Destaco os
estudos de Aníbal González (1983), de Susana Rotker (1992) e muito especialmente
o de Julio Ramos (2008, primeira edição 1989), do qual foram tomadas as noções de
sobreescrita da notícia, retórica da viagem e renarrativização do fragmento como
traços estruturantes da crônica moderna. Em relação ao Brasil, Cinematógrafo das
letras (1987), de Flora Süssekind, continua sendo uma referência fundamental.
5
A primeira projeção pública e paga do cinematógrafo fabricado pelos irmãos
Lumière, considerada consensualmente como a data de nascimento do espetáculo
cinematográfico, ocorreu no Salon Indien, em Paris, em 28 de dezembro de 1895.
A chegada do cinematógrafo às principais cidades da América Latina dá-se quase
contemporaneamente: no México, em 6 de agosto de 1896, há uma primeira exibição
privada para Porfirio Díaz e sua família; em 14 de agosto, começam as exibições
públicas. No Rio de Janeiro, a primeira sessão pública data de 8 de julho de 1896.
Em Buenos Aires, em 18 de julho de 1896, se realiza a primeira projeção no Teatro
Odeón. Data do mesmo ano a primeira programação cinematográfica de Santiago de
Chile, ocorrida no Teatro Unión Central de Santiago. No caso de Lima, o vitascópio
Edison chega antes que o cinematógrafo Lumière em virtude da rota do Pacífico,
22 | Miriam V. Gárate
7
Salvo indicação em contrário, as traduções do espanhol são todas de minha autoria.
8
No primeiro capítulo de Disolvencias. Literatura, cine y radio en México 1900-1950
(2005), Ángel Miquel faz referência à Exposición Imperial, empresa que popularizou
e difundiu espetáculos de lanterna mágica no México entre 1895 e 1900, destacando
que a maior parte das vistas fixas eram de locais emblemáticos de diversas partes
do mundo, fato que o crítico vincula acertadamente a uma vocação de registro
geográfico – o que estimulou, por sua vez, a percepção dessa experiência como
viagem, matriz organizadora da crônica de Urbina. De acordo com Miquel (2005, p.
17): “A associação do espetáculo com as viagens tinha claro parentesco com a que
procuravam outras fotografias que, graças aos progressos das artes gráficas a partir
dos anos setenta do século XIX, puderam imprimir-se sobre papel para dar origem,
entre outras, à produção industrial de cartões-postais e de cromos sobre caixas de
fósforos, bem como às primeiras etapas do fotojornalismo. As vistas estereoscópicas
e as primeiras fitas que retrataram diferentes países pertenciam a outros ramos da
mesma família. E parece evidente que os numerosos livros de viajantes aparecidos
durante a segunda metade do XIX, muitas vezes acompanhados de gravuras que
ilustravam suas descrições, prepararam a cena em que irromperam essas imagens”.
Essa trama de relações deve ser lembrada sempre, a fim de evitar construir um
marco de interpretação estanque, no qual vínculos dinâmicos e interações de
24 | Miriam V. Gárate
Mas, por muito traquinas e vivaz que seja, a fantasia não consegue
dar existência completa a suas visões, porque a todas elas falta o
signo característico da vida: o movimento. Não voam as pombas
da Praça de São Marcos, nem vibra a água na fonte monumental
de Viena, nem chega a atravessar a gôndola a Ponte dos Suspiros;
as ruas estão cheias de uma multidão imóvel; as procissões se
detêm; os rostos não olham com curiosidade como olham os que
vão retratar-se diante da câmera do fotógrafo; o mar não balança
os buques no canal de Kiev, o ar não sacode os estandartes; não
se ouve um grito, não se vira uma cabeça, não se agita uma mão.
Tudo o que se olha é verdadeiro e exato e bonito, mas está morto; é
um instante retido e petrificado. A câmera obscura o arrebatou ao
tempo e ao espaço e o estampou para sempre numa delgada placa
de cristal.
Fez com uma festa, com um desfile, com uma multidão o que o
naturalista faz com as borboletas: vai ao campo, as caça, as atravessa
com um alfinete e, com as asas abertas, as prende às folhas de
sua coleção. A menina curiosa viaja bem na exposição imperial;
mas necessita fazer evocações, fingir lances, resgatar memórias
para animar sua excursão. Convêm, às vezes, esse silêncio e essa
imobilidade com os lugares que ela visita: é preciso ficar mudo e
meditar no cemitério de Pisa, nas catacumbas de Roma e na rua dos
sepulcros em Pompeia. Mas, numa praça em Paris, numa fábrica
em Chicago, num passeio em Londres, desejaria a fantasia, a moça
exigente e visionária, escutar um pouco de ruído e ver outro pouco
de movimento (Ibid., p. 54).
mão dupla correm o risco de ser substituídos pela questão, errônea e estéril, das
precedências ou influências unidirecionais.
9
Emprego aspas duplas quando se trata de citações de terceiros retomadas
literalmente no corpo do trabalho e aspas simples para indicar usos figurados de
determinadas expressões ou eventuais ressalvas.
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10
A parceria efetiva ou potencial dos aparelhos de projeção de imagens e o fonógrafo
é um leitmotiv que comparece em numerosos textos, como se poderá comprovar
mais adiante.
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11
A unanimidade dessas impressões iniciais (bem como a eventual circulação
dos próprios escritos aqui comentados) pode ser constatada ao se confrontar
a crônica de Urbina com os que talvez sejam os primeiros registros da imprensa
sobre as projeções feitas no Salon Indien de Paris. Refiro-me às notas publicadas
em Le Radical, (“L’illusion de la vie réelle”) e em La Poste (“La mort cesserá d’être
absolue”) em 30/12/1895, em ambos os casos sem assinatura. A primeira delas
começa da seguinte forma: “Uma nova invenção, que é certamente uma das mais
curiosas de nossa época, e que será seguramente fértil, foi apresentada ontem à
noite, no número 14 do Boulevard de Capucines, diante de um público de sábios,
de professores e de fotógrafos. Trata-se da reprodução, por projeção, de cenas
vividas e fotografadas através de séries de tomadas instantâneas. Seja qual for a
cena assim tomada, seja qual for o número de personagens assim flagrados em suas
ações cotidianas, os revemos em tamanho natural, com as cores, a perspectiva, o
céu distante, as casas, as ruas, com toda a ilusão da vida real” (Banda; Moure orgs.,
[1895] 2008, p. 39, tradução minha). Quanto à segunda, se inicia desta maneira:
“Os senhores Lumière, pai e filhos, de Lyon, convidaram ontem à imprensa para
a inauguração de um espetáculo realmente estranho e novo. Eles instalaram seu
engenhoso aparelho no elegante subsolo do Grand Café, boulevard de Capucines.
Afigurem-se os senhores uma tela tão grande quanto possam imaginar, colocada no
fundo da sala. Essa tela é visível para a multidão. Sobre ela aparece uma projeção
fotográfica. Até aí nada de novo. Mas, de repente, a imagem, de tamanho natural ou
reduzida conforme a dimensão da cena, anima-se e ganha vida. É a porta de uma
fábrica que se abre, deixando sair um mar de trabalhadores e trabalhadoras de
bicicleta, cachorros que correm, carros. Isso tudo se agita e se expande. É a vida, é o
movimento flagrado ao vivo” (Ibid., p. 41, tradução minha).
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12
Expectativa análoga é reportada por Andrés González Estevez (2014) ao se
referir ao artigo “El cinematógrafo”, publicado na edição de número 7 da revista
montevideana Los Debates em 1896. Nele o autor afirma: “Desta última curiosidade
científica de finais de século [...] o que mais surpreende [...] são os progressos que
possibilita e que desde já podemos vislumbrar. Com efeito, se ao cinematógrafo
atual se acrescentasse um cilindro fonográfico que fizesse coincidir os sons com
a vida real que nos é mostrada e se, por último, se conseguisse obter fotografias
a cor, ter-se-ia um quadro tão animado e perfeito da vida que poderíamos ter em
casa os sucessos do mundo como se os estivéssemos presenciando” (apud González
Estevez, 2014, p. 11).
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***
13
Para uma abordagem abrangente dessas transformações, Cf. O primeiro cinema:
espetáculo, narração, domesticação (1995) de Flavia Cesarino Costa.
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Há muitos vadios por aqui: mas nenhum é tão vadio como esse
que nasceu rico, foi criado com mimo, cresceu na ociosidade,
passou dez anos a cursar uma faculdade de direito, herdou
duas centenas de apólices, e só tem na vida um trabalho: o de ir
receber periodicamente os juros fartos e fáceis desse capital. É um
preguiçoso que sai da cama ao meio-dia, almoça às duas da tarde,
namora e passeia até as cinco [...] E de quando em quando, em
conversa, queixa-se da escassez de tempo (Ibid., p. 198).
***
14
Sobre a instituição do hábito de se ir ao cinema no Rio de Janeiro desse período e
sobre o papel desempenhado pelas crônicas de Figueiredo Pimentel nesse contexto,
Cf. o segundo capítulo da tese de doutorado de Danielle Crepaldi Carvalho (2014,
pp. 77-100), desenvolvida sob minha orientação.
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15
Sobre esse conjunto de questões, Cf. especialmente, “Vivir de sueños”, el cine mudo
en México de 1896 a 1920, de Aurelio de los Reyes (1996), e “Documentales de las
revoluciones de México: 1911-1916”, de Ángel Miquel (2012).
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16
Outras práticas de codificação/decodificação integram esse universo de relações
tensas, porém intensas e fluidas, entre o visual, o verbal oral e o verbal escrito
que caracteriza o período. Nesse sentido, vale a pena transcrever uma passagem
da Historia del cine boliviano, de Alfonso Gumuncio Dargon, pois ela atesta, por
um lado, a prematura e ampla difusão do cinema de atrações, das ‘unidades’ que o
compõem e sua estabilidade até meados da década de 1910. De fato, a crônica de
López Velarde refere, no substancial, o mesmo padrão de programação citado por
Gumuncio Dargon, como o leitor poderá comprovar logo em seguida. Por outro lado,
a citação mostra o papel da imprensa não apenas como veículo de propaganda, mas
de decodificação antecipada do espetáculo: “Em 29 de setembro de 1905 é publicado
o primeiro programa do Biógrafo Paris na íntegra, num jornal boliviano, que incluía
na primeira parte ‘A tragédia instrutiva em oito quadros, representada mais de cem
noites seguidas nos teatros de Europa e de América’ denominada Romance de amor.
Convém mencionar os subtítulos dessas oito partes: 1) Seduzida, 2) Do trabalho ao
prazer, 3) Abandonada, 4) Morrendo de fome, 5) Carta aos pais, 6) Terrível expiação,
7) O hospital e 8) Perdão dos pais. Todo o argumento é dado aí, antecipadamente,
e supomos que fazia rolar muitas lágrimas. Mas como remédio para as lágrimas,
depois de um intervalo musical com o Gramofone Columbia e a ópera Aída, de Verdi,
pelo célebre Enrique Caruso, vinha a apresentação de vistas cômicas, entre elas, O
gato guloso, Um bom laxante, O estudante, Um rival de Santos Dummont e Ladrões de
ninhos. Todos eles filmes franceses. Quanto à segunda parte do programa, o jornal
destacava “o bonito drama histórico mexicano em sete quadros”, intitulado Vingança
índia ou índios Cowboys. Aqui também os diferentes quadros deixam supor todo o
argumento: 1) Índio espião castigado, 2) Saída da diligência, 3) Assalto à diligência,
4) O cachorro mensageiro, 5) Os raptores perseguidos, 6) Em poder dos índios e 7)
Liberação dos prisioneiros. Quantas milhares de fitas de cowboys inspiraram-se em
esquemas que parecem colados desta fita da primeiríssima história do cinema?”
(Gumuncio Dargon, 1983, p. 29).
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Não seria justo que a moça que veste sua primeira saia comprida,
que suporta o assédio do primeiro conquistador e que já sabe
esgrimir seu olhar como uma lança, ficasse sem sua porção do
espetáculo. Para ela é a fita espessa que se inicia no bosque espesso,
onde uma rústica rapariga tropeça uma tarde com um moço bem-
apessoado e milionário que lhe diz coisas amáveis e a leva ao país
da ilusão, a teatros suntuosos, a catedrais onde o mármore aninha
em esculturas semelhantes a fábulas, a bailes regionais em que a
luz banha as sedas... mas o moço se entedia logo, a pobre pombinha
chora, desenganada e contrita volta ao bosque paterno numa noite
inclemente e recebe a notícia de que sua mãe morreu de dor devido
17
Cabe lembrar que 1913 é o ano de lançamento de Fantômas, série de cinco filmes
dirigidos por Feuillade e produzidos pela Gaummont, baseados nos volumosos
exemplares publicados mensalmente por Pierre Souvestre e Marcel Allain a partir
de 1911, cujas edições teriam atingido uma tiragem de 600.000 exemplares na
França e sido traduzidas em vinte línguas, segundo Sadoul (1983, p. 167). O projeto
de filmar Fantômas inspirava-se em sucessos anteriores, como o seriado Nick
Carter, le roi de détectives (1908), dirigido por Victorin-Hypolyte Jasset e baseado,
por sua vez, em publicação homônima norte-americana de 1886, que, traduzida e
republicada na França, teve enorme sucesso no início do século XX. O México teria
sua própria série policial de grande repercussão em 1919: os doze episódios do
filme El automóvil gris, dirigidos por Enrique Rosas, Joaquín Coss e Juan Canals de
Homs e baseados numa série de delitos cometidos na capital mexicana durante
1915. As relações entre cinema, público (especialmente o oriundo das camadas
populares) e comportamento serão objeto de análise no terceiro capítulo.
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18
Cito, porém, antecipadamente, uma passagem do prefácio de Oswald de Andrade
que testemunha esse deslocamento do critério de valor a ser examinado mais
adiante. Sustenta Oswald: “Vc [Alcântara Machado] apossou-se sem espanto
temperatura ocasional cada gente cada país. Por todo seu livro concordância amável
realmente Europa gostosa ridícula. Pathé-Baby é reportagem. Como mudam os
tempos diria Marquez Maricá pensando João do Rio. De fato da tolice amável esse
seu malogrado amigo à segurança seu estilo seu modo acertar vão diversos séculos.
Brasil país milagres acrescentaria Marquez ignorando grande literatura nossa época
é reportagem” (Andrade, [1926] 1983, p. 13, itálicos meus).
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19
Baseando-se em informações constantes do trabalho de João Carlos Rodrigues
(João do Rio: catálogo bibliográfico. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura.
Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural, Divisão de Editoração,
1994), Danielle Crepaldi Carvalho (2014, p. 157) sustenta que “Cinematógrafo compila
um conjunto de crônicas que o escritor publicara nos jornais cariocas A Notícia e
Gazeta de Notícias entre 1904 e 1909, em séries cronísticas ou de modo avulso, com
os pseudônimos de “João do Rio” ou “Joe”. Apenas oito crônicas, de um total de 45 e de
um curto posfácio, são oriundas da sessão homônima e, ainda assim, de partes dela”.
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Uma fita, outra fita, mais outra... Não nos agrada a primeira?
Passemos à segunda. Não nos serve a segunda? Para diante então!
Há fitas cômicas, há fitas sérias, há melancólicas, picarescas,
fúnebres, alegres – algumas preparadas por atores notáveis para
dar a reprodução idealizada de qualquer fato, outras tomadas
nervosamente pelo operador, à passagem do fato. Umas curtas,
outras longas… Com pouco tens a agregação de vários fatos, a
história ao vivo, a vida da cidade numa sessão de cinematógrafo [...]
A crônica evolui para a cinematografia. Era reflexão e comentário, o
reverso desse sinistro animal de gênero indefinido a que chamam:
o artigo de fundo. Passou a desenho e a caricatura. Ultimamente
era fotografia retocada mas sem vida. Com o delírio apressado de
todos nós, é agora cinematográfica – um cinematógrafo das letras, o
romance da vida do operador no labirinto dos fatos, da vida alheia
e da fantasia – mas romance em que o operador é personagem
secundário arrastado na torrente dos acontecimentos (Rio, [1909]
2009, pp. 5-6).20
20
Transcrevo o epílogo que dá continuidade a essa encenação encerrando a sessão
de Cinematógrafo: “Ao leitor: E tu leste, e tu viste tantas fitas... Se gostaste de alguma,
fica sabendo que foram todas apanhadas ao natural e que mais não são senão os fatos
de um ano, as idéias de um ano, os comentários de um ano – o de 1908, apanhados
por um aparelho fantasista e que nem sempre apanhou o bom para poder sorrir à
vontade e que nunca chegou a muito mau para não fazer chorar. A sabedoria está no
meio termo da emoção. Vale” (Ibid., p. 272).
21
Afirma Süssekind (1987, pp. 47-48): “é como se o cronista (João do Rio) assistisse,
com certo deslumbramento, à constituição de um novo horizonte técnico e tentasse
imaginar relações possíveis com ele. E, da mesma maneira que sonha, numa
crônica de 1910, com um futuro “jornal Eletro Rápido”, projeta essa imagem de um
“cinematógrafo das letras” como sinônimo de uma literatura que operasse como
os modernos aparelhos de produção e reprodução de imagens técnicas. Diante
50 | Miriam V. Gárate
dos novos maquinismos, a reação, meio no susto, numa primeira instância, é, pois,
de imitação. Não parece possível ainda a João do Rio reelaborar criticamente esse
influxo técnico. É possível somente uma espécie de flirt rápido com ele. Situação que
não seria, no entanto, exclusividade de Paulo Barreto (João do Rio) [...] Na verdade,
a maior parte dos autores da virada do século e dos anos 10-20 pareceu hesitar
diante do horizonte técnico em configuração. Sem chegar, no período, a estabelecer
em geral ligações mais perigosas, e com melhores resultados estéticos, com tais
artefatos modernos [...] Montagens e cortes passariam a invadir, de fato, a técnica
literária com a prosa modernista”.
22
Cito: “Cinematógrafo no crânio: com isso João do Rio parece representar o triunfo
de uma percepção distraída e fragmentária por parte de leitores e espectadores.
Os escritores-cronistas vão ao cinematógrafo | 51
24
Sobre os paradoxos que pautam a projeção cinematográfica examinada sob o
prisma das tensões continuidade-descontinuidade, presente-passado, percepção-
cognição no contexto da modernidade, Cf. o ensaio de Leo Charney, “Num instante:
o cinema e a filosofia da modernidade” (2004), em sintonia com as considerações de
Süssekind (1987) anteriormente citadas.
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25
Importa salientar que o realismo do espetáculo cinematográfico é indissociável do
processo de espetacularização da realidade, processo em andamento já em finais do
século XIX, que abarca outras manifestações culturais e da vida social do período.
Sobre o tema, Cf. o artigo de Vanessa Schwartz “O espectador cinematográfico antes
do aparato do cinema: o gosto do público pela realidade na Paris fim de século”
(2004).
54 | Miriam V. Gárate
26
A reflexão de Morin, nessa espécie de revezamento perspectivístico a partir da
qual se constitui, retoma de imediato a outra face da moeda. Embora neste capítulo
interesse privilegiar a vertente arcaísmo-ilusão-repetição-perpetuação, transcrevo
a continuação de seu ensaio, a fim de restituir o duplo movimento em jogo: “No
cinema, atualiza-se o encantamento arcaico do universo dos duplos, dos fantasmas
sobre a tela que nos possuem, nos envolvem, vivem em nós, por nós, nossa vida
não vivida, alimentando nossa vida vivida de sonhos, de desejos, de aspirações, de
normas; e todo esse arcaísmo ressuscita sob a ação totalmente moderna da técnica,
da indústria cinematográfica – e numa situação estética moderna. O que permanece
oculto, assim, é o essencial; vocês, nós, eu, sendo intensamente envolvidos,
possuídos, erotizados, exaltados, espantados, amando, sofrendo, gozando, odiando,
não deixamos de saber que estamos numa poltrona, contemplando um espetáculo
imaginário; vivemos o cinema num estado de dupla consciência. Ora, esse estado
de dupla consciência, mesmo se evidente, não é percebido, não é analisado, porque
o paradigma da disjunção nos proíbe conceber a unidade de duas consciências
antinômicas em um mesmo ser. O que se deve interrogar é precisamente esse
fenômeno surpreendente pelo qual a ilusão de realidade é inseparável da consciência
de que ela é realmente uma ilusão sem que essa consciência, no entanto, mate o
sentimento de realidade” (Ibid., pp. X-XII, tradução minha).
Os escritores-cronistas vão ao cinematógrafo | 55
Como não pensar no consolo que essa ilusão traz à dor causada
pela perda de um ser amado, retornado de novo para o mundo
por esse aparelho, ressuscitado, arrancado do esquecimento e da
morte, vivendo com a enérgica e eloquente vida do movimento e
da expressão. Sonho realizável para o homem importante que, em
vez de ter um álbum fotográfico, no qual as imagens empalidecem
27
Os termos “complexo de múmia”, “mumificação” e “embalsamamento” para
refletir sobre a fotografia e o cinema da perspectiva de um “aperfeiçoamento do
realismo plástico” foram cunhadas por André Bazin em seu clássico e iluminador
ensaio “Ontologia da imagem fotográfica”, de 1945, que certamente inspirou as
ideias desenvolvidas por Morin uma década mais tarde. Bazin (1983, p. 126) destaca
que, com o advento do cinema, “pela primeira vez, a imagem das coisas é também a
imagem da duração delas, como que uma múmia da mutação”.
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28
As notas publicadas em Le Radical (“L’illusion de la vie réelle”) e La Poste (“La
mort cesserá d´être absolue”), já comentadas, tinham expressado pouco antes
essa impressão comum aos primeiros espectadores. Na primeira delas, afirma-se:
“Já conseguíamos recolher e reproduzir a palavra; agora conseguimos recolher
e reproduzir a vida. Será possível, por exemplo, rever agindo os seres queridos
que perdemos há tempo” (Banda, Moure, [1895] 2008, p. 39, tradução minha). A
segunda, de forma análoga, sustenta: “Quando esses aparelhos sejam acessíveis ao
público; quando todo mundo possa fotografar os seres queridos, não imóveis, mas
com seus movimentos, suas ações, seus gestos familiares, com as palavras na ponta
da língua, a morte deixará de ser absoluta” (Ibid., p. 41, tradução minha).
29
A noção de “cinema total” costuma ser associada às teorizações de cunho
vanguardista, nas quais serve geralmente para postular a ideia do cinema como
arte de síntese que reúne elementos plástico-picturais, rítmico-musicais, líricos
etc. Entretanto, a mesma expressão foi empregada para referir-se a um cinema do
futuro capaz de envolver (e iludir) todos os sentidos do espectador, propiciando a
experiência de uma realidade virtual indistinguível da ‘real’. O ficcionista e ensaísta
René Barjavel, autor de Cinéma total: essai sur les formes futures du cinéma (1944)
e André Bazin, em seu artigo “O mito do cinema total” (1958), entre outros, foram
responsáveis pela formulação dessa segunda vertente do conceito, à qual se faz
referência aqui. No plano das precoces experimentações efetivas tendentes à
concretização desse objetivo, cabe lembrar os óculos tridimensionais testados pelos
irmãos Lumière e as telas curvas, a cujo respeito a revista chilena Zig-Zag (“El cine
estereoscópico”) se refere nos seguintes termos: “À fita em preto e branco seguiu-
se a colorizada; à muda, a sonora, e a esta, a falante; agora trata-se de obter a fita
em relevo, acerca da qual proferiu uma conferência o Dr. Couchond, quem durante
longos anos se especializou na matéria [...] A primeira dificuldade para atingir uma
visão fotográfica idêntica à que os objetos da natureza produzem na vista humana
consiste em obter imagens em superfície curva, em vez de plana. Como conseguir
Os escritores-cronistas vão ao cinematógrafo | 57
isso? Poderíamos obtê-lo por meio da visão biocular, como a do estereoscópio [...]
Mas segundo o conferencista há outro meio infinitamente mais simples e prático
que o estereoscópico... e ele consiste em restituir à imagem plana o relevo que
perdeu ao ser impressa a fotografia. O Dr. Couchond, passando da teoria à prática,
fez o experimento diante do público [...] A tela do Dr. apresenta uma superfície curva
e, com efeito, essa superfície restitui à imagem fotográfica certo grau de relevo:
não atinge o estereoscópico, mas deixa de ser plana, possui dimensões e produz a
impressão de volume” ([1930] 2011, In: Bongers, Torrealva, Vergara, p. 196).
58 | Miriam V. Gárate
sobre o cinema
30
A expressão situação cinema foi proposta por Hugo Mauerhofer em 1949 para
se referir aos fatores copresentes na projeção de um filme que acarretam uma
mudança na consciência do espectador: isolamento do mundo exterior e de suas
fontes de estímulo, alteração das sensações de tempo e de espaço, passividade física.
64 | Miriam V. Gárate
31
Alfonso Reyes (1889-1959) e Martín Luis Guzmán (1887-1976) integram junto a
outros mexicanos como José Vasconcelos (1882-1959) e ao dominicano radicado no
México Pedro Henríquez Ureña (1884-1946), o grupo nucleado em torno do Ateneo
de la Juventud, associação cultural fundada em 1909 pela geração que sucedeu aos
Os escritores-críticos se debruçam sobre o cinema | 65
33
Expressão bem-humorada e perspicaz do misto de atração e reticência
experimentado pelos setores tradicionais diante do cinema é o artigo do uruguaio
Horacio Quiroga intitulado “Los intelectuales y el cine”, publicado em 1922 na
revista Atlántida. Cito o parágrafo inicial: “Os intelectuais são pessoas que via
de regra desprezam o cinema. Conhecem de memória, desde janeiro, o elenco e
o programa das companhias teatrais, de primeira e de sétima qualidade. Mas do
cinema não falam jamais; e se ouvem um pobre homem falar dele, sorriem com
desdém, sem desgrudar os lábios. Não é o caso de averiguar se, em matéria de
cinema, aplica-se aos intelectuais o conhecido aforismo de estética, segundo o qual
todos os wagnerianos assobiam sem cessar trechos das óperas de Verdi. Talvez o
intelectual frequente furtivamente os solitários cinemas de seu bairro; mas não
confessará jamais sua debilidade por um espetáculo do qual sua cozinheira gosta
tanto como ele, e o filho da cozinheira tanto como ambos juntos” (Quiroga, [1922]
1997, pp. 286-287). Essa tensão, ainda presente nos anos 1920, como atesta, entre
outros, o artigo de Quiroga, perpassa a crítica de Reyes e Guzmán, não obstante
prevaleça um olhar positivo.
Os escritores-críticos se debruçam sobre o cinema | 67
34
Os críticos recorrem à figura de Stevenson para estabelecer a distinção entre artes
do tempo (música, literatura), do espaço (pintura, escultura, dança, pantomima) e
mistas (teatro), incluindo o cinema na última categoria, mas diferenciando-o do
teatro por ser uma forma de “arte silenciosa”.
68 | Miriam V. Gárate
35
Possivelmente com alguma dose de exagero, mas também de verdade, Griffith
evocaria em um artigo de 1921, publicado na revista The Mentor, a condenação da
qual fora objeto ao propor pela primeira vez “um plano no qual somente se mostrava
o rosto da personagem”, reação adversa partilhada por produtores e espectadores,
segundo ele (Griffith, [1921]. In: Banda, Moure, 2011, pp. 38-41).
70 | Miriam V. Gárate
***
36
A ideia é reiterada com algumas modificações no capítulo intitulado “A câmera
criativa” de seu livro Teoria do cinema: natureza e evolução de uma nova arte
(Balázs, 1945, pp. 84-85): “É verdade que a câmera cinematográfica revelou
mundos novos, até então escondidos de nós: como a alma dos objetos, o ritmo das
multidões, a linguagem secreta das coisas mudas. Tudo isso proporcionou apenas
um novo conhecimento, novos temas, novos assuntos, novo material. Uma novidade
historicamente mais importante e decisiva foi o fato de que o cinema não mostrava
outras coisas, e sim as mesmas coisas, só que de forma diferente: no cinema,
a distância permanente da obra desaparece gradualmente da consciência do
espectador e, com isso, desaparece também aquela distância interior que, até agora,
fazia parte da experiência da arte. No cinema, a câmera carrega o espectador para
dentro mesmo do filme. Vemos tudo como se fosse do interior, e estamos rodeados
pelos personagens”.
Os escritores-críticos se debruçam sobre o cinema | 71
37
Tudo indica que Reyes e Guzmán se referem ao filme de Ferdinand Zecca e
René Leprince lançado em 1913 pela Pathé: Le roi de l’aire. Embora a maioria dos
empreendimentos de Zecca não se inscrevam em sentido estrito na vertente dos
chamados “films d’art”, convém lembrar a fundação da sociedade cinematográfica
homônima, em 1908, precisamente a pedido dos sócios administradores da Comédie
Française, empreendimento do qual coparticipa a Pathé Frères. A iniciativa reflete
o esforço por parte de alguns setores tradicionais por conceder legitimidade ao
cinema como manifestação cultural, mediante a adaptação de peças reconhecidas
e a participação de atores renomados. A aposta na colaboração vantajosa entre
o cinema (cujos argumentos e recursos pareciam ter entrado em um impasse)
e o teatro (afetado pela popularidade do primeiro) redundaria em fitas como
L’assassinat du duc de Guise, primeiro título lançado pela Film d’Art em finais
de 1908, com uma hora e meia de duração. Não obstante o ‘fracasso’ do projeto,
que se esgotaria em poucos anos, os films d’art são responsáveis pelas primeiras
‘superproduções’ cinematográficas.
Os escritores-críticos se debruçam sobre o cinema | 73
38
O excerto de uma entrevista concedida por Adela Carboné para El Mundo
Cinematográfico e transcrita por Reyes e Guzmán na coluna de 1/6/1916 a que já se
fez referência atesta essa discrepância, mas sob a ótica dos intérpretes de formação
teatral que incursionam no cinema e de suas dificuldades de adaptação ao novo
meio: “Os atores no cinema – Tomamos de El Mundo Cinematográfico as seguintes
palavras da atriz Adela Carboné, que trabalhou em “Flor de Arroyo”: “Nós, os atores
de comédia, ensaiamos muitos dias, e cada vez que se ensaia o papel, a situação
vai nos sugerindo infinitos detalhes e inúmeros procedimentos para a obtenção do
melhor resultado. Mas na cena muda ensaia-se no momento de executar [o filme].
E, além disso, há algo assustador: a redução do cenário, o chamado “campo”, que
não dá liberdade para se movimentar, que é motivo de preocupação constante e
tenaz [...]. É isso o que mais limita as faculdades do ator” (Reyes, Gusmán, [1916]
2003, p. 150). A proximidade da câmera é vista aqui como um obstáculo que tolhe
74 | Miriam V. Gárate
39
Refletindo sobre os fenômenos implicados na conformação do star system, Edgard
Morin (1989, pp. 83-88) se refere à “desteatralização” do desempenho dramático
nos seguintes termos: “é na medida em que o ator de cinema não é o ator teatral
que a estrela se torna possível [...] A arte ostentatória do ator é substituída pela
arte ostentatória da câmera e da montagem [...] O cinema destrói a ênfase (teatral),
ou seja, uma parte própria da técnica da representação. O cinema não se limita a
promover a ‘desteatralização’ da representação; tende também a atrofiar essa
representação. O ator de teatro, apesar de seu desempenho ser determinado
previamente durante os ensaios, fica mais ou menos entregue a si mesmo quando
está no palco. O ator de cinema é frequentemente dirigido em planos fragmentados;
ele segue as marcas de giz feitas pelo operador, usa a voz segundo as instruções
do engenheiro de som, imita a mímica do diretor. Essa disciplina automatiza [...]
Nessas condições peculiares de fragmentação e de automatização, o cinema pode
exigir atores de qualidade, capazes de imprimir uma identidade a seus personagens
mesmo privados do apoio da plateia e da energia proporcionada pela continuidade
da representação e pela unidade do papel. [...] A representação do ator de cinema se
baseia numa dialética particular. Pede-se aos atores: ‘seja natural’, e o natural torna-
se de certa forma a única técnica a ser ensinada”.
76 | Miriam V. Gárate
40
À época em que se publica o artigo que vem sendo examinado, a indústria
cinematográfica já havia lançado ao menos duas versões do romance de Dumas:
I tre moschettier (1909), filme italiano de Mario Caserini, e Les trois mousquetaires
(1912), dos franceses André Calmettes e Henri Pouctal. A nota de Fósforo, porém,
não alude a nenhuma delas, motivo pelo qual a evocação do folhetim deve ser
compreendida como signo de uma classe de textos e de sua suposta afinidade com
a tela. Transcorrida quase uma década, surgiriam duas novas versões do romance
no mesmo ano: Les trois mousquetaires (França, 1921), de Henri Diamant-Berger,
em 12 episódios, e The three musketeers (Estados Unidos, 1921), de Fred Niblo,
com o célebre Douglas Fairbanks. Na década de 1920, Reyes e Guzmán tinham
abandonado a crítica cinematográfica, mas a ordem de questões levantadas em seus
artigos continuava fazendo parte da agenda de discussões, como atestam as notas
publicadas na Argentina por ocasião desses lançamentos quase simultâneos, de
autoria de Narciso Robledal (“Los tres mosqueteros”, Caras y Caretas, 17/6/1922),
e de Horacio Quiroga (“Los seis mosqueteros”, Atlántida, 15/6/1922). Robledal
defende o seriado francês em nome da fidelidade deste à “realidade imaginativa”
fantasiada pelo leitor do romance e condena o filme norte-americano em virtude do
caráter estereotipado (entenda-se, decididamente hollywoodiano) do D’Artagnan
de Fairbanks. Quiroga, por sua vez, critica a “falta de poder evocativo” da versão
francesa e a perda de interesse dramático, em razão da multiplicação de incidentes
nímios, com o objetivo de prolongar a duração das fitas. Para além da valoração
divergente – e do amadurecimento do contraste cinema europeu/cinema norte-
americano, já consolidado nos anos de 1920 –, interessa sublinhar certo consenso
em torno da adaptabilidade/materialização (bem-sucedida ou não) do imaginário
romanesco por parte do cinema. Sobre essa questão, Cf. o livro de Gerardo Ferreira
e Andrés González Estévez (2014) acerca da crítica cinematográfica de Quiroga e
seu contexto, em especial as páginas 48 a 52.
78 | Miriam V. Gárate
41
Em uma crítica aos seriados italianos, publicada no jornal mexicano El Imparcial
de 10/5/1916, Jean Humblot reitera o desprezo pela intromissão de uma palavra
que gera “contos ilustrados” em vez de filmes, conforme sustentam Reyes e Guzmán
na nota acima citada. Desta vez, o alvo são as adaptações de D’Annunzio, quem,
aproveitando seu prestígio na esfera literária, ingressa precocemente no mercado
cinematográfico não só vendendo os direitos de suas obras, mas redigindo letreiros:
“Outro defeito [do filme] é o excesso e a má redação dos letreiros, nos quais sequer
aparece a pretensiosa frase d’annunziana, que se adapta tanto ao cinema como a
Cristo se adaptam um par de pistolas” (Humblot, [1916] 1997, p. 213).
Os escritores-críticos se debruçam sobre o cinema | 79
42
Para uma leitura do cinema em Klaxon, Cf. Stefano (2000). Para uma abordagem
comparativa entre Klaxon e a revista argentina de vanguarda Martín Fierro, Cf.
Gárate (2007).
Os escritores-críticos se debruçam sobre o cinema | 81
Mas eis que Maurice Tourner, grande criador de filmes cuja última
obra importante é The Blue Bird,43 anuncia a evolução do cinema: a
mímica, como a técnica, já desenvolveu fortemente o drama físico
de sobressaltos; agora pode se internar no drama lento e contido,
interior. O atleta começa por se exercitar em levantar pesos com
um único impulso; pouco a pouco aprende a levantá-los com
essa lentidão que arrebata o público. A proximidade do cinema
– impossível num cenário – permite obter recursos mímicos
inconcebíveis do mais mínimo pestanejar; e a alucinação objetiva
do cinema, que não se pode equiparar ao teatro, consegue produzir
relações sutilíssimas de sensibilidade entre uma fisionomia e um
caráter. A fotografia de uma fechadura, de duas mãos entrelaçadas
que escondem um objeto e de um braço que sai de uma cortina
poupam uma quantidade de explicações que a mímica teatral
necessita, da mesma forma que as necessita a denominada música
descritiva (Ibid., pp. 189-191).
43
Maurice Tourner (França, 1876-1961). Ilustrador, desenhista, ator, torna-se
diretor de cinema por volta de 1913. Desloca-se aos Estados Unidos inicialmente
para trabalhar a serviço da francesa Éclair, depois da World Pictures e mais tarde
torna-se produtor independente. Quando Reyes e Guzmán escrevem o artigo, é
considerado um dos melhores cineastas da época. Pai do também diretor Jacques
Tourner (França, 1904-1977), cuja carreira transcorreu principalmente em
Hollywood.
84 | Miriam V. Gárate
44
Duas crônicas de Urbina, intituladas respectivamente “La vuelta del cinematógrafo”
(El Mundo Ilustrado, 9/12/1906) e “Los ricos y los cinematógrafos” (El Imparcial,
22/10/1907), dão testemunho dessa separação infranqueável entre alta cultura e
cultura popular precocemente delineada pelo escritor e que ele manterá até o fim.
86 | Miriam V. Gárate
***
45
Luis Mario Schneider compilou esse conjunto de textos, não datados
individualmente, no livro que leva o título homônimo à coluna: La cinta de plata
(1986). As citações correspondem a essa edição.
46
Friedrich Wilhelm Murnau (Alemanha, 1888 - Estados Unidos, 1931) dispensa
apresentações. Assinale-se apenas que o impacto causado especialmente por
A última gargalhada (1924) e por Fausto (1926), ambos ainda produzidos na
Alemanha, o conduzirá aos Estados Unidos, onde rodará outras tantas obras-primas:
Sunrise (Aurora, 1927), Four devils (Quatro demônios, 1928), City girl (A garota da
cidade, 1930) e, em colaboração com Robert Flaherty, Tabu, a story of the south seas
(1931), filme experimental, misto de documentário e ficção, sonorizado embora não
falado.
88 | Miriam V. Gárate
47
Sujeito a variações de acordo com a cópia que se consulte e o idioma de destino,
o conteúdo do intertítulo é aproximadamente o seguinte: “Aqui a nossa história
deveria realmente terminar, mas na vida do nosso velho homem haveria pouco mais
a ver... além da morte. O autor teve pena dele e providenciou um epílogo totalmente
improvável. Uma Herança Sensacional. Lembrar-se-á que o Sr. A. G. Money, o famoso
milionário, morreu subitamente alguns dias atrás, enquanto lavava suas mãos no
lavatório do Atlantic Hotel. Seu testamento declara que a pessoa que o tiver nos
braços na hora de sua morte deve herdar sua fortuna. O sortudo beneficiado é o
atendente de toilette, que trabalha no térreo do Atlantic Hotel”.
Os escritores-críticos se debruçam sobre o cinema | 89
48
Cabe citar mais uma vez as palavras de Béla Balázs em virtude do nítido contraste
que instauram com a postura de Urbina (em que pese o uso de dicotomias análogas:
escrita/imagem, abstrato/concreto), bem como da sintonia expressa com respeito
à percepção de Torres Bodet: “A descoberta da imprensa tornou ilegível, pouco a
pouco, a face dos homens. Tanta coisa poderia ser depreendida do papel, que o
método de transmissão de significado pela expressão facial caiu em desuso [...] O
espírito visual transformou-se então num espírito legível, e a cultura visual numa
cultura de conceitos [...] no momento, uma nova descoberta, uma nova máquina,
trabalha no sentido de devolver, à atenção dos homens, uma cultura visual, e dar-
lhes novas faces. [...] O não falar não significa que não se tenha nada a dizer. Aqueles
que não falam podem estar transbordando de emoções que podem ser expressas
através de formas e imagens, gestos e feições. O homem da cultura visual usa
tais recursos não em substituição às palavras... Os gestos do homem visual não
são feitos para transmitir conceitos que possam ser expressos por palavras, mas
sim as experiências interiores, emoções não racionais que ficariam ainda sem
expressão quando tudo o que pudesse ser dito fosse dito... O que aparece na face
e na expressão facial é uma experiência espiritual visualizada imediatamente sem
a mediação de palavras [...] No momento, o cinema está prestes a abrir um novo
caminho para a nossa cultura. Milhões de pessoas frequentam os cinemas todas
as noites e unicamente através da visão vivenciam acontecimentos, personagens,
emoções, estados de espírito e até pensamentos, sem a necessidade de muitas
palavras... A humanidade está aprendendo a linguagem rica e colorida do gesto... O
homem tornou-se novamente visível” (Balázs, [1931] 1958, pp. 78-79).
Os escritores-críticos se debruçam sobre o cinema | 91
49
Recapitulando as reações suscitadas ao permanecer em um âmbito tão isolado
quanto possível de estímulos visuais e auditivos externos, condição sine qua non
da situação cinema para Mauerhofer ([1949] 1983, pp. 376-377), o autor refere-
se aos efeitos desencadeados por tal isolamento nos seguintes termos: “alteração
na sensação de tempo, no sentido de um retardamento do curso normal dos
acontecimentos”, cujos efeitos “podem ser agrupados sob o denominador comum:
a sensação de tédio (caracterizada pela falta de “algo acontecendo” e que denota
o vazio da pessoa entediada”); alteração da sensação de espaço, no sentido de “a
iluminação insuficiente tornar a forma dos objetos menos definida, dando à
imaginação maior liberdade de interpretar o mundo que nos cerca. Quanto menor
a capacidade do olho humano de distinguir com clareza a forma real dos objetos,
96 | Miriam V. Gárate
50
Em relação às discussões sobre censura cinematográfica a princípios do século XX
na América Latina, Cf. a documentação compilada no item “Censuras” de Archivos
iletrados. Escritos sobre cine en Chile: 1908-1940 (Bongers, Torrealva, Vergara, orgs.,
2011, pp. 55-99). Alguns dos textos serão examinados mais adiante.
100 | Miriam V. Gárate
51
Sobre as primeiras publicações especializadas na divulgação e na crítica de cinema
na Argentina, Cf. Broitman e Samela (2002).
O retorno do pleito mimético | 101
52
A contrapartida complementar da postura expressa por Quiroga pode ser lida em
uma crônica de Olavo Bilac, “Nova carta de ABC”, publicada no Correio Paulistano em
19/1/1908, que atenta precocemente para os efeitos cruzados na relação imagem-
letra, mas, acima de tudo, para o fator desejo, sobre o qual será preciso voltar, como
disparador de processos variados que podem orientar-se tanto em uma quanto
na outra direção, e em relação aos quais o suposto fator dificuldade não resulta
determinante. De fato, ao se valer de um exemplo que vai na contracorrente (o de
um garoto que aprende a ler a causa de sua paixão pelo cinema), Bilac desmente a
visão pedagógica que dará o tom nas reflexões sobre o tema: “A Gazeta de Notícias
conta hoje o caso de um menino de seis anos que, por um prodígio de atenção e de
vontade, aprendeu a ler por si mesmo, só com o estudo pertinaz e constante dos
programas do cinematógrafo. O pequeno sabia que tal ou qual fita tinha o título de
Casamento do Diabo ou de História de um avarento, ou de Apuros de um barbeiro.
O retorno do pleito mimético | 103
54
Em As estrelas: mito e sedução no cinema (1969), Edgard Morin mostra o vínculo
indissociável existente entre ascensão sociológica das classes populares no
século XX, aburguesamento do imaginário cinematográfico e desenvolvimento do
star system. Para o período focado neste trabalho, a primeira parte do livro é de
particular interesse (“A época das estrelas”, pp. 5-95). A questão será retomada no
próximo capítulo.
108 | Miriam V. Gárate
guardiões da ordem pública. Isso já não era tão bonito, mas era
sadio.
Mas eis que nem todos têm minha indiferença diante do pecado
cinematográfico. Fiquei sabendo, com horror, que por culpa de Lydia
Borelli há atualmente garotas que se desvelam tentando inventar
beijos novos para surpreender o namorado, e soube também que
Os mistérios de Nova Iorque incorreram no pecado de provocar
emulações dos malandros dos subúrbios. Isso me espantou.
55
Sob o título de Aguafuertes porteñas, Roberto Arlt deu a conhecer entre 1928 e
1933 uma série de crônicas no jornal El Mundo. Segundo reza a lenda, o periódico
duplicava a tiragem nos dias em que seus textos se publicavam. O título da coluna
remete ao caráter plástico-expressionista das personagens e dos episódios
representados. Os textos foram reunidos em livro em 1933 e a ele sucederam outras
compilações: Aguafuertes españolas (1936), Nuevas aguafuertes porteñas (1960) etc.
114 | Miriam V. Gárate
Eu – É provável.
Eu – É isso aí.
56
A água-forte “Me parezco a Greta Garbo” se desenvolve em torno à típica situação
de desentendimento entre a esposa fã de cinema e o marido indiferente. Transcrevo
algumas passagens: “Ela – Você tinha que ver a Greta Garbo hoje. Ela estava linda!
Eu, bocejando, exclamo – Ah é? Que bom! Ela – Por que você não vem uma noite
dessas vê-la atuar? Eu – A criatura me cansa [...]. Além disso, o cinema me aborrece.
Ela – Por quê? Eu– Me diga, você se interessa por meus tratados de engenharia?
[...] Minha mulher fecha a boca e continua a olhar-se no espelho. Estou convencido
de que neste momento ela procura algo em sua expressão que a convença de que é
116 | Miriam V. Gárate
Eu – Ótimo!
Eu – Acho que é uma pena não ter nascido hoje. A senhora tem
razão, mas qual o ganho de termos a razão, ou a verdade, quando
sejamos velhos? (Ibid., p. 82).
parecida a Greta Garbo [...] Eu – Para que você se olha tanto no espelho? Você está
linda [...] Minha mulher fecha a boca por outros dez minutos e, de repente... solta
o definitivo: – Você já viu que neste cantinho do queixo me pareço a Greta Garbo?
É uma da madrugada! Ainda bem que a minha mulher decidiu cismar com Greta
Garbo” (Arlt, [1932] 1997, pp. 86-88).
Quanto a “Mamá, quiero ser artista”, a crônica apresenta o diálogo mantido
entre Arlt e uma senhora que o convida a sua casa para que testemunhe os dotes
atorais da filha: “Você chega na casa de uma dessas moças e aos quinze minutos
começa a ladainha. A mãe – Por que você não declama, menina? A menina (que não
é nenhuma menina) – Mas mãe... O visitante – Declame, senhorita... Deixe ver se
lembro... (todo visitante, mesmo que seja quitandeiro, lembra de algum verso, nem
que seja o que se inicia com ‘Salve! Lindo pendão da esperança’.) A mãe – Ela vai para
Jólibud. O visitante (cá entre nós, o visitante é muito burro) – Então isso quer dizer
que ela vai ser artista? A mãe – Menina, por que não faz para o senhor o papel de
Dolores del Río em “Las sombras blancas”? O visitante (semiapavorado, ao constatar
que o assunto é sério) – Não precisa. Basta olhar o rosto dela para perceber que vai
se tornar uma grande artista” (Arlt, [1930] 1997, pp. 56-7).
O retorno do pleito mimético | 117
57
Hay que casar al príncipe: filme de 1931 dirigido pelo finlandês Lewis Seiler,
protagonizado pelo ator mexicano José Mojica e pela atriz espanhola Conchita
Montenegro.
118 | Miriam V. Gárate
***
Quando se publicam as águas-fortes acima comentadas,58o
bovarismo juvenil associado às camadas médias e populares não
constitui um fenômeno inédito: é um leitmotiv consolidado do qual se
podem encontrar registros prévios em diversas crônicas e artigos de
outros intelectuais, bem como desdobramentos na ficção narrativa.
Em suas manifestações mais brandas e superficiais, ele comparece
como adoção da moda e das maneiras propostas pelo complexo
cinema clássico-star system: roupas, corte de cabelo, acessórios,
maquiagem, modo de gesticular, de fumar, de beijar o namorado
(identificado por um instante com um Ramón Novarro, um Rodolfo
Valentino ou um Adolphe Menjou).59 Em sua vertente extrema, o
fenômeno se manifesta não só como desejo de levar uma vida análoga
à do filme, mas de transformar-se ipsis litteris em uma estrela – única
‘garantia’, em meio a um processo de crescente espetacularização da
vida, promovido pelo star system, de materializar a ilusão.
Embora o fenômeno se espalhe por todo o continente, a
proximidade do México com os sets californianos e seus estreitos
laços histórico-culturais com o vizinho do Norte tornam o país
particularmente sensível a esse tipo de empreitada. Dolores del
Río (1904-1983), invocada pela progenitora de “Mamá, quiero ser
artista”, é um ícone nesse sentido. Oriunda de uma abastada família
de fazendeiros de Durango, educada em instituições prestigiosas
do México, da Espanha e da França, dotada de um belo rosto e de
uma bela voz (o que lhe permitiu superar com sucesso a transição
do cinema mudo ao cinema falado), estreou em Hollywood em
1925, onde rodou mais de trinta filmes até 1940, tornando-se uma
celebridade internacional. Sua trajetória, extraordinária sob vários
pontos de vista, serviu de estímulo aos anseios de muitas jovens.
O crítico de cinema e ficcionista mexicano Carlos Noriega
Hope apresenta um testemunho relativamente precoce das
proporções alcançadas por essa nova expressão do bovarismo
em uma de suas colaborações para El Universal, assinada com
58
Os textos de Arlt citados neste capítulo foram publicados entre 1930 e 1933. O
conjunto de escritos posteriormente reunidos em Notas sobre el cinematógrafo
abarca o período 1928-1936.
59
Sobre algumas narrativas latino-americanas vinculadas a esse tema, Cf. Gárate
(2011).
120 | Miriam V. Gárate
O retorno do pleito mimético | 121
***
60
A disseminação desse tipo de concursos na América Latina, geralmente
promovidos pelas grandes produtoras norte-americanas a fim de consolidar sua
penetração no mercado, é um dado histórico relevante. Isabella Goulart (2012)
examina o “Concurso de Beleza Fotogênica Feminina e Varonil” realizado em 1926-
1927 pela Fox. O processo, que visava à seleção de um casal de atores para integrar
o casting do estúdio em Hollywood, teria envolvido três países: Chile, Argentina e
Brasil. De acordo com informações levantadas por Goulart: “Segundo Cinearte, ‘no
concurso da Fox, de toda a América do Sul, foi só o Brasil que enviou artistas [a
carioca Lia Torá e o paulista Olympio Guilherme]’. (Questionário. Cinearte, Rio de
Janeiro, v. 2, n. 83, p. 24, 28 set. 1927). A Cigarra afirmava que ‘os escolhidos foram
uma senhorita chilena e duas figuras brasileiras’. (Dois brasileiros na Cinelândia. A
Cigarra, São Paulo, ano XV, n. 306, 1ª quinzena ago. 1927). A trajetória de Olympio
Guilherme, candidato premiado que foi sucessivamente ator, repórter, cineasta e
escritor, será abordada no próximo capítulo.
124 | Miriam V. Gárate
Nas fases ruins, cheguei a viver duas vidas distintas: uma durante
o dia, no escritório e no ambiente normal de Buenos Aires, a outra,
de noite, que se prolonga até o amanhecer. Porque eu sonho, sonho
sempre (Quiroga, [1919] 1996, pp. 436-438).
61
O caráter conduzido e pré-fabricado dessa representação que compartilha alguns
traços com a situação onírica foi objeto de reflexão por parte de diversos teóricos
do cinema, entre os quais cabe destacar, além do trabalho pioneiro de Mauerhofer,
já mencionado, os ensaios de Jean-Louis Baudry (1970) e de Christian Metz (1979),
cujas abordagens se inserem em um contexto perpassado pela psicanálise lacaniana.
130 | Miriam V. Gárate
Mas isto é um sonho. Tintim por tintim, como acabo de contá-lo foi
sonhado... Não sobra outra coisa para o resto de meus dias que uma
profunda emoção e o pobre paliativo de remeter a Dolly o relato
– como farei logo em seguida – com esta dedicatória: “À senhora
Dorothy Phillips, rogando-lhe que perdoe as impertinências deste
sonho, muito doce para o autor” (Ibid., p. 463).
62
A produção do escritor Horacio Quiroga vinculada à arte cinematográfica
compreende textos críticos e ensaísticos publicados nas revistas El Hogar (duas notas
no ano de 1918 e várias colaborações de junho de 1927 a junho de 1928), Caras y
Caretas (colaborações regulares de dezembro de 1919 a julho de 1920), Atlântida
(publicações de maio a dezembro de 1922, ademais de uma entrevista ao próprio
Quiroga em dezembro de 1927) e no jornal La Nación (duas notas, entre maio e agosto
de 1931). Esse valioso material foi compilado por Gastón Gallo (1996) e recentemente
enriquecido por Ferreira e González Estévez (2014) com alguns escritos não recolhidos
naquele primeiro volume. Por outro lado, Quiroga redigiu um roteiro intitulado La
jangada (baseado em dois contos de sua autoria: “Una bofetada” e “Los mensú”) e
quatro narrativas de ficção: “Miss Dorothy Phillips, mi esposa” (1919), “El espectro”
(1921), “El puritano” (1926) e “El vampiro” (1927). O roteiro integra a compilação
realizada por Gallo; as narrativas fazem parte da edição de Todos los cuentos (1996).
O envolvimento do escritor com o cinema o levou a participar também da iniciativa
(frustrada) de criação de uma Academia Normal de Cinematografia em Buenos Aires.
Os “latinos” viajam a Hollywood | 131
63
Em relação a esse processo, o teórico sustenta: “Espetáculo plebeu em sua origem,
o cinema se tinha apropriado dos temas do folhetim popular e do melodrama,
nos quais se encontram em estado quase fantástico os arquétipos originais do
imaginário: acasos providenciais, a magia do duplo, aventuras extraordinárias
[...] O realismo, o psicologismo, o happy end e o humor revelam precisamente
a transformação burguesa desse imaginário. As projeções-identificações que
caracterizam a personalidade no estágio burguês tendem a aproximar o imaginário
e o real, que procuram alimentar-se um do outro. O imaginário burguês aproxima-
se do real ao multiplicar os sinais de verossimilhança e credibilidade. Atenua as
estruturas melodramáticas para substituí-las por intrigas que se esforçam por
ser plausíveis. Daí o que se chama de “realismo”. Os componentes do realismo já
não são o acaso, a “possessão” do herói por uma força oculta, mas as motivações
psicológicas. O mesmo movimento que aproxima o imaginário do real aproxima
o real do imaginário. Em outras palavras: a vida da alma se amplia, se enriquece,
se hipertrofia mesmo, no interior da individualidade burguesa. O amor, fenômeno
da alma que mistura de maneira mais íntima nossas projeções-identificações
imaginárias e nossa vida real, ganha mais importância. É dentro desse quadro que
132 | Miriam V. Gárate
– Olha para cá... Ela foi embora, entende? Você acredita que a perdeu.
Olhe para ela com melancolia... Mais! Isso não é melancolia!... Agora
sim está bom... Luz! E enquanto os focos inundam, até cegá-lo, o
rosto do infeliz, ele permanece olhando com ar de apaixonado uma
vassoura, diante do rosto aborrecido do diretor.
134 | Miriam V. Gárate
– E você gosta?
– Do quê?
Ela sorriu.
– Sinceramente? Não.
– E da literatura da Argentina?
– Grant, ponha ordem no filme que viveu com Dolly, tal como foi,
reforçando a cena do bar. O final já está pronto. Vou lhe sugerir
algumas outras cenas e, quando estiver pronto, enderece o roteiro
à Blue Bird. O pagamento? Sei lá, mas talvez lhe alcance para um
passeio por Buenos Aires com Dolly, a quem terá que devolver para
a próxima temporada de filmagens, porque O’Hara o mataria (Ibid.,
p. 463).
65
Aurelio de los Reyes (1993, p. 52) refere alguns indicadores dessa fase de
transição ao mencionar a realização de uma série de concursos ao longo de 1920
destinados a escolher a “melhor fita” (El Heraldo de México) ou a “atriz favorita”
do público (El Universal Ilustrado). No concernente às fitas, os três primeiros
lugares corresponderam ainda a melodramas italianos e o quarto, a um filme de
Mary Pickford; em relação às atrizes, o primeiro lugar coube a Francesca Bertini;
o segundo, a Mabel Norman; o terceiro, a Pearl White e o quarto, a Pina Menichelli.
Mas o provisório equilíbrio expresso nesses resultados, decorrentes em boa medida,
como assinala o historiador, do próprio vaivém dos lançamentos, já havia começado
a pender irreversivelmente em favor do cinema estadunidense e do complexo
sistema de produção, promoção e consumo a ele atrelado: “Califórnia testemunhara
a febre do ouro em meados do século XIX, no século XX testemunhava a ‘febre do
cinematógrafo’, propiciando a história da vertiginosa ascensão e queda social através
do cinema. Os mexicanos começaram a acreditar nessa quimera do ouro, nessa nova
terra prometida. Miragem alimentada pela imprensa, cujas páginas começaram a
difundir a moda norte-americana e impor o ideal de beleza emanado de Hollywood:
Você tem rosto de estrela? [...] qualquer jovem que ambicione ser uma Mary
Pickford pode determinar por meio desta fórmula se é das poucas mulheres cujas
feições possuem a medida fotográfica standard (de um “T”) (El Universal Ilustrado,
27/5/1920)” (Ibid., p. 56).
66
Embora em 1920 o studio system e o star system não tivessem atingido ainda seu
apogeu, os componentes fundamentais dessas estruturas já haviam sido delineados
e estavam em pleno desenvolvimento. A existência de uma complexa rede de
informação e de publicidade é um de seus aspectos constitutivos: “Na época em que
reinava o star system, isto é, até os anos 50, 500 jornalistas estavam estabelecidos
em Hollywood para alimentar o mundo com informações, fofocas e confidências
sobre as estrelas. Em seu livro America at the movies, Margaret Throp estima que
partiam diariamente de Hollywood 100 mil palavras, o que tornava a cidade a
terceira maior fonte de informações dos Estados Unidos, depois de Washington
e Nova York. Hoje em dia, as fotografias das estrelas continuam a aparecer em
primeiro plano em jornais e revistas. Sua vida privada é pública, sua vida pública
é publicitária, sua vida na tela é surreal, sua vida real é mítica” (Morin, 1989, p.
XV). Mais recentemente, na mesma direção, Goulart (2011, p. 12) afirma: “Segundo
David Marshall (2010), as estrelas são ‘produções do eu’ dependentes de uma
138 | Miriam V. Gárate
***
pp. 54-55) comenta: “Começou a falar-se com insistência dos mexicanos que
tentavam em Hollywood uma carreira cinematográfica. De Manuel Ojeda – que
levava vários anos por lá e interpretara papéis menores em várias fitas, além de ser
correspondente cinematográfico de El Universal –, disseram que havia sido nomeado
presidente da Peruvian Film Company de Lima, onde iria ‘a fim de produzir [...]
fotodramas sobre costumes e tradições locais’ (“Los cines-artistas mexicanos en el
extranjero”. El Universal, 20/06/1920). José Vasconcelos concedeu a Elena Sánchez
Valenzuela, atriz de Santa e de La llaga, a bolsa que solicitara para estudar cinema
em Hollywood; ela seria, ademais, correspondente de El Demócrata. William Duncan
afirmou em uma entrevista que tinha predileção pelos trabalhadores mexicanos
de cinema, ‘gente de fácil compreensão e de valor temerário’ [...] Sobressaíram-se
Fernando Elizondo e Beatriz Domínguez; desta última, se exibiu o seriado de dezoito
episódios em trinta e seis partes intitulado Las calaveras del terror (1920); ela
morreria em Hollywood, meses depois de dançar com Rodolfo Valentino o famoso
tango de The Four horsemen of the Apocalypse. Fernando Elizondo monopolizou
a atenção porque passou de humilde funcionário de ferrovia a ‘primeira estrela
mexicana no firmamento de Hollywood’. Foi ao México para contar sua história e
exibir suas fitas”. O panorama traçado pelo historiador interessa não somente por
caracterizar o contexto em que ocorre a visita de Noriega, mas a presença, nesse
horizonte histórico, de um fenômeno que será retomado em sua ficção: o dos
mexicanos em busca de sucesso e de celebridade em Hollywood.
140 | Miriam V. Gárate
69
Contrastando com a celebração eufórica dos sets como lugar de convergência de
espaços-tempos-ilusões heteróclitos, Krakauer apresenta, em um artigo publicado
no Frankfurter Zeitung em 28/1/1926, uma visão decididamente soturna da
cidade-estúdio da UFA, em Neubalsberg. A ênfase, desta vez, incide sobre o caráter
deformador e a arbitrariedade das relações instauradas entre os fragmentos
espaçotemporais reconstituídos e reinventados nos sets: “Em meio a Grunewald
há uma área cercada onde só é permitida a entrada depois de passar por vários
vigias. É um deserto no oásis. As naturalidades do lado de fora – árvores de madeira,
lagos com água, cidades que são habitáveis – perderam seu direito no interior de
suas fronteiras. O mundo certamente aí reaparece, sim, todo o macrocosmo surge
reunido nesta nova Arca de Noé: mas as coisas que aí se encontram não pertencem
à realidade. São cópias e bonecos que foram arrancados do tempo e estão
confusamente misturados. Permanecem estaticamente imóveis; pela frente cheios
de significação e, por trás, nulidades vazias. Um sonho ruim se aproxima de objetos
que foram extirpados do mundo material [...] Para poder desfilar no filme, o mundo
é decomposto em pedaços na cidade do cinema. Suas correlações são suspensas,
suas dimensões transformadas à vontade, suas potências mitológicas tornam-se
diversão. Assemelha-se a um brinquedo de criança que se monta numa caixa de
papelão. A demolição dos conteúdos do mundo é radical e, mesmo que não seja mais
que aparência, não é nada negligenciável. Os heróis da Antiguidade já fazem parte
dos livros de leitura escolares. Ruínas do universo estão armazenadas no galpão de
apetrechos, exemplares-testemunhos de todas as épocas, povos e estilos” (Krakauer,
[1926] 2009, pp. 303-304).
Os “latinos” viajam a Hollywood | 141
70
Desde o início da revolução, as relações entre México e Estados Unidos foram
marcadas por conflitos de diversa índole. Entre eles, cabe destacar os decorrentes do
não reconhecimento das autoridades mexicanas de turno por seu vizinho do Norte
e os vinculados a interesses econômicos, em especial os das empresas petroleiras
norte-americanas. Com o propósito de combater a contrapropaganda ianque,
o governo do general Obregón (1921) promove uma série de ações orientadas à
divulgação de uma imagem positiva do México no exterior (filmes documentais,
conferências etc.). Segundo Aurelio de los Reyes (1993, p. 177), o período coincide
com o crescimento do país como mercado consumidor de filmes estadunidenses
(o México se torna o mercado mais importante da América Latina, deslocando a
Argentina e o Brasil, no decorrer de 1921). Nesse cenário, ciente da força que lhe
conferem a paulatina pacificação interna e a abertura do mercado cinematográfico
142 | Miriam V. Gárate
– Sou a única atriz que veio a pé de Seattle a Los Angeles, com o único
objetivo de se dedicar ao cinema. Tinha dinheiro para a passagem,
mas preferi caminhar com o objetivo de chamar a atenção e de
***
71
O termo é usado como sinônimo de astro ou de personalidade muito conhecida,
mas evoca essa significação segunda a partir de uma condição primeira da imagem
cinematográfica: a condição ilusória, espectral, fantasmagórica.
72
A expressão remete a um novo tipo feminino que se populariza graças a
filmes, revistas e publicidades durante a década de 1920 e no qual se combinam
moda, consumo, atitudes de certa ordem: vestidos curtos, cabelo à la garçonne,
maquiagem evidente, gosto pelo jazz, consumo de cigarros e de álcool, desprezo
pelo comportamento considerado ‘decente’ na época etc. Geralmente, a imitação
desse modelo e um misto de admiração e desejo pelos astros masculinos de sucesso
andam de mãos dadas, fazendo das flappers o principal contingente dos fã-clubes e
as principais compradoras das fan magazines, dois fenômenos em desenvolvimento
no período.
146 | Miriam V. Gárate
73
O uso de palavras ou expressões inglesas destacadas em itálico é muito frequente
no relato e evidencia o esforço de construção de um imaginário linguístico acorde
com o universo representado.
74
“Uma dessas noites, sempre iguais, Hazel estava mais loquaz que de costume.
– Tenho tanta fome! – exclamava entre bocado e bocado. Fizeram-nos ficar
quatro horas no set, ao ar livre, dançando e berrando como se fôssemos doidas. É
um filme sobre a Revolução Francesa, e acho que aparece um senhor com um nome
extravagante: Ribespirre ou algo semelhante. O grave é que dançamos seminuas,
cobertas apenas com uns panos coloridos e um boné estranho... Ouvi que o diretor
nos chamava de sans-culottes... Que significa isso, Freddy?
Freddy, imutável, recordou todo seu Michelet e [...] deu vazão a sua
eloquência de uma forma agressiva para os clientes silenciosos, que começaram a
observá-lo com longos olhares bovinos.
– Dear... Não fales tanto: você parece Bill Sunday – interrompeu Hazel,
alarmada [...] Mas sua intuição feminina lhe fez compreender, com apenas olhar o
rosto de Granados, que havia matado uma ilusão... E acrescentou docemente.
– Quantas coisas você sabe, Freddy!... E eu que achava que no México
ninguém sabia ler...” (Ibid., p. 20).
Os “latinos” viajam a Hollywood | 147
***
pelo lucro; das fãs, desejosas de ver mais uma vez seu astro na
tela e fora dela; de Granados, ansioso por abandonar a condição
de figurante anônimo e que enxerga o papel como uma chance de
demonstrar sua destreza interpretativa. Entretanto, a situação se
revela menos simples do que parecia à primeira vista. De um lado,
a substituição convincente de Le Goffic prova o valor de Granados
como intérprete; de outro, o deflaciona sob o peso que possui a
imagem pública da figura suplantada. A substituição demonstra
que a celebridade é um produto fabricado e fabricável, mas mostra,
ao mesmo tempo, que o valor de mercado difere segundo o tipo de
mercadoria. Existem as mercadorias de luxo (astros e estrelas) e as
mercadorias ordinárias (figurantes e dublês). Existem os originais
e as cópias. Ninguém é inerentemente isto ou aquilo. A posição no
tabuleiro decorre de múltiplos fatores e é essencialmente móvel: a
estrela de hoje pode devir o figurante de amanhã; o desconhecido
pode ser beneficiado por um lance de sorte.75 O dublê, todavia, parece
condenado a replicar indefinidamente o fantasma que imita. Embora
vestir a pele de uma personagem fictícia ou dessa produção do eu
não menos inventada que é o astro sejam operações equiparáveis, a
lógica de um modelo que se fundamenta no caráter intercambiável
de suas peças e simultaneamente em sua hipotética singularidade
proíbe o ‘reconhecimento’ do dublê, sob pena de depreciação da
75
Regina Goulart (2011) comenta nos seguintes termos esse caráter aleatório, no qual
se sustentam em boa medida as esperanças e as expectativas do indivíduo comum:
“Quando o som surgiu em 1927 e configurou-se o sistema de fábrica de Hollywood,
as estrelas passaram a ser diretamente compreendidas como mercadorias, passíveis
de ser manufaturadas. Leo Rosten, um investigador do mundo hollywoodiano,
que delineia em sua obra características dessa máquina, é informativo, explícito:
É difícil ver como um segmento substancial da população americana pode não ter
esperanças, ainda que fragilmente, de estar entre os abençoados cuja mão mágica
de Hollywood puxa da obscuridade [...] Seus talentos [de uma imaginária pessoa
comum] podem ser sombrios, suas feições comuns, sua inteligência insípida.
Ainda assim, quão plausível é para ela considerar, “pode acontecer comigo” [...] Ela
sabe quão facilmente os especialistas em maquiagem escondem as sardas de Joan
Crawford ou Myrna Loy [...] Ela sabe que Norma Shearer é estrábica [...] Ela leu sobre
como as palavras começadas com “r” são retiradas dos roteiros de Kay Francis. [Ela]
é baixa? Eles podem fotografá-la sobre um caixote. Ela é gorda? Eles a colocam numa
dieta. Ela é magra? Eles a engordam. [Ela] sabe atuar? Bem! Hedy Lamarr sabe?
Eles a ensinarão [...] Diretores, roteiristas e produtores brilhantes se dedicarão
solenemente à exploração de seus talentos ocultos” (Rosten apud Basinger (2007)
apud Goulart, p. 21).
Os “latinos” viajam a Hollywood | 149
76
“Nos primeiros dias, a ‘duplicação’ estimulou sua curiosidade e seu humor. Ver-
se rodeado de várias centenas de figurantes, respeitado por uma multidão de
fotógrafos, o fazia sorrir por dentro. Um pobre-diabo de cinco dólares semanais
transformado num senhor! Ninguém percebera a mistificação [...] Roy Margram, de
sua poltrona, admirava-se diante da versatilidade e da expressão de Granados:
– Bendito seja Deus! A morte de Le Goffic me enche de um impiedoso gozo,
porque acabamos achando um Le Goffic superior [...]
– Você me enche de alegria, Mr. Margram. E espero que, uma vez acabada
esta fita, acabaremos com Le Goffic e eu poderei trabalhar, finalmente, com minha
alma e com meu corpo.
– Você está enganado, meu pobre amigo. Pelo resto da vida você terá que
ser Le Goffic, pois do contrário não seria mais que um simples figurante.
Granados sentiu que o mundo dava voltas ao seu redor. Era um boneco, um
fantoche [...]
– Mr. Margram, me salve. Eu tenho talento, eu posso tornar-me célebre.
Margram, comovido, respondeu:
– Não sonhe. Você morreu e, caso se esforce em ressuscitar, os milhões da
Superb Pictures voltarão a afundá-lo no túmulo [...]
Os diretores entraram de repente.
– Mr. Le Goffic – permita-me que o chamemos dessa forma –, viemos
parabenizá-lo e tratar de uns enfadonhos assuntos financeiros. Seu sucesso foi
enorme e não é justo que continuemos pagando um salário de cinco dólares diários.
Consideramos justo fazer um contrato confidencial... por cento e cinquenta dólares
semanais.
Granados deu um pulo, vermelho de indignação.
– Vocês acham que ignoro qual era o salário de Le Goffic? Três mil e
quinhentos dólares semanais! E eu, que sou o próprio artista, vou receber cento e
cinquenta!
Os produtores se surpreenderam. Como que ele era o próprio artista? Le
Goffic é que era um artista, com muito réclame, um verdadeiro astro, ao passo que
‘o senhor’ fora até há poucos dias um simples figurante... Como ia ser o mesmo?
Claro que não era. A discussão se fez interminável, até que por fim convieram em
conceder a Granados seiscentos dólares semanais” (Ibid., 1923, pp. 36-38).
150 | Miriam V. Gárate
O regresso
77
Fernando de Fuentes (1894-1958) se inicia no cinema como assistente de
direção do primeiro filme sonoro mexicano baseado, como já se indicou, em um
melodrama de Federico Gamboa roteirizado por Carlos Noriega Hope: Santa (1931).
Rapidamente se torna diretor e realiza dois filmes clássicos, que focam os conflitos
do período revolucionário: El compadre Mendoza (1933) e ¡Vámonos con Pancho
Villa! (1935). Mas abandona esse universo e estreia no ano seguinte Allá en el rancho
grande (1936), considerado primeiro expoente acabado da comédia ranchera.
Ruralismo idílico, humor, personagens estereotipadas e folclorismo dão o tom de
uma fórmula que obteve grande sucesso no mercado nacional e internacional até
o fim dos anos 1940. A recusa do ‘mexicano’ cunhado pelo cinema estadunidense
cede lugar a figurações não menos artificiais e redutoras, embora mais ‘afáveis’ e,
frequentemente, passadistas.
78
Sobre Cinearte, Cf., entre outros, Steinberg (1991) e Campelo (2005).
79
No artigo de Goulart (2012, p. 23) já mencionado, a autora insere o concurso numa
estratégia mais vasta de expansão da Fox, à qual se refere nos seguintes termos: “O
biênio 1926-1927 foi determinante para a Fox Film. De acordo com Todd McCarthy
(1997), sob a administração do vice-presidente Winfield Sheehan, o estúdio de
William Fox caminhava neste período para níveis de produção sem precedente, num
esforço para se tornar uma potência dominante na indústria cinematográfica. Seu
projeto de expansão envolveu a aquisição de cadeias inteiras de salas de cinema de
primeira linha, os direitos do processo de sonorização de filmes comercializados
como Movietone2, o aperfeiçoamento de um efeito de tela de 70 mm (o Fox
Grandeur), o reforço do quadro de diretores (entre eles, nomes como o prestigiado
F. W. Murnau e um Howard Hawks em início de carreira), operações nos estúdios da
costa oeste em Los Angeles e Beverly Hills, além de um investimento em produções
Os “latinos” viajam a Hollywood | 153
Este livro é um retrato. Talvez haja quem duvide. É por isso mesmo,
esperando discordâncias de opiniões, que, nesta salinha de espera,
onde o leitor tira o capote, pendura o chapéu e o guarda-chuva, eu
venho informá-lo de que este livro é um retrato (Ibid., p. 7).
81
O filme de Olympio Guilherme é dado como perdido, embora a escassa bibliografia
existente sobre o ator, realizador, cronista e escritor faça menção à fita (Borge, 2007;
Oliveira, 2011). O catálogo da Cinemateca Brasileira registra um documento fílmico
e a descrição de outro a partir de fonte escrita, envolvendo Guilherme em ambos
os casos como ator: “1) Curta-metragem silencioso. Gênero: Documentário. Título:
Chegada a New York de Lia Torá e Olympio Guilherme. Ano: 1927; produção: Brasil
Fox. Sinopse: Cenas dos seus (de Guilherme e Lia Torá) tests no Brasil, outras tiradas
no Studio e jardim de Paulo Benedetti, alguns enxertos de filmagens em que eles não
estão, trechos da ‘formidável’ recepção em New York e cenas naturais: de trens e da
Quinta Avenida (Cinearte, 07.03.1929); 2) Filme de ficção. Título original: Making
the grade. Ano: 1928; cidade: Hollywood; país: U.S.; produção: Fox; direção: Alfred
e Green. Os atores brasileiros Lia Torá e Olympio Guilherme constam dos créditos
do elenco”. A recente publicação da coluna de crítica cinematográfica de O Estado
de São Paulo, a cargo do escritor Guilherme de Almeida entre 1926 e 1942, ratifica
a suspeita de que Fome não chegaria a ser estrada no Brasil. Seis meses depois da
reportagem realizada por Cinearte, Almeida reproduz em sua coluna passagens
de uma nota elogiosa do filme de Guilherme, redigida pelo cubano Alfredo Ruíz,
para La Opinión, de Havana, em 5 de dezembro de 1929. A coluna de Almeida se
encerra anunciando o provável retorno de Guilherme a Brasil e seus planes futuros,
que tampouco se concretizariam: “Entrevistado por um jornalista de Chicago,
Olympio Guilherme revelou intenções de regressar à sua pátria e produzir filmes
caracteristicamente brasileiros. Está presentemente estudando com detalhes
as possibilidades da obra de Euclides da Cunha, Os sertões, e acredita que sua
adaptação cinematográfica constituirá um monumento ao sertanejo do Norte do
Brasil” (Almeida, [1929] 2016, p. 280).
158 | Miriam V. Gárate
82
Na metade do primeiro capítulo, o narrador faz um retrospecto biográfico de Lucio
Aranha, que parece ter pontos de contato com a vida do próprio autor: filho único
do Major Barbosa Aranha e de Dona Etelvina, Lucio cresce rodeado de cuidados
excessivos na fazenda familiar. Ao morrer o pai, é internado no colégio São Luiz,
de São Paulo, onde recebe uma educação “antiquada”. Aos vinte anos, ingressa na
Faculdade de Direito e trava relação com um “tipo boêmio”: “as leis e disciplinas
aprendidas em seis anos [...] quebrou-as em uma semana” (Ibid,, p. 25). Tendo
160 | Miriam V. Gárate
mudado seu estilo de vida, Lucio começa a colaborar na coluna social do Jornal da
Noite (o texto faz menção à amizade com jornalistas como Brito Broca), depois na
seção cinematográfica do mesmo jornal e de algumas revistas, “interessando-se pela
vida das estrelas, ao ponto de estudar inglês para poder compreender os escândalos
do Motion Pictures Magazine, Movieland e outras publicações de Cinelândia” (Ibid.,
p. 26). Rapidamente, se torna um cronista de cinema conhecido e recebe a proposta
de ir a Hollywood como representante da revista Cinefilme, do Rio, variante fictícia
de Cinearte, para a qual Guilherme colaborou. Ao fascínio inicial com a cidade e ao
trabalho regular como cronista e repórter, se segue a crise deflagrada pela falência
da Cinefilme apenas um mês e meio após chegar. É nesse contexto que o protagonista
se inscreve na Central Casting e passa a morar na “república” de brasileiros, onde
leva dois anos ao se iniciar a história. Embora as relações de Aranha com a mídia
impressa sejam representadas sob o signo do conflito e se denunciem as falácias
que esta veicula, seus vínculos com o meio serão estreitos e decididamente
contraditórios ao longo do romance.
Os “latinos” viajam a Hollywood | 161
83
As primeiras palavras trocadas entre os dois personagens são estas: “– O seu
sotaque é estrangeiro...
– Do Brasil... A grande atriz sueca franziu a testa numa expressão
indefinível; – Brasil...; – Na América do Sul – acrescentou Lucio com uma pontinha
de despeito; –Ah! Sim, Buenos Aires! Muito romântico, muito romântico. Então o
senhor trabalha nos filmes espanhóis? Lucio não sabia espanhol. Explicou que no
Brasil não se fala espanhol, mas português, uma língua muito bonita, muito doce”
(Ibid., pp. 39-40).
O motivo se repete mais adiante, ao se relatar a entrevista concedida por
162 | Miriam V. Gárate
momento, Lucio acredita estar diante de Greta Garbo. Dias depois, ele
reencontra Vera, apresentada agora com todas as letras como dublê.
O diálogo entre ambos abre espaço a uma série de considerações
sobre as incumbências desse substituto do original:
***
84
“– O que Lucio quer dizer com Secretário de embaixada é isto: um tipo moço,
elegante, insinuante, com um bigodinho insolente, muito cortez e flexível, que beija
a mão a todas as mulheres, batendo os saltos dos sapatos, usa pulseira de grilhões
de ouro e a complicada indumentária de um... - ... Gigolô – rematou Xexé” (Ibid., p.
120).
164 | Miriam V. Gárate
85
“Arthur Kelly (produtor): – Como o Sr. sabe, o nosso studio, como todos os
demais, faz em Janeiro publicidade dos filmes que serão produzidos durante o ano.
Entretanto, nem sempre temos à mão histórias apropriadas. Para que a propaganda
da futura distribuição nada sofra com esse inconveniente (reduzindo os contratos
dos exibidores), somos obrigados a anunciar nomes de filmes que ainda estão
por escrever e por contratar o respectivo elenco. Naturalmente escolhemos bons
títulos, nomes bem sonantes, de bilheteria: ‘Alma de mulher’, ‘O pecado de amar’,
‘Leito nupcial’, ‘Fruto proibido’, etc. etc. Mais tarde, então, de acordo com o título e
o elenco anunciado, escrevemos as histórias, as histórias cujos nomes já o mundo
inteiro conhece pela nossa valente publicidade” (Ibid., pp. 247-248).
Os “latinos” viajam a Hollywood | 167
86
“Lucio começou a história [...]– Trata-se de um jovem advogado que... – Advogado?
Interrompeu Kelly. E por que um advogado? – Advogado ou médico, não tem
importância! Podia ser um engenheiro! – Pois tem muita importância, meu caro
senhor! De acordo com as últimas estatísticas, há nos Estados Unidos cerca de
148.000 médicos, 124.575 advogados e somente 123.343 engenheiros! Nós
precisamos interessar à maioria! O seu galã precisa ser um médico” (Ibid., p. 252).
87
“(Lucio) – nessa noite, o amante de Constance, Ivan Lebedeff, entra sorrateiramente
em casa dela e a encontra em flagrante nos braços de outro amante, Cornelio
Skeef! [...] – O Sr. diz – “encontra nos braços”: mas onde estavam eles? No sofá, no
caramanchão, na cama? Como o Sr. sabe, há uma diferença colossal! – Estavam na
cama, na casa dela – informou Lucio decididamente. – Bem, neste caso a cama não
pode aparecer na tela. É fácil: medium shot do amante N. 1; close up da noiva; meio
corpo do amante N. 2; corpo inteiro do amante N. 1. Close up da noiva – cut – reação
dos rivais” (Ibid., p. 253).
88
Transcrevo o final do capítulo XI, no qual se lê a versão definitiva do roteiro: “Foi
Kelly quem leu com voz fadigada o resultado da conferência memorável: – ‘Um
médico, já velhote (Lebedeff caracterizado) tem uma noiva (a Bellet), que se casa
porque assim o querem seus pais. Um antigo namorado da rapariga (Conrad Nagel),
que vivia numa vila do interior, vem à cidade e o velho amor renasce mais romântico
do que nunca. Entretanto, o rapazote, sem recursos, não se atreve a pedir a mão da
moça, que é rica e pertence à alta roda. Ela, porém, está disposta a tudo: ‘o teu amor
e uma cabana!’ Ele, então, começa a estudar medicina, a progredir, a lutar como um
forte. E ela, como um Jacob bíblico, esperando firme, inabalável no propósito de se
casar com o seu príncipe encantado. Vai senão quando, o médico, o velho, que na
Escola de Medicina é lente do rapaz, marca a data do casamento. Isto, assim, de
improviso, quase mata a desgraçada de dor! Então, abandonando família e fortuna,
ela corre à casa do estudante pobre e diz: ‘Fujamos, meu amor! Mas fugir como?
Para onde? E depois? Fora chove torrencialmente... E os dois amantes já estão para
tomar um auto e desaparecer quando, subitamente, alguém bate à porta. Qual não é
a surpresa de ambos ao verem entrar o velho médico nos braços de dois ‘chauffeurs’,
com a cabeça partida num acidente de automóvel. Fatal dilema! Cumpridor de
seus deveres o jovem estudante ordena o imediato transporte do ferido para o
hospital mais próximo e sem perda de tempo opera o rival, salvando-o de morte
168 | Miriam V. Gárate
Fade out
89
Voltar à pátria e ouvir os apelos da mãe (sinédoque afetiva desta) é um gesto comum
às narrativas do mexicano e do brasileiro, que ao longo do romance recebe mais
de uma carta da progenitora conclamando-o à retomada da vida entre as “paredes
caiadas da fazenda familiar”. Sem que se pretenda estabelecer uma relação direta
entre fenômenos distantes e distintos, interessa sublinhar, porém, o parentesco
desse aceno nacional-regionalista que, no caso de Guilherme, encontra expressão no
projeto já mencionado de adaptação cinematográfica de Os sertões, ao qual Sheila
Schvarzman (2012, p. 97) se refere nos seguintes termos: “A primeira menção ao
texto de Os sertões (no cinema) consiste numa proposta de adaptação a ser realizada
por Olímpio Guilherme – brasileiro selecionado num concurso promovido pela Fox
no Rio de Janeiro, em 1928, para atuar nas versões de filmes sonoros latinos em
Hollywood. Não tendo sido por lá aproveitado para muita coisa além de algumas
pontas, aparece em 1930 em Cinearte (23/04/1930) – revista que militava pela
existência de um cinema brasileiro –, propondo a adaptação do grande texto. Aqui
é nítido o apelo a Os sertões como forma de reconhecimento e enobrecimento da
atividade cinematográfica por parte desse ator/realizador relegado ao ostracismo
em Hollywood e em busca do resgate através do grande esforço que representaria
a adaptação de Os sertões. Assim como sua carreira nos EUA, no entanto, também
esse filme não vingou. A primeira efetiva realização fílmica sobre o tema de que
temos notícia por meio de documentação é o docudrama Euclides da Cunha 1866-
1909, dirigido por Humberto Mauro em 1944, para o Instituto Nacional de Cinema
Educativo”.
Os “latinos” viajam a Hollywood | 171
Refazendo um percurso
das letras que lança luz sobre a vida da cidade. Na composição dessa
série de fitas/textos, comparecem de modo recorrente as estratégias
assinaladas por Ramos.
Precursoras na adoção desse paradigma cinematográfico,
como também já se indicou, são as crônicas reunidas e publicadas
por João do Rio em 1909, cujo prefácio convém citar mais uma vez:
Uma fita, outra fita, mais outra [...] Com pouco tens a agregação
de vários fatos, a história ao vivo, a vida da cidade numa sessão
de cinematógrafo [...] A crônica evolui para a cinematografia. Era
reflexão e comentário, o reverso desse sinistro animal de gênero
indefinido a que chamam: o artigo de fundo. Passou a desenho e
a caricatura. Ultimamente era fotografia retocada mas sem vida.
Com o delírio apressado de todos nós, é agora cinematográfica –
um cinematógrafo das letras, o romance da vida do operador no
labirinto dos fatos, da vida alheia e da fantasia – mas romance em
que o operador é personagem secundário arrastado na torrente
dos acontecimentos (Rio, [1909] 2009, p. 5).
***
***
90
Cito as observações de Luís Toledo Machado (1970, pp. 63-71) acerca de Brás,
Bexiga e Barra Funda por considerá-las pertinentes em relação ao conjunto da
produção do autor em foco: “sua posição [de Antônio Alcântara Machado] é a de
um observador colocado ‘fora’ do espetáculo e a forma de tratamento do tema o
Documentários de papel/Crônicas de celuloide | 183
filme (“Suponha, leitor, que não comprou este livro em uma livraria,
mas que comprou um bilhete para entrar no cinematógrafo”),
procedimento retomado posteriormente, entre outros, por Olympio
Guilherme, em Hollywood: novela da vida real (1932), como se viu.
Figura 1 Figura 2
Figura 3
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Cito a ouverture/prefácio: “Em 1913 quando você usava óculos calças curtas
acompanhando próceres eleições municipais havia bruta vela Praça Antonio Prado
acesa dia noite preocupação geral era saber quando apagaria [...] Nossa literatura
essa época também teve velas dentro redomas. Depois cintilou a Philips modernista
donde resultou sua geração mais desenvolta mais segura mais perigosa [...] Culpa
sua ter esgotado literatura viagens esse cinema com cheiro que é Pathé-Baby.
Excepciono variante Paulo Prado em prometida viagem Europa dará esclarecimentos
nossa falta de civilização. Só ele capaz. Quanto literatura transatlântica sem fios
definitivamente armada Pathé-Baby. Até agora brasileiro escritor vindo Europa
limitava-se fazer papel Hans Staden artilheiro Bertioga caiu preso Tupinambás
século 16 apavorado antropofagia aconselhava não comerem gente. Morubichaba
respondia: – Não amole é gostoso. Nós idêntico sermão diante cocaína tourada nu
artístico. Você apossou-se sem espanto temperatura ocasional cada gente cada país.
Por todo seu livro concordância amável realmente Europa gostosa ridícula. Pathé-
Baby é reportagem. Como mudam os tempos diria Marquez Maricá pensando João
do Rio. De fato da tolice amável esse seu malogrado amigo à segurança seu estilo
seu modo acertar vão diversos séculos. Brasil país milagres acrescentaria Marquez
ignorando grande literatura nossa época é reportagem” (Andrade, [1926] 1982, pp.
10-13). A sintaxe ostensivamente telegráfica contrapõe figurações que reportam
à velha e à nova literatura: as velas na redoma vs. a lâmpada Philips, a viagem
reverente vs. a antropofágica e “sem fios”. A apelação à tipologia da reportagem faz
parte desse contraponto essencialmente tático.
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O diretor berra:
– No!
– No!
– No!
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I want to be…
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A cena sevilhana certamente alude aos filmes estrelados pelo star Rodolfo
Valentino: The sheik (O xeque, 1921) e The son of the sheik (O filho do xeque, 1926),
rodados precisamente pela Paramount. O segundo estreou em 1926, pouco depois
da morte do ator.
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Vejam-se os seguintes comentários por ocasião do lançamento de Brás, Bexiga
e Barra Funda: “O Sr. Alcântara Machado é um singular temperamento de escritor.
Com uma sensibilidade pura, com um agudo espírito de observação anda pela vida
com uns grandes olhos de ‘Kodak’ fixando com exatidão as coisas que encontra no
seu caminho. Não deforma nem enfeita. Fixa as pessoas e as coisas como elas são.
Mas, alma sempre comovida e às vezes também irônica diante dos espetáculos da
vida [...] São Paulo está todo nos contos do Sr. Alcântara Machado. Direto, simples,
claro, o Sr. Alcântara Machado é uma exceção entre nossos prosadores. Escreve sem
literatura” (O Jornal, Rio de Janeiro, 3 de julho de 1927, s/a; apud. Machado,1983,
Obras, pp. 279-280).
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Referindo-se ao manifesto de Klaxon e ao interesse dos novos escritores pelo
cinema, Ismail Xavier (1978, p. 143) afirma: “A preocupação com o fenômeno
cinematográfico não ficará reduzida aos elogios do manifesto. Exceção feita do
número quatro, em todos os outros haverá matéria sobre cinema. Os líderes da
renovação literária terão nele um elemento motivador de discussões e críticas,
chegando a colocá-lo como um referencial útil na explicação de Oswald em
Os condenados... O modelo de organização dos filmes é utilizado como matriz
para, de forma sintética, caracterizar um estilo literário marcado pelo uso do
“subentendimento”, como diriam os teóricos do cinema da época. A segmentação da
narração em “sequências”, sem preocupação pela continuidade e pelas transições
que alongam o texto, o tratamento de cada “cena” pela sucessão de detalhes e pela
economia de referências, eram o que permitia a aproximação”. As afirmações de
Xavier são plenamente aplicáveis à escrita de Alcântara Machado.
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A maior parte dos ícones do urbano consideradas até agora constituem um
repertório comum a muitos textos, documentais cinematográficos (tanto tradicionais
como experimentais) e ao cinema ficcional do período: o trânsito, os veículos, a
multidão de passantes, os entretenimentos populares (férias e parques de diversões
ao ar livre, bailes, o próprio cinema), comparecem na sinfonia de Rutmann e em suas
‘congêneres’ sul-americanas (São Paulo, a sinfonia da metrópole (1929), de Rodolfo
Lustig e Adalberto Kemeny, Santiago (1933), de Armando Rojas Castro), em Rien
que les heures, de Cavalcanti ou em Aurora, de Murnau, entre outros. Em todos esses
filmes, como também em Pathé-Baby, os néons publicitários fazem parte inelutável
desse repertório imagético: “Anúncios luminosos põem brilhos de palco na fachada
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Figura 4
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Sirvam como exemplo as seguintes passagens sobre Lisboa: “Lama no Tejo. Manhã
horrível de céu cinzento. Chuvinha fina que cai. Frio. Vento. A lancha pula nas vagas:
sobe, desce, desce, sobe. Uma bola de borracha saltando. – Ainda levamos muito
tempo para alcançar a terra? – Eu sei lá! A cusparada completa a resposta amável.
Em fim, Porto da Desinfecção. Merece desinfecção urgente. Imundo” (Ibid., p.29).
“Na rua 24 de julho há assustadoras lagunas de água barrenta. Ovarinas também,
aos grupos. Vendedores ambulantes. Tamancos barulhentos. Um mercado infecto.
Descomunais pés descalços. Saias pelos joelhos. Calças arregaçadas. Verdureiras.
Sujeitos de gorro, capa espanhola e guarda-chuva. A estátua do Duque da Terceira.
Depois de outras, a rua do Ouro. Joalherias. Bancos. Prédios idosos” (Ibid., p.30). “O
pregão dos garotos enche as arcadas encardidas do Terreiro do Paço: – Canetas a
quinze tostões! Piúgas a cinco tostões! A sobrecasaca conselheiral dos estudantes
usa uma capa de irmandade por cima. A rua Áurea é a vergonha do nome.
Tatá&Sousa. Imundice e abandono. A avenida da Liberdade. Desleixo e buracos. SÃO
PORTUGUESES OS CHOCOLATES DA FÁBRICA SUISSA” (Ibid., p.35).
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Vaivém análogo com respeito aos polos objetivo/subjetivo e suas implicações para
atribuir ou negar a Pathé-Baby a condição de reportagem lê-se em carta enviada
por Ronald de Carvalho a Alcântara Machado, transcrita pelo Jornal do Comércio
em nota de 30/3/1926 (p. 54): “A propósito de seu livro PB, o nosso companheiro
de trabalho AM recebeu de R de C, sem dúvida uma das figuras mais empolgantes
da moderna literatura brasileira, a seguinte carta: ‘Rio, 26 de março. Meu caro
Alcântara Machado. Você criou a poesia do cartaz no Brasil. Pathé-Baby está acima
do cinema. Transcende o movimento do cinema, porque tem volume aéreo, tem
desenvolvimento lírico, tem todos os tons puros que exprimem os dados do real. O
Oswald não tem razão. Pathé-Baby não é reportagem [...] Reportagem é descrição.
Pathé-Baby é um estilo. Você construiu-o na sensação direta com a difícil inteligência
da sensação direta. Reportagem é transcrição [...] Pathé-Baby é uma concentração
de entusiasmos, com sabor de vida, sem literatura”. Repare-se na reiteração do
elogio expresso na nota de O Jornal, já mencionada, a propósito de Brás, Bexiga
e Barra Funda: “Direto, simples, claro, o Sr. Alcântara Machado é uma exceção
entre nossos prosadores. Escreve sem literatura”. Tanto a oposição reportagem/
não reportagem como a oposição com literatura/sem literatura revelam a função
conjuntural dessas categorias, que pouco significam ‘intrinsecamente’, e buscam
antes de tudo dar nome a um novo estilo.
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1926. Alberto Cavalcanti (1897-1982) realiza Rien que les
heures. Trata-se, na opinião de John Grierson (1898-1972), de
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Alberto de Almeida Cavalcanti nasce no Rio de Janeiro em 1897 e é enviado ainda
muito jovem a Genebra pelo pai, para estudar Direito. Abandona rapidamente o
curso e reorienta seus estudos para a Arquitetura, da qual também desiste. Muda-se
a Paris aos 18 anos. A partir de 1922, Cavalcanti participa de diversas experiências
associadas à primeira vanguarda cinematográfica francesa: assistente de Marcel
L’Herbier em Résurrection (1922) e Feu Mathias Pascal (1924-1925); roteirista
de L’inondation (1923) de Louis Delluc e montador de Voyage au Congo (1925-
1926) de Marc Allégret; diretor de Le train sans yeux (1922), com roteiro baseado
no romance homônimo de Delluc, de 1919. Todavia, a estreia desse filme somente
ocorrerá em 1929, motivo pelo qual Rien que les heures costuma ser considerada
sua primeira realização (Valentinetti, 1995, pp. 12-21). Em 1927, Cavalcanti se
desloca à Inglaterra e passa a trabalhar com um dos principais nomes da escola de
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documentário clássico, John Grierson, permanecendo na Film United GPO por sete
anos, envolvido em diversos projetos e exercendo múltiplas funções. Em 1940, se
transfere para a Ealing Studios. Em 1949, retorna ao Brasil e participa da organização
da Companhia Cinematográfica Vera Cruz, tornando-se produtor geral da empresa.
Em 1951, abandona a Vera Cruz, depois de ter produzido Caiçara (1950) e Terra é
sempre terra (1951), deixando inconcluso um terceiro filme: Ângela. Em 1952, dirige
Simão, o caolho (1952) para a Cinematográfica Maristela, de São Paulo, adquirida
pouco depois por Cavalcanti e um grupo de investidores. A antiga Maristela muda
seu nome para Kino. Como diretor-geral da Kino, Cavalcanti realiza O canto do mar
(1953) – refilmagem de En Rade (1927) – e Mulher de verdade (1954). O fracasso
desses filmes e a impossibilidade de honrar as prestações decorrentes da aquisição
da Kino conduzem Cavalcanti uma vez mais a Europa, onde permanece por quase três
décadas participando de produções em diversos países. Morre em Paris em 1982.
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O uso extensivo do termo adotado por Ruttmann no título de seu filme para referir-
se a um conjunto de produções de características a princípio análogas aparece
cedo nos escritos de John Grierson (por volta de 1932-1934). Mais recentemente,
Vicente Sánchez-Biosca (2007) adota a denominação “fantasia urbana” para tratar
do mesmo conjunto.
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1- Este filme não conta uma história. É tão somente uma sucessão
de impressões sobre o tempo que passa e não pretende ser a síntese
de nenhuma cidade.
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No filme de Dziga Vertov (1929), aos créditos inicias se segue esta advertência:
“Atenção, espectadores: esta é uma experiência em comunicação cinemática
realizada a partir de eventos reais. Sem o auxílio de intertítulos. Sem o auxílio de
uma história. Sem o auxílio do teatro. Este trabalho experimental quer criar uma
verdadeira linguagem cinematográfica internacional baseada na absoluta separação
com respeito à linguagem teatral e literária”.
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Em seus primeiros escritos, Canudo concebe o cinema como um “teatro
cinematográfico”, para depois suplantar essa noção pela de “arte plástica em
movimento” e, posteriormente, pela de fusão das artes do tempo e do espaço. Essa
reflexão, que se desenvolve ao longo da década de 1910, culmina no célebre Manifeste
de sept arts, de 1921, reelaboração de ideias esboçadas em alguns textos anteriores.
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***
____. [1932]. “El cine y los cesantes”. In: Arlt, Roberto. 1997.
Notas sobre cine. Buenos Aires: Simurg, pp. 84-88.
Barjavel, René. 1944. Cinéma total, Essai sur les formes futures
Du cinema. Paris: Denöel.
Dos Santos, Ana Maria Pessoa. 1992. Sob a luz das estrelas:
Carmen Santos e o cinema brasileiro silencioso (1919-1934).
Dissertação de Mestrado. Escola de Comunicação da Universidade
Federal do Rio de Janeiro.
Universal Ilustrado.
____. [1927]. “El vampiro”. In: Quiroga, Horacio. 1996. Todos los
cuentos. Colección Archivos 26. Madri; Paris; México; Buenos Aires;
São Paulo; Rio de Janeiro; Lima: ALLCA XX, Ediciones Unesco; Fondo
de Cultura Económica; Universidad Nacional Autónoma de México;
Bibliotecas Populares de Argentina; Editora da Universidade de São
Paulo; Editora da Universidade Federal do Rio de Janeiro; Instituto
Nacional de Cultura del Perú, pp. 762-768.
____. [1927]. “Teatro y cine” I, II, III. In: Horacio Quiroga. Arte
y lenguaje del cine. 1997. G. Gallo (comp.). Buenos Aires: Losada, pp.
286-290.
FILMES CITADOS:
Títulos publicados