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A LÍRICA TROVADORESCA

A lírica galego-portuguesa muito legou à literatura de língua portuguesa.


Em vários momentos literários posteriores, formas e concepções poéticas
medievais foram retomadas pelos
poetas; no Romantismo, por exemplo, Gonçalves Dias compôs as
Sextilhas de Frei Antão, de caráter francamente medievalizante; Manuel
Bandeira, poeta do nosso Modernismo, escreveu um “Cantar de Amor” já no
século XX. Na música popular brasileira, podemos apontar inúmeros exemplos
de compositores e composições que de uma forma ou de outra estão ligados à
tradição poética medieval. Além disso, a poesia popular dos cantadores
nordestinos utiliza até hoje padrões métricos e formas de poetar nitidamente
herdado dos trovadores medievais. O Trovadorismo está presente em nosso
cotidiano musical e literário.

A PROSA DA PRIMEIRA ÉPOCA MEDIEVAL

Ao lado das manifestações poéticas da lírica galego-portuguesa, a


primeira época Medieval conheceu diversas manifestações em prosa. Muitas
delas são traduções feitas a partir de originais latinos ou de outras línguas,
abrangendo temas religiosos, hagiografias (relatos da vida de santos), fábulas
e outros escritos normalmente ligados à religiosidade e às intenções
moralizantes típicas da mentalidade medieval. Há também diversas
manifestações historiográficas, como as crônicas dos primeiros reinados
portugueses e Os Livros de Linhagens, em que se fixa a genealogia de várias
famílias nobres, entremeando os meros dados documentais com narrativas de
teor histórico ou lendário – relatos muitas vezes de sabor literário e que
servirão ao Romantismo como fonte para produção de narrativas históricas.
A prosa de caráter literário da época é representada principalmente
pelas Novelas de Cavalaria, particularmente por dois textos: A Demanda do
Santo Graal e Amadis de Gaula. A Demanda do Santo Graal é tradução de
um original francês: narra as aventuras dos cavaleiros da Távola Redonda do
rei Artur, a procura (“demanda”) do Santo Graal (cálice onde fora recolhido o
sangue de Cristo na crucificação). O tema pertence à chamada “matéria da
Bretanha”, uma das fontes temáticas para a prosa de ficção medieval. Na
Demanda, o material originariamente pagão da lenda arturiana é
redimensionado por valores cristãos, colocando-se em primeiro plano a
intenção de valorizar a castidade e a devoção religiosa dos cavaleiros. Dessa
forma, o grande herói da novela é Galaaz, cujo nome se liga ao hebraico
galaad, cavaleiro casto e profundamente religioso.
O Amadis de Gaula apresenta características bastante diferentes das da
Demanda do Santo Graal; herói principal, o cavaleiro Amadis possui
destacadas virtudes guerreiras, dedicadas ao serviço de sua amada Oriana. A
versão dessa novela que chegou até nós é castelhana; parece ser a tradução
de um original português, provavelmente da autoria de João Lobeira. O
sucesso do Amadis foi tão grande que gerou um ciclo de histórias a ele
relacionadas. Aliás, as novelas de cavalaria contavam com público certo, fato
que se estendeu até os séculos XV e
XVI. Na literatura oral do Nordeste brasileiro, essas novelas sobrevivem
na forma de longos poemas narrativos: um famoso herói de origem medieval é
o cavaleiro Ferrabraz.

Novelas de cavalaria

Nem só de poesia viveu o Trovadorismo. Também floresceu um tipo de


prosa ficcional: as novelas de cavalaria, originárias das canções de gesta
francesa (narrativas de temas guerreiros), havendo sempre a presença de
heróis cavaleiros que passavam por situações perigosíssimas para defender o
bem e vencer o mal. Nas novelas sobressai o cavaleiro medieval, concebido
segundo os padrões da Igreja Católica (pela qual luta): ele é casto, fiel,
dedicado, disposto a qualquer sacrifício para defender a honra cristã. Esta
concepção opunha-se à do cavaleiro- herói das novelas feudais: eles estão
diretamente envolvidos na luta em defesa da Europa Ocidental contra
sarracenos, eslavos, magiares e dinamarqueses, inimigos da cristandade.
As novelas de cavalaria estão divididas em três ciclos e se classificam
pelo tipo de herói que apresentam. As que retratam heróis da mitologia greco-
romana são do ciclo clássico (novelas que narram a Guerra de Troia, as
aventuras de Alexandre, o Grande); as que apresentam o rei Artur e os
cavaleiros da Távola Redonda pertencem ao ciclo arturiano ou bretão (A
demanda do Santo Graal); as que apresentam o rei Carlos Magno e os doze
pares de França são do ciclo carolíngeo.

Amadis de Gaula

Amadis de Gaula foi uma novela muito apreciada em toda a Europa até
o século XVI. Ela reflete muito bem o ideal do amor cortês e a atmosfera das
cantigas de amor.
Amadis é filho ilegítimo do rei Perian de Gaula e da princesa Elisena,
filha do rei da Pequena Bretanha. Repudiado, é abandonado ao mar e
encontrado pela família de Oriana. Cresce como pajem dela e, aos poucos, o
seu amor pela jovem vai-se tornando adoração. Amadis serve Oriana com
devoção. Depois de muito tempo, confessa o seu amor e os dois decidem
mantê-lo em segredo. Sagrado Cavaleiro enfrenta situações de grande perigo
em defesa de sua amada. Um dia, acusado de infidelidade, resolve isolar-se.
Mas não consegue ficar muito tempo longe dela. Certa vez, defendendo-a na
floresta, Oriana e Amadis acabam por se entregar um ao outro, jurando amor
eterno. No final, depois de mais algumas peripécias, Amadis e Oriana se
casam.
Amadis é o típico cavaleiro medieval: ele guarda o sentimento do
amante e a necessária ousadia do lutador. É, a um só tempo, forte e frágil;
decidido e terno; furioso e cortês. Seu amor por Oriana vence qualquer
obstáculo, caracterizando-se, como nas cantigas, pela submissão à dama e
pela fidelidade.

Demanda de Santo Graal

Pertencente ao ciclo bretão ou arturiano, esta novela conta que em


Camaalot, reino do rei Artur, esteve reunidos dezenas de cavaleiros na véspera
do dia sagrado de Pentecostes.
Uma donzela chega à corte e procura por sir Lancelot; para que ele
compareça a uma igreja, a fim de sagrar Galaaz guerreiro. Depois de cumprida
essa obrigação, Lancelot volta a Camaalot e encontra uma pedra de mármore
boiando na água: nela está fincada uma espada. Lancelot e outros cavaleiros
tentam arrancá-la, sem conseguir.
De repente, surge o recém-sagrado cavaleiro Galaaz, que consegue
arrancar a espada da pedra. Em seguida, os cavaleiros participam de um
torneio. Quando estão todos sentados para a refeição, aparece o Graal (cálice)
flutuando sobre a imensa mesa, brilhando muito. Em seguida, desaparece.
No dia seguinte a este acontecimento, os cavaleiros decidem sair à
procura do Santo Graal.
Mais uma vez é Galaaz o escolhido para encontrar o cálice. Ele localiza
o Santo Vaso, que é símbolo da Eucaristia, em Sarras. A consagração para a
sua vida de dedicação ao culto da moral e da renúncia as vaidades físicas.

HUMANISMO

O Humanismo ou Segunda Época Medieval tem como primeira data


significativa o ano de 1418, quando, ainda durante o reinado de D. João I,
Fernão Lopes foi nomeado guarda-mor do arquivo real português, instalado na
Torre do Tombo. Há quem prefira colocar o início do Humanismo português em
1434, quando o mesmo Fernão Lopes foi nomeado cronista-mor do Reino
Português por D. Duarte, filho e sucessor de D. João I. De qualquer forma,
essa época literária se desenvolveu ao longo do século XV e atingiu o início do
século seguinte, em 1527; com o retorno de Sá de Miranda da Itália,
introduziram-se na literatura portuguesa novos ideais estéticos, que resultaram
no desenvolvimento do Classicismo.
As manifestações literárias do período humanista indicam, de modo
geral, o surgimento de uma mentalidade valorizadora da capacidade humana.
Essa mentalidade, inspirada na revalorização da cultura clássica da
Antiguidade, conviveu com valores tipicamente medievais, como a
interpretação teocêntrica da realidade. O romance O Nome da Rosa, do
italiano Umberto Eco, publicado em 1980, tem sua ação situada num mosteiro
italiano em novembro de 1327. Entre outras qualidades, o livro permite-nos
visualizar algumas das transformações de mentalidade e comportamento que
definiram a passagem da Idade Média para o Renascimento.
A palavra Humanismo indica toda a tendência que considera o valor
humano um dado central na interpretação da realidade, ou seja, é uma crença
na capacidade criadora e no valor essencial do ser humano.
Particularmente, Humanismo é o nome de um movimento cultural iniciado
na Itália no século XIV e que se caracterizou pela pesquisa e pelo estudo de
textos gregos e latinos, transformados em modelos e fontes temáticas. Em
Portugal as atividades dos humanistas se desenvolveram ao longo do
século XV e em parte do século XVI; nos estudos literários, a palavra
costuma designar produção do período de 1418 ou 1434 a 1527. A literatura do
Humanismo português produziu manifestações literárias nos diversos
gêneros: em prosa, desenvolveu-se principalmente a historiografia, cuja
maior expressão foi Fernão Lopes; na poesia, floresceu uma intensa atividade
palaciana, documentada no Cancioneiro geral, compilado pelo poeta Garcia
Resende. Foi também nessa época que o gênero dramático teve suas
primeiras manifestações de vulto representadas pela obra de Gil Vicente.

Fernão Lopes

Pouco se sabe sobre a vida de Fernão Lopes. Teria nascido entre 1378
e 1383, falecendo por volta de 1460; em 1418 foi nomeado guarda-mor da
Torre do Tombo, ou seja, tornou-se responsável pela preservação do arquivo
real, então localizado numa das torres do castelo de Lisboa. Em 1434, passou
a cronista-mor do reino, cargo que o tomava como redator oficial das crônicas
– narrativas históricas – dos reis de Portugal.
É provável que Fernão Lopes tenha escrito as crônicas de todos os reis
de Portugal até então, incluindo a do próprio D. Duarte, contemporâneo seu.
Aos nossos dias chegaram três obras cuja autoria é incontestavelmente sua: a
Crônica de D. Pedro, a Crônica de D. Fernando e a Crônica de D. João I
(primeira e segunda parte). Em 1942 e 1945 foram descobertos manuscritos de
uma Crônica dos sete primeiros reis de Portugal, conhecida também como
Crônica de Portugal de 1419, cuja autoria tem sido atribuída a Fernão Lopes.
A prosa de Fernão Lopes ultrapassa os limites da narrativa histórica,
incorporando técnicas e métodos da narrativa de ficção e alcançando
resultados de inquestionável valor estético. Sua narrativa é viva, contagiante,
capaz de criar quadros extremamente dinâmicos.Como o encadeamento das
ações é habilmente conduzido, sendo constantemente colorido pelas falas
diretas dos participantes da ação, o que cria um ritmo crescente de tensão,
uma intensidade gradativa para a qual colabora o suspense em que o narrador
mantém todo o quadro até o desfecho, que é rápido e marcante. Essa hábil
condução de vários episódios que convergem para um final único, grandioso,
dá ao texto um sentido épico – a narrativa da enérgica manifestação popular
demonstra que estão sendo dados passos importantes para a história da
coletividade portuguesa.
A historiografia portuguesa teve em Fernão Lopes um inovador que
combinou o rigor na pesquisa e seleção de documentos e testemunhos com
uma concepção abrangente do conjunto das forças que atuam socialmente.
Para a literatura, seus méritos são igualmente importantes, já que desenvolveu
uma prosa narrativa que organiza com eficiência muitos recursos, habilidade
para incutir dinamismo às sequências narradas, diálogos vivos e
caracterizadores, graduação da intensidade dramática, caracterização feliz das
figuras históricas, sentido épico na condução de vários episódios paralelos que
convergem para um mesmo fim. Combinando uma ampla visão de História com
uma técnica narrativa eficiente, Fernão Lopes criou a primeira grande obra em
prosa da literatura portuguesa.

A poesia palaciana

Cantiga, partindo-se Senhora, partem tão tristes Meus olhos por vós,
meu bem, Que nunca tam tristes vistes Outros nenhuns por ninguém.
Tam tristes, tam saudosos,
Tam doentes da partida,
Tam cansados, tam chorosos, Da morte mais desejosos Cem mil vezes
que a vida.
Partem tam tristes os tristes, Tam fora d’esperar hem, Que nunca tam
tristes vistes
Outros nenhuns por ninguém.

CASTELO-BRANCO João Roiz In: Florilégio do Cancioneiro de


Resende. 2. ed. Lisboa: Textos; literários, 1994,. P. 15-o.

A cantiga que acabamos de ler mantém algumas afinidades temáticas


com a lírica galego-portuguesa e faz lembrar dos cantares de amor; o sujeito
lírico masculino expõe sua tristeza pela distância que o separara da amada.
Há, no entanto, outros elementos do poema que o distanciam da tradição
trovadoresca, a começar pela própria língua, já bastante próxima do português
dos nossos dias.
Observe como o poema é construído com ritmos sonoros bastante
sugestivos, dentre os quais podemos destacar as sequências “Partem tam
tristes os tristes” e “tristes vistes”, em que a insistência nos fonemas /i/ e /t/
parece perpetuar um tom de contida lamentação. Na segunda estrofe, a
repetição dos termos iniciados por “tam” acentua a lenta cadência do poema,
impregnado de uma musicalidade suave e melancólica. A elaboração sonora
procura recuperar o acompanhamento instrumental que já não existia. Em
outras palavras: estamos lendo e ouvindo o resultado do trabalho de um
poema, capaz de extrair sons e ritmos musicais das palavras, pois o poema
não é mais cantado, e sim declamado. No caso dos trovadores, muitas vezes
subordinavam-se as palavras à melodia.
O poema foi escrito em versos de sete sílabas, os heptassílabos ou
redondilhas maiores. As redondilhas maiores e as redondilhas menores (versos
de cinco sílabas) são os padrões métricos predominantes na poesia da
Segunda época Medieval, que foi reunida pelo poeta Garcia de Resende no
Cancioneiro Geral.

Gil Vicente

Gil Vicente nasceu por volta de 1465, provavelmente em Guimarães.


Alguns biógrafos acreditam que, ao lado da atividade literária, tenha praticado a
ourivesaria. Para outros, teria sido também alfaiate. É certo que seu primeiro
texto teatral, o Auto da Visitação ou Monólogo do Vaqueiro, foi representado na
noite de 7 para 8 de junho de 1502, no quarto da rainha D. Maria, como
homenagem ao nascimento do futuro rei D. João III. Nos trinta e quatro anos
seguintes, Gil Vicente, incumbido de organizar festas e cerimônias
comemorativas no palácio real, produziu cerca de quarenta e cinco textos
teatrais. Sua última peça, Floresta de Enganos, é de 1536. Após essa data,
não há mais notícias seguras do escritor.
Alguns textos de Gil Vicente foram publicados durante sua vida, sob a
forma de folhetos de cordel. Após sua morte, seu filho Luis Vicente organizou e
publicou a Compilação de todas as obras de Gil Vicente (1562), obra que,
apesar de pretender ser completa, não inclui toda a produção vicentina, pois é
sabido que alguns textos se perderam e que há pelo menos mais três peças
atribuíveis a esse autor além das agrupadas na Compilação. Alguns textos
preservados também em folhetos de cordel apresentam variações em relação à
forma como aparecem na coletânea organizada por Luis Vicente.
Além da produção teatral, Gil Vicente deixou-nos alguns poemas no
Cancioneiro Geral e outros textos mais circunstanciais, como cartas, um
sermão em versos e poemas ligados a acontecimentos da Corte ou de assunto
burlesco.
Vamos começar nosso estudo da obra de Gil Vicente por meio da leitura
de dois trechos de uma de suas peças mais importantes, o Auto da Barca do
Inferno. A palavra auto (proveniente do latim actum, “ação”) designa uma peça
breve, normalmente de assunto religioso. No caso, trata-se de uma peça em
que, colocadas à margem de um rio a que se dirigem os mortos, duas
embarcações – a que conduz ao inferno e a que conduz ao paraíso, aguardam
a chegada dos passageiros. Um diabo e seu assistente comandam a barca do
Inferno, enquanto um anjo toma conta do barco da Glória. Diversos
personagens entram em cena e dialogam com o diabo e com o anjo, sendo a
maioria deles conduzidos à Barca do Inferno. Em sequência, apresentam-se
um fidalgo, um onzeneiro (usuário), Joane (um parvo, tipo muito explorado
pelo teatro vicentino), um sapateiro, um frade (acompanhado de uma moça de
nome Florença), Brízida Vaz (uma alcoviteira), um judeu, um corregedor, um
procurador, um enforcado e quatro cavaleiros que morreram combatendo os
mouros na África; desses todos, apenas o parvo e os cavaleiros entram na
barca da Glória, sendo os demais condenados ao Inferno.

Classificação das peças de Gil Vicente

• Autos pastoris – são monólogos ou diálogos cômicos de pastores,


ricos em lirismo folclórico. Demonstram a influência que o autor sofreu do
castelhano Juan Del Encina, na época, muito apreciado na corte por seus
poemas de tema bucólico. Estão neste grupo o Monólogo do vaqueiro, o Auto
Pastoril castelhano e o Auto Pastoril português.
• Moralidades religiosas ou autos de moralidade – baseiam-se na
Bíblia para expor o tema da salvação dos homens pelo sacrifício de Cristo ou
utilizam alegorias para transmitir ensinamentos religiosos ou morais. Este
grupo compreende peças como o Auto dos Quatro Tempos, o Auto de Mofina
Mendes, Os Mistérios da Virgem, o Breve Sumário da História de Deus, o Auto
da Alma, o Auto da Feira, o Auto da Barca do Inferno, o Auto da Barca da
Glória e o Auto da Barca do Purgatório. Esses três últimos textos constituem a
chamada Trilogia das Barcas.
• Farsas – são quadros cômodos em que desfilam personagens
típicos, apresentando acentuado caráter de crítica social. Incluem-se neste
grupo Quem tem farelos?, Farsa dos Almocreves, Clérigo da Beira, O Juiz da
Beira, Auto da Índia, Velho da Horta e Farsa de Inês Pereira, esta última sem
dúvida a peça de maior unidade de ação do autor feita como resposta a um
desafio de seus detratores.
• Autos cavaleirescos – apresentam a encenação de episódios
cavaleirescos, muito em moda na época. Destacam-se neste grupo o Amadis
de Gaula, D. Duardos, a Comédia do Viúvo e a Comédia de Rubena.
• Alegorias de tema profano – são peças de tema não religioso
diverso, em que os personagens são frequentemente ideias, qualidades ou
entidades abstratas (alegorias). Incluem-se neste grupo Cortes de Júpiter,
Frágua do Amor, Nau de Amores, Exortação da Guerra e outras.
Farsa de Inês Pereira

No ano de 1523 foi representada a Farsa de Inês Pereira, inspirada no


provérbio “mais quero asno que me leve, que cavalo que me derrube”, proposto
como tema por alguns “homens de bom saber” que duvidavam do talento de Gil
Vicente. Inês, jovem cansada dos trabalhos domésticos, procura um bom
casamento. O primeiro pretendente a aparecer é Pedro Marques, um lavrador
“rico e honrado”, mas muito tosco para atender aos desejos da jovem, que
sonha com um marido “discreto”, ou seja, galante e refinado. Inês casa-se
assim com um escudeiro que lhe é indicado por dois judeus casamenteiros. O
escudeiro, antes galanteador e afável, revela-se um marido tirânico, tranca a
esposa em casa e coloca-a sob a vigilância de um empregado. Para alívio de
Inês, ele morre numa batalha na África, atingido nas costas por um mouro
quando fugia. Viúva, experiente e livre, Inês resolve aceitar como marido o
antigo pretendente Pero Marques. Resolve também iniciar uma vida de
diversões para compensar o que passara com o escudeiro; ao dar esmola a um
ermitão, reconhece nele um antigo namorado e logo marca um encontro. A
peça termina com Pero Marques carregando Inês nas costas enquanto a
conduz à ermida onde ela irá encontrar o amante.
Nessa peça, Gil Vicente alcançou um enredo mais bem-construído,
conseguindo dessa forma desenvolver sua personagem principal, Inês, com
maior cuidado e detalhamento. Assim, muitos estudiosos da obra vicentina a
consideram sua obra-prima. Há nela não só uma estrutura narrativa que supera
a simples justaposição de quadros, atingindo uma concatenação de episódios
mais complexa, mas também as investigações psicológicas da personagem,
que deixa de ser um simples tipo social.

CLASSICISMO

Em 1527, o poeta Francisco de Sá de Miranda (1481-1558) voltou a


Portugal depois de uma viagem à Itália, onde estudara a obra de Francesco
Petrarca (1304- 1374) e dos poetas do chamado dolce stil nuovo (doce estilo
novo) Dante Alighieri (1265-1321), Guido Cuinizelli (entre 1230 e 1240-1276) e
Guido Cavalcanti (1259- 1300), entre outros. Foi dessa forma que Sá de
Miranda, colaborador do Cancioneiro Geral, absorveu inovações, que desde o
século XIII eram praticadas na Itália, já haviam tido alguma influência sobre as
demais literaturas europeias (Dante e Petrarca, por exemplo, eram conhecidos
pelos poetas do cancioneiro geral), somente no século XVI, no entanto, é que
foram amplamente aceitas e difundidas fora da Itália.
A volta de Sá de Miranda a Portugal é o marco inicial do Classicismo,
pois demonstra uma atitude receptiva da mentalidade portuguesa em relação
aos procedimentos literários renascentistas. O ano de 1580 em que morre Luís
de Camões, principal poeta da época, e também em que Portugal perde a
independência política, é o ponto final desse período.
Esse período literário integra a chamada Era Clássica da literatura
portuguesa juntamente com os dois períodos seguintes, o Barroco e o
Arcadismo.
A palavra clássico se aplica a todo escritor que, por ter alcançado um
elevado grau de realização e de prestígio, pode ser tomado como modelo a se
seguir nas classes (salas de aula). O século XVI estudou e imitou os autores da
Antiguidade greco-latina – os clássicos – cujas obras eram consideradas
sinônimo de perfeição artística. Atualmente, usamos o termo clássico para falar
tanto dos autores gregos e latinos como dos escritores da Era Clássica.
Também se usa essa palavra para indicar qualquer autor ou obra que, por sua
qualidade estética, adquire importância no panorama artístico.
O Classicismo português foi uma época de intensa produção literária.
Ocorreu um notável desenvolvimento da poesia, tanto lírica como épica. A
prosa também apresentou muitos textos, incluindo desde a narrativa de ficção
até a historiografia e, principalmente, a chamada “literatura de viagens”, ligada
aos descobrimentos marinhos. Cultivou-se ainda o gênero dramático, quer sob
a norma de autos ligados à tradição vicentina e medieval, quer sob a forma de
comédias e tragédias de modelo greco-latino. Houve peças escritas em verso e
em prosa.

Luís Vaz de Camões


Luís Vaz de Camões nasceu provavelmente em Lisboa, em 1524 ou
1525. Sobre sua vida pessoal pouco se sabe com certeza; tinha possível
ascendência fidalga, mas não era rico. Frequentou reuniões da nobreza
cortesã e a boêmia lisboeta. Participou de campanhas militares no norte da
África, onde perdeu um olho em combate. Foi preso, tanto em Portugal como
na Ásia, por onde andou durante vários anos e onde sofreu um naufrágio, do
qual, segundo a tradição, conseguiu salvar os manuscritos de seu poema
épico, Os Lusíadas. Em 1567 ou 1569 estava em Moçambique, de onde
retornou a Portugal, não sem antes ter sofrido o furto dos originais de um livro,
O Parnaso de Luís de Camões, em que, acredita-se, o poeta teria reunido sua
produção lírica. Em 1527 foram publicados Os Lusíadas, e Camões passou a
receber irregularmente uma pequena pensão do governo português. Morreu
bastante pobre, em 1580.
A obra poética de Luís de Camões abrange uma extensa produção lírica
escrita, tanto nas formas poéticas tradicionais, de origem medieval, como nas
formas de feição clássica e italianizante. Pouquíssimos poemas líricos foram
publicados durante a vida de Camões: somente em 1595 surgiram as Rimas,
reunindo poemas coletados em diversos cancioneiros manuscritos. Ainda hoje,
há dificuldades para se delimitar precisamente a produção lírica do poeta. Ao
lado da produção lírica, Camões escreveu Os Lusíadas, poema épico que,
como já vimos, foi publicado em 1572. Também produziu teatro (Os Anfitriões,
El-rei Seleuco e Filodemo).
Poesia lírica Cantiga
A este modo alheio:

Se me levam águas
Nos olhos as levo.

Voltas
Se de saudade Morrerei ou não, Meus olhos dirão De mim a verdade.
Por eles me atrevo A lançar as águas
Que mostrem a mágoas Que nesta alma levo.
As águas que em vão Me fazem chorar,
Se elas são do mar Estas d’amar são. Por elas relevo
Todas minhas mágoas; Que, se força d’águas Me leva, eu as levo.
Todas me entristecem, Todas são salgadas; Porém as choradas Doces
me parecem.
Correi, doces águas,
Que, se em vós me enlevo, Não doem as mágoas
Que no peito levo!
Camões Luís de – Lírica. Belo Horizonte. Itatiaia, São Paulo: Edusp.
1982. p. 54-5.

Barroco anunciado

Investigando dessa forma os efeitos do amor sobre o espírito humano, a


lírica camoniana produziu textos belíssimos, em que, na busca de definir o que
possa ser esse sentimento tão poderoso e tão contraditório, encontramos a
exploração de imagens paradoxais (a aproximação de conceitos opostos e
inconciliáveis), numa antecipação clara de formas de expressão que
caracterizarão sobremaneira o Barroco literário. Por se situarem nesse
momento de
transição entre o Classicismo e o Barroco, é que esses textos são
considerados maneiristas. O maneirismo se caracteriza por empregar o
contraste, o surpreendente, o refinamento e a complicação verbal para falar de
temas como os contraditórios efeitos do amor, os enganos e desenganos da
vida, a transitoriedade da existência – antecipando o Barroco e muitas vezes
confundindo-se com ele.
No caso do soneto seguinte observe que, além da linguagem de
opostos, há outro elemento que aumenta os jogos de significados: o texto
começa e termina com a palavra Amor, o que qualquer tentativa de análise do
sentimento amoroso conduz sempre a ponto de partida:

Amor é fogo que arde sem se ver; É ferida que dói, e não se sente; É um
contentamento descontente; É dor que desatina sem doer.
É um não querer mais que bem querer; É um andar solitário entre a
gente;
É nunca contentar-se de contente;
É um cuidar que ganha em se perder.

É querer estar preso por vontade; É servir a quem vence, o vencedor;


É ter com quem nos mata, lealdade.

Mas como causar pode seu favor Nos corações humanos amizade,
Se tão contrario a si é o mesmo amor?
CAMÕES, Luís de. Lírica, p.155.

Ao lado da tensão suscitada pela tentativa de compreender o Amor, há


outra que constantemente encontramos nos poemas líricos de Camões: é a
que nasce do choque entre as expectativas individuais em relação ao mundo e
aquilo que esse mundo realmente acaba proporcionando a quem o enfrenta.
Desse choque surge a sensação de que as coisas não são como deveriam ser,
pois não se premiam os virtuosos e os capazes, mas antes os inescrupulosos.
Esse é o chamado “desconcerto do Mundo”: falta harmonia e equilíbrio à
realidade:

Eu cantei já, e agora vou chorando O tempo que cantei tão confiado;
Parece que no canto já passado Se estavam minhas lágrimas criando.
Cantei; mas se me alguém pergunta: Quando? Não sei; que também fui
nisso enganado.
É tão triste este meu presente estado Que o passado, por ledo, estou
julgando.
Fizeram-me cantar, que tudo mente? Mas eu que culpa ponho às
esperanças
Onde a Fortuna injusta é mais que os erros?

CAMÕES, Luís de. Lírica, p. 207.


A lírica camoniana de “medida velha” prende-se à tradição medieval
portuguesa, fazendo uso de recursos poéticos presentes em parte na lírica
trovadoresca e, principalmente, na produção do Cancioneiro Geral: as
redondilhas menores e maiores, os poemas organizados em motes e glosas.
Essa parte da lírica abrange, sobretudo, os temas tradicionais (incluindo o
humor); há textos, no entanto, em que se abordam temas ditados pelo
Renascimento.
Em sua produção lírica, Luís de Camões utilizou formas poéticas
tradicionais, de origem medieval, em redondilhas (“medida velha”), ao lado das
formas de origem italiana e clássica, em que domina o verso decassílabo
(“medida nova”). Manejando a “medida velha” com talento e criatividade,
conseguiu revitalizar a tradição que recebera. Com o decassílabo, recém-
implantado na língua portuguesa, Camões desenvolveu um fluxo rítmico de
rara felicidade, conseguindo uma melodia verbal que se transformou em
modelo para praticamente toda a produção poética que se seguiu.
A temática dessa Lírica também mescla assuntos tirados da tradição
medieval com material de inspiração renascentista. O amor é tema constante,
conduzindo a uma tensão entre a concepção neoplatônica e petrarquista, e a
sensual idade inerente ao desejo. Outro tema frequente é o “desconcerto do
mundo”, o desacerto entre as expectativas existenciais impregnadas de
idealismo e a realidade vivida, permanentemente frustrante na medida em que
acaba favorecendo não aos mais capazes, mas sim aos menos escrupulosos.
Os poemas da Lírica resultam de um elaborado trabalho artístico, que
integra “saber; engenho e arte”, ou seja, erudição, talento e domínio técnico, de
acordo com a busca de equilíbrio e harmonia que o racionalismo renascentista
pregava. Lidando com conceitos sutis e chegando a conclusões paradoxais,
Camões antecipou o Barroco, produzindo muitos textos maneiristas.

Poesia épica

Segundo os modelos clássicos, um poema épico deve apresentar cinco


partes:
- A proposição; em que o narrador indica qual será o tema da
narração;
- A invocação; em que o narrador solicita o auxílio das divindades que
dirigem a atividade poética (as Musas, particularmente Caiope, na poesia
clássica; as Tágides, em Camões);
- A dedicatória; em que o poema é oferecido a quem o poeta pretende
homenagear; no caso, o poema é dedicado a D. Sebastião, rei de Portugal
entre 568 e 1578;
- A narração; em que se encadeiam os episódios que formam a
narrativa propriamente dita; em Os Lusíadas relata-se a viagem de Vasco da
Gama às Índias, entre 1497 e 1499;
- O epílogo; em que o narrador encerra o seu poema fazendo
considerações sobre a matéria narrada e a realidade social que o cerca.

Proposição

A proposição é formada pelas três estrofes iniciais do texto. Nela, o


narrador se propõe a cantar espalhando por todo o mundo a formação do
Império Português na Ásia, realizada pelos navegantes portugueses que,
partindo das praias lusitanas, atravessaram mares desconhecidos e realizaram
heroicos feitos militares. Além disso, serão celebradas as memórias dos reis
portugueses que ampliaram os domínios da fé católica e do Império, bem como
serão lembrados todos os heróis que por suas façanhas imortalizaram-se
(libertaram-se da lei da morte).
Esse é, portanto, o assunto do poema: a construção do Império
Português, tendo como núcleo narrativo a viagem de Vasco da Gama. Observe
que o ponto de vista adotado é o da aristocracia governante, pois Camões se
propõe a cantar os nobres e reis que teriam se destacado no processo. Em
contraste com o que vimos em Fernão Lopes, os fatos históricos são
considerados resultados da ação de heróis; a participação popular não merece
o destaque que lhe dera o historiador humanista. Há um assunto coletivo e
grandioso a ser cantado, material indispensável à elaboração de um poema
épico. O narrador considera os feitos portugueses tão importantes que os
coloca acima dos realizados pelos grandes heróis da Antiguidade: é com
indisfarçável orgulho que os ilustres feitos lusitanos, capazes de submeter os
mares e vencer as guerras (representados respectivamente por Neptuno e
Marte), são exaltados como um “outro valor mais alto” que “se alevanta” “a
ponto de fazer calar a Musa antiga”. Aliás, a interrelação do poema com “Musa
antiga” está presente já no primeiro verso, decalcado de “As armas e o varão
canto piedoso”, um dos primeiros versos da Eneida, de Virgílio. Lembre-se de
que, na época de Camões, valorizava-se a erudição do escritor, o
conhecimento que possuía dos modelos antigos, e não, como em nossos dias,
a originalidade.
Para entoar seu canto heroico sobre Portugal, o narrador espera ter
suficiente talento poético (“engenho” e domínio técnico da arte”). Invoca, para
auxiliá-lo nessa empresa, as ninfas do rio Tejo (“Tágides”). Nessa invocação,
encontramos uma verdadeira “teoria” da poesia épica:o narrador afirma terem
as Tágides criado um “novo engenho ardente”, que, ao contrário do “verso
humilde” (a poesia lírica) que até então havia sido praticado, requeira um estilo
elevado e fluente, comparável ao dos antigos épicos. E na quinta estrofe o
narrador insiste: quer uma capacidade criadora, forte e viril como uma tuba de
guerra e não suave como uma flauta agreste; somente esse estilo solene se
pode adequar a grandiosidade dos feitos da gente portuguesa.
No poema, o verso usado para alcançar o tom solene pretendido pelo
narrador é predominantemente o decassílabo heroico. O nome desse verso,
aliás, provém justamente dessa sua adequação à grandiloquência da poesia
épica. Os versos estão dispostos em oitavas, que apresentam sempre o
mesmo esquema de rimas: abababcc. São dez partes chamadas cantos, num
total de 1102 estâncias de 8816 versos.

Canto I
Após a proposição e a invocação, representadas pelas cinco estrofes
iniciais, vem a dedicatória. Como já sabemos, Os Lusíadas foi dedicado a D.
Sebastião, que viveu de 1554 a 1578. Na sexta estrofe do poema, o narrador
refere- se ao jovem rei com uma série de metáforas, ligadas
predominantemente à concepção de que as navegações portuguesas e sua
expansão imperialista eram uma nova cruzada contra os “infiéis”.

Canto II
Vênus e as nereidas (ninfas aquáticas) impedem que as naus
portuguesas entrem no porto de Mombaça, onde seriam destruídas. A seguir, a
deusa dirige-se ao Olimpo, para protestar junto a seu pai Júpiter contra os
perigos a que estão sendo submetidos os viajantes. O rei dos deuses a
acalma, profetizando-lhe novos feitos dos portugueses. A frota lusitana se
dirige a Melinde, onde o rei recebe Vasco da Gama e seus comandados com
amizade e pede que o comandante lhe conte a história do povo português e da
viagem que esta realizada.

Canto III
Vasco da Gama inicia seu discurso com uma descrição da Europa e
com indicações da localização de Portugal. A seguir, conta a história do seu
país, desde os tempos mitológicos até o reinado de D. Fernando (morto em
1383). É neste canto que se encontra o célebre episódio de Inês de Castro,
baseado na história de uma dama castelhana por quem se apaixonou o Infante
D. Pedro (1320-1367), futuro rei
D. Pedro I – D. Afonso IV (1291 – 1357), pai de D. Pedro, decidiu, por
motivos políticos, mandar matar D. Inês, que se tornara amante de D. Pedro.
Essa morte foi posteriormente vingada por D. Pedro, que, segundo a tradição,
teria feito exumar o cadáver de D. Inês, para coroá-la mesmo depois de morta.

Canto IV
Vasco da Gama continua a contar a história de Portugal ao rei de
Melinde. Narra, entre outras coisas, a batalha de Aljubarrota, em versos de
sonoridade altamente expressiva, que lembram o ruído intenso dos combates.
Note principalmente a recorrência das consoantes /r/, /t/, /s/, a frequência de
encontros consonantais e sugestiva rima em “-oam”;

Já pelo espesso ar os estridentes Farpóes, setas e vários tiros voam;


Debaixo dos pés duros dos ardentes Cavalos treme a terra, os vales soam.
Espedaçam-se as lanças, e as frequentes Quedas co as duras armas tudo
atroam. Recrescem os imigos¹ sobre a pouca Gente do fero Nuno², que os
apouca.
Camões, Luís de. Os Lusíadas, p. 170.

Ainda nesse canto, é narrado o sonho profético de D. Manuel: dois


anciões, representando os rios Ganges e Indo, falam ao rei das conquistas
portuguesas no oriente. Esse sonho motiva o rei e seus conselheiros a
organizar uma expedição à Índia; é o momento da partida dessa expedição, na
praia do Restelo, em Belém, Lisboa, que ocorre outro famoso episódio do
poema camoniano, a “fala do Velho do Restelo”.

Canto V
Vasco da Gama narra ao rei de Melinde a viagem da frota portuguesa.
São descritos alguns fenômenos naturais, como o fogo de santelmo (chama
azulada que surge nos mastros dos navais, provocada pela eletricidade) e a
tromba-d’água.
Ainda nesse canto, encontramos o episódio do gigante Adamastor,
figura mitológica que personifica o cabo das Tormentas (depois, cabo da Boa
Esperança), no extremo sul da África. Adamastor era um dos titãs, raça de
gigantes que desafiara os deuses e fora convertido em acidente geográfico
porque se deixara enganar por Tétis, deusa marinha a quem amava.
Adamastor profetiza a Vasco da Gama todos os infortúnios (em geral,
naufrágios) que maçariam a expansão comercial portuguesa para a Índia.
Percebe- se, pois, que a identificação entre o titã da mitologia e o acidente
geográfico que tanto significado teve para as navegações portuguesas foi um
criativo recurso artístico capaz de personalizar a “fúria dos elementos naturais”,
particularmente os perigos do oceano, superados pelos portugueses à custa de
muitas vidas humanas.
Vasco da Gama, ainda nesse canto, continua a narrativa da viagem até
a chegada a Melinde. Nas estrofes finais, o narrador recrimina os
contemporâneos portugueses pelo pouco valor que dão à poesia.
Canto VI
A frota parte de Melinde levando um piloto que conhece o caminho para
as Índias. Baco desce então ao fundo do oceano, onde, no palácio de Netuno,
organiza um novo concílio com alguns deuses. Os portugueses encontram
calmaria, e Veloso, um marinheiro, aproveita a pausa para contar aos seus
companheiros as heroicas aventuras dos “Doze de Inglaterra”, verdadeira
novela de cavalaria dentro do poema épico. Mas o descanso é interrompido por
violenta tempestade, desencadeada por Netuno e outros deuses que,
persuadidos por Baco, decidem destruir a frota portuguesa. Note a
impressionante sonoridade dos versos em que se descreve essa tempestade:

Agora sobre as nuvens subiam As ondas de Netuno fliribundo; Agora a


ver parece que desciam
As íntimas entranhas do Profundo. Noto, Austro, B´reas, Aquilo queriam
Arruinar a máquina do mundo;
A noite negra e feia se alumia
Cós raios em que o Polo todo ardia!

CAMÔES, Luis de. Os Lusíadas, p. 236

A tempestade termina com a investigação de Vênus, que envia suas


ninfas para seduzir os ventos enfurecidos. O narrador encerra o canto
meditando sobre a verdadeira glória que um homem pode conquistar que deve
ser fruto de capacidade própria e não de privilégios hereditários.

Canto VII
Os portugueses chegam a Calicute, na Índia. Um degredado, João
Martins, é enviado a terra, e encontra Moncaide, mouro que, nascido na África
do Norte, conhecia as línguas da Península Ibérica. Estabelecem-se
entendimentos iniciais entre Vasco da Gama e autoridades indianas,
intermediados por Moncaide, o Catual sobe a bordo da nau capitânia
portuguesa, onde é recebido por Paulo da Gama, irmão do comandante da
frota. Algumas figuras e cenas pintadas em painéis de seda atraem a atenção
do indiano, que pede esclarecimentos.

Canto VIII
Paulo da Gama satisfaz a curiosidade do Catual, narrando-lhe os feitos
dos vários heróis portugueses representados nos painéis. Enquanto isso, Baco
aparece em sonhos a um sacerdote maometano, indispondo-o contra os
portugueses. Surgem propósitos de destruir a frota portuguesa; Vasco da
Gama, após entrevista com o Samorim, em que ficara acertada a troca da
especiaria por mercadorias, é vítima da traição do Catual, que estava ligado
aos interesses dos mouros e pretendia fazer aproximar a frota portuguesa da
costa para poder atacá-la. Gama, percebendo isso, envia seus homens de
volta aos navais, permanecendo em terra a fim de procurar resolver a questão.
O Catual o mantém preso por algum tempo, só permitindo que parta em troca
de mercadorias.

Canto IX
O Catual e seus aliados procuram atrasar a partida portuguesa, pois
esperam a chegada de uma armada proveniente de Meca que seria capaz de
destruir os barcos europeus. Moncaide previne Vasco da Gama desses pianos,
e o comandante resolve partir, não sem antes experimentar novos atritos por
causa de dois mercadores portugueses que haviam sido aprisionados em terra
e que acabam trocados por mercadores indianos que estavam a bordo. Os
portugueses deixam a Índia levando expressivas provas de que haviam
alcançado: Mocaide, (que os acompanha e posteriormente se converte ao
cristianismo), alguns prisioneiros indianos e, principalmente, mercadorias de
vários tipos.
Vênus decide recompensar os marinheiros portugueses pelas
tribulações da viagem, oferecendo-lhes repouso e deleite na “Ilha dos Amores”,
local paradisíaco dedicado ao prazer. Assim, as ninfas aguardam os
navegantes para o amor:

Outros, por outra parte, vão topar


Com as Deusas despidas, que se lavam; Elas começam súbito a gritar,
Como que assalto tal não esperavam. Nuas, fingindo menos estimar
A vergonha que a força, se lançavam Nuas por entre o mato, aos olhos
dando O que às mãos cobiçosas vão negando.

CAMÕES, Luís de. Os Lusíadas, p. 309.

Oh! Que famintos beijos na floresta, E que mimoso choro que soava!
Que afagos tão suaves, que ira honesta, Que em risinhos alegres se
tomava
O que mais passam na manhã e na sesta,
Que Vênus com prazeres inflamava, Melhor é experimentá-la que julgá-
lo;
Mas julgue-o quem não pode experimentá-lo.

CAMÕES, Luís de. Os Lusíadas, p. 311.

Os versos são riquíssimos em sensualidade, numa verdadeira


celebração pagã do amor. A mitologia servia muitas vezes aos poetas do
Renascimento como forma de exaltação dos prazeres da terra, reprimidos pela
mentalidade católica medieval. Observe que a concepção da “Ilha dos Amores”
se enquadra na ideia inicial do poema de que os feitos portugueses superavam
os dos grandes navegadores da Antiguidade: afinal, as próprias deusas antigas
é que consideram os navegadores modernos dignos de tal recompensa
amorosa.

Canto X
Tétis, deusa marinha, e as ninfas oferecem um banquete aos
navegantes. São feitas profecias acerca do futuro glorioso dos portugueses.
Tétis mostra a Vasco da Gama uma miniatura do Universo. Indicando-lhe os
lugares por onde os portugueses estenderão o império. A frota deixa então a
“Ilha dos Amores” e regressa a Portugal.
O epílogo inicia com a seguinte estrofe, uma das mais conhecidas do
poema:

No mais, Musa, no mais, que a Lira tenho Destemperada e a voz


enrouquecida,
E não do canto, mas de ver que venho Cantar a gente surda e
endurecida.
O favor com que mais se acende o engenho Não nos dá a pátria, não,
que está metida No gosto da cobiça e na rudeza
Dua austera, apagada e vil tristeza.

CAMÕES, Luís de. Os Lusíadas, p. 351.

O tom pessimista com que se encerra o poema (afinal, não há


motivação para cantar uma pátria afundada no gosto da cobiça e numa tristeza
vil) fez com que muitos estudiosos considerassem proféticas as palavras de
Camões sobre o destino de Portugal, que oito anos após a publicação do
poema perdeu a independência política. Parece mais ponderado dizer que a
decadência portuguesa se iniciara há algum tempo e se evidenciaria durante o
reinado de D. Sebastião. Portugal não dispunha de infraestrutura para
sustentar um império tão distante, constantemente ameaçado por outros
interesses imperiais e pela própria corrupção administrativa; além disso, a ação
da inquisição afugentava os capitalistas, que procuravam refúgio em países
mais tolerantes.
De acordo com os preceitos do Classicismo, Camões dividiu seu poema
épico em cinco partes bem definidas: proposição, invocação, dedicatória,
narração e epílogo. São dez cantos em oitava rima em que se constrói um
imenso painel da história de Portugal, desde suas origens mitológicas até o
século XVI. A espinha dorsal é a narrativa da viagem de Vasco da Gama às
Índias, episódio fundamental da expansão marítima portuguesa.
O material histórico é acompanhado por uma trama mitológica: Vênus e
Baco, divindades clássicas que, habilmente manipuladas, aumentam o
interesse do leitor pelo assunto narrado. Além disso, a solenidade épica e a
exaltação dos feitos heroicos são frequentemente acompanhadas por
observações imbuídas de profunda humanidade: se for verdade que o ser
humano consegue o domínio dos elementos naturais e a aquisição de
conhecimento e riqueza, também sabe que imensos sacrifícios são necessários
para isso.
A qualidade poética do texto não é uniforme, fato que não surpreende
num poema tão longo. Há passagens marcadas por certo prosaísmo,
principalmente aquelas dedicadas à narrativa histórica mais pura. O manuseio
do material verbal é, no entanto, engenhosamente desenvolvido em várias
passagens episódios nos quais se aliam criatividade, exploração de ritmos e
imagens e outros recursos poéticos. Pode-se afirmar que Os Lusíadas
constituem um projeto épico muito bem- sucedido, síntese do orgulho nacional
português e da capacidade criativa de Camões.

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