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MAIS DO QUE BELAS SARRACENAS:

A REPRESENTAÇÃO FEMININA NA CHANSON DE ROLAND E EM


FIERABRÁS
Elisângela Coelho Morais1
RESUMO
As Canções de Gesta Francesas tradicionalmente apresentavam personagens masculinos em grande
destaque, estes representavam a imagem do cavaleiro ideal, o que dificilmente ocorrerá com as
personagens femininas, que eram relegadas a coadjuvantes muitas vezes usadas como meios para a
valorização do herói, além de exemplos de dama perfeita, quieta e submissa. Essa apresentação tem o
objetivo mostrar duas personagens femininas que fogem dessa perspectiva tão explorada em algumas
dessas gestas: Bramimonde, esposa sarracena de Marsile, opositor do herói Roland, do texto, La
Chanson de Roland, obra medieval francesa, escrita entre os séculos XI e XII, trata da Batalha de
Roncevaux, embate entre o exército franco e o exército sarraceno pelo território de Saragoça e pela
supremacia religiosa da região e Floripas, princesa sarracena personagem da gesta Fierabrás escrita entre
1170 e 1190 , traz como pano de fundo a tomada de Roma pelos sarracenos, onde o rei Fierabrás, seu pai
o emir Balan e seus homens, onde mataram o papa, saquearam a Cidade Eterna, e entram em combate
com os francos liderados por Carlos Magno, apoiado por Roland e seu par Olivier. As mulheres citadas,
tem participação ativa, o que contradiz a princípio, comportamentos defendidos para o que uma dama
nobre deveria representar, além de apresentarem voz ativa e participação marcante, o que as outras
mulheres dos textos do período, geralmente não tem. Buscaremos mostrar as trajetórias dessas mulheres e
suas transformações no decorrer das narrativas que as fizeram ser aceitas na sociedade cristã ao se
converterem por amor: uma a Deus e outra a um cavaleiro franco. Apesar de suas origens não cristãs, são
recebidas pela Cristandade representada pelo imperador Carlos Magno.

Palavras-chave: Feminino, Idade Média, Canção de Gesta, Cavalaria.

ABSTRACT

The French’s Chansons de Geste of deed traditionally featured male characters in great prominence, they
represented the image of the ideal knight, which is unlikely to occur with female characters, who were
relegated to supporting roles, often used as a means of valuing the hero, in addition to examples of perfect
lady, quiet and submissive. This presentation aims to show two female characters who escape this
perspective so explored in some of these deeds: Bramimonde, Saracen wife of Marsile, opponent of the
hero Roland, of the text, La Chanson de Roland, a French medieval work, written between the 11th and
XII, deals with the Battle of Roncevaux, clash between the Frankish army and the Saracen army for the
territory of Zaragoza and for the religious supremacy of the region and Floripas, Saracen princess
character of the Fierabrás deed written between 1170 and 1190 , brings as a background the taking of
Rome by the Saracens, where the Saracen Fierabrás, his father the Emir Balan and his men, where they
killed the Pope, sacked the Eternal City, and entered into combat with the Franks led by Charlemagne,
supported by Roland and his pair Olivier. The women mentioned have active participation, which
contradicts, at first, behaviors advocated for what a noble lady should represent, in addition to having an
active voice and marked participation, which the other women in the texts do not have. We will seek to
show the trajectories of these women and their transformations in the course of the narratives that made
them accepted in Christian society when they converted out of love: one to God and the other to an
1
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História e Conexões Atlânticas-UFMA. Bolsista CAPES.
Membro do Brathair- Grupo de Estudos Celtas e Germânicos e do HILL-Grupo de História, Cultura Letrada e
Outras Linguagens-UFMA . elishst2@gmail.com
outspoken knight. Despite their non-Christian origins, they are welcomed by Christianity represented by
Emperor Charlemagne.
Keywords: Feminine, Middle Ages, Chanson de Geste, Cavalry

Construção das Narrativas

Os textos analisados, foram escritos durante o reinado dos capetíngios, Luís VI, Le Gros
(1108 - 1137) monarca que teve um início de reinado instável e de pouco apelo popular entre o
povo e até mesmo por parte da nobreza, e seu neto Phillipe II, Auguste (1180 - 1223), rei
possuidor um governo longo, marcado por conquistas territoriais e de estabilização político
econômica, além de afetado fortemente pelas Cruzadas.
Em ambos os reinados, teremos uma série de narrativas que buscavam reviver e ressignificar
o período onde Carlos Magno governava, numa forma de interligar o monarca reinante com tal
popular e admirada figura real. Observa-se especificamente duas narrativas que falam do embate
entre cristãos e sarracenos, pertencentes ao chamado Ciclo do Rei, voltado para a vida do
imperador Carolíngio.
O primeiro texto a ser observado será La Chanson de Roland, que notoriamente é
considerada um marco da produção cultural medieval francesa, possuindo várias versões,
produzidas entre os séculos XII e XV, sendo a mais conhecida a versão do Manuscrito de
Oxford, estudado e traduzido para o francês moderno por Joseph Bédier2
Escrito no período de 1050 a 1100, por Turold 3, originalmente em anglo-normando
(langue d’oil)4 dialeto utilizado especificamente na França, a obra foi usada como meio de
transmissão do discurso, da moral masculinos e femininos, e da ética medieval, além de
instrumentos de exibição de domínio sociopolítico da nobreza através de exemplos expressados
na narrativa. O manuscrito de Oxford possui 4002 versos decassílabos e 291 laisses.
É baseado no evento histórico de quando o exército franco liderado por Carlos Magno por
volta de 778, regressava da Espanha e teve a retaguarda atacada por montanheses bascos,
mortificados pela destruição de Pampelune 5 na garganta ou desfiladeiro de Roncevaux, onde
foram esmagados pelos pedregulhos, paus e dardos arremessados pelos agressores.
2
BÉDIER, Joseph. La Chanson de Roland (Manuscrit d'Oxford). Paris: L’edicion D’arts. 1923.
3
Turold/Turoldus é o nome que aparece no último verso da mais antiga versão da Canção de Rolando (manuscrito
de Oxford, composto em dialeto anglo-normando por volta de 1090 Ci falt la geste que Turoldus declinet (verso
cuja tradução segue motivo de debate entre os especialistas há séculos, mas que segundo alguns indicaria a autoria
da canção).devido ao trecho fazer menção a Turold no último verso (“Ci falt la geste que Turoldus declinet”)
4
Dialeto falado no norte da França, enquanto sul tinha como dialeto a langue d’oc.
5
FLORI, Jean. A Cavalaria: A origem dos nobres guerreiros da Idade Média. São Paulo; Madras, 2005, p. 54.
Na narrativa, os bascos foram substituídos por sarracenos, liderados por Marsile, que tinha
como esposa a rainha Bramimonde, boa esposa, leal ao marido e de voz sensata, algo um tanto
atípico dentro da concepção de representação de mulheres sarracenas, numa espécie de
hibridismo entre comportamentos cristãos e pagãos. Mais tais atitudes possuíam uma
justificativa, a futura conversão da rainha sarracena ao cristianismo, que mais adiante servirão de
inspiração para as mulheres cristãs:

O comportamento de Bramimonde é perturbador não para a boa sociedade cristã, mas para
“torta” (errada) sociedade muçulmana. E é verdade que os comentários de Bramimonde
contêm material preparatório para sua conversão, como sua crescente admiração por Carlos.
Mas o mau comportamento em uma sociedade o “delito” soma-se ao bem final? Não
exatamente. A insistente Bramimonde pode ser censurada de qualquer maneira que seja
medida. Isso se deve à estranha coabitação de valores cristãos e valores feudais
cavalheirescos na epopeia. (T.A)6

Já a segunda narrativa, que foi escrita durante o reinado de Phillipe II, Le Auguste, é uma
obra chama a atenção por seu escopo narrativo, e se chama Fierabras, sendo provavelmente
escrita entre 1170 e 1190, o texto traz os eventos ocorridos logo após a tomada de Roma 7 pelos
sarracenos8, liderados por Fierabras de Alexandria, seu pai o al mirant 9 Balan e seus homens, que
mataram o papa, saquearam a cidade santa, e levaram as relíquias da Paixão de Cristo, tal
narrativa remete ao real saque de Roma por esse povo em 846, e além desse fato, a Gesta relata a
batalha de Fierabras contra o par de Roland (personagem título da Chanson de Roland), Olivier.

6
KAHF, MOHJA. Western Representations of the Muslim Woman: from Termagant to odalisque Austin, TX,
Universityof Texas Press,1999, p. 24
7
Mesmo sendo escrita no contexto Cruzado, onde a cidade foco era Jerusalém, somente as épicas de temática
cruzada a usavam como cidade principal de suas narrativas, os demais textos privilegiavam geralmente Paris ou
Roma. O interesse dos consumidores dos textos era mais facilmente despertado por localidades mais próximas, já
que eles não poderiam ir até Maomé, Maomé viria até eles, por isso o conflito era transferido para solo Francês,
Italiano ou Espanhol, o que importava era manter o zelo santo e o ódio aos infiéis. (T.A) COMFORT, William
Wistar. “The Literary Rôle of the Saracens in the French Epic.” PMLA, vol. 55, no. 3, Modern Language
Association, 1940, p. 648.
8
“Nos romances, o termo sarraceno serve como lugar de ambiguidade e alteridade; é um termo no qual as noções de
raça, cultura, religião e geografia são confundidos ao ponto de que, apesar da falta de evidência de fenótipo ou
diferença cultural por parte dos sarracenos familiares, a sua sarracenidade é reforçada por serem sarracenos.
Saraceno é um descritor auto-referencial, e, portanto, não precisa ser qualificado por informações detalhando o que
significa ser sarraceno. Esses sarracenos são sarracenos precisamente porque são sarracenos. Para o sarraceno
familiar, o sarraceno é algo semelhante a uma doença virulenta potencialmente contagiosa, mas latente. Para todas
as aparências externas, tais personagens são em grande parte indistinguíveis de suas contrapartes cristãs. No entanto,
em momentos-chave, eles são propensos a ter um “surto” no qual os sintomas de sua sarracenidade se manifestam.
Nesse ponto, o sarraceno familiar torna-se um perigo para os personagens cristãos, e devem ficar em quarentena dos
personagens e leitores cristãos, muitas vezes por suas maneiras violentas.” T.A. NADHIRI, Aman Y. Saracens and
Franks in 12th- 15 th Century European and Near Eastern Literature´Perceptions of Self and the Other. New York:
Routhledge ,2017, p. 86.
9
Derivado do árabe amir-al-bahr, segundo Miguel Nimer, o mesmo que emir, “ C.p. turco, persa e àr. , mīr :
Príncipe; chefe; comandante; senhor. .NIMER, Miguel. Influências Orientais na Língua Portuguesa: os vocábulos
árabes, arabizados, persas e turcos: etimologia, aplicações analíticas. São Paulo, Editora da Universidade de São
Paulo, 2005, p. 153.
Que após vencer Fierabras, é levado prisioneiro, onde conhece Floripas, a bela princesa
sarracena, irmã do gigante de Alexandria, que terá participação ativa na narrativa e se torna um
dos personagens mais importantes dentro da épica.

As sarracenas contidas nas narrativas.

Nos dois textos, os principais antagonistas aos cristãos são os sarracenos, mas quem
seriam eles?
O termo "Sarraceno" entrou no uso do grego tardio (grec: Sarakenoi), e do latim tardio
10
durante o final da antiguidade, e naquela época simplesmente significava "Árabe". Com a
ascensão do Islã, e nos subsequentes tempos europeus medievais, escritores usaram "sarraceno"
para denotar ou "árabe" ou "muçulmano" e também a ambos, de acordo com o contexto. Esse
povo tomou várias áreas a partir do século VII, como Pérsia, Síria, Turquia e África do Norte,
chegando até a Península Itálica, e a Península Ibérica 11.
Na Chanson de Roland substituem os bascos, como oponentes dos cristãos francos, que
liderados por Carlos Magno, partem para “libertar” Saragossa da dominação sarracena, e onde no
caminho, os cristãos são emboscados no desfiladeiro de Roncevaux.
A mudança dos originais bascos (inimigos dos francos no século IX), pelos sarracenos no
século XII, foi e influenciada pela Primeira Cruzada, onde os inimigos eram os não-cristãos, que
estavam “no caminho do erro”. La Chanson de Roland durante todo o seu andamento, busca
reforçar a valorização das linhagens senhoriais e da transmissão de valores através dela, entre
estes o amor a seu Deus e a seu rei. Que na narrativa é Carlos Magno, e na realidade, Luís VI,
que desejava ter a devoção e o amor de seus súditos, e para isso, atrelou firmemente sua imagem
ao imperador Carolíngio12.
A narrativa possui duas personagens femininas: Aude (noiva de Roland e irmã de Olivier):
bela donzela, referida com a palavra jovem damisele, expressa suas características físicas e
morais, vive à espera do noivo prometido. Suas principais qualidades são a castidade e a
obediência, sendo características ideais para as damas cristãs do período:

10
C. E. BOSWORTH, E. VAN DONZEL, W. P. HEINRICHS. The Encycloaedia of Islam vol.09, Koninklijke Brill,
Leiden, The Netherlands,1997, p. 28.
11
GARCÍA, Elena González-Blanco. Sarracín, sarraceno y su campo semántico. Un problema léxico abierto.
Interlinguistica, n. 17. 2007.p. 451.
12
DUBY, Georges. Idade Média na França (987-1460): De Hugo Capeto à Joana D’Arc. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Editor,1992, p.130.
“Aude é uma mulher fiel, piedosa, linda, e nobre cujo sacrifício é honrado. [...] Em sua introdução
como personagem foi definida por seu relacionamento com Roland e Olivier, seus atos estão
intimamente relacionados com Carlos Magno, seu soberano, com poder total sobre sua pessoa. A
implicação do poeta sugere os comedimentos espaciais e legais dentro dos quais ela existe (o palácio e
o casamento organizado), ao mesmo tempo que explicam explicitamente o domínio masculino que
circunscreve sua vida. As ações de Carlos Magno iniciam e terminam o episódio e suas palavras ou os
atos ocupam dezessete dos vinte e nove versos. A vida de Aude é confiável, dentro dos limites da
Família, do Noivado e da Igreja; embora esteja associada às principais figuras heroicas do poema
(Rolando, Olivier, Carlos Magno), ela é blindada, protegida, concedida. Ela é totalmente dependente,
e sua honra, como seu status, é refletida de personagens masculinos. (T.A)13

A outra é Bramimonde, rainha sarracena esposa de Marsile, destaca-se por ser a única mulher
no ambiente de batalha, possui em uma imagem simbólica político religiosa ligada a ela, é nobre,
de alta linhagem.
E mesmo pagã, é louvada como esposa leal, fala em momentos de derrota, mas firmemente,
se rende, enquanto o marido se atemoriza. Seu destaque e posição representativa, aumentam
verso por verso.

“Bramimunde é retratada como uma esposa leal, cumprindo os deveres reais de seu status, mas após o
ferimento mortal de seu esposo, Marsile, sua atividade, proeminência e posição representativa,
aumentam o verso por verso. E muito depois de seu rei-consorte ter morrido, a Rainha Braminonde
está viva, uma convertida digna, muito além da identificação amor-casamento de outras mulheres
medievais em outras obras de literatura, como Isolda. Chamar Braminonda de um modelo a seguir é
ser cego para a dicotomia pagão-cristã que essa épica tenta ilustrar; é seguro concluir que, para
nenhuma mulher cristã francesa, Bramimunde, no mínimo, como inspiração”. (T.A)14

E tal destaque se consolida ao final, quando esta após ser cativa, é feita cristã, mudando de
nome e atitude, a outrora falante, se silencia após sua prisão, e ela mesmo cristã, não será usada
como modelo, apenas, inspiração.
No decorrer do texto há “sinais” de que ela não é um caso perdido, pois suas atitudes são
incensadas como sensatas e que suas ações se determinam por ela ser boa esposa. Se submete à
Igreja (onde se torna freira) e a Carlos Magno que tinha um especial interesse por essa
conversão, pois desejava que ela se convertesse par amur, ou seja, que se tornasse cristã por
escolha e não por obrigação como os demais personagens da narrativa: ela aceita ser batizada e
com isso, ganha nova vida, representando, por que não, o triunfo do cristianismo, quando ela
saiu do erro e adentrou no “direito”.
Prosseguindo a narrativa, Fierabras em seus 6219 versos longos (chamados alexandrino
francês), relata ainda, o combate entre Fierabrás e Olivier, ocorrido três anos antes da Batalha de
Roncevaux. A ação se dá em grande parte no ambiente vivido pelos “infiéis” sarracenos. Durante

13
HARRISON, Ann Tukey. Aude and Bramimunde: Their Importance in the Chanson de Roland In: The French
Review. Vol. 54, No. 5 (Apr., 1981),p. 673-674.
14
Idem, p. 678.
toda o texto, o autor reforçará a imagem dos sarracenos como traidores e mentirosos, além de
ladrões e profanadores das cidades cristãs.
Assim como a Chanson de Roland (inspirada pela primeira Cruzada), Fierabras também
tem a mesma inspiração, só que no seu caso, da Terceira Cruzada, onde o exército sarraceno da
sua narrativa, tem formação semelhante à do líder sarraceno Saladino15.
A personagem feminina com maior destaque, é a princesa sarracena Floripas, irmã do
personagem título. Outra mulher no texto é a giganta Amiette, que assim como seu marido o
gigante Effraon, é vista como diabólica. Ela é descrita como de olhos vermelhos como chamas,
muito feia e desfigurada(vers.5042-5043)
Ao contrário de Floripas, que é sempre descrita como bela, com a tez branca, face
avermelhada, boca pequena, dentes mais brancos que marfim, lábios grossos e vermelhos, fronte
bela e plana (vers.2007-2014)16.Tais diferenças se devem à posição social das personagens,
enquanto Amiette é do povo, Floripas é nobre.Mas apesar de apresentada sobre um prisma
também favorável, ela tem defeitos, é geniosa e contestadora, tais características de sua
personalidade são atribuídas a sua origem sarracena.

Essa avaliação de Floripas como mulher selvagem ou feroz se opõe diretamente à intenção
do longo retrato que anuncia sua entrada no poema. Lá a intenção é claramente a inclusão no
círculo cortesão. Apresentada nos apetrechos de louvor, ela conhece os procedimentos da
corte e está vestida de maneira elaborada. (T.A)17

Mas ela assim como Bramimonde, está destinada a ser cristã e por isso escolhe ajudar os
inimigos cristãos, mesmo sendo alertada a não fazê-lo.Mata por eles, e se diverte nos momentos
de violência, mas tal comportamento só ocorre antes da jovem se converter e ser batizada.
É extremamente inteligente, negocia com os francos e por diversas vezes é a “voz da razão”,
contrariando o modelo de dama emotiva, silenciosa e obediente. Entra em discussão com seu pai
e ameaça atacá-lo fisicamente, mostrando desapego e deslealdade aos sarracenos, e ao ver seu
pai ser julgado e morto, diz não sentir nada por isso.

15
Salah al-Din Yusuf b. Ayyub (falecido em 589/1193), que se tornou conhecido no Ocidente como Saladino, foi
um guerreiro curdo conhecido por )suas vitórias sobre os cruzados e como o fundador da dinastia aiúbida no Egito,
Síria e alto Iraque. A derrota dos Cruzados por Saladino nos Chifres de Hattin (4 de julho de 1187 EC) no norte da
Palestina, que levou a Reconquista muçulmana de Jerusalém e a quase eliminação dos francos no levante. (T. A)
MARTIN. Richard C.et al, - Encyclopedia of Islam and the Muslim World-Gale, Farmington Hills, Mich, 2016, p.
1000.
16
A. Kroeber et G. Servois. Fierabras. Chanson de geste. Publiée pour la première fois d'après les manuscrits de
Paris, de Rome et de Londres. Paris, 1860. Les anciens poètes de la France 4, p.61.
17
TRACY, Larissa , Treason: Medieval and Early Modern Adultery, Betrayal, and Shame. Explorations in
Medieval Culture 10. Leiden: Brill, 2019,.p. 223.
Mesmo independente, apresenta uma motivação considerada dentro das gestas tipicamente
feminina: o amor carnal, pois Floripas renega sua fé e sua linhagem por amor a um homem
franco, Gui de Borgonha. Numa tendencia do período, apresenta mulheres mais ativas, que tem
mais iniciativa em busca do parceiro almejado e de seus objetivos, coadunando com o
movimento de corte, onde as mulheres tem uma participação social mais acentuada, sobretudo as
mulheres do Sul da França, região de produção de Fierabras.

Os escritores das canções de gesta não participam dessa colocação da mulher num pedestal.
As mulheres sarracenas são mulheres de ação, além de grandes belezas. Elas miram em um
objetivo e o realizam. Eles superam em muito os homens em desenvoltura. Contar suas
histórias nas cortes forneceu modelos para mulheres ativas e governantes. Estas são as
mulheres que seriam apreciadas pelas damas que governavam nas cortes do Sul 18

Floripas aparece como um personagem autônomo, com seu próprio direito, uma mulher em
mudança constante, inicialmente não se enquadra no ideal feminino cristão do período: de
docilidade e submissão, mas sim de uma mulher forte e que faz os guerreiros reagirem e
interagirem com ela. Ao fim é recompensada com seu desejo atendido, casa-se com seu amado.

Concluindo:

Por sua posição social, elas têm mais “facilidade” em serem aceitas como cristãs convertidas,
pois trazem dinheiro e territórios ao comando de Carlos Magno. Mostram também que as
personagens não cristãs podem apresentar nas gestas comportamentos mais altivos, assim como
tem mais voz, e que não são apenas beleza, mas inteligência e autoridade, isso elas demonstram
antes de se converterem, pois após o batismo, deixam de ser “sarracenas” e assumem seu papel
social de cristã com os requisitos esperados delas. Numa dicotomia onde elas podem ter atitude,
mas até certo ponto.
Suas motivações para a conversão são diferentes: enquanto Floripas se completa com o
casamento e se converte pelo eros, numa referência aos anseios da época em que Fierabras foi
escrita, onde a audiência está envolvida no roman courtois.
Já Bramimonde torna-se cristã dentro de uma conjuntura político religiosa, onde do público
da Chanson de Roland, ainda buscava o modelo ideal de mulher mais submissa, e ligada à
religiosidade. Ou seja, ambas as narrativas se enquadram aos modelos definidos pela época em
que foram escritas.
18
RAMEY, Lynn. Christian, Saracen, and Genre in Medieval French Literature. New York: Routledge, 2001.
p. 45.
Referências

A. Kroeber et G. Servois. Fierabras. Chanson de geste. Publiée pour la première fois d'après
les manuscrits de Paris, de Rome et de Londres. Paris, 1860. Les anciens poètes de la France 4.
BÉDIER, Joseph. La Chanson de Roland (Manuscrit d'Oxford). Paris: L’edicion D’arts. 1923.
C. E. BOSWORTH, E. VAN DONZEL, W. P. HEINRICHS. The Encycloaedia of Islam vol.09,
Koninklijke Brill, Leiden, The Netherlands,1997,
COMFORT, William Wistar. “The Literary Rôle of the Saracens in the French Epic.” PMLA,
vol. 55, no. 3, Modern Language Association, 1940.

DUBY, Georges. Idade Média na França (987-1460): De Hugo Capeto à Joana D’Arc. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor,.1992.
FLORI, Jean. A Cavalaria: A origem dos nobres guerreiros da Idade Média. São Paulo; Madras,
2005
GARCÍA, Elena González-Blanco. Sarracín, sarraceno y su campo semántico. Un problema
léxico abierto. Interlinguistica, n. 17. 2007.

HARRISON, Ann Tukey. Aude and Bramimunde: Their Importance in the Chanson de Roland
In: The French Review. Vol. 54, No. 5 (Apr., 1981).
KAHF, MOHJA. Western Representations of the Muslim Woman: from Termagant to odalisque
(Austin, TX, University of Texas Press),1999.
MARTIN. Richard C.et al, - Encyclopedia of Islam and the Muslim World-Gale, Farmington
Hills, Mich, 2016.

NADHIRI, Aman Y. Saracens and Franks in 12th- 15 th Century European and Near Eastern
Literature´Perceptions of Self and the Other. New York: Routhledge ,2017.

NIMER, Miguel. Influências Orientais na Língua Portuguesa: os vocábulos árabes, arabizados,


persas e turcos: etimologia, aplicações analíticas. São Paulo, Editora da Universidade de São
Paulo, 2005.

RAMEY, Lynn. Christian, Saracen, and Genre in Medieval French Literature. New York:
Routledge, 2001.
TRACY, Larissa , Treason: Medieval and Early Modern Adultery, Betrayal, and Shame.
Explorations in Medieval Culture 10. Leiden: Brill, 2019.

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