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Belair e CAM: produtoras experimentais no Brasil e na Argentina

Estevão Garcia

A presente comunicação objetiva realizar um estudo comparativo entre a produtora brasileira Belair filmes e
a argentina CAM por meio da análise de um filme de cada, a saber: Sem essa aranha, de Rogério Sganzerla e
Puntos suspensivos, de Edgardo Cozarinsky. Sabe-se que ambas as produtoras se constituem como projetos
autorais coletivos e fundamentados na afinidade e amizade existente entre os seus sócios. Em cada uma delas,
encontramos três: os diretores Rogério Sganzerla e Julio Bressane e a atriz Helena Ignes, na brasileira; e os
diretores Edgardo Cozarinsky, Miguel Bejo e Julio César Ludueña, na argentina.
As duas “empresas” produziram uma significativa quantidade de filmes em um período bastante curto e tive-
ram vida efêmera. A Belair rodou em 1970 os longas A família do barulho, Cuidado madame, Barão Olavo, o
horrível (todos de Bressane), Carnaval na lama, Copacabana mon amour, Sem essa aranha (todos de Sganzer-
la) e um filme não finalizado em super 8 chamado A miss e o dinossauro. A CAM realizou em 1971 os filmes
Alianza para el progreso e La civilización está haciendo masa y no deja oír (de Ludueña), La família unida
esperando la llegada de Hallewyn (de Bejo) e Puntos suspensivos (de Cozarinsky).
O nome da produtora carioca é uma homenagem ao automóvel conversível homônimo que naquela altura já
era considerado ultrapassado, decadente e até mesmo cafona. O nome Belair, que muitos também atribuem ao
bairro Hollywoodiano e ao edifício cabeça de porco, localizado na Praia de Botafogo, de mesmo nome, suge-
re a atração de seus sócios pelo kitsch (RAMOS, 1987, p.96). Já o da produtora portenha, indica uma direta
tomada de posição diante do contexto cinematográfico de seu país, uma vez que a sigla CAM significa Cine
Argentino Moderno. O nome também tinha sido extraído de uma conversa entre os três sócios e o então diretor
do Instituto Nacional de Cinematografía, o veterano realizador Mario Soffici, em que ele teria dito: “Ustedes
los jóvenes, los que hacen el cine argentino moderno” (TIRRI, 2000, p.88).
Devido ao clima de perseguição política e do aumento das restrições impostas ao trabalho artístico no Brasil e
na Argentina, tanto a Belair como a CAM optaram por não submeterem seus filmes aos órgãos de censura de
seus respectivos países, o que os impedia de serem reconhecidos oficialmente como filmes brasileiros ou ar-
gentinos e de obterem sua circulação comercial assegurada. Apostando todas as suas fichas nas possibilidades
ilimitadas da expressão autoral e da liberdade de criação, somente alcançadas porque não passaram pelo crivo
da censura, as duas experiências optaram pela clandestinidade. Tanto a brasileira como a argentina podem ser
definidas como produtoras clandestinas, já que não possuíam nenhum documento ou certificado que as identi-
ficassem como empresas. Sem CNPJ ou qualquer tipo de registro, as duas empreitadas se dedicaram ao âmbito
da criação e da produção de filmes, deixando em segundo plano a distribuição e a exibição.
Tanto os filmes da Belair como os da CAM apresentam um certo repúdio ao conceito tradicional de obra artís-
tica: esteticamente bem acabada, de propósitos transcendentes e de inquestionável bom gosto. Mais próximas
ao conceito de antiarte, as duas produtoras desejavam efetivar o contato com o espectador pela via da agressão,
da falta de transparência do discurso fílmico e do humor corrosivo. Negavam anarquicamente o profissiona-
lismo cinematográfico e recusavam a compreensão da arte e do cinema como mercadoria. Queriam arrancar o
cinema de seu aspecto industrial e espetacular, próprio de sua absorção pelo sistema capitalista. Se o capitalis-
mo promovia a espetacularização total das relações sociais, o cinema, como instância superior, deveria, dentro
do seu universo, articular exatamente o contrário. Nota-se aqui uma certa influência da Intentona Situacionista
de Guy Debord.
O nosso recorte é a passagem dos anos 1960 para os 70, mais precisamente as mudanças ocorridas nos campos
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da arte e da cultura a partir de 1968. A partir desse marco – compreendido aqui como um processo histórico
amplo e não como uma simples demarcação cronológica –, algo se modifica na percepção do papel do cinema
e do cineasta e da relação de ambos com o mundo. Os conceitos tradicionais de “política” e de “arte política”
são reavaliados e substituídos por interpretações mais abrangentes. Definitivamente, o cinema passa a ser visto
como um campo autônomo e independente que absorve e reinterpreta os outros campos a partir de si. Ele não
é mais um instrumento para as outras áreas e sim o contrário. A realidade do cinema torna-se mais potente do
que a realidade ordinária. A forma e a estética começam a carregar intrinsicamente o estatuto de compromisso
político. Experimentar com a imagem e buscar novas linhas estéticas tornaram-se uma nova maneira de ser
político, de fazer política.
Compreendemos que tanto a Belair como a CAM são experiências sintonizadas às mudanças ocorridas nessa
passagem dos anos 1960 para os 70 ao passo que os seus antecessores, o Cinema Novo e o cinema militante
argentino, respectivamente, ainda estariam conectados às posturas do início da década. Posturas que delinea-
vam uma certa concepção da relação entre cinema e política e na defesa de uma determinada ideia de cultura
e identidade nacional. Na nova conjuntura se disseminará a ideia de que o alto grau de preocupação de um
filme com a sua própria forma e estilo não necessariamente diminuirá a sua dimensão política. A política no
filme não seria mais vista nos termos do alcance comunicativo e da persuasão pedagógica e sim pela questão
do diálogo agressivo estabelecido com o espectador, em termos individuais.
Uma vez que a descontinuidade narrativa, a autorreflexividade, a quebra do ilusionismo e a desnaturalização
das atuações são características inerentes ao cinema moderno e foram utilizadas, sobretudo, para fazer refle-
tir, frustrar ou agredir os seus espectadores, buscando romper com a identificação e a relação contemplativa
próprias do cinema clássico, perguntamos: o que realmente mudou, nesse momento, nos modos e estratégias
de inscrição dos espectadores? Temos aqui como uma possível resposta a passagem do didatismo revolucio-
nário para o choque profanador como método e da ideia de público-povo para a de público como espectador
individual, como concepção.
A estética dessa nova conjuntura deveria ser diretamente proporcional à potência da crítica que deveria ser
direcionada a uma sociedade complexa e caótica. Não se pensaria mais em um “povo” para o qual o artista
enviaria a sua “mensagem” e o persuadiria para a sua “causa” e sim em um espectador individual pertencente
às classes médias e altas que deveria ser atacado por meio de estratégias de agressão.
Deste modo, a relação entre fruição estética e crítica social se deslocaria do tema para a própria estilística e os
processos formais. As provocações à classe média realizada por esses filmes brasileiros e argentinos também
se concretizariam por meio da apropriação crítica e sarcástica de padrões comportamentais, político-culturais
e de mitos identitários de uma nacionalidade em conjunção dissonante com uma discussão ampla sobre os
meios de comunicação de massa e as transformações advindas de sua expansão na América-Latina.
Diante dos protocolos da cultura de massa, de um lado, e da tradição das vanguardas históricas, do outro, essas
novas dinâmicas ainda tinham como alvo de suas críticas o universo da indústria cultural, mas deixaram de
lado a utopia da criação de um mundo a salvo da contaminação da mídia (XAVIER, 2012, 54). Incorporando
e reconfigurando criticamente as estratégias da mídia e da cultura pop, seja em tom de ironia ou pastiche e,
sobretudo, atentos ao sentido político de suas citações, os filmes da Belair e da CAM distanciam-se de filmes
como A opinião pública (Arnaldo Jabor, Brasil, 1966) ou La hora de los hornos (Fernando Solanas e Octavio
Getino, Argentina, 1966-1968). Nesses, tanto a cultura de massa como a classe média urbana são retratadas
de maneira caricata, porém, são associadas diretamente aos grandes centros, como se não fossem elementos
pertencentes ou integrantes das “autênticas” sociedades latino-americanas.
Constatamos nos seis filmes produzidos pela Belair e nos quatro produzidos pela CAM um nítido afastamento
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de qualquer suposta unidade entre tela e público, que faria do cinema um espaço ritualístico da identidade
nacional. Os dois grupos são a expressão de uma sociedade fragmentada, das gerações proscritas e de jovens
não mais empenhados em exercer o papel de guias ou porta-vozes do povo. A nação, não cumprindo o seu pa-
pel de agente das transformações históricas, é substituída ou filtrada pelo cinema, que não mais a percebendo
como uma utopia, revela de maneira mais drástica todas as suas fissuras. Os realizadores da Belair e da CAM
foram mais violentos do que os seus antecessores na exposição dos escombros sociais, criando personagens
e situações que romperam os moldes estabelecidos. Anulada a esperança na “revolução”, aqui, se é possível
vislumbrar alguma utopia, ela somente será encontrada pela via da criação e da linguagem cinematográfica. É
somente revolucionando o mundo do cinema que se poderá revolucionar o mundo.
Contrariando um pouco a maior parte da bibliografia que considera essa geração e suas produções como es-
sencialmente distópicas, cremos que tal afirmação categórica poderia ser relativizada uma vez que a crença
nas potencialidades do cinema e da linguagem cinematográfica não deixa de ser uma utopia. Aqui, a presença
do cinema nos filmes extrapola os usos comuns atribuídos à autorreflexividade, já que o cinema era compre-
endido com algo indissociável da vida, um elemento interno e uma matéria cotidiana. Para identificarmos as
diferenças e as rupturas realizadas pelas duas produtoras, analisaremos, como havíamos dito, dois filmes de
cada: Sem essa aranha e Puntos suspensivos.
Sem essa aranha e Puntos suspensivos, como os demais filmes de suas produtoras, são dois filmes urgentes e
que carregam o seu momento histórico, inclusive, no seu modo de produção. Articulam-se dentro do espaço
do presente, do agora, porém, o percebem como uma barreira que precisa ser ultrapassada ou um estágio que
clama por ser superado. De fato, o país e o mundo, captados no momento presente dos dois filmes, não são dos
melhores. Mas, como sair do presente e tomar um passo adiante rumo a algo que possa ser chamado de futuro
se o agoniante presente nunca acaba?
Nos dois filmes a possibilidade de se agarrar a alguma utopia se restringe ao âmbito da criação cinematográfi-
ca. Desse modo, Sem essa aranha e Puntos suspensivos, pelas sendas da linguagem, se grudam ao presente ao
mesmo tempo em que pretendem reelaborá-lo.
No filme da Belair, a articulação com o instante se realiza por meio da unidade espaçotemporal do plano-
sequência. Estruturado em 17 planos longos, cada plano é um bloco narrativo autônomo, não se comunicando
com o que veio antes e nem com o que virá depois. Não há trama definida e nem continuidade dramática, as
ações começam e terminam de acordo com a duração de cada cena isolada. Os únicos elementos que unem os
planos e que proporcionam ao filme uma certa unidade e coerência são os personagens, sobretudo, o protago-
nista Aranha. Na pele do inescrupuloso empresário Aranha, encontramos o comediante televisivo Jorge Lore-
do, cujo personagem Zé Bonitinho, de grande popularidade, se funde com o do “último capitalista do país”.
Já Puntos suspensivos não utiliza o recurso do plano-sequência, mas demarca os seus blocos narrativos, igual-
mente autônomos e isolados, por meio de cartelas ou intertítulos grafados com letras brancas sobre fundo
negro. O único ponto de contato entre os seguimentos narrativos é o personagem protagonista, um padre rea-
cionário, cujo nome só sabemos próximo do final do filme. Seu nome é M, uma direta alusão à M, o Vampiro
de Dulsseldorf (Fritz Lang, Alemanha, 1931). A associação desse estranho personagem com o expressionismo
alemão voltará ao longo da projeção por meio da utilização de um fragmento de Nosferatu (F.W Murnau,
Alemanha, 1922). É curioso notar que, tanto em Sem essa aranha como em Puntos suspensivos, a realidade
do Brasil e da Argentina, respectivamente, é analisada por meio de personagens de direita. Os dois filmes são
estruturados pela composição de personagens que representam o ponto de vista do “inimigo”. O capitalista
Aranha representa a ala mais entreguista e corrupta do empresariado brasileiro, ao passo que o Padre M sim-
boliza a facção mais conservadora da Igreja argentina.
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Os dois simbolizam sistemas e instituições, o capitalismo em Aranha e a Igreja em M. Ambos, sem ter passa-
do ou futuro, habitam perpetuamente o presente. Sem dúvida, dispomos de parca informação sobre eles. As
suas construções, como personagens, não seguem parâmetro psicológico ou sociológico algum, se aproxi-
mando mais da estilística da tipificação. Ao serem estruturados como personagens tipos, figuras ou alegorias,
dificilmente a relação entre eles e o espectador será de identificação emocional, tornando-se mais factível a
instalação de um certo distanciamento. O registro humorístico e paródico, muito mais forte em Aranha, mas
também presente em M, colabora tanto para a articulação desse estranhamento quanto pela acidez no retrato
ridicularizado das direitas brasileira e argentina.
Aranha é um personagem mais multifacetado. Ao mesmo tempo em que aparece como capitalista excêntrico
em uma cobertura de luxo, podemos vê-lo como ator de teatro de revista em um miserável cabaré de Copaca-
bana ou em um prostíbulo paraguaio. Também podemos encontrá-lo, sem peruca e sem vestimentas burguesas,
descendo as ladeiras do Morro do Vidigal, misturado aos populares. Independente dos espaços pelos quais
transita, Aranha é ativo e camaleônico. Já M, é uniforme nos espaços, todos eles pertencentes ao poder, que
visita. Aqui, cada espaço, pertence a um distinto bloco narrativo, chamado pelo filme de “encontros”. São eles:
Primeiro encontro: cenas da vida marcial; Segundo encontro: cenas da vida burguesa; e Terceiro encontro:
cenas da vida eclesiástica. M atravessa esses lugares e seus habitantes de maneira impassível, como um ob-
servador. Certamente, M é um observador clássico, não é modificado pelo outro e nem o modifica (OUBIÑA,
2011, p.223).
Em Sem essa aranha, escutamos sair da boca de seus personagens indagações como “o que é o Brasil?”, “o que
é o brasileiro?”. A busca por uma definição do que seria o Brasil e o brasileiro é primeiramente uma resposta
a um anseio de autoafirmação e de crise identitária. Para definir um objeto é necessário antes identificá-lo, e
o filme opera uma ânsia de classificação simultaneamente a uma urgência de se encontrar uma identidade. Ao
mesmo tempo em que é preciso definir o Brasil, é preciso saber o que é o Brasil. Maria Gladys e Helena Ignez,
exiladas em um outro país latino-americano que tudo indica ser o Paraguai, deslizam o dedo no mapa-múndi,
procurando onde se localiza o Brasil, sem encontrá-lo. Chegam à conclusão de que ele está fora da página, de
que o país foi riscado do mapa.
Em Sem Essa Aranha, uma irônica alternativa ao brasileiro, para finalmente sair de sua crise existencial, seria
talvez seguir “a linha do mal”. O ator Guará Rodrigues, que também faz o som direto, diversas vezes grita fora
de quadro “a saída do brasileiro é a linha do mal”. No plano-sequência do camarim, Aranha diz: “vender a
alma ao demônio, essa é a saída do brasileiro por enquanto”, “sempre tive a impressão de que o diabo ia com
a nossa cara”. Aqui não há a pretensão de defender marcas identitárias totalizantes e sim a dúvida e a procura.
No filme da CAM o padre visita um casal burguês, cuja filha, que estuda em Paris, acaba de chegar. M diz à
moça ter escutado que em Paris há muito interesse por nós, os latino-americanos. A jovem então responde:
“Sí, pero los argentinos vamos muertos. No tenemos color local, no parecemos índios, no impressionamos a
nadie. Nous ne sommes pas assez Tiers Monde”. Mas, a melhor sequência para ilustrar como o filme articula
a questão da identidade talvez seja a em que ele faz uma leitura de Buenos Aires. Tal cena pertence ao bloco
“Primeiro encontro: cenas da vida marcial”. A sequência é antecedida por um intertítulo em que lemos a per-
gunta “Onde ocorre tudo isso?”. O corte nos leva para um ambiente em que podemos reconhecer como as ruas
do centro de Buenos Aires. A decupagem e o tom da narração over nos remetem ao estilo documental dos Tra-
vel Talks, que foram filmados por James Fitzpatrick para a MGM nos anos 1940. Vemos aqui uma articulação
paródica da estética desses documentários que complementavam a projeção do filme principal.
Deste modo é captada a agitação diária do centro: pessoas caminhando pelas ruas, automóveis, lojas, casas de
espetáculo, cartazes, letreiros luminosos. Porém, o elemento principal desse segmento está na relação entre
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imagem e banda sonora. Simultaneamente escutamos a marcha “A patrulha dos cossacos” e uma descrição
urbanística com dados estatísticos sobre a cidade de Calcutá. Buenos Aires e Calcutá então se fundem e se
confundem.
O choque entre a imagem e o texto apresenta uma carga humorística ao salientar a sua falta de correspondência
e as diferenças visíveis entre as duas cidades. No entanto, esse choque também nos leva a pensar nas possí-
veis semelhanças entre essas duas metrópoles do Terceiro Mundo. Em Puntos suspensivos, diferentemente
do discurso militante que apenas enxergava a nação nas classes populares, a justaposição da classe média
perambulando pelo Centro com a narração sobre Calcutá nos leva a crer que a classe média é também o país,
mas não só. O filme não a nega, mas a particulariza. Os vocábulos “colonizado” e “europeizado”, atribuídos
ao filme pela crítica europeia, tornam-se obsoletos. A Argentina não satisfaz em termos de imagens a sede dos
europeus pelos signos ditos característicos da América-Latina e do Terceiro Mundo. Buenos Aires, apesar de
latino-americana e terceiro-mundista, decididamente não é Calcutá.
Tanto o filme da Belair como o da CAM são filmes declaradamente urbanos. Ambos rechaçam a oposição
campo cidade tão comum no discurso cinemanovista e militante. Tal discurso sublinhava a oposição entre um
país rural, matriz da identidade nacional, e um país urbano, lugar da descaracterização da cultura provocada
pela invasão dos produtos da indústria cultural internacional. O campo seria o espaço da pureza, e a cidade,
o da contaminação externa e da perda de originalidade. Sem essa aranha prova o contrário ao resgatar um cô-
mico da televisão como ator principal e dois ícones da cultura popular: Moreira da Silva (símbolo do samba,
uma cultura essencialmente urbana) e Luís Gonzaga (o Rei do Baião, mas que há muito já tinha migrado para a
cidade). Puntos suspensivos não compreende a Argentina e Buenos Aires fora do conceito de transculturação.
O que é de dentro e o que é de fora não são tão facilmente identificáveis. Ser o fruto de uma mistura, ser ori-
ginalmente híbrido é por si só uma marca identitária.
Curiosamente, tanto Aranha como M são mortos no final e ambos em uma espécie de ritual de exorcismo.
No filme brasileiro, o protagonista é apunhalado pelas costas por sua mulher, em uma ação que nos remete à
cena de O dragão da maldade contra o santo guerreiro (Glauber Rocha, Brasil, 1969) atuada por Odete Lara
e Hugo Carvana. Logo após o assassinato de Aranha, a atriz Aparecida, ao lodo do cadáver, pega uma garrafa
e a introduz na vagina. A auto-violência ou auto-estupro empreendido pela atriz apresenta um significado de
libertação e expurgo. Da mesma forma, M, em sua viagem, ao se encontrar com o seu jovem protegido que
tinha se aventurado na guerrilha, é sodomizado por ele. Na banda sonora escutamos barulho de vento e ruídos
estridentes. A dor e o prazer aqui se fundem. Em seguida, M, já convertido em Nosferatu, se atira pela janela.
Constatamos em Sem essa aranha e Puntos suspensivos uma relação de fascínio e repulsa ou de fetiche e nojo
diante de seus personagens principais. Aranha e M são vistos com lentes de aumento como se fossem insetos
simultaneamente exóticos e cotidianos. A excentricidade e o caráter patético de suas figuras são acentuadas
pela interpretação anti-naturalista dos atores, procedimento que reforça o absurdo e o abjeto de tudo o que
eles representam. Por meio desses dois filmes que filtram o olhar crítico de seus realizadores a partir do ponto
de vista do inimigo, a Belair e a CAM nos sinaliza suas posturas em torno das questões sociais e políticas da-
quele momento. Abandonando a bandeira do “nacional-popular”, o discurso persuasivo e a ênfase no alcance
comunicativo - elementos essenciais do cinema político latino-americano – essas experiências implantaram,
em suas respectivas cinematografias, uma nova maneira de relacionar cinema e política.

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