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3.2. Classicismo Americano

Hollywood

Hollywood é uma estrutura de produção, distribuição, e exibição baseado num sistema

de estúdios, da década de 1920 à de 50. Como veremos mais tarde, o desmantelamento

dos estúdios a partir de 1948 tem a ver com a separação destes aspectos industriais.

Esta é a definição mais prosaica.

Hollywood é também o nome de uma terra inventada, que não tem

correspondência apenas nas colinas de Hollywood, mas é algo imaginário, que

envolveu a construção de um património comum a todos os envolvidos (dos criadores

aos espectadores) que era preservado e afirmado em cada filme. Hollywood deve ser

por isso menos associada a um estilo, a uma marca, e mais a um marco topográfico, a

um lugar que integrou o que era estranho e estrangeiro, numa imagem da própria

democracia na América. O cinema clássico americano que resultou daqui foi muito

feito por cineastas europeus que fugiram da Primeira Guerra Mundial e do seu rescaldo

e, mais tarde, da Segunda Guerra Mundial: Charles Chaplin, Fritz Lang, Ernst

Lubitsch, Josef von Sternberg, Billy Wilder, entre outros. Esta terra, Hollywood, não é

tanto um território físico, mas um lugar imaginário baseado nas ideias que o
agregavam e motivavam.

O Sistema de Estúdios

Entre 1930 e 45, os EUA sofreram uma grave crise económica e depois uma recuperação
espectacular durante a Segunda Guerra Mundial. Em 1933, perto de 14 milhões de

pessoas estavam desempregadas. Por altura de 1938, a intervenção do governo estava a


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produzir alguns resultados e retirar o país da Depressão. A guerra mundial, na qual os

EUA não se envolveram desde o início, gerou uma grande explosão na produção

industrial. O cinema também foi beneficiado com uma grande subida na venda de

bilhetes nas salas.

Durante a época do mudo, Hollywood tinha consolidado um oligopólio, isto é, um

sistema em que um grupo de empresas dominavam o mercado, detendo um monopólio

dividido. Quem controlava a indústria eram as cinco majors: Paramount, Loew’s (mais

conhecida pelo nome de uma das suas subsidiárias, MGM), Fox (que se tornou na 20th

Century Fox em 1935), Warner Bros., e RKO. A Fox e a Warner cresceram

exponencialmente com o advento do cinema sonoro. A RKO, aliás, foi fundada com o

propósito de explorar essa nova tecnologia e foi sempre a mais fraca em termos

financeiros, aguentando-se através da distribuição dos populares filmes de Walt

Disney. Este estúdio foi, no entanto, o responsável pela aposta em Orson Welles,

produzido Citizen Kane (O Mundo a Seus Pés, 1941). As majors eram companhias com uma

integração vertical, não só produzindo filmes, mas distribuindo-os a nível nacional e

internacional, possuindo ainda salas de cinema que os exibiam.

Três companhias, com poucas ou nenhumas salas de cinema, constituíam as

minors: Universal, Columbia, e United Artists. The Great Dictator (O Grande Ditador, 1940)

de Charles Chaplin é um exemplo de um lançamento da United Artists. Mostra um

artista a encontrar formas poderosas de usar um novo elemento, o som, rejeitando-o


como componente naturalista, sublinhando a importância da materialidade do som, da

sua espessura, da sua entoação, isto é, mostrando que o som pode ser importante não

exactamente pelo significado das palavras, mas pela sua carga expressiva, evocativa,

performativa. A ênfase é colocada no modo como se fala. Havia também firmas de

produção independentes bem-sucessidas como a de David O. Selznick. Cada produtora

tinha um papel diferente na indústria. As majors criavam filmes A, de grande sucesso


comercial. Alguns independentes produziam filmes equiparáveis em termos de valores

de produção e orçamento — mais uma vez Selznick é um bom exemplo, assim como
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Samuel Goldwyn, de alguém que produziu estes filmes de prestígio fora dos grandes

estúdios. Algumas produtoras como a Monogram e a Republic especializavam-se nos

chamados filmes B, filmes baratos, geralmente de suspense, de acção, ou de cowboys. Os

géneros eram uma forma de ordenar o trabalho dos estúdios.

Os estúdios tinham técnicos e artistas sob contracto — Cary Grant com a Paramount,

Bette Davis com a Warner Bros., entre numerosos exemplos. Podemos falar deste sistema

e do seu génio, como André Bazin. Em vez de nos centrarmos neste ou naquele cineasta,

por exemplo John Ford, podemos centrar-nos no sistema que permitiu que a sua arte se

realizasse e a ligação dessa arte de Hollywood com a arte clássica. O classicismo está

associado a um certo equilíbrio e integração de elementos. O cinema americano é uma

arte clássica, e sendo assim porque não admirá-lo no que tem de mais admirável, não

apenas o talento deste ou daquele cineasta, mas o génio do sistema,4 a riqueza da sua

incessante vigorosa tradição, a sua excelência, e a sua fecundidade quando entra em

contacto com novos elementos. Só mais tarde, depois da morte de Bazin, é que os críticos

dos Cahiers du Cinéma entenderam completamente esta ideia, quando cineastas como

Anthony Mann e George Cukor começaram a fazer filmes medíocres depois do fim do

sistema de estúdios. François Truffaut diria mesmo que aquilo que eles gostavam nos

filmes americanos, de Howard Hawks por exemplo, era a sua semelhança. Cada filme

concretizava e dava forma particular a uma inteligência e sensibilidade artística que unia

todos as obras de Hollywood, uma espécie de standard ou padrão que se perdeu depois.

Censura

A censura foi um aspecto importante do cinema clássico americano. Com mais

precisão, devemos dizer a auto-censura. A MPPDA (Motion Picture Producers and

Distributors of America), que certificava os filmes, era também composta por

4. André Bazin, “De la politique des auteurs”, Cahiers du Cinéma 7, n.º 70 (1957): 2-11.
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membros dos estúdios. Foi criada em 1922 com o objectivo de evitar a censura externa à

indústria. Em 1930, foi criado um código devido às pressões conservadores externas.

Este código ficou conhecido como Código Hays, ligando-o à figura proeminente do

Partido Republicano que liderou a criação deste regulamento. Regulava o modo como

os filmes deviam lidar com o sexo, a violência, e outros temas que podiam ser

problemáticos. A verdade é que havia também um sentido pragmático nisto que tinha

em vista garantir os lucros das companhias de cinema. Este sistema bloqueou a

censura nacional e ao mesmo tempo preveniu possíveis perdas financeiras, se certos

locais não aceitassem os filmes ou cortassem cenas que tinham de ser refilmadas. O

facto é que algumas destas restrições que hoje nos surgem como puritanas emergiram

da prática — por exemplo, a ideia de que não se podia mostrar um casal, casado ou não,

na mesma cama não vinha explicitada no código — e aguçaram a inventividade dos

cineastas. It Happened One Night (Uma Noite Aconteceu, 1940), realizado por Frank Capra,

vai mostrando um homem (Clark Gable) e uma mulher (Claudette Colbert) que se

apaixonam a pouco e pouco, mas que dormem em duas camas com um cobertor

estendido a separá-los. No fim, depois de casados e de ela ter fugido do seu casamento

combinado, o cobertor cai. Não é preciso o filme mostrar os dois na mesma cama para

deduzirmos o que se passa.

Géneros

Um género é fundamentalmente uma categoria de obras nas quais nós reconhecemos

traços, aspectos comuns. Em termos de produção, os géneros permitiram a Hollywood

estabelecer um conjunto de opções formais e temáticas, uma espécie de menu restrito,

que no entanto podia ser combinado e repensado. Os géneros permitiram também


transmitir uma noção de continuidade histórica, assumindo uma tradição que os

espectadores viam renovada em cada novo filme de um género. Os géneros vão


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surgindo através de padrões e convenções que se relacionam com uma certa forma de

interpretar o mundo e a vida que faz parte do imaginário dos espectadores, tal como

acontecia com a tragédia na Grécia Antiga. Esta percepção história, esta consciência do

chão que se pisa, do que antecedeu um artista, de que a arte nunca começa do zero,

pode ser aproveitada como uma maneira de assumir um lugar artístico no tempo. O

filme de género, o filme feito numa estrutura já de si genérica que propicia o

reencontro com a mesma coisa, uma e outra vez, abre também espaço para a diferença

subtil, minimal, decisiva, entre cada filme. Um filme de género está ligado a todos os

que o antecederam, mas pode abrir também possibilidades para os filmes que o

seguem.

Um género não se baseia num conjunto de regras ou leis, mas é um meio artístico

sempre em mutação, dinâmico, embora pareça por vezes que permanece imutável. Um

género pode ser pensado como uma pequena forma viva, um modo de fazer, um meio

artístico como indica o filósofo Stanley Cavell. Pode ser entendido como um certo uso das

matérias (físicas e conceptuais) de que se faz a arte, como o chiaroscuro da pintura barroca

em pintores como Caravaggio e Rembrant. Isto explica como Hollywood deu origem

também a géneros teóricos, como o film noir americano, a que pertence um filme sombrio

sobre um alcoólatra em rota auto-destrutiva, The Lost Weekend (Farrapo Humano, 1945).

Seguem-se alguns dos géneros mais importantes desta primeira época do

classicismo americano.
Mighty Hunters (1940) de Chuck Jones é um bom exemplo do filme animado, no qual

crianças índias se iniciam, sem grande perícia, na caça de animais. A precisão

cinematográfica dos gags vem directamente da tradição da comédia burlesca muda.

O filme musical deu origem a cenas de dança, plenas de fluidez e elegância, como

aquelas que tiram partido da afinidade entre Fred Astaire e Ginger Rogers em Swing

Time (Ritmo Louco, 1936).


A companhia de produção Universal esteve muito associada ao filme de terror,

gerando um ciclo de filmes que ficaram na história do cinema. The Mummy (A Múmia,
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1932), realizado pelo director de fotografia de Der letzte Mann (O Último dos Homens,

1924) de F. W. Murnau, cria uma atmosfera aterradora com poucos meios, apoiando-

se na interpretação de Boris Karloff, no trabalho de maquilhagem e na iluminação.

Esta última inclui o uso de um pequeno alfinete de luz que se reflecte nos olhos do

monstro.

No âmbito do filme de gangsters, The Public Enemy (O Inimigo Público, 1931), tal como

outros filmes deste género, foi alvo de receios de que iria louvar ou tornar desejável a

vida criminal. Neste caso, a Warner contornou o código argumentando que o gangster é

punido e morto no fim, declarando ainda a sua fraqueza.

Depois dos filmes pacifistas que se seguiram à Primeira Guerra Mundial,

Hollywood aceitou a causa da guerra depois do ataque em Pearl Harbor, a 7 de

Dezembro de 1941. O filme de guerra renasceu, apoiado em estereótipos e forçados

finais felizes. Não é o caso de They Were Expendable (Homens para Queimar, 1945),

realizador por John Ford (com algumas cenas rodadas sob a supervisão de Robert

Montgomery). Ford era um veterano da Segunda Guerra Mundial, onde serviu na

Marinha dos EUA. Nesta obra, centra-se num grupo de soldados na Batalha das

Filipinas que, mesmo enfrentando perdas de equipamento e de companheiros, decide

continuar a combater.

A Grande Depressão gerou mais atenção aos problemas sociais a que o chamado

filme de problema social respondeu. Filmes como estes podiam ser menores,
funcionais, por vezes pensamos neles nestes termos hoje. Mas obras como Fury (Fúria,

1936), realizado por Fritz Lang, sobre o linchamento de um homem falsamente acusado

de um crime, mostram como este foco social não tem que instrumentalizar ou diminuir

o cinema. Numa cena, os acusados pelo linchamento são confrontados com as imagens

que registaram os seus actos. Fury é também uma robusta reflexão sobre o poder das

imagens e da sua verdade.


A screwball comedy (comédia maluca ou desaparafusada, em português) era estruturada

em torno de um casal de excêntricos com um ritmo alucinante, diálogos com frases


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afiadas, e complexos jogos de palavras. Uma das cenas inicias de His Girl Friday (O

Grande Escândalo, 1940) entre Walter (Cary Grant) e Hildy (Rosalind Russell) mostra

bem o uso da chamada regra dos 180º, importante para a montagem em continuidade.

No entanto, é de notar que o que se destaca é o modo como Howard Hawks utiliza esse

esquema, dando espaço aos actores e aos seus gestos, movimentos e posturas,

confinando a cena espacialmente, de modo centrípeto — ou seja, mantendo a nosso

olhar no interior do enquadramento e exigindo a nossa atenção.

Tecnologia e Estética

A questão da montagem contínua em His Girl Friday conduz-nos à questão da relação

criativa entre tecnologia e arte, inovação técnica e originalidade estilística. O

desenvolvimento e utilização das potencialidades da tecnologia é inseparável da

história do cinema americano. Mas em vez de vermos um cinema dirigido pela

tecnologia, é mais interessante perceber o modo como os usos particulares da

tecnologia mostram a inteligência e a sensibilidade de Hollywood que os críticos dos

Cahiers reconheceram e analisaram mais tarde.

Eis alguns exemplos. Em contraste com a montagem “invisível” de His Girl Friday,

alguns filmes, nomeadamente musicais, optavam por extravagantes movimentos de


câmara, complicadas cenas de grupo, e uma montagem saliente: é o caso dos filmes e

números musicais de Busby Berkeley, suportados por uma sofisticada maquinaria de

estúdio, como “The Lullaby of Broadway” de Gold Diggers of 1935 (As Gold Diggers de 1935,

1935).

O som continuava a ser usado de formas inventivas. Em Trouble in Paradise (Ladrão de

Alcova, 1932), dirigido por Lubitsch, a busca ansiosa de um casal, vítima de um roubo
durante uma ópera, é acompanhada pela música do palco, fora de campo. King Kong

(1933), realizado por Merian C. Cooper e Ernest B. Schoedsack, conhecido pelos seus
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espantosos efeitos visuais, tem um dos primeiros e mais marcantes usos de uma

partitura sinfónica, ou seja, tocada por uma orquestra inteira.

Os efeitos especiais desenvolveram-se por uma questão de eficácia e segurança. As

cenas com fundos projectados, que se desenrolavam no alto mar ou numa viagem de

automóvel, tornaram-se comuns nos anos 1930. Outro aspecto dos efeitos especiais

tinha a ver com a impressão óptica em pós-produção. As impressoras ópticas

permitiram a criação de transições imaginativas entre planos. Flying Down to Rio

(Voando para o Rio de Janeiro, 1933) experimenta com muitos tipos de transição. Uma dela

toma a forma de um olho.

Technicolor

A mais importante inovação técnica deste período foi o Technicolor. O cinema tinha

experimentado com a cor no período mudo, através de processos não-fotográficos. Este

era um processo fotográfico e de pós-produção. A luz era separada em valores de

vermelho, verde, e azul, cada um com a sua tira, revelados depois em positivo. A

impressão final da película juntava as três tiras, agora já em ciano, magenta, e

amarelo. O primeiro filme a utilizar este processo foi um filme de animação da Walt

Disney: Flowers and Trees (1932), realizado por Bert Gillett, onde árvores e flores cantam
e dançam ao som de uma harpa improvisada e do canto dos pássaros.

A cor não foi vista como um elemento realista. A tendência foi, pelo contrário,

associá-la à fantasia e ao espectáculo, como o filme de aventuras The Adventures of Robin

Hood (As Aventuras de Robin dos Bosques, 1938), dirigido por Michael Curtiz e William

Keighley, e o musical Meet Me in St. Louis (Não Há Como a Nossa Casa, 1944), realizado por

Vincente Minnelli, demonstram.


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Profundidade de Campo

A fotografia era em muitos casos utilizada para produzir imagens macias, de

iluminação suave, com linhas esbatidas, como se vê de modo expressivo em A Farewell

to Arms (O Adeus às Armas, 1932), realizado por Frank Borzage.

A maior parte dos filmes não exploravam composições em profundidade, mas foi

isso que Orson Welles decidiu fazer. Conta-se que Welles viu várias vezes Stagecocah

(Cavalgada Heróica, 1939), de Ford, para se preparar para Citizen Kane. Young Mr. Lincoln (A

Grande Esperança), realizado por Ford no mesmo ano, mostra o uso da composição em

diversos níveis, colocando Lincoln num espaço semelhante a uma mesa de tribunal. A

profundidade é enfatizada pela postura de Henry Fonda, sentado com os pés sobre a

mesa, e pelo modo como é enquadrado. O que distingue Citizen Kane e The Magnificent

Ambersons (O Quarto Mandamento, 1942), filme que acabou por ser retirado das mãos de

Welles para ser terminado com adições e alterações de Fred Fleck e Robert Wise, de

outras utilizações da profundidade de campo é o uso de focais longas. Estas lentes

permitiram que os diferentes níveis das composições se mantivessem focados, como

acontece na cena da tentativa de suicídio de Susan Alexander em que o primeiro (um

copo) e o último nível (a porta do quarto) estão ambos em foco. The Magnificent

Ambersons leva ainda mais longe esta premissa, com arranjos mais complexos, como se

vê na cena de baile. Durante a conversa privada entre George Amberson e Lucy,


permanece a presença da festa que está a decorrer. É como se eles não conseguissem

estar sozinhos nem livrar-se das imposições familiares e sociais que contaminam as

suas vidas.

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