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Cinemas além do sistema – experiências de independência e baixo

orçamento na cinematografia brasileira 1

GERBASE, Carlos (Doutor em Comunicação Social)

PUCRS/Rio Grande do Sul2

RUY, Karine (Doutoranda em Comunicação Social)

PUCRS/Rio Grande do Sul3

Resumo:
O objetivo deste trabalho é realizar um resgate teórico e histórico sobre o conceito de independência no
panorama da prática cinematográfica, relacionando tal discussão a experiências fílmicas brasileiras
localizadas fora do eixo da produção hegemônica. Assim, procuraremos evidenciar como o Cinema Novo,
atendendo à sua própria perspectiva a respeito do papel da arte audiovisual no contexto latino-americano,
ajudou a constituir um sistema de produção cinematográfica alternativo, com soluções do âmbito dos
arranjos econômicos estreitamente alinhada aos anseios – e necessidades – dos diretores engajados a esse
movimento.

Palavras-chave: cinema brasileiro; filmes independentes; baixo-orçamento.

Discutindo o conceito de cinema independente

O termo cinema independente traz a noção de oposição a um sistema

1 Trabalho apresentado no GT de História da Mídia Audiovisual e Visual, integrante do 10º Encontro


Nacional de História da Mídia, 2015.
2
Doutor em Comunicação Social pela PURS, com pós-doutorado em Cinema pela Universidade Paris III
- Sorbonne Nouvelle. Professor titular da PUCRS, atuando no Curso Superior de Tecnologia em
Produção e no Programa de Pós-Graduação em Comunicação. E-mail: CGerbase@pucrs.br.
3
Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da PUCRS. Bolsista CAPES. E-
mail: karineruy@gmail.com.
predominante. Entretanto, o conceito de independente, para ser válido, perpassa uma
série de condições além da dicotomia sistema – contra-sistema. Refletindo sobre o
significado da expressão, que diz respeito à possibilidade de autonomia em relação à
ordem social, econômica cultural e simbólica, Creton conclui que a independência
absoluta é uma ficção.
A relação no mundo é de interdependência, cada um com um poder de
influência. A questão essencial que permanece a porta da sua natureza, são o
grau e as modalidades retidas por cada um para a exercer, para resistir. A
independência revela mais o mito, a questão a tratar no mundo concreto é de
reconhecer o jogo das dependências, julgar, escolher, administrar. (CRETON,
1998, p. 11, tradução nossa).

A partir da advertência dos limites carregados pela expressão, o que pode ser
investigado no panorama das práticas cinematográficas são graus de independência,
modos e formas que, em alguma(s) instância(s), desconectam o filme dos padrões
usuais. É na imprensa especializada dos Estados Unidos que começa a difusão da
categoria “cinema independente”, sempre com polêmicas em torno da abrangência do
conceito. Em artigo publicado na American Film em 1981, Annette Insdorf defende
como independente as obras não comerciais e que compartilhassem elementos dos
filmes de arte. Em publicação mais recente, ela reafirma seu ponto de vista sobre a
influência do cinema de autor e do estilo europeu na concepção de cinema
independente. Como exemplo cita Nother Ligths, filme dirigido por John Hanson e Rob
Nilson premiado com a Câmera de Ouro no Festival de Cannes em 1979. Os diretores
chegaram a iniciar uma negociação com alguns estúdios sobre a produção do filme, mas
optaram por não seguir adiante para garantir o controle artístico da obra.
O que distingue Northern Lights e numerosas outras independentes de
recursos dos produtos de Hollywood é a combinação de elementos tais como
elenco, estilo cinematográfico, e visão social ou moral. Confrontando grandes
estrelas com novos rostos, grandes negociações com telas íntimas, a grandes
estúdios com autenticidade regional, estes cineastas tratam preocupações
americanas com estilo europeu. Na sua escolha de forma e métodos de
trabalho, na sua urgência por registrar assuntos raramente vistos em filmes
comerciais, esses diretores politicamente sensíveis e geograficamente
enraizados resistem às prioridades e potencial de absorção de Hollywood.
(INSDORF, 2005, p.29, tradução nossa)

A partir da década de 1950 ganha destaque nos Estados Unidos a perspectiva de


cinema independente enquanto mecanismo não integrado às majors da indústria. O
período foi especialmente favorável para os independentes em função do novo ambiente
regulatório da indústria cinematográfica. Desvinculadas da exploração das cadeias de
cinemas, os grandes estúdios começam a investir mais em um menor número de
produções, oportunizando que novas empresas passassem a explorar gêneros que se
tornam escassos, como westerns e filmes de ação (SUPPIA, PIEDADE, FERRARAZ,
2008). As iniciativas que se lançam no mercado com essa proposta contribuem para a
proliferação de filmes que exploram circuitos alternativos de produção e distribuição,
como é o caso da AIP (American International Pictures), da Film-Makers’Corporative,
da Dimension Pictures e da Troma Entertainment. A AIP foi uma das primeiras
produtoras a voltar seu negócio para a lacuna deixada pelos estúdios, privilegiando
filmes baratos com temáticas de apelo juvenil. Já a Film-Makers’Corporative, criada em
1962, diferenciou-se pelas regras que estabeleceu para distribuição de filmes. Entre as
diretrizes do grupo lia-se o compromisso de distribuir todo filme apresentado, a
contrapartida de 25% da renda obtida para a cooperativa e a inexistência de contrato de
exclusividade.
Ainda, independente das razões, pela primeira vez na história cineastas de
vanguarda, psicologicamente e na prática, libertaram a si e às suas artes da
dependência do público e do comércio. Os métodos e procedimentos usados
para alcançar este estado podem talvez não ser transferíveis para outros
lugares e outras épocas. Mas eles descomercializaram filme ao ponto de dizer
orgulhosamente que não estavam trabalhando se não pela grande glória da
arte do cinema. (MEKAS, 2005, p. 39-40)

A Dimension Pictures foi formada em 1971 voltando sua atenção para a


produção de filmes com orçamento médio de US$ 250 mil. Na Troma Entertainment, o
viés principal não era somente o orçamento, mas o modelo de obra fílmica realizada.
Loyd Kaufman e Michael Herz, os fundadores do estúdio, acreditavam que para
conseguir espaço no mercado uma produtora independente deveria se colocar na
contramão cultural do que Hollywood oferecia ao público.
(...) como um novo estúdio nós poderíamos produzir e distribuir filmes que
tinham audiências pré-definidas – horror, sexo e ficção científica. Se você
fizesse uma comedia romântica, havia a chance de absolutamente ninguém ir
assistir. Mas se fizesse um filme de monstro ou um filme com muitos seios, aí
haveria algum tipo de audiência não importa qual (KAUFMAN apud
CONRICH, 2005, p. 108-109, tradução nossa).

Essas e outras empresas com propostas similares encontram um conjunto de


circunstâncias favoráveis para conquistarem espaço de atuação no mercado norte-
americano. Ao mesmo tempo em que as majors da época buscavam investir recursos e
esforços em poucas – mas ambiciosas e caras – produções, existiam audiências
segmentadas interessadas em sub-gêneros que não tinham espaço em Hollywood –
como os filmes de horror e eróticos4.Verificam-se também outras formas de uso da
expressão cinema independente que aparecem descoladas da noção de oposição ao
sistema de produção-distribuição-exibição dominante. Popularizada sobretudo pela
mídia especializada, a mais usual faz referência ao poder de decisão que certos
diretores/cineastas possuem sobre suas obras. Aqui, cinema independente expressa a
autonomia artística do sujeito autor diante do sistema de produção. “Os Spielberg e
Lucas oferecem a imagem de um poder de ação no seio da indústria hollywoodiana”,
exemplifica Creton (1998, p. 12). A definição que o cineasta norte-americano John
Sayles também se mostra ilustrativa para essa outra perspectiva do conceito.
Não importa como é financiado, não importa quanto alto ou baixo é o
orçamento, para mim um filme independente emerge quando diretores
começam com uma história que eles querem contar e encontram uma maneira
de fazer aquela história. Se eles acabam fazendo no sistema de estúdios e se a
historia e é a história que eles querem contar, está tudo bem. Se eles acabam
conseguindo o dinheiro de fontes independentes, se eles acabam usado o
cartão de crédito da mãe, isso não importa. (SAYLES apud CARSON, 2005,
p. 129, tradução nossa).

Ainda no contexto norte-americano, outro episódio emblemático do cinema


independente foi o lançamento do Festival de Sundance, atividade mais conhecida do
Instituto Sundance, criado em 1981 por Robert Redford. Em um resort localizado nas
montanhas de Utah, os laboratórios de desenvolvimento de projetos voltados para
diretores e roteiristas tinham o claro objetivo de se constituir como um espaço
alternativo ao sistema de produção dominante, como anunciado na historiografia oficial
do Instituto: “No remoto cenário natural e livres da pressão do mercado, cada artista
emergente era encorajado a se arriscar criativamente e a realizar filmes verdadeiros para
sua própria e única visão” (http://www.sundance.org/about/history/). Não tardou,
contudo, para que a qualidade artística dos filmes passasse a chamar a atenção dos
principais distribuidores e os independentes de Utah fossem percebidos como um
segmento com potencial de exploração no mercado cinematográfico. Para Creton,
Seu sucesso foi tal que se profissionalizou e se tornou um encontro
obrigatório de toda a indústria cinematográfica. Um verdadeiro ‘grande
mercado’ se constituiu, atraindo também os representantes de Hollywood que

4
O custo médio de produção de filmes de Hollywood e passou de US$ 1,9 milhão em 1972 para
aproximadamente US$ 4 milhões em 1977 (LOWRY, 2005, p. 42).
esperam encontrar talentos promissores e fontes de inspiração. (CRETON,
1998, p. 13, tradução nossa).

Ao procurarmos na historiografia do cinema brasileiro os principais momentos


de reflexão e de prática de cinema independente – levando sempre em consideração
estarmos usando um conceito amplo e repleto de nuances –as discussões mais férteis
com as quais nos depararemos remontam às décadas de 1950 e 1960. Entre as
pesquisas sobre o assunto, destaca-se o ensaio O desenvolvimento das idéias sobre
cinema independente, de Maria Rita Galvão, publicado em 1980 nos Cadernos de
Cinema da Fundação Cinemateca Brasileira de São Paulo. O trabalho fazia parte de uma
pesquisa realizada pela autora para a Comissão Estadual de Cinema de São Paulo e
também da tese de doutorado Companhia cinematográfica Vera Cruz: a fábrica de
sonhos, orientada por Paulo Emílio Salles Gomes na Universidade de São Paulo.

O que se chama na época de “cinema independente” é bastante complicado


de explicar. Fundamentalmente é o cinema feito pelos pequenos produtores,
em oposição ao cinema das grandes empresas. Mas nem todo pequeno
produtor é necessariamente “independente”. Para ser qualificado de
independente um filme deve ter um conjunto de características que
frequentemente nada tem a ver com seu esquema de produção – tais como
temática brasileira, visão crítica da sociedade, aproximação da realidade
cotidiana do homem brasileiro. Misturam-se aos problemas de produção
questões de arte e cultura, de técnica e linguagem, de criação autoral, e a
“brasilidade”. (GALVÃO, 1980, p. 14).

Na revisão em torno do trabalho de Maria Rita Galvão presente na tese de Luis


Alberto Rocha Melo (2011) verifica-se que também no Brasil o cinema independente irá
se consolidar como uma alternativa à experiência de industrialização. Essa, por sua vez,
ocorreu em três momentos distintos e com características específicas: a Cinédia, a
Atlântida e a Vera Cruz. Fundada no Rio de Janeiro em 1930 por Adhemar Gonzaga, a
Cinédia foi a primeira produtora cinematográfica brasileira com organização
empresarial e pretensão de produção fílmica contínua nos moldes industriais (GALVÃO
e SOUZA, p. 52-53, 1987). Também no Rio de Janeiro, a Atlântida Cinematográfica foi
criada em 1941 por Moacyr Fenelon e os irmãos José Carlos e Paulo Burle. Até 1962,
quando interrompeu suas atividades, a Atlântida produziu 66 filmes, incluindo comédias
estreladas por Oscarito e Grande Otelo.
Para o pesquisador, contudo, é somente a experiência paulista da Vera Cruz que
irá consolidar uma prática cinematográfica industrial no país, ao mesmo tempo em que
desloca o eixo da produção do Rio de Janeiro para São Paulo. A Companhia
Cinematográfica Vera Cruz surge em 1949 e se firma como a principal incursão
brasileira na prática de um cinema industrial, entendido como o modelo praticado pelos
estúdios dos Estados Unidos.
Maria Rita Galvão (1981) percebe na criação da Vera Cruz o reflexo do clima
social e artístico da época. “A passagem dos anos 40 para os 50 é um momento de
‘balanços gerais’ da cultura” (p. 20). Analisando o contexto cultural em que se dá a
criação da companhia, a autora destaca a efervescência do movimento cineclubista em
São Paulo – trazendo à cena paulistana produções que não chegavam ao circuito
exibidor tradicional – e o surgimento do Teatro Brasileiro de Comédia, inaugurado em
1948. Entretanto, a Companhia mostrou-se tanto desconectada quanto desinteressada
dos problemas do cinema brasileiro na época:

É sintomático o fato de que a Vera Cruz, quando surge, não reivindica


absolutamente nada: ela é auto-suficiente. Cinema se faz com bons técnicos,
bons artistas, maquinaria adequada, grandes estúdios e dinheiro, e a
companhia tem tudo isso. A idéia de que fazer um filme é apenas chegar à
metade do problema, de que, terminado o filme, é então que começam os
problemas realmente graves, não ocorreria a ninguém. (GALVÃO, 1981, p.
53).

É justamente a concretização da experiência industrial – e suas falhas em se


adaptar à realidade cultural brasileira – que irá suscitar a prática de um cinema
independente realmente significativo e que pela primeira vez emerge de forma atrelada
a um conjunto de questões de ordem econômica, cultural e política do país (MELO,
2011, p. 57). Como ilustração do modelo de cinema independente que passa a ser
realizado no Brasil podemos citar a trajetória de Moacyr Fenelon após sua renúncia ao
cargo de diretor-superintendente da Atlântida Cinematográfica, em dezembro de 1947.
Ele lança, na sequência, a Cine-Prouções Fenelon, através da qual investe no modelo de
produção associada, sobretudo com a Cinédia. O acordo de co-produção entre as duas
empresas resultou na realização de cinco filmes – Obrigado, doutor (Moacyr Fenelon,
1948), Poeira de estrelas (Moacyr Fenelon, 1948), Estou aí (José Cajado Filho, 1949),
O homem que passa (Moacyr Fenelon, 1949) e Todos por um! (José Cajado Filho,
1950), todos filmados entre fevereiro de 1948 e junho de 1949 (MELO, 2011, p. 77).
Além do sistema associativo de produção, caracterizam o trabalho de Fenelon e
de outros produtores independentes do período o financiamento de filmes através do
sistema de cotas, possivelmente um dos pontos mais polêmicos na relação com as
empresas reconhecidas como expoentes da indústria cinematográfica local. O
depoimento abaixo retirado de uma entrevista de Fenelon ao jornal Folha da Manhã em
1949 aborda o funcionamento desse modelo de investimento na produção
cinematográfica nacional.
.
Evidentemente o produtor cinematográfico brasileiro, perseguido pro tantos
problemas e angústias, não dispõe de numerário suficiente para executar às
suas expensas, o projeto. Que faz então? Não pode apelar par um ou meia
dúzia de capitalistas, de vez que, até o momento, o capital “grosso” não se
interessou completamente pelo filme nacional. Em face de tudo isso, só resta
ao produtor o recurso, hoje sobejamente conhecido, de desmembrar o custo
da produção em cotas de Cr$ 10.000,00 – setenta, cem ou quantas necessárias
– cotas que são colocadas entre pessoas amigas e que têm fé no cinema
brasileiro. (FENELON apud MELO, 2011, p. 171).

A principal reação ao sistema de cotas consolida-se nos depoimentos de Luiz


Severiano Ribeiro Júnior, publicados em matéria do jornal O Globo em 2 de agosto de
1949. No texto, o empresário responsável pela principal cadeia de exibição do país e
também pela produtora Atlântida e pela distribuidora União Cinematográfica Brasileira
procura demonstrar a fragilidade do modelo de cotas e a falta de transparecia jurídica
verificada nessas transações5.
O que deve ser ressaltado nesse ponto da historiografia do cinema brasileiro, no
qual esse trabalho não tem o objetivo de se aprofundar, é a relação entre o ambiente
criado pelas empresas que adotam o modelo cinematográfico industrial e a politização
do setor. Esclarecendo, o surgimento da indústria e a atuação dos independentes
permeiam a consolidação de um pensamento sobre o cinema realizado no país – ou,
melhor, sobre a necessidade de se pensar o cinema nacional. A partir da década de
19506 percebe-se a intensificação da organização do setor em busca de estratégias para

5
O trecho a seguir exemplifica o tom dos comentários do exibidor: “Em troca do seu rico dinheiro, os
cotistas recebem um papelucho impresso e selado, com todos os aspectos de uma ação nominal de um
banco, e ficam sonhando com os lucros enormes que vão ter, como aconteceu com os que
participaram do filme Este mundo é um pandeiro e outros citados como exemplo pela lábia dos
intermediários” (RIBEIRO JUNIOR apud MELO, 2011, p. 175).
6
O primeiro Congresso Nacional do Cinema Brasileiro ocorre em São Paulo em 1952, mesmo ano do I
Congresso Paulista do Cinema Brasileiro. O segundo Congresso Nacional foi realizado no ano
qualificar o filme brasileiro – tanto em termos de conteúdo quanto de presença no
circuito exibidor. Entre os pontos de debate levantados pelo movimento ganham eco a
questão da concorrência com o filme estrangeiro no mercado, o papel ideológico da
produção local e a necessidade de regulação do mercado como um mecanismo
protecionista para o cinema nacional. Adiante, quando abordarmos a discussão sobre o
painel contemporâneo das políticas públicas para o cinema brasileiro, veremos como
essas questões que começaram a ser delineadas há mais de cinquenta anos não foram
completamente superadas, e sim atualizadas diante das novas condicionantes culturais,
econômicas e tecnológicas do mercado cinematográfico nacional.

2. O papel do orçamento nos movimentos de vanguarda

Se produções dispendiosas com sets grandiosos e elenco caro constituíram uma


das marcas mais reconhecidas do modelo hollywoodiano de se fazer cinema,
encontramos também movimentos cinematográficos que se estabelecem justamente na
contramão dessa proposta. É no período das décadas de 1950 e de 1960 que se verifica
de forma acentuada a emergência de grupos que vão questionar a realização
cinematográfica em voga. Sobre esse assunto, interessa-nos especialmente verificar
como o Cinema Novo brasileiro promoveu a prática do cinema de baixo orçamento de
forma articulada a determinada filosofia estética, narrativa e temática. Os cineastas da
Nouvelle Vague defendem e praticam um modelo de produção que se coloca na
oposição daquele adotado pelos filmes franceses que ocupavam a posição de sucesso
comercial. As obras de alto orçamento são alvo de críticas e desconfiança uma vez que,
sob a ótica da Nouvelle Vague, comprometeriam a independência e a liberdade
essenciais à criação artística autoral. Assim, a estética dos filmes dessa nova geração do
cinema francês será constituída num diálogo intrínseco com as condições próprias a um
filme de baixo orçamento. Além do acúmulo de funções, Marie (2011) elenca outros
princípios gerais da Nouvelle Vague, tais como: valorização da improvisação, filmagens
em espaços naturais, excluindo-se a necessidade do uso de sets, e emprego de equipes
enxutas.

seguinte, no Rio de Janeiro.


Todas essas escolhas se direcionavam para uma maior agilidade de direção e
se esforçam para tornar o mais leve possível as pesadas restrições do cinema
concebido no modelo comercial e industrial. Elas visam eliminar as fronteiras
entre cinema profissional e amadorismo, assim como entre filmes de ficção e
filme documentário ou de pesquisa. (MARIE, 2011, p. 66)

Assim como acontece com a Nouvelle Vague na França, o Cinema Novo


representou uma resposta, no campo da cultura audiovisual brasileira, à importação dos
modos de produção cinematográfica, com as tentativas de industrialização, e à
valorização de conteúdos e estilos atrelados ao gosto do público – o que revelaria o
domínio das estratégias comerciais desde o início da concepção de um filme. O
interesse dos cine-novistas é a prática de um cinema engajado com as problemáticas
nacionais mais urgentes nos anos 1960, o que deveria transparecer tanto nos modos de
produção quanto na linguagem e estética dos filmes.
No início dos anos 1960, o Cinema Novo expressou sua direta relação com o
momento político em filmes onde falou a voz do intelectual militante,
sobreposta à do profissional de cinema. Assumindo uma forte tônica da
recusa do cinema industrial – terreno do colonizador, espaço de censura
ideológica e estética –, o Cinema Novo foi a versão brasileira de uma política
de autor que procurou destruir o mito da técnica e da burocracia da produção,
em nome da vida, da atualidade e da criação. (XAVIER, 2011, p. 57)

A proposta de um cinema de autor a qual Ismail Xavier se refere ganhou


destaque no discurso do ícone do Cinema Novo, Glauber Rocha, para quem a autoria
cinematográfica deveria ser o elemento norteador de qualquer genealogia do cinema.
[...] a história do cinema não pode mais ser dividida em período mudo e
sonoro, seria quase a mesma coisa que dividir a história da literatura em antes
e depois de Gutemberg. A história do cinema, modernamente, tem de ser
vista, de Lumière a Jean Rouch como cinema comercial e cinema de autor.
(ROCHA apud BERNARDET, 1994, p. 144).

O movimento cine-novista é, em parte, consolidação das propostas e


reivindicações que vinham sendo discutidas nos congressos do cinema brasileiro desde
a década de 1950, como vimos anteriormente. Assim como seus contemporâneos
franceses, os cineastas que sustentam essa bandeira defendem o abandono dos estúdios
e uma busca pelo realismo – ou, no caso, uma busca pelo Brasil desconhecido. “Nos
diagnósticos do Cinema Novo, há um reconhecimento do país real e de uma alteridade –
do povo, da formação social, do poder efetivo – antes inoperante” (XAVIER, 2011, p.
28).
O ano de 1962 pode ser considerado um marco para o Cinema Novo e também
para o cinema brasileiro. Pela primeira vez mais de 40 títulos nacionais são lançados no
mercado, incluindo obras de diretores alinhados às propostas do movimento (VIANY,
1999), como Assalto ao trem pagador (Roberto Farias, 1962), Barravento (Glauber
Rocha, 1962), Cinco vezes favela (Vários diretores, 1962), O pagador de promessas
(Anselmo Duarte, 1962), Tocaia no asfalto (Roberto Pires, 1961) e Três cabras de
Lampião (Aurélio Teixeira, 1962).
Nenhum desses filmes tem as características das superproduções de
Hollywood (ou mesmo da Vera Cruz), cinco foram feitos em exteriores, todos
têm a preocupação de uma temática brasileira. São essas, aliás, as principais
características iniciais do Cinema Novo, nome dado pelo crítico Ely Azeredo
a um movimento que pretende revolucionar inteiramente o cinema brasileiro:
o baixo custo de produção, o contato direto com a realidade, a procura de
temas nacionais. (VIANY, 1999, p. 23).

A partir dos filmes citados vemos como as obras enquadradas no Cinema Novo
eram carregadas de engajamento político e de crítica social, numa espécie de análise-
denúncia sempre aplicada à realidade de populações marginalizadas e até então
desconhecidas nesse campo de expressão artística. Mas como filmes com esse caráter
temático encontravam formas de financiamento? Embora as informações sobre a
produção dos filmes da época sejam escassas – assim como dados de bilheteria e
circulação – sabe-se que o crédito bancário foi uma das principais fontes de recursos
para os diretores do Cinema Novo. Destacaram-se o apoio oferecido pelo Banco
Nacional de Minas Gerais, pelo Banco do Estado de São Paulo e pelo Banco do Brasil,
que em 1962 incluiu em sua Carteira de Crédito Agrícola e Industrial normas para
financiamento da produção de filmes.
Outra fonte de recursos para a produção cine-novista foi a Comissão de Auxílio
à Indústria Cinematográfica (CAIC), criada em 1963 por Carlos Lacerda, então
Governador do antigo Estado da Guanabara. O órgão pertencente à Secretaria de
Turismo utilizava os fundos do Banco do Estado da Guanabara para promover
premiações e financiamentos de filmes. Entre os filmes beneficiados pela CAIC estão
Vidas secas (Nelson Pereira dos Santos, 1963), Deus e diabo na terra do sol (Glauber
Rocha, 1964), Terra em Transe (Glauber Rocha, 1967), Os fuzis (Ruy Guerra, 1963)
Capitu (Paulo César Saraceni, 1968) e Macunaíma (Joaquim Pedro de Andrade, 1969).
O financiamento e a comercialização dos filmes do Cinema Novo – ou a maioria – era
organizado através da Difilm, distribuidora que funcionou entre 1965 e 1969 formada
por Marcos Faria, Carlos Diegues, Leon Hirszman, Roberto Farias, Rivanides Farias,
Joaquim Pedro de Andrade, Paulo César Saraceni, Luiz Carlos Barreto, Walter Lima
Júnior, Zelito Viana e Glauber Rocha. Na opinião de Diegues:
A Difilm é um momento capital da história da gente, porque é o momento
que enfrentamos o concreto da economia cinematográfica. Não adianta mais
ficar falando em imperialismo, Estado etc., tem de se ir lá mesmo. Hoje isso
não é mais novidade, mas no dia em que as paixões desaparecerem, e as
pessoas puderem analisar com tranquilidade se verá que foi a primeira vez na
história do cinema mundial que um grupo de artistas se transforma em
empresários de si mesmo (DIEGUES apud SIMIS, 1996, p. 256-257).

Além de sublinhar como as premissas temáticas e estéticas do Cinema Novo


estavam relacionadas a processos de produção do baixo orçamento, na contramão da
importação de modelos industriais, é válido resgatarmos algumas pautas e alterações
introduzidas no cenário das políticas culturais voltadas ao setor cinematográfico nas
décadas de 1950 e 1960. A disparidade entre o consumo de filmes estrangeiros e
nacionais delineia as principais ações do governo para o setor no período. Segundo o
relatório da Comissão Municipal de Cinema (CMC), em 1953 o Brasil figurava entre os
maiores importadores de filmes do mundo, com a aquisição de 578 filmes estrangeiros.
Outro dado relevante é a relação entre o número de espectadores e o de títulos presentes
no circuito exibidor. Enquanto nos Estados Unidos havia uma média de 550 filmes em
circulação para um público aproximado de 2 bilhões e 300 milhões de pessoas, no
Brasil o número de filmes se aproximava dos 800, mas para uma faixa bem menor de
espectadores: 325 milhões de pessoas (MATOS apud SIMIS, 1996, p. 192).
Analisando os dados trazidos pelo relatório do CNC, Simis (1996) verifica no
crescimento da importação de filmes uma adaptação ao novo perfil do circuito exibidor
brasileiro. A partir do tabelamento dos preços dos ingressos, instituído em 1948 pela
Comissão Central de Preços, órgão do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio,
foram criadas categorias de salas7. Na categoria “A”, com preço máximo de ingresso,
incluíam-se as salas voltadas ao lançamento de filmes ou de estreia, levando as grandes
empresas exibidoras dessa linha a ampliar o seu circuito através do arrendamento de

7
Em 1948 haviam cinco categorias, cuja classificação dependia de diversas características das salas. A
partir de 1956 o número de categorias baixou para três: cinemas de estreia, cinemas não-lançadores e
cinemas com ingresso máximo de 7 cruzeiros. Depois, em 1959, incluiu-se a categoria especial que
abarcava salas mais luxuosas e ficava isenta de tabelamento (SIMIS, 1996).
salas e de cinemas de bairro (SIMIS, 1996). “No tocante à distribuição, o aumento do
número de salas de estréia reduziu o tempo de exibição dos filmes e acarretou maior
demanda de filmes novos” (1996, p. 191), explica a autora.
Numa tentativa de atenuar o impacto negativo que a política do tabelamento de
ingressos representou para o cinema nacional, foram criadas medidas de incentivo à
produção de filmes. No início da década de 1950, São Paulo já contava com
premiações em dinheiro para profissionais do setor (Cidade de São Paulo, prêmio
municipal, e Governo do Estado, prêmio estadual), iniciativa que foi ampliada para todo
o país através do projeto Adicional de Bilheteria, promulgado em 1955. Tratava-se de
um valor pago aos produtores de forma proporcional ao desempenho de bilheteria do
filme. O prêmio variava de 5% a 20% da renda obtida nos dois primeiros anos de
exibição.
Estes mecanismos serviram de estímulo para o aparecimento de produtores
independentes, pessoas que se aventuravam a produzir, co-produzir ou
concluir filmes. Um investimento que previa uma continuidade para a
atividade, ou seja, os lucros obtidos poderiam servir para o início de outras
produções e co-produções. (GAMO, 2006, p. 15)

O período do Cinema Novo também acompanha a criação de órgãos


governamentais que tentam oferecer representatividade e força à pauta de reivindicações
políticas do cinema brasileiro. O primeiro é o Geicine (Grupo Executivo da Indústria
Cinematográfica), criado por Jânio Quadros em 1961 e presidido pelo crítico, produtor e
diretor Flávio Tambellini. A iniciativa, contudo, não ganhou apoio integral dos
profissionais do cinema. O órgão foi alvo de críticas dos sindicatos da indústria
cinematográfica do Rio de Janeiro e São Paulo, que reclamavam da ausência de
representantes do setor entre os membros do Conselho Consultivo (SIMIS, 1996). A
principal proposta do Geicine também não obteve sucesso na época: a obrigatoriedade
de toda distribuidora instalada no Brasil operar com, pelo menos, um filme nacional
para cada dez estrangeiros e também possibilitar ao distribuidor estrangeiro a aplicação
de até um terço do imposto devido na produção ou coprodução de filmes no Brasil.
Buscava-se assim formar um fundo de capitais para a produção, e as fitas daí
resultantes teriam idealmente possibilidades no mercado em virtude do
interesse dos distribuidores – os quais participariam da produção e deveriam
cumprir a legislação. Essas propostas, entretanto, nunca foram colocadas em
prática. Quando muito, o que se conseguiu, em 1962, foi que as distribuidoras
estrangeiras tivessem a possibilidade legal de investir na produção 40% do
imposto sobre a sua remessa de lucro. (AUTRAN, 2010).
O projeto do Geicine foi reaproveitado pelo Instituto Nacional de Cinema (INC),
órgão criado em 1966 em substituição ao Instituto Nacional de Cinema Educacional
(INCE) e extinto somente em 1975. O INC alterou a lei, passando a destinar o
recolhimento dos recursos de impostos que não fossem utilizados pelas empresas
estrangeiras. Um novo capítulo da relação entre Estado e cinema no Brasil é
inaugurado em 1969 com a criação da Empresa Brasileira de Filmes, a Embrafilme,
principal iniciativa do governo do país para o fomento da cinematografia nacional. A
atuação da empresa inicialmente se dava somente no financiamento, mas a partir de
1974 passou a abarcar também a distribuição e a co-produção de filmes. Com a
Embrafilme, em 1980 o público espectador de filmes brasileiros chegou a ocupar 35%
do mercado nacional e a média de espectadores por filme brasileiro chegou a 239 mil,
superando em 30 mil a do filme estrangeiro.
O enfraquecimento da estatal se deu ao longo da década de 1980 devido a uma
série de fatores de ordem econômica e cultural que deixaram a Embrafilme sem
recursos – incluindo a popularização da televisão e do videocassete e o aumento dos
preços dos ingressos do cinema. A falência desse modelo, extinto durante o governo de
Fernando Collor de Mello, em 1990, criou uma lacuna na produção nacional e
evidenciou a dependência do cinema local a mecanismos de incentivo organizados e
capazes de dar conta das necessidades próprias da cinematografia interna. A extinção do
modelo da Embrafilme representou, no Brasil, as consequências de um novo tipo de
relação entre economia e Estado que ganhava força no espaço transnacional.

O campo dos sistemas de comunicação talvez seja aquele onde se distingue,


com mais clareza, a evolução dessas noções essenciais de serviço e interesse
público. Evolução que não se pode compreender sem uma interrogação sobre
a evolução da natureza do Estado. De todas as partes, e cada vez mais, as
redes internacionais farão pressão sobre os sistemas dirigidos, até então,
pelos Estados-nação. (MATTELART, DECLOURT e MATTELART, 1987,
p. 74).

A política neoliberal que levou ao fim da Embrafilme e também do Conselho


Nacional de Cinema e da Fundação do Cinema Brasileiro serviu, na prática, para
evidenciar essa relação. O espírito de livre comércio por trás do posicionamento
político-governamental acabou por estrangular o cinema brasileiro diante da
concorrência assimétrica com os filmes norte-americanos inseridos no eficiente sistema
de comercialização de Hollywood.
Sem a pretensão de seguir em um apanhado histórico em torno dessas
articulações e ações políticas, vale ressaltar que a problemática em torno das práticas
culturais não hegemônicas torna-se mais enfática quando lançarmos um olhar para
momentos-chave do cinema. Embora a ideia de independência esteja presente em
diversos momentos do cinema, permanecendo ainda hoje como uma espécie de símbolo
de liberdade (econômica, temática, narrativa, entre outros elementos) no contexto da
produção audiovisual, ela ganhou mais evidência em situações nas quais a realização e a
circulação de obras audiovisuais era mais restrita – em função do cenário político e do
próprio caráter tecnológico dos meios de produção. Como no caso do Cinema Novo,
sobre o qual nos debruçamos com mais atenção neste trabalho, no qual a formatação de
um novo modo de se entender o cinema resultou em um modelo econômico de
produção cinematográfica próprio, através da incorporação de características e “formas
de se fazer” apropriados a filmes realizados em condicionantes localizadas fora do
circuito cultural predominante.

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