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Jean-Loup Bourget
Histórico
Esse quadro jurídico permanece imutável até que, em 1951, a Suprema Corte,
decidindo sobre um pedido de interdição de Il miracolo1 de Rossellini (filme considerado
ofensivo pelos católicos), reverte a sua decisão de 1915 e reconhece, como o reclamava
Griffith, a mesma liberdade da qual goza a imprensa e a edição de livros, essa liberdade “que
nos concedeu a arte da escrita, à qual nós devemos a Bíblia e as obras de Shakespeare”
(conclusão do panfleto de Griffith The Rise and Fall of Free Speech in America, 1919).2
1
Um dos dois episódios que formam o longa-metragem L’Amore (1948) (N. do T).
2
Esta conclusão foi retirada de um intertítulo de abertura inserido no filme antes dos créditos. Eis o texto
completo: “Defender o cinema pela arte. Nós não tememos a censura, uma vez que nós não temos a intenção de
sermos ofensivos por inconveniências ou obscenidades, mas nós reclamamos, como um direito, a liberdade de
mostrar o negro incorrendo no erro para poder iluminar a face radiosa da virtude – esta mesma liberdade que é
reconhecida à arte de escrever – a arte à qual nós devemos a Bíblia e as obras de Shakespeare.” L’Avant-Scène
Cinéma “Spécial Griffith”: La Naissance d’une nation, The Battle. nº 193-194, out. 1977. p. 17.
O Código 3
Sob a égide de Hays, é redigido, em 1927, um código ainda breve e geral, apelidado
“The Don’ts and Be Carefuls”, dito de outro modo, a lista do que é proibido mostrar na tela
(por exemplo, o uso profano de termos religiosos, a nudez sugestiva ou, ainda, toda referência
à “perversão sexual”, ou seja, à homossexualidade) e dos temas sensíveis, que convém tratar
com um zelo e um bom gosto particulares: a bandeira americana e a instituição do casamento,
assim como as cenas de amor, de violência ou de consumo de drogas.
A fase seguinte está ligada ao advento do sonoro. Ao mesmo tempo em que se torna
falado, o cinema fica cada vez mais explícito. A sugestão e a discrição lhe são menos naturais.
3
A mudança de nome ocorre em 1945 (N. do T.).
4
Hays “reina” até 1945. Sucedem-lhe Eric Johnston, de 1945 a 1961, e depois, a partir de 1966, Jack Valenti,
que preside a liberalização do sistema de autocensura, continuando a defender com energia os interesses da
indústria hollywoodiana, notadamente nas negociações com a Comunidade Europeia.
O Código 4
Princípios
Os princípios gerais do Código são lidos ainda hoje com muito interesse e merecem
ser meditados. Quigley e Lord lembram que o cinema, diferente da literatura ou da música, se
endereça às massas, diferença quantitativa que induz a uma diferença qualitativa. Eles frisam
também o impacto próprio das duas mídias: o livro descreve (e a descrição, mesmo a mais
realista, passa pelo filtro da linguagem), enquanto que a imagem cinematográfica mostra (ou
parece mostrar) a realidade mesma, “imediata”. Eles observam o fenômeno em virtude do
qual o espectador se identifica com o personagem cinematográfico, notando o quanto esse
fenômeno é acentuado pelo star system. Eles sugerem que alguns filmes sejam reservados
somente para um público advertido. E, por fim, desejam, em uma perspectiva certamente
moralizadora, que o cinema eduque a inteligência e eleve o espírito.
Esses princípios e essa filosofia não são o que importava, principalmente, a Hays e aos
estúdios, mais preocupados com as regras concretas e pragmáticas, permitindo responder a
todas as situações sensíveis. Por isso, com certeza, como toda moral, como todo catecismo em
ação, o lado hoje ultrapassado do Código é o seu reflexo fiel (e mais fiel quanto mais
5
O nome oficial do código é Motion Picture Production Code ou, simplesmente, Production Code (Código de
Produção) (N. do T.)
O Código 5
largamente inconsciente) não somente dos princípios, mas também dos preconceitos morais,
sexistas, racistas... de uma sociedade. Como poderia ser de outro modo?
Em uma obra publicada em 1937, Decency in Motion Pictures6, Quigley lança sobre a
produção do início dos anos trinta um olhar retrospectivo destinado a demonstrar a
necessidade de uma aplicação meticulosa do Código. Essas análises de filmes nos mostram
eloquentemente o que era proscrito pelo Código: em relação a Sócios no amor7 de Lubitsch,
baseado na peça de Noel Coward, é verdade que a obra original foi parcialmente “limpada”,
ou seja, é todavia verdade que os protagonistas, “sedutores e simpáticos”, apresentam o mal
(uma espécie de relação a três) “de modo charmoso”, como se tratasse de um bem. Em
Rainha Cristina8 de Mamoulian, Quigley se detém na sequência memorável e magnífica,
ritmada no metrônomo, equivalente cinematográfico de um soneto, que mostra Greta Garbo,
no papel da rainha Cristina, “memorizando” o quarto onde ela passou a noite em companhia
de John Gilbert (o embaixador da Espanha): por sua extensão, esta cena ultrapassa toda
necessidade narrativa e “reveste, desde então, um caráter pornográfico”, sem contar que “é
perigoso apresentar assim uma rainha” (segundo o conformismo moral, é a ideologia
conservadora que demonstra, nesse ponto, então, as suas intenções). Por fim, Scarface, a
vergonha de uma nação9 de Hawks é criticado, como a maioria dos filmes de gângster, por
mostrar, ao mesmo tempo, “os métodos que os criminosos usam” e, de modo geral, mostrar o
herói marginal como “rico, corajoso e ardiloso, o que não é o caso dos representantes da lei”:
risco duplo, então, que os gângsteres “façam escola” (eu friso, de passagem, que esse tipo de
debate e de crítica reencontrou uma certa atualidade).
O Código detalha, em domínios tão gerais e, ao mesmo tempo, tão diversos como a
religião, as instituições nacionais e as instituições sociais, como o casamento, a sexualidade e
a representação de diferentes nacionalidades e da violência, toda uma série de proibições e de
recomendações que podem ser reunidas sob três rubricas principais: 1) Todo desvio, todo
atentado à ordem estabelecida (religiosa, social, moral...) deve ser justificado pelo roteiro e
não de modo gratuito (critério da motivação narrativa). 2) Na medida do possível, o desvio
deve ser antes sugerido ao invés de mostrado de modo explícito (critério do bom gosto e do
6
QUIGLEY, Martin. Decency of Motion Pictures. Nova York: Macmillan, 1937. Trechos citados por OZER
(1971) In MAST, Gerald (Org). The Movies in Our Midst: documents in the cultural history of film in America.
Chicago/Londres: The University of Chicago Press, 1982. pp. 340-344.
7
Design for Living (1933).
8
Queen Christina (1933).
9
Scarface (1932).
O Código 6
eufemismo). 3) No entanto, caso o desvio seja mostrado (uma vez que o primeiro princípio o
justifique), deve ser de um modo que não o torne sedutor ou excitante, principalmente para o
espectador jovem. Cláusula adicional ou corolário dessa terceira regra, a ordem estabelecida e
as suas instituições não devem ser objetos de um tratamento que os ridicularize, que lhes faça
perder a sua dignidade.
10
Tabu: a story of the south seas.
11
Mutiny on the Bounty.
12
The Bowery (1933).
13
Cleopatra (1934).
14
The Lost Weekend.
O Código 7
recurso a uma retórica visual seja metonímica, seja metafórica permitindo sugerir o que fosse
interdito de mostrar ou de dizer, ao fazer, então, a economia ou a elipse. Mestre dessa retórica,
aperfeiçoada desde o silencioso, é Lubitsch que com seus planos de portas que se abrem e se
fecham, enfim desses signos visuais múltiplos entregues à sagacidade do espectador, para que
ele complete, em espírito e em imaginação, o quebra-cabeça que lhe propõe o filme (as portas
desconcertantes para o mordomo e o diálogo de duplo sentido de Ladrão de alcova15, a
apresentação muda da casa de encontros, vista pela janela, e as costelas na chapa de Anjo16,
etc.). Retórica o mais frequente visual e muda, mas que repousa sobre um substrato linguístico
implícito (a colaboração ativa, ainda que in petto, do espectador consiste precisamente em
nomear, em explicitar para si o implícito que está na linguagem).
15
Trouble in Paradise (1932).
16
Angel (1937).
17
North by Northwest (1959).
O Código 8
na fotografia “glamourosa” das estrelas, na aura sedutora das heroínas dos filmes noir, não é
antes o mal, ou a sua tentação, que se aureola dos atributos normalmente agraciados às
Madonas e a outras santas “irresistíveis”?
18
The duck soup, de Leo McCarey, produção da Paramount.
19
The Pilgrim .
20
The Night of the Hunter.
O Código 9
apenas padres atléticos e charmosos, irlandeses e sensuais, mas pouco suspeitos de sucumbir à
tentação maniqueísta: Spencer Trancy em São Francisco, a cidade do pecado21 de Van Dyke
e em Com os braços abertos22 de Norman Taurog, Bing Crosby em O bom pastor23 e Os sinos
de Santa Maria24 de Leo McCarey ou Pat O’Brien em Anjos de cara suja25 de Curtiz...
Aleluia!28 de Vidor, com seu sabor pronunciado, étnico, religioso e musical, precede a
época clássica (1929). Aliviar-se-á Mais próximo do céu29 de Keighley e Connelly? Este filme
se encontra na caricatura ou em uma espécie de equivalente das histórias em quadrinhos que
torna a representação inofensiva (ao olhar do Código, eu não falo aqui das reações da
comunidade afro-americana representada) pelo próprio excesso, totalmente explícito, sendo
21
San Francisco (1936).
22
Boys Town (1938).
23
Going my way (1944).
24
The Bells of St. Mary’s (1945).
25
Angels with Dirty Faces (1938).
26
I Confess (1953).
27
Comparemo-o com uma obra um pouco anterior e muito mais convencional, que exterioriza então o que está
interiorizado em Hitchcock. The Keys of the Kingdom de John Stahl (1944), adaptação do romance de Cronin,
também narra a “pré-história” amorosa de um padre. Porém, a imagem “sã” e “normal” do intérprete (Gregory
Peck) é aqui perfeitamente enquadrada e dirigida, por um triplo exotismo, no tempo e no espaço, “próximo”
(Escócia) e longínquo (China), com toda a tentação agitadora de acréscimo, sendo evitada pela morte da noiva.
28
Hallelujah (1929).
29
The Green Pastures (1936).
O Código 10
marcado por irrealismo. Cabe a mesma observação em relação aos personagens de preachers
ou predicadores tão característicos do Sul e do Meio-Oeste, da bem nomeada “Bible belt”. Na
época clássica, essas regiões são o objeto de imagens pitorescas (Nas águas do rio de Ford,
193530), mas a denúncia de seu modo tão particular de eloquência histriônica, mistura de veia
profética e de verve charlatanesca, é reservada ao período pré-clássico (A mulher miraculosa
de Capra, 193131) ou, simetricamente, no período moderno (Entre deus e o pecado32 de
Richard Brooks, 1960; Wise Blood de Huston, adaptação do livro de Flannery O’Connor
[1979]; O apóstolo33 de Robert Duvall, 1997).
Impensável sob o Código é a sátira anticlerical de Prévert e Renoir tal qual como se dá
em livre curso em O crime do Sr. Lange (1936)34, devido ao disfarce eclesiástico que veste
Batala (Jules Berry) e à sua morte grotesca, ainda que merecida: ao estar gravemente ferido,
ele se arrasta suplicando que lhe busquem algum padre.
Filosofia do sistema
Para compreender bem o funcionamento do Código, é preciso insistir sobre o fato de que
se trata de um código de autocensura, que os membros da MPAA se comprometem a aplicar.
Depois das polêmicas suscitadas pela onda de filmes violentos e sexualmente explícitos, um
irlandês conservador, Joseph Breen, é encarregado, no interior do “Hays Office”, da aplicação do
Código. Ele exerce uma dupla censura prévia: os “shooting scripts” lhe são submetidos, com
indicação detalhada da decupagem e dos diálogos. Depois de terminado o filme, ele é projetado
para Breen. Nos dois casos, ele faz as suas críticas, notas e interdições eventuais; em seguida,
verifica se elas foram levadas em conta. O conjunto do processo toma mais a forma de um
diálogo com o estúdio do que a de uma imposição. Esse processo de re-escritura certamente
contribuiu para dar ao cinema hollywoodiano sua forma “clássica”. Uma vez satisfeito o “Hays
Office”, o imprimatur, por assim dizer, é concedido ao filme, materializado por uma cartela com
as iniciais MPPDA, depois MPAA, que aparece nos créditos.
30
Steamboat Round the Bend.
31
The Miracle Woman.
32
Elmer Gantry.
33
The Apostle.
34
Le crime de Monsieur Lange.
O Código 11
Por outro lado, é necessário lembrar que o Código implica uma crença (diversa, mas
largamente compartilhada) na capacidade de o cinema modelar os comportamentos e as
mentalidades do espectador. Certamente, há uma diferença evidente entre as preocupações de
Quigley e Lord, moralizadoras, e aquelas dos magnatas, sobretudo atentos às ameaças de
boicote. Há também, como William de Mille (irmão de Cecil) notava maliciosamente em
1935, um duplo discurso dos produtores, que ora asseguram que o cinema não exerce
nenhuma influência sobre a juventude (quando se trata de filmes de gângsteres e de uma
influência potencialmente perniciosa) ora, ao contrário, se felicitam de seu valor de exemplo
(quando se trata de filmes edificantes , como David Copperfield).36 Não são poucos os lobbies
assim como os redatores do Código e vários produtores e cineastas que concordam em pensar
que o cinema funciona como um modelo social, cultural e ideológico. Eis alguns testemunhos.
35
The Moon is Blue.
36
“Mickey vs. Popeye”. The Forum, nov. 1995 In. KOSZARSKI, Richard. Hollywood Directors: 1914-1940.
Londres/Oxford/Nova York: Oxford University Press, 1977. p. 295.
O Código 12
37
What Price Hollywood?.
38
Filme notável, constituindo um verdadeiro documentário sobre os estúdios no limiar da época clássica,
Hollywood desposa um esquema binário muito habitual, sem dúvida inevitável. À denúncia de Hollywood como
implacável fábrica de sonhos, designado notadamente pelo “preço a pagar” que evoca o título [original], pelo
suicídio de um realizador “acabado”, pela representação da histeria dos fãs, que arrancam pedaços do véu da
estrela durante o seu casamento, sucede uma espécie de reabilitação: Hollywood aparece, em última análise,
como o lugar da vulgaridade, mas também da amizade autêntica, ao contrário da “velha riqueza” da Costa Leste,
que tem bom gosto mas menos coração.
39
Sobre este ponto ver KLINGER, Barbara. Melodrama & Meaning: history, culture and the films of Douglas
Sirk. Blooming/Indianapolis: Indiana University Press, 1994.
O Código 13
40
Bringing Up Baby (1938).
41
GILL, Brendan. “Pursuer and Pursued: the still untold story of Cary Grant”. New Yorker. 2 jun. 1997. p. 84.
42
The Last Temptation of Christ.
43
The people versus Larry Flint.
44
Produzido pela Pathé e realizado pelo inglês Adrian Lyne. A adaptação anterior foi realizada por Stanley
Kubrick (produção britânica, distribuição MGM, 1962).