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O CÓDIGO

Jean-Loup Bourget

A questão do Código, das regras de decência– regras estéticas e morais, mas,


sobretudo, de conveniência social –, está no coração do classicismo hollywoodiano, assim
como está no coração de todo classicismo. Os limites do período clássico podem mesmo se
definir com uma certa precisão, a da aplicação efetiva do Código (1934) até o início de seu
lento, mas inexorável, desmantelamento (1953).

Histórico

Muito cedo, o cinema suscitou dois tipos de censura. A primeira se preocupa,


principalmente, com os problemas ligados à frequência das salas nos bairros mal afamados, à
promiscuidade e aos riscos de incêndio e da presença de batedores de carteira. Essa foi,
essencialmente, a preocupação das autoridades locais e da polícia. No entanto, muito rápido,
apareceu uma outra vontade de censura, que visa ao conteúdo dos filmes, julgado chocante,
não somente por sua violência ou pelo caráter sugestivo de cenas de amor, mas também pela
maneira como apresenta essa ou aquela parcela da população.

Essa censura é, acima de tudo, feita por sociólogos, educadores e autoridades


religiosas. Nós a veremos em ação por ocasião da oposição que suscita O nascimento de uma
nação de Griffith (1915), filme sobre a Guerra de Secessão e o período da Reconstrução, que
as organizações negras e outros militantes antirracistas julgaram (e com razão!) pouco
conforme à verdade histórica e ofensivo quanto ao retrato dos negros. Por causa dessas
campanhas, o filme foi proibido em Boston assim como em Ohio. Griffith e a Mutual
invocaram a primeira emenda da Constituição, que garante a liberdade de expressão e,
principalmente, a liberdade de imprensa. O caso é julgado, em última instância, pela Suprema
Corte, que entende que o cinema é “a bussiness, pure and simple” – um empreendimento pura
e simplesmente comercial que, então, não se beneficia da proteção concedida à imprensa pela
primeira emenda.
O Código 2

Esse quadro jurídico permanece imutável até que, em 1951, a Suprema Corte,
decidindo sobre um pedido de interdição de Il miracolo1 de Rossellini (filme considerado
ofensivo pelos católicos), reverte a sua decisão de 1915 e reconhece, como o reclamava
Griffith, a mesma liberdade da qual goza a imprensa e a edição de livros, essa liberdade “que
nos concedeu a arte da escrita, à qual nós devemos a Bíblia e as obras de Shakespeare”
(conclusão do panfleto de Griffith The Rise and Fall of Free Speech in America, 1919).2

Uma terceira forma de censura se desenvolve a partir da constituição do mito


hollywoodiano e do culto às estrelas: as vidas privadas – mas muito públicas – de algumas
estrelas, os divórcios e os casamentos em série, o luxo extravagante, o consumo de álcool e de
drogas e o desregramento dos anos loucos, no imediato pós-Primeira Guerra Mundial (“a era
do jazz” de Fitzgerald), suscitam, por sua vez, a reprovação.

Como o cinema é efetivamente um comércio, os lobbies que o criticam – grupos


religiosos ou étnicos, ligas da virtude, etc. -, dispõem de uma poderosa arma: o boicote aos
filmes. Essa é uma das razões pela qual a indústria cinematográfica, muito cedo, se preocupou
em dar uma resposta aos seus detratores, ou melhor, prevenir os seus críticos. A outra razão é
o desejo de evitar que se levantasse uma censura de Estado (federal), como existe na maioria
dos países, mas considerada contrária à liberdade de empreendimento. Em outros termos,
diferente do cineasta Griffith, os produtores estimam mais a liberdade de empreendimento do
que a liberdade de expressão: para dizer a verdade, não há nada de muito surpreendente nisso.

O escoramento se consiste em um código de autocensura, inicialmente esboçado de


maneira vaga e geral (desde 1909); reativado quando a ameaça se faz pressionante; precisado
em 1927; redigido com mais detalhes em 1929-1930 e, por fim, aplicado, sob a pressão da
Legion of Decency e da ameaça efetiva de boicote, a partir de 1934.

1
Um dos dois episódios que formam o longa-metragem L’Amore (1948) (N. do T).
2
Esta conclusão foi retirada de um intertítulo de abertura inserido no filme antes dos créditos. Eis o texto
completo: “Defender o cinema pela arte. Nós não tememos a censura, uma vez que nós não temos a intenção de
sermos ofensivos por inconveniências ou obscenidades, mas nós reclamamos, como um direito, a liberdade de
mostrar o negro incorrendo no erro para poder iluminar a face radiosa da virtude – esta mesma liberdade que é
reconhecida à arte de escrever – a arte à qual nós devemos a Bíblia e as obras de Shakespeare.” L’Avant-Scène
Cinéma “Spécial Griffith”: La Naissance d’une nation, The Battle. nº 193-194, out. 1977. p. 17.
O Código 3

Em 1921-1922, é constituída a MPPDA (Motion Picture Producers and Distributors


of America), mais tarde rebatizada de MPAA (Motion Picture Association of America)3,
espécie de cartel dos estúdios hollywoodianos e de organismo de autorregulação e de
promoção da profissão, cuja presidência é confiada a Will H. Hays, um político republicano,
ex-ministro dos Correios na presidência de Warren G. Harding. O escândalo Arbuckle, entre
outros, serviu de desencadeador (uma jovem foi morta, segundo dizem, sufocada pelo cômico
obeso, por ocasião de uma orgíaca wild party). Hays, que será apelidado como o “Czar”, é
encarregado das relações públicas de Hollywood: ele é o embaixador da indústria
cinematográfica junto ao mundo exterior, ao mesmo tempo em que se assegura que nada, nos
filmes nem na vida dos membros da colônia hollywoodiana, tenha a natureza de chocar a
massa de espectadores e de ser notícia.4

Sob a égide de Hays, é redigido, em 1927, um código ainda breve e geral, apelidado
“The Don’ts and Be Carefuls”, dito de outro modo, a lista do que é proibido mostrar na tela
(por exemplo, o uso profano de termos religiosos, a nudez sugestiva ou, ainda, toda referência
à “perversão sexual”, ou seja, à homossexualidade) e dos temas sensíveis, que convém tratar
com um zelo e um bom gosto particulares: a bandeira americana e a instituição do casamento,
assim como as cenas de amor, de violência ou de consumo de drogas.

A fase seguinte está ligada ao advento do sonoro. Ao mesmo tempo em que se torna
falado, o cinema fica cada vez mais explícito. A sugestão e a discrição lhe são menos naturais.

As interdições e as recomendações dos Don’ts and Be Carefuls se fazem inoperantes


enquanto os estúdios, lançados na batalha do falado, travam uma aguda concorrência,
estreando filmes de gângsteres no gosto Warner, comédias modernas, com réplicas explícitas,
e comédias musicais com heroínas atrevidas e náuticas.

Esta irrupção da modernidade citadina no cinema provoca uma mobilização sem


precedentes tanto de sociólogos e psicólogos (o dossiê Our Movie Made Children de H. J.
Formam é publicado em 1935) quanto de ligas da virtude, sobretudo, a poderosa Legion of
Decency, guarnecida pelos católicos conservadores, mas que defendia opiniões que os

3
A mudança de nome ocorre em 1945 (N. do T.).
4
Hays “reina” até 1945. Sucedem-lhe Eric Johnston, de 1945 a 1961, e depois, a partir de 1966, Jack Valenti,
que preside a liberalização do sistema de autocensura, continuando a defender com energia os interesses da
indústria hollywoodiana, notadamente nas negociações com a Comunidade Europeia.
O Código 4

próprios porta-vozes conservadores de outras comunidades religiosas, protestante ou judaica,


se identificavam. Milhares de legionários fizeram voto de boicotar os filmes taxados de
imoralidade. É isso que determina a aplicação do código, doravante apelidado Código Hays,
sob a responsabilidade do “Hays Office” – ainda que Hays não estivesse pessoalmente
implicado na redação do código nem em sua aplicação.5

Princípios

Os redatores do Código são dois católicos idealistas, mais moderados que


conservadores: um laico, Martin Quigley, redator da revista Motion Picture Herald, e um
jesuíta, Daniel Lord. Eles compartilham, com os lobbies das ligas de virtude, a convicção de
que o cinema é um poderoso meio de influência sobre mentalidades e comportamentos, mas
eles desejam que essa influência seja exercida no sentido do progresso moral. Em suma, eles
se juntam a Griffith, para quem o cinema era “a universidade do trabalhador”. Eles estimam,
de fato, que o cinema, arte de massa, tem uma responsabilidade especial em relação ao
público, principalmente, o juvenil.

Os princípios gerais do Código são lidos ainda hoje com muito interesse e merecem
ser meditados. Quigley e Lord lembram que o cinema, diferente da literatura ou da música, se
endereça às massas, diferença quantitativa que induz a uma diferença qualitativa. Eles frisam
também o impacto próprio das duas mídias: o livro descreve (e a descrição, mesmo a mais
realista, passa pelo filtro da linguagem), enquanto que a imagem cinematográfica mostra (ou
parece mostrar) a realidade mesma, “imediata”. Eles observam o fenômeno em virtude do
qual o espectador se identifica com o personagem cinematográfico, notando o quanto esse
fenômeno é acentuado pelo star system. Eles sugerem que alguns filmes sejam reservados
somente para um público advertido. E, por fim, desejam, em uma perspectiva certamente
moralizadora, que o cinema eduque a inteligência e eleve o espírito.

Esses princípios e essa filosofia não são o que importava, principalmente, a Hays e aos
estúdios, mais preocupados com as regras concretas e pragmáticas, permitindo responder a
todas as situações sensíveis. Por isso, com certeza, como toda moral, como todo catecismo em
ação, o lado hoje ultrapassado do Código é o seu reflexo fiel (e mais fiel quanto mais

5
O nome oficial do código é Motion Picture Production Code ou, simplesmente, Production Code (Código de
Produção) (N. do T.)
O Código 5

largamente inconsciente) não somente dos princípios, mas também dos preconceitos morais,
sexistas, racistas... de uma sociedade. Como poderia ser de outro modo?

Em uma obra publicada em 1937, Decency in Motion Pictures6, Quigley lança sobre a
produção do início dos anos trinta um olhar retrospectivo destinado a demonstrar a
necessidade de uma aplicação meticulosa do Código. Essas análises de filmes nos mostram
eloquentemente o que era proscrito pelo Código: em relação a Sócios no amor7 de Lubitsch,
baseado na peça de Noel Coward, é verdade que a obra original foi parcialmente “limpada”,
ou seja, é todavia verdade que os protagonistas, “sedutores e simpáticos”, apresentam o mal
(uma espécie de relação a três) “de modo charmoso”, como se tratasse de um bem. Em
Rainha Cristina8 de Mamoulian, Quigley se detém na sequência memorável e magnífica,
ritmada no metrônomo, equivalente cinematográfico de um soneto, que mostra Greta Garbo,
no papel da rainha Cristina, “memorizando” o quarto onde ela passou a noite em companhia
de John Gilbert (o embaixador da Espanha): por sua extensão, esta cena ultrapassa toda
necessidade narrativa e “reveste, desde então, um caráter pornográfico”, sem contar que “é
perigoso apresentar assim uma rainha” (segundo o conformismo moral, é a ideologia
conservadora que demonstra, nesse ponto, então, as suas intenções). Por fim, Scarface, a
vergonha de uma nação9 de Hawks é criticado, como a maioria dos filmes de gângster, por
mostrar, ao mesmo tempo, “os métodos que os criminosos usam” e, de modo geral, mostrar o
herói marginal como “rico, corajoso e ardiloso, o que não é o caso dos representantes da lei”:
risco duplo, então, que os gângsteres “façam escola” (eu friso, de passagem, que esse tipo de
debate e de crítica reencontrou uma certa atualidade).

O Código detalha, em domínios tão gerais e, ao mesmo tempo, tão diversos como a
religião, as instituições nacionais e as instituições sociais, como o casamento, a sexualidade e
a representação de diferentes nacionalidades e da violência, toda uma série de proibições e de
recomendações que podem ser reunidas sob três rubricas principais: 1) Todo desvio, todo
atentado à ordem estabelecida (religiosa, social, moral...) deve ser justificado pelo roteiro e
não de modo gratuito (critério da motivação narrativa). 2) Na medida do possível, o desvio
deve ser antes sugerido ao invés de mostrado de modo explícito (critério do bom gosto e do

6
QUIGLEY, Martin. Decency of Motion Pictures. Nova York: Macmillan, 1937. Trechos citados por OZER
(1971) In MAST, Gerald (Org). The Movies in Our Midst: documents in the cultural history of film in America.
Chicago/Londres: The University of Chicago Press, 1982. pp. 340-344.
7
Design for Living (1933).
8
Queen Christina (1933).
9
Scarface (1932).
O Código 6

eufemismo). 3) No entanto, caso o desvio seja mostrado (uma vez que o primeiro princípio o
justifique), deve ser de um modo que não o torne sedutor ou excitante, principalmente para o
espectador jovem. Cláusula adicional ou corolário dessa terceira regra, a ordem estabelecida e
as suas instituições não devem ser objetos de um tratamento que os ridicularize, que lhes faça
perder a sua dignidade.

O conjunto de interditos e recomendações concerne tanto à situação do roteiro quanto


ao da imagem (a “linguagem cinematográfica”) e, evidentemente, à linguagem propriamente
dita (palavras tabus no diálogo).

Esses critérios, na realidade, são suscetíveis de uma certa latitude de interpretação. A


primeira regra, em particular interpretada com flexibilidade, “justifica” a maioria das
exceções aparentes ao Código. Por exemplo, a nudez é banida da tela, mas ela aparece – pelo
menos, parcial ou fugitivamente – nos filmes exóticos, como Tabu10 de Murnau e Flaherty
(1931) e mesmo O grande motim11 de Frank Loyd (1935), onde é “justificada pelo roteiro”
(ou não seria o inverso?). Aliás, o argumento – ou álibi – da reconstituição histórica servia
para desculpar as cenas de orgia ou de farra: O terror dos cabarés12 de Walsh ou Cleópatra13
de DeMille. Nos filmes de gângsteres, a violência é inerente ao tema tratado, mas a estreia de
Scarface, a vergonha de uma nação foi atrasada até que diversas modificações fossem
realizadas no filme. Acrescenta-se, especialmente, uma declaração inicial destinada a
reorientar a obra (hipocritamente?) em um sentido didático, como se tratasse de sensibilizar o
espectador do perigo representado pelo crime organizado e pela inação dos poderes públicos.
O que dizer, finalmente, de filmes que muito tempo antes da “maleabilidade” oficial do
Código tratavam de temas delicados, senão tabus, como o alcoolismo (Farrapo humano14 de
Wilder, 1945)?

O segundo critério, ao contrário, pôde estimular a imaginação dos cineastas (assim


como a do espectador) lembrando que um eufemismo pode se transformar em litote, que pode
ser mais eficaz sugerir do que mostrar explicitamente. Sem dúvida, é o aspecto mais
interessante do Código em sua consequência estética sobre o classicismo hollywoodiano: o

10
Tabu: a story of the south seas.
11
Mutiny on the Bounty.
12
The Bowery (1933).
13
Cleopatra (1934).
14
The Lost Weekend.
O Código 7

recurso a uma retórica visual seja metonímica, seja metafórica permitindo sugerir o que fosse
interdito de mostrar ou de dizer, ao fazer, então, a economia ou a elipse. Mestre dessa retórica,
aperfeiçoada desde o silencioso, é Lubitsch que com seus planos de portas que se abrem e se
fecham, enfim desses signos visuais múltiplos entregues à sagacidade do espectador, para que
ele complete, em espírito e em imaginação, o quebra-cabeça que lhe propõe o filme (as portas
desconcertantes para o mordomo e o diálogo de duplo sentido de Ladrão de alcova15, a
apresentação muda da casa de encontros, vista pela janela, e as costelas na chapa de Anjo16,
etc.). Retórica o mais frequente visual e muda, mas que repousa sobre um substrato linguístico
implícito (a colaboração ativa, ainda que in petto, do espectador consiste precisamente em
nomear, em explicitar para si o implícito que está na linguagem).

Cada um pensará à maneira como essa retórica é, ao mesmo tempo, diversificada e


codificada até a banalização, recorrente a fórmulas ou clichês para designar, sobretudo, o ato
sexual: tecendo e “temperando” a simples elipse temporal, o acento pode ser posto, de
maneira metonímica, sobre o ambiente propício ou “cúmplice” (plano romântico do luar) e,
especialmente, sobre o prelúdio amoroso (abraço ou beijo apaixonados seguidos de um fade)
ou, simetricamente, sobre a fase seguinte à realização (a iconografia da lareira acesa e, à sua
frente, o tapete de urso). O consumo ritual de cigarros e de álcool serve para denotar o “antes”
e o “depois”, com o mesmo efeito de sentido. Também é possível recorrer à metáfora: onda
que arrebenta, porta forçada ou janela aberta pela tempestade: plano célebre é o do fim de
Intriga internacional17 de Hitchcock, o do trem entrando em um túnel... O interesse por esses
procedimentos vem de sua inventividade indicial: eles deixam “tudo para a imaginação”, mas
dizendo de forma muito bem precisa o que deve ser imaginado, enquanto que uma forma de
censura mais global, tal como era realizada nos países socialistas, induz a uma outra forma de
réplica: a escolha de procedimentos alegóricos, que correm o risco de serem mal
compreendidos, já que são raramente desprovidos de ambiguidade, ou de passarem
inteiramente despercebidos.

Quanto à terceira regra, a do vício não atraente, a da virtude não ridicularizada,


constitui um dos limites do sistema: a eufemização idealiza, certamente, porém mais no
sentido da insipidez – e devemos refletir isso, portanto, nas imagens românticas de Sternberg,

15
Trouble in Paradise (1932).
16
Angel (1937).
17
North by Northwest (1959).
O Código 8

na fotografia “glamourosa” das estrelas, na aura sedutora das heroínas dos filmes noir, não é
antes o mal, ou a sua tentação, que se aureola dos atributos normalmente agraciados às
Madonas e a outras santas “irresistíveis”?

Porém, é verdade que privilegiar o implícito (princípio 2) tem necessariamente por


corolário excluir o explícito (princípio 3), ou seja, o realismo naturalista e a sátira. Citar-se-ão
algumas exceções, como a comicidade anárquica dos Irmãos Marx (notadamente, Diabo a
quatro18 [1933], anterior à estrita aplicação do Código, com sua sátira do patriotismo, mesmo
o americano, e da história nacional) e de W. C. Fields (com suas referências apoiadas na
imagem de beberrão e a sua derrisão dos valores familiares: It’s a Gift [1934], Never Give a
Sucker an Ever Break [1941]). Em Laurel e Hardy, o objeto da sátira será levemente
deslocado: paródia do cinema colonial, Bonnie Scotland [1935] toma como alvos ostensivos a
Escócia ou o exército indiano e não, como em Diabo a quatro, as instituições ou as tradições
americanas. Se o traço satírico se faz mais convencional, também é por causa da
estandardização induzida pelo longa-metragem, que implica intriga estruturada, coerência na
caracterização dos personagens, verossimilhança das motivações psicológicas, etc..., ou seja,
menor comicidade anárquica. Mas há aqui uma convergência: tudo isso vai ao encontro do
sentido da submissão às regras da conveniência.

Um exemplo simples bastará: a dos personagens eclesiásticos. O Código desejou


regulamentar o tratamento não somente desses personagens mas também daqueles que usam
as suas vestes: é que o hábito, até certo ponto, faz o monge. No teatro (como se sabe, desde
Tartufo) e no cinema, ou seja, em uma arte visual, como distinguir um falso devoto de um
verdadeiro devoto? Um impostor de um padre? Ver-se-á, então, nas duas pontas da época
clássica, dois personagens de impostores que imitam o gestual, a mímica e a retórica
eclesiástica: Carlitos, prisioneiro fugido, em Pastor de almas19 (1923) e Robert Mitchum,
como o falso predicador diabólico em O mensageiro do diabo20 (1955) de Charles Laughton.
Os modos são antitéticos: num, burlesco, bufão e satírico, no outro, noir, romântico e gótico
(é o inverso da História vista por Marx...). Porém, os gestos, a psicomaquia do combate
obstinado, no seio do próprio intérprete, senão do mesmo personagem, entre o Bem e o Mal,
entre Davi e Golias, são idênticos. Algo impensável sob o reino do Código, que sabia mostrar

18
The duck soup, de Leo McCarey, produção da Paramount.
19
The Pilgrim .
20
The Night of the Hunter.
O Código 9

apenas padres atléticos e charmosos, irlandeses e sensuais, mas pouco suspeitos de sucumbir à
tentação maniqueísta: Spencer Trancy em São Francisco, a cidade do pecado21 de Van Dyke
e em Com os braços abertos22 de Norman Taurog, Bing Crosby em O bom pastor23 e Os sinos
de Santa Maria24 de Leo McCarey ou Pat O’Brien em Anjos de cara suja25 de Curtiz...

Contraexemplo ou confirmação, Hitchcock ousa mostrar em A tortura do silêncio26 a


“pré-história” amorosa de um padre que tem os traços sensíveis (intelectuais e não “físicos”,
como aqueles dos irlandeses) de Montgomery Clift, mas: 1) a história se passa em Quebec e o
exotismo justifica o desvio, um pouco como a nudez em Tabu; 2) sabe-se, ou se subentende,
que Montgomery Clift é, ele próprio, caracterizado por sua sexualidade desviante, mas como
isso não é “profundamente” crível, então não é profundamente ameaçador, e, sobretudo, não
teria valor de “exemplo”. A metonímia é aqui integrada como estratégia de proteção (de
autocensura) às margens do sistema.27

O Código edulcora. Com um pouco de exagero, poder-se-ia afirmar que na época


clássica, sempre em virtude da terceira regra, um padre seria quase sempre interpretado por um
irlandês, ou seja, dotado de um caráter “étnico” ao mesmo tempo verossímil e tornado aceitável
por sua moderação. Do mesmo modo, a representação da classe operária tende a desaparecer e
os personagens-tipo pertencem às diversas classes médias ou gravitam em torno delas. Sem
dúvida, há no cinema clássico muito mais empregados domésticos do que “trabalhadores”.

Aleluia!28 de Vidor, com seu sabor pronunciado, étnico, religioso e musical, precede a
época clássica (1929). Aliviar-se-á Mais próximo do céu29 de Keighley e Connelly? Este filme
se encontra na caricatura ou em uma espécie de equivalente das histórias em quadrinhos que
torna a representação inofensiva (ao olhar do Código, eu não falo aqui das reações da
comunidade afro-americana representada) pelo próprio excesso, totalmente explícito, sendo

21
San Francisco (1936).
22
Boys Town (1938).
23
Going my way (1944).
24
The Bells of St. Mary’s (1945).
25
Angels with Dirty Faces (1938).
26
I Confess (1953).
27
Comparemo-o com uma obra um pouco anterior e muito mais convencional, que exterioriza então o que está
interiorizado em Hitchcock. The Keys of the Kingdom de John Stahl (1944), adaptação do romance de Cronin,
também narra a “pré-história” amorosa de um padre. Porém, a imagem “sã” e “normal” do intérprete (Gregory
Peck) é aqui perfeitamente enquadrada e dirigida, por um triplo exotismo, no tempo e no espaço, “próximo”
(Escócia) e longínquo (China), com toda a tentação agitadora de acréscimo, sendo evitada pela morte da noiva.
28
Hallelujah (1929).
29
The Green Pastures (1936).
O Código 10

marcado por irrealismo. Cabe a mesma observação em relação aos personagens de preachers
ou predicadores tão característicos do Sul e do Meio-Oeste, da bem nomeada “Bible belt”. Na
época clássica, essas regiões são o objeto de imagens pitorescas (Nas águas do rio de Ford,
193530), mas a denúncia de seu modo tão particular de eloquência histriônica, mistura de veia
profética e de verve charlatanesca, é reservada ao período pré-clássico (A mulher miraculosa
de Capra, 193131) ou, simetricamente, no período moderno (Entre deus e o pecado32 de
Richard Brooks, 1960; Wise Blood de Huston, adaptação do livro de Flannery O’Connor
[1979]; O apóstolo33 de Robert Duvall, 1997).

Impensável sob o Código é a sátira anticlerical de Prévert e Renoir tal qual como se dá
em livre curso em O crime do Sr. Lange (1936)34, devido ao disfarce eclesiástico que veste
Batala (Jules Berry) e à sua morte grotesca, ainda que merecida: ao estar gravemente ferido,
ele se arrasta suplicando que lhe busquem algum padre.

Filosofia do sistema

Para compreender bem o funcionamento do Código, é preciso insistir sobre o fato de que
se trata de um código de autocensura, que os membros da MPAA se comprometem a aplicar.
Depois das polêmicas suscitadas pela onda de filmes violentos e sexualmente explícitos, um
irlandês conservador, Joseph Breen, é encarregado, no interior do “Hays Office”, da aplicação do
Código. Ele exerce uma dupla censura prévia: os “shooting scripts” lhe são submetidos, com
indicação detalhada da decupagem e dos diálogos. Depois de terminado o filme, ele é projetado
para Breen. Nos dois casos, ele faz as suas críticas, notas e interdições eventuais; em seguida,
verifica se elas foram levadas em conta. O conjunto do processo toma mais a forma de um
diálogo com o estúdio do que a de uma imposição. Esse processo de re-escritura certamente
contribuiu para dar ao cinema hollywoodiano sua forma “clássica”. Uma vez satisfeito o “Hays
Office”, o imprimatur, por assim dizer, é concedido ao filme, materializado por uma cartela com
as iniciais MPPDA, depois MPAA, que aparece nos créditos.

30
Steamboat Round the Bend.
31
The Miracle Woman.
32
Elmer Gantry.
33
The Apostle.
34
Le crime de Monsieur Lange.
O Código 11

O procedimento é obrigatório apenas se os membros do cartel o endossam. Quando,


em 1953, a United Artists decide estrear Ingênua até certo ponto35 de Preminger sem o “selo”
do “Hays Office”, ela abandona a associação para se libertar dessa obrigação. Então, o
sistema começa a perder a sua coerência. Mas isso é um sintoma: na hora em que a televisão
destrona o cinema da primazia das mass medias (entre o reino do rádio e o da televisão, a
supremacia de Hollywood foi de curta duração), o sistema do Código, verificando a
conformidade de filmes destinados a um público teoricamente global, único e indiferente, não
é mais adaptado e, então, se encaminha, com a diversificação dos públicos e dos filmes, ao
método que tinham encarado Quigley e Lord, o dos rattings, de uma classificação restritiva ao
acesso de alguns filmes para esta ou aquela categoria de público juvenil.

Por outro lado, é necessário lembrar que o Código implica uma crença (diversa, mas
largamente compartilhada) na capacidade de o cinema modelar os comportamentos e as
mentalidades do espectador. Certamente, há uma diferença evidente entre as preocupações de
Quigley e Lord, moralizadoras, e aquelas dos magnatas, sobretudo atentos às ameaças de
boicote. Há também, como William de Mille (irmão de Cecil) notava maliciosamente em
1935, um duplo discurso dos produtores, que ora asseguram que o cinema não exerce
nenhuma influência sobre a juventude (quando se trata de filmes de gângsteres e de uma
influência potencialmente perniciosa) ora, ao contrário, se felicitam de seu valor de exemplo
(quando se trata de filmes edificantes , como David Copperfield).36 Não são poucos os lobbies
assim como os redatores do Código e vários produtores e cineastas que concordam em pensar
que o cinema funciona como um modelo social, cultural e ideológico. Eis alguns testemunhos.

Em 1941, uma comissão do Senado se fez porta-voz de um lobby anti-hollywoodiano


de um novo tipo, ao acusar os meios do cinema, em termos mais ou menos cobertos, de estar
“recheados” de judeus, hostis ao regime nazista e de forçar, pela propaganda, os Estados
Unidos a se voltarem contra a Alemanha, enquanto que nenhuma contenda separava os dois
países. Executivo da Fox, Zanuck responde, inicialmente, ao argumento tácito que, como
tantos produtores de cinema, ele tinha sido judeu, recentemente imigrado aos Estados Unidos.
Ele descreve a sua família, americana e protestante, desde numerosas gerações. Demonstra,
além disso, que ele crê, assim como Griffith, e ao contrário da decisão da Suprema Corte, na

35
The Moon is Blue.
36
“Mickey vs. Popeye”. The Forum, nov. 1995 In. KOSZARSKI, Richard. Hollywood Directors: 1914-1940.
Londres/Oxford/Nova York: Oxford University Press, 1977. p. 295.
O Código 12

vocação do cinema em constituir um meio de expressão (comparável, na época, à imprensa).


Retornando ao argumento, reivindicando altamente a função de propaganda do cinema, ele
conclui com a evocação de que “os filmes, por tão numerosos, tão fortes e tão poderosos,
tinham feito o modo de vida americana ser adotado não somente pela América, mas pelo
mundo inteiro.”

Citemos um outro registro inteiramente diferente: a abertura de Hollywood37de Cukor


por Selznick (RKO Pathé, 1932). A heroína, representada por Constance Bennett, é uma
empregada que sonha em se tornar uma estrela: ela imita Greta Garbo, se apodera de uma foto
de Clark Gable em uma loja, se penteia, se maquia, se veste, se modela literalmente a partir
das imagens de estrela que lhe são apresentadas na revista. Há nisso, para aquém da denúncia
ou da glorificação, a constatação de um fenômeno de sociedade e, ao mesmo tempo, uma
indicação interessante, pois lembra que os estúdios, para promoverem os filmes e as estrelas
se apoiam sobre um conjunto de produtos publicitários, de cartazes, de anúncios, de fotos, de
revistas, de mexericos mais ou menos autorizados das jornalistas sensacionalistas Louella
Parsons ou Hedda Hopper..., destinados a entreter o entusiasmo dos fãs.38

Se a estrela é um modelo de comportamento, a distinção entre a ficção cinematográfica e


a realidade extracinematográfica se apaga. A estrela deve ser tão bela, tão heroica, tão virtuosa...
tanto na cidade quanto na tela. Por isso, o zelo dos estúdios de regulamentar também a vida
privada das estrelas ou, pelo menos, os sinais exteriores dessa vida privada. Foi preciso esperar
1985 para que Rock Hudson, morrendo de AIDS, fosse o primeiro a “sair do armário” e explica
como, nos anos cinquenta, sua imagem de astro viril, mas familiar, de sexualidade “sã”,
implicitamente oposta a dos Brando, Clift e outros James Dean, era inteiramente fabricada pela
Universal-International, que tinha notadamente cuidado para que o ator se casasse.39 E até a sua
morte em 1986, Cary Grant manteve – com ameaças de perseguições judiciais – a ficção de sua
“normalidade” sexual; ficção também nutrida por sucessivos casamentos do astro, cuja

37
What Price Hollywood?.
38
Filme notável, constituindo um verdadeiro documentário sobre os estúdios no limiar da época clássica,
Hollywood desposa um esquema binário muito habitual, sem dúvida inevitável. À denúncia de Hollywood como
implacável fábrica de sonhos, designado notadamente pelo “preço a pagar” que evoca o título [original], pelo
suicídio de um realizador “acabado”, pela representação da histeria dos fãs, que arrancam pedaços do véu da
estrela durante o seu casamento, sucede uma espécie de reabilitação: Hollywood aparece, em última análise,
como o lugar da vulgaridade, mas também da amizade autêntica, ao contrário da “velha riqueza” da Costa Leste,
que tem bom gosto mas menos coração.
39
Sobre este ponto ver KLINGER, Barbara. Melodrama & Meaning: history, culture and the films of Douglas
Sirk. Blooming/Indianapolis: Indiana University Press, 1994.
O Código 13

“verdadeira natureza”, no entanto, era alvo de glosas codificadas ou mesmo autoparódicas,


detectáveis, pelos iniciados, quer se tratasse da célebre “cena do peignor” de Levada da breca40
de Hawks ou da indicação dada pela crítica de cinema Pauline Kael, em seu retrato do ator
publicado em 1975, no mais puro estilo alusivo requerido pelo Código, que Cary Grant e
Randolph Scott tinham “dividido uma residência durante vários anos.”41 O respeito ao Código
se estendia, como se vê, para além dos próprios filmes.

O Código se esforçava, no entanto, a dar respostas (certamente discutíveis) a


“verdadeiras questões”. É difícil imaginar uma arte de massas que não esteja submetida a
qualquer forma de controle social: a experiência prova que, de boa ou má fé, esse controle se
disfarça, habitualmente, em censura moral. Exemplos recentes – A última tentação de Cristo42
de Martin Scorsese (1988) e o cartaz de O povo contra Larry Flynt43 de Milos Formam (1997) –
mostram que o coquetel iconográfico de um tema religioso tradicional e da sexualidade
permanece explosivo para uma boa parte da opinião pública, não somente nos países islâmicos
ou na América “puritana”. O debate sobre a violência, sobre os efeitos possíveis de certos
seriados de televisão ou de alguns filmes sobre jovens espectadores, toma, periodicamente, um
caráter de atualidade. O “politicamente correto” [political correctness] – tão criticado e
difundido, com os seus excessos e os seus ridículos, mas também com suas louváveis intenções
– não está muito afastado das numerosas disposições do Código. Em 1997, a midiatização que
cerca os casos de pedofilia explica porque nenhuma major ousou distribuir o remake de Lolita,
adaptado de Nabokov.44 Tantas indicações da permanência de um problema que os redatores do
Código tinham resolvido, ao seu modo e por um tempo, de uma maneira que para nós hoje
parece antiquada, meticulosa e, sobretudo, hipócrita, mas que levava em conta a inevitável
interação das mass medias com as regras sociais e as éticas dominantes.

Tradução: Fabián Núñez


BOURGET, Jean-Loup. Hollywood, la norme et la marge.
2. ed. Paris: Nathan, 2002. pp. 123-133.

40
Bringing Up Baby (1938).
41
GILL, Brendan. “Pursuer and Pursued: the still untold story of Cary Grant”. New Yorker. 2 jun. 1997. p. 84.
42
The Last Temptation of Christ.
43
The people versus Larry Flint.
44
Produzido pela Pathé e realizado pelo inglês Adrian Lyne. A adaptação anterior foi realizada por Stanley
Kubrick (produção britânica, distribuição MGM, 1962).

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