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No dia 30 de abril de 1945, quando tropas soviéticas estavam a poucos quarteirões

do bunker onde havia se escondido, Adolf Hitler (1889-1945), chefe (führer) do


regime nazista, cometeu suicídio disparando uma bala na sua têmpora direita.
Imediatamente o mundo pôs-se estupefato, perguntando-se como seria possível um país
de mais de 65 milhões de pessoas haver sustentado um movimento tão destrutivo
quanto o nacional-socialismo. Conforme novas informações chegavam às agências
internacionais de notícias acerca do número de vítimas dos campos de concentração,
a intelectualidade e as elites políticas de diversos países tornavam-se
progressivamente mais obcecadas em explicar aquele que seria o enigma do século XX:
o que levaria um grupo de pessoas, em sua maioria racionais, a apoiar um líder
autocrático, cuja ordem mais vultosa fora a de exterminar mais de 6 milhões de
vidas humanas em câmaras de gás? Muitos, dentre os quais escritores como Albert
Camus e filósofos como Hanna Arendt, se dispuseram a respondê-lo, apresentando seus
argumentos na forma de tratados, estudos, romances e, obviamente, filmes.

Porém, talvez a mais nebulosa e assustadora das teses tenha sido engendrada por Ron
Jones, um professor de história da Escola Secundária Cubberley, de Palo Alto,
Califórnia, no ano de 1967. Incapaz de responder aos questionamentos de seus alunos
sobre como o povo alemão teria sido capaz de apoiar as atrocidades nazistas, Jones
decidiu realizar um experimento sociológico. No período de uma semana, transformou
sua classe de 30 alunos em um verdadeiro movimento fascista, com direito a
uniforme, saudação e parafernália ideológica. Começando com simples exercícios de
como sentar-se apropriadamente nas carteiras, Jones passou a impor-se como uma
figura autoritária em sala de aula. Os mais altos valores por ele defendidos
passaram a ser comunidade, força e, sobretudo, disciplina.

Em menos de três dias não apenas percebeu um aumento da eficiência de sua turma,
como o número de presentes ampliou-se, mostrando que muitos jovens estavam
interessados em ingressar no mundo de proximidade familiar que ele havia criado. O
nome escolhido pelo professor para batizar o grupo de jovens: a Terceira Onda, numa
referência à crença mítica de que a terceira onda de uma maré é sempre a mais
forte. Ao chegar quinta-feira, Jones percebeu que o experimento parecia estar
saindo ao controle, com jovens apresentando-lhe denúncias uns contra os outros,
pelo fato de acreditarem que certos colegas não estariam seguindo com dedicação
suficiente os preceitos da Onda. O professor anunciou então que todos fariam um
comício no dia seguinte, afirmando que eles eram apenas uma pequena parte de um
movimento de amplitude nacional, que já teria inclusive um candidato à presidência,
o qual faria um discurso em cadeia de televisão. Na sexta-feira, enquanto os
militantes juvenis aguardavam um sinal de transmissão que jamais viria, Jones
revelou-lhes que todos haviam participado de uma experiência sobre como o fascismo
poderia triunfar no seio de uma sociedade.

O sinistro episódio sugeria não apenas que os jovens estariam mais sujeitos a estar
sob a influência dos ideais fascistas, por conta das angústias que determinam esta
fase do processo de amadurecimento, mas também que um simples conjunto de crenças
políticas, centrado nos pressupostos de “comunidade” e “disciplina”, poderia ser
capaz de conquistar o apoio popular. Em 1981, foram lançados um romance e um filme
feito para a TV, intitulados A Onda, que descreviam de forma relativamente
fidedigna os eventos ocorridos no colégio de Palo Alto. E 27 anos depois, coube ao
cinema alemão, de forma catártica, desenterrar os pesadelos de seu passado,
produzindo um remake da história.

Em A Onda (2008), filme de roteiro simples e excelente valor de produção – remake


de um filme de 1981, dirigido por Alexander Grasshoff -, somos apresentados a o que
seria um típico colégio alemão do início do século XXI. Os alunos aderem à moda do
hip hop, escutam rappers norte-americanos e dividem o lazer entre atividades
esportivas, festas e jogos de videogame, sendo retratados de maneira idêntica
àquela de outras produções cinematográficas mundo afora. A alguns falta uma
perspectiva de vida, a outros estabilidade (seja por motivos econômicos ou
familiares) e todos são flagelados pelas agonias e dilemas que definem a transição
da infância para a vida adulta. Na semana marcada para a realização de workshops em
ciência política, caberá ao carismático e rebelde professor Rainer Wenger,
interpretado por Jürgen Vogel, liderar o grupo de trabalho sobre “Autocracia”,
termo moderado, que visaria não machucar as sensibilidades dos expectadores com
palavras tão conhecidas como Fascismo ou Nacional-Socialismo. Wenger, longe de
representar o clichê do professor conservador, de colete de lã e terno, surge na
tela vestindo uma jaqueta de couro e dirigindo seu carro ao som de Rock’Roll
Highschool, da banda Ramones. Logo nos primeiros minutos da película vemos a
resistência de Wenger em assumir o comando da classe, estando muito mais
interessado na turma de “Anarquismo”, inclusive por suas experiências no bairro de
Kreuzberg, histórico reduto da militância de esquerda em Berlim.

Após uma série de reprimendas, resta ao desenvolto professor assumir seu lugar á
frente da classe de “Autocracia”. Daí em diante todos os eventos ocorrem de forma
muito parecida com aquela da experiência de 1967. Acompanhamos os efeitos da Onda
sobre diversos estudantes, com destaque para o casal formado pelo nadador Marco e
sua namorada Karo. Ele, desejoso do senso de comunidade que não encontra em sua
própria família, adere fervorosamente ao movimento, enquanto Karo, criada por pais
hippies, decide denunciá-lo tão logo se apresenta. Progressivamente o casal se
distancia, levando à cena chocante na qual Karo, após atacar prolificamente a Onda,
é agredida com um tapa pelo namorado. O evento mostra a Marco o quão longe o
fanatismo fora capaz de leva-lo. Ao mesmo tempo acompanhamos o tímido Tim,
estudante excluído de todas as tribos do colégio, que encontra na Onda a chance de
enturmar-se e mesmo ganhar certa popularidade. O filme usa ainda de certas
alegorias históricas para discutir a vitória política do nazismo na década de 1930,
mostrando que apesar dos riscos representados pela Onda avolumarem-se no colégio, a
diretora do mesmo afirma a Wenger (sem saber que ele está, em verdade, conduzindo
um experimento sociológico) que ele conta com seu total apoio. Para que este
continue com o trabalho de disciplinarização dos jovens.

A referência aqui é feita à elite política da decadente República de Weimar (1918-


1933), que abriu as portas do governo alemão ao nazismo por acreditar que ele seria
a melhor resposta à necessidade de manutenção da ordem no país. Em lugar dos
sindicatos e do movimento comunista, que tanto assustavam os burocratas e deputados
do Reichstag, dispostos a ceder à Hitler as liberdades civis do povo alemão, no
microcosmo do colégio a Onda contrapõe-se aos estudantes “anarquistas”, jovens
rebeldes que agem como os punks da década de 1980. Se não bastassem paralelos tão
claros, o filme insere na cena final do comício, um discurso-síntese pronunciado
por Wenger, em que este enuncia os questionamentos que, até hoje, emanam da
extrema-direita europeia. Salvo pelo polêmico debate anti-imigração, o professor
expressa a revolta contra a perda da soberania popular, executada por uma
tecnocracia favorável aos bancos e ao capital especulativo, contra a corrupção de
uma classe política que parece não compreender a realidade do país, e contra o
desemprego e a miséria do povo, colocado à mercê de grandes corporações
estrangeiras.

Aqui caberia ressaltar os paralelos entre o filme e as teses de Albert Camus (1913-
1960), expostas no seu tratado O Homem Revoltado. Sem debruçar-se tão somente sobre
a caracterização dos nazistas enquanto paladinos do conservadorismo, o pensador
franco-argelino encontra no sentimento fulcral de revolta a semente causadora da
ascensão de Hitler e das tragédias da Segunda Guerra Mundial. Teria sido o
descontentamento perante a perda de um mundo tradicional, dirigida contra quase
todas as classes sociais e movimentos políticos, o responsável por fundamentar a
plataforma nacional-socialista, levando àquilo que Camus definiu como uma vontade
de Apocalipse. No cerne desta ideologia haveria a percepção do jogo político como
uma questão de vida ou morte, capaz de explicar o porquê dos suicídios
testemunhados no bunker de Berlim em abril de 1945. Um mundo sem a vitória do
nacional-socialismo seria indigno de existir e, portanto, terrível de se viver. Tal
sentimento levou Magda Goebbels, a esposa do ministro de propaganda Joseph
Goebbels, a envenenar os seis filhos pequenos do casal e matar-se logo em seguida.

De forma semelhante, ao cabo da trama, o jovem Tim, vendo seu mundo desmoronar com
o anúncio de que a Onda não passara de um experimento que fugiu ao controle, ameaça
assassinar Wenger com uma pistola automática. O professor rapidamente pergunta-lhe
“Sem mim, quem irá liderar a Onda?” Constatando o precipício existencial no qual se
encontrava, Tim opta pelo suicídio, disparando a arma em sua boca. O final,
diferente daquele do evento de Palo Alto, foi decididamente influenciado pelo
fenômeno dos massacres em escolas públicas, preponderantes nos EUA e presentes na
Europa desde a década de 1990. A questão reside em ir além da mera mudança de
roteiro, causado por questões contemporâneas, e problematizar aquilo que aproxima a
trama dos eventos históricos sucedidos no término da Segunda Guerra Mundial. Desde
então as ciências sociais tentam responder à questão do “porquê”, e a experiência
da Terceira Onda talvez chegue próxima de apontar-nos o “como”. Obviamente os
fascismos não podem ser reduzidos à mera presença de uniformes, gestos e uso da
violência como meio de se atingir fins políticos. Quando muito essas foram práticas
já disseminadas no continente europeu desde a segunda metade do século XIX,
amplamente utilizadas pela extrema-direita e mesmo pela extrema-esquerda, das quais
o nacional-socialismo se valeu para impor sua agenda de poder.

O filme A Onda toca então em uma questão mais simples, ainda que igualmente
assustadora: a de que o fascismo talvez esteja mais próximo de nós do que pensamos,
e de que ela possa ressurgir a qualquer momento. A esse respeito, podemos regressar
a Albert Camus. Em 1947, o autor publicou um de seus maiores romances A Peste, cuja
advertência aproxima a obra do filme alemão. Na trama, a pequena cidade de Oran, na
Argélia, é tomada por uma epidemia de peste bubônica depois de ser invadida por
ratos. A trama apresenta ao leitor uma analogia muito clara entre a invasão nazista
da frança, e a subsequente disputa entre a Resistência e os colaboracionistas,
opondo os que combatem a doença àqueles que lucram com ela. Mesmo sustentando um
tom mais bélico do que político, em sua conclusão o narrador da obra menciona a
comemoração geral após a notícia de que a epidemia cessara, ecoando aquela feita
pela população de Paris quando da Libertação. Em meio à felicidade de seus
concidadãos, o protagonista da estória, o médico Rieux, manteve-se em uma posição
pessimista, pois sabia que, tal qual o fascismo, “o bacilo da peste não morre nem
desaparece nunca, pode ficar dezenas de anos adormecido nos móveis e nas roupas,
espera pacientemente nos quartos, nos porões, nos baús, nos lenços e na papelada. E
sabia, também, que viria talvez o dia em que, para desgraça e ensinamento dos
homens, a peste acordaria seus ratos e os mandaria morrer numa cidade feliz”.

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