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Florinda Martins2
Resumo:
I- Delineamento do tema
1
questões emergentes da crise, são, também elas, postas em causa. A obra de Freud,
Para além do princípio do prazer3, debate-se com a ausência de resposta das
configurações culturais do seu tempo à questão da repetição das experiências de
desprazer: experiências de crise. Mas é de sublinhar que Freud não vai buscar aos
contextos de crise, no caso o rescaldo da primeira grande guerra, a compreensão do
problema4. É numa brincadeira de criança – jogo do ir embora e voltar5 - que Freud
descobre que os fenómenos da perda e sua superação são estruturantes do nosso
viver.E assim sendo, mais do que um dado circunstancial eles são, em Freud, condição
de nosso viver, condiçãonossa humanidade.
Para isso, será necessário vermos como é que, na senda de Husserl e de Heidegger
e da Daseinanalyse, Michel Henry apresenta a fenomenalidade da passagem do sofrer
ao fruir como a raiz de todas as configurações versus transfigurações culturais que, em
tempos de crise, mais intensamente vivemos, mostrando ainda como é que Freud
situa, nessa passagem, olabor terapêutico.
3
Freud, Para Além do Princípio do Prazer. Lisboa: Relógio de Água, 2009 [Doravante, PAPP, seguido de
número de página]
4
PAPP, 12.
5
PAPP, 12-13. A tradução que usamos traduz fort por «embora» /«foi-se embora»; Da «Aqui».
2
Reler a obra de Freud Para além do princípio do prazer, para participarmos
convosco na celebração do centenário de sua edição, foi mais do que um prazer: nela,
encontramos sementes de uma inquietação que, perpassando toda a fenomenologia
do século XX, se prolonga ainda pelo nosso século, o século XXI. Referimo-nos à
inquietação inerente à súbita ausência de uma presença, fenómeno que,
naturalmente, conduz ao pensamento da morte, deixando a descoberto a dimensão da
finitude do nosso viver.
Mas mais do que esta precisão de Freud dentro dos vitalismos da época, nos
quais incluímos Bergson, importa salientar a inserção destas questões na procura de
respostas para uma patologia a que se dera o nome de «neurose traumática» que,
também não sendo nova, levou, com o rescaldo da guerra, ao ressurgimento de
inúmeros casos, de modo algum indiferentes a Freud8.
6
Lebensschwungkraft é a tradução do poeta Stefan George para o alemão do conceito de élan vital de
Bergson que Heidegger adota, sem restrições, na fenomenalidade das formas primárias de ser-aí – Da-
sein. No segundo ponto, mostraremos como que é que esta interrogação de Freud se prolonga na
fenomenologia e na Daseinanalyse, para no terceiro ponto mostrarmos como ainda hoje nos inquieta e
ocupa.
7
PAPP, 43.
8
PAPP, 11.
9
PAPP; 7 «a este respeito, infelizmente, não nos é oferecido nada que possamos aproveitar»
10
No final do texto, Freud cita, nestes termos, o poeta Rückert:«O que não podes alcançar a voar, tens
de alcançar a coxear…O livro diz: Não é pecado coxear».
3
esclarecendo, embora, que, nela, busca apenas alcançar certezas11 para o problema
que o inquieta; b)será numa brincadeira de criança, nomeadamente no conhecido jogo
fort-da, mais do que nos contextos das sofridas vivências de guerra, que Freud vai
procurar compreender a origem dos fenómenos de repetição de experiências de
desprazer que, evocam em si mesmas, experiências de finitude e de morte.
11
PAPP, 36.
12
Nós: em 2008 KarinWondracek integrou o projeto internacional de pesquisa «Pulsão e passibilidade»,
sob minha coordenação, na Universidade de Lisboa. A nós se uniu Andrés Antúnez (USP), mas agora com
o projeto «Michel Henry: O que pode um corpo? », UCP – Cefi Lisboa. E foi já no CEFi-Porto que, com o
projeto «Corpo e afetividade: o pensamento de Michel Henry na lusofonia» que, com Izabel
Tafuri(UNB), surgiu a ideia de criar um círculo que respeitasse as linhas de pesquisa de cada grupo e ao
mesmo tempo integrasse e desse visibilidade à nossa atividade. Esta ideia foi concretizada por Andrés
Antúnez in Círculo Fenomenológico da Vida e da Clínica, USP.
13
Nos primeiros anos redefinimos o conceito de inconsciente; nos últimos prestamos atenção à
redefinição de transferência e contratransferência através da fenomenalidade pathos-avec.
4
Filoctetes14, vida, de acordo com a acentuação da palavra, tanto pode indicar no
sentido da existência como no de sua raiz, a raiz da existência15.
«Eu sou uma coisa que duvida, que afirma, que nega, que conhece poucas
coisas, que delas ignora muitas outras, que ama, que odeia, que quer e não quer, que
também imagina e que sente»18.
14
Sófocles, Filoctetes, Ed. 70, 2005.
15
Biós, designa arco; Bios designa o vivo.
16
A Obra de Michel Henry, Genealogia da Psicanálise: o começo perdido, Trad. Rodrigo Marques,
Curitiba: Editora UFPR, 2009, mostra a ancoragem de Freud em Descartes.
17
Para o aprofundamento desta questão, permito-me remeter-vos para o meu texto «Estrela Polar:
sementes de O fenómeno erótico» in Estátuas de Anjos, Edições Colibri, 2017, pp. 123-138.
18
Descartes, Médiation Troisième in Méditations Méthaphysiques, , Paris, Flammarion, 1979. pag. 97,
minha tradução.
5
desse fundo motivacional, a configuração desmorona sobre si mesma, dando lugar a
algo que, por ainda não ter recebido qualquer tipo de configuração, se denomina, élan
vital (Bergson), instintivo, pulsional (Freud), caos sem eu e sem tu (Husserl) e enquanto
tal irracional19.
19
Os fenómenos de violência inerentes à nossa cultura apelam à fenomenalidade deste fundo. Para
suporte a uma reflexão permito-me remetê-los a On conflict and Violence, Studia phaenomenologica,
2019. Permito-me ainda sublinhar neste volume a referência a obra de MH e seu importante contributo
à compreensão deste fenómeno.
20
Lebensschwungkraft é a tradução do poeta Stefan George para o alemão do conceito de élan vital de
Bergson que Freud adota, sem restrições, na fenomenalidade das formas primárias de ser-aí – Da-sein.
No segundo ponto, mostraremos como que é que esta interrogação de Freud se prolonga na
fenomenologia e na Daseinanalyse, para no terceiro ponto mostrarmos como ainda hoje nos inquieta e
ocupa.
6
neste percurso, para Heidegger, apenas um Deus, e só um Deus, nos poderá ainda
salvar21.
«Não é um deus qualquer que pode ainda hoje salvar-nos, mas – quando em
toda a parte cresce e se estende sobre o mundo a sombra da morte – Aquele que é
Vivo»22.
Só Aquele que é Vivo nos pode salvar. E ainda que Henry remeta, na Genealogia
da Psicanálise, à fenomenalidade dos mitos é para dizer que os deuses nascem e
morrem em simultâneo – les dieux naissent et meurent ensemble.
Neste contexto Michel Henry pode afirmar que «a ideia de morte é a projeção
no futuro da condição de um ser que não é fundação de si mesmo»25. E encontrar a
fundação de si mesmo na vida é encontrar em si mesmo as passagens da ausência à
21
Heidegger, Já só um Deus nos pode salvar, LusoSofianet.
22
Michel Henry, C’est moi la Vérité, Paris, Seuil, 1996, p. 345.
23
Michel Henry, Phénoménologie de la vie,T. IV, Paris, PUF, 2004, p. 208. Para Husserl «a morte consiste
em separar o Ego transcendental da sua auto-objectivação como homem». A diferença entre Husserl e
Heidegger está apenas na passagem do campo teórico para a práxis. E tanto a referência de Heidegger à
filosofia da natureza – raiz nos mitos e physis grega – quanto a referência de Husserl a um pensamento
teleológico que reporta a Cristo a figura do Amor, deixam abandonados a si mesmo a fenomenalidade
tanática de nosso viver.
24
Michel Henry, Phénoménologie de la vie, T. I, Paris: PUF, 2003, p. 87.
25
Michel Henry. Auto-donation, Paris: Beuachesne, 2004, p. 82.
7
presença inerentes a todas as modalidades de nosso viver: passagem da dúvida ao
saber, do não querer ao querer, do amor ao ódio. É retomar de Descartes o projeto de
encontrar em nós mesmos a fundação e o alicerce de nossos construtos e desse modo,
transportar para vida, o alicerce da sabedoria, cujo alcance fora também intento de
saber da Grécia e é ainda intento dos povos de todos os tempos. E a filosofia é apenas
uma modalidade da configuração dessa vital experiência de nosso viver.
26
Michel Henry. Généalogie de la Psychanalyse: le commencement perdu, Paris, PUF, 1985.[Doravante
GP, seguido de número de página]
27
GP, pp. 343-386.
28
Lembramos que GP edita os seminários de Michel Henry, nas Universidades Japonesas de Osaka,
Tóquio e Kioto, a convite de Y. Yamagata. Ora no Japão a filosofia passa por uma filosofia da natureza.
Todavia para Michel Henry, toda a filosofia da natureza passa pelo modo como nela nos sentimos ao
senti-la em seu processo em nós.
29
Sem a compreensão desta originária impossibilidade de nos desfazermos nada compreenderemos
daquilo que Henry em C’estmoi la Vérité/Eu sou a verdade diz sobre o esquecimento e a ilusão
transcendentais da vida. Cf. Henry, M. Eu sou a verdade. São Paulo: E-Realizações, 2015.
8
IV - A repetição como forma de participação nas configurações da vida e sua
renovação em tempos de crise.
30
Cf. Wondracek, K. Ser nascido na vida: a contribuição da fenomenologia da Vida de Michel Henry para
a clínica. Tese de doutorado. São Leopoldo: Faculdades EST, 2010. Disponível em
http://dspace.est.edu.br:8080/jspui/handle/BR-SlFE/158. Também Wondracek,
K. Psychoanalyse und Lebensphänomenologie: ein Beitrag zur Klinischen Psychologie. Freiburg: Alber
2014.
31
Sartre, Cahiers pour une morale. Paris: Gallimard, 1983, p. 183.
32
Os capítulos IX e XI de Michel Henry, C’estmoi la verité/Eu sou a verdade, atrás mencionada são a
explicitação desse passar interior do sofrer/fruir.
9
«Assim, as coisas não estão nunca presentes ao meu corpo em uma experiência
que traria em si esse carácter de dever ser única, como o que não se veria nunca duas
vezes, mas, pelo contrário, como o que se pode ver por princípio, como um termo
indefinidamente evocável, sob condição de um certo movimento, porque a capacidade
principial de realizar esse movimento – do olho, da mão – constitui o ser mesmo do
meu corpo. Quando nos parece ver, pelo contrário, uma paisagem ou um rosto que
não veremos mais, essa significação nova que confere seu carácter trágico ao mundo
da intersubjetividade humana e ao próprio mundo na medida em que nele apenas
somos turistas de passagem, então, esse carácter provisório e fugidio de toda a
experiência é possível apenas pela nossa capacidade permanente de acesso ao mundo
enquanto capacidade constitutiva do nosso ser»33
33
GP. 395-396; Tradução Portuguesa de Rodrigo Marques, Genealogia da psicanálise. Curitiba: Editora
UFPR, 2009, p. 363.
34
Um monumento que visitamos é observado em suas partes; todavia, cada parte está inserida num
todo que nunca perdemos de vista.
35
Merleau-Ponty, L’oeiletl’esprit, Gallimard, 1964, p. 54. «O corpo é o espaço natal da alma e a matriz
de todo e qualquer espaço de existência»
10
que, em minha ausência, para lá da minha existência empírica, antes do meu
nascimento e depois da minha morte, o presente é»36.
Outro: todo o outro, o vivo – todo o vivo – revelado no jogo com artefactos,
apela a reformulação do pensar originário da vida em tempos de crise. Restituir a
dignidade perdida ao outro – todo o outro – e repensar com o pensamento da vida, o
pensamento da técnica: do jogo.38
36
Derrida, La voix et le phénomène. Paris: PUF, 1967, p. 60.
37
Diferente de incorporação – no sentido teológico e mesmo fenomenológico -e ainda diferente da
copropriação heideggeriana – ser-com. Pathos é corpo vivo na tessitura do medo, da angústia da
ausência - fort – que em si mesmo comporta a infinita capacidade de retomar o começo perdido,
fruindo de novo dessa presença do outro em si, na modalidade de afeto – Da.
38
António Damásio, A estranha ordem das coisas, Lisboa: Círculo de Leitores, 2017. E ainda Florinda
Martins «Do som à voz e da voz à dança: fenomenalidade do corpo no processo educativo e na
renovação da tradição» SJDR, 2017, no prelo.
11