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1590/0103-656420160153
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Em torno da complexa articulação sujeito e cultura1
Betty Bernardo Fuks*
Ana Maria Rudge
Universidade Veiga de Almeida. Rio de Janeiro, RJ, Brasil
Resumo: Freud explicitou, desde o início da psicanálise, que o sujeito é inseparável da cultura. A experiência
subjetiva implica, necessariamente, a referência do sujeito ao Outro, objeto de amor e de ódio, e à linguagem. Neste
artigo, buscamos abordar a contribuição da psicanálise à abordagem da cultura, ressaltando sua especificidade,
que é a de que suas hipóteses têm origem na clínica. A partir da psicanálise, podemos observar que, se o mal-estar
na cultura, devido às restrições que são impostas às pulsões, é inevitável, os adoecimentos psíquicos costumam
apontar criticamente para aspectos “insalubres” da cultura em determinados momentos históricos.
Poucos anos depois de ter inaugurado a psicanálise o pequenino ser, o Outro é um desconhecido situado
com a Interpretação dos sonhos (Freud, 1900a/1976, numa relação de extrema proximidade. O próximo é, ao
1900b/1976), texto chave para a compreensão da escrita do mesmo tempo, seu primeiro objeto de satisfação, fonte
inconsciente, Freud assina sua primeira crítica à cultura sob da experiência mítica de prazer absoluto que a criança
a forma de um artigo intitulado Moral sexual “civilizada” tenta reproduzir posteriormente, e também seu primeiro
e doença nervosa moderna (Freud, 1908/1977). Pode objeto hostil: presença estranha e ameaçadora, e única
parecer ter sido um salto prematuro do fundador da ciência potência capaz de prestar socorro, aquele que acolhe e
dos sonhos, submergido, então, na tarefa de articular responde afetivamente a seu desconforto, ordenando suas
dois de seus principais conceitos: inconsciente e pulsão. manifestações pulsionais. Objeto ambíguo: que se quer
Entretanto, uma análise rigorosa demonstra que o tema reencontrar, e de repulsa, no qual evita-se até pensar,
da relação do sujeito com a cultura está em lugar central o Outro, na perspectiva freudiana, se constitui como
desde os primeiros passos da psicanálise. Já no Projeto “familiar-estrangeiro” (Unheimlich).
(Freud, 1950/1977), encontramos sob a designação de Em resumo, fertilizada pela libido e pela
“complexo do próximo” o jogo que ocorre na emergência linguagem, a sociabilidade tem início exatamente nesse
do humano. Este tem início em uma cena em que o recém- ponto de captura da estranheza do próximo. Momento
nascido estabelece o primeiro e rudimentar laço social do nascimento de uma relação de parentesco, para além
com o ser próximo (Nebenmensch), o primeiro Outro de toda a biologia, com alguém que é, a um só tempo, o
que atende ao seu grito de socorro, satisfazendo sua sede semelhante – imagem do eu do sujeito –, e aquilo que há
e fome. No entanto, tudo terminaria por aí caso o bebê de mais estranho e estrangeiro dentro de si: o impossível
precisasse do Outro apenas como instrumento adequado de metabolizar. O desamparo da criança, manifestado no
para reparar uma falta localizável no corpo. Para além de primeiro grito, que é demanda de presença e não apenas
mera expressão de uma necessidade biológica, o grito descarga de tensão, “adquire uma função secundária da
passará a agir como apelo por socorro e invocação à maior importância, a de comunicação, e o desamparo
presença materna. 1
inicial do ser humano é a fonte primária de todos os motivos
Um laço se estabelece entre o bebê e aquele morais” (Freud, 1950/1977, p. 317)2. É a dependência e
– geralmente a mãe – que ocupa o lugar do Outro da amor ao adulto, o medo de perder seu amor, que está na
linguagem. Ela significa e nomeia sua dor, incentiva-o a base de toda a aceitação das leis da cultura da qual a
julgar e reconhecer as excitações internas que emanam mãe é o primeiro porta-voz. Entretanto, nessa primeira
de seu próprio corpo e a se separar da fonte de excitações relação, para a criança são apenas os caprichos dessa
externas que fluem sobre si, o mundo externo. O termo figura poderosa que estão em jogo, resto não passível de
com o qual Freud designa essa assistência, indispensável ao ser tomado nos meandros da cultura.
advento do infans como ser falante, é “ajuda estrangeira”. A experiência subjetiva implica, necessariamente, a
O termo estrangeiro remete ao não familiar, referência do sujeito ao Outro, objeto de amor (modelo) e de
ao desconhecido, àquilo que é apreendido com horror. ódio (obstáculo), e à linguagem. Ao retomar esse “Outro”
Entretanto, a psicanálise descortina um paradoxo: para que Freud identificou como dobradiça entre o sujeito
* Endereço para correspondência: bettyfuks@gmail.com
2 Neste artigo, todas as citações das obras em língua estrangeira foram
1 Pesquisa conduzida com o apoio da Funadesp e do CNPq. traduzidas pelas autoras.
Abstract: From the beginning of psychoanalysis, Freud explained that the subject is inseparable from culture. The subjective
experience necessarily implies the reference of the subject to the Other, object of love and hate, and language. In this article, we
discuss the contribution of psychoanalysis to the approach of culture, highlighting its specificity, which is that its hypotheses
originate from the clinic. From psychoanalysis, we can observe that if the discontent present in culture is unavoidable, due to
the constraints that are imposed on drives, psychic illnesses usually critically point to “unhealthy” aspects of culture at certain
historical moments.
Résumé : Freud a expliqué, depuis le début de la psychanalyse, que le sujet est inséparable de la culture. L’expérience subjective
implique nécessairement la référence du sujet à un autre, objet de l’amour et la haine, et le langage. Dans cet article, nous
abordons la contribution de la psychanalyse à l’étude de la culture, mettant l’accent sur sa spécificité, qui est que ses hypothèses
proviennent de la clinique. De la psychanalyse on voit que, si le malaise dans la culture, en raison des restrictions imposées aux
pulsions, est inévitable, les maladies psychiques servent souvent à identifier critiquement les aspects « malsains » de la culture
dans certains moments historiques.
Resumen: Freud explicitó, desde el inicio del psicoanálisis, que el sujeto es inseparable de la cultura. La experiencia subjetiva
implica necesariamente la referencia del sujeto al otro, objeto del amor y odio, y al lenguaje. En este artículo, buscamos abordar
la contribución del psicoanálisis al enfoque de la cultura, resaltando su especificidad, que es la de que sus hipótesis tienen
origen en la clínica. A partir del psicoanálisis, podemos observar que, si el malestar en la cultura, debido a las restricciones
impuestas a las pulsiones, es inevitable, las enfermedades psíquicas suelen señalar críticamente aspectos «insalubres» de la
cultura en determinados momentos históricos.
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