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Thus conscience does make cowards of us al!... É, assim que a consciência faz de
todos nós covardes(14).
Por conseguinte, se o sentimento de culpabilidade é o meio específico de que a
civilização se serve para frustrar a agressividade, não é de se estranhar que Mal-estar na
Civilização contenha a mais desenvolvida interpretação desse sentimento cujo estofo,
no entanto, é, fundamentalmente, psicológico. Mas a psicologia desse sentimento só era
possível a partir de uma interpretação "econômica" da cultura. Com efeito, do ponto de
vista da psicologia individual, o sentimento de culpabilidade parece ser apenas o efeito
de uma agressividade interiorizada, introjetada, que o Superego assumiu em nome da
consciência moral, e que lança contra o Ego. Contudo, toda a sua "economia" só
aparece quando a necessidade de punir é ressituada numa perspectiva cultural: "A
civilização domina, pois, o perigoso ardor agressivo do indivíduo, enfraquecendo o
indivíduo, desarmando-o e fazendo-o estar vigilante mediante uma instância instaurada
nele mesmo, da mesma forma que uma guarnição situada numa cidade conquistada"
(pp. 58-59).
Assim, a interpretação econômica e, se podemos dizer, estrutural do sentimento de
culpabilidade, só pode edificar-se numa perspectiva cultural. Ora, é somente no
contexto dessa interpretação estrutural que podem ser situadas e compreendidas as
diversas interpretações genéticas parciais elaboradas em diferentes épocas por Freud,
dizendo respeito ao assassinato do pai primitivo e à instituição do remorso. Considerada
sozinha, essa interpretação conserva algo de problemático em razão da contingência que
introduz na história de um sentimento que, por outro lado, apresenta-se com traços "de
inevitabilidade fatal" (p. 67). O caráter contingente desse processo, tal como o
reconstitui a explicação genética, atenua-se desde que a explicação genética esteja
subordinada à explicação estrutural econômica: "Portanto, é exato que o fato de matar o
pai, ou de abster-se de fazê-lo, não é decisivo; devemos, necessariamente, nos sentir
culpados em ambos os casos, porque o sentimento é a expressão do conflito de
ambivalência, da eterna luta entre o Éros e o instinto de destruição, de morte. Esse
conflito tornou-se claro desde o instante em que foi imposta aos homens a tarefa de
viverem em comum. Enquanto essa comunidade conhece unicamente a forma familiar,
ele se manifesta, necessariamente, no complexo de Édipo, institui a consciência e
engendra o primeiro sentimento de culpabilidade. Quando essa comunidade tende a
ampliar-se, esse mesmo conflito persiste revelando formas dependentes do passado,
intensifica-se e acarreta um agravamento desse primeiro sentimento. Como a civilização
obedece a um impulso erótico interno visando a unir os homens numa massa mantida
por vínculos apertados, ela só consegue isso por um único meio, reforçando sempre
mais o sentimento de culpabilidade. O que começou pelo pai, termina pela massa. Se a
civilização é o caminho indispensável para se evoluir da família à humanidade, então
esse reforço está indissoluvelmente ligado a seu curso, enquanto conseqüência do
conflito de ambivalência com o qual nascemos e da eterna querela entre o amor e o
desejo da morte" (pp. 67-68).
No término dessas análises, parece que é o ponto de vista econômico que revela o
sentido da cultura. Contudo, em sentido inverso, deve-se dizer que a supremacia do
ponto de vista econômico sobre qualquer outro, inclusive sobre o ponto de vista
genético, só é completa quando a psicanálise arrisca-se a manifestar sua dinâmica das
pulsões no vasto contexto de uma teoria da cultura.
2. A ilusão e o recurso ao modelo "genético"
É no interior dessa esfera cultural, definida segundo o modelo tópico econômico
tomado de empréstimo à Metapsicologia, que se torna possível ressituar o que
chamamos de arte, moral e religião. Todavia, Freud não as absorve por seu objeto
presumido, mas por sua função "econômica". A esse preço, fica assegurada a unidade de
interpretação.
É como "ilusão" que a religião figura em tal econômica. Não se deve exclamar:
mesmo que o racionalista Freud reconheça apenas, como real, o observável e o
verificável, não é como variedade de "racionalismo", nem mesmo como variedade de
"descrença" que esta teoria da "ilusão" tem importância. Também Epicuro e Lucrécio
haviam dito há muito tempo que, inicialmente, foi o medo que fez os deuses. Essa teoria
é nova enquanto teoria econômica da ilusão. A questão que Freud coloca, não é a de
Deus, mas a do deus dos homens e de sua função econômica na balança das renúncias
pulsionais, das satisfações substituídas e das compensações pelas quais o homem tenta
suportar a vida.
A chave da ilusão é a dureza da vida, apenas suportável para o homem, para esse
homem que não somente compreende e sente, mas que seu narcisismo inato torna ávido
de consolação. Ora, a cultura, vimos, não possui apenas por tarefa reduzir o desejo do
homem, mas defender o homem contra a superioridade esmagadora da natureza. A
ilusão é este outro método que a cultura emprega quando a luta efetiva contra os males
da existência não começou, ainda não teve êxito, ou fracassou provisória ou
definitivamente. Então, ela cria os deuses para exorcizar o medo, reconciliar com a
crueldade do destino e compensar o sofrimento de cultura.
O que é que a ilusão introduz de novo na economia das pulsões? Essencialmente,
um núcleo ideacional ou representativo - os deuses - sobre os quais pronuncia asserções
- os dogmas, - vale dizer, afirmações pretendendo apreender uma realidade. É essa etapa
de crença numa realidade que constitui a especificidade da ilusão na balança das
satisfações e dos mal-estares. A religião que o homem forja só lhe satisfaz através de
afirmações inverificáveis em termos de provas ou de observações racionais. Precisamos,
pois, perguntar-nos de onde vem esse núcleo representativo da ilusão.
É aqui que a interpretação global, regulada pelo modelo "econômico", encontra-se
com as interpretações parciais conduzidas segundo um modelo "genético". O vínculo
que religa as explicações pela origem às explicações pela função é a ilusão, a saber, o
enigma proposto por uma representação sem objeto. Para justificar isso, Freud não vê
outra saída senão uma gênese da desrazão. Mas essa gênese permanece homogênea à
explicação econômica: a característica essencial da "ilusão", repete ele, consiste em
proceder dos desejos do homem. De onde uma doutrina sem objeto obteria sua eficácia,
senão da força do desejo mais tenaz da humanidade, o desejo de segurança, que é, por
excelência, o desejo estranho à realidade? I
Totem e Tabu e Moisés e o Monoteísmo fornecem o esquema genético indispensável
à explicação econômica; reconstituem as lembranças históricas que formam, não
somente o conteúdo verdadeiro que está na origem da distorção ideacional, mas, como
veremos, quando tivermos introduzido o aspecto quase neurótico da religião, o conteúdo
"latente" que cria oportunidade ao retorno do recalcado.
Distingamos provisoriamente esses dois aspectos: conteúdo verdadeiro, dissimulado
na distorção, lembrança reca1cada, reaparecendo, sob uma formo despistada, na
consciência religiosa atual. I
O primeiro aspecto merece atenção: em primeiro lugar, porque condiciona o
segundo, mas também porque cria a oportunidade de se enfatizar um traço curioso do
freudismo. Contrariamente às escolas de "desmitologização" e, mais ainda, em oposição
àqueles que tratam a religião como um "mito" maquilado em história, Freud insiste
sobre o núcleo histórico que constitui a origem filogenética da religião. Isto não é
surpreendente: em Freud, a explicação genética requer um realismo da origem. Donde a
amplitude e o cuidado das pesquisas de Freud dizendo respeito tanto aos inícios da
civilização quanto ao começo do monoteísmo judeu. Falta-lhe uma série de pais reais, e
realmente massacrados por filhos reais, para alimentar o retorno do recalcado:
"Não hesito em afirmar que os homens sempre souberam que, um dia, haviam
possuído e assassinado um pai primitivo” (Moïse et le Monothéisme, p. 154).
Os quatro capítulos de Totem e Tabu constituem, aos olhos de seu autor a primeira
tentativa... em vista de aplicar a certos fenômenos ainda obscuros da psicologia coletiva
os pontos de vista e os dados da psicanálise (Prefácio VII). O ponto de vista genético
predomina, manifestamente, sobre o ponto de vista econômico, que ainda não é
claramente elaborado enquanto modelo. Trata-se de explicar a coação moral, inclusive o
imperativo categórico de Kant (Prefácio VIII), como uma sobrevivência dos tabus
dependendo do totemismo. Seguindo a sugestão de Charles Darwin, Freud admite que,
nos tempos primitivos, o homem vivia em pequenas hordas cada uma delas sendo
governada por um macho vigoroso que dispunha à vontade, brutalmente de um poder
ilimitado, reservava-se todas as mulheres, castrava ou massacrava os filhos rebeldes.
Segundo uma hipótese tomada de empréstimo a Atkinson, os filhos rebeldes se uniram
contra o pai, o mataram, devoraram, não somente para se vingarem dele, mas para se
identificar com ele. Enfim, conforme a teoria de Robertson Smith, Freud admite que o
clã totêmico dos irmãos sucedeu à horda do pai. Para não se arruinarem em lutas vãs, os
irmãos chegaram a uma espécie de contrato social e instituíram o tabu do incesto e a
regra da exogamia. Ao mesmo tempo, sofrendo sempre a ambivalência do sentimento
filial, restauraram a imagem do pai sob a forma substituída do animal tabu. A refeição
totêmica tinha, então, a significação de uma repetição solene do assassinato do pai. A
religião havia nascido, e a figura do pai, outrora executado, era seu centro. É essa
mesma figura que ressurgirá sob a forma dos deuses e, melhor ainda, sob a
representação de um deus único, onipotente, até fazer uma volta completa na morte do
Cristo e na comunhão eucarística. I
É aqui que Moisés e o Monoteísmo se articula de modo bastante preciso com
Totem e Tabu, tanto pelo projeto quanto pelo conteúdo: "Trata-se, escreve Freud no
início dos dois primeiros ensaios publicados pela revista Imago (vol. 23, n. 1 e 3), de se
fazer uma opinião bem fundada sobre a origem das religiões monoteístas em geral"
(Moise et le Monothéisme, p. 22). Para tanto, deve-se reconstituir, com certa
verossimilhança, o acontecimento de um assassinato do pai que seria para o
monoteísmo aquilo que o assassinado do pai primitivo havia sido para o totemismo.
Donde a tentativa de se dar corpo à hipótese de "Moisés egípcio”; adepto do culto de
Atão, deus ético, universal e tolerante, ele mesmo construído sobre o modelo de um
príncipe pacífico, tal como pudera ser o faraó Ikhnaton, e que Moisés teria imposto às
tribos semitas. Foi esse herói, no sentido de Otto Rank cuja influência, aqui, é enorme -
que teria sido morto pelo povo. Em seguida, o culto do deus de Moisés teria se fundido
com o de Javé, deus dos vulcões, no qual ele teria dissimulado sua origem, bem como
tentado fazer esquecer o assassinato do herói. Foi assim que os profetas teriam sido os
artífices do retorno do deus mosaico: com os traços do deus ético, teria ressurgido o
acontecimento traumático. O retorno ao deus mosaico seria, ao mesmo tempo, a volta
do traumatismo recalcado. Desta forma, manteríamos ao mesmo tempo a explicação de
uma ressurgência, no plano das representações, e de um retorno do recalcado, no plano
emocional: se o povo judeu forneceu à cultura ocidental o modelo de auto-acusação que
conhecemos, é porque seu sentido da culpabilidade alimenta-se da lembrança de um
assassinato que ele se empenhou, ao mesmo tempo, em dissimular.
Freud de forma alguma está disposto a minimizar a realidade histórica dessa cadeia
de acontecimentos traumáticos: "Tanto as massas quanto o indivíduo, admitem,
guardam, sob forma de traços mnésicos inconscientes, as impressões do passado" (ibid.,
p. 44). A universalidade do simbolismo da linguagem é, para Freud, muito mais uma
prova dos traços mnésicos dos grandes traumatismos da humanidade, segundo o modelo
genético, que a incitação a se explorar outras dimensões da linguagem, do imaginário,
do mito. A distorção dessa lembrança é a única função do imaginário a ser explorada.
Quanto à hereditariedade, irredutível a toda comunicação direta, certamente embaraça
Freud. Todavia, deve ser postulada, se quisermos transpor "o abismo que separa a
psicologia individual da psicologia coletiva e tratar os povos da mesma maneira que o
indivíduo neurótico. Se não é assim, renunciemos a progredir um único passo no
caminho que seguimos, tanto no domínio da psicanálise quanto no da psicologia
coletiva. A audácia é, aqui, indispensável" (p. 153). Portanto, não poderíamos dizer que
se trata, aqui, de uma hipótese acessória; Freud vê aí uma das vigas que assegura a
coesão do sistema: "Uma tradição que se fundasse apenas sobre transmissões orais, não
comportaria o caráter obsedante próprio ao fenômeno religioso" (p. 155). Só pode haver
um retorno do reca1cado se tiver ocorrido um acontecimento traumatizante.
Chegados a esse ponto, seríamos tentados a dizer que as hipóteses de Freud,
concernentes às origens, são interpretações acessórias que não importam a uma
interpretação "econômica", a "única fundamental da "ilusão". Não é o que ocorre: na
realidade, é a interpretação genética que permite o acabamento da teoria econômica da
"ilusão"; a teoria econômica integra os resultados das investigações concernentes às
origens; por sua vez, essas investigações permitem que se enfatize um traço que ainda
não foi evidenciado, a saber, o papel que desempenha o retorno do recalcado na gênese
da ilusão; é esse traço que faz da religião "a universal neurose obsessiva da
humanidade". Ora, esse caráter não podia aparecer antes que a explicação genética
tivesse sugerido a existência de uma analogia entre a problemática religiosa e a situação
infantil. A criança, lembra Freud, só acede à maturidade por uma fase mais ou menos
distinta de neurose obsessiva que, na maioria das vezes, é espontaneamente liquidada,
mas que, por vezes, requer a intervenção da análise. Da mesma forma, a humanidade foi
constrangida, na época de sua minoridade, da qual ainda não saímos, a proceder à
renúncia pulsional, através de uma neurose que procede da mesma posição ambivalente
das pulsões relativamente à figura do pai. Muitos textos de Freud e de Theodoro Reik
desenvolvem essa analogia da religião e da neurose obsessiva. Totem e Tabu já havia
percebido esse caráter neurótico do tabu: em ambos os casos, observa-se um delírio
análogo ao tocar, com a mesma mistura de desejo e de horror. Costumes, tabus e
sintomas da neurose obsessiva possuem, em comum, a mesma ausência de motivação,
as mesmas leis de fixação, de deslocamento e de contágio, o mesmo cerimonial
decorrente das proibições (lbid., p. 46). Em ambos os casos, o esquecimento do
recalcado confere à interdição o mesmo caráter de estranheza e de ininteligibilidade,
suscita os mesmos desejos de transgressão, provoca as mesmas satisfações simbólicas,
os mesmos fenômenos de substituição e de compromisso, as mesmas renúncias
expiatórias e, finalmente, alimenta as mesmas atitudes ambivalentes relativamente à
interdição (p; 54). Numa época em que Freud não havia, ainda, elaborado a teoria do
Superego, nem, sobretudo, a do instinto de morte, a consciência "moral" (que ele ainda
interpreta como a percepção interna do repúdio de certos desejos) é tratada como um
rebento do "remorso tabu" (pp. 97-101). "Podemos mesmo arriscar essa afirmação: se
não nos fosse possível descobrir a origem da consciência moral na neurose obsessiva,
deveríamos renunciar a toda esperança de jamais descobri-la" (p. 98). Portanto, nessa
época, a ambivalência da atração e da repulsa está no centro de toda comparação.'
Sem dúvida, Freud não deixou de surpreender-se com as diferenças entre o tabu e a
neurose: "O tabu, observa, não é uma neurose, mas uma formação social" (p. 101). Mas
ele se esforçava por reduzir a distância, explicando o aspecto social do tabu pela
organização do castigo, e esta, pelo medo do contágio do tabu (p. 102). Acrescentava
que as próprias tendências sociais contêm uma mistura de elementos egoístas e eróticos
(p. 104). É o que desenvolve, por outro lado, Psicologia Coletiva e Análise do Ego
(especialmente o capítulo V sobre "Igreja e Exército"). Nesse ensaio, datado de 1921, é
proposta uma interpretação inteiramente "libidinal" ou "erótica" do apego ao chefe, e da
coesão dos grupos de base autoritária e de estrutura hierárquica.
Moisés e o Monoteísmo ressalta, tanto quanto possível, esse caráter neurótico da
religião: a oportunidade principal é fornecida a Freud pelo "fenômeno da latência" na
história do judaísmo, a saber, o atraso no ressurgimento da religião de Moisés, recalcada
no culto de Javé. Podemos surpreender, aqui, o entrecruzamento do modelo genético e
do modelo econômico: "Num ponto, há concordância entre o problema da neurose
traumática e o do monoteísmo judaico. Essa analogia reside naquilo que podemos
chamar de a latência" (lbid., p. 105). "Essa analogia é tão completa, que quase
poderíamos falar de identidade" (p. 111). Uma vez admitido o esquema da evolução da
neurose ("traumatismo precoce, defesa, latência, explosão da neurose, retorno parcial do
recalcado" - p. 123), a aproximação entre a da espécie humana e a do indivíduo faz o
resto: "Também a espécie humana sofre processos de conteúdo agressivo-sexual que
deixam traços permanentes, embora tenham sido afastados e esquecidos na maioria das
vezes. Mais tarde, depois de um longo período de latência, tornam-se ativos e produzem
fenômenos comparáveis, por suas estruturas e suas tendências, aos sintomas neuróticos"
(p. 123).
O monoteísmo judaico dá continuidade, assim, ao totemismo, nesta história do
retorno do recalcado. O povo judeu renovou, na pessoa de Moisés, eminente substituto
do pai, o crime primitivo. O assassinato do Cristo é outro reforço da lembrança das
origens, ao passo que a Páscoa ressuscita Moisés. Enfim, a religião de São Paulo
conclui esta volta do recalcado, leva-o à sua fonte pré-histórica, dando-lhe o nome de
pecado original: um crime havia sido cometido para com Deus, e somente a morte podia
resgatálo. Freud passa depressa sobre o "fantasma" da expiação que está no cerne do
querigma cristão (p. 132). Sugere que o redentor teve que ser o principal culpado, o
chefe da horda dos irmãos, o mesmo que o herói trágico rebelde da tragédia grega (pp.
134-136): "Por detrás dele se dissimulava o pai primordial da horda primitiva,
transfigurado, é verdade, e tendo, enquanto filho, tomado o lugar de seu pai" (p. 138).
Essa analogia com a neurose traumática confirma nossa interpretação da ação
recíproca, na obra de Freud, entre a etiologia das neuroses e a hermenêutica da cultura.
A religião dá oportunidade a uma releitura da neurose, como o sentido da culpabilidade
que lhe é conexo, prolonga, na dialética, pulsões de vida e de morte. Modelo "tópico"
(diferenciação das instâncias Id, Ego, Superego), modelo "genético" (papel da infância e
da filogênese), modelo"econômico" (investimento, contra-investimento), convergem na
última interpretação do retorno do recalcado (p. 145). .
Eis o que esses três exegetas pretenderam fazer para o homem moderno. Todavia,
estamos longe de ter assimilado suas descobertas e de nos compreender, plenamente,
mediante a interpretação que nos fornecem de nós mesmos. Devemos confessar que
suas interpretações ainda flutuam distante de nós, que ainda não encontraram, seu justo
lugar. Entre sua interpretação e nossa compreensão, a distância é, ainda, enorme. Mais
ainda, não nos encontramos diante de uma interpretação unitária que deveríamos
assimilar conjuntamente, mas de três interpretações cuja discordância é mais manifesta
que o parentesco. Ainda não existe nenhuma estrutura de acolhimento, nenhum
discurso seguido, nenhuma antropologia filosófica capazes de integrar, entre si e em
nossa consciência, a hermenêutica de Marx, a de Nietzsche e a de Freud. Seus efeitos
traumatizantes se acumulam, seus poderes de destruição se adicionam, sem que suas
exegeses se coordenem e uma nova consciência unitária as congregue. É por isso que se
torna necessário confessar que a significação da psicanálise, enquanto evento interno de
nossa cultura moderna, permanece em suspenso e, seu lugar, indeterminado. .
1. Resistência à verdade.
Ora, é interessante notar como a psicanálise dá conta, por seus próprios esquemas
interpretativos, desse atraso e desse suspense na tomada de consciência do evento que
ela representa para a cultura: a consciência diz ela, "resiste" a compreender-se. Também
Édipo "resistia" à verdade conhecida por todos os outros. Recusava-se reconhecer-se
nesse homem que ele próprio havia amaldiçoado. O reconhecimento de si é o
verdadeiro trágico, o trágico de mundo grau. O trágico de consciência - trágico de
Recusa e de Cólera - duplica o trágico primário, o trágico de ser tal: incesto e parricídio.
Dessa "resistência" à verdade, Freud falou magnificamente num texto famoso e fre-
qüentemente citado: Uma Dificuldade da Psicanálise (1917). A psicanálise, diz ele, é a
última em data das "graves humilhações" que "o narcisismo, o amor-próprio do homem
em geral, experimentou, até o presente, por parte da investigação científica”. Em
primeiro lugar, houve a humilhação cosmológica que lhe infligiu Copérnico, arruinando
a ilusão narcísica segundo a qual o habitáculo do homem estaria em repouso no centro
das coisas. Em seguida, foi a humilhação biológica, quando Darwin pôs um fim à
pretensão do homem de ser cortado do reino animal. Enfim, veio a humilhação
psicológica: o homem, que já sabia não ser nem o senhor do Cosmos, nem o senhor dos
seres vivos, descobre que não é nem mesmo o senhor de sua Psique. A psicanálise se
dirige ao Ego assim: "Tu crês saber tudo o que se passa em tua alma, desde que seja
suficientemente importante, porque tua consciência te ensinaria isso então. E quando
permaneces sem notícia de algo que está em tua alma, admites, com uma perfeita
segurança, que isso não se encontra aí. Tu chegas mesmo a tomar "psíquico" por
idêntico a "consciente", vale dizer, conhecido de ti, e isto, apesar das provas mais
evidentes que deve, incessantemente, passar-se em tua vida psíquica muito mais coisas
que pode ser revelado à tua consciência. Deixa-te, pois, instruir sobre esse ponto!". "Tu
te comportas como um monarca absoluto que se contenta com as informações que lhe
fornecem os altos dignitários da corte e que não desce junto ao povo para ouvir sua voz.
Penetre profundamente em ti mesmo e aprenda, antes, a conhecer-te; então
compreenderás por que irás cair doente, e talvez conseguirás evitá-lo" (Essais de
psychanalyse appliquée, pp. 145-146).
"Deixa-te, pois, instruir sobre esse ponto.... Penetra profundamente em ti mesmo e
aprende antes, a conhecer-te... ": assim, a psicanálise compreende sua própria inserção
na consciência comum à maneira de uma instrução e de uma clareza - mas de uma
instrução que encontra as resistências do narcisismo primitivo e persistente, quer dizer,
dessa libido que jamais se investe completamente em objetos, mas que o Ego retém para
si. É por isso que essa instrução do Ego é, necessariamente, vivida como uma
humilhação, como ofensa à libido do Ego.
Este tema da humilhação narcísica lança um raio de luz sobre tudo o que acabamos
de dizer sobre a suspeita, a astúcia e extensão do campo de consciência: sabemos agora
que não é a consciência que é humilhada, mas a pretensão da consciência, a libido do
ego. E sabemos que, aquilo que a humilha, é justamente uma melhor consciência, uma
"clareza", o conhecimento "científico", diz Freud como bom racionalista; de modo mais
amplo, digamos que é uma consciência descentrada de si, despreocupada, "deslocada"
para a imensidão do Cosmos por Copérnico, para o gênio móvel da vida por Darwin,
para as profundezas tenebrosas da Psique por Freud. A consciência se amplia a si
mesma ao rescentrar-se sobre seu Outro: Cosmos, Bios, Psique. Ela se encontra
perdendo-se; descobre-se, instruída e clarificada, ao perder-se, narcísica.
NOTAS