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A PSICANALISE E O MOVIMENTO DA CULTURA CONTEMPORÂNEA

RICOEUR, P. O conflito das interpretações: ensaios de hermenêutica. Rio de Janeiro:


Imago, 1978. p.105-136

Uma questão tão fundamental, dizendo respeito ao lugar da psicanálise no


movimento da cultura contemporânea, exige uma abordagem ao mesmo tempo limitada
e reveladora do essencial: limitada, se dá margem à discussão e à verificação;
reveladora, se dá uma idéia da amplitude do fenômeno cultura que a psicanálise, entre
nós representa. Uma releitura dos textos de Freud sobre a cultura pode fornecer tal
aproximação. Com efeito, esses ensaios atestam que a psicanálise não concerne à
cultura, a título acessório ou indireto. Longe de ser apenas uma explicação dos resíduos
da existência humana, dos avessos do homem, ela mostra uma intenção verdadeira
quando, fazendo, estourar o quadro limitado da relação terapêutica do analista e de seu
paciente, eleva-se ao nível de uma hermenêutica da cultura. Esta primeira parte de nossa
demonstração é essencial à tese que iremos estabelecer em seguida, a saber, que é a
título de hermenêutica da cultura que ela se inscreve no movimento da cultura
contemporânea . Em outras palavras, a psicanálise é um movimento da cultura, porque
a explicação que fornece. do homem versa, a título principal e direto, sobre a cultura em
seu conjunto; com ela, a interpretação se torna um momento da cultura; é interpretando
o mundo que ela o transforma.
Portanto, importa demonstrarmos, inicialmente, que a psicanálise é uma
interpretação da cultura em seu conjunto. Isto não quer dizer que a psicanálise seja uma
explicação exaustiva. Diremos suficientemente, mais adiante, que seu ponto de vista é
limitado e, mesmo, que ainda não encontrou seu lugar na constelação das interpretações
da cultura - o que faz com que a significação da psicanálise permaneça ainda em
suspenso e seu lugar indeterminado. Contudo, essa interpretação não é limitada do lado
de seu objeto, o homem, que ela pretende apreender em sua totalidade. . Só é limitada
por seu ponto de vista: é esse ponto de vista que precisamos compreender e situar. Direi
de bom grado, lembrando-me de Spinoza, quando falava dos atributos divinos como dos
"infinitos em um gênero" que a psicanálise é uma interpretação total em um gênero. É a
este título que ela é um acontecimento de nossa cultura.
Ora, frustramos essa unidade de ponto de vista da psicanálise, quando a
apresentamos como um ramo da psiquiatria que teria sido progressivamente estendido
da psicologia individual à psicologia social, à arte, à moral, à religião: Sem dúvida, é na
última parte da vida de Freud que se encontram acumulados os grandes textos sobre a
cultura: O Futuro de uma Ilusão é de 1927, Mal-estar na Civilização, de 1930, Moisés e
o Monoteísmo, de 1937-39 (traduzidos pela Imago Editora; da Edição Standard das
Obras Psicológicas Completas de Freud Vols. XXI e XXIII, respectivamente).
Entretanto, não se trata de uma extensão tardia de uma psicologia do indivíduo a uma
sociologia da cultura. Desde 1908, Freud escrevia A Criação Literária e o Sonho
Acordado. Delírios e Sonhos na "Gradiva" de Jensen é de 1907; Uma Lembrança de
Infância de Leonardo da Vinci, de 1910; Totem e Tabu, de 1913; Considerações Atuais
sobre a Guerra e sobre a Morte, de 1915; A Inquietante Estranheza, de 1919; O Moisés
de Miguel Ângelo, de 1921; Uma Neurose demoníaca no século XVII, de J923;
Dostoievski e o Parricídio, de 1928. As grandes incursões no domínio da estética, da
sociologia, da ética, da religião, são, pois, estritamente contemporâneas de textos tão
importantes quanto Além do Princípio do prazer, O ego e o Id e, sobretudo, dos grandes
textos de Metapsicologia. A verdade é que a psicanálise abala as compartimentações
tradicionais, por mais justificadas que possam parecer pelas metodologias próprias a
outras disciplinas que a sua. A esses domínios distintos, ela aplica o ponto de vista
unitário de seus "modelos": modelo tópico, modelo econômico e modelo genético (O
Inconsciente). É essa unidade de ponto de vista que faz da interpretação psicanalítica
uma interpretação global e limitada: global, porque se aplica de direito a todo ser
humano; limitada, porque não vai além da validade de seu ou de seus modelos. De um
lado, Freud sempre recusou a distinção dos domínios psicológico e sociológico, e
sempre afirmou a analogia fundamental do indivíduo com o grupo. E essa analogia,
jamais tentou prová-la por uma especulação qualquer sobre "o ser" do psiquismo ou
sobre "o ser" do coletivo. Ele simplesmente tornou-a manifesta, aplicando, cada vez, os
mesmos modelos genético e tópico-econômico. Por outro lado, Freud jamais pretendeu
uma explicação exaustiva, mas levar às extremas conseqüências uma explicação pelas
origens pela economia das pulsões: não posso falar de tudo ao mesmo tempo, repetia;
minha contribuição é modesta, parcial, limitada. Essas reservas não são cláusulas de
estilo, mas exprimem a convicção de um pesquisador que sabe que sua explicação lhe
confere uma visada limitada por seu ângulo de visão, mas aberta à totalidade do
fenômeno humano.
I. UMA HERMENBUTICA DA CULTURA

Um estudo puramente histórico, preocupado em seguir a evolução do pensamento


de Freud sobre a cultura, deveria começar por A Interpretação de Sonhos. Foi aí que
Freud afirmou pela primeira vez e para sempre, interpretando o Édipo-Rei de Sófocles e
Hamlet de Shakespeare, a unidade da criação literária do mito e do travestimento
onírico. Todas os desenvolvimentos ulteriores estão contidos nesse germe. Em A
Criação Literária e o Sonho Acordado, Freud formula sua tese: as transições insensíveis
da sonho noturna ao jogo, deste ao humor, à fantasia e ao sonho acordado, deste, enfim,
ao folclore e às lendas, depois às obras de arte verdadeiras, levam-nos a pensar que a
criatividade depende do mesmo dinamismo, comporta a mesma estrutura econômica
que os fenômenos de compromisso e de satisfação substituída que a interpretação do
sonho e a teoria da neurose permitem estabelecer. O que falta, porém, para podermos ir
mais longe, é uma clara visão da tópica das instâncias do aparelho psíquico e da
economia dos investimentos e contra-investimentos, que nos possibilitaria ressituar o
prazer estético na dinâmica de conflito da cultura. É por isso que, nos limites de um
breve artigo, daremos preferência a uma interpretação mais sistemática que histórica e
iremos, diretamente, aos textos que fornecem da cultura uma definição sintética. É a
partir dessa problemática central que se nos torna possível desenvolver uma teoria geral
da "ilusão" e ressituar os escritos estéticos anteriores, cujo sentido permanece em
suspenso enquanto não for percebida a mola única do fenômeno de cultura. A "sedução"
estética e a "ilusão" religiosa devem ser compreendidas conjuntamente, como os pólos
opostos de uma busca de compensação que é, em si mesma, uma das tarefas da cultura.
Direi a mesma coisa de escritos mais simples, como Totem e Tabu, nos quais Freud
reinterpreta, pela psicanálise, os resultados da etnografia do início do século,
concernentes às origens totêmicas da religião e às origens de nossa ética imperativa nos
tabus arcaicos. Esses estudos genéticos também podem ser retomados no quadro mais
vasto da interpretação tópicoeconômica. Assim, em O Futuro de uma Ilusão e no
Moisés e o Monoteísmo, o próprio Freud indica o lugar dessa explicação que só atinge
um fenômeno parcial, uma forma arcaica da religião, não a religião. A chave de uma
releitura mais sistemática que histórica da obra de Freud consiste em subordinar todas
as interpretações "genéticas" e parciais à interpretação "tópicoeconômica", que é a única
a conferir a unidade de perspectiva. Essa segunda observação prévia se liga à primeira e
a confirma: o ponto de ancoragem da explicação genética, na explicação tópico-
econômica, é a teoria da ilusão. É aí que o arcaico é repetido à maneira do "retorno do
reca1cado". Se é assim - e só o verificaremos na execução, - impõe-se a seguinte ordem
sistemática: devemos ir do todo às partes ; da função econômica central da cultura às
funções particulares da “ilusão religiosa e da “sedução” estética – e da explicação
econômica à explicação genética.

1. Um modelo "econômico" do fenômeno da cultura


O que é a "cultura"? Inicialmente, digamos, negativamente, que não se deve opor
civilização e cultura. Essa recusa de ingressarmos numa distinção em vias de tornar-se
clássica é, por si mesma, bastante esclarecedora: não há, de um lado, um
empreendimento utilitário d dominação ;obre as forças da natureza, que seria a
civilização, e, do outro; uma tarefa desinteressada, idealista, de realização dos valores,
que seria a cultura. Essa distinção, que pode ter um sentido de outro ponto de 'vista que
o da psicanálise, deixa de tê-lo quando decidimos abordar a cultura do ponto de vista do
balanço dos investimentos e contra-investimentos libidinais.
É essa interpretação econômica que - domina todas as considerações freudianas
sobre a cultura.
O primeiro fenômeno a ser considerado, desse ponto de vista, é o da coerção, em
razão da renúncia pulsional; O que ele implica; é sobre ele que se abre O Futuro de uma
Ilusão: a cultura, observa Freud, começou com a interdição dos mais antigos desejos:
incesto, canibalismo, assassinato. No entanto, a coerção não constitui a totalidade da
cultura. A ilusão, cujo futuro Freud avalia, inscreve-se numa tarefa mais ampla, de que
a proibição é apenas a casca dura. Freud circunscreve o cerne do problema por três
questões: até que ponto podemos diminuir a carga dos sacrifícios pulsionais impostos
aos homens? Como reconciliá-los com os dessas renúncias que são inelutáveis? Como
oferecer, ademais, aos indivíduos compensações satisfatórias por esses sacrifícios? Tais
questões não constituem, como se poderia crer inicialmente, interrogações que o autor
forma a propósito da cultura: elas constituem a própria cultura. - O que está em questão,
no conflito entre interdição e pulsão, é a tríplice problemática: da diminuição da carga
pulsional, da reconciliação com o inelutável e da compensação pelo sacrifício.
Ora, o que são tais interrogações, senão as de uma interpretação econômica? Temos
acesso, aqui, ao ponto de vista unitário que, não somente mantém coesos todos os
ensaios de Freud sobre a arte, a moral, a religião, mas religa "psicologia individual" e
"psicologia coletiva" e as enraíza, ambas, na "metapsicologia".
Essa interpretação econômica da cultura desdobra-se em dois momentos. Mal-
estar na Civilização mostra bem a articulação desses momentos: em primeiro lugar, há
tudo o que podemos dizer sem recorrer à pulsão de morte; em seguida, há o que não
podemos dizer sem fazer intervir essa pulsão. Aquém desse ponto de inflexão, que o faz
desembocar no trágico da cultura, o ensaio prossegue com uma simplicidade calculada.
A economia da cultura parece coincidir com aquilo que se poderia chamar de uma
“erótica" geral: os objetivos perseguidos pelo indivíduo e os que animam a cultura
aparecem como figuras ora convergentes, ora divergentes do mesmo Éros: "O processo
de cultura responderia a essa modificação do processo vital sofrida sob a influência de
uma tarefa imposta pelo Éros e tornada urgente pela Ananké, ao necessidade real, a
saber, a união de seres humanos isolados numa comunidade cimentada por suas relações
libidinais recíprocas" (ibid., pp. 73-74). Portanto, é a mesma "erótica" que estabelece o
elo interno dos grupos e que leva o indivíduo a procurar o prazer e a fugir do sofrimento
- o tríplice sofrimento que lhe infligem o mundo, seu corpo e os outros homens.
O desenvolvimento da cultura é como o crescimento do indivíduo, da infância à
idade adulta, o fruto de Eros e de Ananké, do amor e do trabalho. Deve-se mesmo dizer:
do amor mais que do trabalho, porque a necessidade de se unir pelo trabalho, para
explorar a natureza, é pouca relativamente ao elo libidinal que une os indivíduos num
único corpo social. Por conseguinte, parece que é o mesmo Éros que anima a busca da
felicidade individual e que pretende unir os homens em grupos sempre mais amplos.
Todavia, não tarda a surgir o paradoxo: enquanto luta organizada contra a natureza, a
cultura dá ao homem o poder outrora conferido aos deuses; mas essa semelhança aos
deuses deixa-o insatisfeito: mal-estar na civilização. Por quê? Sem dúvida, baseando-
nos unicamente nessa "erótica" geral, podemos explicar certas tensões entre o indivíduo
e a sociedade, mas não o grave conflito que constitui o trágico da cultura. Por exemplo,
explicamos facilmente que o vínculo familiar resiste à sua extensão a grupos mais
vastos: para cada adolescente, a passagem de um círculo ao outro aparece,
necessariamente, como uma ruptura do elo mais antigo e mais estreito. Compreendemos
também por que algo da sexualidade feminina resiste a essa transferência do sexual
privado sobre as energias libidinais do vínculo social. Podemos ir muito mais longe no
sentido das situações conflituais sem, no entanto, deparar-nos com contradições
radicais: a cultura, como se sabe, impõe sacrifícios de gozo a toda sexualidade -
proibição do incesto, censura da sexualidade infantil, canalização severa da sexualidade
nas trilhas estreitas da legitimidade e da monogamia, imposição do imperativo de
procriação, etc. Contudo, por mais dolorosos que sejam esses sacrifícios e
inextrincáveis que sejam tais conflitos, não constituem ainda um verdadeiro
antagonismo. No máximo, podemos dizer, de um lado, que a libido resiste com toda a
sua força de inércia à tarefa que a cultura lhe impõe, de abandonar suas posições
anteriores; do outro, que o elo libidinal da sociedade alimenta-se com a energia retirada
da sexualidade, até ameaçá-la de atrofia. Mas tudo isso é tão pouco "trágico", que
podemos sonhar com uma espécie de armistício ou de composição entre a libido
individual e o vínculo social.
Por isso, ressurge a questão: por que o homem fracassa em ser feliz? Por que o
homem é insatisfeito enquanto ser de cultura? .
É aqui que a análise dá sua guinada: eis que se apresentam, diante do homem, um
mandamento absurdo - amar seu próximo como a si mesmo, uma exigência impossível
- amar seus inimigos, uma ordem perigosa que dilapida o amor, confere um prêmio aos
maus, leva à perda o imprudente que a aplica. Mas essa verdade que se oculta por detrás
dessa desrazão do imperativo, é a desrazão de uma pulsão que escapa a uma simples
erótica: "A parte de verdade que tudo isso dissimula e que de bom grado negamos
resume-se assim: o homem não é esse ser complacente, de coração sedento de amor, de
quem se diz que se defende quando atacado, mas um ser, pelo contrário, que deve
carregar, na conta de seus dados instintivos, boa dose de agressividade... Com efeito, o
homem é tentado a satisfazer sua necessidade de agressão de seu próximo, à explorar
seu trabalho sem reparação, de utilizá-lo sexualmente sem seu consentimento, de
apropriar-se de seus bens, de humilhá-lo, de infligir-lhe sofrimentos, de martirizá-lo e
de matá-lo. Homo homini lupus..." (p. 47).
A pulsão que perturba, assim, a relação do homem com o homem, e requer que a
sociedade se arvore em implacável justiceira, é, como já reconhecemos, a pulsão de
morte, a hostilidade primordial do homem pelo homem.
Com a introdução da pulsão de morte, toda a economia do ensaio se vê remanejada.
Enquanto que a "erótica social" podia, a rigor, aparecer como uma extensão da erótica
sexual, como um deslocamento de objeto ou uma sublimação de objetivo, o
desdobramento do Éros e da morte, no plano da cultura, não pode mais aparecer como a
extensão de um conflito que seria mais bem conhecido no plano do indivíduo. Ao
contrário, é o trágico da cultura que serve de revelador privilegiado relativamente a um
antagonismo que, no nível da vida e no do psiquismo individual, permanece silencioso e
ambíguo. Certamente, Freud forjara sua doutrina da pulsão de morte desde 1920 (Além
do Princípio de Prazer), sem enfatizar o aspecto social da agressividade, e num
contexto aparentemente biológico. Contudo, apesar do suporte experimental da teoria
(neurose de repetição, jogo infantil, tendência a reviver os episódios dolorosos, etc.),
essa conservava um caráter de especulação aventurosa. Em 1930, Freud vê mais
claramente que a pulsão de morte permanece uma pulsão silenciosa "no" ser vivo e que
só se torna manifesta em sua expressão social de agressividade e de destruição. É neste
sentido que dizíamos acima que a interpretação da cultura torna-se o revelador do
antagonismo das pulsões.
Por isso, assistimos, na segunda metade do ensaio, a uma espécie de releitura da
teoria das pulsões a partir de sua expressão cultural. Compreendemos melhor por que a
pulsão de morte é, no plano psicológico, ao mesmo tempo uma inferência inelutável e
uma experiência não determinável: só a apreendemos na filigrana do Éros; é o Éros que
a utiliza, desviando-a para algo diferente do ser vivo; é ao Éros que ela se mistura
tomando a forma do sadismo; é ainda através da satisfação masoquista que a
surpreendemos agindo contra o próprio ser vivo. Em suma, ela só se revela misturada ao
Éros, ora dublando a libido objetal, ora sobrecarregando a libido narcísica. Só é
desmascarada e posta a descoberto como anticultura. Há, assim, uma revelação
progressiva da pulsão de morte, através dos três níveis: biológico, psicológico e cultural.
Seu antagonismo é cada vez menos silencioso na medida em que o Éros manifesta seu
efeito para unir; em primeiro lugar, o ser vivo a si mesmo, em seguida, o Ego a seu
objeto, enfim, os indivíduos em grupos sempre maiores. Ao repetir-se de nível em nível,
a luta entre Éros e a Morte torna-se cada vez mais patente e só atinge seu sentido
completo no nível da cultura: "Essa pulsão agressiva é a descendente e a representante
principal do instinto de morte que encontramos agindo ao lado do Éros e que reparte,
com ele, a dominação do mundo. Doravante, a meu ver, a significação da evolução da
civilização deixa de ser obscura: ela deve mostrar-nos a luta entre o Éros e a Morte,
entre o instinto de vida e o instinto de destruição, tal como ela se desenrola na espécie
humana. Essa luta é, em suma, o conteúdo essencial da vida. É por isso que se deve
definir essa evolução por esta fórmula sucinta: o combate da espécie humana pela vida.
E é essa luta de gigantes que nossas amas-de-leite querem acalmar, clamando:
Eiapopeia vom Himmell".
Não é ainda tudo: nos últimos capítulos de Mal-estar na Civilização, a relação entre
psicologia e teoria da cultura é completamente invertida. No início desse ensaio, era a
econômica da libido, tomada de empréstimo à metapsicologia, que servia de guia na
elucidação do fenômeno da cultura. Depois, com a introdução dá pulsão de morte,
interpretação da cultura e dialética das pulsões remetem-se, reciprocamente, num
movimento circular. Com a introdução do sentimento de culpabilidade, é agora a teoria
da cultura que, por contra reação, relança a psicologia. Com efeito, o sentimento de
culpabilidade é introduzido como o "meio" de que se serve a civilização para frustrar a
agressividade. A interpretação cultural é levada tão longe, que Freud pôde afirmar que a
intenção expressa de seu ensaio "era a de apresentar o sentimento de culpabilidade
como o problema capital do desenvolvimento da civilização", e a de elucidar, além
disso, por que o progresso dessa civilização deve ser pago por uma perda de felicidade
devida ao reforço desse sentimento: em apoio dessa concepção, ele cita a famosa frase
de Hamlet:

Thus conscience does make cowards of us al!... É, assim que a consciência faz de
todos nós covardes(14).
Por conseguinte, se o sentimento de culpabilidade é o meio específico de que a
civilização se serve para frustrar a agressividade, não é de se estranhar que Mal-estar na
Civilização contenha a mais desenvolvida interpretação desse sentimento cujo estofo,
no entanto, é, fundamentalmente, psicológico. Mas a psicologia desse sentimento só era
possível a partir de uma interpretação "econômica" da cultura. Com efeito, do ponto de
vista da psicologia individual, o sentimento de culpabilidade parece ser apenas o efeito
de uma agressividade interiorizada, introjetada, que o Superego assumiu em nome da
consciência moral, e que lança contra o Ego. Contudo, toda a sua "economia" só
aparece quando a necessidade de punir é ressituada numa perspectiva cultural: "A
civilização domina, pois, o perigoso ardor agressivo do indivíduo, enfraquecendo o
indivíduo, desarmando-o e fazendo-o estar vigilante mediante uma instância instaurada
nele mesmo, da mesma forma que uma guarnição situada numa cidade conquistada"
(pp. 58-59).
Assim, a interpretação econômica e, se podemos dizer, estrutural do sentimento de
culpabilidade, só pode edificar-se numa perspectiva cultural. Ora, é somente no
contexto dessa interpretação estrutural que podem ser situadas e compreendidas as
diversas interpretações genéticas parciais elaboradas em diferentes épocas por Freud,
dizendo respeito ao assassinato do pai primitivo e à instituição do remorso. Considerada
sozinha, essa interpretação conserva algo de problemático em razão da contingência que
introduz na história de um sentimento que, por outro lado, apresenta-se com traços "de
inevitabilidade fatal" (p. 67). O caráter contingente desse processo, tal como o
reconstitui a explicação genética, atenua-se desde que a explicação genética esteja
subordinada à explicação estrutural econômica: "Portanto, é exato que o fato de matar o
pai, ou de abster-se de fazê-lo, não é decisivo; devemos, necessariamente, nos sentir
culpados em ambos os casos, porque o sentimento é a expressão do conflito de
ambivalência, da eterna luta entre o Éros e o instinto de destruição, de morte. Esse
conflito tornou-se claro desde o instante em que foi imposta aos homens a tarefa de
viverem em comum. Enquanto essa comunidade conhece unicamente a forma familiar,
ele se manifesta, necessariamente, no complexo de Édipo, institui a consciência e
engendra o primeiro sentimento de culpabilidade. Quando essa comunidade tende a
ampliar-se, esse mesmo conflito persiste revelando formas dependentes do passado,
intensifica-se e acarreta um agravamento desse primeiro sentimento. Como a civilização
obedece a um impulso erótico interno visando a unir os homens numa massa mantida
por vínculos apertados, ela só consegue isso por um único meio, reforçando sempre
mais o sentimento de culpabilidade. O que começou pelo pai, termina pela massa. Se a
civilização é o caminho indispensável para se evoluir da família à humanidade, então
esse reforço está indissoluvelmente ligado a seu curso, enquanto conseqüência do
conflito de ambivalência com o qual nascemos e da eterna querela entre o amor e o
desejo da morte" (pp. 67-68).
No término dessas análises, parece que é o ponto de vista econômico que revela o
sentido da cultura. Contudo, em sentido inverso, deve-se dizer que a supremacia do
ponto de vista econômico sobre qualquer outro, inclusive sobre o ponto de vista
genético, só é completa quando a psicanálise arrisca-se a manifestar sua dinâmica das
pulsões no vasto contexto de uma teoria da cultura.
2. A ilusão e o recurso ao modelo "genético"
É no interior dessa esfera cultural, definida segundo o modelo tópico econômico
tomado de empréstimo à Metapsicologia, que se torna possível ressituar o que
chamamos de arte, moral e religião. Todavia, Freud não as absorve por seu objeto
presumido, mas por sua função "econômica". A esse preço, fica assegurada a unidade de
interpretação.
É como "ilusão" que a religião figura em tal econômica. Não se deve exclamar:
mesmo que o racionalista Freud reconheça apenas, como real, o observável e o
verificável, não é como variedade de "racionalismo", nem mesmo como variedade de
"descrença" que esta teoria da "ilusão" tem importância. Também Epicuro e Lucrécio
haviam dito há muito tempo que, inicialmente, foi o medo que fez os deuses. Essa teoria
é nova enquanto teoria econômica da ilusão. A questão que Freud coloca, não é a de
Deus, mas a do deus dos homens e de sua função econômica na balança das renúncias
pulsionais, das satisfações substituídas e das compensações pelas quais o homem tenta
suportar a vida.
A chave da ilusão é a dureza da vida, apenas suportável para o homem, para esse
homem que não somente compreende e sente, mas que seu narcisismo inato torna ávido
de consolação. Ora, a cultura, vimos, não possui apenas por tarefa reduzir o desejo do
homem, mas defender o homem contra a superioridade esmagadora da natureza. A
ilusão é este outro método que a cultura emprega quando a luta efetiva contra os males
da existência não começou, ainda não teve êxito, ou fracassou provisória ou
definitivamente. Então, ela cria os deuses para exorcizar o medo, reconciliar com a
crueldade do destino e compensar o sofrimento de cultura.
O que é que a ilusão introduz de novo na economia das pulsões? Essencialmente,
um núcleo ideacional ou representativo - os deuses - sobre os quais pronuncia asserções
- os dogmas, - vale dizer, afirmações pretendendo apreender uma realidade. É essa etapa
de crença numa realidade que constitui a especificidade da ilusão na balança das
satisfações e dos mal-estares. A religião que o homem forja só lhe satisfaz através de
afirmações inverificáveis em termos de provas ou de observações racionais. Precisamos,
pois, perguntar-nos de onde vem esse núcleo representativo da ilusão.
É aqui que a interpretação global, regulada pelo modelo "econômico", encontra-se
com as interpretações parciais conduzidas segundo um modelo "genético". O vínculo
que religa as explicações pela origem às explicações pela função é a ilusão, a saber, o
enigma proposto por uma representação sem objeto. Para justificar isso, Freud não vê
outra saída senão uma gênese da desrazão. Mas essa gênese permanece homogênea à
explicação econômica: a característica essencial da "ilusão", repete ele, consiste em
proceder dos desejos do homem. De onde uma doutrina sem objeto obteria sua eficácia,
senão da força do desejo mais tenaz da humanidade, o desejo de segurança, que é, por
excelência, o desejo estranho à realidade? I
Totem e Tabu e Moisés e o Monoteísmo fornecem o esquema genético indispensável
à explicação econômica; reconstituem as lembranças históricas que formam, não
somente o conteúdo verdadeiro que está na origem da distorção ideacional, mas, como
veremos, quando tivermos introduzido o aspecto quase neurótico da religião, o conteúdo
"latente" que cria oportunidade ao retorno do recalcado.
Distingamos provisoriamente esses dois aspectos: conteúdo verdadeiro, dissimulado
na distorção, lembrança reca1cada, reaparecendo, sob uma formo despistada, na
consciência religiosa atual. I
O primeiro aspecto merece atenção: em primeiro lugar, porque condiciona o
segundo, mas também porque cria a oportunidade de se enfatizar um traço curioso do
freudismo. Contrariamente às escolas de "desmitologização" e, mais ainda, em oposição
àqueles que tratam a religião como um "mito" maquilado em história, Freud insiste
sobre o núcleo histórico que constitui a origem filogenética da religião. Isto não é
surpreendente: em Freud, a explicação genética requer um realismo da origem. Donde a
amplitude e o cuidado das pesquisas de Freud dizendo respeito tanto aos inícios da
civilização quanto ao começo do monoteísmo judeu. Falta-lhe uma série de pais reais, e
realmente massacrados por filhos reais, para alimentar o retorno do recalcado:
"Não hesito em afirmar que os homens sempre souberam que, um dia, haviam
possuído e assassinado um pai primitivo” (Moïse et le Monothéisme, p. 154).
Os quatro capítulos de Totem e Tabu constituem, aos olhos de seu autor a primeira
tentativa... em vista de aplicar a certos fenômenos ainda obscuros da psicologia coletiva
os pontos de vista e os dados da psicanálise (Prefácio VII). O ponto de vista genético
predomina, manifestamente, sobre o ponto de vista econômico, que ainda não é
claramente elaborado enquanto modelo. Trata-se de explicar a coação moral, inclusive o
imperativo categórico de Kant (Prefácio VIII), como uma sobrevivência dos tabus
dependendo do totemismo. Seguindo a sugestão de Charles Darwin, Freud admite que,
nos tempos primitivos, o homem vivia em pequenas hordas cada uma delas sendo
governada por um macho vigoroso que dispunha à vontade, brutalmente de um poder
ilimitado, reservava-se todas as mulheres, castrava ou massacrava os filhos rebeldes.
Segundo uma hipótese tomada de empréstimo a Atkinson, os filhos rebeldes se uniram
contra o pai, o mataram, devoraram, não somente para se vingarem dele, mas para se
identificar com ele. Enfim, conforme a teoria de Robertson Smith, Freud admite que o
clã totêmico dos irmãos sucedeu à horda do pai. Para não se arruinarem em lutas vãs, os
irmãos chegaram a uma espécie de contrato social e instituíram o tabu do incesto e a
regra da exogamia. Ao mesmo tempo, sofrendo sempre a ambivalência do sentimento
filial, restauraram a imagem do pai sob a forma substituída do animal tabu. A refeição
totêmica tinha, então, a significação de uma repetição solene do assassinato do pai. A
religião havia nascido, e a figura do pai, outrora executado, era seu centro. É essa
mesma figura que ressurgirá sob a forma dos deuses e, melhor ainda, sob a
representação de um deus único, onipotente, até fazer uma volta completa na morte do
Cristo e na comunhão eucarística. I
É aqui que Moisés e o Monoteísmo se articula de modo bastante preciso com
Totem e Tabu, tanto pelo projeto quanto pelo conteúdo: "Trata-se, escreve Freud no
início dos dois primeiros ensaios publicados pela revista Imago (vol. 23, n. 1 e 3), de se
fazer uma opinião bem fundada sobre a origem das religiões monoteístas em geral"
(Moise et le Monothéisme, p. 22). Para tanto, deve-se reconstituir, com certa
verossimilhança, o acontecimento de um assassinato do pai que seria para o
monoteísmo aquilo que o assassinado do pai primitivo havia sido para o totemismo.
Donde a tentativa de se dar corpo à hipótese de "Moisés egípcio”; adepto do culto de
Atão, deus ético, universal e tolerante, ele mesmo construído sobre o modelo de um
príncipe pacífico, tal como pudera ser o faraó Ikhnaton, e que Moisés teria imposto às
tribos semitas. Foi esse herói, no sentido de Otto Rank cuja influência, aqui, é enorme -
que teria sido morto pelo povo. Em seguida, o culto do deus de Moisés teria se fundido
com o de Javé, deus dos vulcões, no qual ele teria dissimulado sua origem, bem como
tentado fazer esquecer o assassinato do herói. Foi assim que os profetas teriam sido os
artífices do retorno do deus mosaico: com os traços do deus ético, teria ressurgido o
acontecimento traumático. O retorno ao deus mosaico seria, ao mesmo tempo, a volta
do traumatismo recalcado. Desta forma, manteríamos ao mesmo tempo a explicação de
uma ressurgência, no plano das representações, e de um retorno do recalcado, no plano
emocional: se o povo judeu forneceu à cultura ocidental o modelo de auto-acusação que
conhecemos, é porque seu sentido da culpabilidade alimenta-se da lembrança de um
assassinato que ele se empenhou, ao mesmo tempo, em dissimular.
Freud de forma alguma está disposto a minimizar a realidade histórica dessa cadeia
de acontecimentos traumáticos: "Tanto as massas quanto o indivíduo, admitem,
guardam, sob forma de traços mnésicos inconscientes, as impressões do passado" (ibid.,
p. 44). A universalidade do simbolismo da linguagem é, para Freud, muito mais uma
prova dos traços mnésicos dos grandes traumatismos da humanidade, segundo o modelo
genético, que a incitação a se explorar outras dimensões da linguagem, do imaginário,
do mito. A distorção dessa lembrança é a única função do imaginário a ser explorada.
Quanto à hereditariedade, irredutível a toda comunicação direta, certamente embaraça
Freud. Todavia, deve ser postulada, se quisermos transpor "o abismo que separa a
psicologia individual da psicologia coletiva e tratar os povos da mesma maneira que o
indivíduo neurótico. Se não é assim, renunciemos a progredir um único passo no
caminho que seguimos, tanto no domínio da psicanálise quanto no da psicologia
coletiva. A audácia é, aqui, indispensável" (p. 153). Portanto, não poderíamos dizer que
se trata, aqui, de uma hipótese acessória; Freud vê aí uma das vigas que assegura a
coesão do sistema: "Uma tradição que se fundasse apenas sobre transmissões orais, não
comportaria o caráter obsedante próprio ao fenômeno religioso" (p. 155). Só pode haver
um retorno do reca1cado se tiver ocorrido um acontecimento traumatizante.
Chegados a esse ponto, seríamos tentados a dizer que as hipóteses de Freud,
concernentes às origens, são interpretações acessórias que não importam a uma
interpretação "econômica", a "única fundamental da "ilusão". Não é o que ocorre: na
realidade, é a interpretação genética que permite o acabamento da teoria econômica da
"ilusão"; a teoria econômica integra os resultados das investigações concernentes às
origens; por sua vez, essas investigações permitem que se enfatize um traço que ainda
não foi evidenciado, a saber, o papel que desempenha o retorno do recalcado na gênese
da ilusão; é esse traço que faz da religião "a universal neurose obsessiva da
humanidade". Ora, esse caráter não podia aparecer antes que a explicação genética
tivesse sugerido a existência de uma analogia entre a problemática religiosa e a situação
infantil. A criança, lembra Freud, só acede à maturidade por uma fase mais ou menos
distinta de neurose obsessiva que, na maioria das vezes, é espontaneamente liquidada,
mas que, por vezes, requer a intervenção da análise. Da mesma forma, a humanidade foi
constrangida, na época de sua minoridade, da qual ainda não saímos, a proceder à
renúncia pulsional, através de uma neurose que procede da mesma posição ambivalente
das pulsões relativamente à figura do pai. Muitos textos de Freud e de Theodoro Reik
desenvolvem essa analogia da religião e da neurose obsessiva. Totem e Tabu já havia
percebido esse caráter neurótico do tabu: em ambos os casos, observa-se um delírio
análogo ao tocar, com a mesma mistura de desejo e de horror. Costumes, tabus e
sintomas da neurose obsessiva possuem, em comum, a mesma ausência de motivação,
as mesmas leis de fixação, de deslocamento e de contágio, o mesmo cerimonial
decorrente das proibições (lbid., p. 46). Em ambos os casos, o esquecimento do
recalcado confere à interdição o mesmo caráter de estranheza e de ininteligibilidade,
suscita os mesmos desejos de transgressão, provoca as mesmas satisfações simbólicas,
os mesmos fenômenos de substituição e de compromisso, as mesmas renúncias
expiatórias e, finalmente, alimenta as mesmas atitudes ambivalentes relativamente à
interdição (p; 54). Numa época em que Freud não havia, ainda, elaborado a teoria do
Superego, nem, sobretudo, a do instinto de morte, a consciência "moral" (que ele ainda
interpreta como a percepção interna do repúdio de certos desejos) é tratada como um
rebento do "remorso tabu" (pp. 97-101). "Podemos mesmo arriscar essa afirmação: se
não nos fosse possível descobrir a origem da consciência moral na neurose obsessiva,
deveríamos renunciar a toda esperança de jamais descobri-la" (p. 98). Portanto, nessa
época, a ambivalência da atração e da repulsa está no centro de toda comparação.'
Sem dúvida, Freud não deixou de surpreender-se com as diferenças entre o tabu e a
neurose: "O tabu, observa, não é uma neurose, mas uma formação social" (p. 101). Mas
ele se esforçava por reduzir a distância, explicando o aspecto social do tabu pela
organização do castigo, e esta, pelo medo do contágio do tabu (p. 102). Acrescentava
que as próprias tendências sociais contêm uma mistura de elementos egoístas e eróticos
(p. 104). É o que desenvolve, por outro lado, Psicologia Coletiva e Análise do Ego
(especialmente o capítulo V sobre "Igreja e Exército"). Nesse ensaio, datado de 1921, é
proposta uma interpretação inteiramente "libidinal" ou "erótica" do apego ao chefe, e da
coesão dos grupos de base autoritária e de estrutura hierárquica.
Moisés e o Monoteísmo ressalta, tanto quanto possível, esse caráter neurótico da
religião: a oportunidade principal é fornecida a Freud pelo "fenômeno da latência" na
história do judaísmo, a saber, o atraso no ressurgimento da religião de Moisés, recalcada
no culto de Javé. Podemos surpreender, aqui, o entrecruzamento do modelo genético e
do modelo econômico: "Num ponto, há concordância entre o problema da neurose
traumática e o do monoteísmo judaico. Essa analogia reside naquilo que podemos
chamar de a latência" (lbid., p. 105). "Essa analogia é tão completa, que quase
poderíamos falar de identidade" (p. 111). Uma vez admitido o esquema da evolução da
neurose ("traumatismo precoce, defesa, latência, explosão da neurose, retorno parcial do
recalcado" - p. 123), a aproximação entre a da espécie humana e a do indivíduo faz o
resto: "Também a espécie humana sofre processos de conteúdo agressivo-sexual que
deixam traços permanentes, embora tenham sido afastados e esquecidos na maioria das
vezes. Mais tarde, depois de um longo período de latência, tornam-se ativos e produzem
fenômenos comparáveis, por suas estruturas e suas tendências, aos sintomas neuróticos"
(p. 123).
O monoteísmo judaico dá continuidade, assim, ao totemismo, nesta história do
retorno do recalcado. O povo judeu renovou, na pessoa de Moisés, eminente substituto
do pai, o crime primitivo. O assassinato do Cristo é outro reforço da lembrança das
origens, ao passo que a Páscoa ressuscita Moisés. Enfim, a religião de São Paulo
conclui esta volta do recalcado, leva-o à sua fonte pré-histórica, dando-lhe o nome de
pecado original: um crime havia sido cometido para com Deus, e somente a morte podia
resgatálo. Freud passa depressa sobre o "fantasma" da expiação que está no cerne do
querigma cristão (p. 132). Sugere que o redentor teve que ser o principal culpado, o
chefe da horda dos irmãos, o mesmo que o herói trágico rebelde da tragédia grega (pp.
134-136): "Por detrás dele se dissimulava o pai primordial da horda primitiva,
transfigurado, é verdade, e tendo, enquanto filho, tomado o lugar de seu pai" (p. 138).
Essa analogia com a neurose traumática confirma nossa interpretação da ação
recíproca, na obra de Freud, entre a etiologia das neuroses e a hermenêutica da cultura.
A religião dá oportunidade a uma releitura da neurose, como o sentido da culpabilidade
que lhe é conexo, prolonga, na dialética, pulsões de vida e de morte. Modelo "tópico"
(diferenciação das instâncias Id, Ego, Superego), modelo "genético" (papel da infância e
da filogênese), modelo"econômico" (investimento, contra-investimento), convergem na
última interpretação do retorno do recalcado (p. 145). .

3. A "ilusão" religiosa e a "sedução" estética


Essa interpretação econômica da ilusão possibilita-nos, enfim, situar a sedução
estética relativamente à ilusão religiosa. A severidade de Freud com a religião só se
assemelha, como se sabe, à sua simpatia pelas artes. Essa diferença de tom não é
fortuita: tem sua razão de ser na economia geral dos fenômenos culturais. A arte é, para
Freud, a forma não obsessiva, não neurótica, da satisfação substituída: "o charme” da
criação estética não procede do retorno do recalcado. .
Fizemos alusão, no início desse estudo, ao artigo que, desde 1908, Freud
consagrava, na revista Imago, à "Criação literária e ao Sonho acordado" e ao método
analógico que colocava em jogo: uma teoria geral do fantasma já estava subjacente a
esse método, e uma pista se deixava adivinhar em direção àquilo que, mais tarde,
deveria tornar-se uma teoria da cultura. Se a poesia, perguntava-se Freud, está tão
próxima do sonho acordado, não é porque a técnica do artista visa tanto a ocultar quanto
a comunicar o fantasma? Não procura ela superar a repulsa que seria suscitada por uma
evocação demasiado direta do proibido sob a sedução de um prazer puramente formal?
A ars poética, assim evocada (Essais de psychanalyse áppliquée, p. 81), aparece-nos
agora como o outro pólo da ilusão: ele nos seduz, está escrito "por um benefício de
prazer estético que nos oferece na representação desses fantasmas". Toda a
interpretação da cultura dos anos 29-39 está contida in nuce nas linhas que se seguem:
"Chamamos de prêmio de sedução, prazer preliminar, semelhante benefício de prazer
que nos é oferecido a fim de permitir a liberação de um gozo superior emanando de
fontes psíquicas bem mais profundas. Creio que todo prazer estético, produzido em nós
pelo criador, apresenta esse caráter de prazer preliminar, mas que o verdadeiro gozo da
obra literária provém do fato de nossa alma encontrar-se aliviada por ela de certas
tensões. Talvez mesmo do fato de o criador colocar-nos em condições, de gozar
doravante de nossos próprios fantasmas sem escrúpulos nem vergonha, contribua em
larga escala para este resultado" (Ibid., p. 81). ."
Contudo, talvez seja em O Moisés de Miguel Ângelo que a articulação futura entre a
estética e uma teoria geral da cultura deixe-se melhor perceber. Em parte alguma
compreendemos melhor quais os obstáculos, na aparência dirimentes, que essa
interpretação abala. Com efeito, nesse ensaio - que é o fruto de uma longa freqüentação
da obra-prima e de muitos esboços gráficos pelos quais Freud tentou reconstituir as
posturas sucessivas condensadas no gesto atual de Moisés, - a interpretação procede,
como na interpretação dos sonhos, a partir do detalhe. Esse método, propriamente
analítico, possibilita-nos superpor trabalho de sonho e trabalho de criação, interpretação
do sonho e interpretação da obra. Portanto, ao invés de procurar interpretar, no plano da
mais vasta generalidade, a natureza da satisfação engendrada pela obra de arte - tarefa
na qual se perderam muitos psicanalistas, - é pelo desvio de uma obra singular e das
significações criadas por esta obra que o analista tenta resolver o enigma geral da
estética. Conhecemos a paciência e a minúcia dessa interpretação: aqui, como numa
análise de sonho, é o fato preciso e, na aparência, menor, que conta, e não uma
impressão de conjunto: a posição do indicador da mão direita do profeta - desse
indicador que é o único em contato com o fluxo da barba, ao passo que o resto da mão
está voltada para trás, - a posição trêmula das Tábuas, prestes a escaparem à pressão do
braço. A interpretação reconstitui, na filigrana dessa postura instantânea, e como que
fixos na pedra, os encadeamentos de movimentos antagônicos que encontraram nesse
movimento parado uma espécie de compromisso instável. Num gesto de cólera, Moisés
teria antes levado a mão à barba, arriscando deixar caírem as Tábuas, ao passo que seu
olhar era violentamente atraído, de lado, pelo espetáculo do povo idólatra. Contudo, um
movimento contrário, reprimindo o primeiro, e suscitado pela consciência viva de sua
missão religiosa, teria levado a mão para trás. O que temos sob os olhos é o resíduo de
um movimento que ocorreu e que Freud aplicou-se em reconstituir da mesma maneira
que reconstitui as representações opostas que engendram as formações de compromisso
do sonho, da neurose, do lapso, do chiste. Penetrando ainda nessa formação de
compromisso, Freud descobre, na espessura do sentido aparente, além da expressão
exemplar de um conflito superado, digno de guardar o túmulo do papa, uma secreta
censura à violência do defunto e como que uma advertência a si mesmo.
Por conseguinte, a exegese do Moisés de Miguel Ângelo não é uma peça
acrescentada. Ela se situa na única trajetória que parte de A Interpretação de Sonhos, e
passa pela Psicopatologia da Vida Cotidiana e pelo Chiste.
Essa vizinhança comprometedora permite-nos colocar, desde já, a questão de
confiança: temos o direito de submeter a um mesmo tratamento a obra de arte que é
como se diz, uma criação durável e, no sentido forte do termo, memorável em nossos
dias, e o sonho que é, como se sabe, um produto fugidio e estéril de nossas noites? Se a
obra de arte dura e permanece, não é porque ela é sempre portadora das significações
que enriquecem o patrimônio de valores da cultura? A objeção não é irrelevante; ela nos
dá a oportunidade de apreender o alcance daquilo que nos arriscamos a chamar de uma
hermenêutica da cultura. A psicanálise da cultura vale, não enquanto ignora a diferença
de valor dos produtos oníricos e das obras de arte, mas porque conhece essa diferença e
tenta explicá-la de um ponto de vista econômico. Todo o problema da sublimação
procede dessa decisão de se situar uma oposição de valor, perfeitamente reconhecida, do
ponto de vista unitário de uma gênese e de uma econômica da libido.
A oposição de valor entre o que é "criador" e o que é "estéril" oposição que uma
fenomenologia descritiva considera como dado originário - constitui problema para uma
"econômica". Longe de ser desconhecida, é esta oposição de valor que nos obriga a
reportar para além ou, se preferirmos, para aquém dela, a dinâmica unitária, e a
compreender qual a repartição de investimentos e de contra-investimentos que é capaz
de engendrar as produções opostas do sintoma, no plano do sonho e da neurose, e da
expressão, no plano das artes e, em geral, da cultura. É por isso que é necessário que o
analista percorra todas essas razões que podemos articular contra uma assimilação
ingênua entre os fenômenos de expressividade cultural e uma sintomatologia
apressadamente demarcada da teoria do sonho e da neurose. Ele deve recapitular todos
os temas de oposição entre as duas ordens de produção que pode fornecer-lhe a estética
de Kant, de Schelling, de Hegel e de Alain. Somente com esta condição, sua
interpretação não suprime, mas conserva e engloba a dualidade do sintoma e da
expressão. Mesmo depois de sua interpretação, permanece verdadeiro que o sonho é
uma expressão privada, perdida na solidão do sono, à qual faltam a mediação do
trabalho, a incorporação de um sentido num material duro, a comunicação desse sentido
a um público, em suma, o poder de fazer avançar a consciência em direção a uma nova
compreensão de si mesma. A força da explicação psicanalítica consiste precisamente em
referir esses valores culturais opostos da obra criadora e da neurose a uma única escala
de criatividade e á uma única econômica. Ao mesmo tempo, ela vai ao encontro das
visões de Platão sobre a unidade fundamental da poética e da erótica, das de Aristóteles
sobre a continuidade da purgação à purificação, das de Goethe sobre o demonismo.
. Talvez devamos ir mais longe. O que a análise pretende superar, não é somente a
oposição fenomenológica do sonho e da cultura, mas uma oposição interior à própria
econômica. Uma segunda objeção nos possibilitará formular esse tema.
Pode-se realmente objetar à interpretação do Moisés de Miguel Ângelo e, mais
ainda, à do Édipo-Rei de Sófocles ou do Hamlet de Shakespeare, que, se essas obras são
criações é na medida em que não são simples projeções dos conflitos do artista, mas
o esboço de suas soluções; o sonho, dir-se-á, olha para trás, para a infância, para o
passado; a obra de arte está adiante do próprio artista; é um símbolo prospectivo da
síntese pessoal e do futuro do homem, mais do que um sintoma regressivo de seus
conflitos não resolvido. É por isso que a compreensão, pelo amador, não é uma simples
reviviscência de seus próprios conflitos, uma satisfação fictícia dos desejos evocados
nele pelo drama, mas a participação no trabalho da verdade que se realiza na alma do
herói trágico: assim, a criação por Sófocles do personagem, de Édipo não é uma simples
manifestação do drama infantil que traz seu nome, mas a invenção de um símbolo novo
da dor da consciência de si. Este símbolo não repete nossa infância, mas explora nossa
vida adulta.
À primeira vista, esta objeção vai diretamente de encontro a certas declarações do
próprio Freud, por exemplo, sobre o Édipo de Sófocles e o Hamlet de Shakespeare na
Ciência dos Sonhos.
Mas, talvez, essa objeção só seja decisiva contra uma formulação ainda ingênua da
hermenêutica oriunda da análise, e proceda de uma concepção também ingênua da
criação como sendo uma promoção de significações para uma consciência
pretensamente pura. Por isso, essa objeção, como a precedente, deve ser menos refutada
que ultrapassada e integrada, ao mesmo tempo em que a tese à qual se opõe, numa visão
mais ampla e mais penetrante da dinâmica que comanda os dois processos. "Regressão"
e “progressão” seriam menos dois processos polarmente opostos que dois aspectos d
mesma criatividade. Kris, Loewenstein e Hartmann propuseram uma expressão
englobante e sintética: falam de "regressive progression" (Organization and Pathology
of Thought) para designar o processo complexo pelo qual o psiquismo elabora
significações conscientes reavivando formações inconscientes ultrapassadas. Regressão
e progressão designariam menos dois processos realmente opostos que os termos
abstratos retirados de um único processo concreto, de que designariam dois limites
extremos: o de uma pura regressão e o de uma progressão pura. Existe realmente um
único sonho que não possua também uma função exploratória, que não esboce
"profeticamente" uma saída para nossos conflitos? Inversamente, existe um único
grande símbolo criado pela arte e pela literatura, que não precipite no arcaísmo dos
conflitos e dos dramas da infância, individuais e coletivos? Não é o verdadeiro sentido
da sublimação o de promover significações novas mobilizando as energias antigas
inicialmente investidas em figuras arcaicas? As figuras mais inovadoras que o artista, o
escritor, o pensador podem engendrar, não possuem o duplo poder de ocultar e de
mostrar, de dissimular o antigo, à maneira dos sintomas oníricos ou neuróticos, de
revelar os possíveis menos revolutos, menos sucedidos, como um símbolo do homem
futuro.
É nesta direção que a psicanálise pode realizar seu intuito de ir ao encontro de uma
hermenêutica integral da cultura. Para tanto, ela precisa ultrapassar a oposição
necessária, porém, abstrata de uma interpretação que só faria extrapolar a
sintomatologia do sonho e da neurose, e de uma interpretação que pretenderia encontrar
na consciência a mola da criatividade. Deve-se ainda ter atingido o nível dessa oposição
e tê-la conduzido à maturidade, para se ter acesso a uma dialética, concreta em que seria
ultrapassada a alternativa provisória e, finalmente, enganadora da regressão e da
progressão.

II. SITUAÇÃO DA HERMENÊUTICA FREUDIANA

É interpretando-a, dizíamos no início, que a psicanálise se inscreve na cultura.


Como nossa cultura consegue compreender-se através da representação que a
psicanálise lhe remete?
Que esta interpretação seja parcial (partielle e parcial). E mesmo
sistematicamente injusta em relação a outras abordagens do fenômeno da cultura
merece ser dito, de início. Todavia, essa crítica não é o que mais importa: porque é em
favor de sua estreiteza que a interpretação freudiana atinge o' essencial. Por isso, só
devemos, inicialmente, esboçar os limites de sua hermenêutica da cultura para, em
seguida, situar-nos no centro de sua circunscrição e adotar sua posição de força. Por
mais legítimas que sejam as críticas, elas devem dar lugar à vontade de deixar-se
instruir e expor a crítica ao questionamento de todas as racionalizações e de todas as
justificações que procedem da própria psicanálise. É por isso que, contrariamente ao
costume, apoiamo-nos na crítica (segunda parte) para deixar repercutir em nós, à
maneira da reflexão livre (terceira parte), a exposição voluntariamente didática que
desenvolvemos até o momento (primeira parte).

1. Limites de princípio da interpretação freudiana da cultura


O que torna difícil todo confronto do freudismo com outras teorias da cultura é que
seu criador jamais propôs uma reflexão sobre os limites de sua interpretação: admite
que hajam outras pulsões distintas da que estuda, mas não propõe uma enumeração
completa delas. Fala do trabalho, do vínculo social, da necessidade e da realidade, mas
sem deixar perceber como a psicanálise poderia coordenar-se com ciências ou com.
interpretações diferentes da sua. É assim que as coisas se passam: sua grande
parcialidade deixa-nos numa perplexidade útil; compete a cada um situar a psicanálise
em sua visão das coisas.
Mas como nos orientarmos no início? Uma de nossas observações iniciais poderá
nos servir de guia: Freud, dizíamos, apreende o conjunto dos fenômenos da cultura - e
mesmo dos fatos humanos,- embora o apreenda de um ponto de vista. Portanto, é do
lado dos “modelos" - modelo tópico-econômico e modelo genético, - e não ao lado do
conteúdo interpretado, que se deve procurar a limitação de princípio da interpretação
freudiana da cultura.
O que é que tais modelos não permitem apreender?
A explicação da cultura, por seu custo afetivo em prazer e em dor, e por suas
origens filogenéticas e ontogenéticas, certamente é bastante esc1arecedora. Diremos
daqui a pouco o enorme alcance de tal esforço, similar, quanto ao essencial, ao de Marx
e de Nietzsche, para desmascarar a consciência "falsa". Mas não se deve esperar desse
empreendimento outra coisa senão uma crítica de autenticidade. Não lhe deve ser
exigido, sobretudo, aquilo que poderíamos chamar de uma crítica de fundamento. Essa é
a tarefa de outro método: não mais de uma hermenêutica das expressões psíquicas - do
sonho à obra de arte, do sintoma ao dogma religioso, mas um método reflexivo,
aplicado ao agir humano em seu conjunto, vale dizer, ao esforço para existir, ao desejo
de ser, contemporâneo desse desejo, e às múltiplas mediações pelas quais o homem
tenta apropriar-se da mais originária afirmação que habita seu esforço e seu desejo. A
articulação de uma sobre a outra, de uma filosofia reflexiva e de uma hermenêutica do
sentido, é, hoje em dia, a mais urgente tarefa de uma antropologia filosófica. Contudo, a
"estrutura de acolhida", na qual poderia inscrever-se a metapsicologia freudiana, bem
como outros tipos de hermenêuticas estranhas à psicanálise, está quase inteiramente por
ser construída. Pelo menos, torna-se possível detectar certas zonas fronteiriças, no
interior desse vasto campo, tomando por pedra de toque a teoria da ilusão, cuja
significação central vimos em Freud.
O interesse da concepção freudiana da ilusão consiste em ressaltar como
representações que tornam suportável o sofrimento, que "consolam", edificam-se, não
somente sobre a renúncia pulsional, mas a partir dessa renúncia: são os desejos e seu
movimento de investimento e de contra-investimento que constituem toda a substância
da ilusão. É neste sentido que todos pudemos dizer que a teoria da ilusão é, em si
mesma, de ponta a ponta, econômica. Contudo, reconhecer este fato significa, ao
mesmo tempo, renunciar a descobrir nele uma interpretação exaustiva do fenômeno de
valor, que somente uma reflexão mais fundamental sobre a dinâmica do agir poderia
explicar.
Da mesma forma como não resolvemos o enigma do poder político quando
dissemos que o vínculo com o chefe mobiliza todo um investimento libidinal de caráter
homossexual, também não resolvemos o enigma da "autoridade dos valores" quando
discernimos na filigrana do fenômeno moral e social a figura do pai e a identificação
com essa figura tão fantástica quanto real. Uma coisa é o fundamento de um fenômeno,
tal como o poder ou o valor, e outra o custo afetivo da experiência que dele fazemos, o
balanço em prazeres e dores do vivido humano.
Essa distinção entre os problemas de fundamento e os problemas de economia
pulsional, seguramente é uma distinção de princípio: pelo menos, marca o limite de uma
interpretação comandada por um modelo econômico. Será que se pode dizer que essa
distinção permanece por demais teórica, não afetando, em nenhum momento a
concepção psicanalítica e, menos ainda, o trabalho do psicanalista? Parece-me, ao
contrário, que esta fronteira da psicanálise surge de modo bastante concreto na noção
freudiana de sublimação que, na realidade, é uma noção impura e um ponto de vista
axiológico. Na sublimação, uma pulsão trabalha num nível "superior", embora se possa
dizer que a energia investida em novos objetos seja a mesma a que se investira, outrora,
num sexual. O ponto de vista econômico explica apenas essa filiação genética, mas não
a novidade de valor promovida por este abandono e por esta transposição. Oculta-se
pudicamente a dificuldade, ao se falar de objetivo e de objeto socialmente aceitáveis:
mas a utilidade social é um manto de ignorância que se lança sobre o problema de valor
levado a efeito pela sublimação. .
Assim, o próprio sentido da "ilusão" é posto em questão. Como dissemos, Freud não
fala de Deus, mas do deus dos homens. A psicanálise não tem como resolver,
radicalmente o problema da "origem radical das coisas", para falarmos como Leibnitz.
Todavia, ela está bem equipada para desmascarar as representações infantis e arcaicas
através das quais vivemos esse problema. Essa distinção não é somente de princípio,
mas diz respeito ao trabalho do psicanalista. Este não é nem um teólogo nem um
antiteólogo. Enquanto analista, é agnóstico, vale dizer, incompetente. Não pode dizer,
como psicanalista, que Deus seja apenas a fantasia de deus. Mas ele pode ajudar seu
paciente a ultrapassar as formas infantis e neuróticas da crença. Compete ao paciente
decidir - ou reconhecer - se sua religião era apenas essa crença infantil e neurótica, cuja
mola foi descoberta pela psicanálise. Se sua crença não sobrevive a essa prova crítica é
porque não merecia sobreviver. Mas então, nada é dito, nem pró nem contra a fé em
Deus. Numa outra linguagem, direi: é preciso que a religião morra para que nasça a fé,
se é que a fé deve ser algo distinto da religião.
Pouco importa que Freud, pessoalmente, recuse esse tipo de distinção. Freud é um
Aufklärer, um homem do século XVIII. Seu racionalismo e, como ele o diz, sua
incredulidade, não são o fruto, mas o pressuposto da interpretação da ilusão religiosa,
que ele pretende ser exaustiva. O fato de a descoberta da religião como ilusão mudar
profundamente as condições de toda tomada de consciência, não é duvidoso, como
diremos, com o máximo vigor possível, a seguir. A psicanálise, porém, não tem acesso
aos problemas de origem radical, porque seu ponto de vista é econômico e apenas
econômico.
Precisarei ainda um pouco mais aquilo que, a meu ver, falta na interpretação
freudiana do fenômeno cultural em seu conjunto e da ilusão em particular: uma ilusão,
para Freud, é uma representação a que não corresponde nenhuma realidade. Sua
definição é positivista. Ora, será que não há uma função da Imaginação que escape à
alternativa positivista do real e do ilusório? Aprendemos, paralelamente ao freudismo e
independentemente dele, que os mitos e os símbolos são portadores de um sentido que
escapa a essa alternativa. Outra hermenêutica, distinta da psicanálise e mais próxima da
fenomenologia da religião, ensina-nos que os mitos não são fábulas, quer dizer, histórias
"falsas", "irreais". Essa hermenêutica pressupõe, contrariamente a todo positivismo, que
o "verdadeiro", que o "real", não se reduzem àquilo que pode ser verificado por via
matemática ou experimental, mas dizem também respeito à nossa relação com o mundo,
com os seres e com o ser. É esta relação que o mito começa a explorar de modo
imaginativo. Esta função da imaginário, que Spinoza, Hegel e Schelling discerniram
bem, de modos diferentes, Freud encontra-se ao mesmo tempo muito perto e muito
longe de reconhecê-la: o que o aproxima dela é a prática da interpretação; o que o
distancia é a teoretização “metapsicológica”, vale dizer, a filosofia implícita do próprio
modelo econômico. Por um lado, com efeito, foi em oposição ao fisicalismo e ao
biologicismo vigentes em psicologia, que Freud, desde a Traumdeutung, edificou toda a
sua teoria da interpretação. Interpretar significa ir de um sentido manifesto a um sentido
latente: a interpretação se move inteiramente em relações de sentido e só compreende as
relações de força (recalque, retorno do recalcado) como relação de sentido (censura,
despistamento, condensação, deslocamento); por isso, ninguém contribuiu mais que
Freud para romper o charme do fato e para reconhecer o império do sentido. Todavia,
Freud continua a inscrever todas as suas descobertas nesse mesmo contexto positivista
que, no entanto, vinham arruinar. A este respeito, o modelo "econômico" terá
desempenhado um papel bastante ambíguo: um papel heurístico, pela exploração das
profundezas que terá permitido, e um papel conservador, pela tendência que terá
encorajado a transcrever todas as relações de "sentido" na linguagem de uma hidráulica
mental. Pelo primeiro aspecto, o da descoberta, Freud quebra o quadro positivista da
explicação; pelo segundo, o da teorização, reforça esse quadro e autoriza o ingênuo
"energetismo mental" que grassa com muita freqüência na escola.
A tarefa de uma antropologia filosófica será a de compor com esses equívocos, no
interior mesmo da metapsicologia freudiana e de coordenar, conjuntamente, os diversos
estilos da hermenêutica contemporânea, especialmente o de Freud e o da fenomenologia
dos mitos e dos símbolos. Contudo ela só poderá coordenar esses diversos estilos entre
si, subordinando-os a esta reflexão fundamental de que foi feita alusão acima.
Esse limite de princípio do modelo "econômico" comanda, por sua vez, o do modelo
"genético". Como vimos, Freud explica geneticamente aquilo que não possui verdade
positiva. A origem "histórica" (no sentido filogenético e no sentido ontogenético) faz às
vezes de origem axiológica ou de origem radical. Por esta cegueira a qualquer outra
função da ilusão que não fosse distorção do real positivo, explico a ausência total de
interesse, em Freud, por tudo o que não é simples repetição de uma forma arcaica ou
infantil e, em última instância, simples "retorno do recalcado". Isto é surpreendente no
caso da religião: tudo o que pôde se acrescentar à consolação primitiva, conferida por
deuses concebidos à imagem do pai, é sem importância. Ora, quem pode decidir que o
sentido da religião encontra-se mais no retorno das lembranças ligadas ao assassinato do
pai da horda, que nas renovações pelas quais a religião se distancia de seu modelo
primitivo? O sentido está na gênese ou na epigênese? No retorno do recalcado ou na
retificação do antigo pelo novo? (15). Não é uma explicação genética que pode decidir,
mas uma reflexão radical, por exemplo, a de Hegel em As Lições sobre a Filosofia da
Religião. Ora, esta reflexão se aplica ao progresso da representação religiosa, e não a
seu aspecto de repetição.
Essa dúvida dizendo respeito à justeza do modelo genético vincula-se,
estreitamente, à questão anterior dos limites do modelo econômico: poderia ocorrer,
realmente, que a imaginação mítico-poética, em sua função de exploração ontológica,
fosse o instrumento dessa correção renovadora, dirigida em sentido inverso ao da
repetição arcaizante. Há uma história progressiva da função simbólica, da imaginação,
que não coincide com a história regressiva da ilusão, enquanto simples "retorno do
recalcado". Mas, será que estamos em condições de distinguir essas duas histórias uma
da outra, essa promoção e essa regressão, essa criação e essa repetição?
É aqui que não dispomos de segurança. Sabemos que esse discernimento dos
limites, por mais legítimo e bem fundado que seja, torna-se, por sua vez, indiscernível
das justificações e das racionalizações que a psicanálise desmascara. É por isso que
precisamos deixar em suspenso nossa crítica e entregar-nos, sem defesa, ao
questionamento da consciência de si pela psicanálise. Talvez mesmo ocorra, no final
desse percurso, que o "lugar" da psicanálise, no cerne da cultura contemporânea,
permaneça e deva permanecer indeterminado, enquanto sua instrução não tiver sido
assimilada, apesar de seus limites e, talvez, graças a seus limites. O confronto com
outras interpretações da cultura, não mais adversas, mas concorrentes, ajudar-nos-á a
dar esse novo passo.

2. Marx, Nietzsche, Freud


Não se duvida mais que a obra de Freud seja tão importante para a tomada de
consciência do homem moderno quanto a de Marx ou a de Nietzsche. Entre esses três
críticos da consciência "falsa", o parentesco é surpreendente. Todavia, encontramo-nos
ainda longe de ter assimilado esses três questionamentos das evidências da consciência
de si, de ter integrado em nós mesmos esses três exercícios da suspeita. Estamos ainda
por demais atentos às suas diferenças, vale dizer, em definitivo, às limitações que os
preconceitos de sua época impõem a esses três pensadores; sobretudo, somos vítimas da
escolástica na qual seus epígonos os encerram: Marx é então relegado no economicismo
marxista e na absurda teoria da consciência-reflexo; Nietzsche é lançado do lado de um
biologismo, senão de uma apologia da violência; Freud é confinado na psiquiatria e
fantasiado de um pansexualismo simplista.
Seria levado a crer, de bom grado, que, para nosso tempo, a significação desses três
exegetas do homem moderno só poderá ser corrigida conjuntamente.
Antes de tudo, é contra a mesma ilusão que eles se insurgem, contra essa ilusão
aureolada com um nome prestigioso: a ilusão da consciência de si. Essa ilusão é o fruto
de uma primeira vitória, conquistada sobre uma ilusão anterior: a ilusão da coisa. O
filósofo formado na escola de Descartes sabe que as coisas são duvidosas, que não são
tais como aparecem. Mas não duvida que a consciência seja tal como ela aparece a si
mesma: nela, sentido e consciência do sentido coincidiriam. Depois de Marx, Nietzsche
e Freud, duvidamos disso. Após a dúvida sobre a coisa, ingressamos na dúvida sobre a
consciência.
Todavia, esses três mestres da suspeita não constituem três mestres do ceticismo.
Seguramente, são três grandes "destruidores". No entanto, isso não deve nos enganar. A
destruição, diz Heidegger em Sein und Zeit, é um momento de toda nova fundação. A
"destruição" dos mundos passados é uma tarefa positiva, inclusive a destruição da
religião, enquanto esta é, segundo o termo de Nietzsche, um "platonismo para o povo".
É para além da "destruição" que se coloca a questão de saber o que ainda significam
pensamento, razão e, mesmo, fé.
Ora, os três pensadores limpam o horizonte para uma palavra mais autêntica, para
um novo reino da verdade, não somente mediante uma crítica "destrutiva", mas pela
invenção de uma arte de interpretar. Descartes vence a dúvida sobre a coisa pela
evidência da consciência. Eles vencem a dúvida sobre a consciência por uma exegese do
sentido. A partir deles, a compreensão é uma hermenêutica: doravante, procurar o
sentido, não é mais soletrar a consciência do sentido, mas decifrar suas expressões.
Portanto, o que se deveria confrontar, não é somente uma tríplice suspeita, mas uma
tríplice astúcia. Se a consciência não é o que acredita ser, deve ser instituída uma nova
relação entre o patente e o latente. Essa nova relação corresponderia à que a consciência
instituíra entre a aparência e a realidade da coisa. A categoria fundamental da
consciência, para os três, é a relação oculto-mostrado ou, se preferirmos, simulado-
manifestado. Que os marxistas se obstinem na teoria do "reflexivo", que Nietzsche se
contradiga dogmatizando sobre o "perspectivismo" da Vontade de Poder, que Freud
mitologize com sua "censura", seu "porteiro" e seus "despistamentos", o essencial não
está nesses embaraços e nesses impasses, mas no fato de os três criarem com os meios
disponíveis, vale dizer, com e contra os preconceitos da época, uma ciência mediata do
sentido, irredutível à consciência imediata do sentido. O que os três tentaram, através de
caminhos diferentes, foi fazer coincidirem seus métodos "conscientes" de decifração
com o trabalho "inconsciente" da cifração que atribuíam à vontade de poder, ao ser
social e ao psiquismo inconsciente. A astúcia, astúcia e meia. No caso de Freud, é a
admirável descoberta de A Ciência dos Sonhos: o analista faz deliberadamente, em
sentido inverso, o trajeto que fez o sonhador sem querer e sem saber, no "trabalho do
sonho". Dessa forma, o que distingue Marx, Freud e Nietzsche, é, ao mesmo tempo, o
método de decodificação e a representação que, se fazem do processo da codificação
que emprestam ao ser inconsciente. Não poderia ser de outra forma, pois este método e
esta representação se recobrem e se verificam reciprocamente. Assim, em Freud, o
sentido do sonho - mais geralmente, o dos sintomas e das formações de compromisso;
mais geralmente ainda, o das expressões psíquicas em seu conjunto - é inseparável da
"análise" como tática de decodificação. E podemos dizer, num sentido não cético, que
este sentido é promovido e mesmo criado pela análise, portanto, que é relativo ao
conjunto dos procedimentos que o instituíram. Podemos dizer isso, contanto que
possamos dizer o inverso: que o método é verificado pela coerência do sentido
descoberto; mais ainda, o que justifica o método é o fato de o sentido descoberto, não
somente satisfazer à compreensão por uma inteligibilidade maior que a desordem da
consciência aparente, mas liberar o sonhador ou o doente, quando este chega a conhecê-
lo, a apropriar-se dele; em suma, quando o portador do sentido torna-se
conscientemente este sentido, que só existia, até então, fora dele, "em" seu inconsciente,
depois, "na" consciência do analista.
Tomar conscientemente para si este sentido que só era sentido para um outro, eis o
que o analista quer para o analisado. Descobre-se ao mesmo tempo um parentesco mais
profundo ainda entre Marx, Freud e Nietzsche. Os três, dizíamos, começam pela
suspeita concernindo às ilusões da consciência, e continuam pela astúcia da decifração.
Os três, enfim, longe de serem detrator da "consciência", visam a uma extensão dela. O
que pretende Marx, é liberar a praxis pelo conhecimento da necessidade; mas esta
liberação é inseparável de uma "tomada de consciência" que retruca vitoriosa mente às
mistificações da consciência falsa. O que pretende Nietzsche é o aumento do poder do
homem, a restauração de sua força; mas aquilo que Vontade de poder quer dizer, deve
ser recoberto pela meditação das cifrações do "super-homem", do "retorno eterno" e de
"Dionísio", sem as quais esse poder seria apenas a violência de um aquém. O que
pretende Freud, é que 'o analisado, ao fazer seu o sentido que lhe era estranho, amplie
seu campo de consciência, viva melhor e, finalmente, seja um pouco mais livre e, se
possível, um pouco mais feliz. Uma das primeiras homenagens prestadas à psicanálise
fala de "cura pela consciência". O termo é justo. Com a condição de dizer que a análise
quer substituir uma consciência imediata e dissimuladora por uma consciência mediata
e instruída pelo princípio de realidade. Assim, o mesmo duvida dor que descreve o Ego
como um "pobre diabo", submetido a três senhores, o Id, o Superego e a realidade ou
necessidade, também é o exegeta que descobre a lógica do reino ilógico e que ousa, com
um pudor e uma discrição inigualáveis, concluir seu ensaio sobre O Futuro de uma
Ilusão, pela invocação do deus Logos, com voz fraca ,mas infatigável, do Deus, não
onipotente, mas eficaz apenas com o tempo.

III. REPERCUSSÃO DA HERMEN UTICA FREUDIANA NA CULTURA

Eis o que esses três exegetas pretenderam fazer para o homem moderno. Todavia,
estamos longe de ter assimilado suas descobertas e de nos compreender, plenamente,
mediante a interpretação que nos fornecem de nós mesmos. Devemos confessar que
suas interpretações ainda flutuam distante de nós, que ainda não encontraram, seu justo
lugar. Entre sua interpretação e nossa compreensão, a distância é, ainda, enorme. Mais
ainda, não nos encontramos diante de uma interpretação unitária que deveríamos
assimilar conjuntamente, mas de três interpretações cuja discordância é mais manifesta
que o parentesco. Ainda não existe nenhuma estrutura de acolhimento, nenhum
discurso seguido, nenhuma antropologia filosófica capazes de integrar, entre si e em
nossa consciência, a hermenêutica de Marx, a de Nietzsche e a de Freud. Seus efeitos
traumatizantes se acumulam, seus poderes de destruição se adicionam, sem que suas
exegeses se coordenem e uma nova consciência unitária as congregue. É por isso que se
torna necessário confessar que a significação da psicanálise, enquanto evento interno de
nossa cultura moderna, permanece em suspenso e, seu lugar, indeterminado. .

1. Resistência à verdade.
Ora, é interessante notar como a psicanálise dá conta, por seus próprios esquemas
interpretativos, desse atraso e desse suspense na tomada de consciência do evento que
ela representa para a cultura: a consciência diz ela, "resiste" a compreender-se. Também
Édipo "resistia" à verdade conhecida por todos os outros. Recusava-se reconhecer-se
nesse homem que ele próprio havia amaldiçoado. O reconhecimento de si é o
verdadeiro trágico, o trágico de mundo grau. O trágico de consciência - trágico de
Recusa e de Cólera - duplica o trágico primário, o trágico de ser tal: incesto e parricídio.
Dessa "resistência" à verdade, Freud falou magnificamente num texto famoso e fre-
qüentemente citado: Uma Dificuldade da Psicanálise (1917). A psicanálise, diz ele, é a
última em data das "graves humilhações" que "o narcisismo, o amor-próprio do homem
em geral, experimentou, até o presente, por parte da investigação científica”. Em
primeiro lugar, houve a humilhação cosmológica que lhe infligiu Copérnico, arruinando
a ilusão narcísica segundo a qual o habitáculo do homem estaria em repouso no centro
das coisas. Em seguida, foi a humilhação biológica, quando Darwin pôs um fim à
pretensão do homem de ser cortado do reino animal. Enfim, veio a humilhação
psicológica: o homem, que já sabia não ser nem o senhor do Cosmos, nem o senhor dos
seres vivos, descobre que não é nem mesmo o senhor de sua Psique. A psicanálise se
dirige ao Ego assim: "Tu crês saber tudo o que se passa em tua alma, desde que seja
suficientemente importante, porque tua consciência te ensinaria isso então. E quando
permaneces sem notícia de algo que está em tua alma, admites, com uma perfeita
segurança, que isso não se encontra aí. Tu chegas mesmo a tomar "psíquico" por
idêntico a "consciente", vale dizer, conhecido de ti, e isto, apesar das provas mais
evidentes que deve, incessantemente, passar-se em tua vida psíquica muito mais coisas
que pode ser revelado à tua consciência. Deixa-te, pois, instruir sobre esse ponto!". "Tu
te comportas como um monarca absoluto que se contenta com as informações que lhe
fornecem os altos dignitários da corte e que não desce junto ao povo para ouvir sua voz.
Penetre profundamente em ti mesmo e aprenda, antes, a conhecer-te; então
compreenderás por que irás cair doente, e talvez conseguirás evitá-lo" (Essais de
psychanalyse appliquée, pp. 145-146).
"Deixa-te, pois, instruir sobre esse ponto.... Penetra profundamente em ti mesmo e
aprende antes, a conhecer-te... ": assim, a psicanálise compreende sua própria inserção
na consciência comum à maneira de uma instrução e de uma clareza - mas de uma
instrução que encontra as resistências do narcisismo primitivo e persistente, quer dizer,
dessa libido que jamais se investe completamente em objetos, mas que o Ego retém para
si. É por isso que essa instrução do Ego é, necessariamente, vivida como uma
humilhação, como ofensa à libido do Ego.
Este tema da humilhação narcísica lança um raio de luz sobre tudo o que acabamos
de dizer sobre a suspeita, a astúcia e extensão do campo de consciência: sabemos agora
que não é a consciência que é humilhada, mas a pretensão da consciência, a libido do
ego. E sabemos que, aquilo que a humilha, é justamente uma melhor consciência, uma
"clareza", o conhecimento "científico", diz Freud como bom racionalista; de modo mais
amplo, digamos que é uma consciência descentrada de si, despreocupada, "deslocada"
para a imensidão do Cosmos por Copérnico, para o gênio móvel da vida por Darwin,
para as profundezas tenebrosas da Psique por Freud. A consciência se amplia a si
mesma ao rescentrar-se sobre seu Outro: Cosmos, Bios, Psique. Ela se encontra
perdendo-se; descobre-se, instruída e clarificada, ao perder-se, narcísica.

2. As reações "imediatas" da consciência comum


Essa distância entre a interpretação da cultura, fornecida pela psicanálise, e a
compreensão que a consciência comum pode tomar dessa interpretação, explica - se não
totalmente, pelo menos em parte - os embaraços dessa consciência comum. A
psicanálise, dizíamos acima, dificilmente encontra seu lugar na cultura: sabemos agora
que tomamos consciência de sua significação somente através das representações
truncadas suscitadas pelas resistências de nosso narcisismo.
São essas representações truncadas que encontramos no nível das "influências"
curtas e das reações "imediatas". O nível das influências "curtas" é o da vulgarização. O
nível das reações "imediatas" é o da tagarelice. Entretanto, não deixa de ter interesse
determo-nos, por um instante, nesse nível: a psicanálise correu o risco de ser julgada,
enaltecida e condenada, nesse plano da vulgarização. A partir do momento em que
Freud fazia conferências, publicava livros, dirigia-se a não-analistas e não-analisados,
permitia que a psicanálise caísse no domínio público. De qualquer forma, algo era dito
que escapava, desde o início, à relação intersubjetiva precisa do médico e de seu
paciente. Essa difusão da psicanálise fora do quadro terapêutico é um enorme
acontecimento cultural do qual, aliás, a psicologia social constitui, por sua vez, um
objeto científico de enquetes, de medidas e de explicações.
É, antes de tudo, como fenômeno global de desocultação que a psicanálise penetra
no público. Uma parte oculta e muda do homem torna-se pública. Fala-"se" da
sexualidade, fala-"se" das perversões, do recalque, do Superego, da censura. A esse
título, a psicanálise é um acontecimento do "se" (on), um tema da "tagarelice". Todavia,
a. conspiração do silêncio também é um acontecimento do "se" (on), e a hipocrisia não
menos tagarela que a exposição, em praça pública, do segredo de cada um tornado
segredo de Polichinelo.
Ninguém sabe o que fazer de sua desocultação. Porque, aí, começa o mais total mal-
entendido: no nível das influência "curtas", pretende-se imediatamente tirar da
psicanálise uma ética imediata. Utiliza-se, então, da psicanálise como de um sistema de
justificação para posições morais que não passaram, em sua profundidade, por um
questionamento da psicanálise, enquanto que a psicanálise pretendeu ser justamente
uma tática para desmascarar todas as justificações. Assim, alguns pedem à psicanálise
que ratifique uma educação sem constrangimento - pois a neurose vem do recalque - e
discernem, em Freud, o apologeta discreto e camuflado de um novo epicurismo. Outros,
apoiando-se na teoria dos estágios de maturação e de integração, bem como na teoria
das perversões e das regressões, mobilizam a psicanálise em proveito da moral
tradicional: não definiu Freud a cultura pelo sacrifício pulsional?
É verdade que, numa primeira aproximação, podemos hesitar sobre aquilo que
realmente pretendeu Freud, e podemos ser tentados por uma psicanálise "selvagem" da
psicanálise: não fez Freud publicamente a apologia "burguesa" da disciplina
monogâmica, enquanto fazia secretamente a apologia "revolucionária" do orgasmo?
Mas a consciência que coloca essa questão e tenta encerrar Freud nessa alternativa ética
é uma consciência que não atravessou a prova crítica da psicanálise.
A revolução freudiana é a do diagnóstico, da frieza lúcida, da verdade laboriosa.
Freud, a título imediato, não prega nenhuma moral: "Não trago nenhum consolo”, diz
no final de O Futuro de uma Ilusão. Todavia, há homens que pretendem manipular sua
ciência enquanto pregação. Quando Freud fala de perversão e de regressão, eles se
perguntam se é o sábio quem descreve e explica, ou o burguês vienense quem se
justifica. Quando ele diz que o homem é conduzido pelo princípio do prazer, põem-no
sob a suspeita - para vituperá-lo ou enaltecê-lo - de deixar passar sob o diagnóstico a
aprovação de um epicurista inconfessado, enquanto enfoca o olhar não patético da
ciência sobre as condutas ardilosas do homem moral. Eis o mal-entendido: Freud é
ouvido como profeta, enquanto fala como um pensador não profético; não fornece
nenhuma ética nova; contudo, muda a consciência daquele para quem a questão ética
permanece aberta; muda a consciência mudando a consciência da consciência e
fornecendo-lhe a chave de algumas de suas astúcias. Freud pode mudar longinquamente
nossa ética, pois não é proximamente um moralista.

3. Freud, pensador trágico?


É retificando essas reações superficiais que a consciência comum se oferecerá à
influência, em profundidade, da psicanálise. A via curta só conduz, como vimos, a mal-
entendidos e a contradições: as de uma ética extraída diretamente da psicanálise. A via
longa seria a de uma transformação da consciência de si pela compreensão mediata dos
signos do homem. Onde nos conduzirá essa via longa? Não sabemos ainda. A
psicanálise é uma revolução indireta: só mudará os costumes mudando a qualidade do
olhar e a tonalidade da palavra do homem sobre ele mesmo. Inicialmente obra de
verdade, ela só ingressa na esfera ética através da tarefa de veracidade que propõe.
Já podemos reconhecer algumas das linhas de força ao longo das quais se exerce o
exame, sobre nossa consciência de homens modernos, daquilo que há pouco chamava
de a compreensão mediata dos signos do homem.
Colocando-nos ainda no prolongamento desse esforço geral de desocultação que a
psicanálise exerce no nível mais elementar da vulgarização, podemos dizer que a
psicanálise chama a atenção para aquilo que o próprio Freud chama de dureza da vida.
É difícil ser homem, diremos: se a psicanálise parece advogar alternadamente pela
diminuição do sacrifício pulsional, mediante um relaxamento dos interditos sociais e
por uma aceitação desse sacrifício, graças à submissão do princípio de prazer ao
princípio de realidade, não é porque ela creia numa ação "diplomática" imediata entre as
instâncias que se defrontam. Ela tudo espera da mudança de consciência que procederá
de uma compreensão mais ampla e mais articulada do trágico humano, sem se
preocupar em tirar dele, apressadamente, conseqüências éticas.
Freud não diz, como Nietzsche, que o homem é um "animal doente": torna
manifesto que as situações humanas são inelutavelmente conflituais. Por quê? Em
primeiro lugar, o homem é o único ser que possui uma infância tão grande e que, por
isso mesmo, também permanece duravelmente numa condição de dependência. O
homem é "histórico", foi dito de múltiplas maneiras. Freud diz: ele é antes de tudo, é
por muito tempo e é ainda pré-histórico, por causa de seu destino infantil. As grandes
figuras - reais ou fantásticas - do pai, da mãe, dos irmãos e irmãs, a crise edipiana, o
medo da castração, nada de tudo isso teria sentido para um ser que não fosse
fundamentalmente a presa de sua infância: dificuldade de tornar-se adulto. Será que
sabemos ao menos o que seria um sentimento adulto de culpabilidade?
Trágico do destino infantil; trágico também da "repetição". É esse trágico da
repetição que constitui a força de todas as explicações genéticas de que mostramos
acima, o limite de princípio. Não é por capricho de método, mas por respeito à verdade,
que Freud nos conduz incansavelmente ao começo. A infância não seria um destino, se
algo não conduzisse incessantemente o homem para trás. Ninguém mais que Freud foi
sensível a esse trágico do retardamento em suas múltiplas formas: retorno do reca1cado,
tendência da libido em retomar a posições ultrapassadas, dificuldade do trabalho de luto
e em geral do desinvestimento das energias ligadas, ausência de mobilidade libidinal.
As considerações sobre a pulsão de morte, não se deve esquecer, nasceram em boa parte
dessa reflexão sobre as tendências à repetição que Freud não hesitou em aproximar da
tendência do orgânico a retomar ao inorgânico: Tánatos conspira com o gênio arcaizante
da Psique.
Trágico das contradições da libido: desde os Três Ensaios sobre a Sexualidade,
sabemos que a energia da libido não é simples, que ela não possui nem unidade de
objeto, nem unidade de objetivo, que sempre pode desintegrar-se e tomar o caminho das
perversões e das regressões. A complicação crescente do esquema freudiano das pulsões
- a distinção entre libido do Ego e libido objetal, a reinterpretação do sadismo e do
masoquismo, após a introdução da pulsão de morte - só pode reforçar esse sentimento
do caráter errante do desejo humano. Portanto, a dificuldade. de viver também é- e,
talvez, sobretudo - a dificuldade de amar, de levar a bom termo uma vida amorosa.
Isso, porém, não é tudo: todas essas motivações supõem que a psicanálise teria
apenas desocultado o sexual. Mas se ela se propõe, mais ainda que a explorar o
fundamento pulsional do homem, a reconhecer as "resistências" da consciência a essa
desocultação, a desmascarar as justificações e as racionalizações pelas quais essas
"resistências" se exprimem; e se é verdade que essas "resistências" pertencem à mesma
rede que as interdições e as identificações que constituem a temática do Superego, não é
exagero dizermos que o trágico possui dois pólos e não apenas um: do lado do Id e do
lado do Superego. É por isso que, à dificuldade de tomar-se adulto e à dificuldade de
amar, acrescenta-se a de se conhecer e de se julgar d modo verídico. Assim, a tarefa de
veracidade nos é proposta. no ponto central da dificuldade de viver. Na história de
Édipo, o verdadeiro trágico não é o de ter matado, sem ter querido, seu pai e desposado
sua mãe; isto ocorreu outrora; é seu destino passado; o trágico atual consiste em que, o
homem que ele amaldiçoou por esse crime de um outro, é ele próprio, e que é preciso
reconhecê-lo. A sabedoria consistiria em reconhecer-se e em deixar de maldizer-se. O
velho Sófocles, porém, escrevendo Édipo em Colona, sabia que Édipo, mesmo tendo-se
tornado cego, não eliminara a "Cólera" contra si.
Compreende-se, então, por que é vão exigir-se da psicanálise uma ética imediata,
sem ter antes mudado sua consciência: o homem é um ser mal acusado.
Talvez seja aqui que Freud se aproxima mais de Nietzsche: é a acusação que se deve
acusar. Aliás, ao criticar, em A Fenomenologia do Espírito, a "visão moral do mundo",
Hegel dissera antes de Nietzsche: a consciência julgadora é denegridora e hipócrita; é
preciso que seja reconhecida sua própria finitude, sua igualdade com a consciência
julgada, para que a "remissão dos pecados" seja possível como saber de si que
reconcilia. Contudo, Freud não acusa a acusação; ele a compreende e, ao compreendê-
la, torna públicos sua estrutura e seu estratagema. Situa-se nessa direção a possibilidade
de uma ética autêntica, onde a crueldade do Superego seria substituída pela severidade
do amor. Todavia, precisamos aprender antes, detidamente, que a catarse do desejo nada
significa sem a da consciência julgadora.
Não é tudo o que devemos apreender antes de voltarmos à ética; não esgotamos essa
instrução à ética.
Realmente, é possível reinterpretar, à luz dessas observações sobre o duplo trágico
do Id e do Superego, tudo o que dissemos acima sobre a cultura.
Vimos o lugar que aí ocupam as noções de "ilusão", de “satisfação substituída”, de
"sedução". Também essas noções pertencem ao ciclo trágico de que acabamos de
reconhecer os focos de proliferação. Com efeito, a cultura é feita de todos os
procedimentos pelos quais o homem escapa, de o imaginário, à situação sem saída de
desejos que não podem ser nem supressos, nem satisfeitos. Entre a satisfação e a
supressão abre-se o caminho, também ele difícil, da sublimação. Mas é porque o
homem não pode mais ser animal e não é divino, que entra nessa situação inextrincável.
Então, ele cria "'delírio e sonhos", como o herói de A Gradiva de Iensen; também cria
obras de arte e deuses. A grande função fabuladora, que Bergson ligava à disciplina das
sociedades fechadas, Freud a vincula a essa tática de escamoteamento e de ilusão que o
homem elabora, não somente por cima de suas renúncias, mas com a própria carne de
suas renúncias. Trata-se de uma idéia bastante profunda: uma vez que o princípio de
realidade barra o caminho ao princípio do prazer, resta ao homem “cultivar" a arte
da substituição de gozo. O homem, comprazemo-nos em. repetir, é um ser que pode
sublimar. Mas a sublimação não resolve o trágico; ela o faz sobressair. Por sua vez, a
consolação - vale dizer, a reconciliação com os sacrifícios inevitáveis é a arte de
suportar o sofrimento que o corpo, o mundo e outrem nos infligem - jamais é
inofensiva. O parentesco da "ilusão" religiosa com a neurose obsessiva está aí para
atestar que o homem não sai da esfera dos instintos e não "se eleva" - não se sublima! -
senão para reencontrar, sob uma forma mais insidiosa, em despistamentos mais
ardilosos, o próprio trágico da infância em que reconhecemos o primeiro trágico.
Somente a arte parece isenta de perigo. Pelo menos, é o que Freud deixa crer, sem
dúvida porque conheceu apenas suas formas idealizantes, seu poder de amortecer, por
suave encantamento, as forças tenebrosas; parece não ter suspeitado de sua veemência,
de seu poder de contestação, de exploração, de penetração subterrânea e de explosão
escandalosa. É por esta razão que a arte parece ser o único poder que Freud poupou de
sua suspeita. Na realidade, a "sublimação" abre um novo ciclo de contradições e de
perigos. Mas não constitui o equívoco fundamental da imaginação em servir a dois
senhores ao mesmo tempo, à Mentira e à Realidade? À mentira, porque ela engana Éros
com seus fantasmas (como se diz que enganamos a fome); à realidade, porque ela
habitua o olho à Necessidade.
Finalmente, é o conhecimento lúcido do caráter necessário dos conflitos que
constitui, se não a última palavra, pelo menos a primeira palavra de uma sabedoria que
teria incorporado a instrução da psicanálise. Neste ponto, Freud renovou, não somente
as fontes do trágico, mas o próprio "saber trágico", enquanto é a reconciliação com o
inevitável. Não foi por acaso que Freud - o naturalista, o determinista, o cientificista,
herdeiro do Iluminismo - só descobriu, cada vez, para dizer o essencial, a linguagem dos
mitos trágicos: Édipo e Narciso, Éros, Ananké e Tánatos. É este saber trágico que seria
preciso ser assimilado para se atingir o limiar de uma nova ética, que renunciaríamos a
derivar da obra de Freud por um inferência imediata, mas que seria longamente
preparada pela instrução fundamentalmente não ética da psicanálise. A tomada de
consciência que a psicanálise oferece ao homem moderno é difícil, é dolorosa, por causa
da humilhação narcísica que ela inflige: mas a este preço, ela se assemelha à
reconciliação de que Ésquilo pronunciou a lei: tô pátei pátos - "pelo sofrer, o compreen-
der" (Agamemnon, verso 177). .
Aquém dessa reconciliação, a crítica esboçada inicialmente e a repetição interior que
acabamos de levar a efeito, devem. ser empreendidas conjuntamente e de frente. Uma
reflexão sobre os limites da interpretação freudiana permanece em suspenso, como
permanece em suspenso a significação profunda dessa grande subversão da consciência
de si inaugurada por Marx, Nietzsche e Freud.

NOTAS

14 É assim que a consciência faz de todos nós covardes.


15 Freud várias vezes alcançou as fronteiras de sua teoria: de onde vêm, pergunta-se em Moisés o
Monoteísmo, os progressos ulteriores da idéia de Deus, que começam com a interdição de adotar Deus
sob uma forma visível? A crença na onipotência do pensamento (ibid., p. 170), que se vincula à
apreciação que o homem confere ao desenvolvimento da linguagem, parece inscrever-se melhor em outro
registro, que no registro comandado pelos modelos genético e tópico-econômico; por isso, Freud não vai
mais longe nesse sentido. Da mesma forma, o deslocamento da ênfase, da maternidade que é percebida, à
paternidade que é conjectura, sugere que nem tudo foi dito sobre o pai, quando foi invocada a
ambivalência do amor e do medo. E ainda isso: será que a felicidade da renúncia é explicada de modo
exaustivo pelo recurso, de um lado, à idéia de um acréscimo de amor pelo qual o Superego, herdeiro do
pai, responde à renúncia à satisfação pulsional; do outro, à idéia de um aumento do narcisismo que iria ao
encontro da consciência de um ato meritório (p. 174-178)? E por que o sentido da religião deveria ser
procurado unicamente do lado da "renúncia às pulsões"? Por que ela não patrocinaria, também, o pacto
dos irmãos e o reconhecimento da igualdade dos direitos para todos os membros da horda dos irmãos?
Nem tudo é, aqui, perpetuação da vontade do pai, retorno do recalcado, mas emergência de uma nova
ordem.

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